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GUINADA LINGUÍSTICO-PRAGMÁTICA E HERMENÊUTICA NA FILOSOFIA

Prof. Dr. Paulo Rogério da Silva

1. SEMÂNTICA TRADICIONAL

Ao longo de grande parte da história da filosofia, a linguagem foi vista


apenas a partir de um paradigma instrumental. A grande influência desta concepção
instrumental e secundária da linguagem tem como origem Platão e Aristóteles.

a) Platão:
Na sua obra Crátilo, ao negar tanto o naturalismo extremado (segundo o
qual cada coisa tem um nome por natureza – posição esta defendida por Crátilo),
como também o convencionalismo linguístico (para o qual a significação é fruto da
convenção e do uso da linguagem – posição esta defendida por Hermógenes),
Platão assume uma posição intermediária aos dois extremos, afirmando que, de um
lado, não é possível descobrir a significação de uma palavra na própria forma do
som (naturalismo)1, nem acreditar que a significação de uma palavra é apenas
resultado de um acordo convencional (convecionalistas)2. Logo, as palavras não
significam as coisas por simplesmente imitar os sons ou pelo fato de fazerem parte
de uma convenção, mas sim porque apresentam e correspondem a essências fixas
e imutáveis:

Por conseguinte, se todas as coisas não são todas iguais, ao mesmo


tempo e sempre, a cada uma delas não é própria de cada um em
particular, daí resulta com evidência que elas têm por si mesmas
uma certa realidade permanente, que não se relaciona conosco nem
depende de nós; não se deixam, por isso, arrastar para aqui e para
acolá por nossa fantasia, mas existem, naturalmente, por si mesmas
e segundo a sua essência própria (PLATÃO, 1963, p. 16).

1 O que seria um absurdo para Platão, pois, neste caso, todos poderiam compreender imediatamente
línguas estrangeiras.
2 O que não deixaria de ser outro absurdo para Platão, pois como usar os nomes como instrumentos,
se eles não possuem uma referência fixa ao qual corresponder? Nesse caso, haveria infinitos
acordos e as pessoas não poderiam mais saber do que estariam se referindo. Esta é a tese do
relativismo de Protágoras combatida por Platão no discurso. Cf. Platão, 1963, p. 13-16 (ou, segundo
a numeração oficial dos escritos platônicos, de 386a até 386e).
2

Com isso, a tese de Platão é que a linguagem apenas nomeia as essências,


as coisas no mundo, como uma espécie de instrumento separante (distinguir aquilo
“é” daquilo que “não é”). Confira no trecho a seguir como Platão argumenta a função
instrumental e designativa da linguagem:

[Sócrates] – Aquilo que era preciso cortar não devia ser cortado,
afirmamos nós, com alguma coisa?
[Hermógenes] – Sim.
[Sócrates] – E o que devia tecer não se devia tecer com alguma
coisa? E, do mesmo modo, o que se devia furar?
[Hermógenes] – Indubitavelmente.
[Sócrates] – E o que era preciso nomear não se devia, da mesma
maneira, nomear com alguma coisa?
[Hermógenes] – É assim mesmo.
[Sócrates] – E qual instrumento com que se devia furar?
[Hermógenes] – Um trado.
[Sócrates] – E aquele que se devia tecer?
[Hermógenes] – Uma lançadeira.
[Sócrates] – E de que nos servimos para nomear?
[Hermógenes] – Do nome.
Dizes bem. Portanto, o nome também é um instrumento.
[Hermógenes] – Sem dúvida.
[Sócrates] – Se eu, pois, perguntasse: que instrumento é a
lançadeira? Não será aquilo com que tecemos?
[Hermógenes] – Sim.
[Sócrates] – E o que fazemos quando tecemos? Não distinguimos a
trama da urdidura, confundidas uma com outra?
[Hermógenes] – Sim.
[Sócrates] – Não poderás dizer o mesmo do trado e dos outros
instrumentos?
[Hermógenes] – Com toda certeza.
[Sócrates] – Poderás, então, falar do mesmo modo a respeito do
nome? Sendo um instrumento, se nomearmos com ele, que fazemos
nós?
[Hermógenes] – Não o posso dizer.
[Sócrates] – Não nos instruímos mutuamente e não distinguimos as
coisas como elas são naturalmente?
[Hermógenes] – Exacto.
[Sócrates] – Logo, é o nome um instrumento, que serve para instruir
e distinguir a realidade, como faz na teia a lançadeira (PLATÃO, 1963,
p. 18-20).

Neste sentido, na teoria da linguagem de Platão, não faz diferença dizer


‘hypos’ ou ‘cavalo’, contanto que a essência (eidos) da qual esteja se referindo seja
de fato correspondente à idéia de ‘hypos’ e de ‘cavalo’. Veja como isso é exposto
3

novamente no Crátilo:

Não é, portanto, o nome apropriado, naturalmente, a cada objecto


que o legislador deve pôr em sons e em sílabas? Não importa a ele,
de olhos fitos no nome em si, criar e estabelecer todos os nomes, se
quiser ser um autorizado criador dos mesmos [isto é, dos nomes]?
Dado o caso que nem todos os legisladores se sirvam das mesmas
sílabas, isso pouco monta, pois não se deve ignorar que nem todos
os ferreiros, tendo em vista o mesmo instrumento, o fabricam do
mesmo ferro; não obstante, dando-lhe cada um forma idêntica, ainda
que se sirva de um ferro diferente, o instrumento é bom, quer seja
fabricado entre nós, quer entre os Bárbaros. Não é verdade?
(PLATÃO, p. 23-24)

