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Universidade Federal do Rio de Janeiro

ATEÍSMO NA ANTIGUIDADE:
ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA A INSERÇÃO DO TEMA NA
ANTIGUIDADE EGÍPCIA, MESOPOTÂMICA E ISRAELO-JUDAÍTA E
PRESSUPOSTOS PARA O ESTUDO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

Jônatas Ferreira de Lima Souza

2019
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

ATEÍSMO NA ANTIGUIDADE:
ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA A INSERÇÃO DO TEMA NA
ANTIGUIDADE EGÍPCIA, MESOPOTÂMICA E ISRAELO-JUDAÍTA E
PRESSUPOSTOS PARA O ESTUDO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

Jônatas Ferreira de Lima Souza

Dissertação de Mestrado submetida ao


Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas: Culturas da Antiguidade Clássica:
Estudos Interdisciplinares, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Letras Clássicas.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Karol


Coorientador: Profª. Drª. Arlete José Mota

Rio de Janeiro, RJ

Março de 2019
ATEÍSMO NA ANTIGUIDADE:
ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA A INSERÇÃO DO TEMA NA
ANTIGUIDADE EGÍPCIA, MESOPOTÂMICA E ISRAELO-JUDAÍTA E
PRESSUPOSTOS PARA O ESTUDO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

Jônatas Ferreira de Lima Souza

Orientador: Prof. Dr. Luiz Karol


Coorientador: Profª. Drª. Arlete José Mota

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Clássicas: Culturas da Antiguidade Clássica: Estudos Interdisciplinares, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Letras Clássicas.

Aprovada em: 26 / 03 / 2019

Examinada por:

______________________________________________________
Orientador e Presidente da Banca: Prof. Dr. Luiz Karol (UFRJ)

______________________________________________________
Avaliador interno: Prof. Dr. Rainer Guggenberger (UFRJ)

______________________________________________________
Avaliador externo: Prof. Dr. José Costa D’Assunção Barros (UFRRJ)

______________________________________________________
Suplente interno: Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ)

______________________________________________________
Suplente externo: Profª. Drª. Nely Feitoza Arrais (UFRRJ)

Rio de Janeiro, RJ

Março de 2019
CIP - Catalogação na Publicação

SOUZA, Jônatas Ferreira de Lima


S719a Ateísmo na Antiguidade: aspectos teóricos e
metodológicos para a inserção do tema na Antiguidade
Egípcia, Mesopotâmica e Israelo-Judaíta e pressupostos
para o estudo na Antiguidade Clássica / Jônatas Ferreira
de Lima Souza. -- Rio de Janeiro, 2019.
212 f.

Orientador: Luiz Karol.


Coorientadora: Arlete José Mota.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-
Graduação em Letras Clássicas, 2019.

1. Ateísmo. 2. Etimologia. 3. Egito Antigo. 4.


Mesopotâmia. 5. Israel. I. KAROL, Luiz, orient. II.
MOTA, Arlete José, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
DEDICATÓRIA

Aos leitores!

In memoriam:
Benedita, vovó
Margarida, vovó
Karina, família CEFET-RN
Maria Clara, professora
AGRADECIMENTOS

O início de uma pesquisa pode depender de boas ideias, da criatividade temática do


próprio pesquisador, todavia, a sua continuidade, para torná-la em um trabalho concluído,
dependerá também de investimento material, financeiro, alimentar, em prol da saúde mental e
física dos envolvidos. Trabalhos propostos para uma pesquisa podem nem sequer sair da mente
pesquisadora caso não haja essa harmonia.
Este trabalho só pôde chegar até o leitor porque tivemos acesso ao mínimo necessário,
mesmo que não tenhamos sido agraciados com amparos institucionais financeiros à pesquisa.
Assim, é aqui que faremos as principais menções às pessoas que tornaram possível a conclusão
deste trabalho.
Àqueles dignos de primazia, meus pais, Francisco Justino e Iêda Ferreira. Estes foram
os primeiros interessados em nosso crescimento acadêmico. Diante de suas limitações, nos
ajudaram a nos manter na cidade, além de, na medida do possível, investiram financeiramente
para que materiais bibliográficos fossem adquiridos.
Em seguida, minha esposa Midian Ferreira, que se propôs estar ao meu lado mesmo
diante dos cenários mais conflituosos que a vida acadêmica pode proporcionar. Pode-se dizer
que esse convívio elevou nossa parceria e nossa paciência.
Na UFRJ, fui primeiramente adotado pelo professor de língua latina Luiz Karol, que,
prontamente, acatou minhas propostas, que sofreram várias transformações, até findarem neste
que vos chega. Nada mais justo que honrá-lo, pois foi além da responsabilidade acadêmica
profissional, foi ser humano, foi cordial, além de seu total apoio ao tema deste trabalho que, de
certa forma, mesmo para uma Linha Interdisciplinar, afastou-se relativamente do centro do
Programa de Pós-Graduação que tem por foco as culturas grega e latina antigas.
No princípio, havia um candidato ainda sem orientador. Eis que tal candidato trouxera
temas e ideias demasiado amplos. E viu o Programa que isso não era bom, assim, designou a
professora Arlete José Mota para trazer ordem ao caos. E viu o Programa que assim estava
melhor. A professora Arlete teve um papel fundamental no início deste trabalho, pois, assumiu
a sua orientação por mais da metade do curso até que o professor Karol pudesse responsabilizar-
se por esta condição. A professora seguiu conosco com sua maestria como coorientadora deste.
Desde o princípio, quando este trabalho ainda nem possuía nome fixo, o Programa de
Pós-Graduação em Letras Clássicas, graças aos seus gestores, proporcionou o melhor cenário
possível para o desenvolvimento deste trabalho e de sua principal proposta. As matérias a serem
cursadas e seus professores, da casa e convidados, tiveram papel ativo na proposição de
métodos e teorias para a sua consolidação.
Aos professores titulares de nossa banca de arguição, Rainer Guggenberger e José
D’Assunção Barros que, prontamente, assumiram o compromisso de nos ajudar nessa
caminhada de pesquisas em prol do lançamento de análises críticas aos conhecimentos
humanos. Aos professores suplentes, Álvaro Bragança Jr. e Nely Feitoza, que, por meio de suas
disciplinas ministradas, puderam atuar direta e indiretamente neste trabalho.
Aos professores do departamento de Língua Hebraica Moderna da UFRJ, pelas
melhores aulas possíveis e compromisso com o curso.
Ao professor Ricardo Pinto de Souza, que trouxe à faculdade de Letras cursos de
editoração em arquivos eletrônicos que nos foram importantes para a diagramação deste
trabalho, além de suas problematizadoras aulas de teoria literária.
A todos os colegas que me acompanharam nesta caminhada, com boas conversas,
músicas, filmes, vídeo games, coisas que nos ajudam a divagar em ideias, coisas que ajudam a
sobreviver no meio universitário.
Aos indivíduos, grupos e instituições que se propuseram a disponibilizar na Internet
livros, artigos, dicionários, arquivos digitais que foram basilares para conclusão deste trabalho.
Por fim, aos pais de minha esposa que, com muito esforço e economia, financiaram
nossa importante e rejuvenescedora visita aos nossos familiares na cidade do Natal, nas férias
que antecederam nosso último semestre.
EPÍGRAFE

ΕΙ ΕΙΣΙ ΘΕΟΙ
Se existem seres theoí

[...] A mais astuciosa doutrina ele introduziu,


Ocultando a verdade com um discurso falso.
Dizendo que os theoí moravam em um lugar onde
se colocassem seres humanos lá, os afligiria em demasiado,
Disso, de fato, sabia aquilo que os mortais mais temem
E da dureza de suas miseráveis vidas,
Da abóbada giratória acima, no âmbito das tempestades
Onde avistou tais estrondosos
resplendores, o brilho reluzente do corpo celeste,
Um belo bordado do tempo, hábil artesão,
Disso, de fato, vem o esplendor astral entorno da massa de pedra em brasa,
De onde também faz sair o fluido das fortes chuvas para a terra.
Com tais tipos de medo cercou
os seres humanos, de forma bela, por este discurso,
Cedeu ao daímon um lar de maneira adequada,
E assim apagou a ilegalidade com leis.
[...] Dessa forma, como penso, alguém primeiro persuadiu
os mortais para achar que existe uma estirpe de seres daímones.

Crítias, o tirano, século V A.E.C.


apud Sexto, o empírico, Contra os Físicos I, 54-57, século II-III E.C.
(tradução nossa)
RESUMO

ATEÍSMO NA ANTIGUIDADE:
ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA A INSERÇÃO DO TEMA NA
ANTIGUIDADE EGÍPCIA, MESOPOTÂMICA E ISRAELO-JUDAÍTA E
PRESSUPOSTOS PARA O ESTUDO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

Jônatas Ferreira de Lima Souza

Orientador: Prof. Dr. Luiz Karol


Coorientador: Profª. Drª. Arlete José Mota

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Letras Clássicas: Culturas da Antiguidade Clássica: Estudos Interdisciplinares, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Letras Clássicas.

Como o próprio título desta dissertação indica, não objetivamos um estudo que busca
evidências para a promoção de uma identidade ateísta na Antiguidade, seja Clássica ou não.
Nesta, discutiremos a possibilidade do estudo do Ateísmo como tema, através de recursos
teóricos e metodológicos que colocaremos em análise, para propormos diversas
problematizações entorno desse tema, junto aos estudos de Etimologia, Egito Antigo,
Mesopotâmia e Israel, além de uma hipotética ponte ao mundo grego. Questionaremos palavras
como ateu e deus, promoveremos o trato com a etimologia, com teorias sobre crenças antigas,
mitologia, cosmogonia, questões de tradução, além de outros conhecimentos que venham a nos
ajudar a dialogar com a nossa proposta de investigação, como a questão artística, o ceticismo e
o pessimismo. Seja qual for o recurso teórico proposto, atentaremos para o diálogo
interdisciplinar entre Antiguidade e presente.

Palavras-chave: Ateísmo; Antiguidade; Etimologia; Egito Antigo; Mesopotâmia; Israel.

Rio de Janeiro, RJ

Março de 2019
ABSTRACT

ATHEISM IN ANTIQUITY:
INTRODUCING ITS THEORETICAL AND METHODOLOGICAL ASPECTS IN
EGYPTIAN, MESOPOTAMIAN AND ISRAELI-JEWISH ANTIQUITY AND
PROVIDING ASSUMPTIONS FOR ITS STUDY IN CLASSICAL ANTIQUITY

Jônatas Ferreira de Lima Souza

Orientador: Prof. Dr. Luiz Karol


Coorientador: Profª. Drª. Arlete José Mota

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Letras Clássicas: Culturas da Antiguidade Clássica: Estudos Interdisciplinares, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Letras Clássicas.

As the title itself shows, we do not aim to complete a study that seeks for evidence to
promote an atheistic identity in Antiquity, whether Classical or not. Here, we will discuss the
possibility of the study of Atheism as a theme, by finding theoretical and methodological
resources that we will analyze, and proposing several questions around this theme, with studies
on Etymology, Ancient Egypt, Mesopotamia and Israel, as well as a hypothetical bridge to the
Greek world. We will work with Portuguese words like ateu and deus, their etymology, and
with theories about ancient beliefs, with mythology, cosmogony, translation issues, resulting in
knowledge that will help us to dialogue with our research proposals, e.g. the universe of artistic
activity, as well as skepticism and pessimism. Whatever may be the suggested theoretical
resource, we will consider the interdisciplinary dialogue between Antiquity and nowadays.

Keywords: Atheism; Antiquity; Etymology; Ancient Egypt; Mesopotamia; Israel.

Rio de Janeiro, RJ

Março de 2019
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01: Estela de Naram-Sin, rei da Acádia 50


FIGURA 02: Mapa do Mundo Indo-Europeu 84
FIGURA 03: Mapa das línguas não indo-europeias 84
LISTA DE DIAGRAMAS

DIAGRAMA 01: Alguns dos radicais aqui relacionados com o grau zero *diw- 38
DIAGRAMA 02: *diw-: derivados pressupostos cujos radicais têm características fricativas 38
DIAGRAMA 03: *diw-: derivados pressupostos cujos radicais têm características oclusivas 39
DIAGRAMA 04: Hipótese da instanciação de deus e θεός, pelo grau zero *diw- 40
DIAGRAMA 05: Egito Antigo: arquétipo contextual ateísta não helênico 150
DIAGRAMA 06: Mesopotâmia: arquétipo contextual ateísta não helênico 151
DIAGRAMA 07: Israel-Judá: arquétipo contextual ateísta não helênico 152
ABREVIATURAS

A = altura
a.C. = antes de Jesus Cristo
A.E.C. = antes da era comum; antes da era cristã
AAG = antigo alto germânico
AI = antigo inglês
AN = antigo nórdico
apud = originado de; citado por; citação indireta
cf. = confira em; confronte em
d.C. = depois de Jesus Cristo
E.C. = era comum; era cristã
e.g. = exempli gratia, por exemplo
EA = El-Amarna, cidade egípcia
ed. = edição ou editor
et al = e outros autores
etc. = et cetera, e outras coisas
f. = folhas
Fr. = fragmento
gen. = genitivo
gr. = grego
Ibid. = ibidem, mesmo autor e obra acima
IE = indo-europeu
in. = na obra; contida em
KN = Cnossos, sítio arqueológico de Creta
L = largura
lat. = latim
loc. cit. = loco citato, mesma página acima
MAG = médio alto germânico
n. = número
op. cit. = opus citatum, obra citada acima
org. = organização
p. = página
PGm = proto-germânico
PIE = protoindo-europeu
PN = nome pessoal
PY = Pilo ou Pilos, cidade grega
s. u. = sub uerbo ou sub uoce, verbete ou léxico consultado
sâns. = sânscrito
sic = dessa forma; citação como está
UK = Reino Unido
v. = volume, verbo ou verso
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 15

2 CAPÍTULO I - ΑΘΕΟΣ, ΖΕΥΣ E DEVS: PRESSUPOSTOS ETIMOLÓGICOS E


ASPECTOS TEÓRICOS INICIAIS 22
2.1 Explorando ἄθεος: as possibilidades metodológicas da Etimologia 24
2.1.1 Pressupostos etimológicos e hipóteses: θεός e deus 31
2.1.2 Etimologia e definição do prefixo ἀ (alfa) privativo 45
2.2 Problemáticas do culto ao celeste e sua inserção na sociopolítica da crença 48
2.2.1 As palavras e o celeste na formação da comunidade helênica 56
2.3 O que esperar da situação do Ateísmo como tema no mundo antigo 65

3 CAPÍTULO II - COSMOGONIA E MITO: A VALIA DO BEM, DO JUSTO E DA


ORDEM 71
3.1 Uma nova etapa de investigação 72
3.2 Da etimologia hipotética ao campo de possibilidades teóricas 73
3.3 Os seres celestiais sob olhares teóricos: egípcios, semitas e helenos 78
3.3.1 Níveis ou camadas de imagem e mitos 80
3.3.2 Quando o documento não diz claramente o que queremos supor 82
3.3.3 O Sol, autonomeado, cria tudo e todos 87
3.3.4 Mitologia: possibilidades 90
3.3.5 Na época que, em cima, os celestes não possuíam nomes 92
3.3.6 O coletivo das forças todo-poderosas criou os celestiais 101
3.3.7 Sob o resultado de uma tradição celeste? 103
3.3.8 Quando o documento informa especificidades próprias 107
3.4 Justiça e Bondade: uma lógica do imaginário entorno das coisas celestiais? 110

4 CAPÍTULO III - POTENCIALIDADES DO ATEÍSMO COMO TEMA ANTES DO


REFERENCIAL GREGO 115
4.1 Problemáticas entorno de pessimismo e ceticismo 115
4.1.1 Cético ou ateu? 125
4.2 Egito Antigo: ter e não ter a bênção em seu imo 127
4.3 Mesopotâmia: o mau, um “ateu”? 135
4.4 Israel-Judá: um protótipo “ateísta”? 145
4.5 Aspectos gerais sobre o Ateísmo como tema para Antiguidade 152
4.5.1 Problemática do conceito 156

5 CONCLUSÃO 162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 168

APÊNDICE A – TRANSLITERAÇÃO GREGO E HEBRAICO 181

APÊNDICE B – BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO 182

ANEXO A – TRANSCRIÇÕES HIEROGLÍFICAS 202

ANEXO B – ENŪMA ELIŠ, TABLETE I, 1-24 205

ANEXO C – HESÍODO, TEOGONIA, 114-138 208

ANEXO D – ÉSQUILO, AGAMÊMNON, 205-239 209

ANEXO E – SÍMBOLOS 211


15

1 INTRODUÇÃO

O tema deste trabalho, o Ateísmo na Antiguidade, apareceu durante a pesquisa e a escrita


de nosso trabalho de conclusão de curso, de 2013.1 Dele, identificamos um excerto de Flávio
Josefo, em seu Contra Apionem, obra de finais do século I E.C., que, segundo o referido autor
judeu-romano, mostrava o ateísmo e a misantropia como acusações injuriosas ao seu povo, o
povo judeu. No momento, esse detalhe não foi explorado com profundidade, pois, nesse
trabalho monográfico, nosso intuito fora outro. Contudo, a intriga desceu até nós. Surgiu a
dúvida, a desconfiança. Até aí, não havíamos pensado que o ateísmo poderia ter uma origem
diferente o suficiente para que grupos “religiosos” antigos, ou seja, que prestam culto a alguma
divindade, fossem cogitados como “ateus”. Ou, “acusados” de “ateísmo”, como referiu Josefo.
Afinal, que lógica teria esse “ateísmo”, entre romanos ou gregos, que fora capaz de ser um tipo
de acusação a grupos que, como sabemos, são religiosos e creem em uma divindade, como no
caso de judeus e cristãos? Segundo nossa primeira pesquisa, vimos que os cristãos também
foram acusados de “ateísmo”.
Em nosso senso comum, ateísta ou ateu tanto pode indicar alguém que realiza uma
leitura de mundo sem religiões, quanto alguém que descredita argumentos de uma religião que
tenha o nome de alguma divindade como norte moral ou ético, principalmente. Ainda em nosso
senso, ateus tendem a desvalorizar a explicação que tais crentes dão sobre o passado, sobre a
história. Devido a isso, os crentes dificilmente falam bem de um ateísta. Para esses, é provável
que “ateu” remeta à heresia, ou seja, a um indivíduo que desagrada a Deus, logo, um potencial
mal social. Pois, Deus, para os crentes, é sinônimo de bondade e justiça verdadeiras. Para estes,
se há um ateu, dessa forma, há alguém que não é nem bom, nem justo. Ou, o ateu acredita em
bondade e justiça falsas. Nesse senso, aos crentes, Deus é senhor da história humana, tendo-a
totalmente sob seu controle, pois é verdadeiro, ativo e digno de constante adoração; aos ateus,
foi a humanidade quem se esforçou (e assim continua) para tornar a nossa sociedade mais justa,
mesmo que tenha que usar o nome “Deus” para isso.

1
T.C.C. sob a orientação da professora Márcia Severina Vasques, doutora em Arqueologia, do Departamento de
História da UFRN. Cf. LIMA, Jônatas Ferreira de. Jerusalém: a última fronteira no oriente – a conquista da Judeia
(70 E.C.) nas Histórias (Livro V) de Tácito. 2013. 290 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
História) – Faculdade de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. Disponível em:
http://repositoriolabim.cchla.ufrn.br/handle/123456789/567. Acesso em: 4 fev. 2019. Ou, Disponível em:
https://www.academia.edu/6145677/JERUSALÉM_A_ÚLTIMA_FRONTEIRA_NO_ORIENTE_A_CONQUIS
TA_DA_JUDEIA_70_E.C._NAS_HISTÓRIAS_LIVRO_V_DE_TÁCITO. Acesso em: 4 fev. 2019.
16

Eis aí nosso senso, em suma. No caso brasileiro, temos em hegemonia religiosa o


cristianismo e suas várias denominações. Isso pode significar que, em alguns ambientes neste
país, neste momento, ou há um crente maldizendo um ateu, ou um ateu maldizendo um crente
– sendo que o primeiro caso pode ser a nossa maioria.2 Lembremos aqui que exceções são
previsíveis, para ambos os casos. No geral, está claro para nós que os ateus não acreditam em
Deus ou em deuses como verossímeis em nossa realidade, como personagens reais, que de fato
interferem na vida dos seres vivos e inanimados desta terra (e do universo). Se elevarmos um
pouco mais nosso senso comum, veremos que existem algumas crenças humanas que dão mais
foco a meditações e filosofias de vida do que a uma ou mais divindades. Pode ser o caso do
Budismo, por exemplo.
Se, nesse breve senso apresentado, podemos perceber uma relevante disparidade entre
crentes e ateus, como poderiam os cristãos e os judeus antigos terem sido acusados de ateístas
ou ateus? Para a introdução dessa problemática, consultamos alguns autores que tiveram essa
questão como base de suas pesquisas. Aqui, destacamos Anders Drachmann, Atheism in Pagan
Antiquity, de 1922, e o recente trabalho de Tim Whitmarsh, Battling the gods: the struggle
against religion in ancient Greece (Confrontando os deuses: a contenda contra religião na
antiga Grécia), de 2015.3 Tendo realizado essa investigação introdutória, percebemos a
complexidade desse assunto. Principalmente, a complexidade social do tema na Grécia Antiga
e na Roma Imperial. Vimos que esse tema é academicamente explorado principalmente por
grandes centros de pesquisa europeus e estadunidenses. No Brasil, o tema é quase ausente das
universidades, das ciências humanas, em particular, sendo assunto certo para discursos

2
Designamos por “crente”, nesses casos, aquele indivíduo que crê, principalmente na Bíblia, segundo a sua
vertente interpretativa ou grupo religioso.
3
Para outras cf. BAGGINI, Julian. Atheism: A very Short Introduction. Oxford: University Press, 2003;
BREMMER, Jan. Atheism in Antiquity. In: MARTIN, Michael (ed.). The Cambridge Companion to Atheism.
Cambridge: University Press, 2007. p. 11-26; BULLIVANT, S.; RUSE, M. The Oxford Handbook of Atheism.
Oxford: University Press, 2013; DWORKIN, Ronald. Religion Without God. Cambridge, Massachusetts, London:
Harvard University Press, 2013; FILONIK, Jakub. Impiety Avenged: Rewriting Athenian History. In: CUEVA,
E. P.; MARTÍNEZ, J. (ed.). Splendide Mendax. Rethinking Fakes and Forgeries in Classical, Late Antique, and
Early Christian Literature. Groningen: Barkhuis, 2016. p. 125-140; MARÉCHAL, Sylvain. Dictionnaire des
Athées. Ancien et Modernes. 2. ed. Bruxelles: Chez L’Éditeur, 1833; MCCORMICK, Matt. Atheism: Oxford
Bibliographies Online Research Guide. California: Oxford University Press, 2011; SMART, J J. C.; HALDANE,
J. J. Atheism and Theism. 2. ed. Cornwall, UK.: MPG Books Ltd, Blackwell Piblishing, 2003 [original: 1996];
WINIARCZYK, Marek. Diagoras of Melos. A Contribution to the History of Ancient Atheism. Translation by
Witold Zbirohowski-Kościa. Berlin, Boston: Walter de Gruyter GmbH, Hubert & Co, GmbH, 2016. Essas
referências bibliográficas são indicações que consideramos básicas ao tema do Ateísmo, principalmente para a
questão na Grécia Clássica. No desenvolvimento dos capítulos, apresentaremos mais. Assim como essas, a maior
parte das nossas referências e fontes estão disponibilizadas na Internet em bibliotecas online, como no Internet
Archive (https://archive.org/).
17

religiosos ou teológicos.4 Ele se torna ainda mais raro se o conduzirmos para outras sociedades
antigas, que não sejam Grécia ou Roma.
Depois dessa leitura, essa lacuna, ou seja, a ausência de estudos sobre o Ateísmo como
tema fora do âmbito greco-latino, passou a chamar bem mais a nossa atenção. Diante disso,
promovemos uma pesquisa que findou neste trabalho. Este trabalho recebeu grande suporte das
disciplinas conduzidas nesta Pós-Graduação. Cada curso promovido deu sua contribuição.5
Nossos orientadores interferiram com preciosos subsídios linguísticos, para a fluência dos
nossos argumentos. Este trabalho interdisciplinar é o resultado de todo esse conjunto. Neste,
encontraremos: estudos de etimologia e formação de palavras, língua grega antiga, língua latina,
língua sânscrita, língua egípcia ou hieroglífica, língua hebraica, língua acadiana, além da
promoção de diversas teorias e métodos de pesquisa para disposição de outros pesquisadores.
O cerne teórico-metodológico desta pesquisa vem da História dos Conceitos, de
Reinhart Koselleck (1923-2006), historiador alemão, por sua obra Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos, de 1979. Com referência a sua teoria e
metodologia, a História dos Conceitos preocupa-se com a semântica das palavras, isto é, como
uma palavra evoluiu para ser convertida em potencial conceito histórico, no tempo. Nossa
principal palavra em investigação será “ateu”. Diversas teorias podem juntar-se à História dos
Conceitos, pois sempre é necessário estabelecer a melhor relação entre a linguagem da fonte
com seu contexto. Por isso, o estudo dos termos, a filologia, a semasiologia, a onomasiologia,
podem ser de grande contribuição ao pesquisador, nesse quesito. Cada texto possui uma
situação sociopolítica, uma língua, ou mais de uma, a língua do autor, do contexto do autor, de

4
Em português, destacamos: ALVAREZ, Alejandro M. A dessacralização da lei em Atenas: a passagem do
thesmós ao nómos ocorrida entre os séculos VI e IV a. C. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e
Teoria do Direito (RECHTD), Unisinos, 6(I): 86-93, jan.-jun., 2014; COSTA, Hermisten. A “doença” do ateísmo
entre os gregos. In: SIMPÓSIO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA DAS
RELIGIOES, 11., 2009, Goiânia, 2009. Anais [...]. Goiânia, UFG: Sociabilidades religiosas: mitos, ritos e
identidades, 2009. p. 1-9; MARTINS, Ivo. Pessimismo literário na Disputa sobre o suicídio e na Morte de Enkidu.
CADMO: Revista de História Antiga, Lisboa, n. 22, p. 33-42, 2011; RIBEIRO, Thiago H. P. Coagindo os Deuses:
o uso de ameaças e intimidações às divindades do Egito Antigo em encantamentos do Reino Novo (séculos XVI-
XI A.E.C.). 173 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2018. Essas são
algumas produções acadêmicas em língua portuguesa, acessíveis na Internet, que lidam com certas problemáticas
que dialogam com a temática Ateísta desenvolvida neste trabalho, como o problema do bem e do mal, bem como
do pessimismo e do crime contra a norma social ou contra a sua moral.
5
Dentre os quais destacamos: “Etimologia e formação de palavras em grego para a pesquisa em Letras Clássicas”,
curso ministrado pelos professores da casa Ricardo de Souza Nogueira e Rainer Guggenberger; “Introdução à
Língua egípcia antiga”, curso ministrado pelos professores convidados Marcos José de Araújo Caldas e Nely
Feitoza Arrais; “Introdução Geral a Língua Sânscrita I”, curso ministrado pelo professor convidado Òscar Pujol
Riembau; e o curso promovido pelo Instituto de História da UFRJ “A Escrita da História – aspectos teóricos,
metodológicos e estilísticos na construção do texto historiográfico”, ministrado pelos professores José D’Assunção
Barros e Débora El-Jaick Andrade.
18

povos que o precedem. No caso de “ateu”, qual sua etimologia? Qual a relação de seu
significado etimológico com o social? Que termo(s) ou sentido(s) o precede?
Assim, o objetivo da História dos Conceitos é promover uma crítica de fontes, com
particular atenção ao termo de interesse, além de todos aqueles que se juntam para torná-lo um
potencial conceito, que sejam também relevantes do ponto de vista sociopolítico. A
historicidade da língua e dos povos são interessantes para essa abordagem. Partindo da ideia de
que uma palavra tenta tornar palpável intelectualmente um sentido ou conceito, em uma
sociedade, supondo que não haja equivalência para a palavra “ateu” fora da Grécia Antiga, a
onomasiologia será de grande ajuda, no estudo fora desse âmbito.6 Neste caso, daremos espaço
a dimensões que ultrapassam o fator da língua, dessa dimensão linguística original. Com isso,
é possível que propostas mais tradicionais, como estudos teológicos, que certamente perpassam
a História do Ateísmo, nessa investigação histórica, tornem-se ainda mais claros e precisos com
a História dos Conceitos. Assim, este trabalho também preza por contribuir com
problematizações ao amplo tema de estudo do ateísmo antigo.
A perspectiva sincrônica de análise torna-se importante aqui, por mostrar ao leitor as
diferenças contextuais e semânticas entre uma palavra do presente, em uso corrente, e sua
ancestral. Aqui cabe o nosso esforço em sugerir traduções mais condizentes com a época em
recorte, mesmo que seja mais interessante a palavra em seu tom “original”. Por exemplo: qual
o significado da palavra “deus”? O que essa palavra tentou expressar em suas origens mais
remotas? É importante coletar os vários termos que podem designar uma palavra no passado,
para compreender a sua potencialidade como conceito. Esse fator é essencial para a perspectiva
diacrônica da palavra. Sincronia e diacronia, portanto, contribuem, na melhor das hipóteses,
para a promoção de uma história do termo em investigação, ou de seus sentidos. Que lógica
pode ter motivado os antigos gregos a forjarem a palavra “ateu”? Que ideias pretendiam
demonstrar ao cunhar tal palavra? Essas ideias podem ser localizadas de forma sociopolítica
em outras sociedades antigas?
Segundo a História dos Conceitos, uma palavra pode ter permanecido com sua forma
ligeiramente igual ao longo das eras, como “deus” e “ateu”, todavia, pode ter portado vários
outros sentidos que não permaneceram até o nosso uso corrente. Sentidos que permaneceram,

6
Pois, a onomasiologia é um recurso metodológico de abordagem de conceitos ou termos em textos que tem por
ponto de partida uma significação ou definição já conhecida, neste caso, de ciência do próprio pesquisador. Assim,
tendo previamente investigado as significações em dicionários especializados em léxico e etimologia do grego
antigo, por exemplo, lançamos olhares tanto para termos quanto para significações, sentidos sociais, que
semanticamente consideramos dialogar com o termo grego em questão, neste caso, “átheos”, fora desse âmbito
helênico.
19

ou que se alteraram, em seu processo, até os sentidos atuais, de uso corrente, são perspectivas
da análise em diacronia. Mas, para o caso da diferença entre pontos, é necessária uma ótica
sincrônica da palavra. Na História dos Conceitos, são as palavras e seus sentidos que ganham
especial destaque. No caso, palavras que sejam potenciais conceitos, isto é, relevantes para o
aspecto sociopolítico de uma sociedade, que sejam generalizantes e polissêmicos, e promovam
a homogeneização entre outras palavras, ou seja, juntas remetendo a outra. Que palavras juntas
formam o campo semântico de “ateu”? Qual a potencialidade desse termo como conceito?
Como isso se deu no aspecto extralinguístico? Que fatores foram externos à língua, para que
crentes do passado fossem acusados de “ateísmo”? O que, afinal, essa palavra queria designar?
Para o desenvolvimento desse recurso teórico-metodológico da História dos Conceitos,
dividiremos o tema do Ateísmo em três capítulos. O primeiro capítulo tratará de palavras e de
aspectos oriundos da investigação etimológica. Os termos que nos interessam serão analisados
por meio de dicionários etimológicos. Dicionários de língua indo-europeia, protoindo-europeia
e proto-germânica, por exemplo, serão utilizados. Além desses dicionários etimológicos,
dicionários específicos para língua grega clássica e latina serão utilizados também. Essa fase
etimológica do trabalho consistirá, principalmente, na busca pelo sentido mais arcaico do termo
“deus”, bem como do grego θεός (theós). Além disso, outros termos nos serão interessantes,
como o grego Ζεύς (Zeus) e o latino Iuppiter (Júpiter). No decorrer desse capítulo,
aprofundaremos ainda mais a metodologia e a teoria que contribuirão à História dos Conceitos.7
Assim, promoveremos uma definição menos metafórica, precedente aos períodos Arcaico e
Clássico da Grécia Antiga, com relação aos sentidos dos termos gregos ἄθεος (átheos) e θεός –
igualmente, do latino deus. Na segunda fase desse capítulo, começaremos a introduzir a palavra
em contexto social, para assim identificarmos a sua relevância para a ordem sociopolítica das
crenças antigas. Ou seja, veremos o quanto θεός seria importante para estruturação dessas
sociedades antigas.
O segundo capítulo ampliará ainda mais as questões teóricas iniciadas no primeiro.
Nesse trabalharemos com mitologia e cosmogonia. Além disso, trabalharemos com técnicas de
observação textual que serão importantes para estudos de identidade e alteridade entre povos
antigos. Os povos não greco-latinos que selecionaremos para este trabalho serão os egípcios
antigos, os mesopotâmicos e os israelitas, pois, no geral, são de conhecimento comum do povo

7
Nesse capítulo, transliteraremos alguns termos gregos, segundo nosso Apêndice A. No geral, isso não ocorrerá
nos demais, exceto para termos sânscritos, hieroglíficos, acadianos e hebraicos. Para o caso hebraico, o texto
original será mantido em nota de rodapé, sem transliteração.
20

brasileiro.8 Abordaremos a possibilidade de se estudar o tema do Ateísmo mesmo em


sociedades que não tenham cunhado para si um equivalente lexical. Aí dá-se a importância da
definição que será proposta no primeiro capítulo e da onomasiologia. Diferente do primeiro,
este segundo capítulo trará textos, excertos de antigas cosmogonias dessas mencionadas
sociedades9, além da grega10. Nesse sentido, quanto à abordagem textual, trabalharemos com
as indicações da História dos Conceitos, apresentadas anteriormente.
O terceiro e último capítulo trará ao leitor as nossas análises entorno desse estudo do
Ateísmo como tema, junto aos excertos que selecionamos da cultura egípcia, mesopotâmica e
israelita.11 Será nesse que poderemos conferir a potencialidade do tema para povos que não
cunharam um termo equivalente ao grego. Que tipos de textos são interessantes para
explorarmos o tema? Será que a onomasiologia nos ajudará a identificar esses sentidos? Afinal,
que sentidos serão? Qual a gênese intelectual que se torna pano de fundo para os sentidos do
grego ἄθεος? Que complexidade semântica se encontra em nosso “ateu”, que deixamos
atualmente passar em nosso uso cotidiano? O que, por fim, consideramos e não mais
consideramos nos sentidos dessa palavra? Essas, e muitas outras problemáticas serão levantadas
neste trabalho.
Muitos textos de língua estrangeira serão utilizados. Assim, dividiremos nossas
traduções da seguinte forma: a) textos de língua inglesa, francesa, espanhola serão todos de

8
Aqui justificamos, no geral, o motivo de não adentrarmos em outras sociedades antigas, como a chinesa ou a
indiana, até mesmo na medo-persa. Optamos por egípcios, mesopotâmicos e israelitas não só por serem nomes
bem populares entre os brasileiros, mas também por serem povos que trocaram experiências com os helenos antes
do domínio macedônio de Alexandre, no século IV A.E.C. (elemento este que não nos interessou como recorte).
Essas sociedades, assim cremos, também instigam curiosidade e o interesse do indivíduo pelo passado longínquo,
pela História Antiga. Da mesma forma, são três sociedades centrais para a narrativa israelo-judaíta, isto é, povos
bastante mencionados na Bíblia (Antigo Testamento ou Tana'ḵ), dentre os quais esse tema do Ateísmo é pouco
explorado academicamente, se compararmos com a questão na Grécia e no Império Romano.
9
Egito Antigo: O Surgimento de Rá (compilação entre os séculos XX-XII A.E.C.), excerto coletado e adaptado
por Donald Mackenzie (1913); Mesopotâmia: Enūma Eliš (primeiros versos, compilação do século VII A.E.C., da
biblioteca de Assurbanípal); Israel Antigo: Gênesis (primeiros versículos, compilação entre os séculos IX-VI
A.E.C.).
10
Grécia Antiga: Teogonia, de Hesíodo (século VIII-VII A.E.C.), sobre a cosmogonia.
11
Para a cultura egípcia antiga: Ensinamentos de Ptah-hotep (papiro Prisse, séculos XXI-XVII A.E.C.), Reflexões
de um desesperado (papiro Berlim 3024, séculos XIX-XVIII A.E.C.) e o Canto de um harpista (papiro Harris 500,
séculos XIX-XI A.E.C.) – fontes indicadas pelos professores da disciplina “Introdução à Língua egípcia antiga”,
fontes que evocam sabedoria, angústia e sarcasmo, respectivamente; para a mesopotâmica: A poesia do justo
sofredor (séculos XVI-X A.E.C.) e A teodiceia babilônia (séculos XI-II A.E.C.) – a partir das fontes indicadas
pelos professores do referido curso de egípcio, procuramos elementos semelhantes na coletânea de textos
mesopotâmicos traduzidos ao inglês por Benjamin Foster, e disso selecionamos as mais relevantes para serem
apresentadas e comentadas; para a israelo-judaíta: Salmo 14 ou Salmo 53 e Salmo 10 (compilação entre os séculos
VI-V A.E.C.) – são salmos que evocam ao ouvinte o problema daqueles que se afastam do divino ou o negam.
Além desses, referiremos também à cultura grega, através de Ésquilo, Agamêmnon (século V A.E.C.) – uma peça
trágica que mostra consequências da interpretação equivocada da vontade do divino pelos mortais.
21

nossa conta; b) textos de língua hebraica serão de nossa conta; c) textos gregos não serão de
nossa conta; d) textos hieroglíficos não serão de nossa conta; e) textos acadianos não serão de
nossa conta. Assim, mostramos que aqui trabalharemos com níveis de tradução: 1) textos com
línguas modernas: todos por nossa conta; 2) textos antigos: a) tradução direta: latim e hebraico;
b) tradução de tradução: grego, hieroglífico e acadiano; c) tradução parcial: grego e acadiano.
Todos os textos de línguas atualmente correntes serão traduzidos por nós, salvo raras exceções,
que serão avisadas no momento da ocorrência. Nesse caso, os excertos que foram traduzidos
estarão inclusos em nota de rodapé. Textos antigos, como grego e acadiano, sofrerão uma
tradução parcial, ou seja, nosso texto será a tradução de uma tradução, seja inglesa ou
espanhola, por exemplo, e que constarão em nota de rodapé, mas, os termos gregos e acadianos
que nos interessam serão destacados na citação. Esses trechos ou palavras destacadas serão de
nossa conta. Os textos “originais” estão no anexo deste trabalho. Os textos em hieroglífico já
estarão em tradução portuguesa, da parte do historiador Emanuel Araújo (1942-2000), mas os
termos que nos interessam mostraremos como consta nos seus dicionários específicos. Por fim,
a tradução dos textos em hebraico será toda de nossa parte.
22

2 CAPÍTULO I – ΑΘΕΟΣ, ΖΕΥΣ E DEVS: PRESSUPOSTOS ETIMOLÓGICOS E


ASPECTOS TEÓRICOS INICIAIS

A temática do Ateísmo para um tempo mais longínquo do nosso ou para uma


Antiguidade Pré-Clássica (que não grega ou romana) deve causar algum estranhamento ao leitor
que ainda não havia pensado nessa questão. Primeiramente, o estranhamento dos termos ou dos
conceitos atuais é necessário para que essa reflexão ocorra. Em nosso caso, são eles: “ateu” e
“ateísmo”, termos dos quais temos a ciência de que são bem recorrentes em nosso tempo,
principalmente entre pessoas religiosas, para referirem-se a alguém entendido como
“descrente”, bem como ao próprio indivíduo ou grupo que assume essa identidade para si: o ser
ateísta ou ateu. Mas acerca do ser ateu ou do ser chamado de ateu na contemporaneidade, de
sua particularidade que já pressupõem uma complexidade ao nosso tempo, deixaremos para
outra pesquisa. Nesta, como já foi dito, daremos foco às implicações que pudemos abstrair da
temática dos ateus na Antiguidade.
No entanto, pensamos se os citados termos, definidos pelo Dicionário Houaiss da língua
portuguesa (2009)12, não trazem alguma referência sobre essa diferença hipotética entre um
ateu dos nossos tempos e um pressuposto ateu da Antiguidade. Em tal dicionário, o verbete
“ateu” é definido e explicado da seguinte forma: “que ou o que não crê em Deus ou nos deuses;
ateísta; que ou aquele que não revela respeito ou deferência para com as crenças religiosas
alheias; ímpio, herege.” Seria possível, com isso, corresponder esse previamente hipotético “ser
ateu na Antiguidade” com o que nos foi apresentado como “ateu” nesse nosso dicionário
contemporâneo? O que quer dizer: “que não crê em Deus ou nos deuses”? Quem ou o que é
“Deus”? Ou quem são esses “deuses”? Decerto que a segunda parte dessa caracterização nos
pareceu mais clara: “não revela respeito [...] para com as crenças religiosas alheias; ímpio,
herege.” É possível que essa segunda definição, aos nossos olhos do presente, possa estar
relacionada com as nossas conhecidas e chamadas “religiões dos livros”, alcunhadas
comumente de monoteístas: cristianismo, islamismo e judaísmo, pois, para nós é notório que
os sinônimos de “ateísta” apresentados pelo Dicionário Houaiss são “ímpio” e “herege”.13 Em
certo viés do senso comum, tais sinônimos são colocados como adjetivos recorrentes no

12
Daremos preferência ao referido dicionário com ortografia atualizada por ser um dos que mais atenderam as
nossas necessidades de diálogo com o senso comum. Independentemente do título, os dicionários de língua
portuguesa são utilizados pelo cidadão tanto no meio público quanto no privado. Assim, ao colocarmos as acepções
de um destes em problematização, promoveremos a sua crítica ao senso comum.
13
“Monoteísmo” está entre um dos muitos termos vindos do campo teológico que ainda se encontra pouco
problematizado pelos historiadores brasileiros, assim como os termos: “religião”, “culto”, “magia”, “ritual”,
“heresia”.
23

discurso dessas religiões ao falarem daqueles que não pertencem ao seu credo ou daqueles que
não o valorizam. Vamos retomar essa questão mais adiante. Mas, seria ou não possível
encontrar tal “ateu” da Antiguidade em alguma dessas definições?
Ao remetermos à Antiguidade, estamos localizando a temporalidade da nossa
investigação. Porém, é uma designação genérica que envolve uma contagem ampla e uma
datação demasiada longa. Nosso recorte foi estabelecido para entrarmos na particularidade do
tema na sua gênese conhecida: a língua grega (e influências). Nossos materiais de investigação
serão os textuais, não apenas para a questão teórica, mas também para as análises etimológicas,
semânticas ou de conteúdo, ou seja, destacaremos suas temporalidades no momento da menção
desses textos, e não necessariamente privilegiando certa ordem cronológica. Concernente ao
recorte textual, destacaremos excertos de documentos que foram previamente explorados por
especialistas e que possuem alguma ligação com o prévio sentido do termo grego átheos
(ἄθεος)14 ou do termo latino atheus/atheos, com o intuito de exemplificar e elucidar as nossas
pretensões.
Mas, como vamos enxergar esse “ateísmo” na Antiguidade? Nossa problematização
inicial do tema do Ateísmo no mundo antigo surgiu da leitura de uma passagem do Livro II do
Contra Apionem (95 E.C.) do historiador judeu-romano Flávio Josefo (37-100 E.C.), onde
ficamos cientes de que os judeus de sua época eram acusados (ou injuriados) de serem ateus
por alguns autores de procedência intelectual ou filosófica grega. Eis a passagem: “Sobretudo
porque Apolônio não reuniu suas acusações, como Ápion, sem que as tenha espalhado aqui e
ali, algumas vezes injuriando-nos como ateus e misantropos, e acusando-nos, outras vezes, de
covardes e mesmo em algum lugar, de insensatos”.15 Podemos perceber que, segundo Josefo,
os judeus não foram acusados ou injuriados somente de ateístas pelos autores mencionados –
Apolônio16 e Ápion17. Estariam esses adjetivos de injuria – misantropos, covardes e insensatos

14
Cf. a nossa tabela de transliteração que se encontra no Apêndice A.
15
JOSEFO, Contra Apión II, 14, 148. “Sobre todo porque Apolonio no ha reunido sus acusaciones, como Apión,
sino que las ha esparcido aquí y allá, unas veces injuriándonos como ateos y misántropos, y acusándonos otras
de cobardes e incluso en algún lugar, de insensatos”. Versão espanhola da Editorial Gredos por Margarita
Rodríguez (1994, p. 260). Para o texto grego cf. “ἄλλως τε καὶ τὴν κατηγορίαν ὁ Απολλώνιος οὐκ ἀθρόαν ὣσπερ ὁ
Ἀπίων ἔταξεν, ἀλλὰ σποράδην καὶ διὰ πάσης τῆς συγγραφῆς ποτὲ μὲν ὡς ἀθέους καὶ μισανθρώπους λοιδορεῖ, ποτὲ
δ’ αὖ δειλίαν ἡμιν ὀνειδίζει, ·και τοὔμπαλιν ἔστιν ὅπου τόλμαν κατηγορεῖ καὶ ἀπόνοιαν” (JOSEPHUS, Against
Apion, In: Loeb, 1926, p. 350).
16
Apolônio Molon, nascido em Alabanda na Cária (oeste da Ásia Menor), foi um renomado retórico que atuou
principalmente na ilha de Rodes, no mar Egeu. Lá, foi professor de filosofia helênica de Cícero e Júlio César no
século I A.E.C., nomes ilustres do mundo romano. Para mais cf. STERN, Greek and Latin Authors on Jews and
Judaism, 1976, p. 148-156.
17
Ápion foi um político, historiador, autor de língua grega nascido no Egito, que fez carreira como professor de
assuntos helênicos em Roma. Ficou mais conhecido por ter sido o representante greco-alexandrino contra os judeus
24

–, como afirmou Josefo, ligados ao campo semântico de “ateísta” na Antiguidade? Essa


problemática será mais desenvolvida nos futuros capítulos.
Retomando a definição de “ateu” do Dicionário Houaiss, poderíamos pensar que os
judeus dessa época não criam “em Deus ou nos deuses”? Ou não revelavam “respeito [...] para
com as crenças religiosas alheias”? Sendo chamados também de “ímpios” ou “hereges”? E por
quem mais, além dos gregos? Antes de trabalharmos com as implicações teórico-conceituais
dessa relação do “ateísmo” para Antiguidade com uma provável associação com “injuria”,
talvez um tipo de “acusação”, vamos investigar o aspecto etimológico da palavra grega,
explorando-a o suficiente para elucidar, não só as suas possibilidades semânticas, mas também
a sua estrutura morfológica, fonética, seus parentescos linguísticos, e que temas de estudo
poderemos extrair como centrais para darmos continuidade aos próximos capítulos.

