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@anying, Artois. O disuse © a Udeder Sed Pavlos Dom Ganon , 4999, Dialética da Malandragem Em 1894 José Verissimno definiu as Memérias de um sargento de milicias como romanée de costumes que, pe- Io fato de descrever Iugares e cenas do Rio de Janeiro no tempo de D. Joio VI, se caracterizaria por uma es- pécie de realismo antecipado; em conseqiéncia, falava bem dele, como homem de um momento dominado pela estética do Naturalismo. Praticamente nada se disse de novo até 1941, quan- do Mério de Andrade reorientou a critica, negando que fosse um precursor. Seria antes um continuador atrasa- do, um romance de tipo marginal, afastado da corrente média das literaturas, como os de Apuleio ¢ Petrénio, na Antigdidade, ou 0 Lazarillo de Tormes, no Renasci mento —, todos com personagens anticherdicos que sio modalidades de pfearos. . Uma terceira etapa foi aberta em 1956 por Darcy Damasceno, que abordou a anilise estilistica, tendo co- mo pano de fundo uma excelente rejeigao de posigdes anteriores: Nao ha que considerarse picaresco um livro pelo fato de nele haver um pfearo mais adjetival que substantival, mormente se a este livro faltam as mareas peculiares do género picaresco; nem histé- rico seria ele, ainda que certa dose de veracidade haja servido A criagio de tipos ou A evocagio de época; menos ainda realista, quando a leitura 1 atenta nos torna flagrante o predominic do 19 Lh GeCcececec noso ¢ do improvisado sobre a retratagio ou a reconstituicéo histérica. E uepois de mostrar com pertinéncia como sio . teduzidas as indicagdes documentirias, prefere o desig- nativo de romance de costumes.' Concordo com estas opinides oportunas ¢ pene- trantes (infelizmente muito breves), que podem se ‘de ponto de partida para o presente ensaio. A iinica diivida seria referente 20 realismo, e talvez nem esta, se Darcy Damasceno estiver se feferindo especificamente a0 concei:o usual das classificacdes literdrias, que assim designam o que ocorreu na segunda metade do século XIX, enquanto o meu intuito é caracterizar urna moda. lidade bastante peculiar, que se manifesta no livro de Manuel Anténio de Almeida, 1, Romance picaresee? O ponto ¢. vista segundo 0 qual ele € um romance picaresto, muito difundido a partir de Mario de Andra- de (que todavia nao diz bem isto), recebeu um cunho de aparente rigor da parte de Josué Montello, que pen- sa ter encontrado as suas mairizes em obras como La vida de Lazarillo de Tormes (1554) © Vida y hechos de Estebanillo Gonzdlen (1645). 1. José Verissino, “Um velho romance brasileiro", Extuds bmasitios, 2 sétic, Rio de Janciro, Laemmert, 1895, pp. 107-124: Mério de Andrade, “Iutsodugio", Manuch AntOnio de Almeida, Memérit de um sargent de milcias. Biblioteca de literatura brasilcirs 7, S80 Paulo, Martins, 1941, pp. 519; Darey Damasceno, “A afeuvidade ngitica nas Memérias de wm sargento de millias”, Revista brat. lei de fllgia, vol, 2, tomo Il, Dezembro 1956, pp. 188-177, especialmente pp. 156158 (a curio € da p. 156), 2 Josué Montello, “Um precursor: Manuel Anténio de Almeida’, A literati. no Bras, Ditegio de Afrinio Coutinho, vo. I, de Janeiro, Faltorst Sul Americana S.A. 1955, pp. 3743, 20 COCO SSO CG GUO SF SS SUS Oe Se fosse exato, estaria resolvido o problema da filia- 40 ¢, com ele, grande parte do de caracterizacio critica. Mas na verdade Josué Montello fundou-se numa peticio Ge principio, tomando como provado o que restava pro- var, isto €, que as Memérias so um romance picaresco. A partir dat, supervalorizou algumas analogias fugazes achou o que tencionava achar, mas nao o que um catejo objetivo teria mostrado. De fato, a andlise da picaresca espanhola faz ver que aqueles dois livros nada motiva- ram de significativo no de Manuel Anténio de Almeida, embora seja possfvel que este haja recebido sugestées marginais de algum outro romance espanhol ou feito A maneira dos espanhéis, como ocorreu por toda a Euro- pano século XVII e parte do XVIIL. O que se pode fazer de mais garantido é comparar as caracterfsticas do “nos- s0 memorando” (come diz o romancista do seu persona- gem) com as do pico heréi ou amtiheréi picaresco, minuciosamente levantadas por Chandler na sua obra sobre o assunto? Em geral, o proprio pfcaro narra as suas aventuras, © que fecha a visio da realidade em torno do seu an- gulo restrito; ¢ esta voz na primeira pessoa é um dos encantos para o leitor, transmnitindo uma falsa candura que © autor cria habilmente ¢ jé recurso psicolégico de caracterizagio. Ora, o livre de Manuel Anténio é contado na terceira pessoa por um narrador (Angulo primario) que nao se identifica ¢ varia com desenvoltu- fa o ngulo secundério —, trazendo-o de Leonardo Pai a Leonardo Fiho, deste a0 Compadre ou 4 Comadre, 5. Frank Wadleigh Chandler, Le novels fiaraea en Expt, Tr. do inglés por F. A. Marin Robles, Madrid; La Espata Moderna, &:d. (Trauase de apenas cma pane da obra orginal de Chan The Litre of Roguay 8 ves, New York, Hooghton Mili, 1007, Ver tanibém Angel Valbena Prat, “Estudio preliminar” La novela parce petal, 4 ed; Madi Agila: 1942, pp 1149, edo dos pincpais romances picaresor espns 2 See cocggccc soos see depois * Cigana ¢ assim por diante, de maneira a esta. belecer uma visio dinamica da matéria narrada. Sob este aspecto o herdi é um personagem como 0s outros, apesar de preferencial; ¢ nao o instituidor ou a ocasido para instituir 0 mundo ficticio, como o Lazarillo, Este banillo, Guzman de Alfarache, a Picara Justina ou Gil Braz de Santilhana. Em compensagio, Leonardo Filho tem com os nar radores picarescos algumas afinidades: como cles, é de ‘origem humilde ¢, como alguns deles, irregular, “filho de uma pisadela e um beliscio”. Ainda como eles é largado no mundo, mas nao abandonado, como foram © Lazarillo ou o Buscén, de Quevedo; pelo contrario, mal os pais o deixam o