Mas ainda fica um problema: quem poderá então julgar e escolher com
exatidão os nomes em relação às verdadeiras essências? Se para usar bem a
linguagem, é preciso fazer com os nomes em sua diversidade designem
corretamente sua essência correspondente, então, tal tarefa só ser realizado por
quem conhece tais essências, isto é, pelo filósofo [dialético]: “ora, quem sabe
interrogar e responder dás-lhe outro nome que não seja o de dialéctico” (PLATÃO,
1963, p. 25). Neste caso, a função da linguagem serviria apenas para corresponder
os elementos gramaticais aos elementos ontológicos das coisas. Assim afirma
Oliveira na tese relacionada a Platão:

A linguagem é reduzida a um puro instrumento, e o conhecimento do


real se faz independente dela. [...] A linguagem não é, pois,
constitutiva da experiência humana do real, mas é um instrumento
posterior, tendo uma função designativa [...] O pensar é uma
atividade essencialmente não-linguística e, sendo assim, a relação
da linguagem para o real é secundária (OLIVEIRA, 2006, p. 22).

b) Aristóteles:
Aristóteles, por sua vez, também não conseguiu romper com esta tradição
instrumental e secundária da linguagem. Em sua magna obra Órganon, mais
especificamente no livro Da Interpretação, Aristóteles continua com tal concepção ao
afirmar que as palavras escritas são símbolos representativos das palavras faladas,
e, as palavras faladas, símbolos dos conceitos do intelecto (ou afecções da alma).
Mas de onde vêm os conceitos? Aí está a outra questão principal: os conceitos são
abstrações imediatas que o intelecto faz das essências das coisas contidas na
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própria realidade. Somente depois de abstraídas no conceito (nas afecções da alma)


é que as essências serão nomeadas linguisticamente.
Desta maneira, como é possível claramente perceber, a linguagem em
Aristóteles também tem uma função tanto designativo-instrumental3, como também
secundária4. Confira trecho apresentado pelo próprio Aristóteles no Órganon:

Os sons emitidos pela fala são símbolos das paixões da alma [ao
passo que] os caracteres escritos [formando palavras] são os
símbolos dos sons emitidos pela fala. Como a escrita, também a fala
não é a mesma em toda parte [para todas as raças humanas].
Entretanto, as paixões da alma, elas mesmas, das quais esses sons
falados e caracteres escritos [palavras] são originalmente signos, são
as mesmas em toda parte [para toda a humanidade], como o são
também os objetos dos quais essas paixões são representações ou
imagens. Destes temas, contudo, me ocupei em meu tratado a
respeito da alma; dizem respeito a uma investigação diversa da que
temos ora em pauta (ARISTÓTELES, 2005, p. 81).

Como pode perceber, a linguagem apenas representa, de diversas formas e


idiomas, as verdadeiras essências abstraídas pelo intelecto, que são universais e
imutáveis, isto é, são as mesmas para todos. Disto decorrem duas conclusões: a)
que o conhecimento é da ordem do conceito e não da linguagem; b) para que a
linguagem seja dotada de significado, ela deve estar associada a um conceito não-
linguístico.

c) A Questão dos Universais:


O que são os universais? O universal é o conceito, a ideia, a essência
comum a todas as coisas. Por exemplo, o conceito de ser humano, animal, casa,
bola, cadeira, círculo. Desde o século XI até o XIV, uma polêmica marcou as
discussões sobre a questão dos universais. Em outras palavras: os gêneros e as
espécies têm existência separada dos objetos sensíveis? As espécies (como o cão)
e os gêneros (como os animais) teriam existência real? Seriam realidades, ideias ou
apenas palavras? As principais soluções apresentadas são: realismo, nominalismo e

3Designativo-instrumental porque a linguagem é apenas um meio de representação entre palavras


escritas e palavras faladas, e entre palavras faladas e conceitos.
4Secundária porque a linguagem só representa as coisas depois de serem abstraídas no conceito.
Portanto, o exercício do intelecto, aqui exposto por Aristóteles, tem a pretensão de ser uma atividade
não-lingüística.
5

realismo moderado.
Para os realistas, como Santo Anselmo (séc. XI) e Guilherme de
Champeaux (séc. XII), o universal tem realidade objetiva (são res, ou seja, “coisa”).
Essa posição é claramente influenciada pela teoria das ideias de Platão.
O realismo moderado trata-se de uma posição intermediária entre
“realismo exagerado” e “nominalismo”, representado por Pedro Abelardo (séc. XII) e
Tomás de Aquino (séc. XIII). Segundo Pedro Abelardo, os universais são conceitos
ou entidades mentais que existem somente no espírito. Para Tomás de Aquino, os
universais só existem formalmente no espírito, embora tenham fundamento nas
coisas. Esta posição é claramente influenciada pela teoria do significado de
Aristóteles.
Para os nominalistas, como Roscelino (séc. XI), o universal é apenas o que
é expresso em um nome; ou seja, os universais são palavras, sem nenhuma
realidade específica correspondente. A tendência nominalista reapareceu com
algumas nuanças diferentes no século XIV com Guilherme de Ockam, franciscano
que representa a reação à filosofia aristotélico-tomista.
As divergências sobre os universais podem ser analisadas a partir das
contradições e fissuras que se instalaram na compreensão mística do mundo
medieval. Sob esse aspecto, os realistas são os partidários da tradição, e como tais
valorizavam o universal, a autoridade, a verdade eterna representada pela fé. Para
os nominalistas, o individual é mais real, o que indica o deslocamento do critério de
verdade da fé e da autoridade para a razão humana.

d) Crítica ao realismo platônico e aristotélico:


Segundo Oliveira (2006), as reflexões linguísticas de Platão e Aristóteles
desdobram-se em pressupostos muito sérios, que condicionou toda a tradição
epistemológica da ontologia e, posteriormente, da filosofia do sujeito, até a sua
passagem ao paradigma da linguagem. O primeiro deles trata-se do papel
‘secundário’ e ‘instrumental’ da linguagem, cuja função é apenas a designação da
essência desvelada pelo intelecto por meio dos sons. Neste caso, a linguagem
também está fora da constituição do conhecimento5.