2.1 Explorando ἄθεος: as possibilidades metodológicas da Etimologia

O cerne deste primeiro capítulo será a abordagem da investigação etimológica da


palavra “ateu”. Pensamos em testar nele métodos de análise etimológica, além de levantar
problemáticas e hipóteses ao longo de nossas investigações – sejam elas plausíveis ou não –
visando, no momento dessas abstrações, um convite ao exercício intelectual. Mas o que seria
etimologia? Para que recorremos à etimologia? Como é o seu fazer? “Etimologia” é uma
palavra do léxico português que, de acordo com o Dicionário Houaiss, data do século XIV e
tal verbete é definido como: “estudo da origem da evolução das palavras; disciplina que trata
da descrição de uma palavra em diferentes estados de língua anteriores, até remontar ao étimo;
origem de um termo, quer na forma mais antiga conhecida, quer em alguma etapa de sua
evolução”. Dessa forma, podemos notar que o etimólogo é um dos profissionais das palavras,
aquele que investiga a palavra no tempo histórico. Entendemos que essas informações, oriundas
dos estudos de etimologia, são importantes para compreender um contexto em particular.18
Além disso, cremos que essa ciência contribui para não incorrermos em anacronismos.
A incidência de anacronismos conduziria o leitor para impressões, comportamentos,
pensamentos ou palavras que não corresponderiam ou não existiriam relativamente aos homens

de Alexandria, estes representados por Filo (filósofo judeu), sobre a polêmica situação judaica na cidade, caso
levado ao imperador romano Calígula (37-41 E.C.). Para mais cf. STERN, op. cit., p. 389-416.
18
“Tal procedimento parte do princípio de traduzir significados lexicais em uso no passado para a nossa
compreensão atual. A partir da investigação de significados passados, tanto a história dos termos quanto a dos
conceitos conduz à fixação desses significados sob a nossa perspectiva contemporânea.” (KOSELLECK, Futuro
Passado, 2006, p. 104).
25

da época em estudo. Por mais que haja uma intenção didática, o pesquisador, ao deslocar um
conceito ou vocábulo moderno para uma época em que ele não existia ou onde sua compreensão
era distinta (uma semântica diferente para um termo igual, por exemplo), tal profissional estaria
falhando em sua ética e compromisso científico. Portanto, vemos como necessário esse esforço
intelectual e investigativo no momento em que estudamos um período em particular, seja na
Antiguidade, seja na Contemporaneidade.19
Para isso, existem meios ou métodos de investigação etimológica utilizados para
conhecermos a formação das palavras mais a fundo. Aplicaremos três desses em conjunto.
Vejamos os três e seus motivos: o primeiro, conforme Mattoso Camara Jr., em seu Dicionário
de Linguística e Gramática, de 195620, indica que a investigação de uma palavra passa pelo
estudo do seu étimo. O autor diferencia o étimo em “próximo” e “remoto”. O “étimo próximo”
está relacionado com o termo anterior imediato ao idioma de partida (que em nosso caso é o
português) e o “étimo remoto” é a forma de origem do étimo próximo. Para o autor, geralmente,
o étimo próximo pode ser uma língua românica parente (como a espanhola, a francesa, a italiana
e a romena), uma língua não românica (como a árabe ou a hebraica), ou mesmo a latina; já o
étimo remoto comumente será a latina e a grega antiga. Ou seja, nesse método, o pesquisador
observa as formas da palavra em estudo nos idiomas parentes (étimo próximo) e nas origens
documentadas mais antigas (étimo remoto).
O segundo método diz respeito às contribuições do filólogo Mário Eduardo Viaro, em
sua obra Etimologia, de 2011.21 Através dele, podemos avançar para a nossa próxima etapa de
aprofundamento da investigação etimológica. Essa etapa conta com a análise dos elementos
formadores da palavra, ou seja, os elementos mórficos que a constituem. Dentre esses elementos

19
“O anacronismo é o pesadelo do historiador, o pecado capital contra o método, do qual basta apenas o nome
para constituir uma acusação infame, a acusação [...] de não ser um historiador, já que se maneja o tempo e os
tempos de forma errônea. Assim, o historiador em geral evita cuidadosamente importar noções que sua época de
referência supostamente não conheceu, e evita mais ainda proceder comparações [...] entre duas conjunturas
separadas por séculos. Mas, com isso, o historiador corre inevitavelmente o risco de ser entravado, impedido de
audácia, ao contrário do antropólogo que, em condições análogas, recorre sem perturbação de consciência à prática
da analogia” (LORAUX, “Elogio do anacronismo”, 1992, p. 57). Consideremos aqui que o nosso tema de
investigação já requer de nós certas proposições mais audaciosas, que lancem novas analogias ou questões além
do tradicional.
20
CAMARA JR., 2009, p. 137-138. Joaquim Mattoso Camara Junior (1904-1970) foi um importante pesquisador
da língua portuguesa no seu tempo e suas obras são consideradas clássicos da área de estudos de língua.
21
VIARO, 2017, p. 99-100. Mário Viaro (1968-) é professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP),
especialista em etimologia, linguística e sociolinguística.
26

temos: os afixos22, as raízes23, os radicais24, as desinências25, etc., que, por meio de suas
caracterizações, abstraímos particularidades que o primeiro método ainda não nos revela, uma
vez que lida somente com a forma da palavra. Por meio dele, também será possível identificar
minúcias quanto às mudanças fonéticas e fonológicas da palavra em estudo.
Por fim, de acordo com os estudos em metodologia etimológica de Michael Clarke, em
seu artigo-capítulo “Semantics and Vocabulary”, de 201026, aplicaremos nosso terceiro método.
Essa etapa da investigação observa a conceituação diacrônica da palavra, seus diferentes usos
e seus significados. Quanto a esse modo de investigação chamou de “instanciação do termo”.
Consiste na busca pelo conceito ou significado mais antigo do termo pesquisado. O objetivo é
gerar uma hipótese que desconsidere as linguagens mais abstratas e metafóricas que foram
associadas à palavra para formular uma significação “mais simples”. Dessa forma,
perceberemos não só a polissemia da palavra, suas mudanças e vários usos ao longo do tempo,
mas também os seus “fósseis”, isto é, os elementos lexicais que caíram em desuso.27
No entanto, devido à complexidade do tema “Ateísmo” em relação aos estudos sobre a
Antiguidade Clássica, que por si só geram pesquisas à parte, aqui não aprofundaremos os
aspectos contextuais da palavra ἄθεος em seu âmbito de formação e significação social.28
Assim, neste primeiro capítulo, seguiremos com a busca pela sua significação etimológica
hipotética mais simples, oriunda de estudos do protoindo-europeu e que não levam em conta o
contexto de uso do vocábulo, isto é, em situação documental. Após essa busca, usando tais
considerações etimológicas, partiremos para o tema Ateísmo lançado para sociedades não
helênicas, sendo esse o principal foco de nosso trabalho. Com isso, esperamos contribuir com
um estudo etimológico e contextual que preceda a lógica do termo grego, para ampliarmos a

22
Prefixos, infixos e sufixos.
23
Parte mínima de palavras antigas, obtida por documentos ou por reconstruções fonéticas hipotéticas realizadas
através de comparações entre línguas antigas documentadas, que tenha possivelmente originado formas posteriores
de uma ou de várias línguas de uma mesma família linguística parente.
24
Estrutura, passível de afixação, que sustenta o significado elementar de uma palavra.
25
Estrutura móvel anexada ao final de um radical de uma palavra para flexioná-la a fim de modificar o seu sentido
gramatical em uma sentença.
26
CLARKE, 2010, p. 120-133. Michael Clarke (1966-) é professor do departamento de Clássicas (línguas,
literaturas e culturas) da Universidade Nacional da Irlanda (NUI), em Galway.
27
“Essa perspectiva metodológica, operacionalizada ao longo das épocas, acaba por se transformar, também no
que diz respeito ao conteúdo, em uma história do respectivo conceito ali abordado.” (KOSELLECK, op. cit., p.
105).
28
Os próximos capítulos tratarão da temática em contexto não grego, principalmente, sendo este o foco deste
trabalho. Todavia, também será feita uma breve introdução ao estudo do tema para a Grécia.
27

história do conceito de ateísmo.29 Como já vimos, a palavra “ateu” pertence ao conjunto lexical
da língua portuguesa. Segundo o Dicionário Houaiss o vocábulo data de 1611. Isso pode indicar
que o falante de português (desde o século XVII) usufrui do termo cotidianamente? Ou apenas
em gêneros textuais? Ou em ambos? A data também coincide com o avanço da colonização
portuguesa na América. Em 1576, o cronista português Pero de Magalhães de Gândavo afirmou,
em sua Historia da Provincia Santa Cruz (nome que antecede “Brasil”), que

A lingoa de que uzam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos
vocabulos difere n’algumas partes: mas nam de maneira que se deixem huns
aos outros de entender: [...] carece de tres letras, convem a saber nam se acha
nella F, nem L, nem R, couza digna despanto porque assi nam tem Fé, nem
Lei, nem Rey, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem alem disto
conta, nem pezo, nem medida. Nam adoram a couza alguma, nem tem pera si
que há depois da morte gloria pera os bons e pena pera os maos [...].30

O excerto do texto português do século XVI fala sobre alguns dos povos encontrados
pelos colonizadores adeptos do cristianismo católico e destaca uma questão linguística: a
suposta ausência dos sons “F” [f], “L” [l] ou [ɭ] e “R” [r], [ɾ] ou [x]31 na fala desses grupos
autóctones. A ideia dessa reflexão passa pela conclusão do cronista acerca dessa mencionada
peculiaridade: não possuem “Fé”, não possuem “Lei” e não têm “Rey”, e ainda complementa
afirmando que não “adoram a couza alguma”, nem pensam no destino da alma após a morte.
Sabemos que, ao longo do tempo, certas verdades cristãs foram confrontadas no momento
desses choques culturais e linguísticos com grupos de outros continentes. Mas, a questão que
pretendemos chamar atenção é: o termo “ateu” caberia aqui? De acordo com o cronista, esses
povos seriam ateus aos olhares cristãos? Estaria o cronista associando uma suposta “desordem”
ao fato de serem supostamente “ateus”? Se esse texto fosse do século XVII, o escritor português
acionaria o referido vocábulo? Essas dúvidas devem permanecer em nossa mente32, mas, de
outra forma, retomaremos o embate mais adiante, mas não neste capítulo.

29
“Em uma segunda etapa da investigação os conceitos são separados de seu contexto situacional e seus
significados lexicais investigados ao longo de uma seqüência temporal, para serem depois ordenados uns em
relação aos outros, de modo que as análises históricas de cada conceito isolado agregam-se a uma história do
conceito” (KOSELLECK, loc. cit., grifo do autor).
30
GÂNDAVO, 1858, p. 44.
31
Entre [ ] está a hipótese fonética representada pelas referidas letras do alfabeto latino. Sem aprofundamento da
nossa parte, mas sabemos da complexidade dos sons representados pela letra “R” (os róticos) nas línguas. Baseado
na Lista de símbolos fonéticos da International Phonetic Association (IPA 2005), usado pelo Arquivo Dialetal do
Centro de Linguística da Universidade do Porto (CLUP) em Portugal.
32
Uma questão interessante para se investigar.
28

Complementando a problemática do termo “ateu” em português, procedemos com a


seguinte pergunta: de qual família linguística vem o português? De acordo com um consenso
de estudiosos da área – e não pretendemos nos aprofundar nisso – o idioma português tem sua
origem no latim que foi levado por legionários e comerciantes para a antiga província imperial
romana da Lusitânia, sendo considerado “português” ou “lusitano” por volta dos séculos XII-
XIII. De acordo com o filólogo Antenor de Veras Nascentes, em seu Dicionário Etimológico
Resumido, de 196633, “ateu vem do latim por via erudita”.34 O português tem como base lexical
e gramatical o latim vulgar, além disso, segundo o artigo do linguista Américo Venâncio
Machado Lopes Filho35, Léxico de étimo árabe em uso no período arcaico do português, de
2013, também existem muitos outros étimos lexicais que procedem de outras árvores
linguísticas, como a árabe e a hebraica que são chamadas “afro-asiáticas”, mas, popularmente
“semíticas”.
O termo em latim grafava-se atheus ou atheos (em sua forma nominativa) – podemos
conferir na própria passagem latina de Josefo no Contra Apionem II (14, 480-481): “[...] atheis
et hominum osoribus [...].”36, e também em Cícero (106-43 A.E.C.) no seu De natura deorum
III (89): “[...] Diagoras [...], Atheus ille qui dicitur [...]”37. Essa herança morfológica persistiu
nas línguas românicas, tanto quanto em línguas não românicas que estiveram sob a influência
administrativa do Império Romano, e também, posteriormente, religiosa da Igreja Católica,
como a inglesa e a alemã. Para visualizar melhor essas semelhanças morfológicas, destacaremos
algumas das equivalências para a sentença “Eu sou ateu.”, em línguas parentes e não parentes
modernas: Yo soy ateo. (espanhol), Jo sóc ateu. (catalão), Eu son ateo. (galego), Sono ateo.
(italiano), Je suis athée. (francês), Eu sunt ateu. (romeno); Ich bin atheist. (alemão), I am
atheist. (inglês), Я атеист. (Ya ateist, russo). No caso do hebraico, ‫’( אני אתאיסט‬aniy ’ātē’iysṭ),

33
Antenor Nascentes (1886-1972) foi um dos grandes mestres na pesquisa em língua portuguesa de seu tempo.
34
NASCENTES, 1966, p. 72. Isso implica dizer que, comumente, vocábulos da língua portuguesa que derivaram
do caso nominativo singular do latim, procederam de via erudita, geralmente, por meio de textos. Por outro lado,
em sua maioria, além do latim vulgar, as palavras da língua portuguesa têm o caso acusativo latino como
lexicogênico.
35
Américo Machado Filho é professor do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), especialista em linguística, história da língua portuguesa e lexicografia.
36
“[...] ateus e inimigos da humanidade [...]”. Anteriormente referida em sua versão grega. Para a latina cf.
“praesertim quum Apollonius accusationem non continue sicut Apion instituit, sed sparsim et hinc inde per totam
orationem. Quippe qui aliquando quidem nobis tanquam atheis et hominum osoribus conviciatur, aliquando vero
iterum formidinem nobis exprobrat: et e diverso rursus aliquando temerariae audaciae et amentiae nos insimulat”
(JOSEPHI, Flavii. Contra Apionem II, 14, 480-481. In: Opera. Graece et Latine II, 1865. p. 377).
37
“[...] Diágoras [...], Ateu célebre como é dito [...]”. cf. CICERONIS, M. Tulli. De natura deorum, III, 89. In:
PEASE, 1955. p. 1210.
29

que nem pertence ao ramo indo-europeu, é um idioma que, atualmente, recebe estrangeirismos
de línguas como inglês, alemão e russo. Mesmo em outras línguas indo-europeias ou indo-
iranianas existem léxicos distintos do grego e do latim, como o caso do sânscrito nāstika
(नास्तिक) que também é aparentado com “ateu”, com ressalvas.
É notório que para os exemplos apresentados acima, especificamente os semelhantes ao
português, alguns apresentam a escrita etimológica, isto é, ainda oriundas do latim,
evidenciadas pelo “th”. Os dígrafos “th”, “ph” e “ch” (kh) são marcas de estrangeirismo no
latim, principalmente para palavras vindas do grego contendo as letras θ (teta), φ (fi) e χ (qui)
respectivamente.38 Dessa forma, comprova-se que o latim atheus/atheos vem do antigo grego
ἄθεος. Assim, as línguas francesa, inglesa e alemã mantiveram essa marca etimológica que vem
do grego e que foi legada por meio do uso erudito/acadêmico e religioso do latim, por exemplo.
Na evolução das demais línguas apresentadas, incluindo a portuguesa, a aspiração da consoante
oclusiva alveolar surda [t] foi perdida ou dispensada de forma concordada em reformas
ortográficas.
Até o momento, vimos a palavra portuguesa “ateu” ser estudada morfologicamente,
apresentando alguns dos seus étimos próximos e dos seus prováveis étimos remotos.
Consideraremos, a partir deste ponto, aprofundar a investigação do vocábulo imergindo na
caracterização da própria palavra. Iremos desmembrá-la para identificar seus elementos
constituintes, seus elementos formadores (afixos, desinências, radicais, etc.). Tomaremos o seu
étimo remoto “ἄθεος”, consensualmente a origem etimológica mais antiga do termo em
português. Para o desenvolvimento dessa etapa, trabalharemos com etimologia através de
dicionários etimológicos do indo-europeu, em especial com as obras dos linguistas e etimólogos
Alexander Lubotsky39, Robert Beekes (2010), Guus Kroonen (2013), Kloekhorst (2008),
Mallory e Adams (2006), Donald Ringe (2006) e Chantraine (1999).
Na obra de Robert Beekes, Etymological Dictionary of Greek, de 200940, identificamos
a palavra grega e caracterizamo-la da seguinte forma: ἀ (álfa, classificado como prefixo
privativo ou em grego στερητικόν, sterētikón) + θεό- (relacionado com outros radicais como
θέσ-, θεῖ-, θεο-, θεά) + ο (omikrón, vogal temática) + ς (sígma, desinência grega de nominativo

38
Seus nomes gregos são: θῆτα, φεῖ, χεῖ. A Lição 45: Nomes Gregos da obra Gramática Latina de Napoleão de
Almeida (2000, p. 190) também explica essa característica e outras particularidades.
39
Alexander Lubotsky é professor da Universidade de Leiden, Holanda, especialista em indo-europeu, sânscrito,
védico e avéstico e organizador/editor da Leiden Indo-European Etymological Dictionary Series.
40
Robert Beekes (1937-2017) foi professor Emérito do Departamento de Estudos de Linguística Indo-Europeia da
Universidade de Leiden.
30

singular masculino de segunda declinação). Com esse levantamento, qualificamos ἄθεος como
sendo um composto formado de prefixo e radical. O significado literal do vocábulo grego é
“sem θεός”. Segundo Beekes41, a palavra θεός é formada pela raiz hipotética protoindo-
europeia *dʰ(e)h₁s- (dhees-) e essa raiz também aparece no frígio anatólio δεως (deōs) “para os
deuses”. A hipótese é apontada pelo sinal *, indicando uma reconstrução fonética – uma vez
que, neste caso, não foi verificada uma sociedade “protoindo-europeia” ou “protoindo-iraniana”
com registros próprios.
A teoria das laringais é outro recurso hipotético para a questão da tentativa de
reconstrução desse protoindo-europeu, sendo, segundo o próprio Beekes, em seu prefácio42,
uma das principais nessa área. Com a teoria em constante aperfeiçoamento acadêmico43, as
laringais seriam simbolicamente representadas por: h1 (som semelhante ao [e]), h2 (som
semelhante ao [a]) e h3 (som semelhante ao [o]). Além do mais, temos a consoante fricativa
dental sonora [dh ou ð] que, como vemos em Beekes, possui características fonéticas
semelhantes à consoante fricativa dental alveolar surda [th ou θ] exemplificado pelo autor
através da palavra grega θέσκελος (théskelos), “maravilhoso”. Não obstante, o etimólogo
também acredita que [dh] pode ter variado foneticamente com a consoante fricativa bilabial
surda [ph ou Φ], exemplificado pelo termo latino festus, “festival” e outros. Fechando suas
considerações, o autor também se refere a um verbo denominativo44 θεόω, -όομαι (theóō, -
óomai), “tornar-se divino”, compartilhando da variante [θ] do mesmo radical [dh] evidenciado
em *dʰeh₁s-.45
Esses detalhamentos ainda não são suficientes para formularmos uma definição
etimológica simples. Dizer: “sem deus” – que aparenta simples –, ou, “não acredita em deus”,
ainda nos oculta algo importante: o significado de θεός, amplamente traduzido por “deus”,
“divindade”, “divino”. O que quer dizer “deus”? Qual a sua etimologia? Qual a sua origem?

41
BEEKES, 2010, p. 540.
42
Ibid., p. XLII.
43
Beekes mostra, no início do seu prefácio, que a teoria das laringais avançou muito bem, a partir dos anos de
1980, graças aos trabalhos teóricos de Alfred Bammesberger, que, em 1988, publicou sua Die Larygaltheorie und
die Rekonstruktion des indogermanischen Laut- und Formensystems. Em suma, essa teoria, segundo Beekes,
tornou consensual a necessidade do aprofundamento do estudo em etimologia do grego para compreender as
laringais.
44
Forma verbal que deriva de um nome (substantivo ou adjetivo).
45
O renomado etimólogo e linguista francês Pierre Chantraine (1899-1974), especialista em grego antigo,
considerava desconhecida a etimologia de θεός. O etimólogo foi demasiadamente cuidadoso e não evocou
nenhuma hipótese etimológica como provável. Contudo, aquela que mais chamava sua atenção trazia o verbo
τίθημι, principalmente nos sentidos de “por”, “colocar”, “erigir”, “levantar”, neste caso, algum objeto, ser ou coisa
para contexto sociorritual. Em seu Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque (1999) cf. p. 429-430.
31

Por quê “deus” e não outra palavra? Em nossa escrita portuguesa, grafamos deus de duas
formas: “Deus”, para simbolizar o sentido de “Senhor”, a divindade suprema, eterna e todo-
poderosa dos monoteísmos e “deus” para referir aos demais deuses; para o primeiro evita-se o
plural “Deuses”. Uma questão muito sensível à sociedade. A maioria dos religiosos monoteístas
têm árdua reverência pelo nome “Deus”. Mas, neste capítulo, não vamos investigar o “ser” que
a escrita e a fala representa para os devotos, e sim quais os prováveis mecanismos fonéticos e
protossemânticos (gênese semântica) os seres humanos idealizaram para assim nomear essa tal
“entidade” de deus ou θεός.46

2.1.1 Pressupostos etimológicos e hipóteses: θεός e deus

Parte da análise morfológica da palavra θεός já foi realizada. Para propor aqui um
aprofundamento da questão, consultamos o Etymological Dictionary of Proto-Germanic, de
2013, do linguista e etimólogo Guus Kroonen.47 Cabe ao leitor compreender que a hipótese do
indo-europeu, indo-iraniano ou do protoindo-europeu são, em alto grau, um estudo de
linguística, morfologia, fonética, história das línguas ocidentais e das asiáticas modernas. Vale
lembrar que essa especialidade iniciou com os primeiros estudos do sânscrito e de outras antigas
línguas escritas da Índia, comparando-as com o grego antigo e com o latim, ainda no século
XVIII, pelo acadêmico britânico Sir William Jones (1746-1794), sendo um dos primeiros a
realizar o trabalho de filologia comparada entre sânscrito, grego antigo, latim, persa, gótico
germânico e celta, formulando a ideia de uma suposta língua familiar ancestral “indo-
europeia”.48
Para uma melhor compreensão do estudo realizado até este momento, é necessário
visualizar as proximidades articulatórias entre os sons consonantais: [Φ], [f], [θ] e [s]; [β], [v],
[ð] e [z]; [p] e [b]; [t] e [d].49 A comparação entre esses sons é constante nas hipóteses dos

46
Segundo o Dicionário Houaiss, s. u., o vocábulo “deus” é do léxico português desde o século XII. Entre suas
acepções estão qualidades como: “ser supremo”, “ser superior”, “ser infinito”, “ser primordial”. As rubricas dessas
acepções são ora religiosas, ora filosóficas. Cremos que, tal vocábulo, carece de problematização histórica, no
Brasil, em particular.
47
Guus Kroonen é professor/pesquisador pela Universidade de Copenhague e pela Universidade de Leiden,
especialista em Indo-Europeu, linguística e história da língua germânica e escandinava.
48
MALLORY; ADAMS, Introduction to Proto-indo-european, 2006, p. 4-6. James Patrick Mallory (1945-) é
arqueólogo, especialista em indo-europeu, professor emérito da Universidade de Queen em Belfast, na Irlanda do
Norte e membro da Royal Irish Academy. Douglas Quentin Adams é professor de Inglês e de Indo-Europeu na
Universidade de Idaho e especialista em língua tocariana.
49
Símbolos segundo a tabela da IPA.
Disponível em: http://web.uvic.ca/ling/resources/ipa/charts/IPAlab/IPAlab.htm. Acesso em: 3 abr. 2018.
32

estudos sobre o protoindo-europeu. Mas não somente esses, como veremos a seguir.50
Retomando nosso estudo da palavra grega θεός, transliterada theós e foneticamente representada
por [θeˈos], percebemos uma interessante problemática no âmbito da pronúncia. No geral, o
brasileiro não pronuncia o dígrafo “th” como uma linguodental fricativa, outrossim, θεός seria
lida como “dê.ós” ou “tê.ós” pelo falante não especialista.51 Identificamos aí uma similaridade
sonora com o nosso vocábulo “deus”. Isso não ocorre por acaso. A proximidade sonora entre
essas palavras e os seus sentidos são corriqueiramente associados pelos falantes da língua. Mas
será que essa intenção é conveniente para esta investigação?
Tomamos a liberdade para associar hipoteticamente o radical protoindo-europeu
*dʰeh₁s-, comentado por Beekes, com o radical proto-germânico *tīwa-, explorado por
Kroonen.52 Por meio desse radical, o especialista mostra os prováveis parentescos entre os
seguintes termos e radicais: Týr (antigo nórdico); Tīw e Tīg (antigo inglês); *dei-uo- (protoindo-
europeu); devá- (दे व, sânscrito); daēuua- (antigo e jovem avéstico); daiva- (antigo persa); dēw
(‫ ِديُو‬, novo persa); diēvas (lituânio), dìevs (letão); deiw(a)s (antigo prussiano); deus (latim); día
(antigo irlandês); duiu (antigo galês); duw (médio galês). Kroonen também esclarece a provável
semântica do radical mostrando que

O significado geral do PGm *tīwa- foi simplesmente ‘deus’ [...], mas a palavra
foi claramente associada com a específica deidade Tyr-Tīw-Ziu, o deus
germânico do céu e da guerra, cf. sâns. Dyáus, gen. Divás, Dyós, gr. Ζεύς,
gen. Διός, lat. Iū-piter, Iuppiter, gen. Iovis < *diḗu-s, *diu-ós. Com esse
significado, foi preservado em Týs-dagr AN, Tīwes-dæg AI, Zies-tag AAG,
Zīs-tac ‘Tuesday’ MAG, uma expressão direta do lat. dies Martis. [...] O caso
acusativo regularmente desenvolvido em *diēm no PIE, e o *ē longo dessa
forma, estenderam-se para o nominativo da palavra no sentido de ‘Deus do
Céu’, pelo menos nos dialetos indo-europeus centrais que se desenvolveram
dentro do sânscrito e do grego.53

50
É interessante mencionar que o estudo do protoindo-europeu tem simbologias próprias. Ao serem inseridas neste
trabalho, sendo necessário, esclareceremos os símbolos. Cf. Anexo E.
51
No Brasil, em algumas regiões, ocorre palatalização em contexto de [t] diante de vogal [i] ou diante de
alteamento de vogal [e] para vogal [i], tornando a consoante [t] em consoante africada alveolar [tʃ] nessas ocasiões
(como exemplos: tia e teatro). Ressaltamos aqui que privilegiaremos as palavras gregas escritas em alfabeto grego,
usando sua transliteração convencional no momento em que julgarmos necessário – a tabela de transliteração
consta no Apêndice A deste trabalho.
52
KROONEN, 2013, p. 519.
53
KROONEN, loc. cit. “The general meaning of PGm. *tiwa- was simply ‘god’ [...], but the word was clearly
associated with the specific deity Tyr-Tīw-Ziu, the Germanic sky and war god, cf. Skt. Dyáus, gen. Divás, Dyós,
Gr. Ζεύς, gen. Διός, Lat. Iū-piter, Iuppiter, gen. Iovis < *diḗu-s, *diu-ós. With this meaning, it was preserved in
ON Týs-dagr, OE Tīwes-dæg, OHG Zies-tag, MHG Zīs-tac ‘Tuesday’, a calque of Lat. dies Martis. [...] The
accusative case regularly developed into *diēm in PIE, and the long *ē of this form spread to the nominative of
the word in the sense of ‘Sky God’ at least in the central Indo-European dialects that developed into Sanskrit and
Greek”.
33

Após essa citação e após tudo aquilo que já exploramos até o momento, podemos elencar
os seguintes pontos: 1) há a necessidade de comparar em diacronia as línguas54 inseridas na
família indo-europeia; 2) uma palavra não é a tradução semântica da outra, mas a sua
correspondente na família; 3) não é possível precisar temporalmente 55 a língua protoindo-
europeia por ser uma hipótese sem o elemento escrito próprio; e 4) “Deus do Céu” (“Sky God”)
seria a protossemântica que buscamos? Como já alertamos, a palavra “deus” não será
considerada sentido, etimológico ou não, de θεός, logo, não aceitaremos “Deus do Céu” (ou
“Deus-Céu”, do inglês Sky-god) como significado etimológico mais simples.56
Dentre as significações apresentadas por Kroonen, três merecem nosso destaque, já que
para as demais ele concorda com “god”, ou seja, “deus” como significado. Segundo o autor57,
no YAv (Young Avestan, “jovem avéstico”) o radical daēuua- nomeava uma divindade pré-
zoroastriana que posteriormente foi designada por “demônio”, “monstro”, “ídolo”; é inegável
que cada palavra colocada como significado mereceria uma investigação.58 Mas não vem ao
caso. Diferente dos outros significados, o termo do avéstico foi evoluindo semanticamente para
algo “ruim”59, à primeira vista, de “deus” para “demônio”; igualmente, o OP (Old Persian,

54
As línguas modernas celtas, itálicas, germânicas, bálticas, eslávicas, além da albanesa, grega, armênia, iraniana,
urdu e hindi ocidentais são as principais indo-europeias ainda em evidência. Por sua vez, as antigas línguas da
Anatólia (Ásia Menor) como a frígia, a hitita, a luviana, além da trácia e da dácia nas proximidades do mar Negro,
Europa e das itálicas messápia, vêneta e ilíria, ou das tocarianas na Ásia Central, todas essas já não possuem mais
falantes de língua materna ou grupos de falantes de segunda língua (como ocorre com o latim eclesiástico no
Vaticano). Além do mais, a língua finlandesa, a carélia, a lapã/sámi, a estoniana, a basca, a turca, a húngara, a
mordóvia, a mari e outras línguas faladas na região dos montes Urais, além da antiga língua etrusca, estão todas
na Europa, mas não são indo-europeias (MALLORY; ADAMS, op. cit., p. 9-10).
55
Pelo contrário, as demais são datáveis, por exemplo: avéstico, I milênio A.E.C.; sânscrito, 1000 A.E.C.; dialeto
grego homérico, século VIII A.E.C.; frígio, século VIII A.E.C. a I E.C.; latim, século VII A.E.C.; antigo persa,
séculos VI-V A.E.C.; novo persa, século VIII E.C.; antigo irlandês, 600-900 E.C.; antigo alto germânico, 750-
1050 E.C.; antigo inglês, 800-1150 E.C.; antigo galês, séculos IX-XII; médio alto germânico, 1050-1500 E.C.;
russo, 1050 E.C.; antigo nórdico, 1150-1550 E.C.; médio galês, 1200-1500; antigo prussiano, séculos XVI-XVIII
(MALLORY; ADAMS, op. cit., p. XIX-XX).
56
Vale lembrar ao leitor não especialista que a palavra “deus”, antes do português, é um vocábulo do latim. A
forma deus corresponde ao caso nominativo e vocativo masculino; deī ao seu genitivo singular, nominativo e
vocativo plurais; deōrum ou deum ao genitivo plural; deum ao seu acusativo singular, deōs ao plural; seu dativo e
ablativo é deo, plurais dīs, diīs ou deīs; o nominativo e o vocativo plurais ainda podem variar em dī ou diī. Seu
equivalente feminino é dea (nominativo, vocativo e ablativo singulares), deae (genitivo, dativo singulares) e deam
(acusativo singular).
57
KROONEN, loc. cit.
58
Como a questão da demonologia no mundo grego e romano, cujo tema foi recentemente explorado pelo professor
de latim Luiz Karol da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em sua tese De
deo Socratis, a demonologia no contexto do Império Greco-Romano, de 2016.
59
“Ruim” no sentido de: desagradável, maligno, inconveniente, cruel, nocivo (Dicionário Houaiss, s. u.).
Geralmente, uma concepção de bem e mal que incide segundo os ideais dos religiosos, ou dos filósofos.
34

“antigo persa”) manteve essa semântica “ruim” do radical avéstico, ligeiramente variado para
daiva-, significando “falso deus”, “ídolo”; na mesma lógica, o NP (New Persian, “novo persa”,
ou persa atual) manteve esse radical antigo na palavra dēw (‫ ) ِديُو‬e o seu significado comum
ainda continuava sendo “demônio”, “espírito maligno”. Enquanto o português manteve o
nominativo latino deus e as religiões cristãs deram para ele uma semântica mais ou menos
positiva60, o persa tornou o radical totalmente pejorativo, e para “deus” no sentido de “Deus”,
uma das palavras usadas será ‫( خدا‬ḳhudá, ou [xˈda]), sendo semelhante ao equivalente inglês
“god”, ao alemão “Gott” ou ao sueco “gud”, em detrimento do som oclusivo velar e do som
fricativo velar ou uvular, da relação articulatória [o] e [u] e das oclusivas alveolares [t] e [d].61
Anteriormente comentamos a semelhança entre certos sons consonantais, dentre os
quais vimos Kroonen utilizar, por exemplo: [t], [d] e [z] – sejam elas uma evolução sincrônica
ou diacrônica, regional de um mesmo povo ou entre povos distintos. Essa observação contribui
para identificarmos as relações entre esses idiomas antigos, por meio de sua escrita. Enfatizando
essas comparações, Kroonen mostrou paridades entre o grego, o latim, o sânscrito, o germânico,
o persa e o celta. E todas essas afirmações passaram pela conexão entre as três consoantes
mencionadas. De acordo com Kloekhorst, no Etymological Dictionary of the Hittite, de 200862,
outras variantes podem ser encontradas no hitita ši-ú-uš (𒅆𒍑), “celestial”, no lídio63 ciw-s, “ser

60
No discurso comum (não teórico), Deus passa de bom para mau, de justo para injusto, segundo a vontade ou
condição de seu crente, devoto, fiel.
61
Algumas dessas variantes no indo-europeu podem ser conferidas na obra de Mallory e Adams (op. cit., p. 4).
Para o persa, também consultamos o A Dictionary in Persian and English, de 1841, de Ramdhun Sen. Segundo
Kroonen (2013, p. 193-194), as palavras god, Gott, guð, gud derivam hipoteticamente do proto-germânico *guda-
(“god”). Contudo, ainda não há consenso semântico e nem foi estabelecida uma relação mais sólida com radicais
protoindo-europeus ou indo-europeus. Para o etimólogo, a melhor opção talvez seja com *gwhou-eh1-, “venerar”
(de gověti, antiga igreja eslava), também com *gudan-, “sacerdote” (de goði, velho nórdico), ou com *gudja/ōn-,
“ídolo” (de gudja, gyðja, gótico e velho nórdico) e talvez com *gudisan-, “ídolo” (de Gōtze, alemão). Ernest Klein
também supõe, em seu A Comprehensive Etymological Dictionary of the English (1966, p. 667), a relação com o
indo-europeu *ghu- (ghu-tó-m), “invocar” (de hávatē, sânscrito ou zŭvati, “chamar”, velho eslavo).
Complementando a questão, para Derksen, no Etymological Dictionary of the Slavic (2008, p. 50), temos bog
(russo), bih (ucraniano), bůh (tcheco) termos eslavos equivalentes a “deus” ou “god”, etimologicamente
relacionado com o sânscrito bhága-, “próspero”, “afortunado” e ao antigo persa baya- “senhor”, “autoridade” –
bôgъ (bóga). Ernest David Klein (1899-1983) foi um linguista e etimologista canadense, rabino de origem judaico-
romena. Rick Derksen (1964-) é linguista holandês, especialista em linguística balto-eslávica da Universidade de
Leiden.
62
KLOEKHORST, 2008, p. 763-764. Alwin Kloekhorst é linguista holandês, professor da Universidade de
Leiden, especialista em indo-europeu e estudos hititas.
63
Antiga língua indo-europeia da Anatólia do século VI-IV A.E.C., aparentada com o hitita, que pode ter trocado
influências com o dialeto grego eólio ou com o jônio.
35

celeste”, bem como no lacônio σιός (siós).64 Para João Terra, em seu O deus dos indo-europeus,
de 2001, todas

[...] essas formas cognatas fornecem elementos para descobrir a forma


fonética do proto-indo-europeu pré-histórico que seria seu ancestral comum.
[...] É interessante notar que nenhuma língua da família indo-européia
preserva a palavra original intacta. Em cada língua, em cada tradição da
família indo-européia, a forma original sofreu alguma alteração. É o método
comparativo que nos permite explicar as diferentes formas nessas várias
línguas, pela reconstrução de um protótipo comum unitário, um antepassado
comum de todas as atuais variantes históricas.65

Se colocarmos cada palavra próximo uma da outra, podemos perceber algumas


peculiaridades desse estudo linguístico-fonético: a) “w” (waw, vav ou ϝ “digama”) símbolo
usado nas hipóteses do protoindo-europeu e do grego antigo, pode variar, em contextos
fonéticos específicos, com os sons [o], [u] e [v] – assim como também é no hebraico, por
exemplo. Vemos isso no persa dēw, no latim deus, no hitita ši-ú-uš, no lituano diēvas, no
sânscrito devá, no lacônio siós, no grego Ζεύς, bem como em θεός; b) uma queda da dental no
úmbrio Iou, marcado no latim Iuppiter, com o “w” reaparecendo no genitivo Iov-is – e demais
casos, excetuando o vocativo singular; c) retorno da oclusiva alveolar [d]66 no genitivo Διό-ς
da palavra grega Ζεύς – assim como nos outros casos, excetuando o vocativo; d) a relação
vocálica entre [e] e [i], [o] e [u], como em Ζεύς e Διός; e) a pluralidade da fricatividade das
consoantes no início do radical, de bilabiais a velares. Como mencionou Terra, essas culturas
antigas desenvolveram esses sons cada uma segundo sua característica própria, mesmo numa
convivência regional ou separadas por rios, montanhas, florestas ou desertos.67
Após essas caracterizações, reforçamos o questionamento: se não consideraremos
“deus” como significado etimológico mais simples, então seria “céu” esse significado? Não
seria essa palavra portuguesa foneticamente semelhante ao hitita ši-ú-uš, ou ao lacônio siós? O
vocábulo latino dies, mencionado por Kroonen em “dies Martis”, também associado aos
protótipos indo-europeus *diḗu-s, *diu-ós, que significa “dia”, ambiente de “luz” ou

O lacônio σιός tem relação com o jônio θεός assim como também tem a variante beócia θιός. Dialetos da Grécia
64

Antiga, o lacônio pertence ao grupo dório e o beócio ao grupo eólio (MILLER, 2014).
65
TERRA, 2001, p. 146-147. Dom João E. Martins Terra (1925-) é jesuíta, bispo católico emérito, autor de teses
etimológicas indo-europeias e semíticas, além de autor de várias obras sobre o mundo cristão e a Bíblia.
66
Ou da fricativa dental [ð].
67
Reiteramos: esses protótipos são hipóteses, simbolizadas pelo *, como em *dʰeh₁s-.
36

“claridade”68 ou diu, que significa “há muito tempo” ou um antigo locativo de dies: “durante o
dia”, “de dia”69, esses não seriam mais interessantes do que “deus” como significado mais
simples, livre de metáforas ou abstrações? Isto é, o significado da hipótese do radical, fruto das
nossas instanciações, poderia ser “céu”, mas não qualquer céu, mas sim aquele céu claro,
ensolarado, que caracteriza o “dia limpo”. Se voltarmos em Kloekhorst70 veremos que o radical
hitita71 šīṷatt- é formador de palavras como šị-i-ṷa-az, “dia” e a-ni-ši-ṷa-at, “hoje”; tem
parentesco com o luviano72 ti-ṷa-az “Sol” – como uma divindade73; e cognata com o radical
sânscrito dyut- (द्युति) “brilhar”, “reluzir”, “luz”, “claridade”, “bom tempo”, “esplendor”.
Teria esse “brilho”, essa “luz”, esse “esplendor”, observado por esses povos ao tentarem
descrever, uns aos outros, esse “grande azul” com um “grande círculo” de forte brilho, acima
de suas cabeças, tendo em suas mentes palavras formadas segundo os radicais apresentados
acima (hititas, luvianos, sânscritos), alguma relação com o nosso “céu” do português, e com
sua etimologia? Estariam esses sentidos relacionados com a nossa proposta de busca pela
protossemântica do grego θεός? Deus e céu estariam etimologicamente conectados? De acordo
com o linguista estadunidense Don Ringe, em sua obra From Proto-Indo-European to Proto-
Germanic, de 200674, devemos encontrar um radical ou raiz grau zero75, e dele coletar o seu

68
ERNOUT; MEILLET, Dictionnaire étymologique de la langue latine, 1951, p. 311-313.
69
Ibid., p. 316-317.
70
KLOEKHORST, 2008, p. 766-767.
71
A língua hitita é a mais antiga documentada dentre as indo-europeias (século XVII-XII A.E.C.). Recebe atenção
acadêmica desde 1887, com a descoberta de 382 tabletes de argila em Amarna no Egito, contendo escrita
cuneiforme. De acordo com os especialistas, esses tabletes foram cartas correspondidas entre reis egípcios do
Reino Novo (século XIV A.E.C.) e reis da Ásia Menor e Mesopotâmia, e, para o caso dos hititas, com Šuppiluliuma
senhor de Ḫatti, na Anatólia. Mas foi em 1902 que J. A. Knudtzon mostrou que havia duas delas que não estavam
escritas em acadiano (língua “internacional” do período das correspondências), mas em uma língua indo-europeia
(EA 31-32). E em 1915, o assiriólogo tcheco B. Hrozný tornou acadêmicas as possibilidades de estudo para uma
língua “hitita”, após escavações na vila turca de Boğazkale em 1905. Assim, a hititologia ganhou força nas
universidades europeias, colocando o hitita (ni-ši-li) no patamar de uma das mais antigas línguas escritas
documentadas da humanidade (KLOEKHORST, 2008, p. 1-3). Para um trabalho com as 382 cartas de Amarna cf.
SCHNIEDEWIND, W.; COCHAVI-RAINEY, Z. (ed.). The El-Amarna Correspondence: A New Edition of
Cuneiform Letters from the Site of El-Amarna based on Collation of all Extant Tablets (volume I, II). Translation
by Anson F. Rainey. Leiden; Boston: Brill, 2015.
72
Outra língua indo-europeia anatólia antiga, escrita em cuneiforme, da mesma região do hitita.
73
Sol, Céu, Lua, escritos desta forma, como nomes próprios, remeterão, neste trabalho, sempre à ideia de
personificação, de divindade.
74
Donald Ringe é professor do Departamento de Linguística da Universidade da Pensilvânia, especialista em
linguística histórica, grego, tocariano e alemão.
75
Por meio do estudo do grego antigo, é possível identificar que os radicais, raízes ou temas possuem graus de
alternância vocálica, ou “vocalismo”: a) em [o] será grau fraco; b) em [e] será grau forte; c) a queda da vogal será
grau zero (MURACHCO, Língua Grega, 2001, p. 50). Henrique Graciano Murachco é professor na Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), especialista em semântica, grego antigo e filosofia antiga.
37

provável sentido arcaico. Segundo o autor, “[...] para formar um proto-vṛddhi derivado de
*dyew- ‘céu’, o mesmo tomou o grau zero *diw-, inseriu *e para dar *deyw- (sic), e então
derivou *deyw-ó-s ‘deus’ (literalmente ‘um ser do céu’)”.76 Essa nomenclatura usada pelo
autor, vṛddhi (वद्ृ धि), vem do sânscrito e significa “crescer”, “crescimento”.77
A lógica de Ringe nos conduz para a suspeita de “céu” como significado mais simples.
Ou melhor, o radical *deyw-ó-s, derivado do grau zero *diw- (em que [i] e [w] são sons
consonantais semivocálicos, assim como nas afro-asiáticas), significando “ser ou ente do céu”,
um “ser oriundo do céu” (“skyling”). Da mesma forma que investigamos “deus” e se, segundo
nossa proposta “deus” e “céu” estão etimologicamente interligados, consideraremos adentrar
na etimologia de “céu”. A palavra “céu” é uma evolução do latim caelum78. Por sua vez, caelum
pode ter derivado do grego κοῖλον79 – que é traduzido por “côncavo”, “cavidade”,
“profundidade”, “baía”80. A associação, portanto, refere-se à “abóbada”, ao “firmamento”, ou
seja, à impressão espacial curvilínea que pode ser notada ao olhar para o “grande azul” durante
um dia ensolarado. Já o vocábulo latino caelestīni pode referir-se a “um povo da Úmbria”.81
Outras significações atribuídas estão sempre relacionadas com divindades do céu, seres
celestiais ou atmosféricos, moradores do céu, dentre outros. Mas algumas são bem mais
interessantes para nós: corpos ou astros vistos na abóbada; espaço entre a terra e os astros
(atmosfera, horizonte, ar) onde ocorrem os fenômenos climáticos (tempo); local onde flutuam
as nuvens82.

76
RINGE, 2006, p. 14. “[...] to form a proto-vṛddhi derivative from *dyew- ‘sky’ one took the zero grade *diw-,
inserted *e to give *deyw- (sic), and so derived *deyw-ó-s ‘god’ (literally ‘skyling’)”.
77
Esse termo sânscrito é usado na gramática para caracterizar a ocorrência de alongamento de uma vogal – que no
sânscrito manifesta-se em ā, ai, au, ār (MACDONELL, A Sanskrit Grammar for Students, 1927, p. 10) – comum
em línguas indo-europeias sob o nome de apofonia, metafonia ou ablaut. Dentre suas variações: grau normal “e”,
e alongado “ē”; grau flexionado “o” e alongado “ō”; grau zero (como já vimos, é o desaparecimento da vogal).
78
“Céu”, verbete português desde o século XIII (Dicionário Houaiss, s. u.).
79
ERNOUT; MEILLET, 1951, p. 150.
80
PABÓN, Diccionario Manual Griego Clásico-Español, 1967, p. 350.
81
LEWIS; SHORT, A Latin Dictionary A-C, 1955, p. 262.
82
FRAILE, Diccionario Latino-Español A-J, 1946, p. 295.
38

Diagrama 01 – Alguns dos radicais aqui relacionados com o grau zero *diw-

*tīwa-

*tʰeh₁s- *dʰeh₁s-

*diw-
*ziw- *diu-

*deyw- *diḗu-

Fonte: Produção nossa

Diagrama 02 – *diw-: derivados pressupostos cujos radicais têm características fricativas

céu
(português)
θεός Ζεύς
(grego) Fricativas: (grego)
labiodentais
dentais
alveolares Zies
festus
pós-alveolares (a. a.
(latim)
germânico)

ši-ú-uš σιός
(hitita) (lacônio)

Fonte: Produção nossa


39

Diagrama 03 – *diw-: derivados pressupostos cujos radicais têm características oclusivas

deus
dies (português) dia
(latim) (português)

devá (दे व) Διός


(sânscrito) Oclusivas: (grego)

dentais
deus δεως
(latim) (frígio)

Týr dēw (‫) ِديُو‬


(nórdico) ti-ṷa-az (persa)
(luviano)

Fonte: Produção nossa

Cada exemplificação elaborada nos diagramas acima, ajuda-nos a sistematizar aquilo


que abstraímos dos dicionários etimológicos submetidos a nossa investigação. Após isso,
seremos capazes de definir o protótipo que tanto nos interessa? A palavra “deus” já havia sido
descartada das nossas pretensões de sentido. Restou-nos investigar “céu”, mas, como vimos, da
mesma forma que “deus”, ela não simboliza uma protossemântica. Admitiremos que a gênese
semântica passa pelo radical hitita šīṷatt- ou pelo sânscrito dyut-, com o sentido de “esplendor”,
“luz” ou “claridade” (uma descrição primordial do céu ensolarado). A partir disso, supomos
que os grupos foram socialmente localizando os corpos “celestes” pelas comunidades indo-
europeias, cada um segundo sua particularidade cultural. O luviano nomeia o “Sol” (ti-ṷa-az),
um corpo celeste, assim como o hitita localiza esse “firmamento” (ne-e-pí-iš)83, “nuvens”,
“céu”84, isto é, onde habitam os corpos, os astros, fixando o “dia” (šị-i-ṷa-az), definindo o
“hoje” (a-ni-ši-ṷa-at).