destino the d4 um pai muito melhor na pessoa do Compadre, 0 bom barbeiro que toma conta dele para o resto da vida ¢ o abriga da adversidade material. Tanto assim que Ihe falta um tra- {¢0 bésico do picaro: o choque Aspero com a realidade, que kva & mentira, & dissimulagao, ao roubo, ¢ cons- ". Na origem o pi- cos © vai tornando esperto ¢ sem escriipulos, quase como defesa; mas Leonardo, bein abrigado pelo Padri- nho, nasce malandro. feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial, ndo um atributs adquirido por for- ga das cireunstancias. Mais ainda: a humildade da origem e 0 desamparo da sorte se traduzem necessariamente, para 0 protago- nists dos romances espanhéis e os que os seguiram de perto, na condigio servil. Em alguna momento da sua carreira ele é criado, de tal modo que jé se supés erra- damente que a sua designagao proviesse daf—, 0 termo “pfcaro” signifcando um tipo inferior de servo, sobre- tudo ajudante de cozinha, sujo e esfarrapado. E é do fato de ser criado que decorre um prinefpio importante nna estruturagio do romance, pois passando de amo a amo o piearo vaise movendo; mudando de ambiente, 22 variando a experiéncia e vendo a sociedade no conjunto. Mas 0 nosso Leonardo fica tio longe da condicio servil, que o Padrinho se ofende quando a Madrinha sugere que Ihe mande ensinar um oficio manual; o excelente homem quer vélo padre ou formado em direito, ¢ neste sentido procura encaminhélo, livrando-o de qualquer necessidade de ganhar a vida. Por isso, nunca aparece seriamente o problema da subsisténcia, mesmo quando Leonardo passa de raspiio ¢ quase como jogo pelo ser- vico das cozinhas reais, o que o aproximaria vagamente da condigio de pfcaro no sentido acima referido. Semelhante a varios pfcaros, ele é amavel e risonho, espontineo nos atos e estreitamente aderente aos fatos, que o vao rolando pela vida. Isto o submete, como a eles, a uma espécie de causalidade externa, de motivagio que vem das circunstncias e torna o personagem um titere, esvaziado de. lastro psicolégico e caracterizado apenas pelos solavancos do enredo. O sentimento de um destino que motiva a conduta é vivo nas Memérias, onde a Comadre se refere & sina que acompanha o afilhado, acumulando contratempos e desmanchando a cada instante as‘combinagées favordveis. Como os picaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano nem reflexic; mas 20 contririo deles nada aprende com a experiéncia. De fato, um elemen- to importante da picaresca é essa espécie de aprendi: zagem que amadurece e faz 0 protagonista recapitular a vida 4 luz de uma filosofia desencantada. Mais coe- Fente com a vocagio de fantoche, Leonardo nada con- lui, nada aprende; ¢ 0 fato de ser o livro narrado na terccira pessoa facilita esta inconsciéncia, pois cabe a0 narrador fazer as poucas reflexdes morais, no geral le- vemente cinicas € em todo o caso optimistas, a0 con- trério do que ocorre com o sarcasmo acido € o relati- vo pessimisino dos romarices. picarescos. O malandro espanhol termina;sempre, ow’ numa-resignada medio- cridade, aceita como, abrigo. depois de itanta agitacio, 23, an ‘ou mais miserével do que nunca, no universo do de- sengano e da desilusio, que marca fortemente a lite- ratura espanhola do Século de Ouro. Curtido pela vida, acuade ¢ batido, cle niio tem sentimentos, mas apenas reflexos de ataque ¢ defesa. Traindo os amigos, enganando os patrdes, nao tem linha de conduta, nio ama ¢, se vier a casar, casard por inte- resse, disposto inclusive &s acomodagdes mais foscas, como © pobre L:zarille. O nosso Leonardo, embora desprovido de paixio, tem sentimentos mais sinceros neste terreno, e em parte o livro é a histéria do seu amor cheio de obsticulos pela sonsa Luisinha, com quem ter- mina casado, depois de promovido, reformado dono de cinco herangas que lhe vieram cair nas mos sem que movesse uma palha. Nao sendo nenhum modelo de vi tude, é leal e chega a comprometer-se seriamente para nao lesar 0 malandro Teoténio. Um antipfcaro, portan- to, nestas ¢ outras circunsténcias, como a de nao procu- rar endo agradar os “superiores”, que constituem a meta suprema do malandro espaahol. Se 0 protagonista for'assim, & de esperar que o livro, tomado no conjunto, aptesente a mesma oscila- Go de algumas analogias ¢ muitas diferengas em.rela- Go aos romances picarescos. Estes sio dominados pelo senso do espaco fisico ¢ sociai, pois o pfcaro anda por diversos lugares ¢ entra ‘em contacto com varios grupos ¢ camadas, nao sendo raros 08 destinos internacionais, como o do “galego-ro- mario” Estebanillo. O fato de ser um aventureiro des- classificado se traduz pela mudanca de condigéo, cujo tipo elementar, estabelecido no primeiro em data, o La- zarillo de Tormes, € a mudanga de patrées. Criado de mendigo, criado de escudeiro pobre, criado de padre, © pequeno vagabundo percorre a sociedade, cujos tipos vio surgindo ¢ se completindo, de maneira a tornar o livro uma sondagem dos grupos sociais ¢ seus costumes 2 =, coisa que prosseguiu na tradi¢o do romance picares- 0, fazendo dele umn dos modelos da ficcao realista mo- derma. Embora deformado pelo Angulo satfrico, o seu ponto de vista descobre a sociedade na variagio dos lugares, dos grupos, das classes —, estas, vistas freqtien- temente das inferiores para as superiores, em obediéncia 20 sentido da eventual ascensio do pfcaro. Nessa lenta panoramica, um moralismo corriqueiro para, tetminar, mas pouca ou nenhuma intencio realmente snoral, ape- sar dos protestos constantes com que 0 narrador procu- ra dar um cunho exemplar 44 suas malandragens. E em relacio as mulheres, acentuada misoginia. Embora nao sejam licenciosos, como também no sio sentimentais, ‘08 romances picarescos sio freqiientemente obscenos € sam & vontade o palavrdo, em correspondéncia com os meios descritos. O livro de Manuel Anténio é de vocabulério limpo, nao tem qualquer baixeza de expresso ¢, quando entra pela zona da licenciosidade, discreto, ou de tal mod. caricatural que 0 clemenio irregular se desfaz em bom humor —, como é notadamente 0 caso da seqiiéncia que narra o infortinio do padre surpreendido em trajes .2e- ores no quarto da Cigana. Mas vimos que tem uma certa tintura de sentimento amoroso, apesar de descrito com ironia oportuna; e a sitira, visivel por todo ele, nunca abrange 0 conjunto da sociedade, pois a0 con: tratio da picaresea o seu campo é restrito. 