5 Pierre Aubenque, nesse sentido, tenta encontrar interpretações alternativas ao pensamento de


6

A linguagem é reduzida a um puro instrumento, e o conhecimento do


real se faz independente dela. [...] A linguagem não é, pois,
constitutiva da experiência humana do real, mas é um instrumento
posterior, tendo uma função designativa [...] O pensar é uma
atividade essencialmente não-linguística e, sendo assim, a relação
da linguagem para o real é secundária (OLIVEIRA, 2006, p. 22).

O segundo pressuposto, como consequência do primeiro, decorre do fato de


que o conhecimento passa a ser concebido como algo pertencente à ordem do
conceito e não da linguagem, que para ser dotada de significado, deve estar
associada a uma essência não-linguística.

Aqui está a tese fundamental de Platão e de toda filosofia do


Ocidente: ele pretende, com essa discussão das diferentes teorias
vigentes de seu tempo, mostrar que na linguagem não se atinge a
verdadeira realidade e que o real só é conhecido verdadeiramente
em si sem palavras, isto é, sem a mediação linguística (OLIVEIRA,
2006, p. 22).

Com isso, a filosofia da linguagem enveredou-se para uma característica


determinista na história ocidental: a função instrumentalista da linguagem. Excluída
como parte constituinte do pensamento, a linguagem seria apenas um instrumento
de revelação e exposição (por meio dos sons) daquilo que o pensamento conseguiu
abstrair da essência das coisas (e sem a mediação linguística). Esta tradição
semântica da linguagem perdurou até o pensamento de Frege, Russell e o primeiro

Aristóteles, em especial, na sua concepção de linguagem. Para o autor, Aristóteles ficou preso sim na
tradição secundária e instrumental da linguagem ao afirmar a ontologia como condição da
comunicação humana (pois, sem essência, não há o que ser comunicado); porém, interpretações
mais atentas dos textos de Aristóteles indicam que sua teoria da linguagem poderia ter tomado outra
direção: se a ontologia é condição a priori da linguagem, então, o seu inverso também é legítimo, isto
é, ao abstrair a linguagem torna-se impossível realizar a ontologia. Para Aubenque, essa
revolucionária interpretação da teoria da linguagem aristotélica apresenta significados que só foram
descobertos após a guinada linguística; se ao invés da escolha ontológica, Aristóteles tivesse trilhado
o caminho da linguagem como constitutivo ao conhecimento, com toda certeza, a história da filosofia
seria outra. “La teoría aristotélica del lenguaje presupone, pues, una ontología. Ahora bien:
inversamente, la ontología no puede hacer abstracción del lenguaje, y ello no sólo por la razón
general de que toda ciencia necesita de palabras para expresarse, sino por una razón que le es
propia: aquí, el lenguaje no es sólo necesario para la expresión del objeto, sino también para su
constitución. Mientras que el discurso encuentra su objeto bajo el aspecto de tal o cual ser
determinado que existe independientemente de su expresión, el hombre no habría pensado jamás en
plantear la existencia del ser en cuanto ser, sino como horizonte siempre presupuesto de la
comunicación. Si el discurso no mantiene ya, como en los sofistas, una relación inmediata con el ser,
al menos – y por esa misma razón – es mediación obligada hacia el ser en cuanto ser, y ocasión
única de su surgimiento” (AUBENQUE, 1981, 129-130).
7

Wittgenstein (do período do Tractatus).

e) Nominalismo medieval de Ockam:


Com o nominalismo de Ockham, a metafísica também sofre mudanças
estruturais: através de uma crítica ácida às contradições da metafísica tradicional,
promovem uma dissolução das realidades ontológicas a nomes. O nominalismo,
retomando as teses de Aristóteles6, substitui as ‘formas das coisas’ (formae rerum)
pelos ‘signos das coisas’ (signa rerum): como que antecipando a racionalidade
moderna, as ideias metafísicas não passam de sinais que o próprio sujeito
cognoscente atribui às coisas.
Segundo Ockham, na sua obra Suma Lógica, existem dois tipos de
linguagem: uma convencional (oral e escrita) e outra puramente conceitual; assim,
enquanto os termos escritos e falados têm uma relação convencional e
institucionalizada com os objetos no mundo, os termos mentais (conceitos) têm uma
relação natural com os mesmos objetos no mundo:

Entre esses termos [escritos e mentais], porém, encontram-se


algumas diferenças. Uma é que o conceito ou afecção da alma
significa naturalmente tudo o que significa, já o termo falado ou
escrito nada significa senão de acordo com a instituição voluntária
(OCKHAM, 1999, p. 120).

Por isso, supor o signo como nomes gerais correspondentes a entidades


ontológicas autônomas e abstratas é um erro, pois com isso cria-se um novo
problema ontológico quanto à explicação sobre a natureza destas entidades no
âmbito linguístico. Logo, o vocábulo signo não é referência ontológica de nada:

Toma-se o signo por aquilo que faz algo vir à cognição e é destinado
a supor por aquilo (sc. ‘natum est pro illo supponere’) ou a ser
acrescentado a tal na proposição – são desse modo os
sincategoremas e os verbos e aquelas partes da oração que não têm
significação finita; ou que é destinado a ser composto de tais, deste
modo é a oração. E tomando assim o vocábulo ‘signo’, a expressão
(vox) não é signo natural de nada (OCKHAM, 1999, p. 120).
6 No livro Da Interpretação (presente no Organon), Aristóteles afirma que a linguagem apenas
simboliza os conceitos do intelecto (ou afecções da alma), que, por sua vez, são abstrações
imediatas (e não linguísticas!) que o intelecto faz das essências das coisas contidas na própria
realidade. Cf. ARISTÓTELES, 2005, p. 81.
8

f) A semântica de Gottlob Frege:


Dentro da semântica tradicional, Frege parte da afirmação de que os nomes
significam objetos. Em duas de suas obras, Sobre o Sentido e Referência e Função
e Conceito, Frege chega a conclusão de uma dificuldade real: no processo de
significação dos objetos, “a substituição de nomes próprios por outros de igual
significação pode mudar a significação da frase” (OLIVEIRA, 2006, p. 62-63). A partir
de então, Frege apresenta aquela que será a sua maior descoberta: os signos
(nomes próprios, predicados e sentenças) possuem duas funções semânticas: eles
denotam um objeto (referência) e possuem um sentido. O sentido é a maneira como
o objeto se manifesta e aquilo que o sujeito compreende dele; já a denotação é a
identidade do próprio objeto a ser referenciada, isto é, aquilo que o sujeito fala do
objeto. Assim, “a denotação de um objeto pode ser feita por meio de várias palavras
ou outros sinais [sentido]” (OLIVEIRA, 2006, p. 62-63). Veja como este pensamento é
proposto por Frege em sua obra Sobre o Sentido e Referência:

Se substituirmos uma palavra da sentença por outra que tenha a


mesma referência, mas o sentido diferente, isto não poderá ter
nenhuma influência sobre a referência da sentença. No entanto,
vemos em tal caso que o pensamento muda; assim, por exemplo, o
pensamento da sentença ‘a Estrela da Manhã é um corpo iluminado
pelo sol’ é diferente da sentença ‘a Estrela da Tarde é um corpo
iluminado pelo sol’. Alguém que não soubesse que a Estrela da
Tarde é a Estrela da Manhã poderia sustentar um pensamento como
verdadeiro e outro como falso. O pensamento, portanto, não pode
ser a referência da sentença, pelo contrário, deve ser considerado
como seu sentido (FREGE, 1978b, p. 67-68)

Em síntese, a teoria do significado de Frege trata de três questões: a) sobre


o sentido de um signo (aquilo que é compreendido); b) sobre a referência de um
objeto (aquilo do qual se fala); c) sobre a verdade de um enunciado (se aquilo do
qual se fala é verdadeiro ou falso) (MARCONDES, 2010, p, 82). O que ocorre em
Frege ainda está dentro das concepções tradicionais da linguagem defendidas por
Platão e Aristóteles: para Frege a denotação de um predicado é o conceito que ele
produz, ou seja, o predicado, apesar de ser uma expressão insaturada (uma
9

função7, nas palavras de Frege) e, por isso, não designar nenhum objeto, possui,
contudo, uma condição independente com relação ao sujeito, pois, como já foi dito, o
que ele designa não é uma referência completa ao sujeito (objeto), mas sim um
conceito que somente depois, no enunciado (frase), poderá estar relacionado ao
objeto do sujeito8. Logo, ainda há aqui a primazia do conceito em relação à
linguagem, como elemento separador e classificador9. Veja:

Frege permanece, de certo modo, ligado à tradição, pois, para ele,


também o predicado representa algo, ainda que esse algo não seja
objeto [no caso, um conceito]. Por isso, a própria terminologia
permanece: aquilo que é designado pelo nome é sua denotação; do
mesmo modo, no caso do predicado, o que é por ele designado é
sua denotação. O conceito é a denotação de um predicado. Para
Frege um conceito é um critério por meio do qual podemos distinguir
os objetos em: aqueles que estão sob ele e os que não estão. Um
conceito é, pois, um critério de classificação e de diferenciação de
objetos (OLIVEIRA, 2006, p. 68-69).

g) A semântica do 1º Wittgenstein (do Tractatus):


Atento ao pensamento de Frege, Wittgenstein, em seu primeiro período,
laçou questões muito importantes, porém ainda pertencentes à semântica
tradicional. Em sua obra Tractatus Logico-philosophicus, Wittgenstein apresenta
uma semântica plenamente voltada para o aspecto designativo. Wittgenstein parte

7 Em Função e Conceito, diz Frege: “Para que se tenha um exemplo disto, consideremos, por
exemplo, a expressão ‘a capital do Império Alemão’. Ela, obviamente, representa um nome próprio e
refere-se a um objeto. Se, agora, nós a decompomos nas partes ‘A capital do’ e ‘Império Alemão’,
onde considero a partícula genitiva [a capital do...] como integrante da primeira parte, então esta é
insaturada, enquanto que a outra é completa em si mesma. Assim, de acordo com o que disse antes,
chamo ‘A capital de x’ de a expressão de uma função. Se tomamos o Império Alemão como
argumento, obtemos, como valor da função, Berlim” (FREGE, 1978a, p. 46-47)
8 Esta noção de significados independentes de sujeito e predicado é amplamente inspirado em
Aristóteles, que acredita que a linguagem consiste em nomes (sujeitos) independentes que se
articulam com verbos (predicados) também independentes para então formar sentenças: “como por
vezes assomam pensamentos em nossas almas desacompanhados da verdade ou da falsidade,
enquanto assomam por vezes outros que necessariamente encerram uma ou outra, coisa idêntica
ocorre em nossa linguagem, uma vez que a combinação e a divisão são essenciais para que se
tenha a verdade ou a falsidade. Um nome ou um verbo por si mesmo muito se assemelha a um
conceito ou pensamento que não é nem combinado, nem dividido. Tal é o caso de ‘homem’, por
exemplo, ou ‘branco’, se enunciado sem qualquer acréscimo. Não é verdadeiro nem falso”
(ARISTÓTELES, 2005, p. 81-82)
9 Sobre este aspecto, é significativa a influência de Platão ao colocar os nomes (correspondentes as
suas respectivas essências) como instrumentos de classificação e separação: “Logo, é o nome um
instrumento, que serve para instruir e distinguir a realidade, como faz na teia a lançadeira” (PLATÃO,
1963, p. 20)
10