83
Cf. grego νέφος (néphos/néfos), “céu”, “nuvens”, “região das nuvens”.
84
KLOEKHORST, 2008, p. 603.
40

Nesse contexto indo-europeu, certamente esses corpos ou astros que “habitam” no céu
(*diw-), receberam cada um deles o seu respectivo radical, cada um com sua variante,
acrescentando-se afixos, temas, desinências de masculino, feminino, plural, dual, locativos, etc.
Com isso, o falante antigo definiria o local desses astros em sua vida, tornando-os parte de suas
próprias famílias, tribos, e mesmo sem braços ou pernas, tão distintos e “distantes” desse
humano, eram tão presentes e atuantes no cotidiano quanto um pai ou uma mãe – eis aí uma
provável lógica imaginária para o antigo argumento dessas tribos ou clãs. A raiz grau zero, com
o sentido de “luz”, de “esplendor”, seria utilizada tanto para se forjar novos vocábulos, com os
sentidos de “céu”, “abóbada”, “dia”, hoje”, quanto para dar nomes a alguns dos corpos celestiais
– os “deuses”, em particular, o “sol”.85

Diagrama 04 – Hipótese da instanciação de deus e θεός, pelo grau zero *diw-

Instância II
Instância I • seres celestiais
(seres vivos e
• abóbada
celeste
inanimados)
Protos- • firmamento
semântica • fenômenos
•luz climáticos
•esplendor
•brilho

Fonte: Produção nossa

85
Como na formação hipotética de *deywos: *diw- (“esplendor”, grau zero) evoluiu com apofonia, ficando *di+e-
w (*dyew, “celeste”, “dia”); quiçá dotado de sufixação -eus (que geralmente indica, no grego, o autor de uma ação
em nominativo), ficando *dyew-eus (“que faz brilhar”). Como é comum, os falantes adequam a fonética. Aqui
supomos para *dyeus ou *deyos (um nominativo, indicando um ser celestial ou atmosférico, geralmente o “sol”,
uma referência ao “céu”, ao “dia”, em sua gênese). No caso grego, as apofonias ocorrem claramente nas seguintes
situações: ου é marca de contração entre ε+ο, ο+ο, ο+ε; ω é fruto de contração entre α+ο, α+ω, ε+ω, ο+α, ο+η.
Para Murachco “uma contração é um segundo tempo: isto é, antes da forma contrata existiu a não-contrata; a
reconstrução e registro dela ajudam a encontrar a acentuação correta; [...] é um fenômeno físico, fisiológico, que
se processa no aparelho fonador, governado sempre pela lei do menor esforço; [...] uma vogal tônica, quando
absorvida, leva consigo a tonicidade; quando a vogal absorvida não é tônica, o acento permanece no lugar, se as
normas da acentuação permitirem.” (MURACHCO, 2001, p. 57-58).
41

Se nos permitirmos definir deus e θεός, assim diremos: um ser vivo ou inanimado que,
como elemento celeste ou dito dele, considerado entre terra e firmamento, fora consagrado ou
erguido por grupos humanos para fazer parte de suas vidas cotidianas, em que estes
argumentavam sobre a sua verossímil interferência na sua sociedade. Essa definição inicial não
é definitiva, pois, sabemos dos mais variados sentidos que foram dados não só para θεός, mas
também para o seu correspondente deus, ou mesmo god. No entanto, essa primeira semântica
não está considerando o elemento espiritual (*h2énsus, *h2énh1mos), que é mais abstrato,
metafórico, nem o elemento adjetival, como “onisciente”, “justo” ou “todo-poderoso”. Assim,
o sol (*séh2ul) e a lua (*méh1-nōt, *(s)kand-), as estrelas, os cometas e os meteoritos (*h2stḗr),
as nuvens (*sneudh-, *nébhos) e o vento (*h2weh1-nt-/-yús), um incêndio natural (*hxn̥gwnis,
*péh2ur, *h2eidh, *h2ehx-, *dhuh2mós), uma forte chuva (*wódr̥, *h1wers-, *n̥bh(ro/ri)-, *móri),
por exemplo, além dos corpos celestes conhecidos da época, em sua maioria os inanimados,
cuja origem para eles era desconhecida, estavam majoritariamente no âmbito celeste, como
vigilantes assíduos dos seres humanos. Dentre os citados, o vento (o frio “*kwrustēn”, o calor
“*tep-”, o fedor “*pū-”, “*puhx-” e as ações bacterianas e virais) era um elemento invisível
sentido (o desconhecido que causa medo “*dwei-”, “*tergw-”) que interferia (e ainda interfere)
no cotidiano dos indivíduos.86 Seja qual for a afirmação, ela será baseada na investigação dos
termos e dos radicais dos povos da família indo-europeia, através do recurso da escrita. Mas
seria possível afirmar o mesmo para os protoindo-europeus, que não deixaram nada sobre si
mesmos no campo da escrita?
De acordo com Francisco Villar, em sua obra Los Indoeuropeos y los Orígenes de
Europa, de 199187, para essa questão pode haver duas linhas de pensamento: uma “otimista” e
outra “pessimista”. Para ele, um exemplo de otimista foi o filólogo francês Georges Dumézil
(1898-1986), e para a ótica pessimista, Bernfried Schlerath (1924-2003), linguista alemão, e
Stefan Zimmer (1947-), germanista e celtologista alemão, professor emérito da Universidade
de Bonn. Otimista no sentido de que “[...] fazem descrições pormenorizadas de múltiplos deuses
indo-europeus, de suas funções, de sua organização estruturada [...]”88; já os pessimistas “[...]

86
Todos esses protótipos do protoindo-europeu foram coletados do trabalho de Mallory e Adams (2006).
87
Publicado em 1991. Mas utilizamos a edição de 1996 da Editorial Gredos. Francisco Villar Liébana (1942-) é
catedrático na Universidade de Salamanca e especialista em filologia e linguística indo-europeia.
88
VILLAR, 1996, p. 116. “[…] hacen descripciones pormenorizadas de múltiples dioses indoeuropeos, de sus
funciones, de su organización estructurada […]”.
42

dizem que nada ou quase nada podemos conhecer da religião indo-europeia ou de seus
deuses.”89.
No discorrer da nossa investigação etimológica, localizamos, de fato, por meio dos
especialistas, um único radical hipotético (*diw-) que mostramos se desdobrar em diversos
outros radicais espalhados por quase toda Europa e parte da Ásia. Esse radical seria intrínseco
à ideia de celestial nessas sociedades. Os pessimistas tendem a defender que, devido a essa
limitação, de haver um único radical para tantos nomes semelhantes, supõe-se que se trata,
portanto, de um único elemento da sociedade: o “sol”, e, por extensão, o “céu” ou o “dia
ensolarado”. Sol e céu seriam, talvez, para eles, como “nomes” de invocação, fortemente
difundidos em suas culturas através do costume dos seus antepassados indo-europeus.
Entretanto, para os demais “deuses” (lua, estrelas, constelações, árvores, etc.), os seus nomes
próprios especiais acabariam por variar bem mais, inclusive nos radicais das palavras da família
indo-europeia. Complementa Villar que

O nome desse único deus comum testemunhado (*dyḗus) costuma ir


acompanhado da palavra indo-europeia para ‘pai’ (*patḗr), na fórmula *dyḗus
patḗr: sânscrito dyauṣpitā, grego Ζεύς πατήρ, latim Iūpiter (úmbrio Iupater),
ilírio (legado através do lexicógrafo grego Hesíquio) Δειπάτυρος. De modo
que, segundo os pessimistas, dessa religião indo-europeia mal poderíamos
conhecer mais que o nome de um dos seus deuses, e talvez alguma de suas
funções graças principalmente ao epíteto de ‘pai’ com que normalmente é
designado.90

Segundo construímos nossa lógica, investigando a palavra grega θεός, descartamos


primeiramente “deus” como significado, e logo em seguida “céu”, com ressalvas. O que implica
dizer que as palavras que mostramos também não são significados umas das outras, mas sim
correspondentes da família em vários idiomas antigos. Então nos questionamos: Ζεύς é um
θεός? Iuppiter ou Iou é um deus? Ζεύς e Iuppiter são nomes próprios e θεός e deus são seus
“adjetivos”? O que consideramos nessa questão é que tanto Ζεύς quanto Iuppiter são pronúncias
especiais para um mesmo termo ancestral do qual θεός e deus também compartilham, sendo
que, entre os helenos e os latinos esses últimos ganharam conotação mais genérica, mas não
menos importante na sociedade. Portanto, ainda defendemos a ideia de que são todas palavras

89
Ibid., loc. cit. “[…] opinan que nada o casi nada podemos conocer de la religión indoeuropea o de sus dioses”.
90
Ibid., loc. cit. “El nombre de este único dios común testimoniado (*dyḗus) suele ir acompañado de la palabra
indoeuropea para ‘padre’ (*patḗr), en la formula *dyḗus patḗr: sanscrito dyauṣpitā, griego Ζεύς πατήρ, latín
Iūpiter (umbro Iupater), ilirio (trasmitido a través del lexicógrafo griego Hesiquio) Δειπάτυρος. De modo que,
según los pesimistas, de la religión indoeuropea apenas podríamos conocer más que el nombre de uno de sus
dioses, y acaso alguna de sus funciones gracias principalmente al epíteto de ‘padre’ con que suele ser designado.”
43

correspondentes, em que Ζεύς e θεός, Iou e deus talvez procedam da mesma origem hipotética
protoindo-europeia, mas com aplicações sociais distintas que são evidenciadas pela mudança
ou permanência fonética do radical, por exemplo.91
Mas, como veremos, a raiz da palavra terá seu “brilho” semântico ofuscado ao ser
utilizada pelo falante que passará a agregar – através da inclusão de afixos, temas, desinências
– sentidos abstratos e metafóricos aos termos, sentidos estes, que poderão fossilizar as suas
semânticas primordiais e, para um mesmo termo, aplicar um sentido diferente da lógica
etimológica, um recurso natural do falante com a finalidade de enriquecer sua expressão mental
e comunicativa junto ao meio em que vive. Já vimos isso no mundo persa, onde *diw-
provavelmente persistiu com um sentido totalmente pejorativo, de “demônio” ou “espírito
maligno”, oriundo do falante de avéstico.
Todavia, em se tratando de forças de culto, é lógico que há uma grande probabilidade
de que os protoindo-europeus rendessem agradecimentos ao céu e aos seus corpos ou astros.
Esses seres atmosféricos, como já indicamos, faziam parte da rotina social desses povos. 92
Complementa Villar, mencionando que “não é, pois, de estranhar que tais povos dispunham de
deuses capazes de administrar favoravelmente a chuva, de controlar o vento, de iluminar as
trevas”.93 Com isso, fomentamos outro questionamento: o sentido de “Sol”, como no luviano
ti-ṷa-az, corresponde ao disco luminoso em si ou a uma entidade idealizada que cuida do ciclo
solar? Ou seja, o sol é o ser ou há um ser que cuida do sol? O sol é um celestial, ou há um
celestial do sol? Pela etimologia, em princípio, preferiremos a ideia de que o “sol” é esse ser

91
O que implica a seguinte afirmação: nem toda referência a θεός estará simbolizando uma menção particular ao
nome Ζεύς; o mesmo entre Iuppiter e deus. Esse seria o cerne do caráter geral que receberam θεός e deus ao longo
de sua evolução diacrônica, que procuramos destacar em nossa definição, que não receberam Ζεύς e Iuppiter, já
distintos em sua época de uso. Entre o clássico Chantraine e o recente Beekes, no que diz respeito à etimologia do
grego antigo em si, os aspectos etimológicos são separados: Ζεύς tem relação com Iou e deus, mas θεός geralmente
é pensado à parte. No antigo micênico (linear B, séculos XV-XII A.E.C.) o vocábulo “te-o” (PY Eb 297, Ep 704)
foi encontrado inscrito em vários recipientes para óleo ou melado, raramente encontrado como parte de nome
próprio, e possivelmente associado a festivais comunitários (CHADWICK; BAUMBACH, The Mycenaean Greek
Vocabulary, 1963, p. 202). Diante dessa incerteza, muitos especialistas receiam o estabelecimento dessa
associação hipotética realizada até o momento neste trabalho, entre θεός e os demais. De fato, não podemos
confirmar nada em um estudo etimológico baseado em termos hipotéticos antigos, entretanto o nosso intuito visa
a explorar suposições e exercícios intelectuais para elaboração de sentidos e conceitos, não para fomentar uma
verdade, ou verdades para o passado e nem para o presente, mas sim para abrir portas, para que se conjecturem
novas pesquisas acerca desse tema rico e socialmente relevante, todavia limitado seja pela linguagem humana, seja
pela mentalidade pesquisadora.
92
Apesar do verbo no passado, é bem visto, em nossos dias, que essa devoção ganhou nova roupagem, e ainda
está viva nas religiões do mundo – realizar culto, prestar oferenda, cantar, falar com os céus para que sobre si não
se incorra punições eternas ou vindouras –, bem como também, no comportamento atemorizado e da sensação de
fragilidade do ser humano contemporâneo diante de um incidente natural, como um furacão, um tsunami, uma
seca, um incêndio (que também pode ser causado por seres humanos, de forma dolosa ou culposa).
93
VILLAR, op. cit., p. 118. “No es, pues, de extrañar que tales pueblos dispongan de dioses capaces de
administrar favorablemente la lluvia, de controlar el viento, de iluminar las tinieblas”.
44

cultuado – certamente com um nome de inclusão ritual dado ou aceito pela tribo dos falantes,
nome esse que sobrevém aos seus afetos. Com o passar dos séculos, certamente o sol passou a
ser visto como um símbolo para algo de cuja origem não se tem mais certeza, uma festividade
em torno da “ideia” de um sol-divindade, como na idealização de um ser (animado ou
inanimado) que ilumina a terra com o sol, ou representa na terra esse “sol”, e não mais,
puramente, o sol como um ente para se dedicar culto.94
Nesse sentido, os seres atmosféricos, vistos como não natos e incompreendidos, para
esses homens e mulheres hipotéticos, mas verossímeis, foram submetidos a um processo de
personificação. O sol teria irmão(s), esposa(s), filho(s), adversário(s), amante(s), à semelhança
dos homens, cada um, segundo suas culturas literárias, educacionais, musicais. Para Villar,

Se a abóbada celeste foi personificada como ‘pai’ é lógico pensar que os


diferentes fenômenos atmosféricos puderam ser personificados
reciprocamente como ‘filhos’. E a existência do nome comum para ‘deus’:
*deiwos (e seu plural correspondente *deiwōs) poderia ser um indício de que,
efetivamente, existiram essas outras personificações.95

Como insiste Villar, entre os seres atmosféricos, essa relação com o “sol” seria aquela
para a qual mais podemos desenvolver especulações hipotéticas verossímeis. O radical *diw-
não é associado à “lua”, por exemplo, mas sim ao esplendor do dia, do céu ensolarado. Não
aprofundaremos essas hipóteses sobre uma possível personificação dos outros seres
atmosféricos. Da mesma forma que não é nosso intuito seguir com mais questões sobre isso,
pois, uma hipótese problemática poderá nos levar ao anacronismo, atribuindo costumes aos
ancestrais protoindo-europeus que, na verdade, são dos hititas, dos helenos, dos latinos, dos
luvianos, dos nórdicos que podem ser datados numa cronologia e possuem evidências
arqueológicas. Se fosse o caso, um estudo sobre cada povo individualmente seria mais

94
Também podemos levar em consideração que certos seres foram ou são chamados não por um nome próprio,
mas por seu título, epíteto, grau de parentesco, lugar social ou por seu lugar onde habita ou de origem. Assim, por
meio de seu radical, o sol poderia ser chamado de “dia” ou “céu”, ou seja, o radical simboliza tanto o sol, quanto
o céu, ou o dia, sendo também o lugar onde “habita”. Outro exemplo: por questões de legado, seja grego ou bíblico,
entendemos que “faraó” é o título do rei do Egito Antigo. Contudo, para os próprios egípcios antigos, o termo
designava originalmente a habitação do rei e não necessariamente o seu título de rei. Assim, “pr ‘Ꜣ” (per aA) que
deu em “faraó” indica seu templo, seu casarão, e “bỉty” (“abelha”, chefe do baixo Egito) e “nsw” (chefe do alto
Egito), alguns de seus epítetos de governante. Os termos “wḏꜢt” (udjat), “‘ rsy” (a resy), “‘ mḥty” (a meh-ty),
“bꜢḳ.t” (baket) e “kmt” (kemet) são algumas designações dos egípcios antigos para sua própria terra – o rei era o
“Senhor das Duas Terras, soberano do Alto e do Baixo (nsw bỉty nb tꜢwy – Gardiner’s code S2-S4 – ).
95
Ibid., p. 119. “Si la bóveda celeste fue personificada como ‘padre’ es lógico pensar que los diferentes fenómenos
atmosféricos pudieron ser personificados a la reciproca como ‘hijos’. Y la existencia del nombre común para
‘dios’: *deiwos (y su plural correspondiente *deiwōs) podría ser un indicio de que, efectivamente, existieron esas
otras personificaciones”.
45

interessante do que especulações excessivas sobre os ancestrais desses povos. Podemos sentir
um pouco dessa complexidade, através de uma sentença hitita coletada por Kloekhorst: “Sol
celeste, meu senhor, você é o rebanho da humanidade.”96

2.1.2 Etimologia e definição do prefixo ἀ (alfa) privativo

Apresentamos, portanto, as questões que creditamos ser as mais significativas para a


nossa investigação etimológica sobre o radical formador da palavra composta ἄθεος. Por
conseguinte, adentraremos no outro elemento formador do vocábulo: o ἀ (alfa) privativo
(στερητικόν). Esse elemento prefixal não é característica apenas de línguas antigas da família
indo-europeia, já que ainda deixa sua marca nos seus descendentes “modernos”. Na língua
portuguesa, podemos exemplificar isso através das palavras “amoral” e “analfabeto”. Se
observarmos tais palavras sem o prefixo, teremos “moral” e “alfabeto”, indicando que “a-” vem
antes de consoante e “an-” vem antes de vogal. O Dicionário Houaiss conceitua “amoral”,
vocábulo português desde 1919, como alguém “moralmente neutro (nem moral, nem imoral);
que não leva em consideração preceitos morais; estranho à moral”; igualmente, analfabeto, de
1710, como “aquele que desconhece o alfabeto; que ou aquele que não sabe ler nem escrever”.
A acepção desse sufixo será tanto expressiva para a nossa significação de base etimológica do
termo grego, quanto para pesquisadores que se interessem pela compreensão da ideia de ateísta
em seu contexto heleno e romano, além da nossa finalidade de levantarmos especulações
lançadas aos contextos não greco-latinos.
O protótipo desse prefixo na hipótese do protoindo-europeu é *n-.97 Ao estar em
contexto pré-vocálico ou laringal, *n- (*n̥-HV-) sonoriza para *anV-. Sobre o grego, Beekes
complementa, mencionando que

No grego, a perda da consoante inicial (*ṷ-, *s-) confundiu a distribuição


original: assim ἄισος (< *ἀ-ϝισος) está próximo do reformulado ἄνισος.
Algumas vezes isso levou a formas análogas, como ἄ-οζος próximo do
original ἄν-οζος. Em nomes pessoais micênicos a-u-po-no /Ahupnos/, o a-
está antes do h-, como no clássico ἄυπνος. Em ἀόριστος (de ὅρος < *worwo-
), nós vemos que o ϝ- inicial foi conservado originalmente antes de *o
também.
Se o segundo membro inicia com laringal + consoante, isso deu o grego νη-,
νᾱ-, νω- como em νήγρετος, νωδός < *n-h₁gr-, *n-h₃d-. Esses adjetivos foram,

96
KLOEKHORST, 2008, p. 1008. “KUB 6.46 iii (52) dUTU ŠA-ME-E EN=I̭ A ŠA DUMU.LÚ.U19.LU-ut-ti ú-e-
eš-ta-ra-aš” | “Sun-god of Heaven, My Lord, you are the herd of mankind”.
97
BEEKES, 2010, p. 1.
46

mais tarde, reformulados, e.g. dentro de ἀνώνυμος. Em ἀνάεδος, ἀνά-ελπτος


e ἀνάπνευστος, que parece indicar ἀνα- ‘an-’, os últimos dois são análogos, e
o primeiro pode sustentar ἀν-εεδν-.
ἀ(ν)- foi primordialmente limitado a adjetivos verbais e bahuvrīhis, ambos no
grego e nas outras línguas indo-europeias; [...].98

O protoindo-europeu *n̥- legou a marca da nasal *n(e) como advérbio de negação da


família indo-europeia.99 Como vimos em Beekes, o grego demonstra essa herança da partícula
de negação através de νη-, νᾱ-, νω-. Esse prefixo de negação foi pouco ou nada produtivo para
o português. Temos o latim nescius “que não sabe”; o sânscrito nāstika “que não há”, “que não
existe”, uma escola filosófica que negava a autoridade dos vedas. No grego, acrescentamos:
νηδεής (“sem medo”), νηκερδής (“que não se cuida”, “negligente”), νηπενθής (“que dissipa a
dor”), ἀνήλιος (“sem sol”, “sombrio”), ἀνήνυς (“sem fim”, “ineficaz”), ἀνήνωρ (“sem
virilidade”, “covarde”).100 Palavras que seguem a lógica de ἄθεος, segundo a derivação do
radical: ἀθέατος (“que não se vê”, “invisível”), ἀθεεί (“sem θεός”, “sem a ajuda de θεός”),
ἄθεσμος, ἀθέμιστος (“ilegal”, “contra a lei”, “ilícito”, “ímpio”), ἀθεότης (“impiedade”,
“ateísmo”); ἀδεής (“livre de medo”, “sem medo”, “imprudente”, “que não dá medo”), ἀδεῶς
(“sem medo”, “sem limitação”).101 O português “adeus”, de 1538, não significa “sem deus”,
pois esse “a-” não é prefixo de negação como em “ateu”, mas sim é a contração de destinatário:
“vai junto a Deus”, “entrego-te a Deus”.102
Definiremos ἄθεος de forma etimológica da seguinte forma: que nem é contra nem a
favor de θεός, que sente estranheza diante de θεός, pois não o conhece, ou desconsidera que

98
Ibid., loc. cit. “In Greek, the loss of initial consonants (*ṷ-, *s-) disturbed the original distribution: thus ἄισος
(< *ἀ-ϝισος) next to the reshaped ἄνισος. Sometimes this led to analogical forms, like ἄ-οζος next to original ἄν-
οζος. In the Myc. PN a-u-po-no /Ahupnos/, the a- stands before h-, like in classical ἄυπνος. In ἀόριστος (to ὅρος
< *worwo-), we see that the initial ϝ- was originally retained before *o as well.
If the second member began with laryngeal + cons., this yielded Greek νη-, νᾱ-, νω- like in νήγρετος, νωδός < *n-
h₁gr-, *n-h₃d-. These adjectives were later reshaped, e.g. into ἀνώνυμος (see Beekes 1969: 98-113) In ἀνάεδος,
ἀνά-ελπτος and ἀνάπνευστος, which seem to show ἀνα- ‘un-’, the last two are analogical, and the first may stand
for ἀν-εεδν-.
ἀ(ν)- was originally limited to verbal adjectives and bahuvrīhis, both in Greek and in other IE languages”.
“Bahuvrīhis” (बहुव्रीहह) é um termo de gramática sânscrita que, literalmente, significa “muito arroz”. Está ligado
com a formação de compostos e regras de acentuação. Já o “ϝ” (digama) tem relação com o “w” (vav), uma
labiovelar semivogal (MURACHCO, 2001, p. 62).
99
KROONEN, 2013, p. 385.
100
Os significados foram coletados de Pabón (1967). Pabón será nossa principal referência para significados em
grego clássico.
101
Sobre o alfa privativo também cf. CHANTRAINE, Dictionnaire étymologique de la langue Grecque, 1999, p.
1-2.
Cf. Dicionário Houaiss, s. u. Possivelmente uma das poucas palavras portuguesas que possui o nome “deus”
102

em sua formação – outra pode ser o verbo “endeusar”.


47

θεός existe, que não foi permitido que o conhecesse, ou, desproveu-se de θεός, privou-se de
θεός. Entenderemos θεός como: um ser vivo ou inanimado que, como elemento celeste ou dito
dele, considerado entre terra e firmamento, fora consagrado ou erguido por grupos humanos
para fazer parte de suas vidas cotidianas, em que estes argumentavam sobre a sua verossímil
interferência na sua sociedade. Se pretendemos simplificar essa definição para um
correspondente em português, cremos que “ser celestial” apresenta-se cabível ao contexto.103
Os principais dicionários (não etimológicos) que consultamos – Torrinha (1939, 1942)104;
Bölting (1953)105; Lewis e Short (1955); Pabón (1967); Fraile (1946, 1966)106; Houaiss (2009);
Rezende e Bianchet (2014)107 – também levam em consideração o significado social que o
termo adquiriu ao longo de sua história: “sem Deus”, “não crê em Deus”, “ímpio”, “malvado”,
“infame”, “negador dos deuses”, “que não respeita os deuses”. Devido a essa ampliação
semântica, baseada em impressões diacrônicas que provavelmente ultrapassam no momento o
nosso intuito etimológico, consideramos importante, neste capítulo, não analisar somente o
elemento ateísta na Antiguidade Clássica, mas também o próprio lugar de θεός nessa mesma
problemática.
Concluindo a nossa investigação etimológica, vemos que ἄθεος seria o agente de uma
ação, aquele que desconsideraria a possibilidade de existir algo ou alguém que se torna celestial
(para além dos já evidenciados na atmosfera), e que priva-se da ideia de ser verossímil a lógica
do verbo θεόω, -όομαι (“tornar-se um ser celestial”, de culto ou veneração), como vimos em
Beekes; ἀθεότης poderia ser sua “qualidade”, seu desígnio social, ou, como é visto socialmente
(devido ao sufixo -της, -τητος, formador de palavras de 3ª declinação), ou seja, um indivíduo
chamado de ἄθεος, por suas ações, seria qualificado de ἀθεότης, e seu ensino, sua ação ou
atitude, chamada de ἀθεϊσμός108.109

103
Além de “ser celestial”, nos é atraente também “ser de culto” ou “ser de veneração”. Entretanto, estas duas
últimas tendem a proceder da influência contextual dos povos, e nem tanto das hipóteses etimológicas que
exploramos.
104
TORRINHA, Dicionário Português-Latino, 1939; Dicionário Latino-Português, 1942.
105
BÖLTING, Dicionário Grego-Português, 1953.
106
FRAILE, Diccionario Español-Latino, 1966.
107
REZENDE; BIANCHET, Dicionário do latim essencial, 2014.
108
Palavra moderna, adaptação do francês “athéisme”, século XVI. “Ateísmo” em português consta desde 1634
(Dicionário Houaiss, s. u.). Para nós, como já dissemos, trata-se de um tema de estudo para as ciências humanas
e linguagens.
109
Além disso, gramaticalmente, ἄθεος é da 2ª declinação, sendo declinado da seguinte forma – respectivamente
em nominativo, vocativo, genitivo, acusativo e dativo: no masculino/feminino singular - ὁ/ ἡ ἄθεος, (ὦ) ἄθεε, τοῦ/
τῆς ἀθέου, τόν/ τήν ἄθεον, τῷ/ τῇ ἀθέῳ | no plural - οἱ/ αἱ ἄθεοι, (ὦ) ἄθεοι, τῶν ἀθέων, τούς/ τάς ἀθέους, τοῖς/ ταῖς
ἀθέοις; no neutro singular - τό ἄθεον, (ὦ) ἄθεον, τοῦ ἀθέου, τό ἄθεον, τῷ ἀθέῳ / no plural - τά ἄθεα, (ὦ) ἄθεα, τῶν
ἀθέων, τά ἄθεα, τοῖς ἀθέοις. O vocábulo ἀθεότης, da 3ª declinação, declina-se da seguinte forma: no singular - ἡ
48

2.2 Problemáticas do culto ao celeste e sua inserção na sociopolítica da crença

Ao longo deste capítulo, tivemos a oportunidade de conceituar, ao nosso modo, o


vocábulo grego θεός, tomando por base a junção dos métodos etimológicos especificados no
seu começo. Buscamos por sua significação mais simples, ausente de abstrações ou metáforas.
Esse exercício pretendeu, em princípio, a localização do pensamento primordial de uma
sociedade que só existe na hipótese, ou seja, os protoindo-europeus, bem como os indo-
europeus mais arcaicos. No que se refere aos hititas, aos luvianos, aos frígios, aos troianos e
aos demais povos fundados na Anatólia (ou Ásia Menor) e nas proximidade do Mar Negro,
bem como aos antigos medo-persas e indianos (nas regiões do Irã, Paquistão, Afeganistão,
Índia, Bangladesh, Butão, Nepal), sabemos que nossa definição deverá passar a admitir novas
especulações, como o advento do post mortem, que tende a inserir seres vivos falecidos na
categoria de “celestial” – ou seja, como lidavam com a questão dos seres vivos após a sua morte,
sendo que nem toda sociedade ou indivíduo cogitou essa reflexão.
No entanto, em sua Théorie de la Religion, de 1973110, Georges Bataille trabalhou com
argumentos distintos daqueles que desenvolvemos, no que diz respeito ao que definimos como
primeiro aspecto semântico de θεός. Para o escritor, tanto os animais, as plantas e os astros
eram compreendidos na espiritualidade pelo ser humano antigo. Segundo defendeu, essa
realidade material era compreendida como espiritual, mítica, sendo que esse ser celestial,
nomeado “Ser supremo” pelo autor, não teria ponto de referência no real, mas ainda sim seria
constituído da mesma natureza espiritual de um humano morto, ou de um animal morto.111 Em
suas palavras,

O ‘Ser supremo’, o soberano dos deuses, o deus do céu, em geral não passa de
um deus mais poderoso, mas de mesma natureza que os outros.
Os deuses são simplesmente espíritos míticos, sem substrato de
realidade. E deus, é puramente divino (sagrado), o espírito que não está
subordinado à realidade de um corpo mortal. Na medida em que ele próprio é

ἀθεότης, (ὦ) ἀθεότης, τῆς ἀθεότητος, τήν ἀθεότητα, τῇ ἀθεότητι | no plural - αἱ ἀθεότητες, (ὦ) ἀθεότητες, τῶν
ἀθεοτήτων, τάς ἀθεότητας, ταῖς ἀθεότησι(ν). Por sua vez, ἀθεϊσμός declina-se como da 2ª declinação: no singular
- ὁ ἀθεϊσμός, (ὦ) ἀθεϊσμέ, τοῦ ἀθεϊσμοῦ, τόν ἀθεϊσμόν, τῷ ἀθεϊσμῷ | no plural - οἱ ἀθεϊσμοί, (ὦ) ἀθεϊσμοί, τῶν
ἀθεϊσμῶν, τούς ἀθεϊσμούς, τοῖς ἀθεϊσμοῖς.
110
Publicação póstuma. Consultamos a edição e tradução espanhola de 1998. Georges Bataille (1897-1962) foi
um escritor francês versado nas humanidades (literatura, antropologia, filosofia, sociologia, arte, religião,
erotismo).
111
BATAILLE, 1998, p. 40.
49

espírito, o homem é divino (sagrado), mas não o é soberanamente, já que é


real.112

Esse “Ser supremo” parece-nos demasiadamente confundido com pensamentos mais


recentes sobre deus – flertando com o anacronismo. Como vimos, os seres celestiais
dificilmente seriam confundidos com “espíritos”.113 A própria ideia de espírito na Antiguidade
é complexa. Contudo, certamente, o sol, por exemplo, fora visto no céu, era real, assim como
seu nome “sacro” seria pronunciado no argumento que o inclui como superior aos seres
humanos, ou seja, utilizando o seu nome de inclusão sociorritual, justificando certa devoção. É
provável que nessa primeira impressão que temos dessa relação homem-céu, o seu nome
comum e o seu nome de culto fossem os mesmos, mas, diferentes em cada cultura de falantes,
em cada língua, como vimos nos diversos radicais indo-europeus para nomes da natureza e
fenômenos atmosféricos, além do que, em uma mesma árvore linguística, ocorrerem diferenças
sutis quase sempre na fonética, entre certas palavras, como também vimos. A ideia de algo ser
“mítico” também é complexa na Antiguidade. É provável que esse sentido de “espiritual”,
inicialmente, procedesse de incidentes que ocorriam com ou sem a ciência do ser humano. A
ação do vento, dos microrganismos, do raio, do trovão, do fogo, e quiçá do porquê do
“pensamento” (de haver palavras na cabeça, sem proferi-las com a boca) e esse “mítico” tenha
se desenvolvido a partir do argumento que buscava inserir o nome de algum fenômeno
atmosférico ou de algum astro celeste na tribo, por meio de ações simbólicas, carregadas de
significados, coordenadas, musicalizadas, ritmadas, vocalizadas. O ser humano também se
incluirá no âmbito do celeste, seja em vida, seja depois de morto – sendo essa, uma das
problemáticas do ser “herói” e “poderoso” na Antiguidade.

112
Ibid., p. 41 (da versão espanhola). Tradução de Sergio Goes de Paula e Viviane de Lamare (da versão portuguesa
de 1993 da Editora Ática – tivemos acesso à tradução, mas não à obra em si).
113
Chantraine (1999, p. 430) também compactuava com esta observação.
50

Figura 01 – Estela de Naram-Sin, rei da Acádia

Fonte: Extraído do site do Museu do Louvre, Paris, França 114

Apesar de não ser um trabalho puramente de indo-europeus, essa estela acadiana – que
estava no contexto dos hititas e de outros povos da Anatólia no III milênio A.E.C. – nos mostra
um indício de que esses homens antigos, em suas celebrações, devotavam ao sol e aos astros o
seu agradecimento pelas vitórias nas batalhas, tanto quanto certamente em outros setores da
vida. Representados no topo da estela, o sol e esses astros são os entes celestiais que guiaram o
chefe acadiano à vitória sobre seus rivais sumerianos lullubi da região montanhosa de Zagros,
no atual Curdistão iraquiano e iraniano. Isso pode vir a compactuar com a nossa ideia de que
os astros celestiais eram representados como eram vistos por esses homens e mulheres que,
nesse período, dificilmente creriam na existência do elemento espiritual da matéria, como será,
por exemplo, com os áticos pós-homéricos – assim como não há um “corpo” humanoide que

114
Victory Stele of Naram-Sin, 2250 A.E.C.; A 200cm x L 105cm.; escavações de Jacques de Morgan, 1898, em
Susa, Irã. Setor de Antiguidades do Oriente Próximo, ala Richelieu, térreo, quarto 2.
Disponível em: https://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/victory-stele-naram-sin. Acesso em: 21 abr. 2018.
51

simboliza um “deus” do sol, ou, um “deus” do céu, além do corpo do próprio chefe que, ao
mesmo tempo que venera, é venerado e temido.115
Por sua vez, Mircea Eliade em sua Historia de las Ceencias y las Ideas Religiosas, de
1976116, defendeu que

A ideia do divino aparece vinculada à sacralidade celeste, isto é, à luz e à


‘transcendência’ (altura), e por extensão à ideia de soberania e capacidade
criadora em seu sentido imediato: cosmogonia e paternidade. O (deus do) céu
é pai por excelência; compara-se o sânscrito Dyauspitar, o grego Zeus Pater,
o ilírio Daipatūres, o latim Júpiter, o cita Zeus-Papaios, o dácio-frígio Zeus-
Pappos.117

Compactuando com nossas observações, Eliade mostrou que, certamente, esse âmbito
celestial (personificado ou não) fazia parte do cotidiano dessas comunidades indo-europeias por
meio da “cosmogonia” e do sentimento de “paternidade”. Comunidades que tendiam a evocar
com criatividade o seu nome de inclusão sociorritual afetivo na tribo. Se inclui essa cosmogonia
não só no sentido de argumentação acerca da origem desses seres celestiais, mas também da
própria presença do ser humano no local onde habita. Funciona como uma ciência primordial,
oriunda do questionamento e da dúvida, inerentes ao indivíduo. De onde vêm os astros? Quem
são os astros? Como se relacionam conosco? E quem somos nós diante deles? De onde viemos?
Somos parte do celeste? E quanto ao vento, ao raio e ao fogo? São autônomos ou algo os
produz? A ideia de “paternidade” pode ter sido uma primeira conclusão desses homens e
mulheres antigos acerca de sua relação com esses corpos superiores, transcendentes (do âmbito
físico, do solo), habitantes do céu – cuja morada especial também tendia a receber nomes
sociorrituais afetivos e simbólicos. No capítulo II, exploraremos mais essa questão.
Pela etimologia, o protótipo protoindo-europeu da paternidade é *ph2tēr, conferido no
grego πατρός (patrós), no micênico pa-te, no sânscrito pitár- (पििर) e pítriya (पिियृ ा), no latim
pater e patrius, no gótico fadar. A palavra “pai” é a correspondente em português. Entre suas

115
A descrição do motivo encontra-se no referido site do Louvre. Contudo, como é de costume, não podemos
afirmar nada historicamente, como se ocorresse absolutamente da forma como foi apresentada, uma vez que, as
exceções podem aparecer no momento em que o pesquisador menos espera.
116
Original em francês, que não tivemos acesso. Utilizamos a edição e tradução espanhola de 1999 (Volume I).
Mircea Eliade (1907-1986) foi um professor poliglota romeno, escritor romancista, filósofo e historiador das
religiões.
117
ELIADE, 1999, p. 252. “La idea de lo divino aparece vinculada a la sacralidad celeste, es decir, a la luz y a
la ‘trascendencia’ (altura), y por extensión a la idea de soberanía y capacidad creadora en su sentido inmediato:
cosmogonía y paternidad. El (dios del) cielo es el padre por excelencia; confróntese el indio Dyauspitar, el griego
Zeus Pater, el ilirio Daipatūres, el latino Júpiter, el escita Zeus-Papaios, el traco-frigio Zeus-Pappos”.
52

significações estão: chefe de tribo, família ou clã; ancestral; primeiro da linhagem; que gera a
hereditariedade; que dá a terra natal.118 Dessa forma, é possível que tais povos antigos se
considerassem de fato descendentes do céu, filhos astrais, escolhidos do celeste ou herdeiros
daquele que está no alto. Contudo, sabemos que coube a cada cultura a sua própria
argumentação a respeito dessa questão social. Afinal, seriam todos filhos do celeste, ou só
alguns? Por que seriam? Qual seria o lugar social de quem fosse e de quem não fosse? Para o
mundo helênico, podemos exemplificar com duas situações no mesmo caso: 1) “Τὸν δ’ ἠμείβετ’
ἔπειτα ποδάρκης δῖος Ἀχιλλεύς· [...].”119 Se Aquiles, o herói da Ilíada, é um ancestral dos
helenos em tempos mais antigos, sendo ele oriundo do celeste (δῖος), fortaleceria aí um suposto
argumento de que os helenos nativos posteriores também o seriam – tornaria essa afirmação
verossímil120; 2) na genealogia tradicional mitológica argumentada do herói temos: Aquiles
(Ἀχιλλεύς), filho de Peleu (Πηλεύς), filho de Éaco (Αιακός), filho de Zeus (Ζεύς), ou seja,
bisneto da personificação do céu, do “pai” celestial.121
Por outro lado, também podemos destacar um argumento em específico de Mircea
Eliade que diverge de nossas considerações, particularmente quanto ao significado etimológico
de θεός. Para o escritor, θεός derivaria de outro radical que também formaria desígnios para o
sentido de “alma” ou de “espírito do morto”. Como exemplos, cita: o lituano dwesiu (respirar,
espírito), o antigo eslavo duch (respiração) e dusa (alma), concluindo assim que θεός se
desenvolveu para nomear de forma especial os mortos ascendidos ao céu.122 Eliade partiu da
ideia de que θεός seria formado pelo radical protoindo-europeu *dhues- que indica os sentidos

118
Cf. BEEKES, 2010, p. 1158.
119
“Respondeu-lhe o celestial Aquiles, de pés rápidos: [...]” (HOMERO, Ilíada, canto I, verso 121, tradução nossa,
grifo nosso). “Then in answer to him spoke noble Achilles, swift of foot: [...]” (HOMER. The Iliad. 1924, p. 21,
grifo nosso). “Le respondió el divino Aquiles, de protectores pies: […]” (HOMERO. Ilíada. 1991, p. 107, grifo
nosso). Vemos aqui que “celestial”, “ilustre”, “excelente”, “nobre”, “divino” são traduções possíveis para “δῖος”.
120
“De Deucalião e Pirra nasce primeiro Hélen, filho de Zeus segundo alguns [...]. Aos chamados gregos,
denominou-os helenos a partir de seu próprio nome e repartiu o país entre seus filhos.” (APOLODORO, Biblioteca,
Livro I, “Deucalião”, p. 58). Cf. “Em Hesíodo, Fr. 5, se diz que houve uma Pandora, filha de Deucalião, que teve
de Zeus um filho chamado Grego. Em Hesíodo, Fr. 3 (Filastrio, Diversarum Haereseon liber III) parece haver
uma confusão entre Grego, neto de Deucalião, e o nome de ‘gregos’ aos que Hélen denominou helenos. De acordo
com o Marmor Parium 239A 6, a mudança de nome de gregos para helenos ocorreu em 1521 A.E.C.”; Cf. nota
86 de Margarita Rodríguez de Sepúlveda (1985, p. 58) sobre a sua tradução espanhola de (pseudo)Apolodoro,
Biblioteca, pela Editorial Gredos. “De Deucalión y Pirra nace primero Helén, hijo de Zeus según algunos […] A
los llamados griegos los denominó helenos a partir de su propio nombre y repartió el país entre sus hijos.”. | “En
Hesíodo, Fr. 5, se dice que hubo una Pandora, hija de Deucalión, que tuvo de Zeus un hijo llamado Griego. En
Hesíodo, Fr. 3 (Filastrio, Diversarum Haereseon liber III) parece haber confusión entre Griego, nieto de
Deucalión, y el nombre de ‘griegos’ a los que Helén denominó helenos. De acuerdo con el Marmor Parium 239A
6, el cambio de nombre de griegos a helenos tuvo lugar en 1521 a. C.”.
121
Provavelmente, cada termo grego (o nome próprio dos heróis) terá uma etimologia simbólica para ser
investigada.
122
ELIADE, op. cit, p. 252, nota 3.
53

de “fumaça”, “respirar”, “inspirar”, “inalar”, “tomar folego”. A palavra grega θεῖον (theȋon,
“enxofre”) foi relacionada com esse radical hipotético. Portanto, θεός já foi afastado desse
radical enfatizado por Eliade (*dhues-), como já mostramos (*dʰeh₁s-). Além do mais,
Chantraine e Robert Beekes já tinham alertado seus leitores sobre essa não associação entre
θεός, “fumaça”, “respiração” ou “alma/espírito”.123
É perceptível que Eliade e Bataille tentaram trazer aos significados mais antigos de θεός
e deus o elemento espiritual, partindo primordialmente do concreto, como no caso de uma
fumaça, para o abstrato, como no caso de um morto ascendido ao céu através de algum ritual
de passagem. Essa intenção foi questionada aqui. Incluir o suposto elemento da alma ou do
espírito ao termo θεός/deus como “óbvio” ao seu conceito geral, torna a sua aplicação histórica
problemática, pois, nem sempre o ser humano lidou com questões do transcendente e nem todos
os povos levaram isso em consideração – por mais que, aparentemente, tenham sido poucos,
como os adeptos da filosofia anti-védica indiana (nāstika).124 Essa questão do celestial se
mostraria mais prática (e menos metafísica) do que se imagina.