2. Romance malandro Digamos entio que Leonardo nao é um picaro, safdo da tradicao espanhola; mas o primeiro grande n landro que entra na novelistica brasileira, vindo de uma tradigio quase folclérica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cémica ¢ popularesca de seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado 4 categoria de sfimbolo por Mirio de Andrade em Maci- 2 3h ‘natmat e que Manuel Anténio com certeza plasmou e: Pontaneamente, ao aderir com a inteligéncia ¢ a afeti dade 20 tom popular das histérias que, segundo a tra- digo, ouviu de um compenheiro de jornal, antigo sargento comandado pelo major Vidigal de verdade. O malandro, como o picaro, é espécie de um gé- nero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores. Jé notamos, com efeito, que Leo- nardo pratica a asiticia pela astticia (mesmo quando ela tem por finalidade saff-lo de uma enrascada), ma- nifestando um amor pelo jogo-emsi que o afasta do pragmatismno dos pfcaros, cuja malandragem visa qua- se sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando freqientemente terceiros na sua solugao. Essa gratuidade aproxima “o nosso memorando” do tricks- ter imemorial, até de suas encarnagées zoomérficas — macaco, raposa, jabuti —, dele fazendo, menos um ‘anti-herdi” do quie uma ctiagio que talvez possua tra- “gos de heréis populares, como Pedro Malasarte. E ad- missfvel que modelos eruditos tenham influfdo em sua elaboracio; mas o que parece predominar.no livro & © dinamismo préprio dos astuciosos de historia popu- Jar. Por isso, Mario de Andrade estava certo a0 dizer que nas Memérias nao ha realismo em sentido moder- Ro; © que nelas se acha é algo mais vacto ¢ intempe- sal, préprio da comicidade popularesca. 4. *B desse modo que Manet Antonio de Almeida caracterita 0 “ persomgem Leonardo, que resulta nom hen sem nenduo cane, {0 michor, que apreents os tagos fundamentals Jo estereétpo do brasileiro, Mamiel Anténio de Almeida € 0 primeiro a fbr fem fteratura o carater nacional brasileiro, tl como terd Yonge via em nosss letra (-) Creo que ve pode smudar om Leonardo ‘Marunaima.” Walnice Nogucira Calvio, “No tem- in Soco de gates. Ensaioe ctuicos, Sao Paulo, Dune Gidaces, 1926, p. 82. Este belo ensai, umn dos mais penetrantes sobre © nosto ator, saw inciatmente com o tiulo “Manuel Are \Bnio de Alicida” no “Suplemento Literstio" de O Bids de § Pout, 773.1962. 26 Esta costela originariamente folclérica talver. expli- que certas manifestagées de cunho arquetipico —, in- clusive © comeco pela frase padrio dos contos da caro- chinha: “Era no tempo do Rei”. Ao inesmo universo pertenceria a constelacio de fadas boas (Padrinho e Ma- drinha) ¢ a espécie de fada agourenta que é a Vizinha, todos cercando o bergo do menino e servindo aos desig. nios da sorte, a “sina” invocada mais de uma vez no curso da narrativa. Pertenceria também 0 anohimato de virios personagens, importantes e secundirios, designa- dos pela profissio ou a posigio no grupo, que de um lado os dissolve em categorias sociais tipicas, mas de outro os aproxima de paradigmas lendérios e da indeter- minagio da fabula, onde hé sempre “um rei", “um ho- mem”, “um lenhador”, “a mulher do soldado” etc. Per- tenceria, ainda, o major 1, que por baixo da farda historicamente documentada é uma espécie de bicho-pa- pio, devorador da gente alegre. Pertenceria, finalmente, a curiosa duplicagao que estabelece dois pt vtagonistas, Leonardo Pai ¢ Leonardo Filho, no apenas contrastan- do com a forte unidade estrutural dos anti-heréis pica. Tescos (ao mesmo tempo nascedouros ~ alvos da nar- rativa), mas revelando mais um lago com os modelos populares. Com efeito, pai e filho materializam as duas faces do trickster: a tolice, que afinal se revela salvadora, € 2 esperteza, que muitas vezes redunda em desastre, a0 menos provisério, Sob este aspecte, o meirinho meio bobo que acaba com a vida em ordem, e seu filho es- Peto que por pouco se enrosca, seriam uma espécie de Projecao invertida, no plano das aventuras, da familia diditica de Bertoldo, que Giulio Cesare Della Croce seguidores popularizaram a partir da Itdlia desde o sé- culo XVI, inspirados em remotas fontes orientais. Nao custa dizer que nos catélogos de livraria do tempo de Manuel Antonio aparecem vérias edigdes.e.arranjos da famosa trempe, como: Astiicias de Bertoldo; Simplicidades 27 Voce oso sss de Bertoldinko, filho do sublime ¢ astuto Bertoldo, ¢ agudas respostas de Marcolfa, sua mae; Vida de Cacasseno, filho do simples Bertoldinko e neto do astuto Bertoldo. Nas Memérias de ‘um sargento de milicias, livro culto e ligado apenas remotamente a arquétipos foleléricos, simplério é 0 pai ¢ esperto € 0 filho, ndo havendo além disso qualquer vestigio de adivinhagio gnémica, prépria da série dos Bertoldos ¢ d’A Donzela Teodora, outra sabe-tudo muito viva em nosso populério. Como nio hi motivo para contestar a tradi¢io, segunda qual a matéria do livro foi dada, ao menos em parte, pelos relator de um velho sargento de polf- cia podemos admitir que o primeiro nfvel de estiliza- ‘go consistiu, da parte do romancista, em extrair dos fatos € das pessoas um certo elemento de generalida- de, que os aproximou dos paradigmas subjacentes as narrativas folcléricas. Assim, por exemplo, um deter- minado oficial de justica, chamado ou no Leonardo Pataca, foi desbastado, simplificado, reordenado e sub- metido a uma cunhagem ficticia, que o afastou da sua carne e do seu oss0, para transfotmélo em ocorréncia particular do amoroso desastrado ¢, mais longe, do bobalhio sniversal das piadas. Noutras palavras, a ope- racic inicial do ficcionista teria consistide em reduzir 0s fatos ¢ os individus a cituagGes e tipos gerais, pro- vavelmente porque 0 seu caréter popular permitia lan- sar uma ponte facil para o universo do folclore, fazen- do a tradigio anedética assumir a solidez das tradigées populares. Poderfamos, entdo, dizer que a integridade das Me- mérias & feita pela associacéo {ntima entre um plano Yoluntério (a representagio dos costumes e cenas do Rio) € um plano talvez na maior parte involuntério (tra- 5. Marques Rebelo, Vide obra de Manuel Anubnio de Almeida, 2 ed, ‘Sto Paulo, Martins, 1963, pp. 3889 © 42. 