Você está na página 1de 6

Schleiermacher: a universalidade do mal-entendido

Desde o início de sua atividade docente em Halle, no ano de 1805, até a sua
morte em 1834, Friedrich Schleiermacher (1768-1834) se ocupou intensivamente
com os problemas da hermenêutica. Porém, uma amadurecida apresentação de sua
teoria hermenêutica, este famoso professor de teologia e tradutor de Platão,
chamado em 1809 para Berlim, nunca deixou imprimir. Como merecedora de
publicação ele considerou, no máximo, sua excelente — embora um tanto
personalista — conferência acadêmica de 13 de agosto de 1829, 'Úber den Begriff
der Hermeneutik mit Bezug auf F.A.Wolfs Andeutungen und Asts Lehrbuch' (Sobre o
conceito da hermenêutica com referência às indicações de F.A.Wolf e o manual de
Ast), na qual ele se confronta com seus professores de filologia, cuja influência
sobre a sua hermenêutica deve, no entanto, ser avaliada como secundária. A
eficácia da hermenêutica schleiermachiana
123
remonta inteiramente à edição, providenciada em 1838, por seu discípulo Friedrich
Lücke, a partir da herança manuscrita e das lições póstumas, sob o título
'Hermeneutik und Kritik mit besonderer Beziehung auf das Neue Testament'
(Hermenêutica e crítica com especial referência ao Novo Testamento). Lücke, que
não assistiu às lições hermenêuticas de Schleiermacher, 1 encontrou um vasto
material para compor a sua edição em forma de compêndio, porque entre 1805 e
1832 Schleiermacher proferiu nove lições sobre hermenêutica. No ano de 1805, no
início de sua atividade de docência teológica, ele apenas tratava de uma
"Hermeneutica sacra", segundo o modelo do manual pietista de J.A.Ernesti. Desde
1809/10, ele já lia sobre "Hermenêutica geral". Paralelamente a suas preleções, ele
escreveu alguns esboços sobre hermenêutica em cadernos, sem dúvida em vista de
uma publicação. Essa publicação, que ele nunca conseguiu concretizar, estava
solidamente planejada desde 1805.
Não é fácil de estabelecer, em que consistiria este receio por publicação.
Certamente não porque ele pudesse ter considerado a hermenêutica como
ocupação secundária ao lado da sua atividade teológica. O constante trabalho na
matéria e os esboços sobre hermenêutica provam o contrário. Certamente pode-se
responsabilizar a "morte inesperadamente prematura" (ele tinha, então, 66 anos de
idade) para a falta de um aperfeiçoamento. Mais provável é, talvez, a suposição de
que Schleiermacher — neste ponto um legítimo romântico (e hermeneuta!) — nunca
estivesse plenamente satisfeito com os seus esboços e, respectivamente, com sua
manifestação. Isso confirma, numa concepção global que em sua essência se
mantém inalterada, a constante oscilação de sua terminologia e de seus pontos-
chave, que causou muita aflição à pesquisa sobre Schleiermacher e sobre
hermenêutica. Aqui só pode estar em primeiro plano a concepção geral, em si
bastante conclusiva, e seu reinício hermenêutico.
124
O discurso sobre um reinício, já é um tanto sedutor e em parte falso em
Schleiermacher. Porque, fundamentalmente, ele segue a hermenêutica mais antiga,
ao esclarecer, no início de sua hermenêutica, que "cada ato de compreensão é a
conversão de um ato de falar, enquanto deve chegar à consciência, que espécie de
pensamento esteve na base do discurso. " Se se parte da constatação, de que "cada
discurso (repousa) sobre um pensamento anterior" então não resta dúvida de que a
função básica da compreensão desabrocha, ao reconduzir-se a expressão (ou
elocução) à vontade de dizer que a anima: "É procurado em pensamentos, o mesmo
que o falante queria expressar."
O que se procura entender, é o sentido de um discurso , isto é, a expressão
de um outro, ou de algo pensado. Assim, a compreensão não tem outro objeto além
da linguagem. Por isso escreve Schleiermacher, numa conhecida sentença
assumida por Gadamer como lema para a última parte de 'Verdade e Método': "Tudo
o que deve ser pressuposto na hermenêutica é apenas a linguagem." Este
pressuposto básico possui, em Schleiermacher, um sentido específico, arquitetônico.