Seguindo uma lúcida pesquisa de abordagens para a recuperação de crenças


religiosas por meio de dados arqueológicos, Knapp conclui que tal ideologia
é melhor avaliada como uma parte integrante das instituições sociopolíticas e
das relações econômicas; como ‘elites e outros grupos de interesse especial
que frequentemente recorrem a ideologia para estabelecer, desafiar ou mudar
uma ordem sócio-política especifica’, bem como ‘as relações de poder dentro
da sociedade servem para estabelecer autoridade religiosa e para legitimar
práticas ideológicas específicas e insígnias’. Essas observações são paralelas
à atenção que Whitehouse tem dado às características sociopolíticas de uma
comunidade como fatores que se reforçam mutuamente nas trajetórias
divergentes que tradições religiosas podem tomar.125

123
Cf. BEEKES, op. cit., p. 537.
124
Os partidos ou grupos mais conhecidos foram: Samkhya, Mimamsa e Cārvāka ou Lokāyata. O leitor pode
procurar por mais informações em: GARBE, Richard. The Philosophy of Ancient India. Chicago: The Open Court
Publishing Company, 1897.; GANERI, Jonardon. The Oxford Handbook of Indian Philosophy. Oxford: University
Press, 2017.; KRISHNA, Daya. Discussion and Debate in Indian Philosophy: Issues in Vedānta, Mīmāṁsā and
Nyāya. Nova Delhi: Indian Council of Philosophical Research, 2004.; LARSON, G. J.; BHATTACHARYA, R.
S. (ed.). Encyclopedia of Indian Philosophies IV: Sāṃkhya. Delhi: Motilal Banarsidass, 1987.; LARSON, G. J.
Classical Sāṃkhya: An Interpretation of its History and Meaning. Delhi: Motilal Banarsidass, 1998 [original:
1969].
125
JOHNSON, “Primary Emergence of the Doctrinal Mode of Religiosity in Prehistoric Southwestern Iran”, 2004,
p. 48. “Following a lucid survey of approaches to recovery of religious beliefs through archaeological data, Knapp
concludes that such ideology is best evaluated as an integral part of sociopolitical institutions and economic
relations; as ‘elites and other special interest groups often have recourse to ideology to establish, challenge or
change a specific socio-political order’, so too do ‘power relations within society serve to establish religious
authority and to legitimize specific ideological practices and insignia’. These observations parallel the attention
Whitehouse has given to a community’s sociopolitical features as mutually reinforcing factors in the divergent
trajectories that religious traditions may take”. Karen Johnson (em 2004) foi doutoranda na Universidade de
Michigan, associada ao Programa de Arte Clássica e Arqueologia e ao Programa de Cultura e Cognição. Menções
de Johnson: KNAPP, B. Ideology, Archaeology and Polity. Man, s.n., 23(I): 133-63, 1988.; WHITEHOUSE, H.
54

Ao contrário da leitura de Eliade e Bataille, que já conecta os primórdios de θεός ao


âmbito do espírito, do místico, da crença e do sobrenatural, a interpretação de Knapp e
Whitehouse, de acordo com Johnson, considera que a crença no âmbito celestial seria um
elemento primordial do convívio social, não necessariamente para “crer” em um tipo de abstrato
e cultuá-lo, mas para estabelecer divisões coerentes: a liderança; o permitido e o proibido; os
limites do território; o aliado e o inimigo; o que comer e o que não comer; o motivo guerreiro;
o motivo da aliança; o motivo arquitetônico; o motivo funerário; a identidade de grupo entorno
das festividades e dos símbolos. Dessa forma, θεός será parte do elemento da ordem e da lógica
desses povos.126 Θεός também será símbolo dessa ciência primordial. Cada povo terá o seu
θεός, ou seja, a sua motivação para pensar a sua própria função no meio – com as devidas
ressalvas para cada contexto.
Contudo, o poder sociopolítico colocado em θεός tenderá a permanecer nas mãos de
grupos que utilizariam essa ciência para subjugar outros – justificar ações em comunidade e
entre comunidades. Certamente existiram graus de conhecimento que não foram totalmente
compartilhados numa mesma tribo ou entre tribos. É imprescindível que a inclusão dos seres
celestiais e dos fenômenos climáticos nas sociedades primordiais tiveram como cerne uma
proposta organizadora de grupo: a guerra, a colheita, a confraternização, o governo e os
governados. Essa leitura de θεός, rompe com a ideia comum de que os seres celestiais
governavam os humanos; contrariamente, foram os humanos que consideraram importante não
os deixar de fora da tribo – mesmo que simbolicamente argumentados como “superiores” para
uns e como “iguais” para outros.
Mencionando Whitehouse, Johnson diz que “[...] é explícito que as noções e
significados religiosos para os participantes de uma tradição predominantemente imagética são
‘internamente gerados’ e ‘podem convergir em certos temas e ideias centrais’, mas nenhuma
uniformidade ou exegese apresentam.”127 Seriam concepções sobre o celeste que
permaneceram primordialmente na representação por imagem (desenhada, cantada, esculpida,

Modes of Religiosity: Towards a Cognitive Explanation of the Sociopolitical Dynamics of Religion. 2001. Leitura
da pré-conferência para “Modes of Religiosity: The Historical Evidence“, 1-5 ago. 2002, Universidade de Vermont.
126
Utilizaremos o vocábulo grego em parceria com a expressão “ser celestial”, principalmente, para designar certos
fatores que os homens colocaram como motivação para agir, para construir ou para destruir. O termo grego θεός
também está colocado aqui com um intuito “teórico” e não contextual, pois, não é dos gregos que estamos falando,
em particular, nessa ocasião.
127
Ibid., p. 61. “[…] is explicit that religious notions and meanings for participants in a predominantly imagistic
tradition are ‘internally generated’ and ‘may converge on certain themes and central ideas’, but present neither
uniformity nor exegesis”.
55

talhada), sendo que a escrita se encontrava pouco difundida e utilizada para isso; ela existia,
mas não era prioridade social, como seria no pós-III milênio A.E.C., com a atividade escriba,
principalmente no Egito, Oriente Médio e proximidades.
A imagem como linguagem era, certamente, o meio de transporte de ideias mais
eficiente desse período anterior ao III milênio A.E.C.128 Também podemos subentender que
essa “imagética” passaria pelo cantador, pelo músico, aqueles indivíduos encarregados de
instigar a atividade sonhadora dos seres humanos, uma atividade puramente mnemônica e
sonora, com uma performance que mexia com o imaginário desses ouvintes.129 Assim, a partir
dessa ótica, supõem-se que, para a maioria dos membros de uma tribo, muitas dessas
concepções sobre o âmbito celestial já seriam consideradas suficientemente satisfatórias para
que um indivíduo não se preocupasse em promover interpretações de fenômenos naturais ou de
sabedorias antigas, pois, geralmente, esse ofício era entregue a uma família ou a um clã em
particular – separada para esse fim – mantendo a ordem social sob as rédeas, ou não, dos
governantes.130
Essa leitura sociopolítica a respeito do uso das coisas celestiais por esses povos
ancestrais nos interessa. Ela nos ajudará a compreender o advento do pressuposto “alienado”
de θεός, em meio a povos imergidos na ciência explicada junto ao âmbito celestial.131
Reiteramos que aqui daremos foco ao contexto indo-europeu mais próximo do grego e do latino
– deixando de lado aprofundamentos em outras sociedades, como a védica, na Índia Antiga.
Consideraremos agora uma breve investigação desse elemento θεός no mundo grego, mas não
por meio de uma narrativa, de um verso poético ou de uma cosmogonia, mas tentaremos

128
Como mostra Villar a respeito da teoria kurgan, que busca a parceria arqueologia e linguística. Kurgan designa
sítios arqueológicos nas proximidades do Mar Negro, cujos profissionais escavam montes funerários de mais de
6000 anos, onde foram encontradas cerâmicas repletas de desenhos com motivos solares (VILLAR, 1996, p. 118).
129
Semelhante aos cantadores aedos do mundo grego e aos bardos no mundo celta.
130
Por exemplo, vide a questão dos brâmanes indianos. Karen Johnson (2004) pesquisou o elemento arqueológico
e social da cultura sacerdotal pré-histórica (VII-V milênio A.E.C.) no sudoeste iraniano, nas planícies de Susa e
Choga Mish – evidenciando que essa ordem sociopolítica poderia ser identificada em algumas sociedades pré-
históricas.
131
Vale lembrar que neste capítulo I, não daremos foco à questão fora desse contexto indo-europeu. Ou seja, o que
estamos estudando de forma etimológica poderá não valer em sua amplitude para os semitas, para os extremo-
orientais, para os ameríndios, etc., e significa dizer que, investigar o sentido etimológico de θεός para o contexto
indo-europeu e para sua particularidade entre gregos e romanos, é diferente de investigar etimologicamente e
contextualmente “nṯr” (netcher) para os egípcios antigos, ‫’( אֵ ל‬ēl) para os povos do Oriente Médio, “shén” (神) aos
mandarins e “kami” aos japoneses, por exemplo. Com o passar dos séculos, podemos dizer que as relações
semânticas acabaram se tornando mais similares, mas não seria o caso para quando se estuda a sua antiguidade e
a sua protossemântica. Todavia, o aspecto teórico apresentado pode vir a ser interessante, pelo seu papel
generalizador, para ser aplicado fora do espaço indo-europeu, afinal, como veremos nos capítulos II e III, são
tribos, povos, sociedades próximos na geografia e que, em muitas ocasiões, trocaram experiências que também
podem ser estudadas teoricamente.
56

demonstrar ao leitor o quanto esse idioma antigo fez uso de θεός, por meio de suas variantes no
radical, segundo construímos e exploramos, bem como também de palavras associadas ao uso
contextual desse vocábulo e assim visualizar a força desses termos na relação dessas tribos
hélades com o âmbito celestial.

2.2.1 As palavras e o celeste na formação da comunidade helênica

Em laudas anteriores, vimos que a proposta hipotética do protoindo-europeu


proporcionou ao vocábulo θεός o parentesco com muitas outras derivações: θέσ-, θεῖ-, θεο-, θεά
(dentro dessa lógica da variação entre fricativas e oclusivas e da queda de sons intervocálicos).
Neste ponto, adentraremos numa seleção organizada de palavras, que dialogam com os radicais
mencionados ao longo deste capítulo, com a finalidade de visualizarmos também os sentidos
aparentados com esses radicais na sociedade helênica.132 Tomamos o Diccionario manual
Griego Clásico-Español, de 1967, de José Pabón133, para formular as traduções das palavras
gregas, estas que manteremos escritas somente em caractere helênico devido à quantidade
apresentada. Vale ressaltar que, onde está indicado “deus”, no dicionário, verteremos para θεός,
e, da mesma forma, “deuses” para θεοί, e “divino”, “divindade” para celeste, celestial.

132
Esses quadros são um demonstrativo que não incluem a procedência da palavra, ou seja, sua temporalidade na
Antiguidade, quais os autores ou em quais circunstâncias essas palavras foram acionadas – usadas pela “primeira
vez”, nem apresentarão características gramaticais (se substantivo, verbo, advérbio, etc.).
133
José Manuel Pabón y Suárez de Urbina (1892-1978) foi um catedrático espanhol em língua grega e cultura
helenística e latinista pelas Universidades de Salamanca e Madrid.
57

Radical mais comum θεο-


• θεοβλαβής (demente, tornado demente por θεός)
• θεογεννής (nascido de θεός, linhagem celestial)
• θεογονία (nascimento de θεός, origem de θεός)
• θεοδίδακτος (instruído por θεός)
• θεόδμητος (edificado por θεός)
• θεοειδής (semelhante a θεός)
• θεόθεν (da parte de θεός, decreto celestial)
• θεολογία (ensino sobre as coisas celestiais)
• θεόμαντις (adivinho, profeta inspirado por θεός)
• θεομαχία (combate entre os θεοί)
• θεόμαχος (adversário ou inimigo de θεός)
• θεομισής, θεοστυγής (odiado por θεός, um ímpio)
• θεοπροπέω (declarar a vontade de θεός, profetizar,
vaticinar)
• θεότης (celestial, natureza celeste)
• θεοσεβής (piedoso, crente)
• θεουδής (temente a θεός)
• θεοφάνια (manifestação de θεός)
• θεοφιλής (amado de θεός, amado por θεός,
afortunado, formoso)
• ζάθεος -α -ον (totalmente celestial, muito sagrado,
augusto)

A lista de palavras compostas, construídas com o radical θεο- é muito mais numerosa.
Isso mostra que, no mínimo, a sociedade helênica foi estruturada na política, na economia, na
confraternização, na arquitetura, na moral, na lei junto ao âmbito celestial, desse θεός. Na
formação dessas palavras, vemos como fora evidente a marca de θεός, palavras estas
interconectadas ao cotidiano do falante heleno, seja ele crente ou não nos mitos, por exemplo.
Vejamos outras formações, com outros radicais:
58

Radical feminino θεα- (*δίϝ-ι̯ᾰ, “filha do céu” , onde ϝ é


o digama, ou, waw/vav, uma labiovelar semelhante ao
som “u”, que pode variar em ο (o), υ (ü), ν (n)
dependendo do contexto fonético/fonológico grego)
• θεατής (espectador, observador)
• θεατός (visível, digno de ser visto)
• θέατρον (lugar de espetáculo, objeto de espetáculo)
• θέαμα (objeto de contemplação, de visão)
• θεά, θέαινα (aspecto feminino do celestial, mulher
celeste, aquela que é celestial, luminosa)
• θέα, θέη (ação de olhar, de contemplar, aspecto,
aparência)
• θεήλατος (enviado por θεός)

Para este radical, consideramos a proposição134 de um jogo fonético em que o radical


θεα- dialoga tanto com θεά, que simboliza um aspecto feminino celestial135, quanto com θέα,
palavra que está relacionada com ato de olhar, contemplar algo ou alguém 136. Um exercício
intelectual que nos leva a considerar que a semelhança entre essas palavras denota a ação de
“ver”, “contemplar”, não qualquer coisa, mas sim aquilo que é digno de contemplação, que é
brilhante, muito formoso, maravilhoso, “celestial”, um belo trabalho artístico – traduziríamos
tal vocábulo, por exemplo, por “beldade” (bela e/ou potente).137 Questionamos: existiu alguma
personificação de θεά na mitologia grega que fora descrita como horrenda, feia, deformada ou
que não seria digna de contemplação?

134
Um jogo hipotético, pois Beekes mostra que as suas ancestralidades fonéticas são distintas.
135
BEEKES, 2010, p. 338.
136
Ibid., p. 536.
137
Em Chantraine também cf. θαῦμα “maravilha”, “surpresa”, “coisa, objeto ou aparição digna de admirar-se”
(1999, p. 424) e θεάζω “ser celestial”, “ser divino” (1999, p. 430).
59

Radical θέσ-, oriundo da raiz indo-europeia *dʰeh₁s-.


Essa raiz evidencia um -σ- (-s-)

• θεσμός (instituição sagrada, constituição, costume,


preceito, rito)
• θέσκελος (maravilhoso, extraordinário)
• θεσμοφόρος (legislador)
• θεσμοφύλαξ (protetor das leis)
• θεσπέσιος (voz celestial, figura inefável)
• θέσπις (fala de palavras inspiradas, celestiais)
• θεσπίζω (profetizar, predizer)

Radical θεῖ- (sendo -ει uma contração ε+ε, e, segundo


Beekes, marcando o desaparecimento de um σ
intervocálico – *θέσ-ι̯ος)
• θεῖος -α -ον (de natureza celeste, culto ao cleleste, de
origem celestial, consagrado a θεός, protegido de
θεός, figura soberana, admirável)
• θειότης (celestial, piedade, natureza celestial)
• θειασμός (adivinhação, superstição)
• θειάζω (praticar adivinhação, profetizar)

Notemos, portanto, mais um conjunto de palavras que estariam associadas ao meio


celestial, com esse imaginário entorno de θεός. Essas palavras mostram que o dito, a fala, os
pronunciamentos realizados no espaço público e quiçá no privado, passariam pela
discriminação de conteúdo e de inspiração. Falar em nome do celeste, agir em nome do celeste,
governar em nome dos celestiais certamente eram argumentos que poderiam trazer aos ouvintes
certo temor – uma verossímil sensação de “autoridade” fundamentada em θεός. Contemplamos
em tais palavras certa ideia ou marca de como costumes, leis ou mesmo o lugar daqueles que
proferem esses preceitos e esses costumes são colocados em conexão ou inspiração com o
divino através dos sentidos das palavras, com aquilo que seria o “suposto” desígnio excelso
para a humanidade, e como tais vontades seriam destinadas aos locais de autoridade e de fala,
ou seja, daquilo que seria proibido e permitido ser feito ou dito nessa comunidade. Esses foram,
60

certamente, alguns dos exemplos que marcam a soberania de θεός no argumento humano, que
então os helenos produziram para a estruturação de sua ordem sociopolítica e sociorritual.
Averiguemos um excerto coletado da Constituição Ateniense (Democracia Ateniense)
conservada e descrita por Aristóteles (século IV A.E.C.):

[...] Agora designam por sorteio seis tesmótetas e um secretário para eles, e
também o arconte, o rei e o polemarco por vez de cada tribo. Estes são
examinados [...]. Quando fazem o exame, perguntam primeiramente: ‘Quem
é teu pai e de qual dos demos é, e quem é o pai de teu pai, e quem é tua mãe,
e quem é o pai de tua mãe e de qual dos demos é?’ Depois disso, se participa
de algum culto a Apolo Paterno e a Zeus Herkeîos, e onde estão esses
santuários; logo, se tem sepulturas e onde estão, depois, se trata bem os seus
pais, se paga os impostos, e se completou o serviço militar. Depois de ter
perguntado isto, diz: ‘Chama as testemunhas deste’. Depois que apresenta as
testemunhas, pergunta: ‘Alguém quer dizer algo contra este?’”.138

Observemos que o nome “tesmóteta” é um composto formado com θεσμός (instituição


sagrada, constituição, costume, preceito, rito), ou seja, um cargo que possui a marca do
“celeste” e está relacionado com a administração da cidade, de suas leis e costumes. “Zeus
Herkeîos, Zeus da clausura, fecha o território do domínio onde se exerce a justo título o poder
do chefe de família; [...].”.139 “É venerado na Acrópole ao pé da oliveira sagrada. Costumava
haver um altar no pátio das casas.”.140 “Zeus divide com Apolo a qualificação de Patrós, o
antepassado; ao lado de Atena Apatúria, assegura como Frátrios a integração dos indivíduos
nos diversos grupos que compõem a comunidade cívica; [...].”.141

138
ARISTÓTELES, Constituição dos Atenienses, 55. Traduzimos da versão espanhola da Editorial Gredos, de
Manuela Valdés (1984, p. 183-184): “[…] Ahora designan por sorteo seis tesmótetas y un secretario para ellos,
y además el arconte, el rey y el polemarco por turno de cada tribu. Estos son examinados [...]. Cuando hacen el
examen, preguntan primeramente: ‘¿Quién es tu padre y de cuál de los demos, y quién el padre de tu padre, y
quién tu madre, y quién el padre de tu madre y de cuál de los demos?’ Después de esto, si participa de algún culto
a Apolo Paterno y a Zeus Herceo, y dónde están estos santuarios; luego si tiene tumbas y dónde están, después si
trata bien a sus padres, si paga los impuestos, y si ha cumplido el servicio militar. Después de haber preguntado
esto dice: ‘Llama a los testigos de esto’. Después que presenta los testigos, pregunta: ‘¿Alguien quiere decir algo
contra éste?’”.
139
VERNANT, Mito e religião na Grécia antiga, 2006, p. 34. Jean-Pierre Vernant (1914-2007) foi historiador e
antropólogo francês, especialista em mitologia da Grécia Antiga.
140
VALDÉS, 1984, p. 184, nota 492.
141
VERNANT, op. cit., p. 33.
61

Radicais derivados de *deyw-ó-s e similares

• δεινός -ή -όν (temido, respeitado, reverenciado,


espantoso, formidável, que inspira medo,
maravilhoso, raro)
• δεινότης (aspecto terrível, severidade, habilidade,
astúcia)
• δέος (temor, medo, espanto, reverência, motivo de
temor)
• δηλόω (fazer visível, mostrar, revelar, provar,
demonstrar, manifestar – sendo η uma contração de
ε+α)
• Διόθεν (por ordem de Zeus)
• διόβολος (lançado por Zeus)
• διοικέω (administrar, governar, reger)
• Διονύσος (Dioniso, filho de Zeus, ou, "aquele que faz
fluir as águas" - MACEDO, 2012, p. 40)
• Διός (de Zeus, forma genitiva)
• δῖος -α -ον (de Zeus, brilhante, luminoso, nobre,
excelente, celeste – latim dies, “dia”)
• Διοσκοῦροι (Dióscuros, os "jovens de Zeus" – Cástor
e Pólux)

Por sua vez, notamos como essas palavras estariam mais próximas do sentido mais
amplo de “pai”, ou seja, aquele que deve ser respeitado, reverenciado e temido, aquele que
governa, lidera, que guia, que dá a vida, mas também que doutrina, que ensina, que exorta e
admoesta os seus descendentes, que também precisa ser severo, astuto e habilidoso para manter
a ordem.142 Para os helenos esse seria Zeus Pai (Céu Pai? Esplendor é Pai?).143 Assim, tais
homens desenvolveram essa lógica para celebrar e instituir a ideia de certo e errado na ordem
sociopolítica da cidade, da tribo, por exemplo. A declinação do nome Ζεύς guarda a
proximidade com o radical iniciado por uma oclusiva alveolar sonora [d]: Διός (genitivo), Δία
(acusativo), Διί (dativo), Ζεῦ (vocativo); na épica e na poética a consoante fricativa alveolar

142
Nem todas as palavras listadas são derivadas das hipóteses iniciadas por dentais (d, δ ou t) relacionadas com o
campo celestial ou com metaforismos seus, por exemplo: “διοικέω” (composto com a preposição “διά”). Contudo,
veremos como Platão, um falante da língua, entre os séculos V-IV A.E.C., fez associações fonéticas entre essa
preposição e a forma do caso acusativo do nome Ζεύς, também semelhante ao feminino de “δῖος”, isto é, “δῖα”.
143
Para Zeus e outros celestiais foram dados vários epítetos por todo o mundo mediterrânico helênico (VERNANT,
2006, p. 33-39).
62

sonora [z]144 retorna: Ζήν (nominativo), Ζηνός (genitivo), Ζῆν/Ζῆνα (acusativo), Ζηνί
(dativo).145 O nome Ζηνόδοτος (Zenódoto, “dado por Zeus”, “oferecido por Zeus”) possui esse
radical genitivo poético “Ζηνό-”, que em outros casos varia com “Διόσ-” e “θεου-”.146 No
português, tem relação com Deodoro e Teodoro – nomes equivalentes ao hebraico Jonathan (ou
Jônatas, Jo + Nathan. ‫ – )נתן‬na ideia de “dádiva” ou “presente” oriundo de deus, θεός e ‫( יהו‬Yeḥō
ou Yō) respectivamente.
Além das palavras mencionadas nos quadros acima, temos uma variante com o radical
iniciado em [s]: σιώ (dual de σιός, “dois seres celestiais em parelha”). Por analogia, também
podemos acrescentar a relação com o radical protoindo-europeu *dʰeh₁-mn̥ (onde –m/n̥ são
ressonantes, isto é, próximo de vogais, principalmente breves) que deu base para “criador”,
“inventor” e que pode ser identificado, por exemplo, no verbo grego τίθημι (“colocar afastado”,
“deitar”, “consertar”, “fazer”, “configurar”, “estabelecer”, “criar”, “erguer”) e relacionado com
o vocábulo θέμις (“lei natural”, “vontade do céu”, “decreto celestial ou humano”, “direito”,
“costume”).147
Em sua obra filosófica Crátilo, Platão (séculos V-IV A.E.C.) procurou desenvolver uma
pretensa etimologia do nome Ζεύς. Contudo, essa obra não deve ser considerada um trabalho
de discussão etimológica, semelhante ao que promovemos neste capítulo. A filosofia platônica
fora caracterizada pela busca do “conhecimento verdadeiro” (episteme) através do método da
dialética (diálogo com fins específicos), que no Crátilo se faz pelos personagens Sócrates,
Hermógenes e Crátilo. Segundo J. L. Calvo Martinez, comentador e tradutor da obra pela
Editorial Gredos (1987)148, existem pelo menos duas linhas de pensamento que podem ser
exploradas nessa obra: se Platão objetivava estudar a linguagem, sua estrutura e funcionamento
ou se, como é crido pela maioria, o filósofo buscava o debate para chegar ao conhecimento
verdadeiro.149 Calvo Martinez considera que a segunda proposta é mais contextual às pretensões
dos diálogos de Platão. Em suas palavras,

144
Também há a hipótese “dz”, quiçá uma sonoridade que se assemelha à consoante fricativa dental sonora [ð].
145
PABÓN, 1967, p. 278.
146
BEEKES, 2010, p. 498-499.
147
Para mais informações cf. BEEKES, 2010, p. 1482-83 e CHANTRAINE, 1999, p. 427-428.
148
José Luiz Calvo Martínez é catedrático de Filologia Grega na Universidade de Granada, Espanha.
149
Para a primeira proposta, o comentador indica: A. E. Taylor em sua obra Plato, the Man and his Work, de 1929
(1908), e P. Friedländer, The Dialogs, First Period, de 1964 (1958). Para a segunda: H. Steinhal, Geschichte der
Sprachwissenschaft bei den Griechen und Römern, de 1961 (1862), e A. Diès, Autour de Platon, II: Les dialogues,
de 1927. Ainda há a teoria da busca pelas origens das palavras, como acreditou M. Leky, Plato als
Sprachphilosoph. Würdigung des platonischen ‘Kratylos’, de 1919 (MARTINEZ, 1987, p. 349-350, notas 5, 6 e
7).
63

O Crátilo não é um estudo de linguagem em sua estrutura e funcionamento. É


um debate sobre a validez do mesmo para chegar ao conhecimento. Tão pouco
há que buscar nele, por conseguinte, uma indagação sobre a origem, com se
tem feito às vezes. Desde o princípio do diálogo, já está suficientemente claro
que o verdadeiro tema é a orthótēs (‘retidão’ ou ‘exatidão’) do nome.150

Segundo sua compreensão, o autor esclarece que Platão não referiria “orthótēs” como a
“correta aplicação” de uma palavra, verbo ou nome próprio, da forma como faziam outros –
como Protágoras, Pródico e Demócrito (todos do século V A.E.C.). Como visto, também não
se trataria da exatidão ou aplicação correta da linguagem grega como um todo, mas em
particular dos nomes (orthótēs onomátōn). Nesse sentido, para o comentador, Platão se referiu
à associação do nome com a sua significação, isto é, “a adequação da linguagem com a
realidade”, não como um problema linguístico, mas sim epistemológico.151
Vejamos, portanto, o excerto do filósofo, através da fala do personagem Sócrates:

Em efeito, o nome de Zeus é como sua definição. Dividimo-lo em duas partes,


e uns, empregam uma e, outros, outra – uns chamam-no Zḗna e outros Día –,
mas se ajuntarmos eles em um, mostram a natureza do deus e isto é,
precisamente, o que convém que um nome seja capaz de expressar. E é que,
tanto para nós como para os demais, não há um maior gerador da ‘vida’ (zên)
que o dominador e rei de tudo. Acontece, pois, que é possivelmente exato o
nome desse deus ‘pelo qual’ (di’hòn) os seres vivos têm o ‘viver’ (zên). E
ainda sendo único seu nome, está dividido em duas partes, como digo: Día e
Zḗna. Poderia parecer insolente, se se ouve de repente, que seja filho de
Krónos e, porém, tenham boas razões para que Zeús (día) seja filho de uma
grande ‘inteligência’ (diánoia), pois Krónos significa ‘limpeza’ (kóros); não
menino, mas sim a ‘pureza’ sem mescla da ‘mente’ (kóros noú).152

Como considerou Calvo Martínez, o objetivo de Platão, provavelmente, foi a busca pela
sapiência abstraída da palavra, do nome, no caso, de Ζεύς e Διός. O filósofo trabalhou com

150
MARTINEZ, 1987, p. 349-350, grifo do autor. “El Crátilo no es un estudio del lenguaje en su estructura y
funcionamiento. Es un debate sobre la validez del mismo para llegar al conocimiento. Tampoco hay que buscar
en él, por consiguiente, una indagación sobre el origen, como se ha hecho a veces. Desde el principio mismo del
diálogo, queda suficientemente claro que el verdadero tema es la orthótēs (‘rectitud’ o ‘exactitud’) del nombre”.
151
Ibid., p. 350.
152
PLATÃO, Crátilo, 396a-b, In: CALVO, 1987, p. 386-387, acréscimos do tradutor. “En efecto, el nombre de
Zeus es como su definición. Lo dividimos en dos partes, y unos, empleamos una y, otros, otra – unos le llaman
Zéna y otros Día – pero si los ayuntamos en uno, ponen de manifiesto la naturaleza del dios y esto es, precisamente,
lo que conviene que un nombre sea capaz de expresar. Y es que, tanto para nosotros como para los demás, no hay
un mayor causante de la ‘vida’ (zên) que el dominador y rey de todo. Acontece, pues, que es posiblemente exacto
el nombre de este dios ‘por el cual’ (di’hòn) los seres vivos tienen el ‘vivir’ (zên). Y aun siendo único su nombre,
está dividido en dos partes, como digo: Día y Zéna. Podría parecer insolente, si se oye de repente, el que sea hijo
de Krónos y, sin embargo, hay buenas razones para que Zeus (día) sea hijo de una gran ‘inteligencia’ (diánoia),
pues Krónos significa ‘limpieza’ (kóros); no muchacho, sino la ‘pureza e sin mezcla de la ‘mente’ (kóros noú).”.
64

ambas as fonéticas para extrair delas o que considerou como suas essências, simbolicamente
comparando-as com o valor semântico supostamente dado por seus contemporâneos áticos. Por
meio de Sócrates, Ζεύς é explicado através da associação com a sua forma de acusativo
épico/poético Ζῆν/Ζῆνα.153 Em seguida conecta tal forma acusativa com o verbo ζάω -ῶ
“viver”, “estar em vida”, “estar em vigor”, “dar vida”, “passar para vida”, tendo em mente a
sua forma infinitiva presente ζῆν. Uma das significações genéricas atribuídas a Zeus por
Sócrates foi: “[...] ὁ ἄρχων τε καὶ βασιλεὺς τῶν πάντων.”154, isto é, “chefe”, “governador”,
“dono”, “senhor”, “príncipe” e “rei”, “soberano”, “primata” (principal), “cabeça” (da casa) de
“tudo” (inteiramente, por completo). Depois complementa, por meio de um jogo acróstico: “[...]
ὁ θεὸς εἶναι, δι᾽ ὃν ζῆν ἀει πᾶσι τοῖς ζῶσιν ὑπάρχει‧ [...].”155 onde “δι᾽ ὃν” fora relacionado com
a preposição διά “através de”, “por”, “pelo” e com ὃς ἣ ὃ que é pronome relativo (ὃν é a forma
acusativa singular masculina de ὃς).156
A preposição é semelhante ao acusativo Δία, assim como o verbo tem semelhança com
o acusativo poético Ζῆν, mostrando assim que, para Sócrates, a essência do Pai Celeste era ser
o meio através do qual vivem os viventes. A preposição, assim como a forma acusativa de Ζεύς,
fora conectada a Cronos (Κρόνος)157 por meio da palavra διάνοια -ας ἡ, isto é, “pensamento”,
“desígnio”, “propósito”, “opinião”, “ideia”, “conhecimento”, “inteligência”, “mente”, pois,
argumentou dizendo que Cronos (pai mitológico de Zeus) também possui em seu nome duas
ideias apaziguadas: não κόρος -ου ὁ “menino”, “jovem”, “filho”, nem “desgosto”, arrogância”,
“insolência”, mas sim καθαρός -ά -όν “limpo”, “puro”, “livre”, “são”, “sincero” “genuíno”;
junto com νόος -ου [νοῦς νοῦ] ὁ “inteligência”, “mente”, “pensamento”, “intelecto”,
“significado/sentido”.158 Ou seja, concluiu que Zeus era filho de uma “mente sã” e “pura”, logo,
era por si a “inteligência” e o “conhecimento” tanto quanto era o ser celestial, o θεός, por meio
do qual teriam a vida os que vivem.159

153
PLATÃO, op. cit., 396a.
154
Ibid., loc. cit., grifos nossos.
155
Ibid, 396b, grifos nossos.
156
Um possível jogo entre δι(α)-ος e ζη(ν)-ος.
157
No sentido prático de tempo, época, período, escreve-se χρόνος (khrónos, ou ḵrónos).
158
Ibid., loc. cit.
159
Reflexão baseada em Calvo Martínez (1987, p. 386, nota 45). Os textos gregos foram coletados de: Platonis
Opera Tomus I da Oxford (1995, p. 208-209), coordenada por Duke, Hicken, Nicoll, Robinson e Strachan.
65

2.3 O que esperar da situação do Ateísmo como tema no mundo antigo

Neste capítulo, buscamos introduzir o Ateísmo como tema aos estudos sobre a
Antiguidade – no limiar dos nossos diversos recortes, sejam conceituais (o que é ateu? Deus?
Θεός? etc.), sejam espaciais (mundo helênico; latino; mundo anatólio; mediterrânico; asiático),
sejam linguísticos (indo-europeu e família). No início deste, consideramos se seria viável
trabalhar com o que entendemos por “ateu” em nossa época, por meio da definição do
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Certamente que não, pois estaríamos incorrendo em
anacronismo, não pela definição em si (que traz o conceito de “negação dos deuses”), mas pela
ideia genérica que temos de Deus (deus, ou deuses) em nossos dias, principalmente no senso
comum e nas religiões (em particular, entre as monoteístas e suas diversas denominações). Não
ficou a cabo deste trabalho abordar as questões de ateísmo associadas aos judeus, identificadas
em Flávio Josefo no início deste capítulo I – essa preocupação foi o nosso motor do presente,
que nos fez buscar essa temática e explorar as suas possibilidades na Antiguidade.
O cerne deste capítulo foi o extenso trabalho com etimologia. Para a investigação da
palavra ateu, deus/θεός, céu, pai, tivemos em mãos três métodos etimológicos distintos que
foram unidos em prol de nossa proposta de peleja ao anacronismo histórico-conceitual.
Investigamos com detalhes a palavra ateu, desde seus étimos próximos e remotos160, seus
elementos formadores (afixos, desinências, etc.) tomando seu étimo mais antigo ἄθεος - ἄ +
θεος161, até a busca da hipotética definição etimológica da palavra θεός, descobrindo seus
“fósseis”, significações que caíram em desuso, e suas instanciações – que desconsideram o
abstrato ou o metafórico162.
Por meio dos dicionários etimológicos coletamos e adentramos nas formas prototípicas
de ἄ + θεος, oriundas do protoindo-europeu, do indo-europeu, do indo-iraniano e do proto-
germânico, hipóteses ou modelos de alto grau de investigação linguística e fonética, tradicionais
no estudo das línguas antigas e das suas prováveis origens. Para a investigação da palavra θεός,
tivemos: *dʰeh₁s- em Beekes; e associamo-la com: *tīwa-, *dei-uo-, *diḗu-s, *diu-ós em
Kroonen; *dyew-, *diw- em Ringe e *dyḗus, *deiwos em Villar. Para o alfa privativo, tivemos:
*n- (*n̥-HV-), *anV- em Beekes e *n(e) como advérbio de negação em Kroonen. Por meio
desses protótipos pudemos notar os principais parentescos e equivalências entre as línguas da

160
CAMARA JR., 2009.
161
VIARO, 2017.
162
CLARKE, 2010.
66

família indo-europeia, em especial: hitita, luviano, sânscrito, avéstico, micênico, grego, latim,
persa, gótico e celta. Verificamos que *diw- seria uma boa proposta de grau zero, onde consta
o desaparecimento de vogais – já que “i” e “w” são semivogais ou semiconsoantes nessas
teorias.163 Assim, desse grau zero, poderia derivar as outras possibilidades. Vimos também
como seria provavelmente possível a lógica da variação fonética das consoantes iniciais nos
radicais, principalmente entre [t], [d], [s] e [z]. Consideramos que o trabalho etimológico com
o hitita seria um dos mais relevantes da área, por ser atualmente a língua mais antiga com
registros escritos entre os indo-europeus.164
Elaboramos organogramas para facilitar a visualização dessa coleta de dados sobre essas
hipóteses etimológicas. Por meio disso, afirmamos o parentesco entre muitas palavras que
derivaram desse grau zero *diw-, com variantes (*tiw- e *ziw-). Dentre as mais significativas
temos: hitita ši-ú-uš (celestial), luviano ti-ṷa-az (Sol), sânscrito dyut- (luz do dia) – termos
conectados com o sentido de “firmamento”, “corpos ou astros celestes” e de “céu ensolarado e
brilhante”. Dentre essas significações mais antigas, supomos que a “luz”, o “esplendor” e o
“brilho” do sol, isto é, as palavras que nomeiam esse fato, guardam para si os fósseis que nas
demais palavras (localizadas no III milênio A.E.C. em diante) aparecem como abstrações sobre
o âmbito celestial, sobre aquilo que chamamos de divindade. Assim, com essa evolução,
ocorreriam abstrações como “Deus brilha como o sol.”, não mais sendo o brilho solar ou o
próprio sol em si, isto é, o céu ensolarado. O uso dessas metodologias etimológicas de fato nos
mantém fora do risco de anacronismo com a nossa era contemporânea. Contudo, há o problema
de se trabalhar com hipóteses que lidam com um suposto povo indo-europeu ou protoindo-
europeu que não possuiu registros próprios, povos ágrafos, onde sua investigação tende a ser
limitada à exploração de tumbas no entorno do Mar Negro, de desertos do levante e de regiões
da Índia – locais atualmente imergidos em sérios problemas religiosos e sociopolíticos. Dessa
forma, os protoindo-europeus ainda são povos com línguas artificiais.165
Diante disso, tivemos que nos limitar ao que nos interessava, que, por sinal, era o mais
bem explorado termo entre os etimólogos e linguistas, ou seja, sobre as origens semânticas e
etimológicas de Ζεύς (assim como Iuppiter). Com a associação etimológica que fizemos,

163
RINGE, 2006.
164
KLOEKHORST, 2008.
165
A temporalidade para qual tais hipóteses linguísticas são lançadas é geralmente pré-histórica, isto é, do V ou
IV milênio A.E.C. para trás, para as comunidades ancestrais protoindo-europeias, e após o IV milênio A.E.C. em
diante, localizam-se as sociedades indo-europeias, sejam ágrafas ou não. O proto-germânico fica disposto a partir
de meados do III milênio A.E.C.
67

também elaboramos uma definição para θεός, desconsiderando o máximo de metáforas e


abstrações. Resumimos tal definição em “ser celestial”, para constar como sua “tradução”, ou
seja, seu equivalente com o mínimo de anacronismo, pois já havíamos alertado que “deus/Deus”
possui uma carga de anacronismo de sentido bem maior que “ser celestial”. Elaboramos essa
definição com o seu sentido recortado, para serem, se assim desejado, acionados no momento
em que um texto antigo referir tanto ao grego θεός, quanto ao latino deus.166 Entendemos que
o termo “celestial” ou “celeste” possui uma qualidade genérica bem acoplável ao mundo antigo
indo-europeu e que ainda carrega sua marca ancestral – a reverência aos fenômenos climáticos
e aos astros. Essa questão só nos parece válida para os indo-europeus, pois aqui não
investigamos as particularidades em outras formas de sacro – como por exemplo, ao traduzir o
semita “’ēl” por “deus”, ou “θεός” estaríamos desconsiderando a árvore linguística que o
formulou e seus sentidos primordiais e sociais estariam sendo descartados e desconsiderados.
Consoante ao recorte, esses esforços intelectuais devem ser considerados nas pesquisas
acadêmicas – contudo, certas palavras podem ser mantidas no “original” com a finalidade de
reduzir a probabilidade de anacronismos. Nem todos, com isso, têm a ciência de que “deus”,
antes do português, é um léxico do latim (e esse problema só ocorre no português, que tomou
o nominativo latino, ipsis litteris), assim como tudo se resume a “gods” ou “God” nas traduções
inglesas, por exemplo.
Nesse quesito, chamamos a atenção para a exploração de uma língua artificial, baseada
nos costumes de povos que estão localizados em épocas diferentes. Essa problemática foi
elencada por Francisco Villar sob o debate teórico entre “otimistas” (como Dumézil) e
“pessimistas” (como Schlerath e Zimmer).167 Apresentamos dois teóricos tradicionais da ideia
de θεός: Bataille e Eliade. Em contrapartida com a ideia de espiritualidade pré-histórica,
adotamos uma interpretação mais arqueológica baseada em Knapp e Whitehouse através do
artigo de Karen Johnson, referente a sua leitura sociopolítica da questão do sagrado, que
evidencia o ser humano como autor e responsável por suas ações e suas decisões, segundo sua
necessidade nessa ordem sociopolítica de grupo; em tal viés, o sacro seria compreendido como
um mecanismo de poder e que não tem fundamento na ideia de “espiritual”, mas na ordem da
fala, do argumento e que tem uma real serventia aos meios em que é acionado e aplicado. Essa

166
Consideremos aqui não uma afirmação, mas sim uma proposta de tradução – lembrando que toda tradução
corta, oculta, limita muitas outras possibilidades para a compreensão de termos antigos.
167
Nessa complexa questão, também acrescentaríamos o denso e clássico trabalho sobre os indo-europeus do
linguista judeu-francês Émile Benveniste (1902-1976), intitulado Le vocabulaire des institutions indo-
européennes, de 1969.
68

forma de ver o sacro torna-se bem interessante no momento em que tende a inserir qualquer
argumento a respeito de um suposto sobrenatural no campo do poder e não da religião.168
Nessa lógica, podemos ler a estela acadiana apresentada, como uma linguagem de poder
e de ordem sociopolítica, e não meramente como um ato de devoção ou agradecimento ao disco
solar ou aos astros. O líder Naram-Sin era venerado e temido, assim como também precisava
venerar e temer tais entes celestes, que também foram designados como parte da lógica social
e existencial de sua tribo. No entanto, estrelas, lua e sol nada fazem além de, cotidianamente,
seguirem com seu ciclo natural. Seus corpos ou seus nomes só são dotados de “soberania” social
porque alguém ou um grupo assim o quis – pelo menos podemos conjecturar sobre o que estaria
por trás de uma ação humana. Igualmente, apresentamos diversas palavras cujos radicais
formam compostos com θεός, seus radicais parentes e alguns relacionados. Notamos, com isso,
que os helenos construíram vocabulários que estavam associados não apenas com o ato de
cultuar o celeste, mas com a história da sua língua e dialetos. O indivíduo, acreditando ou não
nos celestiais e nos seus mitos, terá que aceitar o fato de a língua grega ser um idioma carregado
de radicais de sentido sacropolítico. Muitas dessas palavras estão relacionadas com o âmbito
administrativo da cidade e com o ato do pronunciamento público – no caso de Atenas,
principalmente. Por fim, coletamos um excerto de Platão, no seu Crátilo, onde o filósofo
Sócrates localiza socialmente o peso semântico e simbólico de Zeus, por meio de sua
dialética.169

168
Com isso, o que chamamos de “espiritualidade” do ser humano, só existiria de fato na arte pictórica, na música,
na escultura (efígie e relevo), na cosmogonia, no mito, no discurso (seja em prosa ou verso – escrito ou
falado/cantado), todos sendo produções humanas e essencialmente vinculadas ao aspecto racional e ordenador de
um determinado grupo, com uma real serventia aos que pretendem a manutenção dessa ordem. No geral,
subentende-se com tal teoria que, sem essa atividade criativa e inventiva humana, que tendeu ao aperfeiçoamento
ao longo das eras (no âmbito prático e contemplativo), nosso mundo seria vazio não só da ideia de “seres excelsos”,
mas também da confiança que as pessoas tendem a depositar em suas existências ditas verossímeis (no fato de
colocá-las para além daquilo que cabe ao ser humano – como voar ou soltar raios das mãos, por exemplo). Neste
trabalho, conectaremos esse imaginário dessa existência verossímil com a ação humana de inserir nomes de
inclusão e personificação sociorrituais afetivos aos mais diversos elementos que é capaz de ver, ouvir ou de sentir
entorno de si mesmo e/ou de sua região, da mesma forma que é capaz de ressignificar de outro indivíduo ou
sociedade que igualmente também realiza ação semelhante. Com isso, tanto homens e mulheres, quanto bovinos,
felinos, caprinos, aves, ou também sentimentos, corpos celestes, ecossistemas, formações geológicas, florestas,
enfim, todos seriam passíveis de receber um nome especial sociorritual de valor afetivo e inclusor, às vezes também
personificador, em um grupo humano. Exploraremos mais essa questão ao longo deste trabalho.
169
Noam Chomsky e Michel Foucault debateram, em 1971, sob o tema da noção de “natureza humana”. Vale aqui
um registro simbólico desse debate. Chomsky (1928-) é filósofo judeu-estadunidense, considerado o “pai da
linguística moderna” e Foucault (1926-1984) foi filósofo francês, historiador das ideias científicas, crítico literário.
De seus argumentos, abstraímos um dilema intrínseco à atividade pesquisadora que, ao mesmo tempo que formula
e usa conceitos e teorias para produzir um conhecimento acadêmico, também se vê diante das limitações de sua
própria linguagem – a humana. Chomsky: “[...] este esquema que permite obter um conhecimento complexo e
intrincado a partir de informação muito fragmentada, é um constituinte fundamental da natureza humana. Neste
caso, acredito que se trata de um constituinte essencial devido ao papel que a linguagem desempenha não só na
comunicação, mas também na expressão do pensamento e na interação entre as pessoas; [...]” e Foucault retruca:
69

Por outro lado, devemos olhar criticamente para o que está sendo apresentado aqui.170
Sabemos que temos a intenção didática de apresentar esses povos como um “todo”, como
“entes”: os gregos, os hititas, os romanos. E que esses “entes” fizeram isso ou aquilo ao longo
de “suas” histórias. Mas, qual o limite dessa didática? Se pensarmos dessa forma,
fortaleceremos a ideia de que um corpo “nacional” age sem tomar conhecimento das
individualidades. Queremos dizer que, tendemos a dar voz às mentalidades coletivas com mais
facilidade que apresentamos as particularidades de um suposto “ente” unificado. Assim como,
costumeiramente, atribuímos as ações de um único indivíduo de uma cidade, de uma vila, como
sendo as ações de um todo “nacional”. Filosofia grega, filosofia ática ou filosofia de Platão ou
de Aristóteles? O “judaísmo” de Flávio Josefo, ou o “judaísmo” de todos descrito por Josefo?
Através dessa ótica crítica, identificamos pensadores ou pensamentos que rompiam com
a coerência do pretenso “todo”. Mas se de fato existe uma maioria, ou, um local de fala cuja
atribuição de poder que lhe foi conferida atua interferindo no particular, no pensamento dentro
do meio privado, consideramos que essa temática do Ateísmo nos revela uma relevante
coletânea de particularidades que poderemos investigar nesse âmbito das relações humanas na
história. Como seria, então, estar em desacordo com esse âmbito “divino”, tão presente, por
exemplo, na língua grega? O que isso implicaria socialmente? Tal situação poderia ou não trazer
sérios riscos à vida desse indivíduo? Nos próximos capítulos, exploraremos essas
possibilidades. No capítulo II, trabalharemos com mais algumas teorias que nos ajudam a
identificar as nuances dessa complexa relação entre o que é considerado divino e aquilo que
não é. Para isso, selecionaremos elementos da cosmogonia e do mito para mostrar ao leitor
como podem ser profundas as raízes da devoção humana ao âmbito celeste, principalmente.
Com isso, prepararemos o território do capítulo III, onde trataremos de localizar os prováveis
paradigmas que, na Antiguidade Mediterrânica hamita-semita ou afro-asiática, possam nos

“[...] creio que entre os conceitos ou noções que uma ciência pode utilizar, nem todos têm o mesmo grau de
elaboração, e que, em geral, não possuem a mesma função nem o mesmo tipo de uso possível no discurso científico.
[...] Na história do conhecimento, o conceito de natureza humana cumpriu para mim, antes de tudo, o papel de um
indicador epistemológico para designar certos tipos de discursos vinculados ou contrapostos à teologia, à biologia
ou à história. Me resultaria difícil ver nisto um conceito científico.” (CHOMSKY; FOUCAULT, The Chomsky-
Foucault Debate on human nature, 2006, p. 4-7). Chomsky: “[...] this schematism that makes it possible to derive
complex and intricate knowledge on the basis of very partial data, is one fundamental constituent of human nature.
In this case I think a fundamental constituent because of the role that language plays, not merely in communication,
but also in expression of thought and interaction between persons; […]”. Foucault: “[…] I believe that of the
concepts or notions which a science can use, not all have the same degree of elaboration, and that in general they
have neither the same function nor the same type of possible use in scientific discourse. […] In the history of
knowledge, the notion of human nature seems to me mainly to have played the role of an epistemological indicator
to designate certain types of discourse in relation to or in opposition to theology or biology or history. I would
find it difficult to see in this a scientific concept.”.
170
Como os problemas em se discutir etimologicamente θεός.
70

ajudar previamente a perceber a ossatura mental que incidirá sobre a formação helênica da
palavra ἄθεος, principalmente acerca de sua lógica social, de sua pluralidade semântica e
potencialidade como um conceito. De certo que a nossa real atenção será dada justamente para
essa pressuposta formação contextual que seja precedente ao mundo helênico, deixando a
especificidade do tema, na Grécia ou em Roma, para outra pesquisa e trabalho.
71