28 Cees cos semi-folcléricos, manifestados sobretudo no teor dos atos © das peripécias). Como ingrediente, um realismo espontineo € corriqueiro, mas baseado na intui¢ao da dinmica social do Brasil na primeira metade do século XIX. E nisto reside provavelmente o segredo da sua forca e da sua proje¢ao no tempo. HE também, é claro, eventuais influéncias eruditas € tragos que © aparentam as correntes literéyias que, naquele momento, formavam com as tend@ncias pecu- liares 20 Romantisme um desenho mais complicado do que parece a quem ler as classificagdes esquemiticas. Por este lado & que ele se entronca em linhas de forca da literatura brasileira de ent4o, que o esclarecem tanto ‘ou mais do que a invoca¢ao de modelos estrangeiros € mesmo de um substrate popularesco. De fato, para compreender um livro como as Memé- rias convém lembrar a sua afinidade com a producio cémica e satirica da Regéncia « primeiros anos do Se- gundo Reinado—, no jornalismo, 1a poesia, no desenho, no teatro. Escritas de-1852 a 1853, clas seguem uma tendéncia manifestada desde v decénio de 1830, quando comecam a florescer jornaizinhos cémicos ¢ satiricos, como O Carapuceiro, do Padre Lopes Gama (1832-34; 1837-43; 1847) ¢ O Novo Carapuceiro, de Gama e Castro (1841-42). Ambos se ocupavam de anilise politica e mo- ral por meio da sitira dos costumes ¢ retratos de tipos caracteristicos, dissolvendo a individualidade na catego- ria, como tende a fazer Manuel Anténio. Esta linha que vem de La Bruyére, mas também do nosso velho pocma cémico, sobretudo do exemplo de Nicolau Tolentino, manifestavase ainda na verdadeira mania do retrato sa- Uirico, descrevendo os tipos da vida quotidiana, que, sob © nome de “fisiologia” (por “psicologia"), pululou na imprensa francesa entre 1830 ¢ 1850 ¢ dela passou A nossa; Embora Balzac a tenha cultivado com grande ta- Tento, nao é preciso recorrer & sua influéncia, como faz 29 um estudioso recente, para encontrar a fonte eventual de uma moda que era pio quotidiano dos jornais. Pela mesma altura, curge a caticatura politica, nos primeiros desenhos de Araujo Porto-Alegre (1837)," ¢ de 1238 a 1849 desenvolvese a atividade de Martins Pena, cuja conceprao da vida e da composigio literdria se aproxima da de Manuel Anténio —, com a mesma leveza de mao, o mesmo sentido penetrante dos tracos Wpicos, « mesma suspensié de julzo moral. O amador de teatro que foi o nosso romancista nio poderia ter ficado & margem de uma tendéncia tio bem represen- tada; © que apareceria ainda, modestamente, na obra novelistica ¢ teatral de Joaquim Manuel de Macedo, cheia de infratealismo € caricatura. Os préprios poetas, que hoje consideramos uma série plangente de carpidores, fizeram poesia cémica, ‘obscena ¢ maluca, por vezes com bastante graca, como Laurindo Rabelo ¢ Bernardo Guimaries, cujas produ. ‘g6es neste setor chegaram até nés. Alvares de Azevedo foi poeta divertido, e alguns retardatérios mantinham a uadigio bem humorada da velha satira social, como € 0 caso GA festa de Baldo (1847), de Alvaro Teixeira de Macedo, cuja lisiguagem enferrujada nio abata in- teiramente um discernimento saboroso dos costumes provincianos, fanocl Antonio de Almeida ct les esumo de comunicagio, Le ral itdrtre ole langage, ‘Actes da Xe. Congits de fa Fede des Langues et Litératures Modemes, publiés par Paul Klineksieck, 1967, pp. 202208. 7 Herman Lima, Histéria:da cavintiom no Brasil, 4 vols, Rio de nncio, José Oiympio, 1968, vol, pp. 7085. 30 3. Romance documentério? Dizer que o livro de Manuel Anténio de Almeida € eminentemente documentirio, sendo reprodugio fiel da sociedade em que a aco se desenvolve, talvez seja formular uma segunda peticao de principio ~, pois res- taria provar, primeiro, que reflete o Rio joanino; segun- do, que a este reflexo deve o livro a stia caracteristica 0 seu valor. : O romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica sempre uma certa visio da sociedade, cujo aspecto ¢ significado procura traduzir em termos de, arte. E mais duvidoso que dé uma visio informativa, pois geralmente 56 podemos avaliar a fidelidade da re- presentagio através de comparagdes com os dados que tomamos a documentos de outro tipo. Isto posto, resta © fato que o livro de Manuel Anténio sugere a presenga viva de uma sociedade que nos parece bastante cocren- te ¢ existente, ¢ qu: ligamos 2 do Rio de Janeiro do comego do século XI, tendo Astrojildo Pereira chega- do a compardlo &s gravuras de Debret, como forca re- presentativa.* No entanto, 0 panorama que ele traga nao é ain- plo. Restrito espacialmente, a sua agio decorre no Rio, sobretudo no que sio hoje as areas centrais ¢ naquele tempo constituiam o grosso da cidade. Nenhum perso- nagem deixa o seu ambito e apenas uma ou duas vezes © autor nos leva 20 subtirbio, no episédio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da familia de Vidinha ___ Também socialmente a agio € circunscrita a um tipo de gente livre modesta, que hoje chamarfamos pe- 8. Astrojildo Pereira, “Romancistas da cidade: Macedo, Manuel Ar: t@nio ¢ Lima Barreto", O romance brasileiro (De 1752 2 1930), Coordenacio etc. de Aurélio Buarque de Holanda, Rio de Janei- 10, O Cruzeiro, 1952, pp. 36.73. Ver p, 40. 