A linguagem pode ser considerada de duas maneiras. De um lado, a linguagem, a
ser eventualmente interpretada, é um recorte da totalidade do uso linguístico de uma
comunidade dada. Pois, cada expressão linguística segue uma sintaxe pré-
estabelecida, ou o costume, e é, por isso, supra-individual. A parte da hermenêutica,
que se ocupa com este aspecto, será chamada por Schleiermacher "o lado
gramatical" da interpretação. A ele compete explicar uma determinada
expressão do contexto global da totalidade linguística em questão. A expressão não
é, todavia, o portador anônimo de uma linguagem originariamente supraindividual,
ele é também o testemunho de uma alma individual. As pessoas não pensam
sempre a mesma coisa sob as mesmas palavras. Se fosse assim, haveria "apenas
125
gramática". A hermenêutica, que não quer, segundo uma tendência que se
desenvolvera no estruturalismo de nossos anos sessenta, dissolver-se em
gramática, deve considerar o outro lado da interpretação, ou seja, o mais individual.
Esta segunda tarefa, a qual por primeiro conduz a hermenêutica a uma unidade, é a
da interpretação "técnica". Técnica significa aqui, supostamente, que o intérprete
procura entender a arte específica que um autor externou num de seus textos. Aqui
é evidentemente ultrapassada a visão meramente sintática da linguagem, em
direção ao que a linguagem realmente quer expressar. O que é visado, é a
compreensão de um espírito, o qual deduz linguagem a partir da alma que a traz à
tona, Por isso Schleiermacher podia, mais tarde, chamar este lado da interpretação
de "psicológico”.
A hermenêutica geral de Schleiermacher se bifurca em duas funções e,
consequentemente, em duas partes: a gramatical e a técnica, respectivamente
psicológica. A gramatical considera a linguagem a partir da totalidade de seu uso
linguístico, a técnico-psicológica a concebe como expressão de um interior. Mas, a
hermenêutica pretende ser uma "Kunstlehre", uma teoria artificiosa — uma nuance,
à qual, em Schleiermacher, se acrescentarão novas conotações, já que à
hermenêutica será cada vez mais confiada a função de estruturar "artificialmente" o
ato de compreensão (o que faz lembrar não pouco a Schlegel). Esclarecedora é,
neste contexto, a distinção de Schleiermacher entre uma práxis mais laxa" e outra
"mais austera " da interpretação, que arrasta atrás de si duas determinações de
objetivos fundamentalmente diversas. A práxis mais laxa (comum na história anterior
da hermenêutica) parte do fato, "de que a compreensão se dá por si mesma e
expressa negativamente o objetivo: deve-se evitar o mal-entendido." Não resta
dúvida, de que Schleiermacher entende aqui a clássica hermenêutica das
passagens, que queria apenas orientações para desvendar
126
passagens obscuras. O próprio Schleiermacher visa, no entanto, uma praxe mais
austera, que deveria partir do fato, "de que o mal-entendido se dá por si mesmo e
que a compreensão deve ser pretendida e buscada em cada ponto.
Nesta distinção anuncia-se a originalidade do princípio hermenêutico de
Schleiermacher. O que, porém, significa uma práxis "mais laxa", é equiparado com
uma razão sem artifícios, enquanto puramente intuitiva. Certamente o entender, em
sua forma normal de desenvolvimento, ocorre sem artifícios, isto é, não problemático
para si próprio. A visão da hermenêutica tradicional era de que se entende tudo de
modo correto e liso, até que se tope com uma contradição. Uma hermenêutica só se
faz necessária, quando não (mais) se entende. A compreensibilidade era
antigamente o primário ou inato, a não-compreensão, por assim dizer, a exceção,
razão pela qual necessitava de um auxílio hermenêutico. Schleiermacher põe esta
perspectiva "ingênua", provinciana, de cabeça para baixo e pressupõe o mal-
entendido (o equívoco) como realidade básica. Desde o início do esforço de
compreensão o hermeneuta se previne ante um possível equívoco. A compreensão
deve, pois, proceder artificialmente em todos os seus passos. "O negócio da
hermenêutica não deve iniciar apenas ali, onde a compreensão se torna insegura,
porém desde o primeiro começo do empreendimento de querer entender um
discurso. Porque a compreensão normalmente só se torna insegura, por já ter sido
anteriormente descuidada. "
Esta práxis mais austera é a que Schleiermacher pretende introduzir com sua
hermenêutica. Com isso, ele universaliza a dimensão do mal-entendido. Ela está
impregnada por uma compreensão do sujeito, com a qual já nos deparávamos em
Schlegel. A razão pós-kantiana, cuja pretensão de conhecimento fora
problematizada, tornou-se fundamentalmente instável, por ter-se dado conta do
caráter perspectivista
127
e hipotético de suas tentativas de compreensão. Futuramente, o ponto de partida
deverá ser estabelecido a partir do primado universal do mal-entendido. Este
elemento da compreensão é, de fato, capaz de universalização: Quando é que se
pode realmente afirmar, que se entendeu alguma coisa até o fim? Em toda a
compreensão, mesmo onde ela parece estar dando certo, não pode ser excluído um
resto de mal-entendido. Para Schleiermacher interessa a universalização da
experiência demasiado humana, de que, como consta em 1829, "a não-
compreensão não quer nunca dissolver-se totalmente".