do pressuposto de mundo e linguagem possui estruturas semelhantes e, por isso, a


linguagem pode figurar o mundo (através de sua famosa teoria da correspondência).
Daí parte a idéia de figurar o mundo: a linguagem é uma representação projetiva da
realidade, um modelo de realidade.
Segundo Wittgenstein (2001, p. 135), “o mundo é a totalidade de fatos e não
de coisas”. As coisas, para Wittgenstein são os objetos isolados que, por si mesmos
(ao contrário de Frege e Aristóteles) não possuem sentido algum. Sendo assim, os
objetos ou coisas só ganham sentido quando estão em relação com outros objetos,
constituindo assim os chamados estados de coisas: “o estado de coisas é uma
ligação de objetos” (WITTGENSTEIN, 2001, p. 135) ou “no estado de coisas os objetos
se concatenam, como os elos de uma corrente” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 141).
Continua Wittgenstein: “Se posso pensar no objeto na liga do estado de
coisas, não posso pensar nele fora da possibilidade dessa liga” (W ITTGENSTEIN,
2001, p. 137). Isso quer dizer que, o que diferencia um estado de coisas de um fato
é a sua real ocorrência perante a figuração: um estado de coisas é a possibilidade
de uma possível relação entre coisas (que pode ser tanto existente, como também
inexistente), já o fato é a real existência de um determinado estado de coisas que de
fato aconteceu e que foi constatado pela figuração lingüística: “a figuração afigura a
realidade ao representar uma possibilidade de existência ou inexistência de estados
de coisas” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 145). Deste modo, “a figuração concorda ou não
com a realidade; é correta ou incorreta, verdadeira ou falsa”, ou seja, “para
reconhecer se a figuração é verdadeira ou falsa, devemos compará-la com a
realidade” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 147).
Mas para que aconteça a figuração, é preciso haver algo em comum entre
linguagem e mundo, ou seja, “algo de idêntico, a fim de que um possa ser, de modo
geral, uma figuração do outro” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 145). Logo, continua
Wittgenstein, “o que a figuração deve ter em comum com a realidade para poder
afigurá-la a sua maneira – correta ou falsamente – é a sua forma de afiguração”
(W ITTGENSTEIN, 2001, p. 145), que por sua vez, pode concordar ou não com a
realidade, representando assim, o seu sentido: “o que a figuração representa é o seu
sentido” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 147). Portanto, linguagem e mundo possuem a
mesma forma lógica.
11

Afirmar a possibilidade de uma figuração lógica do mundo implica aceitar


que um estado de coisas é pensável: “‘um estado de coisas é pensável’ significa:
podemos figurá-lo” (WITTGENSTEIN, 2001, p. 147). Portanto, “a figuração lógica dos
fatos é o pensamento”, o que equivale dizer “o que é pensável é também possível”.
(W ITTGENSTEIN, 2001, p. 147). No entanto, isso não quer dizer que o pensamento só
pode afigurar o que verdadeiro; “o pensamento é proposição com sentido”
(W ITTGENSTEIN, 2001, p. 165), isto é, uma proposição que representa a figuração
lógica de um estado possível de coisas, que podem ser tanto verdadeiros como
falsos (dependendo, nesse caso, de como a realidade está configurada de fato) 10. A
única coisa que o pensamento não pode figurar é o ilógico, isto é, um estado de
coisas impossível de ocorrer, como por exemplo, um gato criar asas e a voar até a
lua: “não podemos pensar nada de ilógico, porque, do contrário, deveríamos pensar
ilogicamente. Já foi dito que Deus poderia criar tudo, salvo o que contrariasse as leis
lógicas” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 147).

2. GUINADA PRAGMÁTICA E HERMENÊUTICA NA FILOSOFIA

Diante de tudo isso, percebe-se que ainda o pensamento do Wittgenstein do


Tractatus ainda está preso à concepção designativa da linguagem. É diante disto
que o próprio Wittgenstein e Heidegger promovem uma revolução dentro da filosofia:
o primeiro com uma reviravolta pragmática e o segundo com uma virada
hermenêutica. Vejamos primeiramente como aconteceu este processo em
Wittgenstein para depois falarmos de Heidegger.

10Como já dito, o pensamento ou proposição representa ou espelha projetivamente a realidade. E a


cada elemento constitutivo do real corresponde outro elemento do pensamento. A realidade (o
mundo) consta de fatos que se resumem em ‘fatos atômicos’, compostos de objetos simples.
Analogamente, a linguagem é composta de proposições complexas, compostas por proposições
simples não mais divididas em outras proposições. Essas proposições simples e atômicas constituem
o correspondente dos fatos simples e atômicos, combinando nomes correspondentes aos objetos.
Desta maneira que o indivíduo vai fazendo suas representações do mundo, pois o nome substitui na
proposição o objeto. Assim, só a proposição tem sentido, justamente porque só no contexto da
proposição que um nome tem significado. Wittgenstein chama de expressão (símbolo) cada parte da
proposição que caracteriza o seu sentido. Para reconhecer o símbolo no sinal, deve-se atentar para o
uso do seu significado. Somente quando o sinal proposicional é empregado, pensado e,
conseqüentemente, significado, é que se torna pensamento.
12

a) A guinada pragmática do 2º Wittgenstein (das Investigações)