31 Ee TS ecveceoccoceccs quena burguesia. Fora daf, hé uma senhora rica, dois padres, um chefe de pelicia ¢, bem de relance, um oficial superior ¢ um fidalgo, através dos quais vislumbramos 0 mundo do Pago. Este mundo novo, despencado recente- mente na capital pacata do ViceReinado, era entio a grande novidade, com a presenga do rei ¢ dos ministros, 2 instalacio cheia de episédios entre pitorescos e odio- sos de uma nobreza e uma burocracia transportadas nos navios da fuga, entre: maquinas e caixotes de livros. Mas dessa nota viva saliente, nem uma palavra; é como se 0 Rio continuasse a ser a cidade do vice-rei Luis de Vas- concelos e Sousa. Havia, porém, um elemento mais antigo ¢ impor- tante para o quotidiano, que formava a maior parte da populagio ¢ sem o qual nao se vivia: os escravos. Ora, como nota Mério de Andrade, nao ha “gente de cor”, no livro —, salvo as baianas da procissio dos Ourives, -. ‘mero elemento decorativo, ¢ as crias da casa de Dona ‘Maria, mencionadas de passagem para enquadrar o Mestre de Reza. Tratado como personagem, apenas 0 pardo livre Chico-juca, representante da franja de de- sordeiros ¢ marginais que formavam boa parte da so- ciedade brasileira. Documentério restrito, pois, que ignora as cama- das dirigentes, de um lado, as camadas basicas, de ou- tro. Mas talvez o problema deva ser proposto noutros termos, sem querer ver a ficgio como duplicago —, atitude freqiiente na critica naturalista que tem inspi- rado a maior parte dos comentirios sobre as Memérias, € que tinha do realismo uma concepcio que se quali. ~ficaria de mecanica. Na verdade, 0 que interessa A anilise literdria & + heste caso, qual a fungao exercida pela reali de social historicamente locaiizada para constituir a es- irmtura da obra —, isto é um fenémeno que se pode- . 32 ria chamar de formalizagio ou redugio estrutural dos dados externos. Para isso, devemos comecar verificandé que 0 ro- mance de Manuel Ant6nio de Almeida é constituido por alguns veios descontinuos, mas discernfveis, arranjados de maneira cuja eficdcia varia: (1) os fatos narrados, envolvendo os personagens; (2) os usos ¢ costumes des- critos; (3) as observages judicativas do narrador ¢ de certos personagens. Quando o autor os organiza de modo integrado, o resultado é satisfatério ¢ nés pode- mos sentir a realidade. Quando a integracio € menos feliz, parecenos ver uma justaposigio mais ou menos precéria de elementos no suficientemente fundidos, embora interessantes ¢ por vezcs encantadores como quadros isolados. Neste tiltimo caso é que os usos ¢ costumes aparecem como documento, prontos para a fi cha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petite histoire. E.0 que ocorre, por exemplo, no capitulo 17 da 1* Parte, “Dona Maria", onde reina a desintegragio dos elementos constitutivos, Temos nele uma descrigao de costumes (procissio dos Ourives); o retrato fisico e mo- ral de um novo personagem, que dé nome ao capitulo; € a agio presente, que € 0 debate sobre o menino Leo- nardo, com participagéo de Dona Maria, do Compadre, da Vizinha, Apesar de interessante, tudo nele est desco- nexo. A procisséo descrita previamente como foco auté- nomo de interesse nao é a procissio-fato, isto é, uma determinada procissio, concreta, localizada, pormenori- zada ¢ fazéndo parte da narrativa. Embora se vincule & agio presente, ela s6 aparece um instante, no fim; 0 que domina capitulo'é a procissio-uso, a procissio indeter- minada, com o carter de informe pitoresco, do tipo daqueles que geralmente se consideram como consti- tuindo a forga de Manuel Anténio, quando na verdade sho 0 ponto fraco da sua composigio. 33. CE Mas se recuarmos até o capftulo 15 da mesina par te, veremos coisa diversa. Trata-se da “Estralada”, a di- vertida festa de aniversério da Cigana, que Leonardo Pai atrapalha, pagando o capocira ChicoJuca para esta- belecer a desordem ¢ denunciando tudo previamente 20 Vidigal, que intervém e torna piblico 0 pecado do Mestre de ‘Ceriménias. Neste capitulo surge mais de um elemento docu- mentério, inclusive a capoeiragem, associada ao retrato fisico © moral do capoeira e a uma seqiiéncia de fatos. ‘Mas af © documento nio existe em si, como no caso anterior: € parte constitutiva da ago, de maneira que hunea parece que 0 autor esteja informando ou des- viando a nossa atengio para um tyago da sociedade. Dentro das normas tradicionais de composigao, a que obedece Manuel Ant6nio, o segundo caso est certo: 0 . Primeiro, senao etrado, imperfeito, por motivos de na- tureza estrutural. A forca de convicgio do livro depende pois essen- cialmente de certos pressupostos de fatura, que orde- yam a camada superficial dos dades, Estes precisam ser encarados como elementos de composicao, nio como informes proporcionados pelo autor, pois neste caso ‘starfamos reduzindo romance a uma série de qua- dros descritivos dos costumes do tempo. Q livro de Manuel Anténio correu este risco. O eritério sugerido acima permite ilo de modo esclare- cedor, mostrando que talvez se tenha ido consolidando como romance & medida que deixava de ser uma cole. $40 de tipos curiosos ¢ usos pitorescos, que predo am na metade inicial. E possivel e mesmo provavel que a redagio tenha sido feita ao poucos, para atender 3 Publica; seriada’ e que o senso da unidade fosse he, 9. Marques itebelo, ob:et;;ppA0al. au aumentando progressivamente, & medida que a linha mestra do destino do "memorando” se consolidava, einergindo da poeira anedética. Por isso, a primeira metade tem mais 0 aspecto de crénica, enquanto a se- gunda é mais romance, fortaiecendo a anterior, preser- vando 0 colorido € © pitoresco da vida popular, sem