3 CAPÍTULO II – COSMOGONIA E MITO: A VALIA DO BEM, DO JUSTO E DA


ORDEM

Consideramos essencial para os nossos objetivos iniciais, o trabalho com exercícios


etimológicos, a fim de investigarmos a palavra antiga (partindo do olhar crítico sobre a nossa
correspondente da língua portuguesa, “ateu”) e analisarmos os seus prováveis mecanismos
formadores. Igualmente, com esse método, não só entramos na abordagem da formação da
palavra grega ἄθεος, ou de qualquer outra que, na ocasião, fora tornada importante para esta
investigação – como os latinos deus, dies, pater, caelum –, mas também apresentamos diversos
vocábulos de línguas modernas colocados em comparação, seja em diacronia, seja em sincronia
– como inglês, francês, espanhol, por exemplo. Por meio disso, notamos o parentesco lexical
que percorre as línguas de muitos povos da família indo-europeia e que muito desse parentesco
pode ser identificado nas raízes e nos radicais hipotéticos do protoindo-europeu, baseados na
comparação entre os léxicos parentes mais remotos, como o hitita, o micênico, o sânscrito, o
grego, o latim. Essa lógica aplicada no primeiro capítulo serviu também para especularmos uma
definição e uma tradução para o termo grego θεός – no momento em que não consideramos o
seu correspondente português “deus” como uma “tradução” em si, e nesse sentido, adotamos
“ser celestial” tanto para o grego, quanto para o latino deus.171
Neste segundo capítulo, levaremos essa proposta de definição etimológica ao contexto
social, ou seja, entre os povos antigos. Assim, continuaremos com a problematização de “deus”
na história, seguindo aqui com uma proposta de estudo acerca da gênese do sentido social
evocado por “ἄθεος” (uma situação oriunda da “ausência” de θεός), mais especificamente, em
alguns casos entre egípcios, mesopotâmicos (sumerianos, acadianos, assírios, babilônios),
israelitas e helênicos, isto é, desse ainda hipotético indivíduo ou grupo, que, quiçá, percebeu
certas nuances da relação que pode existir entre aqueles que administram a cidade, o povo e o
argumento exposto entorno dos celestiais. Que nuance será? Essa lógica é viável?
Continuaremos com a teoria de Knapp e Whitehouse, apresentada por Karen Johnson, sobre a
lógica sociopolítica da crença para a Antiguidade, da mesma forma que avançaremos neste
trabalho através de meios distintos do etimológico, para investigarmos ainda mais essa questão
ateísta e suas possibilidades para a História e para a pesquisa em Letras Clássicas.172

171
Vale reiterar que se tratou de uma tradução ou opção etimológica hipotética, segundo argumentamos no capítulo
I.
172
A partir deste capítulo, a etimologia será mais uma ferramenta e não mais o método cerne da investigação.
Certamente apresentaremos outros componentes teóricos que ampliam a investigação do tema para a Antiguidade.
Lembremos que, apesar de ser um campo de temporalidade milenar, exploraremos a Antiguidade bem mais pela
localização das fontes que citaremos, com suas hipóteses de datações. Não estamos levando em conta, neste
72

3.1 Uma nova etapa de investigação

Vamos retomar a nossa primeira discussão do capítulo I: podemos aproximar aquilo que
nos foi dado pelo Dicionário Houaiss da definição etimológica hipotética elaborada? Na
verdade, essa pergunta pode estar imprecisa com relação ao que pretendemos nesta nova
etapa.173 Para este capítulo II, fomentaremos uma outra questão cerne: pensamos “deus” da
mesma forma que na Antiguidade174? E mais: ao olharmos para o céu, que relação
estabelecemos com o seu conceito atual e com os seus “habitantes”? A ideia de “moradores”
do céu é bem quista em nossa sociedade (brasileira)? O sentido de “céu” é plural175? Seria
“irracional” acreditar na influência dos celestiais – ou do celestial – no cotidiano biosférico176?
Se um indivíduo desacreditar ou esnobar a argumentação de alguma crença religiosa, poderá

capítulo, a Antiguidade como um tempo contínuo em si, mas sim a problematização do Ateísmo como tema nos
estudos desse campo espaço-temporal da história. Assim, faremos o uso de recortes documentais, provenientes de
povos selecionados, como já mencionamos, que serão analisados e justificados no decorrer deste e do próximo
capítulo.
173
Ou seja, teremos que avançar, isto é, sair do limite proposto pela definição etimológica, tanto quanto daquela
dada pelo Dicionário Houaiss. Agora, adentraremos no contexto e nele poderemos abstrair muito mais
considerações sobre o Ateísmo como tema para a Antiguidade egípcia, mesopotâmica e israelita – não
necessariamente apenas para Antiguidade Clássica. “[...] é preciso lembrar que a organização dos conteúdos não
deixa de obedecer a um certo caráter aleatório, pois cada ensaio foi concebido como uma unidade fechada, o que
não impede que exemplos, explicações metodológicas e excertos de cunho teórico sobre a relação entre linguagem
e realidade histórica sejam válidos para toda a extensão do estudo” (KOSELLECK, 2006, p. 18).
174
“Deus: 1. ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só; causa necessária e fim último de tudo que
existe; 2. nas religiões primitivas, designação dada às forças ocultas, aos espíritos mais ou menos personalizados;
3. nas religiões politeístas, especialmente nas antigas, divindade superior aos homens e aos gênios à qual se atribui
influência nos destinos do universo; 4. nas religiões monoteístas, sobretudo no cristianismo, ser supremo, criador
do universo; 5. no cristianismo, cada uma das três pessoas distintas existentes em um só Deus (Pai, Filho e Espírito
Santo); 6. representação figurada de uma divindade; 7. indivíduo superior aos demais em saber, poder, beleza; 8.
aquele a que se devota grande veneração e afeição, que é objeto ou alvo dos maiores desejos; ídolo; 9. princípio
absoluto, realidade transcendente ou Ser primordial responsável pela origem do universo, das leis que o regulam
e dos seres que o habitam, fonte e garantia do Bem e de todas as excelências morais” (Dicionário Houaiss, s. u.).
O sentido é plural, como percebemos pela proposta do próprio dicionário. Certamente nem todos concordam que
“deus” possua toda essa pluralidade, principalmente pela crença na separação entre deus e Deus como duas coisas
distintas. Cada crença ou indivíduo parece tomar para si aquela definição que mais o agrada. No entanto, dentre
essas nove opções, qual ou quais nos interessam? Ou melhor, quais delas condirão com o que concluiremos neste
trabalho? E onde está a relação do léxico com “luz”, “brilho”, “céu” ou “celeste” que evidenciamos no capítulo I?
175
“Céu: 1. espaço onde se localizam e se movem os astros; 2. parte desse espaço, visível pelo homem e limitada
pelo horizonte; firmamento, abóbada celeste; 3. atmosfera (tempo); 4. Parte superior e côncava de armação; dossel,
sobrecéu” (Dicionário Houaiss, s. u.). Essas definições são mais empíricas e condizem com aquilo que estudamos
no capítulo I.
176
“Biosfera: 1. conjunto dos ecossistemas existentes no planeta Terra; 2. conjunto de todas as partes do planeta
Terra onde existe ou pode existir vida, e que abrange regiões da litosfera, da hidrosfera e da atmosfera; ecosfera”
(Dicionário Houaiss, s. u.). Ou seja, duvidar se, em nosso caso, “deus” ou “Deus” interfere ou não nesses
ambientes. Se o indivíduo acredita, por sua vez, pode ser chamado de “irracional”? Quem o chamaria de
“irracional”? Cientistas? De quais áreas? Devotos de um outro credo? Em que contexto? Um ateu contemporâneo
o chamaria de “irracional”? O que seria “ser racional”, portanto? E quanto ao horóscopo e à astrologia? Tipos de
crença nos celestiais?
73

ser considerado ateu177? E se ele acreditar nos dogmas dessa crença religiosa, mas desconsiderar
a personificação do celestial acreditada por essa mesma crença, será ateu? Esses
questionamentos, apesar de imprecisos178, mostram que, em certo senso comum, a nossa ideia
de “ateu” é vaga, no geral. Essa imprecisão também está na pluralidade que gira entorno das
definições.179 Rotineiro em nossas vidas, o achismo compromete a busca por uma definição
fundamentada, pelo menos, segundo uma lógica teórica, um método investigativo e em um
crivo legal de uma instituição acadêmica, no mínimo.180
A primeira coisa que faremos, portanto, é alertar ao leitor que, neste trabalho, por meio
de documentações, produções escritas humanas de uma outra temporalidade, uma
temporalidade longínqua, buscaremos explorar sentidos e compreender um pouco mais a nosso
respeito, como seres viventes de uma época que manuseia termos (palavras) que possuem uma
origem e que muitas vezes desconsideramos sua problematização e historicidade, ou seja,
acreditamos que são “naturais” em nossa fala.181 Considerando essa reflexão, partiremos para
uma nova etapa argumentativa sobre o termo “ateu” e “deus”. Mantendo a conexão com a
questão etimológica, discutiremos também a possibilidade de se trabalhar com essa
problemática “ateísta” nesse tempo pretérito.

3.2 Da etimologia hipotética ao campo de possibilidades teóricas

Em laudas passadas, no capítulo I, por meio do Dicionário Houaiss, chamamos a


atenção para a datação do termo “ateu” em português. Nele, consta como palavra do século

177
“Céu: 5. local onde habitam Deus, os anjos, os bem-aventurados e as almas dos justos; 6. Local ou situação em
que reina a felicidade, a harmonia, o completo bem-estar; paraíso; 7. providência divina; deuses; Deus”
(Dicionário Houaiss, s. u.). Por sua vez, nessas definições, é notória a relação entre “céu” e “deus”, principalmente
no ponto 7. O indivíduo que ignora essa certeza de muitos, é ateu? Significa dizer, portanto, que esse indivíduo
não vê o céu como morada de deus ou Deus, já que não crê nesses entes defendidos pelas religiões? Então como
fica ele diante do ponto 9 da definição de “deus”? Como podemos ver, muitos desses questionamentos são
pertinentes ao nosso próprio tempo e estão colocados aqui para promoverem uma interessante reflexão sobre a
temática.
178
Já que não os colocamos para uma época em particular.
179
Como percebemos no dicionário.
180
Para nós, esse “eu acho que” (Dicionário Houaiss, s. u.) se tornaria nocivo no momento em que não é
conjecturado junto à experiência coletiva da pesquisa, da investigação e da problematização, mas sim da declaração
presunçosa, individual ou militante, que defende um “algo” como verdade absoluta, isto é, que não tem o direito
de ser questionado, posto em dúvida, ou, que é elaborado sem exame, sem crítica, pensado sem levar em
considerações outros fatores, tanto quanto acreditado segundo uma lógica particular ou de grupo dogmático.
181
Nesse sentido, uma das funções deste trabalho é contribuir para essa desnaturalização de conceitos, pelo menos
daqueles que nos interessam aqui, ou seja, é mostrar que algumas coisas que aparecem socialmente aceitas com
naturalidade, como acreditamos ser o caso de “deus”, por exemplo, podem ser problematizadas, isto é, deslocadas
da simplicidade do senso comum.
74

XVII (1611). E então questionamos: como ficaria a compreensão do vocábulo em tempos


anteriores? Sem nos preocuparmos no momento com isso, pois aqui não estamos investigando
esse recorte temporal em si, citamos um trecho da obra de Gândavo, de 1576, ou seja, do século
XVI. Ao mencionar sobre várias peculiaridades linguísticas a respeito dos grupos em contato
com os portugueses colonizadores na América, Gândavo destacou também a sua descrença.
Segundo definiu, esses grupos indígenas “nam adoram a couza alguma”. Então fomentamos: se
essa já fosse uma obra do século XVII, o cronista usaria o termo “ateu” nesse tipo de contexto?
De certa forma, isso ocorreu recentemente, como informa o site folha.uol.com.br (Folha de São
Paulo Online), através da matéria de Claudio Ângelo, Após trabalho com índios no Amazonas,
missionário evangélico vira cientista ateu, de 2009.182 Tal matéria da Folha trata de uma
entrevista com o linguista estadunidense Daniel Everett (1951-), um dos poucos especialistas
acadêmicos em língua pirahã (Brasil) do mundo atual. Apesar da ênfase dada à expressão:
“missionário evangélico vira cientista ateu”, a entrevista mostra particularidades mais
interessantes e profundas acerca do Ateísmo.
Segundo lemos nessa entrevista, Everett não era envolvido com o cristianismo até os 17
anos, época em que passou a namorar uma filha de missionários. Por volta dos seus 27 anos,
mudou-se para o Brasil com a finalidade de fazer mestrado (na Unicamp, São Paulo). Nessa
época, foi para o Amazonas realizar trabalhos de evangelização, particularmente, junto aos
pirahã – tribo residente desse estado brasileiro. Tradicionalmente, os missionários do
cristianismo tendem a estudar a língua nativa do grupo (no caso dos pirahã, pouco mais de 590
pessoas atualmente e 90 à sua época) para convencê-los (em sua própria cultura linguística
também) acerca da alma, da punição aos pecadores, da salvação por meio de Jesus, o “filho de
Deus”. O problema enfrentado por Everett foi justamente a língua dessa comunidade – que
argumentou não dispor de aparato lexical suficiente para sincretizar com a sua concepção cristã
de vida e mundo. Os pirahã183 coordenam, através de sua linguagem, festas e rituais
comunitários de batismo (dar nome ao indivíduo da tribo). O ato de nomear é central nesse
grupo, pois localiza o indivíduo (ibiisi) no mundo (migi) e promove o seu destino social (abaisi)
na tribo. Os destinos podem ser designados em: não carnívoro (kaoaiboge) e carnívoro

182
Cf. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2009/02/497009-apos-trabalho-com-indios-no-
amazonas-missionario-evangelico-vira-cientista-ateu.shtml. Acesso em: 24 maio 2018.
183
Que, em sua língua apaitsiiso, se chamam Hiaitsiihi.
75

(toipe).184 Uma festa, realizada na lua cheia, se caracteriza pela produção de ruídos ou barulhos,
com a finalidade de se fazerem ouvir pelo celestial abaisi Igagai, um “criador”.185
A ideia alarmada pela matéria da Folha (2009), onde um cristão se “desconverteu” ao
trabalhar com essa tribo, resume-se à impressão de que Everett não conseguiu convencer os
pirahã da cosmogonia cristã e dos seus dogmas. Depois disso, pôs contra a parede a sua fé cristã,
que avaliou incapaz de “servir” de alguma coisa para esses habitantes amazônicos. Considerou
que “[...] pregação, traduções, ‘testemunhos’ etc. são superstições e não vejo como superstições
podem ajudar os índios. É a mesma coisa de dizer que os índios não podem viver sem crer em
Papai Noel.” Essa problemática retoma as impressões de Gândavo, séculos antes, ao afirmar
que faltavam letras ou sons no idioma desses grupos autóctones e por isso, não criam em nada
de importante aos cristãos devotos de sua época: o rei, a lei e a fé. Seja verossímil ou não, essa
questão da língua e da fé, foi ignorado por muitos séculos, desde então, que esses povos
possuem a sua própria explicação “cosmogônica” e têm a sua própria razão de ser no mundo,
válidas em si, mas comumente chocantes à moral da norma regente, no caso, a cristã. Nessa
lógica, por não ser cristão, no Brasil, por exemplo, surge o elemento descrente, chamado ateu
ou herege. Essa problemática transcende este trabalho e não pretendemos nos estender na
complexidade inerente ao nosso presente.
Retomando a discussão, como devemos lidar, então, com esse tema polêmico antes do
século XVII? Podemos nos inspirar, inicialmente, em um clássico trabalho do historiador
francês Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores, junto do historiador judeu-francês
Marc Bloch (1886-1944), da Escola dos Annales, movimento historiográfico iniciado na década
de 1930. Mas antes, vale a pena mencionar duas observações: a primeira de Tim Whitmarsh
(1969-)186 e a segunda do Dicionário de Conceitos Históricos (2009). Para Whitmarsh,

Ateísmo, [...] é uma invenção moderna, um produto do Iluminismo Europeu:


ele seria inconcebível sem as ideias gêmeas de um estado secular e da ciência

184
“Os ibiisi são os seres humanos [...]. Os abaisi são seres antropomorfos imperfeitos, corpos deformados. [...]
uma alteração acidental em um corpo ibiisi. [...] são [...] extensões de seus males físicos [...] são responsáveis por
suas mortes. Os kaoaiboge e os toipe são transformações póstumas dos ibiisi. O primeiro é [...] pacífico. O segundo
é [...] agressivo e canibal [...].” BONILLA, “Resenhas”, 2003, p. 149-150, grifos da autora.
185
Para mais informações cf. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Pirahã. Acesso em: 24 maio
2018.
186
Whitmarsh é historiador britânico, professor de Cultura Grega na Universidade de Cambridge, especialista em
literatura grega no Império Romano e Segunda Sofística.
76

como uma rival para as verdades religiosas. Este é um mito nutrido por ambas
as partes do debate desse “novo ateísmo” [...].187

Já estava claro aqui que o ateísmo não poderia existir como identidade ou visão de
mundo antes do século XVII. No século XVIII, parte dos chamados iluministas promoveram
relações conflitantes com dogmas, filosofias e interpretações baseadas na religião (a cristã, em
particular), em prol de uma razão fundada no método científico e na crença em teorias baseadas
no experimento, isto é, na evidência. Nesse período, já poderíamos falar que a identidade ateísta
estava surgindo entre alguns intelectuais europeus. Assim, segundo o Dicionário de Conceitos
Históricos,

O ateísmo não era a regra entre os pensadores modernos, e muitos eram


mesmo bastante religiosos. Apenas no século XIX, quando o cientificismo se
tornou dogmático, foi que o ateísmo passou a ser uma espécie de modismo
entre os cientistas. Nesse contexto, Auguste Comte foi um dos pioneiros em
colocar a ciência no topo do conhecimento humano, acima da metafísica e da
religião, consideradas formas inferiores de apreensão da realidade. O século
XIX foi o momento do desenvolvimento da teoria da evolução, das hipóteses
de progresso, da industrialização e da especialização das ciências. Contexto
no qual tomou forma o paradigma científico da modernidade, que acreditava
na ciência como saber rigoroso, objetivo, pautado por leis irrefutáveis e
universais.188

Foi pensando dessa forma que o historiador francês dos Annales Lucien Febvre publicou
o seu O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais (Le problème de
l’incroyance au XVI siècle: la religion de Rabelais), de 1942. A problemática de Febvre girava
entorno das afirmações do então especialista em Rabelais (1494-1553)189 na França, o
historiador Abel Lefranc (1863-1952), sobre a obra Gargântua e Pantagruel (século XVI)190.
Dentre essas afirmações de Lefranc sobre Rabelais, Febvre enfatizou: “[...] um inimigo de
Cristo, um ateu militante. [...] Rabelais nunca foi um cético, mas sim um crente... um crente da
incredulidade e que seu credo foi o dos espíritos potentes, vigorosos, radicalmente rebeldes à

187
WHITMARSH, Battling the gods, 2015, p. 4. “Atheism, […] is a modern invention, a product of the European
Enlightenment: it would be inconceivable without the twin ideas of a secular state and of science as a rival to
religious truth. This is a myth nurtured by both sides of the ‘new atheism’ debate […].”
188
SILVA, K; SILVA, M., Dicionário de Conceitos Históricos, 2009, p. 57.
189
François Rabelais foi padre, escritor e humanista francês.
190
Duas obras que foram consideradas heréticas pela Igreja, sendo colocadas na lista de livros proibidos de 1564
(Index Librorum Prohibitorum).
77

revelação”.191 Como interpreta Barros (2016)192, Febvre verá uma oportunidade para mostrar
como um termo contemporâneo pode ser conduzido erroneamente ao passado, pois “[...] o
ateísmo na verdade não poderia ser postulado para os homens do século XVI, já que esses
sequer possuíam a ‘utensilhagem mental’ que os possibilitaria serem ateus”.193 Valia para
Febvre verificar se pelo menos a palavra “ateu” era utilizada em textos do século XVI,
constatando que sim (como em Júlio Escalígero194 e Erasmo195). Além disso, verificou a
diferença de sentido e a ausência de palavras que “seriam fundamentais para que se possa falar
no ateísmo como um modo de pensar, tal como ocorre hoje”.196 Com isso, Febvre concluiu,
segundo D’Assunção Barros, que

[...] as piadas blasfemas, ou aparentemente blasfemas, que apareciam


largamente nos textos de Rabelais, não eram de modo algum recursos em
apoio de um racionalismo ateu, mas sim heranças de uma antiga tradição
parodística medieval. A ‘impossibilidade do ateísmo no século XVI’ era para
Lucien Febvre o resultado de um ‘instrumental mental’ específico (hoje se
diria, de uma determinada mentalidade que fixava aos homens os limites do
que eles poderiam pensar). Dessa maneira, o seu empenho foi examinar em
detalhe o que faltaria à utensilhagem mental da época para que pudesse surgir
efetivamente um ateísmo filosófico e racionalista, sendo o seu ponto de partida
identificar todo um vocabulário ausente que conformaria um claro índice de
que o problema do ateísmo não estava de modo algum colocado para os
intelectuais renascentistas.197

Será que a questão se complicaria ainda mais, teoricamente ou metodologicamente, se


levarmos a problemática à Antiguidade? Ao lançarmos uma sugestiva definição para ἄθεος no
capítulo I, poderíamos com isso evidenciar a possibilidade, se não do uso do termo fora da
Grécia, mas, pelo menos, como tema para se elencar possíveis questões no âmbito não grego?
Mas será que estamos realmente preocupados com essa exploração da identidade ateísta? Já
está claro, afinal, que o fundamento de uma mentalidade ateia e de seus mecanismos

191
FEBVRE, 1959, p. 10-11, grifo do autor. “[...] un enemigo de Cristo, un ateo militante. […] Rabelais nunca
fue un escéptico, sino un creyente… un creyente de la incredulidad y que su credo fue el de los espíritus potentes,
vigorosos, radicalmente rebeldes a la revelación.”
192
José Costa D’Assunção Barros (1967-) é historiador brasileiro, professor da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ), especialista em teoria da história e historiografia, versado em História Cultural, Identidades,
História da Arte (Música, Cinema e História).
193
BARROS, Os conceitos: seus usos nas ciências humanas, 2016, p. 180.
194
Julius Caesar Scaliger (1484-1558) foi um filósofo e escritor italiano.
195
Erasmo de Roterdã (1466-1536) foi um teólogo humanista holandês.
196
BARROS, 2016, p. 181.
197
Ibid., p. 181.
78

linguísticos, esse imaginário do “ser ateu” e estar consciente disso, seria praticamente
inexistente antes do século XIX – apesar das palavras ateu (1611), ateísta (1600), ateísmo
(1634) e ateístico (1699) já constarem em seus vocabulários. Nossa real preocupação segue por
outro viés: nos preocupamos sim com a formulação hipotética de um conceito que seja
particular à época, da mesma forma que sabemos do uso do termo entre os gregos – já que é
originado na própria Grécia e usado por autores romanos. Também já estamos mais do que
alertados sobre a ideia de pertencimento ao ateísmo, no sentido problematizado por Febvre, não
existir em nosso recorte. O que valerá neste trabalho será a averiguação do Ateísmo como
potencial tema de estudo para Antiguidade, principalmente para recortes mais tensos, onde não
há equivalência lexical para o termo grego.198

3.3 Os seres celestiais sob olhares teóricos: egípcios, semitas e helenos

Como explanamos no capítulo I, a palavra “ateu” é um composto formado por prefixo


e radical. O prefixo “a(n)-” indica negação, desconhecimento, ignorância, privação, ausência,
indiferença, estranheza diante de algum saber pragmático que é atribuído a um substantivo no
âmbito sociopolítico de uma comunidade. O substantivo, em nosso caso, é “-teu”, isto é, θεός,
“ser celestial”, como definimos.199 A investigação desse significado social nos interessará neste
capítulo. O sentido que uma sociedade atribui para qualquer substantivo pode mostrar para o
“outro”, para aquele que não pertence ao seu grupo, a sua lógica particular de visão de mundo
e posição no cosmo.200 Nesse sentido, vamos investigar alguns dos possíveis lugares sociais
desses celestiais, no limiar do nosso recorte e contextos.

198
Mencionando o historiador francês Jean Wirth (1947-) por seu trabalho de 1977, “Libertins” et “Epicuriens”:
aspects de l’irréligion au XVI siecle (“Libertinos” e “Epicuristas”: aspectos da irreligiosidade no século XVI),
Barros mostra que esse historiador, relendo a obra de Febvre, chegou à conclusão de que “havia de fato intelectuais
irreligiosos no século XVI, qualificáveis como ateus” (Ibid., loc. cit.). Essa observação implica a possibilidade de
pensarmos potenciais “ateus”, onde não haveria a identificação com o termo de forma explicita. No entanto, resta-
nos saber como seria esse “ateu” antigo, ou seja, quem, por exemplo, em língua grega, seria chamado de ateu, e
qual o porquê. Da mesma forma que também podemos explorar a nossa definição etimológica, buscando ampliar
o Ateísmo como tema, e não nos limitarmos a estudar somente as sociedades que cunharam e usaram o termo em
suas épocas, e ignorar com isso, o potencial de sua semântica e de sua provável pluralidade – explorando assim o
Ateísmo como temática de estudo, sem o intuído de fazer aqui uma história da identidade ateísta.
199
Aqui desmembramos a palavra portuguesa “a-teu”, sem valor de transliteração.
200
Como vemos em Koselleck, historiador alemão, referindo-se a Epicteto, Enchiridion (século I-II E.C.), filósofo
estoico, mencionando que “[...] não são os fatos que abalam os homens, mas sim o que se escreve sobre eles [...]”,
da mesma forma que, para o historiador alemão, “[...] sem conceitos comuns não pode haver uma sociedade e,
sobretudo, não pode haver unidade de ação política [...]” (KOSELLECK, 2006, p. 97-98). Se não conjecturarmos
um concatenado estudo sobre sentidos ou conceitos, corremos o risco de não dialogarmos com a Antiguidade, mas
somente com a nossa época, por isso que Barros lembra que devemos “[...] trazer para diante dos olhos do leitor
os discursos de um outro tempo [...]”, com o intuito de “[...] dar voz aos personagens históricos [...]”, para não
79

Algo que vai além da própria ideia etimológica de θεός é a problemática da experiência
sociopolítica da crença que os helênicos apreenderam de outros povos mediterrânicos. Muitas
outras sociedades mediterrânicas já exerciam trocas e influências culturais, econômicas,
arquitetônicas, bélicas, linguísticas e grafêmicas bem antes desse mundo helênico, da forma
como o conhecemos tradicionalmente, ou seja, aqui remeteremos a esse cenário policultural.
Assim, o historiador português Nuno Manuel Simões Rodrigues (1968-)201 mostra, em seu Um
olhar a Oriente: Imagens do mundo semítico na Literatura Grega, dos poemas homéricos a
Xenofonte, de 2005, que essa troca e essa releitura, por assim dizer, entre helenos e “semitas”,
por exemplo do próprio autor, também se deu por influências literárias e musicais – ambas no
campo da oralidade – e também no campo da cosmogonia e da interpretação mítica dos
celestiais.
Com isso, já devemos ter em mente que, sejam em sociedades do som e da imagem, isto
é, majoritariamente orais, ou com poucos indivíduos escribas, sejam em sociedades cujo
governo cotidianamente faz uso da escrita (mas nem tanto a sociedade, como um todo), não
podemos simplesmente conceber que esses celestiais fossem compreendidos exclusivamente,
portanto, sob uma única ótica: de sua reprodução imagética, como um corpo celeste em si, em
tipo “naturalista” – ou seja, por representações imitativas do sol, da lua, das estrelas como são
vistos no céu202; muitos desses povos antigos forjaram – como na maioria dos grupos humanos
ao longo do tempo – mitografias que “teorizavam”, “racionalizavam” a origem do mundo, dos

apenas analisarmos, mas também para “[...] permitir que eles falem, às vezes nos seus próprios termos” (BARROS,
2016, p. 141).
201
Rodrigues é professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigador dos Centros de Estudos
Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra e de História da Universidade de Lisboa. Especialista em
estudos de Cultura Grega (mediterrânicas) e da História Política de Roma.
202
Sociedades que, diferentemente de boa parte das de nossa época, em geral, não tinham a escrita e muito menos
a leitura como programas sociais ou como parâmetro de nível intelectual entre pessoas. Imagens, cantos e
argumentações eram bem mais significativos para esses povos antigos. Para Paul Zumthor (1915-1995),
historiador e crítico literário suíço, “[...] não há oralidade em si mesma, mas múltiplas estruturas de manifestações
simultâneas, que, cada uma na ordem que lhe é própria, chegaram a graus muito desiguais de desenvolvimento.
[...] Esta comporta, com efeito, na sua própria condição vocal, pelo menos por parte de dois sujeitos – locutor e
ouvinte –, o mesmo, mas não idêntico, investimento de energia psíquica, de valores míticos, de ‘sociabilidade’ e
de linguagem. Tão fortemente social quanto individual, a voz mostra de que modo o homem se situa no mundo e
em relação ao outro. Efetivamente, falar implica numa audição (mesmo se alguma circunstância a impede), atuação
dupla em que interlocutores ratificam, em comum, pressupostos fundamentados em um entendimento, em geral
tácito, mas sempre (no centro de um mesmo meio cultural) ativo.” (ZUMTHOR, Introdução à Poesia Oral, 1997,
p. 31-32). Da mesma forma, para Jacques Aumont (1942-), escritor francês, teórico do cinema, “[...] imagens são
feitas para serem vistas [...]. A produção de imagens jamais é gratuita, e, desde sempre, as imagens foram
fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos. [...] É claro que, em todas as sociedades, a maioria
das imagens foi produzida para certos fins (de propaganda, de informação, religiosos, ideológicos em geral) [...].
[...] as ‘funções’ da imagem são as mesmas que, no curso da História, foram também as de todas as produções
propriamente humanas, que visavam estabelecer uma relação com o mundo.” (AUMONT, A imagem, 1993, p. 77-
80).
80

seres, do cosmo, tanto quanto empoderavam imaginários por meio de argumentações,


justificando, muitas vezes, o que os seres humanos deveriam fazer para estar em harmonia com
esses seres “criadores” da realidade – sendo que esses elementos são parte integrante da lógica
da ordem sociopolítica das crenças.

3.3.1 Níveis ou camadas de imagem e mitos

A partir de Rodrigues, subentendemos que existem algumas hipóteses que buscam


aproximar culturalmente os hamita-semitas como assírios, sírios, egípcios, babilônios,
israelitas, acadianos, dos indo-europeus como hititas, minoicos, micênicos, frígios, helenos,
itálicos, persas, indianos. No entanto, o historiador considera que essa aproximação cultural
pode ser melhor investigada pela teoria das camadas de imagem, principalmente no quesito
que nos interessa, isto é, o elemento da crença nos celestiais, dessa provável troca e
correspondência entre indo-europeus e afro-asiáticos.203 A teoria em questão propõe a divisão
dessa “imagem” em três níveis distintos, da mesma forma que tais níveis são interconectados:
o nível de imagem inconsciente, semiconsciente e consciente.204 Por qual motivo essa teoria é
interessante para nós?
Consideramos que ela amplia a teoria sociopolítica da crença que apresentamos no
capítulo I. Pela teoria sociopolítica vimos que a crença em si seria um recurso pragmático criado
(seja por um indivíduo ou por um grupo) para gerenciar uma população, mantê-la unificada,
etc. Os teóricos optaram por “crença religiosa”, contudo suprimimos o termo “religiosa” pelo
fato de, assim como “deus”, esse vocábulo precisar de uma problematização própria.205

203
RODRIGUES, 2005, p. 335-336.
204
Diferente da teoria das imagens em Aumont, por exemplo. Baseando-se em Rudolf Arnheim (1904-2007),
renomado psicólogo judeu-alemão, o teórico do cinema subdivide a imagem em três valores: de representação; de
símbolo; de signo. Da mesma forma em três modos: simbólico; epistêmico; estético. “O espectador constrói a
imagem, a imagem constrói o espectador” (cf. AUMONT, 1993, p. 78-81). Ainda sobre a polissemia usual do
termo “imagem”, acrescentamos: “As imagens de um objeto nada mais são do que uma ‘estrutura construída com
os sinais provenientes de cada uma das modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-
sensitiva’. A palavra imagem não refere somente a imagem ‘visual’, mas a inumeráveis imagens corporais e nada
tem de estático. O canto do sabiá, o cheiro da chuva, uma dor de dente, uma saudade, um lugar, uma pessoa, um
sabor, que constituem o pano de fundo de cada instante mental, são imagens que sinalizam aspectos do estado do
próprio corpo” (DAMÁSIO, O mistério da consciência, 2000, p. 402 apud BECKER; FLACH, Biologia,
conhecimento e consciência, 2016, p. 78). António Damásio (1944-) é neurocientista português, especialista em
cérebro, emoções e ações humanas, professor da Universidade do Sul da Califórnia. Fernando Becker é professor
titular de Psicologia da Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em
psicologia escolar, desenvolvimento humano e informática na educação. Pâmela Ziliotto Sant’Anna Flach é mestre
em Ecologia e doutoranda em Educação em Ciências, ambos pela UFRGS.
205
Consideramos aqui que “religião” traz para si uma discussão que não pretendemos aprofundar neste trabalho.
81

Entendemos que, falar de crença remete ao ato de confiar em algo ou em alguma coisa e essa
confiança seria evidenciada nas atitudes do indivíduo (como cantar, poetar, esculpir, desenhar,
edificar) e/ou na sua mentalidade (como discursar, escrever). Assim, consideramos satisfatória
essa supressão, pois o termo “crença”, isolado, tem sentido mais genérico, e pode ser combinado
com o recorte teórico sociopolítico (nem apenas social, nem apenas político, mas sim ambos
simultaneamente).206 É recorrente em nossas sociedades contemporâneas, principalmente entre
aquelas que se baseiam, no geral, nos princípios iluministas do século XVIII e cientificistas do
século XIX, oriundos da Europa, o estabelecimento dos âmbitos das relações em sociedade,
através da separação por conceitos ou estratos (exemplo: ciência, religião, economia, política,
lazer, educação, saúde, segurança, arquitetura), caracterizando, com isso, a formalização
acadêmica de Faculdades e Campi Universitários, onde muitos desses conceitos ou estratos
sequer são entendidos como interconectáveis no senso comum.207 Todavia, pensar as
sociedades da Antiguidade dessa forma (como se lidássemos com as complexidades dos
homens do presente) é adentrar no caminho para o anacronismo.
De que forma, portanto, ampliaremos a teoria sociopolítica da crença por meio dessa
teoria das camadas de imagem? Imagem simboliza aqui tanto o ato prático, quanto o ato lógico
das sociedades. Ato prático e lógico, combinados, dizem respeito a todo tipo de produção
psíquica e material das sociedades humanas. Apesar das particularidades inerentes à linguagem,
ao estilo arquitetônico, ao musical, ao confraternizacional de cada sociedade ou grupo formado,
é certo que também desfrutassem da alteridade – conceito do nosso tempo. Essa teoria dos
níveis ou camadas de imagem contribui para que se abstraia essa característica de uma
sociedade, ou seja, o quanto do “outro” ela desfrutou.208 Em seu trabalho, Nuno Rodrigues
explora essa leitura teórica, estabelecendo interconexões entre algumas tradições literárias

206
Da mesma forma que nem apenas religião, nem apenas legislação, mas ambos simultaneamente, por exemplo.
Nesse sentido, tomaremos “crença” como algo geral, ou seja, o processo intelectual de um indivíduo ou grupo
expresso pelo estado de acreditar em algo ou alguém como realidade – seja em uma realidade abstrata
(pronunciada, não visível, quiçá sentida) ou em uma realidade concreta (pronunciada, visível, quiçá tocável).
207
Comumente é dito: “Ciência e religião não se misturam.”, pois, possivelmente, os crentes dessa sentença
acreditam que são razões humanas “naturalmente” separadas e conflituosas.
208
Como bem salientou a historiadora brasileira Neyde Theml em seu artigo Este “admirável mundo novo”, de
2001, acerca da importância atual de se investigar sobre identidade e alteridade na História: “A concepção que
formulamos do ‘outro’ nos permite verificar elementos de identidade cultural que fazem com que nos
reconhecemos como ‘nós’. Na realidade, quando construímos a explicação do ‘outro’, produzimos a nossa própria
identidade. O processo de formação, as representações e as relações do ‘eu’ e do ‘outro’ são portanto objetos de
pesquisa pertinentes e relevantes neste início de século” (THEML, 2001, p. 18).
82

semíticas e textos clássicos do mundo helênico – Homero, Hesíodo, Heródoto, Xenofonte e


outros.209

3.3.2 Quando o documento não diz claramente o que queremos supor

Trabalhar com uma imagem inconsciente consiste na suspeita

[...] de uma influência, tácita, [...], através de paralelismos entre formas e


conteúdos literários que permitem equacionar esta problemática ao nível da
derivação ou até mesmo da origem cultural comum. Cabem nesta categoria
exemplos das afinidades linguístico-vocabulares. Elas estão presentes ao nível
da onomástica, [...] um paralelismo fonético [...]. Há também o vocabulário
aparentemente comum [...].210

Como vemos, nesse nível de “uso inconsciente” do “outro”, esse “eu” não deixará
evidente ou não saberá da origem do seu próprio vocábulo ou da origem de sua narrativa
literária.211 Assim, cabe ao pesquisador suspeitar dos parentescos hipotéticos por vias de
comparação. No entanto, essa leitura comparativa fica particularmente interessante ao nível dos
nomes próprios.212 Nomes próprios, tipos literários, métricas poéticas, estilos arquitetônicos,
práticas rituais, motivos festivos, confecção de artefatos, sistemas de escrita, assim como em
narrativas, no geral, todos esses podem derivar de um povo mais antigo em comum entre o “eu”
e o “outro”. Essa “inconsciência” parte da fonte. O pesquisador poderá suspeitar, mas nunca
confirmar as “afinidades linguístico-vocabulares”, os “paralelismos entre formas e conteúdos
literários” e as “afinidades mitológicas que parecem ser produto de um decalque ou
transferência directa”213, uma vez que, o documento não mencionará nada disso – no caso de
fonte escrita ou textual. Da mesma forma, os vocabulários inerentes à religiosidade, ao culto e

209
Para formular essa teoria, em suma, Rodrigues tomou por base trabalhos de: C. Baurain, Les Grecs et la
Méditerranée orientale, de 1997; de M. L. West, The East Face of Helicon, de 1997, e The Rise of the Greek Epic,
de 1988; de W. Burkert, La tradición oriental en la cultura griega, de 2002, e Near Eastern Influence on Greek
Culture in the Early Archaic Age, de 1995; de J. H. Crouwel, Chariots and other means of land transport in Bronze
Age Greece, de 1981.
210
RODRIGUES, 2005, p. 337.
211
No exemplo abordado por Rodrigues, “eu” designa os gregos e os “outros” os semitas, em particular os
israelitas, tomando por referência principal o trabalho de J. P. Brown, Israel and Hellas, de 1995. Mas, em nosso
caso, tomaremos como uma teoria geral, sendo esse “eu” uma fonte de partida qualquer e esse “outro” uma fonte
para se constatar tais relações ou aproximações. Neste capítulo, aprofundaremos mais esse modelo de trato
documental.
212
No caso de Rodrigues: nomes de especiarias, perfumes, cidades, lugares, heróis literários, deuses.
213
RODRIGUES, 2005, p. 339.
83

ao rito podem ser comparados, mas dificilmente a fonte confirmará tais origens em comum
entre esses povos por si só.214
Assim, esse “inconsciente” marca o “não explícito” na fonte, sendo toda a comparação
e abstração fruto das suspeitas do investigador. Com isso, Nuno Rodrigues afirma que as
relações entre os afro-asiáticos e os indo-europeus são de longa data, porém, são pouco
evidenciadas nas fontes, sendo mais interpretadas como “vestígios indirectos, presentes em
vocábulos, caracterizações de personagens, antro-topónimos [...]”.215 Os limites encontrados
pelo investigador são as datações, a falta de dados arqueológicos, a imprecisão inerente ao
discurso da fonte. As hipóteses partem da ideia de que, no geral, a cultura afro-asiática é mais
antiga do que a indo-europeia, conduzindo as suspeitas para a primazia semítica ante os
helênicos, os itálicos, enfim, na ideia de que estes desfrutaram mais dessa alteridade do que os
primeiros – particularmente no quesito mitografia. No entanto, o historiador menciona que a
formação desse imaginário hipotético perpassa mais pelo âmbito da oralidade do que da
materialidade, subentendida no conteúdo das narrativas cosmogônicas e dos versos poéticos,
fazendo o pesquisador acreditar que, por exemplo, “ao serem ditos e contados em grego e ao
entrarem no vocabulário grego perderam o sentido de estrangeirismo e de identidade bárbara
que define as relações do Homem Grego com o ‘Outro’. Mas para nós significam pistas de
investigação”.216

214
Ibid., p. 341-343.
215
Ibid., p. 363. Antro-topônimos ou nomes próprios de homens e mulheres.
216
Ibid., p. 364.
84

Figura 02 – Mapa do Mundo Indo-Europeu

Fonte: Mapa extraído de MALLORY; ADAMS, 2006, p. 8

Figura 03 – Mapa das línguas não indo-europeias

Hamito-Semitics

Fonte: Mapa extraído [e adaptado] de MALLORY; ADAMS, 2006, p. 10

Os dois mapas acima nos ajudam a visualizar a real aproximação entre os afro-asiáticos,
os outros não indo-europeus (Figura 03) e os indo-europeus (Figura 02), seja no uso vocabular
(no caso de alguns nomes próprios), seja no âmbito sociopolítico em geral, literatura, arte e
85

escrita, dentre outros.217 Essa impressão de “imagem inconsciente” pode ser notada no trabalho
etimológico realizado no capítulo I. Constantemente alertamos sobre a hipótese protoindo-
europeia e a frequente elaboração de sua linguagem e cultura baseadas em povos indo-europeus
posteriores, como os hititas, os luvianos e os micênicos. Essa comparação pode vir a ser
problemática se não for realizada com ressalvas coerentes, isto é, baseadas em métodos
científicos. As investigações entorno do vocábulo grego Ζεύς são as mais bem trabalhadas, pois,
possuem uma tradição acadêmica das mais consagradas (Europa e América do Norte). Isso não
significa necessariamente que devemos concordar com todas essas hipóteses.218 Mostramos,
por exemplo, a conclusão de Eliade (1999) ao ter creditado a origem etimológica de θεός junto
a ideia de “espírito”, “respiração” ou “alma”, baseado na hipótese *dhues (“fumaça”,
“inspiração”, “tomar folego”). A evolução desse estudo etimológico atualizou essa antiga
associação e trouxe o vocábulo θεός para a hipótese *dheh1s (que conectamos a *diw: “luz”,
“brilho”, “esplendor”), como vimos em Beekes (2010) e em outros etimólogos
contemporâneos.219
Retomando a teoria dos níveis de imagem, considerando o nosso capítulo anterior,
vimos que toda associação feita entre aqueles radicais (protoindo-europeus, proto-germânicos,
indo-europeus, indo-iranianos) não são inteiramente frutos de documentos antigos
propriamente ditos, ou, de inscrições arqueológicas, mas sim de estudos hipotéticos sobre povos
do som e da imagem, ditos pré-históricos220, ancestrais dos helenos, dos latinos, dos persas, dos

217
É notório que os indo-europeus podem ser tão asiáticos quanto os afro-asiáticos, mas, obviamente, nos referimos
às famílias linguísticas e suas proximidades toponímicas, sejam de lugares, nomes de personagens, de produtos.
No capítulo I vimos a proximidade cultural entre hititas (indo-europeus da Anatólia) e acadianos (semitas
mesopotâmicos).
218
Assim como se pode discordar das nossas.
219
Lembramos que Chantraine (1999) considerou basicamente “desconhecida” a etimologia de θεός.
220
Estudos que dão enfoque à geografia, à fauna, à flora, à linguagem em temporalidades longínquas. Um período
da história considerado complexo como qualquer outro. Considera-se que as marcas desse recorte são: os
assentamentos humanos pouco sedentários e a dificuldade em se poder conferir a evidência de uma escrita, como
será com a cuneiforme na Mesopotâmia (IV milênio A.E.C.). Como já mencionamos, sons e imagens eram mais
simbolicamente importantes. Podemos notar parte dessa complexidade no comentário de W. F. Albright (1891-
1971) e T. O. Lambdin (1927-) sobre a pré-história afro-asiática e indo-europeia: “Desde esses tempos pré-
históricos havia uma forte tendência ao aumento da população através do aprimoramento da produção de alimento,
tanto por meio do uso de novas ferramentas e métodos de cultivo, quanto pela propagação de importantes plantas
comestíveis e animais. Como resultado, pessoas vivendo em áreas marginais tornaram-se mais vulneráveis às
condições de fome. É errôneo afirmar que durante o III milênio os indo-europeus foram cavaleiros nômades – ou
cameleiros nômades da Ásia Central. Ambas as presunções são baseadas em hipóteses falsas a priori e em achados
estratigráficos equivocados. Mesmo hoje a cronologia da Europa Central e ainda mais a da Ásia Central no
Neolítico, e períodos Primevo e Médio do Bronze é quase desesperadamente perplexa. Até que a cronologia
arqueológica tenha sido esclarecida e o exato nível nos sítios estratificados, nos quais restos de cavalos
domesticados e camelos são encontrados, tenha sido consertado, é inútil especular sobre nômades a cavalo como
sendo os primeiros encarregados dos movimentos migratórios indo-europeus” (ALBRIGHT; LAMBDIN, “The
Evidence of Language”, 2007, p. 139-140). “From prehistoric times on there was a strong tendency to increase
86

hititas, dos indianos. Podemos dizer, dessa forma, que o nosso capítulo I comportou uma
investigação também a nível de imagem inconsciente, sobre palavras que nomeavam a “luz”, o
“brilho”, o “esplendor”, o “céu”, o “sol” que supostamente transcorreram entre grupos humanos
da mesma origem ou família linguística (morfologia, fonologia, semântica), com práticas
culturais semelhantes (cosmogonia, rito, culto, música, literatura, arquitetura) e estruturas
sociopolíticas comparáveis (ordem social, administrativa), mas eventualmente separadas por
contextos temporais ou espaciais diferentes – relembremos aqui também a problemática dos
“otimistas” e “pessimistas”, levantada por Villar (1996). Reiteramos que, geralmente, essas são
hipóteses fundadas na comparação desses recortes temáticos, recortes frutos de nossa época e
lógicos ao nosso presente, aplicados em outra temporalidade, na qual esses homens e mulheres
não imaginavam suas sociedades da mesma forma que a nossa (brasileira, por exemplo).221
Essa imagem inconsciente pode ser exemplificada pela literatura cosmogônica helênica
(séculos VIII-VII A.E.C.), supostamente influenciada por oralidades literárias e/ou artes
imagéticas correntes no mundo afro-asiático, milênios antes, e também contemporâneas.222
Vale a pena investigar, mesmo que sumariamente, esse mundo repleto de cosmogonias, pois,
será delas que certamente nascerá o indivíduo que “descrê” – se é que, aqui, “ateu” terá alguma
relação com “descrença” – que supostamente vai (ou não necessariamente) de encontro com a
ordem sociopolítica da crença que domina. Vamos selecionar, portanto, os povos antigos mais
conhecidos do brasileiro, os mais recorrentes nos livros didáticos escolares, ou nas homilias
religiosas (cristãs, em especial), por exemplo, para compararmos com o texto helênico. São eles

population by improving the production of food, both through use of new tools and methods of cultivation, and
through the spread of important food plants and animals. As a result peoples living in marginal areas became
more vulnerable to famine conditions. It is also erroneous to say that during the third millennium the Indo-
Europeans were nomad horsemen – or in Central Asia nomad cameleers. Both assumptions are based on false a
priori hypotheses and misdated stratigraphic finds. Even today the chronology of central Europe and even more
of central Asia in the Neolithic, Early and Middle Bronze periods is almost hopelessly confused. Until
archaeological chronology has been clarified, and the exact level in stratified sites, at which remains of
domesticated horses and camels are found, has been fixed, it is idle to speculate about equine nomads as bearers
of early Indo-European migratory movements”. Tal excerto evidencia a complexidade do trato investigativo
dedicado aos recortes temporais demasiadamente recuados no tempo, que pode gerar desconforto e perplexidade
diante de informações esparsas e conclusões frágeis ou altamente maleáveis. Contudo, para Karl Butzer (1934-
2016) o investimento tecnológico nos estudos da geologia, geografia, botânica, zoologia, meteorologia e
arqueologia tem proporcionado hipóteses com bons níveis de aceitação aos estudos dos povos antigos e seu mundo
(BUTZER, “Physical conditions in Eastern Europe, Western Asia and Egypt [...]”, 2007, p. 35-36).
221
Como comentou o historiador medievalista francês Jacques Le Goff (1924-2014) sobre a divisão do contínuo
histórico em recortes: “A história, como o tempo que é sua matéria, inicialmente parece ser contínua, mas ela
também é feita de mudanças. Há muito tempo os especialistas buscaram localizar e definir essas mudanças,
recortando, nessa continuidade, as seções que primeiramente chamamos de ‘idades’, e depois de ‘períodos’ da
história.” (LE GOFF, A história deve ser dividida em pedaços?, 2015, p. 7). Nessa obra o historiador destaca a
importância de se discutir os tipos de recortes na história com a finalidade de refletir sobre as periodizações e suas
problematizações.
222
RODRIGUES, 2005, p. 337-345.
87

os mesopotâmicos (sumérios, acádios, assírios, babilônios), israelitas e egípcios. O exemplo


helênico será o de Hesíodo na Θεογονία, Theogonía (séculos VIII-VII A.E.C.) na sua passagem
introdutória sobre a cosmogonia. Por sua vez, os mesopotâmicos, com uma seleção dos
primeiros versos do Enūma Eliš (Quando, em cima), narrativa de origem milenar, na versão
compilada da biblioteca de Assurbanípal (século VII A.E.C.); os israelitas, com os primeiros
versículos da narrativa de origem Berē’šiyt (‫אשית‬
ִׁ ‫)בְּ ֵר‬, ou Gênesis (séculos IX-VI A.E.C.); e os
egípcios, com um resumo compilado da narrativa de Origem do Sol, provavelmente originada
e organizada durante o Reino Médio e o Reino Novo, principalmente nas Dinastias XIX-XX
(séculos XX-XII A.E.C.).223