Em sua segunda obra, Investigações Filosóficas, Wittgenstein se convence
que o seu trabalho filosófico não é refletir sobre a linguagem para lhe determinar
uma estrutura essencialista, como no Tractatus, mas observar como a linguagem
funciona e como o indivíduo pode usar as palavras 11.
O ponto central neste novo horizonte adotado por Wittgenstein não é mais a
afiguração lógica, mas a práxis do uso da linguagem através do ele chama de jogos
de linguagem. Tais jogos de linguagem apresentam a idéia de linguagem como uma
atividade humana tão comum como andar, passear etc., afirmando assim a
correspondência existente entre linguagem e ação. Assim, para cada contexto de
fala há jogos de linguagem diferentes, cujas palavras estão inseridas numa situação
com regras lingüísticas próprias.
Para Wittgenstein (1989, p. 13), o uso da linguagem, em suas mais variadas
formas, é como um caixa de ferramentas com instrumentos de diferentes funções:
“pense nas ferramentas em sua caixa apropriada [...]. Assim como são diferentes as
funções desse objetos, assim são diferentes as funções das palavras”. Por isso que
afirmar que cada palavra da linguagem designa mecanicamente algo não quer dizer
absolutamente nada: “quando dizemos: ‘cada palavra da linguagem designa algo’,
com isso ainda não é dito absolutamente nada; a menos que esclareçamos
exatamente qual a diferença que desejamos fazer” (W ITTGENSTEIN, 1989, p. 14). Em
outras palavras, não passa apenas do que colocar uma etiqueta denominativa em
cada objeto.
Portanto, o ponto central neste novo horizonte adotado por Wittgenstein
(1989, p. 13) não é mais a afiguração lógica, mas a práxis do uso da linguagem
através do ele chama de jogos de linguagem: “o que elas designam, como posso
mostrar isso, a não ser na maneira do seu uso?”

11Num horizonte agostiniano e objetivista da linguagem, em vista de um ensino meramente ostensivo


das palavras, Wittgenstein afirma que o papel da linguagem seria apenas treinamento, semelhante ao
que se faz com as crianças. No entanto, a linguagem serve para muito mais coisa: através de
exemplos concretos como a relação comunicativa entre pedreiro e servente, Wittgenstein demonstra
que a linguagem não serve apenas para designar coisas, como um mero instrumento de
comunicação, mas como condição e possibilidade de pensamento e comunicação, segundo o qual,
por exemplo, pedreiro e servente interagem em seus mais diversos contextos (W ITGENSTEIN, 1989, p.
12-14).
13

b) A guinada hermenêutica de Heidegger


Heidegger, por sua vez, contemporâneo de Wittgenstein, também faz a
virada lingüística, porém pela vertente hermenêutica. Segundo Heidegger (1988, p.
38), “comparado a qualquer outro ente, a pre-sença (homem) é um ente privilegiado”
porque tem capacidade de ‘desvelar’ o verdadeiro sentido ser das coisas. E isso ele
faz por ser capaz também de questionar: “esse ente que cada um nós somos e que,
entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos
com o termo pre-sença [Dasein ou ‘ser-aí’]” (HEIDEGGER, 1988, p. 33). Assim, dentre
todos os seres somente o homem é capaz de ter consciência de sua existência. As
outras coisas ocupam apenas um simples espaço no mundo; já o homem, mais que
ocupar um espaço no mundo, tem noção de existência:

A pre-sença (homem) não é apenas um ente que ocorre entre outros


entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela distingue pelo
privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser.
Mas também pertence a essa constituição de ser da pre-sença a
característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação
de ser com seu próprio ser. Isto significa, explicitamente e de alguma
maneira, que a pre-sença se compreende em seu ser, isto é, sendo
(HEIDEGGER, 1988, p. 38).

Desta maneira, o fato do homem compreender-se a si mesmo a partir de sua


‘existência de ser’ o torna capaz de significar e interpretar o mundo a partir de algo
que lhe é muito característico: através da linguagem: “para Heidegger, só se pode
falar de linguagem, no sentido estrito da palavra, aí onde o ser se desvela, se abre,
ou seja, no homem” (OLIVEIRA, 2006, p. 201). Sem a linguagem os fatos estariam
desconectados e isolados no mundo, ou seja, não haveria mediação hermenêutica
entre eles, muito menos significado. Sobre isso também fala Oliveira:

Quando falamos da linguagem, diz Heidegger, nunca abandonamos


a linguagem, mas sempre falamos a partir dela. Nosso ser-no-mundo
é, portanto, sempre lingüisticamente mediado, de tal maneira que é
por meio da linguagem que ocorre a manifestação dos entes a nós
(OLIVEIRA, 2006, p. 206)

Esta capacidade de interpretar o mundo linguisticamente é uma oferta


hermenêutica que só o homem é capaz de saber e tomar posse. Sobre isso,
14

Heidegger fala em sua Carta sobre o Humanismo: “esta oferta consiste no fato de,
no pensar, o ser ter acesso à linguagem. A linguagem é a casa da verdade do ser.
Nesta habitação do ser mora o homem” (HEIDEGGER, 1991, p. 01)

c) Austin: quando dizer é fazer


Austin já havia atentado para a tese de que o papel da linguagem não era
apenas descrever semanticamente objetos, mas concretizar ações através da
própria fala, o que justifica assim que a interação linguística não é regida apenas
pela função locucionária e designativa, mas também por atos ilocucionários e
perlocucionários12 que atribuem à linguagem uma dimensão bem maior do que a
simples designação semântica entre palavras e objetos no mundo13:

Por mais tempo que o necessário, os filósofos acreditaram que o


papel de uma declaração era tão-somente o de ‘descrever’ um
estado de coisas, ou declarar um fato, o que deveria fazer de modo
verdadeiro ou falso. Os gramáticos, na realidade, indicaram com
freqüência que nem todas as sentenças são (usadas para fazer)
declarações, há tradicionalmente, além das declarações (dos
gramáticos), perguntas e exclamações, e sentenças que expressam
ordens, desejos ou concessões (AUSTIN, 1990, p. 21).