situdla, todavia, num excessive primeiro plano. Esta dualidade de etapas (que sio como duas or- dens narrativas coexistentes) fica esclarecida se notar- ‘mos que na primeira metade Leonardo Filho ainda nao se desprendeu da nebulosa dos demais personagens € que 0 romance pode ser considerado como tendo ele ¢ © pai por principais figurantes. Os fatos relatives a um € outro, mais aos personagens que estio agregados di- Fetamente a eles, correm como paralelas alternadas, en- quaiito a partir do capitulo 28 a linha do filho dornina absolutamente ¢ a narrativa, superando as descrigées estaticas, amaina a inclusio freqliente de usos e costt- mes, dissolvendo-os na dinamica dos acontecimentos. Sendo assim, é'provavel que a impressio de reali- dade comunicada pelo livro nao venha essencialmente dos informes, alids relativamente limitados, sobre a so- ciedade carioca do teinpo do Rei Velho. Decorre de uma visio mais profunda, embora instintiva, da funcao, ou “destino” das pessoas nessa sociedade; tanto assim gue o real adquire plena forea quando é parte integran. te do ato ¢ componente das situagées. Manuel Anténio, apesar da sua singeleza, tem uma coisa em comum com, 0s grandes realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos desciitos, certos princ{pios constitutivos da sociedade —, elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parci 35 Go 4. Romance representative A natureza popular das Memérias de um sargento de -milicias & um dos fatores do seu alcance gerai ¢, portan- to, da eficiéncia ¢ durabilidade com que atua sobre a imaginacio dos leitores. Esta reage quase sempre ao estimulo causado por situagées e personagens de cunho arquetipico, dotados da capacidade de despertar resso- ncia, Mas além deste tipo de generalidade, hd outro que 0 reforga ¢ ao mesmo tempo determina, restringin- do o sett sentido ¢ tornando-o mais adequado ao ambi- to especifizo do Brasil. Noutras palavras: hé no livro um Primeire estrato universalizador, onde fermentam ar- quétipos vélides para a imaginago de um amplo ciclo de cultura, que se compraz nos mesmos casos de tricks. fers ou tas mesmas situagdes nascidas do capricho da “sina”; e hd um segundo estrato universalizador de cu- nho mais restrito, onde se encontram representacdes da vida capazes de estimular a imaginacdo de um universo menor dentro deste ciclo: o brasileiro. Nas Memérias, 0 segundo estrato & constituido pela dialética da ordem ¢ da desordem, que manifesta con- cretamente'as relagdes humanas no plano do livro, do qual forma o sistema de referencia. O seu carter de Principio estrutural, que gera 0 esqueleto de sustenta. Ho, € devido & formalizacao estética de circunstancias de carter social profundamente significativas como mo. dos de existéncia; ¢ que por isso contribuem para atingit essencialmente os leitores. Esta afirmativa s6 pode ser esclarecida pela descri- ‘lo do sistema de relagées dos personagens, que mostra: (2) a construcéo, na sociedade descrita pelo livro, de uma ordem comunicandose com uma desordem que a farch de todos os lados; (2) a sua correspondéncia pro- funda, muito mais que documentiria, a certos aspectos assumidos pela relacio entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX, 36 Veremos entio que, embora clementares como concepeio de vida e caracterizagio dos personagens, as Memérias sio um livro agudo como percepcao das rela- Ses humanas tomadas em conjunto. Se nio teve cons- ciéncia nitida, é fora de diivida que o autor teve maestria suficiente para organizar um certo néimero de persona- gens segundo intuigSes adequadas da realidade social. Tomemos como base o personagem centtal do li- vro, Leonardo Filho, imaginando que ocupa no respec- tivo espaco uma posicao também central; A direita esti sua mae, A esquerda seu pai, os trés no mesmo plano. Com um minimo de arbftrio podemos dispor os demais Personagens, mesmo alguns vagos figurantes, acima abaixo: desta linha equatorial por eles formada. Acima estio os que vivem segundo as normas estabelecidas, tendo no apice o grande representante delas, major Vi- digal; abaixo estéo os que vivem em oposigao ou pelo menos integragio duvidosa em relacio a elas. Po-rleria- mos dizer que ha, deste modo, um hemisfério positivo da ordem ¢ um hemisfério negativo da desordem, 1un- clonando como dois fmas que atraem Leonardo, depois de terem atrafdo seus pais. A dinamica do livro pressu- de uma gangorra dos dois pélos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pélo convencional. mente positivo. Sob este aspecto, pai, mae e filho sio trés nédulos de relagées, posttivas (pélo da ordem) e negativas (pélo da desordem), sendo que os dois primeiros constituem uma espécie de prefiguracio do destino do terceiro, Leonardo Pataca, 0 pai, faz parte da ordem, como oficial de justica; ¢ apesar de ilegitima, sua relagio com Maria da Hortalica é habitual e quase normal segundo 0s cos- tumes do tempo e da classe. Mas depois de abandonado por ela, entra num mundo suspeito por causa do amor pela Cigana,.que.o leva 3s feiticarias proibidas do Cabo- clo do Mangue, onde o major Vidigal 0 surpreende para 37 1S meté-lo na cadeia. Ainda por causa da Cigana promove © sarilho em sua festa, contratando 0 desordeito Chico- Juca, o que motiva nova intervengao de Vidigal e expoe ‘a vergonha pitoresca de um padre, o Mestre de Cerimé- - Mais tarde a Cigana passa a viver com Leonardo Pataca, até que finalmente, jé maduro, ele forme com a filha da Comadre, Chiquinha, um casal estavel, embora igualmente desprovido de béngio religiosa, come (repi- tamos) podia ser quase normal naquele tempo entre as camadas modestas. Assim, Leonardo Pai, representante da ordem, desce a sucessivos circulos da desordem ¢ volta em segvida a uma posi¢ao relativamente sanciona- da, tangido pelas intervengdes pachorrentas e brutais do major Vidigal —, personagem que