3.3.3 O Sol, autonomeado, cria tudo e todos

Assim como vimos no capítulo I com os indo-europeus, a relação do homem egípcio


com os “habitantes” do firmamento seria ligeiramente semelhante. Não é interessante afirmar
que essa relação se tratava da mesma coisa – sendo talvez a grande diferença a evidência de
escritos próprios para uns e para outros não. A língua era outra, o ambiente era outro, o clima
era outro, a biodiversidade incluía seres diferentes (entre regiões asiáticas, africanas e
europeias) e devemos levar em consideração que cada sociedade, no geral, possui seu próprio
contexto de formação. Contudo, os seres do firmamento também estavam lá, no céu das “Duas
Terras” (Taui, ou tꜢwy) – como chamavam seu território ao longo do rio Nilo (hapi, ou ḥ‘py).224
O vocabulário egípcio (meṭu ra en Kam-t)225, além de estar em processo de contínua decifração
e significação pelos especialistas, nomeia cada detalhe da natureza de sua terra – incluindo
órgãos exteriores e interiores de homens e animais –, apresentando uma escrita representativa
dessa natureza vivenciada (com pássaros, partes do corpo humano e de animais, homens,
mulheres, objetos, tecnologia, vários mamíferos, répteis, peixes, além de

223
Vemos que esse estudo das cosmogonias é um campo muito interessante para o pesquisador perceber as trocas
culturais não declaradas ou mesmo absorvidas entre povos antigos, como indica a teoria dos níveis de camada de
imagem, principalmente na ótica da inconsciente. Acreditamos que, entre as mencionadas sociedades, essas sejam
as narrativas cosmogônicas que mais se assemelham entre si. Lembremos que, à época, não se encontravam
organizadas como temos atualmente, mas eram várias interpretações, foram registradas em diversas versões,
dialetos e foram propagadas principalmente por meio da oralidade, possivelmente musicalizadas e cantadas, que,
ao serem escritas, provavelmente sofreram censura de versos, ritmos ou mesmo de conteúdo.
224
Dois modelos de transliteração: o primeiro à esquerda baseado em Wallis Budge; o segundo à direita em
Gardiner (cf. Anexo A deste trabalho).
225
Coletado e transliterado por Wallis Budge (1857-1934), filólogo, egiptólogo e orientalista do Museu Britânico
entre 1883 e 1924. Significa literalmente: “fala da boca do kmt (Egito)” (BUDGE, An Egyptian Hieroglyphic
Dictionary, 1920, p. 335).
88

antropozoomorfismos). Assim, existem vários nomes para cada interação da natureza (ou com
ela), por exemplo: Ȧkeb, “o Nilo e sua inundação”; ȧtru, “festival do Nilo”; ȧṭebui, “os dois
lados do Nilo”; Ānṭ-mer pet, Uhem ānkh, Ug, Bāḥ, alguns dos títulos do Nilo como “entidade”;
Āriti, Usṭen, alguns nomes para a inundação do Nilo como “entidade”; beb-t, “a profundidade
do Nilo”.226 Todavia, o sol, a lua, as estrelas, o ar e a terra também são considerados entes
primordiais da criação, do cosmo, da ordem social dos homens.
Na lógica sociopolítica da crença, como já explanamos, um ou mais indivíduos em
algum momento do tempo passado tomaram consciência do mundo e forjaram a ordem da
convivência mútua e suas designações.227 Os registros egípcios estão na escala dos mais antigos
organizados por um grupo humano. Para essa sociedade, o sol foi considerado parte de seu
conjunto, foi seu fundador e pai da ordem. Essa é a clássica argumentação que forja a gestão
primordial humana nos mais variados âmbitos da convivência. O Sol-ente228 foi nomeado “Rā”,
mas como já alertamos, existirão muitos outros vocábulos para localizar o sol, o disco solar, o
brilho solar, a posição do sol no firmamento e a relação do sol com os outros celestiais. Por
exemplo: Ȧakhu, “o brilho solar”, a luz como entidade; ȧakhu-ti, ānkh-ti, o sol e a lua como
“olhos” do firmamento; Ȧaṭen, “o disco solar”; Ȧn-t, o “barco” do Sol-ente e o “peixe-piloto”
do firmamento; Ȧr-t Rā, “o sol do meio-dia”; Ȧtem, “entidade” que gerencia o anoitecer e o
amanhecer; Āntch, “a presença do sol no céu”; Utcha-t, o sol (direito) e a lua (esquerdo) do
Céu-ente (Ḥeru); bȧa, matéria primordial da criação do mundo celestial; bek-t, “o céu do
amanhecer”; pe-t, hetb, “o céu”; Pteḥ, “entidade” que criou e esculpiu o céu e a terra; mu nu
pet, ḥa-t, “a chuva”; meṭu pet, “o trovão”, literalmente “palavra do céu”; hemhem-t ḥer-t, “o

226
Todos os hieróglifos, transcrições e significações em Budge (1920).
227
A ideia de “tomada de consciência” abrange uma rica discussão no campo das ciências, principalmente na
neurobiologia e na psicologia da educação. Sobre ela, discutem Becker e Flach e citamos: “Como capacidade, o
conhecimento não está pronto, não está no genoma do bebê recém-nascido, nem no meio social no qual ele cresce
e se desenvolve. Como tal o conhecimento, ou capacidade cognitiva, não pode ser transmitido. Cada indivíduo
precisa construí-lo. O conhecimento como estrutura é construído, o conhecimento como conteúdo é objeto de
conquista [...], de assimilação ou de aprendizagem. Dessa maneira, constrói-se conhecimento estrutura,
competência ou capacidade; a assimilação ou aprendizagem do conhecimento conteúdo depende desse processo
de construção; por isso, conteúdos podem ser transmitidos e aprendidos no sentido estrito. Conhecer não se reduz
nunca a copiar, imitar ou fotografar o real. Conhecer é construir capacidades ou estruturas e, com elas, assimilar
conteúdos, o que implica transformá-los em função das capacidades ou estruturas assimiladoras. [...] Conhecer é
agir sobre os objetos e retirar deles, ou das ações sobre eles, qualidades que lhes são próprias. [...] Em seu nível
mais simples e mais elementar, a consciência possibilita ao organismo reconhecer um impulso irresistível para
permanecer vivo e cultivar o interesse por si mesmo. Já em seu nível mais complexo e elaborado a consciência
ajuda-o a cultivar um interesse também por outras pessoas e aperfeiçoar a arte de viver [...]. A consciência surge
ao longo da evolução biológica para equipar nosso organismo na complexa manutenção de si mesmo, da vida e
para perceber a si mesmo como protagonista desse processo, seja organicamente, seja nas interações que estabelece
com o meio” (BECKER; FLACH, 2016, p. 76-77).
228
Baseado no inglês “Sun-god”, referindo ao termo “sol” com uso de determinativo de personificação (deificação)
na escrita hieroglífica ( ) – que também ocorre na escrita cuneiforme (dUTU, d = DINGIR, 𒀭).
89

trovão”, literalmente “o rugido do céu”; Nu(t), Nen, “o Céu-ente”; Ḥe-t ur-t, ḥerit, “grande
morada de cima”, “o céu”; Khi, “o Céu-ente, o disco alado, o exaltado”.229
Como podemos ver, os vocábulos celestiais egípcios são infindos. Contudo, o termo que
mais está relacionado com a ideia de θεός, deus, Ζεύς πατήρ e Iuppiter certamente é neter ȧtf
(lê-se itef netcher), isto é, “Pai Todo-poderoso”.230 A diferença está no contexto: a raiz “nṯr”
indica “potência”, “força”, “domínio”, “autoridade” e é um dos atributos dos reis egípcios. A
relação com “celestial” provavelmente será fruto de analogia entre culturas. Mas aqui, o
imaginário da “força” do rei precede o imaginário do “esplendor” celeste. Vamos embarcar,
portanto, na mais tradicional cosmogonia milenar egípcia:

No princípio o mundo era um deserto de água chamado Nu [Nun], e foi a


morada do Grande-Pai. Ele foi Nu, pois era o abismo, e deu existência ao Sol
que disse: ‘Contemplem! Eu sou Khepera [Harakhti] ao amanhecer, Rá
[Khepri] ao meio-dia, Tum [Atum] ao anoitecer’. O Esplendor primeiramente
apareceu como um ovo brilhante que flutuava sobre o seio da água, e os
viventes do abismo, os quais eram os Pais e as Mães, estavam lá com Ele,
como Ele estava com Nu, pois eram os companheiros de Nu. Agora Rá era
maior que Nu, de quem ergueu-se. Ele foi o pai todo-poderoso e forte regente
dos demais entes, e aqueles que criou de forma primogênita, segundo a sua
vontade, foram Shu, o vento, e sua consorte Tefnut, que tinha a cabeça de uma
leoa e foi chamada ‘a Cuspidora’ pois enviou a chuva. Depois, essas duas
potestades brilharam como estrelas em meio às constelações celestes, e foram
chamadas de ‘as Gêmeas’. Então veio à existência Geb, a terra, e Nut, o
firmamento, que se tornaram os pais de Osíris e de sua consorte Isis, bem
como de Seti e sua consorte Néftis.231

Além da teoria da lógica sociopolítica da crença e da teoria das imagens inconscientes,


não podemos nos esquecer das tradicionais teorias dos “mitos”. Os mitos foram e ainda são
exaustivamente pensados e conceituados. O termo tem origem no grego e está relacionado com

229
Todos os hieróglifos, transcrições e significações em Budge (1920).
Cf. BUDGE, 1920, p. 402. Também relacionado com “servidor mais idoso de nṯr”, um “ velho sacerdote”. Cf.
230

GARDINER, Egyptian Grammar, 2001, p. 555.


231
MACKENZIE, Egyptian Myth and Legend, 1913, p. 1-2, acréscimos nossos. “At the beginning the world was
a waste of water called Nu, and it was the abode of the Great Father. He was Nu, for he was the deep, and he gave
being unto the sun god who hath said: ‘Lo! I am Khepera at dawn, Ra at high noon, and Tum at eventide’. The
god of brightness first appeared as a shining egg which floated upon the water’s breast, and the spirits of the deep,
who were the Fathers and the Mothers, were with him there, as he was with Nu, for they were the companions of
Nu. Now Ra was greater than Nu from whom he arose. He was the divine father and strong ruler of gods, and
those whom he first created, according to his desire, were Shu, the wind god, and his consort Tefnut, who had the
head of a lioness and was called ‘The Spitter’ because she sent the rain. In aftertime these two deities shone as
stars amidst the constellations of heaven, and they were called ‘The Twins’. Then came into being Seb, the earth
god, and Nut, the goddess of the firmament, who became the parents of Osiris and his consort Isis and also of Set
and his consort Nepthys”. Entre [ ] acrescentamos uma outra versão de nomes para o nascimento do Sol. Cf.
LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature II, 1976, p. 89-90.
90

a ideia de “narrar”, “anunciar”, “falar”, “dizer”, “considerar”, “conversar” (μυθέομαι -οῦμαι).


Assim, μῦθος -ου ὁ (mŷthos) é um tipo de discurso público, uma notícia, uma mensagem, uma
razão, uma opinião, uma conversação, um assunto, um mecanismo de aprendizagem.232
Contudo, os teóricos dos mitos tomam o termo grego e aplicam as suas acepções de forma
generalizante para povos não gregos.233 Cientes disso, podemos elencar algumas dessas
definições que caracterizam o “mito” como teoria.

3.3.4 Mitologia: possibilidades

Para o antropólogo brasileiro Everardo Pereira Guimarães Rocha (1994) o mito é


primeiramente uma narrativa, um discurso, um mecanismo social que espelha contradições,
paradoxos, questionamentos e inquietações, além de ser um espaço designado para se refletir
sobre o ser, o cosmo, o mundo, a sociedade. Além disso, considera arriscado achar que o mito
se refere essencialmente a “origem” de algo, pois, provavelmente a sociedade em questão já
não terá mais acesso a essa “origem”, logo, o mito especula e lança hipóteses ao passado, com
a finalidade de indagar sobre a suposta lógica do presente.234 Diana Martins Salavisa (2006),
por sua vez, traz a ideia de que o mito é um recurso da ordem, um “instrumento de controle
social”, com a função de atuar na conduta dos indivíduos, reforçando ou mesmo forjando
tradições.235 Mircea Eliade (2000) também estudou os mitos e promoveu sua estruturação.
Segundo definiu, o conteúdo do mito é “verdadeiro” e “sagrado”, pois, ou narra os atos dos
“Seres Sobrenaturais” ou é obra desses “Seres” (ou ambas as coisas), da mesma forma que narra
a “criação”, isto é, como seres, coisas, comportamentos, modos de trabalhar ou pensar
começaram a existir, “é por isso que os mitos constituem os paradigmas de todo acto humano
significativo”.236 Para Eliade, se o indivíduo ou o grupo conhece o mito, logo esse grupo ou
indivíduo terá poder sobre a “origem” das coisas, sendo possível “dominá-las” e “manipulá-
las” da forma que bem entende, de tal modo que esse saber “sagrado” é pragmático, isto é, para
ser “vivido” por meio de rituais e cerimoniais.237

232
PABÓN, 1967, s. u.
233
Como também pode ser o caso de θεός.
234
ROCHA, O que é mito, 1994, p. 7-12.
235
SALAVISA, O mito, 2006, p. 2-3 apud ALVES et al., O Mito como Base da Construção de Universos [...],
2015, p. 4.
236
ELIADE, Aspectos do mito, 2000, p. 23.
237
Rocha (1994) e Eliade (2000) divergem quanto à ideia de mito e origem. O próprio Eliade definiu o que chamou
“mitos de origem”: “Todo o mito de origem narra e justifica uma ‘situação nova’ – nova no sentido em que ela
91

De acordo com o teólogo protestante alemão Gerd Theissen (2009), o mito pretende
nortear uma situação instável real, situada no presente, apresentando a ação do divino como
modelo em um mundo próprio e distante dessa realidade.238 De forma semelhante, José
Severino Croatto (2004), que foi um renomado exegeta e teólogo católico argentino, viu o mito
como um espaço para o deus, onde age para dar sentido “a uma realidade significativa”, cheia
de simbolismos.239 Essa discussão entorno do mito é uma das mais plurais dentro das ciências
humanas. Sua compreensão, ou seja, estar ciente de que não consiste em uma única semântica,
é de basilar importância para o estudo do Ateísmo, pois, joga diretamente com o “crer”, com o
“descrer”, afinal, crer ou descrer em que? Na narrativa de um mito? Numa tradição? Num valor
social? Numa lei? Será que “descrer” consta no campo semântico de “ἄθεος” na Antiguidade?
Vale também a reflexão de Everardo Rocha que alerta sobre a insistência humana pela busca
das origens de tudo, como um “inconsciente coletivo” atemporal, sendo que esse anseio, esse
afeto, também se reflete nos trabalhos acadêmicos das mais diversas áreas.240
Outrossim, em sua História do Ateísmo (Histoire de l’athéisme, de 1998), o historiador
francês das religiões e mentalidades sociais Georges Minois (1946-) comentou que

[...] o mito é conceitualizado na linguagem teológica, pela razão. A partir daí,


a evolução sociocultural trabalha irreversivelmente o dado mítico revelado. A
partir do momento em que intervém a inteligência, a contestação é possível: o
que a razão organiza, ela pode também criticar. Desde que o mito não é mais

não existia desde o princípio do Mundo. Os mitos de origem prologam e completam o mito cosmogónico: contam
como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido. É por isso que certos mitos de origem começam pelo
esboço de uma cosmogonia. A história das grandes famílias e das dinastias [...]” (ELIADE, 2000, p. 25, grifos do
autor). Em tom precavido, Rocha menciona: “Mas, a questão da origem (seja do que for) corre o perigo de ser uma
falsa questão. Em primeiro lugar, porque quase que todas as origens estariam perdidas, seriam de improvável
localização e o que teria ali acontecido são conjecturas, especulações e hipóteses de difícil comprovação. Em
segundo lugar, e aqui está o principal, a origem de uma coisa não garante a explicação do seu estado atual. A
origem do homem, por exemplo, vindo do macaco, de outro planeta ou do paraíso, dificilmente serviria para
explicá-lo nas suas múltiplas possibilidades existenciais” (ROCHA, 1994, p. 11-12). Apesar de tentadoras as
observações de Eliade sobre mito e origem, consideramos que o caminho inquieto de Rocha e Salavisa torna o
estudo menos comprovador e mais problematizador.
238
THEISSEN, A religião dos primeiros cristãos, 2009, p. 14-15; 43 apud PONTES, A “Influência” do Mito
Babilônico, Enuma Elish, em Gênesis, 2010, p. 41-42. Tal observação torna-se interessante no momento em que
o mito venha a ser compreendido aqui como uma narrativa que evidencia personagens ilustres, excelentes,
exemplares (no bom e no mau sentido), distantes no tempo e às vezes no espaço, que simboliza a resposta ideal,
positiva ou negativa, dada no momento da desordem do presente de quem aciona tal mito.
239
CROATTO, As linguagens da experiência religiosa, 2004, p. 209 apud PONTES, op. cit., p. 41. Outra
observação que se torna interessante, caso percebamos que os “deuses”, ou “deus”, por assim dizer, também são
personagens literários, poéticos, artísticos, também são recursos de exemplo (positivo ou negativo), e atuam em
um cenário próprio deles (no céu, numa montanha, também em seres vivos e inanimados). São personagens criados
para carregarem aspectos de simbolismos e significados para a convivência humana.
240
ROCHA, 1994, p. 13.
92

vivido, mas sim pensado, ele se torna objeto de fé e pode igualmente ser
rejeitado: de agora em diante a descrença pode se opor à crença.241

As teorias do mito, a teoria da imagem inconsciente, semiconsciente, consciente e a


teoria da lógica sociopolítica da crença nos ajudam a compreender um tempo que não é mais o
nosso, por mais que alguns de seus termos nos sejam aparentemente cotidianos. Essas teorias
contribuem para estabelecermos cercas temporais, conceituais, contextuais entre eles e nós, mas
cercas que nos permitam contemplar, investigar e por que não adentrar na mentalidade desses
indivíduos por meio de métodos e teorias propriamente nossas, guiadas por nossas hipóteses e
suposições sobre seus vestígios, seus resíduos, seus fragmentos que por nós ainda podem ser
vistos, ouvidos e/ou tocados.

3.3.5 Na época que, em cima, os celestes não possuíam nomes

Proposta essa sumária abordagem da questão dos mitos242, sigamos com as


cosmogonias, neste caso agora a mesopotâmica, tão milenar quanto a egípcia. Apresentaremos
dela aquilo que consideramos ser o equivalente semítico arcaico da narrativa “mítica” egípcia,
no que diz respeito aos elementos que pudemos notar no excerto coletado e adaptado por
Donald Mackenzie (1913).243 Tais elementos seriam: 1) Nu, na ideia de um mundo caótico,
escuro, sem nada, que podemos comparar com uma visão da superfície marítima em situação
adversa; 2) Nu, na ideia de uma morada primordial, de onde a ordem se emerge; 3) O Sol, o
Esplendor, o Grande-Pai, aquele que trouxe luz e ordem para esse mundo hostil, uma luz que
se eleva e caminha sobre as águas, sobre o abismo, sobre a face da água primordial; 4) Nu, que
não estava sozinho, pois, de suas profundezas também emergem companheiros (entidades com
marca de gênero: masculino e feminino); 5) Rá (ou Khepri244), o sol que superou Nu, e que pôs

241
MINOIS, 2014, p. 21.
242
Das quais nos interessam as especulações teóricas selecionadas, em especial as de Rocha (1994) e Salavisa
(2006).
243
Donald Alexander Mackenzie (1873-1936) foi jornalista e folclorista escocês que escreveu sobre religião,
mitologia e antropologia. Segundo Mackenzie, a referida cosmogonia egípcia foi elaborada no período do Reinado,
principalmente durante as Dinastias XIX e XX. Além disso, o autor destacou que Rá passou por várias fases
literárias: designado como um antigo pai ancestral, um rei primordial, um gigante, um celestial. De acordo com
Mackenzie, os sacerdotes e escribas buscavam sistematizar tais questões, estabelecendo, por exemplo, que Rá
evidenciaria o sol, da mesma forma que o “olho de Rá” referiria ao sol e à lua e Tot à lua. Menciona o autor que
apesar de um tanto complexa, múltipla e ao mesmo tempo confusa, ao longo da história egípcia, essa mitologia do
Sol, pelo menos, evidenciou a grandeza e soberania de Rá sobre os demais seres celestiais ou reis ancestrais
(MACKENZIE, 1913, p. 14).
244
Besouro escaravelho, da família Scarabaeus sacer, popularmente conhecido como “rola-bosta” (família
Scarabaeidae), que também representa o Sol-ente, na arte e na escrita.
93

distante toda escuridão; 6) Rá, que dá luz a Shu (vento, ar) e a Tefnut (chuva, umidade); 7)
surge a marca do celestial: as estrelas e as constelações sobre o mar; 8) Seb ou Geb (terra;
masculino) e Nut (firmamento; feminino) foram então criados; 9) de Terra e Firmamento,
surgem os ancestrais do que chamamos hoje tecnicamente de biodiversidade245, bioma246,
biosfera247, biogênese248, além das interações sociais do ser humano com a natureza: Osíris,
Isis, Seti e Néftis. Com isso, foram estabelecidos os fundamentos da racionalidade desse grupo
humano diante do mundo ao seu redor, talvez na possibilidade de se localizar com confiança
em um ambiente certamente hostil, que já estaria lá antes da existência de todos aqueles que se
encontravam no presente ou num passado recente, todavia, um mundo não humano, que se
revela com ciclos ligeiramente regulares e repetitivos – como se cada coisa já estivesse em seu
“devido” lugar e cada um com suas funções ou ações predeterminadas.
Agora, sob essa ótica, vamos ao excerto semítico Enūma Eliš (Tablete I, 1-24):

(1) Quando em cima [enūma eliš], os célios [šamamu] não eram nomeados [la
nabû],
e abaixo a terra [šapliš ammatum] não portava nome [šuma la zakrat],
era Apsû o primeiro [reštû], seu ancestral,
[e] a criadora era Tiamat, a mãe de todos.

(5) Juntos eles misturaram suas águas,


(mas) [até então] os pastos não eram aglomerados, nem os alagadiços
estendidos,
[e] como [enūma] os celestiais [DINGIR.DINGIR ou ilāni] – nenhum tinha
aparecido ainda –
não haviam recebido nome [šuma la zukkuru], os destinos não eram fixos
[šimatú la šīmu].

Foi então que os celestiais [ilāni] foram criados [ibbanûma] de seu meio:
(10) Laḫmu e Laḫamu se manifestaram, eles foram providos de nomes [šumi
izzakru].
À medida que cresceram e aumentaram em tamanho,
Anšar e Kišar foram criados [ibbanû]: eles [estes] lhes eram superiores
[elišunu].

Eles alongaram os dias, adicionaram os anos:


Anu era seu herdeiro, igual a seus pais,
(15) porque Anšar tinha feito Anu, seu filho, como semelhante seu,
e da mesma forma Anu engendrou Nudimmud, seu reflexo.

245
“Conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes” (Dicionário Houaiss, s. u.).
246
“Comunidade estável, adaptada às condições ecológicas de uma região, um tipo de vegetação, típica de um
lugar, por exemplo: ‘floresta temperada’” (Dicionário Houaiss, s. u.).
247
“Conjunto de todos os ecossistemas existentes” (Dicionário Houaiss, s. u.).
“Teoria que só admite a formação de um ser vivo a partir de um outro ser vivo preexistente” (Dicionário
248

Houaiss, s. u.).
94

Nudimmud era certamente o mestre de seus pais:


vasto de entendimento, inteligente, poderoso de força [emuqan pûngul],
bem mais forte ainda que Anšar que tinha engendrado seu pai,
(20) [e] como ele não havia igual entre os celestiais [ilāni], seus pares.

Eles se juntaram, [esses] pares, os celestiais [ilāni].


Foi Tiamat que conturbaram atraindo sem cessar o seu clamor;
eles perturbaram o coração de Tiamat,
[e] por seu jogo barulhento, impeliram a confusão em Anduruna.249

Assim como na maioria dos textos antigos, a cosmogonia em questão não é


autoexplicativa. Cada palavra mencionada possui uma conjuntura e uma lógica própria. Sua
língua original e formas de escrita guardam informações preciosas, da mesma forma que o
contexto é essencial para a sua análise.250 Todavia, não pretendemos analisar o excerto em si,
mas sim compará-lo com o egípcio. Ambos os textos foram filtrados por nossa tradução (às
vezes uma tradução de tradução, mas com o auxílio do próprio texto na compilação em caractere
“original” ou transliterado), por isso, recortaremos certos elementos. “Quando em cima” e “no
princípio” estão aparentemente relacionados com um mundo submerso em água, e nesse mundo
primordial parece só haver água; tal mundo em água estaria possivelmente simbolizando a
ausência de “ordem”, um “deserto” – seria pela ausência de estruturas humanas, ou de animais,
vegetações e pessoas, quiçá marcas rotineiras do seu cotidiano? O ato de criar ou advir à
existência passa pela ação de proferir nomes251, em ambos os textos: o Sol emerge das trevas

249
TALON, The Standard Babylonian Creation Myth Enūma Eliš, 2005, p. 79, adaptação nossa. “Lorsqu’en haut,
les cieux n’étaient pas nommés, qu’en bas la terre ne portait pas de nom, c’est Apsû qui était le premier, leur
ancêtre, la créatrice était Tiamat, leur mère à tous. (5) Ils avaient mêlé ensemble leurs eaux, (mais) les pâtures
n’étaient pas agglomérées, ni les cannaies étendues, lorsque les dieux – aucun n’avait encore paru – n’avaient
pas reçu de nom, les destins n’étaient pas fixés. C’est alors que des dieux furent créés au milieu d’eux: (10) Laḫmu
et Laḫamu se manifestèrent, ils furent pourvus de noms. Pendant qu’ils grandirent et crurent en taille, Anšar et
Kišar furent créés: ils leur étaient supérieurs. Ils allongèrent les jours, additionnèrent les années: Anu était leur
héritier, égal à ses parents, (15) car Anšar avait rendu semblable à lui Anu, son fils, et de même Anu engendra
Nudimmud, son reflet. Nudimmud, de ses pères, c’était bien lui le maître: vaste d’entendement, intelligent, puissant
de force, bien plus fort encore qu’Anšar qui avait engendré son père, (20) il n’avait pas d’égal parmi les dieux,
ses pairs. Ils se liguèrent, les pairs, les dieux. C’est Tiamat qu’ils troublaient en poussant sans cesse leur clameur;
ils perturbaient le coeur de Tiamat, par leur jeu bruyant, ils jetaient la confusion dans l’Anduruna”. (Cf. Anexo
B)
250
O texto cuneiforme foi conservado pelos assírios em língua acadiana portando muitos nomes sociorrituais
afetivos celestiais em sumeriano. Os primeiros tabletes foram redescobertos por Sir Austen Henry Layard em
escavações em Nínive, atual Mossul, no Iraque, em 1849. É provável que variações dos versos já fossem
conhecidas no II milênio A.E.C., na Mesopotâmia.
251
Em egípcio “rn” (ren) e em acadiano “zakāru” ou “nabû”. A tradução francesa de Talon captou esse elemento
nomeador que consta no texto mesopotâmico – nomear para criar e trazer à existência (nabû) e não somente “criar”
ou “formar” (banû) como não constou na tradução inglesa de Lambert (Babylonian Creation Myths, 2013), por
exemplo, apesar de sua esclarecedora nota explicativa sobre a força dos nomes nessa cultura. Talon é professor de
História das Religiões e Assiriólogo da Universidade de Bruxelas. Wilfred G. Lambert (1926-2011) foi assiriólogo,
arqueólogo e especialista em escavações no Oriente Próximo e membro da Fellow of the British Academy.
95

ao pronunciar seus nomes, nomes que caracterizam o seu caminho pelo firmamento.
Semelhantemente, Nu, seus companheiros “pais” e “mães”, bem como Apsû e Tiamat eram
nomes antes dos nomes dos celestiais, eram princípios de gênero, eram as águas primordiais
que tomavam o mundo, eram não só o imaginário da desordem, mas também o de moradia
desse princípio criador – literalmente, talvez, uma evidenciação das poucas coisas que se
“movem” sobre a água, esse vasto mar (ou rio), isto é, o sol, a lua, as estrelas, as constelações,
as nuvens, o vento, as ondas e suas espumas, tempestades, raios, trovões, seres aquáticos que,
vez por outra, emergem, e por fim a terra, uma ilha ou algo mais vasto, com praias, árvores,
aves, animais terrestres e homens com suas sociedades e construções.252
Ao mencionar seus nomes, o Sol (Rá, ou Ré, o Sol ao Meio-Dia)253 toma forma e navega,
caminha, flutua sobre as águas do abismo (Nu)254. No mesmo intuito, Laḫmu e Laḫamu255 se
deram a conhecer de dentro das “águas misturadas” (Apsû e Tiamat)256, de dentro da confusão,

252
Uma lógica narrativa que talvez demonstre o ponto de vista de quem vem do mar para a terra e não
necessariamente da terra para o mar.
253
Em suma, Rá (r‘) simbolizava todas as manifestações do sol (Sol-ente), era um visitante no céu, na terra e no
submundo, ou seja, uma caracterização simbólica para o trajeto empírico do sol (ergue-se amanhecendo, meio-dia
e desce anoitecendo). O centro de culto ao Sol era em “Iwnw” (Iunu) ou “colunas”, “pilares” conhecido em grego
por Heliópolis, na região do Cairo, Egito atual. Rá era associado ao falcão, ao carneiro (no submundo), a um rei
idoso e o serviço sacerdotal em seu favor é datado desde a Dinastia III (século XXVII A.E.C.), e na Dinastia V
(século XXV A.E.C.) os reis passaram a evocar o imaginário “filhos de Rá” e o desenho de “disco”. Os reis
estrangeiros poderiam ser apelidados de “sem Rá”, “desprovidos de Rá” (observação que nos interessa). O Sol ao
Meio-Dia primordial surgiu do monte bnbn (benben) ao leste, e de suas “lágrimas” na terra (rmỉ, remi) brotou o
povo egípcio (rmṯ, remetch). Rá como rei primordial circuncidou-se e do sangue de seu ato personificaram-se a
“expressão de autoridade” (ḥw, hu) e o “prognóstico” (sỉꜢ, sia). O Sol era senhor das estações anuais, da inundação
do Nilo e tinha relação com o mundo dos mortos (Osíris), o escurecer. Sua barca noturna chama-se msktt
(meseketet) e sua barca diurna chama-se m‘nḏt (mandjet). Os reis egípcios asseguravam-se nessas narrativas para
governar, exercer o poder, a ordem e serem enterrados com honrarias únicas. Muitas dessas informações são
encontradas nos Textos das Pirâmides, no Livro dos Mortos, em murais, sarcófagos e tumbas reais em Tebas
(HART, The Routledge Dictionary of Egyptian Gods and Goddesses, 2005, p. 133-135). George Hart (1945-) é
escritor britânico e foi professor de coleções egípcias do Departamento de Educação do Museu Britânico.
254
Nu ou Nun também era chamado “pai de todos” em respeito à sua primordialidade – tipo de caos benéfico. Não
houve templos ou servidores em seu nome, mas havia representações suas que apresentavam um indivíduo
erguendo e sustentando um barco em suas mãos. Em Karnak e Dendera, por exemplo, havia templos com lagos
sagrados às Águas Primordiais com a função de abluções sacerdotais e régias. Na Dinastia XVIII, o rei Amenhotep
III mandou construir em Tebas um lago para o agrado de Nun – Naunet era sua contraparte, princípio feminino
das Águas Primordiais (HART, 2005, pp. 109-110; 113).
255
“Peludo” e “Peluda” respectivamente. Eram considerados heróis celestiais benéficos e protetores (afastar maus
espíritos e doenças), associados a Ea (Nudimmud) e também a Marduk, além de representados com longos cabelos
e em outras como um homem-bisão “kusarikku” (BLACK; GREEN, Gods, Demons and Symbols of Ancient
Mesopotamia, 2004, p. 115). Jeremy Black (1951-2004) foi assiriólogo e sumeriólogo britânico pela Universidade
de Oxford, fundador do site etcsl.orinst.ox.ac.uk, para divulgação da cultura suméria. Anthony Green (1956-2012)
foi arqueólogo britânico, especialista em Mesopotâmia e Império Assírio.
256
Apsû (ou abzu, engur, ZU.AB) era um nome dado a um oceano de água doce que corria de forma subterrânea
nas terras mesopotâmicas. Esse veio de água, segundo criam, era fonte para poços, córregos, alguns rios e lagos
da região. Essa água doce primordial era considerada a morada de Ea e de seus entes correlacionados. Na antiga
cidade Eridu (atual Abu Shahrain, Iraque) fora erguido um templo a Ea sob o nome de Eabzu, “Casa de Apsû”.
Na tradição literária comum, cria-se que o submundo era abaixo desse rio subterrâneo. Além disso, assim como o
egípcio Nun, os tanques de água doce nos templos eram geralmente designados por “abzu”, com objetivos
96

dessa desordem manifestaram seus nomes. No excerto egípcio de Mackenzie, o Sol é o motivo
da ordem, da força, da regência, da criação e do poder sobre os outros entes. Por sua vez, no
excerto semítico acadiano da biblioteca de Assurbanípal, os celestiais como um todo são os pais
da ordem sobre o caos. Anšar e Kišar representam o céu e a terra 257, respectivamente, assim
como Nut e Geb para o mundo egípcio258. Anu é idêntico a Anšar, ou seja, Anu também é o
“firmamento”. Nudimmud ou Enkig (Ea) era o reflexo de Anu, especificamente a água potável
dos veios subterrâneos.259 Nudimmud é semelhante a Osíris260, pois é o mestre dos ofícios, do

semelhantes (BLACK; GREEN, 2004, p. 27). Tiamat (tiamtum) designava um grande “lago” de água salgada –
quiçá o atual Golfo Pérsico? Tiamat primordial foi um ente feminino destruído por Marduk (ou Assur). Tal herói
celeste (dAMAR.UTU, “Novilho do Amanhecer”, nome tornado patrono da Babilônia por volta do século XVI
A.E.C.) dividiu Tiamat em duas partes, fixando o céu acima (firmamento) e a terra abaixo, usando os seios dela
para forjar montanhas, assim como o estouro de seus olhos formaram o Tigre (ammu, nabā’u, idigna, idiglat) e o
Eufrates (buranun-na, gattu, uruttu, nāru, purattu) e com resto de sua saliva as nuvens, e, provavelmente, seu
sangue derramado formou um grande lago de água salgada (Ibid., p. 177).
257
Anšar e Kišar (an, céu e ki, terra, em sumério) foram os pais primordiais de Anu (céu), o senhor dos celestiais.
Anu foi um nome mais reverenciado que os nomes de seus ancestrais, colocado como supremo senhor sobre os
demais celestes. Anu era o céu mais alto, o horizonte oriental e de sua cópula com Ki (Terra) nasceram as
constelações e uma variedade de plantas. Na escultura cassita babilônica (séculos XVI-XII A.E.C.) era
representado por um indivíduo usando chapéu cornudo (Ibid., ppp. 30; 34; 113).
258
Nut é a personificação celestial por excelência, representada por uma mulher arqueada apoiando-se em Geb
(Terra), por uma vaca celeste ou por uma abelha. Nos contos cenotáfios de Seti I no templo de Abidos (Dinastia
XIX, século XIII A.E.C.) compreendia-se que Nut era uma comedora de filhos – na lógica do amanhecer e do
anoitecer. Nas narrativas ocorriam notórias confusões, ao existirem textos (em Heliópolis, por exemplo) que
consideravam Nut como “a mãe dos celestes”, sendo este tradicionalmente o título do Sol, que tudo criou, inclusive
o firmamento, o céu e suas coisas. No sarcófago de Ramsés VI (Dinastia XX, século XII A.E.C.) existe uma
representação de Nut devorando Rá – a barca solar navega até a boca de Nut, então anoitece, e amanhece quando
a barca sai de sua vulva. Nos Textos das Pirâmides, Nut é a tampa do sarcófago, indicando que os mortos,
principalmente os reis, nela vivem, isto é, no céu – muitos desses possuem sua representação esculpida em murais
– e em trechos do Livro dos Mortos, Nut é a sua garantia de água e pão no post-mortem (HART, 2005. p. 111-
112). Geb personifica a terra, representado no Texto das Pirâmides por um homem que se deita com um dos braços
sobre a terra em baixo de Nut, a mulher arqueada, o céu, o firmamento. Com o tempo, passou a ter representações
com o falo ereto ou não, estando relacionado também com o ganso ou com a lebre. De forma negativa, Geb evoca
a ideia de prisão dos mortos e seu riso provoca terremotos (assim como Nut provoca trovões com sua risada). De
forma positiva, Geb mantém o solo fértil para ser cultivado, trabalhando junto com o Nilo-ente, além de produzir
ervas medicinais sobre si para manipulação de remédios. Terra também preside o tribunal dos poderosos, cargo
designado pelo Sol – Hórus recebeu o aval de Geb para reinar sobre o Egito, demonstrando que Terra conspirava
sempre em favor do rei, sacralizando suas sandálias. A Dinastia XXX (século IV A.E.C.), última dinastia egípcia
antes dos domínios persa e macedônio, associou Geb ao helênico Cronos, como um usurpador do trono de seu pai
Shu (vento) e incestuoso com sua mãe Tefnut (umidade), como consta nos achados de Saft el-Hinneh no Delta do
rio Nilo (Ibid., p. 58-60).
259
Ea, “Casa Água” (Enkig, “Senhor Labor”; Nudimmud, “Criador”) é o filho primogênito do Céu (Anu). Celestial
associado à sabedoria, ao poder da palavra, aos ofícios manuais, à criatividade, tendo ensinado e legado essas
atividades às sociedades. Além de prover água doce à humanidade, os destinos favoráveis ficavam sob seu cargo
– como a salvação do gênero humano da grande inundação (nos épicos Atrahasīs e Gilgameš). Era geralmente
representado por um homem barbudo usando chapéu cornudo com os braços liberando jatos de água, com alguns
peixes (BLACK; GREEN, 2004, p. 75).
260
Osíris (wsỉr, usir) era o rei de Duat (submundo, dwꜢt). Seu significado é incerto, talvez associado a “poderoso”,
“forte”, “potente” (wsr, user), e seus registros em murais datam desde a Dinastia V. Essa potestade caracteriza-se
por possuir o epíteto de outras forças de culto: senhor do Ocidente (morte), antigo epíteto do Chacal em Abidos;
senhor de Andjet (Busíris) no Delta do Nilo; senhor de Heliópolis, centro do culto ao Sol; senhor de Orion, como
um rei celestial; senhor de Serket, associado a Escorpião, senhora dos restos humanos; senhor da mumificação, do
ritual de embalsamamento, atributo de Anúbis. O nome “Osíris” também era o epíteto de um rei falecido, para dar-
97

conhecimento da agricultura e do poder da palavra (magia, encantamento, destino).261 Todos


esses primeiros celestiais irritaram Tiamat, como consta no final do excerto, e trouxeram
desordem para Anduruna.262 Esse mundo caótico, representado pelas águas, fora o elemento a
ser superado pelos seres que se autoengendraram ou foram engendrados de outros, sendo o Sol
para os egípcios e os celestiais para os semitas, aqueles encarregados de guiar os demais para
esse fim, para instaurar a ordem.
Os nomes semíticos e sumerianos para os seres da mesma narrativa foram múltiplos,
assim como também foram para os antigos egípcios – dos quais certamente ainda não
conhecemos todos. Foram vários nomes de inserção social ou sociorrituais que colocaram
ordenadamente os demais seres animados ou inanimados à mercê das vontades dos seres
humanos, segundo sua ótica e lógica de organização de espaços. Decerto que os astros ou os
fenômenos climáticos existem antes da tomada de consciência dos povos, mas só passariam a
fazer sentido quando fossem incluídos com nomes nas tribos e associados aos afetos da
humanidade. Sendo assim, vamos apresentar alguns outros nomes interessantes para esse jogo
de comparações cosmogônicas, que não estiveram presentes no excerto acima. O termo
sumeriano para celestiais é “DINGIR.DINGIR” ( , com o ideograma repetido, indicando
plural)263 escrito em cuneiforme, semelhante ao traço de uma “estrela”, ou, à visão do sol no
horizonte em um dia limpo de nuvens.264 No acadiano, sofreu uma “redução” de traços ( ),
sendo transliterado por “ilāni”, no plural265; por sua vez, o Sol é “dUTU”, forma adotada
também pelos hititas, como indicamos no capítulo I, por Kloekhorst (2008), sendo Šamaš266 o

lhe o direito de ainda reinar sobre os vivos, assim como “Hórus” era um epíteto associado ao seu direito de trono
em vida, de governar em terra. Contudo, o Sol possuía, no submundo, um valor mais positivo do que Osíris. Com
o tempo, a relação de Osíris com o submundo deu-lhe o papel social de patrono das colheitas de grãos (Dramatic
Ramesseum Papyrus da Dinastia XII, século XX-XVIII A.E.C.). Osíris passou a ser colocado como mantenedor
agrícola dos seres vivos e dos seres celestiais, senhor da justiça pós-morte, enquanto Rá passava a ser acusado de
permitir injustiças sob sua face, ou seja, na terra, onde prosperam os maus e os bons fraquejam, tornando o culto
a Osíris bastante popular nas terras egípcias (HART, op. cit., p. 114-124).
261
Muito dessa visão sobre Osíris também vem do trabalho de Plutarco (40/46-120 E.C.), escritor grego, por sua
obra Isis e Osíris, em sua Moralia (Ibid., p. 123-124). Cf. PLUTARCO. Isis y Osiris. (1995), tradução espanhola
da Gredos.
262
Um ambiente celeste, onde habitam os destinos, ou, um tipo de submundo, onde habitam espíritos maus, ou
ainda um lugar para o nascimento do sol (LAMBERT, 2013, p. 470).
263
Pode significar “aqueles que entregam o que está decidido” – DI-, “decisão”, “arbítrio” + -ĜAR, “entregar”,
“distribuir” (HALLORAN, Sumerian Lexicon, 2006, s. u.).
264
Que em nossos dias pode ficar bem evidente sob as lentes de uma câmera.
265
Também cf. TERRA, O Deus dos semitas, 2015, p. 26-27.
266
É a representação da luz solar (em cuneiforme 𒌓 “ud”), do calor que aquece a humanidade e que beneficia o
crescimento das plantações. O Sol é filho da Lua (Nanna) para os sumerianos e filho do Céu (Anu) ou dos Ventos
(Enlil) para os acádios. Seu templo era chamado Ebabbar (“Casa Branca”) situado em Sippar, atual Abu Habbah,
no Iraque e em Larsa, atual Sankarah, também no Iraque – seu culto é atestado como um dos mais antigos da região
98

nome dado pelos semitas. Assim como no Egito Antigo, o Sol (seu brilho) fora tomado como
parâmetro de “verdade”, “justiça” e “correção”. Todavia, diferentemente Rá, ancestral maior
dos poderosos, no geral, para os egípcios, fora Anu, o firmamento, o pai das entidades celestes.
Mas, pela ideia paternal, Anu e Rá são equiparáveis em sentido social. A escrita cuneiforme foi
uma abstração ideográfica e sonora dos antigos povos mesopotâmicos, adaptada para várias
línguas, usada também pelos egípcios e pelos indo-europeus na Anatólia, marcada em argila
por um estilete de junco267, contudo, a popularidade dessas narrativas cosmogônicas ficou a
cargo das inscrições em murais, das pinturas, da fabricação de estatuetas, de artefatos
cotidianos, de relevos em templos e principalmente por meio das canções e conversas.
Acerca do local do sol, entre esses espaços em comparação, Rocha comenta que

Neste lugar, os mitos se encontram. O inconsciente coletivo é, como o nome


diz, algo compartilhado pela humanidade toda, é um patrimônio comum. Ao
mesmo tempo existe em cada um de nós. Assim eles explicam como os mitos
do Sol podem aparecer desde o Egito Antigo até os incas da América do Sul,
passando, quem sabe, pela praia de Ipanema a cada verão. [...] No meio deste
conjunto de corpos celestes e forças da natureza, o Sol assume uma posição
de destaque como fonte de inspiração mitopoética. Pela sua própria situação
central em relação à Terra, os satélites e planetas, era para ele que se voltavam
os interesses principais da atividade mítica. Os mitos solares desempenhavam
um papel primordial. [...] Pelo olhar do nascer e do pôr-do-sol. Pela constante
e permanente recorrência dos dias e das noites como um drama de luzes e
escuridão. Pela alternância deste jogo e a eterna repetição dia a dia, mês a mês,
ano a ano, dos seus rebatimentos no céu e na terra. Por tudo isto, enfim, ao Sol
fazia-se objeto principal da mitologia. Astro maior entre corpos reais, astro
hollywoodiano ocupando o papel destacado nos mitos. O Sol superstar no
duplo sentido.268

Acreditamos que, ainda mais do que o sol em si, esse corpo luminoso inanimado e
“habitante do céu”, quem ganhou destaque de fato, fora seus nomes de inclusão e
personificação, dados por cada uma dessas comunidades antigas – e que, como vimos, constitui
na inserção de vários nomes diferentes, nomes que mexem com os afetos da humanidade.