Nesta direção, Austin desenvolve a teoria dos Atos de Fala (que mais tarde foi
retomado por Searle). Segundo Trask (2004, p. 42), atos de fala (speech act) é

12 Para Austin, há uma preponderante diferença entre os conceitos a) ‘locucionário’, b) ‘ilocucionário’


e c) ‘perlocucionário’. O princípio do neopositivismo declarava que uma frase só era verdadeira
quando verificada empiricamente. Austin diz que isso não é verdade porque existe mais de uma
maneira de verificação. Com isso, afirma que a linguagem não tem função só de descrever
enunciados que executam fatos, mas também de executar os próprios fatos. Daí surgiu a sua teoria
dos Atos de Fala em suas três dimensões: a) locucionária, que diz respeito à parte falada da
linguagem que é subdividida em outras três partes: I) ato fonético: execução de certos ruídos; II) ato
fático: expressão de certos ruídos com forma determinada – vocabulários; III) ato rético: uso das
palavras para falar algo; b) ilocucionária, que se refere ao entendimento de uma frase
intersubjetivamente em seu contexto de uso; c) perlocucionária, que tende a provocar, por meio de
expressões linguísticas, certos efeitos nos sentimentos, pensamentos e ações de outras pessoas. Cf.
OLIVEIRA, 2006, p. 150-157.
13 Na primeira fase do seu pensamento, mais especificamente no Tractatus Logico-Philosophicus,
Wittgenstein parte do pressuposto de que mundo e linguagem possuem estruturas semelhantes e,
por isso, a linguagem pode figurar o mundo (através de sua famosa teoria da correspondência).
Desta premissa parte a ideia de figurar o mundo: a linguagem é uma representação projetiva da
realidade, um modelo de realidade. Veja: “a figuração afigura a realidade ao representar uma
possibilidade de existência ou inexistência de estados de coisas” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 145). Mais
a frente complementa a ideia: “a figuração concorda ou não com a realidade; é correta ou incorreta,
verdadeira ou falsa. [...] Para reconhecer se a figuração é verdadeira ou falsa, devemos compará-la
com a realidade” (W ITTGENSTEIN, 2001, p. 147).
15

justamente uma tentativa de fazer alguma coisa simplesmente falando. Podemos


fazer uma promessa ou uma pergunta, ordenar ou exigir que alguém faça alguma
coisa, fazer uma ameaça, dar nome a um navio, declarar duas pessoas marido e
mulher, e assim por diante. Cada uma dessas coisas é um ato específico. Veja como
Austin explica sua tese valendo-se de alguns exemplos:

(a) ‘Aceito (scilicet), esta mulher como minha legítima esposa’ – do


modo que é proferido no decurso de uma cerimônia de casamentos.
(b) ‘Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth’ – quando
proferido ao quebrar-se a garrafa contra o casco do navio. (c) ‘Lego a
meu irmão este relógio’ – tal como ocorre em um testamento. (d)
‘Aposto cem cruzados como vai chover amanhã’. Estes exemplos
deixam claro que proferir uma dessas sentenças (nas circunstâncias
apropriadas, evidentemente) não é descrever o ato que estaria
praticando ao dizer o que disse, nem declarar que o estou
praticando: é fazê-lo. Nenhum dos proferimentos citados é
verdadeiro ou falso; considero isto tão óbvio que sequer pretendo
justificar. De fato, não é necessário justificar, assim como não é
necessário justificar que ‘Poxa!’ não é nem verdadeiro nem falso.
Pode ser que estes proferimentos ‘sirvam para informar’, mas isso é
muito diferente. Batizar um navio é dizer (nas circunstâncias
apropriadas) as palavras ‘Batizo etc.’. Quando digo, diante do juiz ou
no altar, etc., ‘Aceito’, não estou relatando um casamento, estou me
casando” (AUSTIN, 1990, p. 24-25).

3. CRÍTICA DE NIETZSCHE: A GENEALOGIA COMO DESMISTIFICAÇÃO DO ESQUECIMENTO DO


SIGNO

Segundo Nietzsche, a metafísica Ocidental é uma ficção dogmática, pois,


pelo fato de ser uma vontade de poder, caracteriza-se como um discurso
manipulador que tenta através do esquecimento do signo transformar o aspecto
positivo do homem numa mísera visão negativa, subvertendo assim o sentido
daquilo que anula a humanidade num valor ‘benéfico em si’ e inquestionável. Em
Além do Bem e do Mal, forçando o dogmático a explicitar seu peculiar modo de
pensar, responde-nos Nietzsche de que tipo de verdade se trata:

“Como poderia algo nascer do seu oposto?” [pergunta-se o


dogmático] por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de
verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do
egoísmo? [...] Semelhante gênese é impossível; quem com ela sonha
16

é um tolo ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter


uma origem que seja outra, própria – não podem desse fugaz,
enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e
cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da
‘coisa em si’ – nisso, em nada mais, deve estar a sua causa!”
(NIETZSCHE, 1992, p. 10).

O diagnóstico de Nietzsche vai, portanto, nesta direção: a visão unitária da


metafísica a da moral cristã colocou-se como correta, banindo assim todo o restante
como errado e herético; ou seja, a idéia ou o dogma da ‘essência’, da ‘coisa em si’,
foi usado para abafar e sufocar outras idéias contrastantes. No entanto, ao
circunscrever a história, Nietzsche percebeu que havia outros sentidos que tinham
razão de existir, como também outros interesses em questão (NIETZSCHE, 2010).
Para o comentador Rey, Nietzsche acredita numa ocultação dobrada promovida pela
metafísica e pela moral: primeiro porque afirma ser uma verdade eterna aquilo que
outrora foi construído; segundo porque, ao afirmar tal verdade, o dogmático anula a
busca de outras. Com isso, está posto então o chamado ‘logro da transparência dos
signos’ na metafísica e na moral, ambíguas em si mesmas, pois o seu o efeito
contrário é justamente o totalitarismo de ideias e significados (REY, 1981).
O ponto nevrálgico se encontra aqui: segundo Nietzsche, a metafísica
ocidental é como se fosse uma espécie de ‘gramática’14, originariamente fruto de
uma construção linguística, arbitrária e histórico-cultural, mas que, com o passar do
tempo, foi subvertida e divulgada como essências metafísicas atemporais e
absolutas. Desta maneira, urge desvelar o aspecto mistificador da metafísica: ela
não se constitui como realidade ontológica, mas apenas uma forma de significar
linguisticamente a realidade ontológica, construída de modo histórico e num contexto
determinado. É justamente isso que Rey afirma:

Tudo se dá no plano da língua, considerando-se a língua como um


conjunto de signos que se viu submetido a um imperativo de
“verdade” colocada abstratamente e sem referência histórica; isto é,
um sistema gramatical e lógico no qual o sujeito estava sempre
implicado “necessariamente”, no qual a própria forma dos
enunciados estava prescrita de antemão, isto é, também, um código
cuja proveniência não estava jamais posta em questão, posto que o

14Como é possível perceber, por exemplo, pelo sentido dos princípios da identidade, da não-
contradição, da definição de essência, de ser etc.
17

discurso idealista não vivia senão dessa denegação repetida sob


formas análogas” (REY, 1981, p. 142).

A partir desse ponto entra em questão a conhecida genealogia nietzschiana


como instrumento desmistificador. De que forma? Ora, clarificando a história da
mudança de sentido dos conceitos em questão em vista dos interesses com os
quais estavam ligados na origem. Trata-se de perceber que na medida em que o
curso da história decorre, os sentidos metafóricos vão se amontoando e mudando
conforme os interesses de alguns. A Genealogia da Moral vai justamente estudar de
maneira rigorosa esse processo de produção simbólica e ideológica:

Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos


valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado
em questão – para isto é necessário um conhecimento das
condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se
desenvolveram e se modificaram (moral como conseqüência, como
sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também
moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um
conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado.
Tomava-se o valor desses “valores” como dado, como efetivo, como
além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou
hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”,
mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda
para o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o
contrário fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma
regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um
narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas
do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas
também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente
a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho
e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria
o perigo entre os perigos?... (NIETZSCHE, 2010, p. 12)

Com isso, a conclusão de Nietzsche não poderia ser outra: a linguagem,


enquanto instrumento e maquinação da metafísica, é sim um elemento de subversão
e esquecimento da cultura, pois com seu discurso dogmático ela camuflou os
interesses de quem a formulou, fazendo com que tais críticas ficassem obsoletas e
esquecidas ao longo do tempo. Veja como essa ideia aparece de cheio no trecho
abaixo de Nietzsche:

Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como “verdade”,


ou seja, que o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina
18

“homem”, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então


deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e
ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e
vencidas as estirpes nobres e os seus ideais, como os autênticos
instrumentos da cultura; com o que, no entanto, não se estaria
dizendo que os seus portadores representem eles mesmos a cultura
(NIETZSCHE, 2010, p. 30).

Noutras palavras, para a genealogia de Nietzsche a metafísica foi o grande


desvio ideológico do Ocidente15, que, com a eficiência do logro da linguagem, foi
progressivamente impondo como ‘real’ aquilo que na sua origem era apenas uma
‘versão’ arbitrária da realidade; ou seja, com o passar do tempo, a metafísica
naturalizou o arbitrário em eterno, fez que com que tal versão não fosse mais
lembrada como ‘interpretação’ de algo, mas como dogma. Como resultado, o
questionamento foi cessando e a repetição da falsa idéia foi ganhando o status de
verdade, validando-a culturalmente para as gerações futuras. Veja:

O caráter tosco da sua genealogia da moral se evidencia já no início,


quando se trata de investigar a origem do conceito e do juízo “bom”.
“Originalmente” — assim eles decretam — “as ações não egoístas
foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram
feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa
origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de
terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também
sentidas como boas — como se em si fossem algo bom.” Logo se
percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da
idiossincrasia dos psicólogos ingleses — temos aí “a utilidade”, “o
esquecimento”, “o hábito” e por fim “o erro”, tudo servindo de base a
uma valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho,
como se fosse um privilégio do próprio homem. Este orgulho deve
ser humilhado, e esta valoração desvalorizada: isso foi feito?... Para
mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a
fonte do conceito “bom” no lugar errado: o juízo “bom” não provém

15 Segundo Rey, o que Nietzsche tenta fazer em sua Genealogia é justamente: “operar um
remontar genealógico cujo objetivo é desimplicar os estratos do investimento imaginário do qual a
filosofia viveu, o lance significante arriscado e mantido pelos conceitos metafísicos: tudo o que
encontra assistência numa lógica da identidade, numa gramática em que a hipótese do ‘ser’ já estava
sempre colocada como autoridade incondicionada. Essa colocação em perspectiva histórica tem por
efeito frustrar o privilégio do nome próprio e, ao mesmo tempo, toda linguística simples da palavra e
do enunciado. Se o idealismo só foi a repetição, programada desde o seu começo platônico, de um
jogo limitado de conceitos, o deslocamento ‘mudo’ mas insistente de uma série de instâncias que
formava a sua trama, ele se dá a ler como um texto superdeterminado cujas diversas variantes se
condensaram, se instituíram mesmo em sistema. O que Nietzsche quer desatar é essa aliança tácita,
essa ‘confusão’ conservada, indefinidamente renovada sem ser jamais nomeada, do significado e do
valor: a posição intangível de um sentido (ou de uma ‘verdade’) já sempre colocada, conotada ética
ou mesmo religiosamente (REY, 1981, p. 140).
19

daqueles aos quais se fez o “bem”! Foram os “bons” mesmos, isto é,


os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que
sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de
primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento
baixo, e vulgar e plebeu (NIETZSCHE, 2010, p. 16-17).
20

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