existiu e deve ter sido fundamental numa cidade onde, segundo um observa- dor da época, “hd que eviuar sair sozinho & noite e ser mais atento & sua seguranca do que em qualquer outra Parte, porque sio freqiientes os roubos e crimes, apesar dea policia ser ld tio encontradiga como areia no mat”. A vida de Leonardo Filho seré ignalmente uma oscilagao entre os dois hemisférios, com maior varieda- de de situagies. Se analisarmos o sistema de relagdes em que esti envolvido, veremos primeiro a atuagie dos que procu- Fam encaminhélo para a ordem: seu padrinho, 0 Com- padre; sua'madrinha, a Comadre. Através deles, entra em contacto com uma senhora bem posts na vida, Dona Maria, que se liga por sua vez a um préspero intrigante, José Manuel, acolitado pelo cego que ensina doutrina as criancas, o Mestre de Reza; que se liga sobretudo A inha Luisinha, herdeira abastada e futura mulher de Leonardo, depois de uin primeiro casamento com o dito José Manuel. Estam2s no mundo des aliangas, das car- 16.7 vo Lite ngs 0 ati np Fonsi eng ein po 38 reiras, das herangas, da gente de posigéo definida: em nivel modesto, o Padrinho barbeiro e a Vizinha; em nivel. mais elevado, Dona Maria. Todos estio do lado positive que a policia respeita ¢ cujas festas 0 major Vidigal nao vai rondar. Vista deste Angulo, a histéria de Leonardo Filho é a velha histéria do heréi que passa por diversos riscos até alcancar a felicidade, mas éxpressa segundo uma constelagio social peculiar, que a transforma em histé- ria do rapaz que oscila entre a ordem estabelecida ¢ as condutas transgressivas, para finalmente integrarse na primeira, depois de provido da experiéncia das outras. © cunho especial do livro consiste numa certa auséncia de jufzo moral e na aceitagio risonha do “homem como ele é”, mistura de cinismo ¢ bonomia que mostra 20 Ieitor uma relativa equivaléncia entre 0 universo da or- dem ¢ 0 da desordem; entre ¢ que sé poderia chamar convencionalmente 6 bem ¢ 0 mal. Na construgio do enredo esta circuns*ancia € re- presentada objetivamente pelo estado de espfrito com que narrador expée os momentos .’2 ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados ante um leitor ineapaz de julgar, porque o autor retirou qual quer escala necessaria para isto. Mas hé algo mais pro- fundo, que ampara as camadas superficiais de interpre- tagio: a equivaléncia da ordem e da desordem na prépria economia do livro, como se pode verificar pela ‘descricio das situagées e das relagées. Tomemos apenas dois exemplos. Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde © belo episédio do “Fogo no Czmpo”, quando vé o seu rostinho acanhado de roceira transfigurado pela emogao dos rojées coloridos. Mas como as circunstan- cias (ov, nos, termos do livro, a “sina”) a afastam dele para 0 casamento conventional com José Manuel, ele, sem capacidade de sofrer (pois a0 contrério do que 39 GG diz o narrador nao tem a fibra amorosa do pai), passa facilmente a outros amores © & encantadora Vidinha. Esta lembra, pela espontaneidade dos costumes, a mo- reninha “amigada” com o tropeiro, que amenizou a es- tadia do mercenitio alemio Schlichthorst no Rio da. quele tempo, cantando modinhas sentada na esteira, junto cum a mie complacente."! Luisinha ¢ Vidinha constituem um par admiravel- mente simétrico. A primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem nao ha relacao viével fora do casamento, pois ela traz consigo heranca, parentela, Posicio ¢ deveres. Vidinha, no plano da desordem, é 2 mulher que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua graca e da sua curiosa familia sem obrigagio nem sancao, onde todos se arrumam mais ou menos eonforme os pendo- tes do instinto ¢ do prazer. E durante a fase dos amores “com Vidinha, ou logo apés, que Leonardo se mete nas enerencas mais sérias e pitoreseas, como que libertado dos projetos respeitéveis que o padrinho ¢ a madrinha tinham trugado para a sua vida, Ora, quando 0 “destino” o reaproxima de Luisi. nha, providencialmente vitiva, ele retoma o namoro que levara direto a0 easamento, notamos que a tonali. dade do relato no fica mais aprovativa e, pelo contré. rio, que as seqiiéncias de Vidinha tém um encanto mais cilido. Como Leonardo, o narrador parece aproximar, se do casamento com a devida circunspecgio, mas sem entusiasino, “ye Nessa altura, comparamos a situago com tudo o Gu sabemos dos seres no universo do livro ¢ nio po. demos deixar de fazer uma extrapolacio. Dada a ecra. 11. G. Schlichthorst, O Rio de Janeiro como & 1824-1826 (Huma vex S umes mais) ete. Trad. de Emy Dodt ¢ Gustavo Batrose, Rig de Janeiro, Gevilio Costa, sd, pp. 7780, 40 tura daquela sociedade, se Luisinha pode vir a ser uma esposa fiel ¢ caseira, o mais provével é que Leonardo siga a norma dos maridos ¢, descendo alegremente do hemisfério da ordem, refaca a descida pelos efrculos da desordem, onde o espera aquela Vidinha ou outra equi- valente, para juntos formarem um casal suplementar, que se desfard em favor de novos arranjos, segundo os costumes da familia brasileira tradicional. Ordem'e de- sordem, portanto, extremamente relativas, se comuni- ‘cam por caminhos inumerdveis, que fazem do oficial de justica um empreiteiro de arruagas, do professor de re- ligiio um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das unides ile- gitimas situacdes honradas, dos easamentos corretos ne- gociatas escusas. “Tutto nel mondo ¢ burla” —, cantam Falstaff ¢ o coro, para resumir as confusdes e peripécias no final da Spera de Verdi. “Tutto nel mondo é burla”, parece dizer © narrador das Memér.2s de um sargento de milicias, to- mance que tem tragos le épera bufa. Tanto assim (¢ chegamos ao segundo exemplo), que a conclusio feliz € Preparada por uma atitude surpreendente de major Vi- dligal, que no livro € a encarnagéo da ordem, sendo manifestagio de uma consciéncia exterior, tinica