mesopotâmica. É representado por um homem barbudo com chapéu cornudo, com as costas iluminadas, com
representações de traços, segurando uma faca dentada, pouco curvada, como se fosse um guerreiro. O caminho do
Sol ilumina a face da terra, revela a verdade, o correto e o justo – representado saindo de entre montanhas ou
sentado em um trono. Fora considerado o patrono dos reis da região, e, com isso, tais reis fortaleciam o imaginário
“filhos do Sol”. A literatura mostra o Sol como aliado de certos personagens dos poemas locais, como Gilgameš,
Dumuzi e Etana (BLACK; GREEN, op. cit., p. 182-184).
267
MIEROOP, Cuneiform Texts and the Writing of History, 1999, p. 2. Marc Van de Mieroop (1956-) é belga,
assiriólogo, professor de Antigo Oriente Médio da Universidade de Columbia, EUA.
268
ROCHA, 1994, pp. 13; 30, grifo do autor.
99

Sabendo dessa leitura, vamos para o texto semita, na visão dos israelitas e judaítas, com relação
ao mito do princípio:

(1) No princípio [Berē’šiyt], Potências [’eloḥiym] criou as águas de cima


[šāmayim] e a terra [’āretz].
(2) E a terra era deserta, vazia e escura sobre a face das águas do abismo
[teḥōm] e o ânimo [rūaḫ] de Potências moveu-se lentamente sobre a face das
águas.
(3) Potências disse: ‘[que] exista luz [’ōr] e houve luz’.
(4) Potências viu a luz, pois [era] boa, e Potências separou entre a luz e entre
o escuro [ḫošeḵ].
(5) Potências nomeou a luz yōm [dia] e o escuro nomeou lāylāh [noite] e
[assim] existiu crepúsculo e existiu amanhecer, dia um. (F.)
(6) Potências disse: ‘[que] exista firmamento [rāqiya‘] no meio das águas’ e
houve distinção entre águas das águas.
(7) Potências fez o firmamento e selecionou entre as águas que [existem]
abaixo do firmamento e entre as águas que [existem] sobre o firmamento e
assim foi.
(8) Potências nomeou o firmamento šāmāyim [céu] e foi crepúsculo e foi
amanhecer, segundo dia. (F.)
(9) Potências disse: ‘[que se] juntem as águas abaixo do céu para um lugar’ e
ficou visível o chão seco [yabāšāh] e assim foi.
(10) Potências nomeou o chão seco ’eretz [terra] e o aguardado das águas
nomeou yamiym [mares], Potências viu, pois [era] bom.
(14) [...] Potências disse: ‘[que] existam corpos luminosos [me’orot] no
firmamento do céu para se distinguir entre o dia e entre a noite’ e foram para
presságios, festivais, dias e revoluções do tempo [anos].
(15) E houve luzeiros no firmamento do céu para iluminar sobre a terra e assim
foi.
(16) Potências fez dois corpos luminosos grandes: o maior corpo luminoso
para dominar o dia e o menor corpo luminoso para dominar a noite e os astros.
(17) Potências os colocou no firmamento do céu para iluminar sobre a terra.
(18) Para reinar no dia, na noite e para distinguir entre a luz e entre o escuro,
Potências viu, pois [era] bom.
(19) E foi crepúsculo e foi amanhecer, quarto dia (F.).269

269
Gênesis 1, 1-10; 14-19.
‫אשית בָּ ָּרא אֱֹלהִׁ ים אֵ ת הַ שָּ מַ יִׁ ם וְּ אֵ ת הָּ אָּ ֶרץ׃‬ ִׁ ‫"בְּ ֵר‬
‫וְּ הָּ אָּ ֶרץ הָּ יְּ תָּ ה תֹ הּו וָּבֹ הּו וְּ חֹ שֶ ְך עַל־פְּ נֵי ְּתהֹ ום וְּ רּוחַ אֱֹלהִׁ ים ְּמ ַרחֶ ֶפת עַל־פְּ נֵי הַ מָּ יִׁ ם׃‬
‫ַוי ֹאמֶ ר אֱֹל ִׁהים יְּ הִׁ י אֹ ור וַיְּ הִׁ י־אֹ ור׃‬
‫ַוי ְַּרא אֱֹלהִׁ ים אֶ ת־הָּ אֹ ור כִׁ י־טֹ וב ַויַבְּ דֵ ל אֱֹלהִׁ ים בֵ ין הָּ אֹ ור ּובֵ ין הַ חֹ שֶ ְך׃‬
‫ֱֹלהים לָּאֹ ור יֹ ום וְּ לַחֹ שֶ ְך קָּ ָּרא לָּיְּ לָּה וַיְּ הִׁ י־ע ֶֶרב וַיְּ הִׁ י־בֹ קֶ ר יֹ ום אֶ חָּ ד׃ ף‬ ִׁ ‫וַיִׁ קְּ ָּרא א‬
‫ֱֹלהים יְּ הִׁ י ָּרקִׁ י ַע בְּ תֹ וְך הַ מָּ יִׁ ם וִׁ יהִׁ י מַ בְּ ִׁדיל בֵ ין מַ יִׁ ם לָּמָּ יִׁ ם׃‬
ִׁ ‫ַוי ֹאמֶ ר א‬
‫ַו ַי ַעׂש אֱֹלהִׁ ים אֶ ת־הָּ ָּרקִׁ י ַע ַויַבְּ דֵ ל בֵ ין הַ מַ יִׁ ם אֲשֶ ר ִׁמתַ חַ ת ל ָָּּרקִׁ י ַע ּובֵ ין הַ מַ יִׁ ם אֲ שֶ ר מֵ עַל ל ָָּּרקִׁ י ַע וַיְּ הִׁ י־כֵן׃‬
‫ֱֹלהים ל ָָּּרקִׁ י ַע שָּ מָּ יִׁ ם וַיְּ ִׁהי־ע ֶֶרב וַיְּ הִׁ י־בֹ קֶ ר יֹ ום שֵ נִׁ י׃ ף‬ ִׁ ‫וַיִׁ קְּ ָּרא א‬
‫ֱֹלהים יִׁ קָּ וּו הַ מַ יִׁ ם ִׁמתַ חַ ת הַ שָּ מַ יִׁ ם אֶ ל־מָּ קֹ ום אֶ חָּ ד וְּ תֵ ָּראֶ ה הַ יַבָּ שָּ ה וַיְּ הִׁ י־כֵן׃‬ ִׁ ‫ַוי ֹאמֶ ר א‬
‫ֱֹלהים ַליַבָּ שָּ ה אֶ ֶרץ ּולְּ ִׁמקְּ וֵה הַ מַ יִׁ ם קָּ ָּרא י ִַׁמים ַוי ְַּרא אֱֹלהִׁ ים כִׁ י־טֹ וב׃‬ ִׁ ‫וַיִׁ קְּ ָּרא א‬
[...]
‫ֱֹלה ים יְּ הִׁ י ְּמאֹ רֹ ת בִׁ ְּרקִׁ י ַע הַ שָּ מַ יִׁ ם לְּ הַ בְּ ִׁדיל בֵ ין הַ יֹ ום ּובֵ ין הַ לָּיְּ לָּה וְּ הָּ יּו לְּ אֹ תֹ ת ּולְּ מֹ וע ֲִׁדים ּולְּ י ִָּׁמים וְּ שָּ נִׁ ים׃‬ ִׁ ‫ַוי ֹאמֶ ר א‬
‫וְּ הָּ יּו לִׁ ְּמאֹ ורֹ ת בִׁ ְּרקִׁ י ַע הַ שָּ מַ יִׁ ם לְּ הָּ ִׁאיר עַ ל־הָּ אָּ ֶרץ וַיְּ הִׁ י־כֵן׃‬
‫ת־שנֵי הַ ְּמאֹ רֹ ת הַ גְּ דֹ לִׁ ים אֶ ת־הַ מָּ אֹ ור הַ גָּדֹ ל לְּ מֶ ְּמשֶ לֶת הַ יֹ ום וְּ אֶ ת־הַ מָּ אֹ ור הַ קָּ טֹ ן לְּ מֶ ְּמשֶ לֶת הַ לַיְּ לָּה וְּ אֵ ת הַ כֹ וכָּבִׁ ים׃‬ ְּ ֶ‫ַו ַי ַעׂש אֱֹלהִׁ ים א‬
‫וַיִׁ תֵ ן אֹ תָּ ם אֱֹלהִׁ ים בִׁ ְּרקִׁ י ַע הַ שָּ מָּ יִׁ ם לְּ הָּ ִׁאיר עַל־הָּ אָּ ֶרץ׃‬
‫וְּ לִׁ ְּמשֹ ל בַ יֹ ום ּובַ לַיְּ לָּה ּולֲהַ בְּ ִׁדיל בֵ ין הָּ אֹ ור ּובֵ ין הַ חֹ שֶ ְך ַוי ְַּרא אֱֹלהִׁ ים כִׁ י־טֹ וב׃‬
"‫וַיְּ הִׁ י־ע ֶֶרב וַיְּ הִׁ י־בֹ קֶ ר יֹ ום ְּרבִׁ יעִׁ י׃ ף‬
100

Ao explicar o motivo da nossa proposta de tradução, faremos a comparação com os dois


excertos anteriores – tradução esta que foi submetida ao mesmo método da investigação
etimológica do capítulo I.270 Seja no Antigo Egito, seja no mundo entorno dos rios Tigre e
Eufrates, sejam nas sociedades que se formaram ao redor do mar Mediterrâneo, forças da
natureza, astros celestes, homens ou mulheres, animais, regiões, os mais diversos biomas, todos
foram inseridos, de alguma maneira, no campo do conhecimento por meio dos seus nomes,
nomes que o ser humano deu, nomes dos mais variados em diversas culturas e línguas. As três
cosmogonias apresentadas mostram o surgimento de algo a partir do seu nome. Sem nomes,
haveria um oceano abissal e a terra permaneceria em escuridão – um mundo sem saber, um
mundo sem luz. A luz (esse esplendor) torna-se o eufemismo metafórico desses povos para a
promoção da sabedoria, da justiça, da própria ideia do que é bom. Algo que pode ser visto, é
algo que está iluminado e o sol seria, portanto, o grande homenageado pela maioria das
sociedades humanas – lua e astros, na mesma lógica. Neste trabalho, estamos dando espaço ao
elemento que duvida, que descrê ou que descaracteriza uma crença popular ou uma ordem
maior de poder de influência sociopolítica. Se considerarmos, dessa forma, os escritores
anônimos de Israel/Judá como representantes de um pensamento, de um imaginário in loco,
estaríamos diante de uma cosmogonia “ateia”271? Isso seria possível?

Disponível em: http://www.qbible.com/hebrew-old-testament/genesis/1.html. Acesso em: 31 jul. 2018. No


capítulo dois do Gênesis bíblico, podemos encontrar uma outra versão do texto acima, que inclui o nome
sociorritual afetivo Yḥwh (‫ )יהוה‬acompanhado do referido ’eloḥiym, contudo, não narra a criação dos astros nem
da terra. Essa questão implica em outras discussões entorno das hipóteses de autorias ou de escolas de autorias na
montagem desses textos israelo-judaítas no passado, quiçá, ações contemporâneas aos períodos régios de Israel
(séculos X-VI A.E.C.). Neste trabalho não abordaremos essa problemática (Teorias Javista, séculos X-IX A.E.C.,
Eloísta, séculos VIII-VII A.E.C., Deuteronomista, séculos VII-VI e Sacerdotal, séculos VI-IV A.E.C., sobre a
construção dos textos israelitas), mas certamente seriam interessantes para a realização de uma nova pesquisa. Na
cosmogonia selecionada, suprimimos tanto a criação dos biomas, dos animais quanto da humanidade, por darmos
foco somente à questão celestial da narrativa.
270
Ou seja, privilegiou os sentidos menos metafóricos dos termos. Além do site qbible.com, consultamos KLEIN,
A Comprehensive Etymological Dictionary of the Hebrew, 1987; TAWIL, An Akkadian lexical companion to
biblical Hebrew, 2009; HOLLADAY, Léxico hebraico e aramaico do Antigo Testamento, 2010; STRONG, A
Concise Dictionary of the words in the Hebrew Bible, 1890; BROWN, A Hebrew and English Lexicon of the Old
Testament, 1939; e KIRST et al., Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, 2015.
271
Não sabemos ainda se “descrer” faz parte do antigo campo semântico dessa palavra. Contudo, um de seus
caminhos se mostra evidente: não haver celestiais criadores; não haver celestiais homenageados socialmente.
Nesse sentido, supomos que uma cosmogonia “ateia” seria como a israelita, onde os celestiais são entes
inanimados, que não receberam um nome em especial e nem foram ativos na criação, já que, ao contrário, foram
criados por forças genéricas. Tomaremos o termo “ateu” emprestado para tentar elucidar algumas questões
propostas.
101

3.3.6 O coletivo das forças todo-poderosas criou os celestiais

O texto israelita/judaíta272 substituiu todos os nomes de inserção sociorrituais do mundo


semítico dados ao sol e à lua, por exemplo. Ao invés de nomes simbolicoafetivos, como Nu,
Apsû ou Tiamat, o excerto israelo-judaíta tratou de descrever a situação em si, ou seja,
demonstrou com nomes comuns esse mundo de escuridão e ausência de seres animados e
inanimados, onde somente águas existiam. No lugar de denominar as forças criadoras, como
Rá, ou Anu, o povo em questão optou por um termo genérico, que geralmente conota
pluralidade ou coletividade: ’eloḥiym, que traduzimos por “potências”.
Neste ponto, cabe nossa justificativa para o motivo de termos traduzido ’eloḥiym por
“potências” ou “potestades”.273 O substantivo é plural, mas os verbos associados a ele estão no
singular, no texto original, remetendo a uma marca de substantivo coletivo na língua israelita e
judaíta.274 Comumente, a referida palavra israelo-judaíta é traduzida por “Deus” (não “deus”).
Vimos que o termo latino expressa etimologicamente o “brilho do sol”, o “céu ensolarado”. Tal
associação etimológica não consta nos dicionários de hebraico e nem nos dicionários
especializados em etimologia semítica que utilizamos para conjecturar uma tradução mais
interessante para ’eloḥiym – todavia, a palavra “Deus” ou “deuses” (God, gods) não deixa de
estar presente neles, como opção.
Dessa forma, aí se mostra uma possível adaptação israelo-judaíta do termo, de plural
para um termo que conota no mínimo coletivo.275 Mas coletivo de que? Provavelmente o
coletivo para “todas as forças”, pois seu radical “‫’( ”אֵ ל‬ēl) – comum entre povos semitas, como
ugaritas, acadianos, aramaicos, fenícios, assírios – pode significar: “poder”, “força”, “esforço”,
“domínio” – semelhante à raiz egípcia “nṯr”, também na ideia de “seres sobrenaturais” ou

272
É preciso levar em consideração que, até por volta do século VII A.E.C., os reinos de Israel e Judá não haviam
estabelecido uma cultura única “monoteísta”, como se pensa no senso comum, e é bem provável que o reino do
norte (Israel) tenha sido destruído sem nem sequer ter feito isso (século VIII-VII A.E.C.). Por sua vez, o reino do
sul (Judá), segundo o próprio texto judaíta em Reis II 22; 23, sob as ordens de Josias (Yo’šiyāḥū), após ter
descoberto um antigo livro de leis (sēfer ḥaTōrāh) numa reforma da Casa de Yḥwh em Jerusalém, sucedeu uma
série de densas alterações culturais e estruturais sob as terras em seu comando, sendo que, pouco tempo depois, o
reino seria desolado pela Babilônia (século VI-V A.E.C.). Para mais cf. DIETRICH, “1 and 2 Kings”, 2007, p.
263-264.
273
Ainda nos falta um termo que sintetize essa ideia de coletivo.
274
Ou seja, forma plural: sentido plural ou singular (coletivo), distinguidos pelo número dos modificadores e das
formas verbais acompanhantes. (Cf. KELLEY, Hebraico Bíblico, 1998, pp. 118; 440).
275
Não era necessariamente uma novidade entre as línguas mesopotâmicas: ilūtu, “potências”, como plural e
coletivo no acadiano (BLACK et al., A Concise Dictionary of Akkadian, 2000, p. 127); dingirene, “celestiais”,
como plural e coletivo no sumeriano (LANGDON, A Sumerian Grammar and Chrestomathy, 1911, p. 108); ilm,
“poderosos”, como plural e coletivo no ugarítico (POPE, El in the Ugaritic texts, 1955, p. 60).
102

“juízes”. Provavelmente, dessa forma, o termo foi consagrado pelos israelitas para substituir
cada nome de inserção sociorritual dessas “forças”, desses “celestiais”, nomes dados pelos
outros grupos sociais da região.276
Diante dessa problemática cultural, descartamos “Deus” como tradução parelha de
’eloḥiym, pois, de acordo com a investigação de nosso primeiro capítulo, o termo latino foi
relacionado com o radical protoindo-europeu *diw-, que por sua vez indica o “brilho”, a “luz”,
o “esplendor” e está intimamente relacionado com o mundo celestial – particularmente com o
brilho solar. Vimos que tanto o latino deus, quanto o grego θεός foram palavras tornadas em
designações genéricas, por esses dois povos, para localizar os seres ditos celestiais ou
poderosos, pelo seu mundo conhecido – cujos nomes próprios e eufemismos mexem com os
afetos humanos. Nessa lógica, no texto israelo-judaíta, esse coletivo “todas as forças” distinguiu
a “luz” e o “escuro” e nomeou-os “dia” e “noite”, assim, nesse contexto, certamente
encaixaríamos a lógica do indo-europeu, mas, em outro sentido. Nomear o céu iluminado de
“dia”, de forma genérica, é descaracterizar o poder do afeto que o nome tribal para a luz ou para
o calor do sol, em outras sociedades, tendia a simbolizar. A questão aqui é que o excerto não
investiu em nomes de inserção ritual para os astros, nomes em particular que representassem
algo afetivo, semelhante aos egípcios e aos mesopotâmicos em geral – assim, teria esse ’eloḥiym
nomeado e criado deus, ou seja, o “céu ensolarado”, segundo sua abstração etimológica.
Da mesma forma, o “céu” não passaria de um espaço criado para fixar (firmar) o sol
(nomeado como “grande corpo luminoso”), a lua (nomeada como “pequeno corpo luminoso”)
e as estrelas, para o usufruto dos seres viventes da terra. O valor social deles resumiu-se a
distinguir dia e noite, ajudar nos presságios, na contagem dos anos, na constituição dos festivais
comunitários e na iluminação do “chão seco” – descartando também os nomes sociorrituais
para a terra. Essa leitura empírica do meio, caracteriza a essência dessa mitografia israelo-
judaíta? Nessa cosmogonia, é o termo plural ou coletivo ’eloḥiym, tais “potências”, que fora
tornado nome de caráter socioafetivo, um conjunto de forças dotado de vontade e capacidade
de escolha, um nome evocado, pelos israelitas, para desconsiderar a ideia de que algo visível
aos olhos humanos possa ter vindo à existência do “nada”, como o sol para os antigos egípcios
e o céu para a maioria dos mesopotâmicos, seres que passaram a ter vida de dentro do abismo
dos mares ao pronunciarem eles mesmos os seus nomes (nomes de inclusão tribal e ritual).
Seria essa a lógica da descrença na Antiguidade? O que caracterizaria socialmente o
“descrente”, ou o “ateísta”? Explicar ou ensinar sobre o mundo desconsiderando os nomes

276
Sobre a questão “’ēl” cf. POPE, 1955, p. 20-21.
103

“tribais” e “afetivos” dos seres astrais, fenômenos atmosféricos, etc.? Destruir suas imagens e
referências? Como os gestores da ordem lidariam com esses indivíduos?

3.3.7 Sob o resultado de uma tradição celeste?

Agora, vamos adentrar no texto heleno, por meio da cosmogonia de Hesíodo, com a
finalidade de ampliar um pouco mais a leitura teórica da imagem inconsciente entre povos
antigos, como vimos em Nuno Rodrigues. Como também já vimos, o excerto se encontra na
Teogonia, atribuída ao referido poeta. O termo grego, como constatamos no capítulo I, designa
θεός + γονή -ῆς ἡ, isto é, a “ação de engendrar”, o “nascimento”, a “origem”, a “linhagem”, a
“família”, a “descendência” de θεός, do “celestial”.

Me diz essas coisas do princípio [ἀρχῆς], Moças-da-Memória [Μοῦσαι] que


têm suas moradas no Olimpo, e contem qual deles nasceu primeiro [πρῶτον].

(116) Na verdade, Aberto [Χάος] o primeiro de todos veio à existência, e


depois Terra [Γαῖα] de extenso seio, o eterno assento firmado de todos os
imortais que possuem [o] nevado pico do Olimpo, e [depois o] escuro
Submundo [Τάρταρά] nas profundezas do vasto caminho da terra, e [por fim]
Progenitivo [Ἔρος], aquele que é o mais belo entre os celestiais imortais
[ἀθανάτοισι θεοῖσι], que aflora os membros, [e] domina a mente e o senso de
inteligência de todos os celestiais [πάντων τε θεῶν] e de todos os humanos em
seus seios.

(123) De Aberto, Tênebra [Ἔρεβός] e a escura Noite [Νὺξ] vieram à


existência; em seguida, de Noite saíram Firmamento [Αἰτήρ] e Dia [Ἡμέρη],
que concebeu e ergue-os depois de misturar-se em amor com Tênebra.

(126) Terra, antes de tudo, ergue [o] estrelado Céu [Οὐρανὸν], igual a si, para
cobri-la em todos os lados, de modo que seja o eterno assento firmado dos
venturosos celestiais [μακάρεσσι θεοῖς]; e ergueu as altas montanhas, o airoso
antro das beldades [θεᾶν], Jovens Moças [Νυμφέων] que moram nos bosques
das montanhas. E também ergueu o estéril pélago agitado com suas ondas,
Alto-mar [Πόντον], destituído de agradável afeto; depois disso, tendo deitado
com Céu, ergueu Água-derredor [Ὠκεανὸν] de profunda corrente, Que-Qual?
[Κοῖόν], Carneiro [Κρεῖον], Super-Andante [Ὑπερίονά], Iápeto [Ἰαπετόν],
Maravilhosa [Θείαν], Complacente [Ῥείαν], Justeza [Θέμιν], Recordação
[Μνημοσύνην], Resplandecente [Φοίβην] de dourada coroa e Puericultora
[Τηθύν] a amável. Em seguida, Cronos [Κρόνος] nasceu, o mais jovem deles,
de intenções tortuosas, o mais terrível de seus filhos; e ele odiava seu vigoroso
pai.277

277
HESÍODO, Teogonia, 114-138. “These things tell me from the beginning, Muses who have your mansions on
Olympus, and tell which one of them was born first. (116) In truth, first of all Chasm came to be, and then broad-
breasted Earth, the ever immovable seat of all the immortals who possess snowy Olympus’ peak and murky
Tartarus in the depths of the broad-pathed earth, and Eros, who is the most beautiful among the immortal gods,
the limb-melter – he overpowers the mind and the thoughtful counsel of all the gods and of all human beings in
their breasts. (123) From Chasm, Erebos and black Night came to be; and then Aether and Day came forth from
104

A caracterização análoga entre essas cosmogonias permanece no texto hesiódico.


Optamos por tentar significar os nomes próprios dos entes primordiais e dos filhos do céu e da
terra (os titãs), com a finalidade de mostrar ao leitor contemporâneo essa aproximação do
significado com o que talvez fosse percebido pelo indivíduo heleno, junto ao meio em que
vivia.278 Sendo assim, notemos, em primeiro lugar, que os princípios das narrativas são
semelhantes, no sentido de que havia um “aberto”, um “amplo” primordial (Caos)279. Esse
“aberto” aparece poeticamente personificado, assim como todos os outros entes e forças
primordiais – mas, neste caso, não está associado com nenhuma água primordial. A
autoexistência é contemplada pontualmente ao Aberto, à Terra (Gaia)280 – incluindo o Olimpo,
as demais montanhas e os bosques –, ao Subterrâneo (Tártaro)281 e ao Progenitivo (Eros)282.
Para esse “progenitivo”, ou seja, capacidade de reprodução, esse anseio pela reprodução, que
pode implicar amor, sedução, paixão, desejo, por exemplo, é dada fundamental importância no
excerto do canto, pois, incide tanto nos afetos dos seres humanos, quanto nos afetos dos
celestiais – um elemento primordial em comum, que mexe com a sanidade mental. Desse

Night, who conceived and bore them after mingling in love with Erebos. (126) Earth first of all bore starry Sky,
equal to herself, to cover her on every side, so that she would be the ever immovable seat for the blessed gods;
and she bore the high mountains, the graceful haunts of the goddesses, Nymphs who dwell on the wooded
mountains. And she also bore the barren sea seething with its swell, Pontus, without delightful love; and then,
having bedded with Sky, she bore deep-eddying Ocean and Coeus and Crius and Hyperion and Iapetus and Theia
and Rhea and Themis and Mnemosyne and golden-crowned Phoebe and lovely Tethys. After these, Cronus was
born, the youngest of all, crooked-counseled, the most terrible of her children; and he hated his vigorous father.”
(HESIOD, 2006, p. 12-15). Cf. Anexo C.
278
Utilizamos principalmente Chantraine (1999) e Pabón (1967).
279
“Caos, em grego χάος (Kháos), do v. χαίνειν (khaínein), abrir-se, entreabrir-se, significa abismo insondável”
(BRANDÃO, Mitologia Grega I, 1986, p. 184). Junito Brandão (1924-1995) foi um renomado classicista
brasileiro, especialista em mitologia.
280
Etimologia incerta. Quiçá γῆ (γᾶ), “terra” e αἶα, “mãe” (Cf. BEEKES, 2010, ppp. 30; 255; 269-270). “Dela
nascem todos os seres, porque Géia é mulher e mãe. Suas virtudes básicas são a doçura, a submissão, a firmeza
cordada e duradoura, não se podendo omitir a humildade, que, etimologicamente, prende-se a humus, ‘terra’, de
que o homo, ‘homem’, que igualmente provém de humus, foi modelado. Ela é a virgem penetrada pela charrua e
pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, que são o spérma, a semente do Céu” (BRANDÃO, 1986, p.
185, grifos do autor).
281
Etimologia incerta, talvez de origem não grega (Chantraine, 1999, s. u.). “[...] é o local mais profundo das
entranhas da terra [...]. Um pouco mais tarde, quando o Hades foi dividido em três compartimentos, Campos
Elísios, local onde ficavam por algum tempo os que pouco tinha a purgar, Érebo, residência também temporária
dos que muito tinham a sofrer, o Tártaro se tornou o local de suplício permanente e eterno dos grandes criminosos,
mortais e imortais” (BRANDÃO, op. cit., p. 186).
282
Entidade primordial que fora motivo para a construção de várias mitografias sobre sua origem ao longo da
história helênica, como podemos ver no Banquete, ou Simpósio de Platão (século IV A.E.C.). Cf. PLATÃO.
Banquete. (1988), tradução espanhola da Gredos.
105

“aberto” erguem-se Trevas (Érebo)283 e a escura Noite (Nix)284. As escuridões se misturam


amorosamente, copulam, e não as águas, e nascem Firmamento (Éter)285 e Dia (Heméra)286.
Acima da “terra” ergue-se Céu noturno copulador (Urano)287 e de suas relações amorosas
nascem os Titãs288 – sendo que o ato de se autonomear, ou, de dar nomes, para que se possa
passar à “existir” ou, para que se possa “criar” seres ou coisas, elemento recorrente entre os
semitas e os egípcios, em suas cosmogonias, estaria aqui sendo ofuscado pela ênfase na cópula
procriadora dos seres sucessores dos entes primordiais, estes sim vieram à autoexistência, mas
de uma forma que, talvez, somente as Moças-da-Memória (as Musas)289 do Olimpo poderiam
ter informado, mas parece que não o fizeram.
Como se pôde notar, o nome de cada descendente da “terra” com o “céu estrelado”,
certamente fora relevante, de forma significativa, para o imaginário da ordem social, ordem
configurada sob a crença nos celestiais olimpianos e forças da natureza primordiais como seres

283
“Trata-se de uma concepção indo-europeia, regwos [h1regw-es-], que aparece em sânscrito como rajah [rájas-
], espaço obscuro, no gótico riqis, obscuridade, e no armênio erek, crepúsculo” (BRANDÃO, op. cit., p. 190, grifos
do autor e acréscimos nossos, baseados em Mallory e Adams, 2006, s. u.).
284
“Seu habitat é o extremo Oeste, além do país de Atlas. Enquanto Érebo personifica as trevas subterrâneas,
inferiores, Nix personifica as trevas superiores, de cima. [...] À Noite só se podem imolar ovelhas negras. Nix
simboliza o tempo das gestações, das germinações e das conspirações [...]. É muito rica em todas as potencialidades
de existência, mas entrar na noite é regressar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos, íncubos, súcubos e
monstros” (Ibid., p. 190-191, grifo do autor).
285
“[...] do verbo αἴθειν (aíthein), brilhar, iluminar, Éter é a camada superior do cosmo, posicionado entre Urano
(Céu) e o AR e, por isso mesmo, personifica o céu superior, onde a luz é mais pura que na camada mais próxima
da terra, dominada pelo AR, que nada tem a ver com Éter” (Ibid., p. 191).
286
“[...] parece relacionar-se com o armênio awr, ‘quente’. Heméra é a personificação do Dia, concebido como
divindade feminina, formando com Éter um par, enquanto Érebo e Nix formam o outro” (Ibid., loc. cit.).
287
Difícil etimologia, talvez um termo pré-grego. Existe uma hipótese que o aproxima do sânscrito varṣá-,
“chuva”, pelo indo-europeu *uorsó- e outra que o aproxima do sânscrito varṣman-, “elevado”, pelo indo-europeu
*uers-. A identificação com o sânscrito Váruṇa- já foi descartada pelos etimólogos (Cf. BEEKES, 2010, p. 1128).
“Urano (Céu) era concebido como um hemisfério, a abóbada celeste, que cobria Géia, a Terra, concebida como
esférica, mas achatada [...]. Do ponto de vista simbólico, [...] traduz uma proliferação criadora desmedida e
indiferenciada, cuja abundância acaba por destruir o que foi gerado. Urano caracteriza assim a fase inicial de
qualquer ação, com alternância de exaltação e depressão, de impulso e queda, de vida e morte dos projetos. [...]
símbolo da fecundidade, [...] é representado pelo touro” (BRANDÃO, op. cit., loc. cit.).
288
Etimologia incerta. A hipótese mais interessante para Chantraine (1999), é que o nome deve ter derivado de
alguma entidade solar da Ásia Menor. Os titãs provavelmente simbolizam nomes de antigos representantes de
cultos pré-helênicos suplantados pelos nomes olimpianos, afundando-os tradicionalmente no Tártaro, mas
mantendo a sua relevância social, no geral (DALY, Greek and Roman Mythology, 2009, p. 141). “[...] representam
eles as manifestações elementares, as forças selvagens e insubmissão da natureza nascente, prefigurando a primeira
etapa da gestação evolutiva” (BRANDÃO, op. cit., p. 196).
289
Designam vários tipos de inspirações humanas, representadas por moças jovens, relacionadas com a recordação,
com o memorável (filhas de Mnemosine com Zeus): Calíope, “bela voz”, “eloquência”, inspiração à poesia épica;
Clio, “faz famoso”, inspiração à investigação/história; Erato, “desejada”, inspiração à poesia lírica; Euterpe,
“deliciando-se”, inspiração à musica com instrumento; Melpomene, “melodiosa”, inspiração à tragédia; Polímnia,
“muitos hinos”, inspiração a vários cantos e técnicas; Terpsícore, “deleite da dança”, inspiração à dança e ao coro;
Tália, “que alegra”, “que floresce”, inspiração à comédia; Urânia, “célia”, inspiração ao estudo dos astros,
matemática, filosofia (DALY, 2009, p. 95-96).
106

animados, bem como nas ideias abstratas e na identificação da biosfera pertinentes ao seu meio:
o alto-mar (Ponto)290, a água que rodeia o mundo conhecido (Oceano)291, a indagação (Céos)292,
o cabeça das constelações (Crio)293, as coisas do alto (Hipérion)294, o esplêndido (Teia)295, a
complacência (Reia)296, a justeza (Têmis)297, a recordação (Mnemosine)298, a feição radiante
(Febe)299, os cuidados maternais (Tétis)300. Duas significações são indeterminadas e se
encontram geralmente sob hipóteses pouco consensuais: Iápeto301 e Cronos302. Segundo
Chantraine (1999) – e alguns outros etimólogos e lexicógrafos – o nome próprio Iápeto
provavelmente deriva do verbo ἰάπτω, que significa “deformar”, “desfigurar”, “ferir”, mas dá-
se preferência ao sentido de “pôr em movimento”, “dar impulso”, “lançar”. Assim, o nome pode
designar “lançado”, “arremessado” – que é semelhante ao sentido do latino iactus.
De forma contrária, Cronos não possui etimologia consensual e a explicação simbólica
elaborada por Platão, no Crátilo, que apresentamos no capítulo I, é desconsiderada pelos
linguistas – chamada de etimologia “popular” ou “análoga”. Contudo, o mito da relação de
Cronos com seu pai Urano pode ser verificado em outras personificações pelo mundo literário
e oral indo-europeu e hamita-semita, mitos relacionados com entidades da colheita, ou

290
Água primordial – uma vez que, até esse momento, não havia sido mencionado nenhuma antes, e isso difere
das outras cosmogonias que apresentamos, onde a água é um ente autoexistente dos princípios, de uma era de caos,
desordem ou vazio.
291
Não participou da batalha contra Zeus e era primordialmente pensado como uma serpente aquática que rodeia
a terra (GRANT; HAZEL, Who’s Who in Classical Mythology, 2002, p. 368).
292
Inteligência oriunda do pensamento, do questionamento; era como a estrutura que sustentava as constelações,
um guardião para os oráculos celestiais. Foi enviado ao Tártaro por Zeus (DALY, op. cit., p. 36).
293
Associado com a domesticação de animais, principalmente o carneiro, logo, Áries (Ibid., p. 38).
Relacionado com os astros que “andam” sobre o céu, isto é, com o sol, como seu descendente Hélio e também
294

Apolo. Igualmente, progenitor de Selene, ou seja, a lua (Ibid., p. 75).


295
Junto com Hipérion, foi progenitora da luz do sol, da lua e do amanhecer (Eos). Patrona das gemas de ouro e
das profecias. Havia um local de reverência ao seu nome na Tessália, região próxima da Macedônia (Ibid., p. 139).
296
Progenitora dos olimpianos, associada à terra, à fertilidade, à colheita. Possuía vários locais de culto,
principalmente em Creta (Ibid., p. 126).
297
Senhora das estações anuais e dos destinos. Patrona da justiça, da ordem, da lei, da hospitalidade e da profecia.
Associada ao Oráculo de Delfos antes de Apolo e à sobrevivência da humanidade após a grande inundação enviada
por Zeus (Ibid., p. 139).
298
Personificação da memória, e, com Zeus, tornou-se mãe das Musas (dos nove cantos de inspiração para a arte
e para técnica).
299
Um dos epítetos do brilho lunar. Foi associada com Artêmis e Diana (Ibid., p. 117).
300
Representa a capacidade fecunda das águas, mãe das entidades do grande azul e contraparte feminina de
Oceano, também aliada dos olimpianos (BRANDÃO, op. cit., p. 203-204).
301
Conhecido por ser o progenitor de Atlas, Prometeu e Epimeteu.
302
Provavelmente um nome que remetia a um antigo patrono das colheitas, representado segurando uma foice
(DALY, op. cit., p. 38-39).
107

demiúrgicas, além de ser um outro bom modelo para ser investigado sob a ótica desse
imaginário inconsciente que estamos exemplificando. Podemos notar, que a cosmogonia
hesiódica dá ânimo aos entes primordiais, titãs e a outros inanimados, mantendo neles muitos
nomes comuns, certamente utilizados cotidianamente no mundo helênico – e assim como θεός,
também cedem radicais para a formação de muitas outras palavras gregas.303 Acreditamos que,
para o indivíduo desafiar a ordem semântica estabelecida e firmada principalmente na
linguagem, seria talvez necessário desmitificar as acepções associadas aos nomes dos celestiais
– quiçá, de forma semelhante ao caso do texto israelo-judaíta. Mas, e se o indivíduo
considerasse, por exemplo hipotético, que Θέμις, a Justeza, fosse uma invenção dos homens
mortais e interesseiros, e não uma força primordial, que não perece, poderosa, aliada dos
celestiais olimpianos? Como os mantenedores dessa tradição tratariam alguém com esse tipo
de mentalidade? “Ateu”? “Criminoso”?

3.3.8 Quando o documento informa especificidades próprias

De toda forma, conduzimos esses excertos com o objetivo de adentrar sumariamente


nessa lógica teórica trazida por Nuno Rodrigues, a respeito dessa imagem inconsciente, uma
imagem que é construída de acordo com o nosso ponto de vista, pois somos nós que realizamos
a aproximação entre esses excertos, mas nada, em nenhum deles, deixa explícita, por exemplo,
essas supostas releituras cosmogônicas, talvez oriundas de fortes tradições musicais e orais
correntes entre essas regiões (ver Figuras 02 e 03). Suposições ou hipóteses, essas abstrações
devem ser guiadas cientificamente (teoria e metodologia), para não fundamentarmos achismos
do senso comum ou exegeses baseadas na fé de algum crédulo. Portanto, Rodrigues, em suas
palavras, menciona que

As primeiras fontes literárias gregas permitem deduzir que as relações entre o


mundo grego e o mundo semítico são antigas, porém pouco explícitas. Trata-
se de vestígios indirectos, presentes em vocábulos, caracterização de
personagens, antro-topónimos, provavelmente insignificantes para os Helenos
coevos mas significativos para os investigadores de hoje. As dificuldades
assentam nas datações, na falta de dados concretos que permitam dizer quem
importou o quê, de onde e para onde se importou ou exportou, havendo ainda
a hipótese das formulações simultâneas, resultado de contextos comuns. [...]
Ao serem ditos e contados em grego e ao entrarem no vocabulário grego
perderam o sentido de estrangeirismo e de identidade bárbara que define as

303
Parece-nos que os nomes dos olimpianos foram sendo tornados nomes de personificação sociorrituais, e os
nomes dos titãs, ao contrário, foram sendo transformados em elementos comuns, necessários, mas sem tanta ou
nenhuma conotação ritual ou cultual – com algumas exceções, como Reia e Têmis.
108

relações do Homem Grego com o ‘Outro’. Mas para nós significam pistas de
investigação.304

Para complementar a questão da teoria das imagens, especificaremos os seus aspectos


teóricos restantes, mas não nos debruçaremos em exemplos, como fizemos com as
cosmogonias. A teoria da imagem semiconsciente se diferencia da inconsciente no momento
em que esse “eu” referencia esse “outro”, mas sem revelar a sua “origem”. Sobre esse sutil
fator, acerca dos gregos, Rodrigues comenta que “as origens siro-fenícias de algumas
personagens, o contexto babilónico de outras, as viagens a esses territórios iniciam a cultura
grega num olhar para o Oriente, sem que porém ainda se evidencie ou faça transparecer o
estrangeirismo”305, ou seja, esse local de discurso capeia um ou mais elementos estrangeiros
pretendidos para si próprio. É “semiconsciente”, pois, essa suspeita do pesquisador pode ser
melhor evidenciada do que na ótica “inconsciente”. Ainda são argumentos cuja datação pode
vir a ser problemática, principalmente se tentarmos adentrar no mundo criado e evidenciado no
conteúdo da fonte antiga. Essa semiconsciência, mais uma vez, também pode ser nossa.
Podemos apontar o dedo para uma provável assimilação num texto e esta poderá ser inclusive
comprovada, se tivermos acesso ao hipotético ponto de partida que o inspirou, mas no
documento em si, nada sobre isso será informado, pois, esse “outro” já estará na linguagem do
“eu”.306
Por fim, a teoria da imagem consciente. Na inconsciente, supomos semelhanças ou
arquétipos por meio de hipóteses e analogias, pois o “eu” não faz menção alguma ao “outro”
em seu discurso; na semiconsciente, podemos identificar o suposto “outro” no discurso do “eu”,
caso tenhamos em mãos os prováveis referenciais dele, mas, esse “eu” já teria assimilado
linguisticamente esse “outro”, alcunhando-o segundo o seu próprio arcabouço lexical e

304
RODRIGUES, 2005, p. 363-364.
305
Ibid., p. 364
306
O personagem Cíniras de Chipre, na Ilíada; Afrodite e sua suposta origem semítica; o personagem Cadmo de
Tiro, fundador de Tebas e introdutor do alfabeto aos gregos; Fénix, irmão de Cadmo, e o nome “Fenícia” (Síria,
Líbano, Israel, Jordânia); os Sólimos, na Ilíada; Andrômeda e a Etiópia/Fenícia; Semíramis e o Levante; Adônis
e a Fenícia. Essas são algumas das hipóteses apresentadas por Rodrigues, que podem evidenciar que Homero,
Eurípedes, Heródoto, Platão, por exemplo, teriam noção de que nem todos os heróis antigos, locais citados, objetos,
comportamentos, etc., são essencialmente helenos, mas adaptações, apesar de essa “suspeita” não poder ser
totalmente evidenciada nos textos gregos, mas quiçá atraente ao interessado. “[...] ciclos mitológicos trazem à
cultura grega imagens do mundo semítico através dos nomes dos seus heróis e da geografia que serve de suporte
cenográfico à acção das histórias. [...] Apenas uma análise demorada, exaustiva e individual permitirá,
eventualmente, identificar os extractos mais antigos dos mitos, permitindo-nos saber o que era já conhecido e
aceite como proveniente do que hoje conhecemos como mundo semítico, pelos Gregos dos períodos arcaico e
clássico. Alguns nomes são mencionados em autores antigos, mas por vezes a sua relação com o mundo semítico
é tardia” (Ibid., p. 351).
109

semântico, e, neste caso, a suspeita também já poderia ser especulada entre os próprios autores
antigos. Por sua vez, a imagem consciente aparece para o pesquisador no momento em que esse
“eu”, através de seu discurso, claramente separa-se desse “outro”, de forma proposital,
intencional. Assim, segundo Rodrigues, “parece-nos inegável que a literatura grega, enquanto
produto mais recente, na grande maioria dos casos, transmite imagens do mundo semítico”.307
O que seria uma suspeita no primeiro caso, uma possibilidade mais interessante no segundo,
neste terceiro, o próprio “eu” mostra ao leitor, ouvinte ou espectador, que ele está descrevendo
esse “outro”. Tanto nas compilações da oralidade, de cantos ou leis, por exemplo, quanto da
leitura e escrita de contos, relatos e histórias, “surgem essencialmente” essas “referências e
alusões” à consciência do que é do “outro” – da mesma forma, aí também estaria o traço do não
dito e da assimilação.308
Dentro dessa relação de identidade e alteridade em textos antigos, principalmente
naqueles produzidos entre gregos e romanos, podemos nos remeter também à teoria do
historiador francês François Hartog, intitulada Retórica da Alteridade.309 Essa retórica da
alteridade complementa justamente a problemática levantada pela teoria da imagem consciente.
Esse recurso pode ser aplicado tanto em produções do tipo épica e epopeia, quanto de geografia
e história, contanto que a marca da etnografia esteja presente. A palavra etnografia é fruto de
um composto entre os radicais gregos de ἔθνος (éthnos: “grupo”, “esquadrão”, “rebanho”,
“enxame”, “povo”) e de γράφω (gráfo: “arranhar”, “registrar”, “escrever”, “inscrever”,
“pintar”, “desenhar”). A etnografia é um termo nosso, do século XIX, usado pela Antropologia

307
Ibid., p. 352. Por exemplo, para Nogueira (2017), no caso persa, em Ésquilo (século VI-V A.E.C.): “As
metáforas criadas por Ésquilo são formadas por imagens retiradas de vários contextos do mundo grego da
Antiguidade. A presença delas no texto faz com que esse mundo possa ser compreendido por qualquer um que se
proponha a interagir com os significados inerentes à obra do tragediógrafo. [...] A imagem não é, de modo algum,
sinônimo de metáfora. A imagem é a representação de uma ação ou quadro estagnado, cujo valor de síntese, pode
abarcar vários significados de acordo com o contexto a que sua possibilidade de expansão semântica se refere. Ela
se encontra associada ao sentido da visão, mas deste não depende para existir, uma vez que se pode formar apenas
inteligivelmente” (NOGUEIRA, Persas de Ésquilo, 2017, p. 39). Ricardo Nogueira é professor de Letras Clássicas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em grego antigo e discurso trágico grego, tradutor
da obra Persas de Ésquilo. A imagem, neste sentido, já reconhece a existência do outro, mesmo que este seja
modelado para ser apresentado à compreensão do heleno, seja espectador ou ouvinte.
308
A visita de Menelau à Fenícia, na Odisseia; Ulisses no Egito, na Odisseia; fenícios e Ulisses, na Odisseia; a
Babilônia, os persas, os egípcios, os assírios, os sírios, em Heródoto; os fenícios e a circuncisão, em Aristófanes,
As Aves; Marduk e Zeus; Ishtar e Afrodite; descrição de costumes não gregos para gregos; Sammuramat (século
IX-VIII A.E.C.) e Semíramis; babilônios e persas, em Xenofonte; persas, em Ésquilo. Essas foram algumas das
menções de Rodrigues. Momentos literários onde “as referências e alusões a esse mundo são conscientes e
intencionais e, por consequência, tentam exprimir uma ideia do ‘outro’” (RODRIGUES, op. cit., loc. cit.).
309
Hartog (1946-) é professor de História Antiga Clássica na École de Hautes Études en Sciences Sociales de
Paris.
110

para categorizar o trabalho com a descrição “das diversas etnias, de suas características
antropológicas, sociais, etc.; registro descritivo da cultura material de um determinado povo”.310
Na ocasião em que identificamos a alusão ao “outro” no texto, devemos distinguir esse
recurso retórico em dois tipos, ou caminhos: “diferença” e “inversão”. A retórica da diferença
consiste na separação clara entre o “eu” e o “outro”, cada um em suas formas e tipos, “é enunciar
que há dois termos, a e b, e que a não é b”. Contudo, se esse “outro” for morador do mesmo
território do “eu”, no sentido de domínio, de inserção de províncias, de império, essa retórica
da diferença sofre uma sutil inversão: “não há mais a e b, mas simplesmente a e o inverso de
a”. Nesse sentido, esse “outro” também será parte do “eu”, é dizer que Judeia é Roma, é parte
de Roma, mas “Roma” será mascarada no discurso sob um conceito generalizador de
“humanidade”, de “seres humanos”, de “mortais”, de “homens”. Diante disso, segundo Hartog,
“quando se trata dos costumes, a diferença transforma-se em inversão. Além disso, o enunciado
tem pretensões de universalidade: a inversão mede-se com relação ao resto do gênero humano”.
Em suma, esse “eu” distinguirá esse “outro” de si mesmo de duas formas: diferença e inversão
dessa diferença. Na diferença ela é clara ao leitor: as coisas que se referem ao “outro” são
diferentes da concepção do “eu”; na inversão a concepção do “eu” é substituída por
generalizações como “humanidade”, logo, as coisas do “outro” se distinguem do “resto da
humanidade”, isto é, do próprio entendimento do “eu”. Essa “técnica retórica” era, como mostra
Hartog, recorrente no mundo helênico e romano.311