Por isso, ele deve estabelecer a operação básica da hermenêutica ou da
compreensão — somente agora ambos os termos podem tornar-se rigorosamente
idênticos —como a de uma reconstrução. Para entender realmente um discurso, isto
é, para banir o risco sempre ameaçador do equívoco, devo poder reconstruí-lo a
partir da base e em todas as suas partes. Na compreensão não se trata do sentido
que eu insiro num objeto, porém do sentido, a ser reconstruído, do modo como ele
se mostra a partir do ponto de vista do autor. Esta justiça hermenêutica em face do
objeto leva Schleiermacher a formular a tarefa da seguinte maneira: "entender o
discurso primeiro tão bem, e depois melhor do que seu autor" — uma fórmula
empregada primeiramente por Kant, que Schleiermacher aduz em todos os seus
textos sobre hermenêutica. 0 objetivo da melhor compreensão só pode ser
concebido como exigência otimizada, porque, estabelecida desta forma, trata-se de
uma "tarefa infindável como Schleiermacher frequentes vezes o sublinha. Se o
imperativo da melhor compreensão vier a parecer um tanto exagerado, de acordo
com a potencial universalidade do mal-entendido, deve ele, no entanto, ser
entendido simplesmente como estímulo ao constante esforço de continuar
interpretando. Já que nunca se pode estar totalmente seguro
128
da própria compreensão, é preciso procurar penetrar, sempre de novo e sempre de
maneira nova, no objeto. A melhor compreensão, como 'telos' inatingível da
compreensão, dá testemunho do estímulo, que consiste em que jamais se entendeu
perfeitamente, de modo que uma penetração mais profunda no assunto a ser
interpretado, sempre compensa.
Surge, evidentemente, a questão, se a forma de uma "teoria artificiosa"
(Kunstlehre), que procura desenvolver uma práxis da interpretação a ser
reconstruída com austeridade, pode fazer jus à matéria aqui tratada. O próprio
Schleiermacher propôs alguns cânones e regras, sobretudo para a parte gramatical
da hermenêutica. Mas, ele sempre esteve cônscio de que não existem regras para a
aplicação das próprias regras hermenêuticas. É verdade que ele propôs "métodos"
universais de interpretação, os quais, em sua essência, traíam uma renovação das
regras da antiga tradição hermenêutica, como, p.ex., a exigência de explicar
passagens a partir de seu contexto. Renunciou, no entanto, de modo consequente, a
fornecer regras para sua aplicação, ou a ver nas mesmas um momento decisivo. Na
parte "técnico-psicológica", que se ocupa do discurso como manifestação de um
indivíduo, ele até falou da imprescindibilidade, no processo interpretativo, da
"adivinhação". Esta não expressa um dom divino, mas apenas um ato de adivinhar
(divinare). Se os recursos predominantemente comparativistas da interpretação
gramatical acabam nos deixando na mão, é preciso enfrentar o aclaramente pela
maneira particular de expressar-se do autor e, com demasiada frequência, deve-se
simplesmente adivinhar o que o autor queria dizer.
Em toda a parte, e com razão, pressupõe Schleiermacher que atrás de cada palavra,
falada ou escrita, se encontra algo diverso, algo pensado, que constitui propriamente
o alvo específico da interpretação. Por isso, em última análise,
129
isso só pode ser adivinhado. Por esta razão, Schleiermacher deu cada vez maior
valor, na hermenêutica, à compreensão divinatória. Por isso deve ele, de certa
forma, ter-se "equivocado" consigo mesmo, quando ele situou a sua própria
concepção hermenêutica sob o programa de uma teoria regulamentada. Pois, como
quase nenhum outro, possuía ele um senso agudo sobre o limite do metodizável e
sobre a necessidade de uma adivinhação empática no reino da interpretação. Foi,
quem sabe, por essa razão que ele teria renunciado a uma edição de sua
hermenêutica, na forma de uma teoria artificiosa?
130
[...]