prevista no seu universo. De fato, a ordem convencional a que obedecem 0s comportamentos, mas a que no fundo permanecem indiferentes as consciéncias, é aqui mais do que em qualquer outro lugar o policial na esquina, isto ¢, Vidigal, com a sua sisudez, seus guardas, sua chitata ¢ seu relativo fairplay, Tle é delegado de um mundo apenas entrevisto durante a narrativa, quando a Comadre sai a campo para obter a soltura de Leonardo Pataca. Como todos sabem, vai pedir a protecao do Tenente-Coronel, mem- bro da guarda caricata de velhos oficiais, que cochilam numa sala do Palacio Real. O Tenente-Coronel por sua vez busca 0 empenho' do ‘capote ¢ 05 seus tamancos numa casa fria e mal guar- necida), para que este fale ao Rei. © Rei, que nio apa- . Fece mas sobrepaira como fonte de tudo, & que falard ‘com Vidigal, instrumento da sua vontade. Mais do que um personagem pitoresco, Vidigal encarna toda a or dem; por isso, na estrutura do livro € um fecho de abébada ¢, sob o aspecto dindniico, a tinica forga regu- Jadora de um mundo solto, pressionando de cima para baixo ¢ atingindo um por um os agentes da desordem. Ele prende Leonardo Pai na casa do Caboclo ¢ o Mestre de Ceriménias na da Cigana. Ele ronda o baile do ba tizado de Leonardo Filho e intervém muitos anos de- pois na festa de aniversério de seu irméo, conseqiiéncia de novos amores do pai. Ele persegue Teoténio, des- manchi © piquenique de Vidinha, atropela o Toma-Lar- gura, persegue ¢ depois prende Leonardo Filho, fazen- _ do sentar praca na tropa. O seu nome faz tremer © fugir. Sendo assim, quando a Comadre resolve obter perdio do afithado € a Vidigal que pensa recorrer, por meio de uma nova série de mediagbes muito significa- tivas dessa dialética da ordain e da desordem que se esta procurando sugerir. Modesta socialmente, enrede!- rae complacente, reforcase procurando a préspera Do- fa Mara, que seria empenho forte para o representant= da let, sempre accesiel aos proprietaios bem situados. Dena Maria vira habilmente o leme para outra banda ¢ recorre a uma senhora de costumes que ha- viam sido ficeis, como se dizin quando eles ainda eram Giffceis. E é com a pura ordem de um lade, encarnada em Dona Maria, ¢ de outro a desordem feita ordem aparente, encarnada em sua pitoresca xard Maria Reg: ada, qve a Comadre parte para asaltar a cidadela Hi pida, 0 Tutu geral, o desmancha prazeres do Major. A cena é digna de um tem; i ; pO que produziu Mar- tins Pena. Toda a gente lemora de que modo, para surpresa do leitor, Vidigal € declarado “babao" & se az desmancha de gosto entre as saias das trés velhotas. Como resistisse, enfronhado na intransigéncia dos po- Tieiais conscienciosos, Maria Regalada o chama de lado ¢ Ihe segreda qualquer coisa, com certeza alusiva a al- ‘ma relagio apetitosa no passado, quem sabe com ‘ossibilidades de futuro. A fortaleza da ordem vem Abaixo ato continuo e nao apenas solta Leonardo, mas dédhe 0 posto de sargento, que apareceré no titulo do romance ¢ com o qual, j& reformado na segunda linha, casaré triunfalmente com Luisinha, enfeixando cinco herangas para dar maior solidez & sua posi¢io no he- misfério positivo. Posigéo de tal modo firme, que poder, como su- gerimos, baixar eventualmente ao mundo agraddvel da desordem, agora com 0 exemplo supremo do major Vidigal, que cedeu 20 pedido de uma dama galante apoiada por uma dama capitalista, em suave conluio dos dois hemisférios, por iniciativa de uma terceira dama, que circula i vremente entre ambos ¢ poderia ser cha- mada, como Telladona no poema de Eliot, “the lady of situations". Ordem ¢ desordem se articulam portanto solidame..:e; 0 mundo hierarquizado na aparéncia se revela essencialmente subvertido, quando os extremos se tocam € a labilidade geral dos personagens é justifi- cada pelo escorregio que traz o major das alturrs san- cionadas da lei para complacéncias duvidosas com as camadas que ele reprime sem parar. Hi um trago saboroso que funde no terreno do simbolo essas confusdes de hemisférios ¢ esta subversao final de valores. Quando as mulheres chegam A sua casa (Dona Maria na cadeirinha, as outras se ‘esbofando ao Jado), o major aparece de chambre de chita ¢ tamancos, num desmazelo que contradiz o seu aprumo durante © curso da narrativa. Atarantado com a visita, desfeito em risos ¢ arrepios de erotismo senil, corre para dentro € volta envergando a casaca do uniforme, devidamente abotoada e juzindo’em seus galdeés, mas com as calgas 43 +o domésticas ¢ os mesmos tamancos batendo no assoalho. E assim temos o nosso rispido dragio da ordem, a cons. eléncia ética do mundo, reduzido a imagem viva dos dols hemisférios, porque nesse momento em que trans- Bride as suas normas ante a sedugao da antiga e talver de novo amante, esté realmente equiparado a qualquer dos malandros que perseguia: aos dois Leonardos, a Teotdnio, a0 Toma-Largura, a0 Mestre de Ceriménias. Gomo este, que, ao aparecer contraditoriamente de so. Ildéu © ccroulas no quarto da Cigana, misturava em signos Uurlescos a majestade da Igreja e as docuras do petado, ele agora é farda da cintura para cima, roupa caseira da cintura para baixo —, encouracando a razio nas bitolas da lei e desafogando o plexo solar nas indis. eiplinas améveis. Este trago dé sentido profundo do livro e do seu balanceio caprichoso entre ordem e desordem. Tudo se arregia entio num plano mais significative que o das formas convencionais; © nés lembramos que 0 bom, 0 €xcelente padrinho, se “arranjou” na vida perjurando, traindo a.palavra dada a um moribundo, roubando aos herdeiros o ouro que o mesmo Ike confiara. Mas este Guro nao serviu para ele se tornar um cidadio honest Ey Sobretudo, prover Leonardo? “Tutto nel mondo & urls”. E burlae é sério, porque a sociedade que formiga Bas Memérias é sugestiva, nio tanto por causa das des.

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