O campo dialético da hermenêutica

Só se pode atribuir a Schleiermacher uma psicologização distante da


realidade, se não se considera o horizonte dialético — ou, mais precisamente:
dialógico — de sua hermenêutica. Com o termo dialética, tida como a ciência
filosófica suprema, à qual se subordina a hermenêutica, entende Schleiermacher
uma teoria do fazer-se entender. Sua necessidade emerge da inexequibilidade de
um "saber perfeito", ou de um ponto arquimédico para nós humanos. Em vista da
nossa finitude, devemos antes admitir, acredita Schleiermacher, que, em toda a
parte, na esfera do pensar — como a história das ciências ensina com suficiente
clareza — estaria disponível assunto infindável para contenda. Por isso estamos
condicionados a promover conversação uns com os outros e conosco mesmos, acentua
Schleiermacher — para chegarmos a verdades comuns e originariamente livres de
contenda. Este princípio dialético, que resulta da derrocada das tentativas
metafísicas de fundamentação última, anda de mãos dadas
132
com a universalização do equívoco, que empresta à sua hermenêutica a sua
candência específica: o indivíduo que, em princípio, se encontra na ilusão, só pode
conquistar o seu saber pela via do colóquio (do 'Gespräch'). ou da troca de
pensamentos com outras pessoas.
A hermenêutica, como "a arte de entender corretamente o discurso alheio,
sobretudo o escrito", participa dessa busca dialógica do saber. Para entender um
texto, deve-se entabolar um colóquio com ele e, dessa forma, chegar ao fundo
daquilo que suas palavras expressam de modo imediato: "Quem poderia conviver
com pessoas de espírito superior, sem que se esforçasse, ao mesmo tempo, em
escutar entre as palavras, da mesma forma como lemos entre as linhas em escritos
engenhosos e concisos; quem não gostaria de valorizar um colóquio significativo,
que também poderia facilmente tornar-se ação significativa em múltiplas direções,
como ainda uma meditação mais atenta, destacando nelas os pontos vivos,
procurando captar sua conexão interna e perseguindo todas as suas alusões
silenciosas? A hermenêutica repousa sobre um solo dialógico: interpretar um texto
significa entregar-se a um colóquio com ele, dirigir-lhe perguntas e deixar-se
questionar por ele. Sempre de novo deve a interpretação, se não quiser tornar-se
redundante, ultrapassar o meramente escrito e, assim, "ler entre as linhas", como
Schleiermacher dizia acertadamente. Esta arte se assemelha muito à do colóquio ou
da conversação. Cada palavra escrita é, em si, uma proposta de diálogo, que um
texto quer promover com um outro espírito. Assim, Schleiermacher aconselha com
insistência, ao intérprete de obras escritas, "exercitar-se na interpretação do colóquio
mais significativo" .46 Realmente não se evidencia, o que essa arte da conversação
deve ter em comum com uma psicologização de má qualidade.
Nessa moldura dialógica, aninha-se a recepção, por
133
Schleiermacher, do círculo hermenêutico. Tínhamos visto, em Friedrich Ast, que
cada manifestação exterior do espírito deve ser entendida com base em seu
contexto global, ou seja, a partir de seu todo. Para Ast, esse todo era, enfim, a oni-
abrangente unidade do espírito, na forma como ele se doou nas eras básicas da
humanidade. Para Schleiermacher, esse todo idealista é demasiado monstruoso.
Segundo ele, esse todo pode ser determinado, de maneira mais modesta, em duas
direções, que correspondem à bipartição do seu conceito hermenêutico. Segundo o
lado gramatical, aqui chamado de objetivo, o todo, a partir do qual pode ser
iluminado o particular, é o gênero literário do qual ele brota. Segundo o lado
psicológico ou subjetivo, no entanto, o particular (a passagem, a obra) deve ser visto
como "ação de seu autor", a ser interpretada a partir do "todo de sua vida". Dessa
forma, Schleiermacher concebe o indivíduo como o último 'para onde', ao qual deve
aproximar-se a interpretação. Assim, afasta-se ele, notavelmente, do
empreendimento de seu mestre Ast, de "mais uma vez potenciar" 48 0 círcuIo e
conceber a realização individual como elemento de um todo ainda mais elevado,
idealista ou histórico. A delimitação, por Schleiermacher, da circularidade
hermenêutica à totalidade de uma vida individual, caracteriza o seu esforço de
entender o lingüístico como emanação de um pensamento interior, isto é, como
tentativa de comunicação de uma alma. Mas, quando Ast potenciou historicamente o
círculo, ele — bem contra a sua vontade idealista e histórico-universalista — pensou
antecipadamente o relativismo epocal do historicismo emergente, para o qual tudo
deve ser interpretado como expressão de sua época. Voltemo-nos, agora, para a
pretensão de universalidade, sazonada para a hermenêutica por esta nova maneira
de ver.
134

Você também pode gostar