3.4 Justiça e Bondade: uma lógica do imaginário entorno das coisas celestiais?

Neste capítulo II, ampliamos o estudo etimológico realizado no capítulo I, e retomamos


algumas problemáticas, especificando nosso interesse: pensamos “deus” da mesma forma que
na Antiguidade? Certamente que não. Mas é evidente que as nove definições encontradas no
Dicionário Houaiss foram inspiradas em etapas da relação do ser humano com o que
designamos de seres celestiais excelsos, entes primordiais da criação, forças da natureza, ou,
como dizemos em português, de “deuses”. Podemos supor, dentre as acepções de “deus” que
colocaríamos como condizentes para este estudo, a seguinte lógica e relação: a definição 1.
como ideal judaíta de Yḥwh; ideal egípcio de Sol, Rá; a definição 2. como ideal de seres e entes
primordiais genéricos indo-europeus e hamita-semitas; a definição 3. como ideal celeste entre

310
Dicionário Houaiss, s. u.
311
HARTOG, O espelho de Heródoto, 1999, p. 229-230.
111

os mesopotâmicos e helênicos; a definição 6. como ideal egípcio, mesopotâmico e helênico; as


definições 7. e 8. como ideais semânticos genéricos para ’ēl (israelitas), DINGIR (sumérios),
ilu (acadianos), ’il (ugaritas), nṯr (egípcios), sīus (hititas), devaḥ (sânscrito), dáwar (persas),
θεός (helenos), deus (latinos).
Da mesma forma, retomamos o excerto de Gândavo, de 1576, para relacioná-lo ao
comentário de 2009 do linguista Daniel Everett sobre a língua pirahã, falada no estado brasileiro
do Amazonas. Nesse caso, ficou evidente que há formas de vida que não precisam dos
monoteísmos e de sua linguagem religiosa para existirem de forma autossustentável, neste
planeta. Essa digressão temporal funcionou para atentarmos à problemática existente em
trabalhos de pesquisa que lidam com temas nossos, significantes ao nosso tempo, que não foram
vislumbrados por sociedades do passado. Segundo concluímos, após mencionarmos autores
como Whitmarsh, Febvre, Barros e Wirth apud Barros, de fato seria problemático e anacrônico
afirmar que antes do século XVIII-XIX houvesse indivíduos autoproclamados ateus, um
“ateísmo” já no nosso sentido de fé versus ciência, de crença versus descrença, de passado
segundo a religião versus passado segundo a ciência. Contudo, pela existência da palavra no
grego e no latim, mantida nos meios eruditos europeus, a condução do Ateísmo como tema para
a Antiguidade não soaria tão estranho. Muito mais do que nos preocuparmos com “identidade
ateia”, manteremos o nosso interesse em investigar paradigmas, protótipos ou arquétipos para
o trato dessa temática.
Sendo o nosso interesse o pano de fundo entorno de uma provável estrutura cognitiva
idealizada pelos helenos, para forjarem o termo ἄθεος em sua sociedade (seja de forma
inconsciente, semiconsciente ou consciente), trouxemos para este capítulo teorias que
possibilitassem a aproximação de povos mediterrânicos antigos e contemporâneos dos helenos,
povos de uma família linguística diferente, isto é, não indo-europeia, mas hamita-semita, povos
conhecidos do povo brasileiro, pois são figurinhas garantidas nos livros didáticos escolares,
povos que reconhecidamente foram tornados arquétipos sociopolíticos para muitas sociedades
procedentes (e não só no âmbito das crenças em seres superiores), povos esses os antigos
egípcios, os mesopotâmicos e os israelitas.
Para isso, elencamos alguns conceitos: oralidade e imagem, trabalhados por Zumthor,
Aumont, Damásio apud Becker e Flach, e Nogueira; mito, elaborados por Rocha, Salavisa apud
Alves, Eliade, Theissen apud Pontes, e Croatto apud Pontes; alteridade, por Theml e Hartog;
tomada de consciência, com Becker e Flach. Todavia, centramos nossas argumentações
segundo a teoria dos níveis ou camadas de imagem (inconsciente, semiconsciente e consciente)
para análise de textos mitológicos, segundo o historiador português Nuno Simões Rodrigues.
112

Vimos como a proposta dessa teoria casa com o viés da teoria da lógica sociopolítica da crença,
abordada principalmente no capítulo I. Dentre seus níveis, demos ênfase ao estrato
inconsciente, que conectamos ao aspecto cosmológico desses povos antigos. O principal
objetivo dessa teoria é estimular no pesquisador a percepção dos níveis de influência que uma
sociedade pode ou não evidenciar de uma outra, seja esta outra contemporânea, mas com uma
ordem sociopolítica mais antiga – neste caso, o autor trabalhou com os helenos e uma provável
e às vezes evidente marca semítica em suas produções orais e literárias.
A imagem inconsciente simboliza a aporia do pesquisador diante do conteúdo literário
de um povo – tomado como ponto I de comparação – que se assemelha aos conteúdos literários
de outros povos – tomado(s) como ponto de alteridade –, onde nada, nessa narrativa I, indique
que decorra de influências de outras narrativas, possuindo, portanto, a aparência de literatura
única e própria. Como a fonte não oferece por si mesma as dicas, as suposições e suspeitas
ficam por conta do pesquisador (sendo a inconsciência também sua). Fizemos uma aproximação
dessa leitura teórica com aquilo que trabalhamos no capítulo I, sobre as hipóteses protoindo-
europeias. Contudo, os exemplos máximos ficaram sob a comparação entre as cosmogonias
tradicionais egípcias (O surgimento de Rá), mesopotâmicas (Enūma Eliš), israelitas (Gênesis)
e helênicas (Teogonia de Hesíodo). Ao trabalhar com as cosmogonias, procuramos esclarecer
alguns nomes próprios de caráter sociorrituais afetivos e sentidos que destacamos como
essenciais para se entender um pouco mais do contexto e relevância desses, para cada sociedade.
Além disso, fomentamos alguns questionamentos que não necessariamente devem ser
“respondidos” neste capítulo – no geral, são provocações ao estudo. Dessa comparação,
evidenciamos a validade dessa teoria, pois, como esperado, todas as cosmogonias apresentadas
se portam como próprias, para cada um dos povos, mas a marca da semelhança inconsciente
está presente entre elas.
Contudo, surgiu, durante essa comparação, um fator que, para o senso comum, pode
soar inesperado: seria um comportamento “ateísta” (na Antiguidade) não só excluir os nomes
sociorrituais afetivos celestes da criação do mundo, mas também colocá-los como criaturas que
servem aos seres terrenos? Pois, essa foi uma das características da cosmogonia israelo-judaíta.
De forma semelhante, mas com um seguimento diferente, a Teogonia hesiódica mostrou que os
nomes sociorrituais dos seres primordiais, os titãs, foram descaracterizados, tornados nomes
comuns (com raras exceções), e substituídos, no geral, pelos nomes dos olimpianos – não
ficando, dessa forma, um vazio cultual, como constou na versão israelo-judaíta – e se algum
pesquisador pretender investigar a lógica da acusação de ateísmo aos judeus pelos gregos e
romanos, como expressou Josefo, tais informações devem ser recebidas com a devida atenção.
113

A imagem semiconsciente denota vestígios mais evidentes, pois já costumam ser


suspeitas que partem do próprio autor antigo. O pesquisador segue impossibilitado de afirmar
com certeza essa aproximação, essa releitura helênica de ambientes e personagens não
helênicos, neste caso, semíticos. Autores tardios, ulteriores ao século VIII e VII A.E.C., por
exemplo, como Heródoto e Platão, entre os séculos V e IV A.E.C., farão, por eles mesmos,
certo exercício de suspeitar, desconfiar dessa coligação literária grego-outros (egípcios,
assírios, babilônios, etc.). Já a imagem consciente evidencia, ao leitor ou ao ouvinte, que o
discurso não estaria se tratando do “eu”, ou do “outro-mascarado”, mas do “outro-revelado”,
mesmo que esse “outro-revelado” esteja expresso em termos conhecidos para o entendimento
do próprio “eu”. Considerar nṯr, ilu e ’eloḥiym como θεός dos egípcios, dos mesopotâmicos ou
dos israelitas – isto é, condensá-los em uma única expressão compreensiva aos helenos (θεός)
– já indica uma percepção evidente do “outro”, mas este será explicado em língua nativa, para
assim torná-lo inteligível. Aqui, o pesquisador sente-se mais confortável em suas suposições,
mas deve-se sempre atentar para o risco de interpretação anacrônica, ou descontextualizada.
Por exemplo, ao se traduzir o termo israelo-judaíta ’eloḥiym por “Deus”, remetemos
muito mais ao nosso tempo do que ao contexto israelita antigo, principalmente pré-exílico
(séculos X-VI A.E.C.). Dessa forma, para quem pretende compreender melhor a lógica da
acusação de ateísmo aos judeus pelos gregos e romanos (pós-século V A.E.C.), deve ter em
mente que qualquer coisa poderosa ou celestial de outros povos foi convertida em deus ou θεός,
nessas duas culturas.312 Nem todas as palavras são necessariamente correspondentes na
etimologia ou no sentido e devemos desconfiar academicamente daquilo que está cristalizado
em nossa sociedade. Se os judeus foram “injuriados” de ateístas, como mostrou Josefo, e, em
uma de suas literaturas está costumeiramente escrito: “Deus criou os céus e a terra.”313, logo, o
leitor do senso comum não perceberá a palavra original, mas sim aquela que ele considera
inteligível para si ou para seu credo, isto é, “Deus” – assim, simplificando sua compreensão
sobre a problemática da acusação de ateísmo aos judeus em: “não criam nos deuses pagãos da
maioria, por isso eram chamados por eles de ateus”.314 A nossa palavra cotidiana, “Deus”, traz
um sentido normatizado que ofusca o(s) sentido(s) antigo(s). Mas, se após este capítulo, o leitor

312
Deve levar-se em consideração também o grego δαίμων (daímōn) e o latino numen.
313
Gênesis 1: 1.
314
Para uma exploração clássica dessa questão cf. DRACHMANN, Atheism in Pagan Antiquity, 1922. Também
existe a lógica da moral e do comportamento dito “do outro”. Comportamento que é geralmente considerado
repudiável e desprovido de θεός, nṯr, ilu ou ’ēl, nomes que, em geral, evocam ideais de bondade e de justiça em
suas tradições, nomes pelos quais o “outro” será acusado de ser vazio. Problematizaremos essa lógica no capítulo
III.
114

compreender que ’eloḥiym fora um termo plural ou coletivo que, dentre os seus prováveis
sentidos antigos, como “potências”, “juízes”, criaram os céus e a terra, sendo tais nomes, céu e
terra, expressos por alcunhas sem nenhum valor sociorritual afetivo, será possível assim
perceber, que aí já residiria um indício de um provável paradigma “ateísta”, ou, pelo menos,
parcialmente ateísta315, já que não investigamos, particularmente, as possibilidades
sociossemânticas do termo entre os helenos. Todavia, nessa “primeira” lógica, onde estão os
nomes especiais dos celestiais, dos entes primordiais, dos reis antepassados, dos sábios antigos
ou da personificação das forças da natureza? São criaturas e não criadores? Onde estão seus
nomes rituais de culto que evocam afetividade entre os seres humanos?
No terceiro e último capítulo, vamos explorar possibilidades teóricas que nos ajudem a
embasar entendimentos que possam vir a contribuir com os estudos da História do Ateísmo no
âmbito egípcio antigo, mesopotâmico e israelo-judaíta, que, outrossim, sejam compreendidos
como pressupostos a tal problemática no mundo heleno. Nele, abordaremos questões filosóficas
que geralmente estão atreladas à ideia do divino em qualquer temporalidade, ou seja, o embate
entre o que seria o correto a ser feito e o que deveria ser evitado socialmente, tanto quanto na
individualidade. Essa é uma questão bastante explorada entre os teóricos do Ateísmo, filósofos
e teólogos. Mas aqui, buscaremos perceber como ela pode ser trazida aos povos antigos,
especificamente, mais uma vez, aos egípcios, mesopotâmicos e israelitas.316

315
Seria a ênfase numa perspectiva “teísta” característica, ou, “ateísta” no senso de ausência do protagonismo
celestial? Ambos os termos são nossos, são concepções que devem ser cuidadosamente conduzidas ao passado.
Apesar de que, neste trabalho, o “ateísmo” seja um tema para que problematizações sejam levantadas. Da mesma
forma, pensaríamos “teísmo” (1858, Dicionário Houaiss, s. u.) como um tema de investigação e não como um
pressuposto modo humano de compreensão de mundo, já na Antiguidade. Aqui provocamos o leitor, e assim
continuaremos, mas não acreditamos que seja possível afirmar que a cosmogonia israelo-judaíta seja “ateísta”,
nem “teísta”, mas sim fontes antigas utilizadas para aqui pensarmos a complexidade de tais questões numa época
passada, e questões nossas, que mexem com os nossos afetos contemporâneos.
316
Não se tratará de uma investigação exaustiva, com a exploração de diversos texto antigos, mas sim poucas e
pontuais, para exemplificarem as nossas pretensões.
115

4 CAPÍTULO III – POTENCIALIDADES DO ATEÍSMO COMO TEMA ANTES DO


REFERENCIAL GREGO

Vamos começar a nossa introdução ao que chamaremos de contexto para elaboração de


um conceito.317 A pressuposta possibilidade da existência de um indivíduo que principalmente
duvida da administração coordenada segundo a crença em seres poderosos e/ou celestiais,
certamente seria formulada no mesmo cenário que pode ser evidenciado através do conteúdo
dos discursos dos textos, das inscrições e dos murais antigos, dos mundos e ambientes que, na
tradição, foram fundados e organizados por ordem de potências sobrenaturais, por forças
celestes. Como vimos no capítulo I, acerca de uma das lógicas da crença, e no capítulo II, sobre
outros aspectos teóricos entorno dessa questão dos seres celestiais ou entes e forças da natureza,
os poderes desses habitantes do céu e da terra seriam evidenciados por seus nomes – isso quando
não estavam diretamente relacionados com fenômenos e catástrofes naturais –, nomes que os
seres humanos certamente forjaram para atiçar os afetos, isto é, nomes para serem especiais,
combinados com a natureza, seja ela animada ou inanimada, que chamam a atenção, mexem
com os ânimos, acarretam alternâncias nas palpitações cardíacas, instigam relacionamentos,
instigam ao convívio, ao consenso, ao rito, da mesma forma que convidam à inconsistência, ao
atrito, ao conflito, ao debate, nomes que fomentam o contexto do amor, do sofrimento, da
intriga, da dissensão, tanto quanto da promoção da inventividade humana. Cientes da
possibilidade de tais mecanismos serem verossímeis nessa época antiga, vamos investigar de
forma concisa a nuance, o possível detalhe que, para o indivíduo, foi basilar para comportar-se
de forma supostamente destoante com aquilo que geralmente lemos nos textos antigos sobre o
imaginário da onipotência e da onipresença desses celestiais, desses poderosos cultuados,
“aparentemente” temidos e respeitados nas leis e nas celebrações públicas.

4.1 Problemáticas entorno de pessimismo e ceticismo

Conferimos que uma das teorias que lida com essa preocupação, antes de trabalharmos
com a proposição do Ateísmo, seria a teoria do pessimismo antigo. O pessimismo também foi
um termo fundamentado no século XIX, baseado no adjetivo latino pessimus, que qualifica algo

317
“Os conceitos são, portanto, vocábulos nos quais se concentra uma multiplicidade de significados. [...] Uma
palavra contém possibilidades de significado, um conceito reúne em si diferentes totalidades de sentido. Um
conceito pode ser claro, mas deve ser polissêmico. [...] O conceito reúne em si a diversidade da experiência
histórica assim como a soma das características objetivas teóricas e práticas em uma única circunstância, a qual só
pode ser dada como tal e realmente experimentada por meio desse mesmo conceito.” (KOSELLECK, 2006, p.
109).
116

ou alguém como “muito mau”.318 Contudo, essa leitura do pessimismo possui lógica própria ao
ser transportada para a Antiguidade. Diferente das teorias que apresentamos, esse pessimismo
geralmente é compreendido como um afeto que simboliza uma sensação abstrata, um motor
“invisível”, porém, sentido pelo indivíduo, que faz transparecer socialmente a sua condição
moral problemática. No trabalho de Friedrich Nietzsche (1844-1900)319, O Nascimento da
Tragédia, de 1886320, o filósofo questiona-se sobre esse motor pessimista ter sido ou não um
dos motivos para o nascimento do teatro trágico no século V A.E.C., em Atenas. Alguns dos
seus questionamentos são pertinentes ao nosso caso:

Uma questão fundamental é a relação dos gregos com a dor, seu grau de
sensibilidade – esta relação permaneceu igual ou se inverteu? –, aquela
questão de se realmente o seu cada vez mais forte anseio de beleza, de festas,
de divertimentos, de novos cultos brotou da carência, da privação, da
melancolia, da dor. Estabelecido que precisamente isso tenha sido verdade –
e Péricles (ou Tucídides) no-lo dá a entender na grande oração fúnebre – de
onde haveria de provir o anseio contraposto a este, que se apresentou ainda
antes no tempo, o anseio do feio, a boa e severa vontade dos antigos helenos
para o pessimismo, para o mito trágico, para a imagem de tudo quanto há de
terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico no fundo da existência –
de onde deveria então originar-se a tragédia?321

A complexidade do assunto foi evidenciada pelo filósofo alemão no momento em que


considerou problemático descobrir os motivos do estar em “pessimismo”. O que faz com que o
indivíduo ou toda uma sociedade se sinta pessimista? Em nosso caso, seria o ateísta alguém que
se encontrou pessimista em algum momento de sua existência? Quais as consequências da ação
de um “pessimista”? “Foi Epicuro um otimista – precisamente enquanto sofredor?”322 Festas,
busca por prazeres, rebeldia, seriam estimulados por ambientes de dor, melancolia ou privação?
Esse tema filosófico é de complexa abordagem. Não pretendemos enveredar por esse caminho.
No entanto, já foi possível captar algumas caracterizações interessantes para darmos sequência
ao estudo. Essas caracterizações implicam a dúvida sobre algo, um algo que geralmente se
apresentou sob a face de uma difícil solução. Nesse sentido, a imposta “certeza” estaria sendo
ofuscada pela sensação de inconsistência, uma sensação vivenciada pelo próprio indivíduo. Na

318
REZENDE; BIANCHET, 2014, s. u.
319
Filósofo alemão, estudioso da cultura clássica, crítico da cultura, da religião, da música, filólogo.
320
Essa foi uma reedição crítica de sua primeira versão publicada em 1872.
321
NIETZSCHE, 1996, p. 17, grifos do autor.
322
Ibid., p. 18, grifo do autor. O epicurismo e também o estoicismo são campos filosóficos férteis para a pesquisa
sobre o Ateísmo como tema na Grécia Antiga.
117

lógica de nossa investigação, essa certeza se fundamentaria personificada no argumento dos


gerentes da ordem, da moral, da ética, da lei, do costume, da tradição, dos limites, dos locais
admitidos, etc., ou seja, no valor sociopolítico dos nomes de inserção sociorrituais dos
celestiais, forças da natureza e das potências criadoras. Estaria esse indivíduo incomodado
pondo essa certeza em questão e imergido numa sensação pessimista, duvidando da ordem, isto
é, duvidando da credibilidade da tradição entorno de tais nomes sociorrituais afetivos? Isso seria
fruto de uma angústia? Angústia por não saber o que fazer ou não saber o que colocar no lugar
desses nomes especiais excelsos para fundamentar a ordem, por exemplo? “Em face desse
pessimismo prático é Sócrates o protótipo do otimista teórico que, na já assinalada fé na
escrutabilidade da natureza das coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma
medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo”.323
Na ótica do filósofo alemão, o personagem ateniense Sócrates (século V A.E.C.) torna-
se um bom exemplo para alguém que pretende a ordem, não segundo o temor fundamentado
em uma argumentada “justiça celeste”, mas sim por meio da ação de escrutar de cada indivíduo,
para aprender, para internalizar a justiça, identificando o erro como um mal em si. Seria essa
uma presunção quiçá “ateísta” diante da ordem tradicional de sua época? Seria Sócrates um
“ateu”? Um “subversor” da lógica comum aos demais? O caso é que a dúvida, o pessimismo,
são elementos da vida humana em sociedade e a partir dessa consideração, podemos identificar
momentos de angústia do ser humano na Antiguidade. Vejamos abaixo, um interessante
exemplo que acreditamos servir para evidenciar essa relação de angústia e ação péssima no
elemento “trágico” entre os helenos.
Oriundo do século VI-V A.E.C., o ático de Elêusis chamado Ésquilo foi considerado o
mais antigo tragediógrafo ateniense. Sua época fora de conflitos contra a investida persa na
região grega, logo, estavam sociopoliticamente aflorados os sentimentos de pertencimento à
terra contra o pretenso dominador de língua estrangeira.324 Além disso, é provável que a própria
motivação da encenação da peça trágica, nesse período325, seja fruto desse contexto de tensão
entre os cidadãos em clima de guerra – morte de parentes, de amigos e inimigos, sentimentos
abalados, incertezas diante do governo, discursos evocando a coragem para seguir após a perda
ou a derrota, a vontade de querer vencer a batalha e não perder o apreço pela liberdade, pela
independência da cidade. A peça que traremos como exemplo será Agamêmnon, primeira da

323
Ibid., p. 94.
324
Daí temos a luta pela permanência das cidades jônias da Ásia Menor, a batalha de Maratona e as Guerras
Médicas no geral (até por volta de meados do século V A.E.C.).
325
Primeira metade do século V A.E.C.
118

trilogia Oréstia ou Oresteia que ainda conta com Coéforas e Eumênides. Em suma, para o
tradutor e helenista brasileiro José Torrano (2004)326,

Nesta trilogia de Ésquilo Orestéia, entrelaçam-se, confundem-se e


distinguem-se quatro pontos de vista e quatro graus da verdade: o ponto de
vista e o grau de verdade próprios dos Deuses, o dos Daimones, o dos Heróis
e o dos homens cidadãos da cidade-estado. Nessa multiplicidade de pontos de
vista e de graus de verdade, instaura-se a dialética trágica, pré-filosófica, que
investiga o sentido humano, o sentido heroico e o sentido numinoso
(pertinente ao Daímon, ‘Nume’) da justiça divina dispensada por Zeus e
partilhada pelos homens na pólis.327

Resumindo, esse espetáculo trouxe aos espectadores o retorno ao lar de Agamêmnon,


rei guerreiro da famosa Guerra de Troia (Ilíada), dez anos após o seu final. Ela lida com o
destino trágico de sua família. Para este trabalho, destacaremos o que talvez tenha sido o
estopim maior que colocou sua linhagem dentro desse destino funesto, anos antes. Segue a
seleção, nos versos 205-238:

Antístrofe 4ª
(205) Então o maior dos reis falou e assim disse: ‘Grave destino leva consigo
o não respeitar, mas grave também se dou morte a minha filha – a alegria de
minha casa –
(210) e mancho minhas mãos de pai com o fluxo de sangue ao degolar a
donzela junto ao altar. Que alternativa está livre de males? Como irei
abandonar a esquadra e trair com isto a meus aliados? Sim, lícito [θέμις] é
desejar [ἐπιθυμεῖν]
(215) com intensa veemência [ὀργᾷ περιόργως] o sacrifício [θυσίας] de sangue
[αἵματος] de uma donzela para conseguir aquietar os ventos. Que seja para
bem!’
Estrofe 5ª
E quando já se houvera unido ao jugo da inevitável necessidade [ἀνάγκας],
exalou de sua mente [τροπαίαν] um vento [πνέων] distinto, ímpio [δυσσεβῆ],
(220) impuro [ἄναγνον], sacrílego [ἀνίερον], com o que mudou de sentimentos
e com ousadia se decidiu [θρασύνει] tudo, que aos mortais inflama a funesta
demência [παρακοπὰ], conselheira de torpes ações, causa primeira do
sofrimento [τάλαινα]. Teve, por fim, a ousadia de ser
(225) o imolador de sua filha, para ajudar em uma guerra vingadora de um
rapto de mulher e em benefício da esquadra!
Antístrofe 5ª
Nem súplicas nem gritos de ‘pai’, nem sua idade virginal
(230) por nada levaram em conta os comandantes, ávidos de batalha.

326
José Antonio Alves [Jaa] Torrano (1946-) é professor titular de língua e literatura grega da USP, especialista
em tradução de textos gregos antigos.
327
TORRANO, 2004, p. 13, grifos do autor. Comentário coletado de sua tradução da obra Agamêmnon para o
português.
119

Depois da prece, como ela estava contraída em suas vestes e agarrando-se ao


solo com toda vida, o pai ordenou aos que eram seus ajudantes no sacrifício
que levantassem e colocassem ela sobre o altar, como se fosse
(235) uma cabritinha, e que com uma mordaça sobre sua bela boca
impedissem que proferisse uma maldição contra sua família,
Estrofe 6ª
utilizando a violência e a brutalidade [βίᾳ] de um travão que não lhe deixara
falar.328

Antes de conjecturarmos mais questões para o trabalho do Ateísmo como tema na


Antiguidade, vamos conferir com mais precisão os possíveis significados para as palavras que
destacamos em grego nos versos citados. Como já vimos anteriormente, θέμις é um termo que
costumava ser associado à “justeza”, à “ordenança”, mas não qualquer uma, não era
compreendida essencialmente como “humana”, “mortal”, mas sim de ordem celestial, “não
perecível”. Designava a lei, o costume, aquilo que é lícito, permitido, era o justo, era aquilo que
deveria ser decretado oficialmente, era a melhor ação, a melhor sentença proferida, era o que
deveria existir por direito, de concórdia celestial e por fim humana. Ésquilo, como autor da
peça, quis que o rei Agamêmnon considerasse “θέμις” o seu desejo: sacrificar um ser humano,
sendo este humano a sua própria filha. Mas aí temos outra questão alertada por Nietzsche
(1996): o problema peculiar das peças trágicas. Agamêmnon foi colocado como um herói
trágico, um personagem excepcional, cuja vida e origem seria bem distante de nós, os
espectadores da peça. Era o rei de Argos na região do Peloponeso, filho de Atreu, filho de
Pélops, filho de Tântalo, filho de Zeus. Era um alto aristocrata, um guerreiro cujo nome
inspirava cantadores, poetas e rapsodos.

328
ÉSQUILO, Agamêmnon, versos 205-238, acréscimos nossos. “Antistrofa 4ª. (205) Entonces el mayor de los
reyes hablo y dijo así: ‘Grave destino lleva consigo el no obedecer, pero grave también si doy muerte a mi hija –
la alegría de mi casa – (210) y mancho mis manos de padre con el chorro de sangre al degollar a la doncella
junto al altar. ¿Qué alternativa está libre de males? ¿Cómo voy yo a abandonar la escuadra y a traicionar con
ello a mis aliados? Sí, licito es desear (215) con intensa vehemencia el sacrificio de la sangre de una doncella
para conseguir aquietar los vientos. ¡Que sea para bien!’. Estrofa 5ª. Y cuando ya se hubo uncido al yugo de la
ineluctable necesidad, exhaló de su mente un viento distinto, impío, (220) impuro, sacrílego, con el que mudó de
sentimientos y con osadía se decidió a todo, que a los mortales los enardece la funesta demencia, consejera de
torpes acciones, causa primera del sufrimiento. ¡Tuvo, en fin, la osadía de ser (225) el inmolador de su hija, para
ayudar a una guerra vengadora de un rapto de mujer y en beneficio de la escuadra! Antistrofa 5ª. Ni súplicas ni
gritos de ‘padre’, ni su edad virginal (230) para nada tuvieron en cuenta los jefes, ávidos de combatir. Tras la
plegaria, como ella estaba arrebujada en sus vestidos y agarrándose al suelo con toda su alma, ordenó el padre
a los que eran sus ayudantes en el sacrificio que la levantaran y la pusieran sobre el altar, como si fuera (235)
una cabritilla, y que con una mordaza sobre su bella boca impidieran que profiriese una maldición contra su
familia, Estrofa 6ª. utilizando la violencia y la brutalidad de un freno que no le dejara hablar” (Tradução da
Gredos, 1993, p. 381-382, por Bernardo Morales). Texto grego da Loeb, 1926, p. 20-22. (Cf. Anexo D)
120

Certa “teoria” do trágico foi comentada e discutida por Aristóteles (século IV A.E.C.)
em sua Poética.329 Dela, destacamos a problemática da “ἁμαρτία”, do verbo ἁμαρτάνω: “errar”,
“não alcançar”, “equivocar-se”, “desenganar-se”, “deixar de fazer”, “descuidar-se”. No verso
213 da peça temos: “[...] ξυμμαχίας ἁμαρτών [...]”, isto é, na ideia de “vacilar” ou “descuidar-
se” de seus “aliados de guerra”. Para o filósofo estagirita, região da antiga Macedônia e da atual
província de Calcídica, capital Polígiros, na Grécia, esse “erro” não seria inerente ao homem
comum, ao espectador, mas uma particularidade dos heróis das tragédias. Era o momento em
que surgia para tal herói a necessidade de escolher, de tomar uma decisão que geralmente estava
atrelada a algum contexto que envolvia tanto homens quanto celestiais. Para o filólogo helenista
austríaco Albin Lesky (1896-1981), esse erro, ou essa ἁμαρτία ocorre

[...] no sentido da incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto e


obter uma orientação segura. Assim, o homem que não naufraga em uma falha
moral vai a pique porque, dentro dos limites de sua natureza humana, não está
à altura de determinadas tarefas e situações.330

Agamêmnon é uma personagem humana, mas de linhagem excelente, é filho de Atreu


que era bisneto de Zeus. Segundo Lesky, trata-se de um homem de caráter “médio”, que está
pouco mais elevado do que os indivíduos que apreciam a peça, ou seja, nós. O herói trágico só
parece, mas não é semelhante ao espectador, porém estaria próximo o suficiente para tocar o
ouvinte, fazer com que este sinta algo, seja terror ou piedade e com isso expurgue de si mesmo
tais afetos – a chamada teoria da “catarse”.331 A problemática do erro trágico segue além da
própria vítima do destino: esse herói. Sua ação, que considerava a mais adequada, contamina
não só a si mesmo, mas todos os que rodeiam sua vida e pode tomar proporções a nível
catastrófico, afetando toda uma região ou um reino, incluindo seus súditos. Agamêmnon
poderia não ser necessariamente julgado como mau, pois havia também a lógica do destino, de
ter sido uma das vítimas dessa fatalidade, um destino encadeado pelos celestiais aos heróis
trágicos.332 Os elementos verossimilhantes de sua jornada, isto é, que não são tão estranhos ao
espectador, são os principais fatores que cativam o ouvinte à catarse.333

329
Em nosso caso interessaram os capítulos 6 e 13. Conferimos na tradução comentada de Fernando Gazoni, de
2006 (tese de doutoramento).
330
LESKY, A tragédia grega, 1996, p. 29-30.
331
Ibid., p. 43.
332
Aqui geralmente temos a relação com o temo δαίμων. (Cf. Apêndice B).
333
Ibid., p. 44.
121

Limitado intelectualmente, o herói engana-se em sua decisão: é ofuscado por raiva, por
arrogância, por prepotência, ou até pelo seu destino que geralmente desconhece. Para Vernant
e Vidal-Naquet (1999)334, esse erro seria, portanto,

[...] uma doença mental, o criminoso é a presa de um delírio, é um homem que


perdeu o senso, um demens, hamartínoos. Essa loucura do erro ou, para dar-
lhe seus nomes gregos, essa átē, essa Erinýs assedia o indivíduo a partir de
seu interior; penetra-o como uma força religiosa maléfica. Mas, mesmo
identificando-se de certo modo com ele, ela é ao mesmo tempo exterior a ele
e o ultrapassa. Contagiosa, a polução do crime, indo além dos indivíduos,
prende-se à sua linhagem, ao círculo de seus parentes; pode atingir toda uma
cidade, pode poluir todo um território. Uma mesma potência de desgraça, no
criminoso e fora dele, encarna o crime, seus mais longínquos princípios, suas
últimas consequências, o castigo que ressurge ao longo de gerações
sucessivas.335

Tal erro, essa ἄτη ou “cegueira espiritual”, “loucura”, “crime”, “ruina”, “fatalidade”
destina-se ao personagem. O motivo é externo, agiu mau diante de algo que não conhecia, não
sabia a solução real. Afinal, seria Agamêmnon culpado pelo sacrifício de sua filha chamada
Ifigênia? Uma questão complexa em se tratando de teoria do trágico, mas é provável que
independente da ação do herói ter sido destinada por forças maiores, o seu ato em si seria
repudiado socialmente, da mesma forma que avaliado pelos celestes. Mas, se se acreditaria que
o herói estaria “possuído” ou “tomado”, como poderia ser culpado dos atos?

[...] o herói esquiliano, mesmo privado de escolha em sua decisão não é nem
um pouco passivo. A dependência em relação ao divino não submete o homem
de uma maneira mecânica como um efeito à sua causa. [...] Decisão sem
escolha, responsabilidade independente das intenções, tais seriam [...], as
formas da vontade entre os gregos. Todo o problema é saber o que os próprios
gregos entendiam por escolha e ausência de escolha, por responsabilidade com
ou sem intensão. Tanto quanto a noção de vontade, nossas noções de escolha
e de livre escolha, de responsabilidade e de intenção não são diretamente
aplicáveis à mentalidade antiga onde elas se apresentam com valores e com
uma configuração que, talvez, desconcertem um espírito moderno.336

É provável que essa complexidade entorno das obras trágicas fossem indícios de
problemáticas inerentes à própria sociedade ateniense em contexto de guerra, em parte do
século V A.E.C. Retomando as palavras gregas selecionadas da peça, vamos destacar certa

334
Pierre E. Vidal-Naquet (1930-2006) foi renomado historiador judeu-francês, especialista em literatura grega
antiga e crítico de conflitos armados contemporâneos.
335
VERNANT; VIDAL-NAQUET, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1999, p. 36.
336
Ibid., p. 29-30.
122

lógica vocabular que supomos resumir o imo de uma personagem que estaria prestes a cometer
o erro trágico e praticar uma ação moralmente condenável. Primeiro, o impulso da ação, aquilo
que motiva a força de vontade, que incomoda e instiga o ser ao ato: ἐπιθυμέω (“desejar”,
“ansiar”, “ter apetite”), ὀργάω (“desejar ardentemente”, “estar excitado”, ou “ser fértil”,
“amadurecer”), ὀργή (“agitação”, “excitação interior”, “inclinação natural”, “situação de
espírito”, “disposição moral”, “caráter”, “ira”, “paixão”), περιοργής (“muito irado”, “irritado”);
logo em seguida, uma estranha sensação vem ao corpo para junta-se aos seus sentimentos
anteriores e assim, sair de si ao mundo: τροπαία (“um vento alternado”, “uma mudança de
espírito na mente”), τροπόομαι (“apartar de si”), πνέω (“soprar”, “respirar”, “inspirar”,
“exalar”); e então, o indivíduo demonstra o teor de suas intensões: δυσσεβής (“ímpio”,
“infame”, “cruel”, “desalmado”, “malvado”), δυσσεβέω (“ser ímpio”, “agir com impiedade”,
“fugir do costume”, “ser cruel”), δυσσέβεια (“impiedade”, “fama ímpia”, “que tem o
comportamento criticado”), ἄναγνος (“impuro”, “indecente”, “moralmente corrompido”),
ἀνίερος (“não consagrado”, “ímpio”, “profano”, “sacrílego”, “criminoso”, “ladrão”); tendo
aceitado o teor de suas ações, passa a comportar-se distintamente: θρασύνω (“tornar-se
valente”, “animar-se”, “tomar confiança”, “agir atrevidamente”, “ser audaz”, “falar” ou “agir
de forma insolente”), θρασύτης (“audácia”, “ousadia”, “atrevimento”, “imprudência”),
παρακοπή (“paixão cega”, “paixão tola”), παράκοπος (“frenético”, “nervoso”, “irascível”,
“louco”, “demente”), τάλας, τάλαινα, τάλαν (“sofrido”, “desgraçado”, “infortunado”, “penoso”,
“triste”, “insolente”, “infeliz”), βία (“força”, “energia corporal”, “vigor moral”, “violência”),
βιάζω (“usar de violência”, “violentar”, “obrigar”, “prejudicar”, “maltratar”, “usar força”,
“rechaçar fortemente”), βιαστής (“que usa força”, “violência”, “que rapta”), βίαιος (“violento”,
“enérgico”, “forçado”, “obrigado”).337
Com a apresentação dessas palavras e seus possíveis sentidos, podemos supor aqui a
possibilidade de vislumbrar um campo conceitual entorno da lógica de uma atitude que foi
moralmente condenada na peça.338 Podem, igualmente, demonstrar uma situação na qual um
indivíduo acharia que as suas escolhas e ações foram da vontade celeste, divina, bem-

337
Palavras coletadas de Pabón (1967) e Liddell e Scott (A Greek-English Lexicon, 1889). Além das palavras
diretamente relacionadas com o texto, acrescentamos algumas outras variações relacionadas. Muitas línguas
modernas, como a portuguesa, não são capazes de captar o melhor sentido para os termos antigos, não só para a
língua grega antiga, mas, como já vimos, para os termos egípcios, sumerianos, acadianos e israelitas, por exemplo.
Por isso, nota-se a variedade de possibilidades baseadas na atividade tradutora ao longo do tempo, para cada texto
antigo.
338
“Cada palavra, mesmo cada substantivo, comprova as suas possibilidades lingüísticas para além do fenômeno
particular que ela caracteriza e/ou denomina em certo momento.” (KOSELLECK, 2006, p. 115).
123

intencionadas.339 Partindo da evidência de que existem seres celestiais na fantasia trágica,


coloca-se em questão a vontade do homem versus a vontade celestial, ou seja, no momento em
que um mero mortal, apesar de sua linhagem excelente, age acreditando estar em conciliação
com uma hipotética vontade sobrenatural necessária. Se o tragediógrafo coloca quase que em
oculto essa suposta vontade divina ao herói, por assim dizer, imagine o espectador, que em sua
vida dificilmente poderia tornar verossímil essa presença personificada dos seres celestes – a
não ser pelo trabalho da própria arte, seja ela literária, cantada, versada, esculpida, etc.340 Dessa
forma, a coisa que realmente nos interessa destacar é a revelação ao espectador, onde as ações
de Agamêmnon foram frutos de um desejo inerente à sua vontade, uma ação motivada e
excitada pela ira, que então, ao respirar fundo, comete o ato condenável, uma ação de nível
péssimo, isto é, certamente considerada sem a presença ou sem a ajuda de θεός.341

O sacrifício de Ifigénia é, na visão do Coro (v. 223), a origem dos males


futuros. [...] A ruína de Agamémnon, pensa o Coro, começa na Áulide. Ele
ainda poderia ter corrigido o erro da expedição, desistindo, mas não quis
recuar. Zeus ofereceu-lhe a salvação e a perdição, a um tempo, e Agamémnon
escolheu. Assim, a vontade dos deuses realiza-se muitas vezes pelas vias mais
obscuras. [...] A referência à ἀνάγκη, feita pelo Coro no v. 218 a propósito do
sacrifício de Ifigénia, não exclui em Agamémnon a consciência duma
alternativa real. A ‘necessidade’ aqui é uma face da acção, a outra é o seu
carácter voluntário. [...] Verdadeiramente o destino apenas impõe uma
decisão, não impõe uma solução. [...] decisão que Agamémnon toma com
inteira liberdade. Necessidade supra-natural e liberdade humana de decidir
identificam-se misteriosamente na vontade da personagem que se sente e é
reconhecida como responsável no acto da decisão.342

339
Uma observação semelhante foi comentada por Whitmarsh (2015, p. 229-230). Por meio de seu trabalho,
pensamos nesse referido exemplo trágico.
340
Lembremos que nossa teoria das crenças antigas tem fundamentação “ateísta” (em nossos sentidos
contemporâneos), por isso, o tom de ausência divina, discrepante com a fé (Deus efetivo na história) que
geralmente os dogmas das religiões atuais defendem (das monoteístas, em particular). No mais, haverá também o
caso dos “reis” divinos ou divinizados. Todavia, é bem provável que, sendo eles personalidades históricas
humanas, é crível que não seriam capazes de realizar nada além daquilo que a sua anatomia conhecida permita.
Muitas dessas associações foram estabelecidas e tornadas verossímeis no argumento fabuloso e na analogia entre
o ser humano e a natureza que o circunda.
341
“Somente o piedoso compreende a natureza essencialmente benevolente da divindade” (WHITMARSH, op.
cit., p. 230). “Only the pious understand the essentially benevolent nature of divinity”. Parece que não foi o caso
da personagem heroica Agamêmnon, como abstraímos de Ésquilo.
342
PULQUÉRIO, “O problema do Sacrifício de Ifigénia no ‘Agamémnon’ de Ésquilo”, 1970, p. 376-377. Manuel
Pulquério (1928-2011) foi professor da Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em
Viseu, Portugal e especialista em língua, literatura, métrica e tragédia gregas. Áulide foi uma antiga cidade na
região grega da Beócia, de onde partiram os navios para Troia (Anatólia), segundo consta na Ilíada (canto II,
versos 303-304).
124

A proximidade dessa problemática trágica com uma provável relação entre ação
péssima” e “ateísmo”, nesse contexto que temos trabalhado neste trabalho, parece-nos
interessante. Ésquilo, ao nosso ver, por meio dos vocábulos utilizados, caracterizou todo um
provável processo de sensações que culminariam na ação de tipo moralmente condenável do
herói. Mas, de forma alguma, existem provas para que o próprio tragediógrafo possa ser
alcunhado de ateísta – nem por nós e nem à sua época.343 Esse “vocabulário do mal”
caracterizaria, por enquanto, aquilo que estaria se mostrando aos gregos como a manifestação
artística de um indivíduo heroico que cairá no “erro trágico”. Todavia, ficam diversos
questionamentos: seria socialmente aceitável considerar que um indivíduo pudesse agir sob
possessão? Não seria “ele mesmo” agindo? Acusando-o de ser responsável por suas próprias
decisões e ações, tal sociedade não estaria levando em conta a ausência celestial no âmbito das
escolhas humanas? Havendo a noção de salvação e condenação, como saber qual das escolhas
seria a mais proveitosa? Seria a pior escolha justamente aquela moralmente condenada pela sua
sociedade? Eis uma suposta dica do sobrenatural? Seria plausível, assim, cogitar a existência
de contradições entre o fantasioso e o verossímil, nessas sociedades antigas, e que seria
admissível identificá-las previamente nos trabalhos de artistas e pensadores?
Baseado nessa leitura teórica-filosófica contemplaremos o pessimismo do indivíduo
expresso em textos antigos. Seguindo a lógica das cosmogonias anteriormente apresentadas,
vamos trabalhar com excertos egípcios e semitas, segundo a indicação de nossas referências.
Por meio deles, traremos alguns casos que utilizaremos como exemplos para o desenvolvimento
de nossa problemática em questão. Com isso, pretendemos colocar em aproximação esse
pressuposto estado “moralmente condenável”, com o que foi verificado no aspecto etimológico
de ἄθεος, no capítulo I. Um dos principais problemas conceituais de “ateu”, perpassa pela ideia
de que egípcios, mesopotâmicos e israelitas não tenham cunhado uma palavra para categorizar
socialmente uma “ausência de seres divinos” – mas sim a sua presença em abundância, como
vimos.344 Ora “celestiais”, ora “potências”, ora ambas as coisas, seus nomes sociorrituais
estavam intrínsecos ao cotidiano desses povos afro-asiáticos – astros, fauna e flora, por
exemplo, além do respeito legal ao ancestral e aos reis. Contudo, nosso foco permanecerá no
elemento do pessimismo ou da dúvida, além de situações de inversão de discurso, porventura

343
Sobre a questão ateísta e as tragédias, existem alguns estudos interessantes que podem ser conferidos, como o
realizado pela professora estadunidense Mary Lefkowitz (1935-), especialista em Estudos Clássicos, sobre o caso
do tragediógrafo Eurípedes (século V A.E.C.), por exemplo. Cf. LEFKOWITZ, Mary. Euripides and the gods.
Oxford: University Press, 2016.
344
Assim, essa preocupação inicial com categorias de interesse filosófico e teológico, como a “moralidade”, o
“pessimismo”, o “certo”, o “errado”, nos ajudarão a trilhar a nossa lógica de investigação.
125

consideremos que o indivíduo não demonstre crédito à tradição sobre essas forças excelsas e
seus “legados” para humanidade.

4.1.1 Cético ou ateu?

Para o aprofundamento teórico da questão, podemos também recorrer ao pensamento


cético como uma abordagem de caráter geral – além da problemática filosófica do pessimismo,
da angústia e da dúvida. Semelhantemente a ateísmo e a pessimismo, ceticismo acompanha o
desenvolvimento mental científico acadêmico em centros europeus, desde, pelo menos, os
séculos XVI-XVIII. Os filósofos desse período são comumente considerados os pais do
ceticismo, nesse mundo acadêmico europeu. Dentre os nomes que mais aparecem envolvidos
com a discussão, mencionamos: Michel de Montaigne (1533-1592)345, René Descartes (1596-
1650)346, Blaise Pascal (1623-1662)347, Pierre-Daniel Huet (1630-1721)348, George Berkeley
(1685-1753)349, David Hume (1711-1776)350, Immanuel Kant (1724-1804)351 – não são
necessariamente ateus ou céticos no sentido que se evidenciará claramente no século XIX, mas
as suas obras trouxeram os fundamentos da questão cética e ateísta na Europa acadêmica, no
campo filosófico e teológico, principalmente.352
Por sua vez, “cético” deriva do verbo grego σκέπτομαι, σκοπέω (“olhar entorno”, “olhar
para trás”, “espiar”, “contemplar”, “considerar”, “inspecionar”). Daí subentende-se o
protoindo-europeu *spek- (“ver com nitidez”, “espiar”) e o termo Σκεπτικοί (“cogitabundos”,
“revisores”, “investigadores”), que refere a uma escola grega de pensamento do século III-II
A.E.C., cujo expoente maior foi Pirro de Élis ou Élida (século IV-III A.E.C.), pois seus escritos
fundamentaram a mentalidade da escola pirronista.353 Segundo André Verdan (1933-2000)354,

345
Francês, católico, humanista, filósofo e moralista.
346
Francês, católico, filósofo, matemático e físico.
347
Francês, católico jansenista, matemático, físico, filósofo e inventor.
348
Sacerdote católico francês da Companhia de Jesus, escritor, poeta, historiador e filósofo.
349
Britânico irlandês, sacerdote anglicano, metafísico, filósofo e epistemólogo.
350
Britânico escocês, agnóstico, economista, ensaísta, filósofo e historiador.
351
Alemão prussiano, luterano pietista, metafísico, filósofo, professor, precursor do idealismo alemão, do
imperativo categórico e do númeno.
352
VERDAN, O ceticismo filosófico, 1998, p. 79-122.
353
Para um estudo mais completo cf. BICCA, Ceticismo antigo e dialética, 2016.
354
Foi filósofo francês, latinista, helenista e professor.
126

O pirronismo não pode, em suma, ser definido como uma ‘doutrina’, já que
seus adeptos não professam nenhuma opinião, não admitem nenhum sistema.
Ele é, antes, uma atitude mental, uma disposição do espírito que consiste em
colocar em questão a possibilidade, para o homem, de alcançar uma certeza
qualquer. [...] O cético é, pois, um homem que se abstém de adotar e de
formular opiniões dogmáticas: diante de questões ‘obscuras’, as quais os
filósofos se esforçam em resolver, ele renuncia igualmente a toda afirmação e
a toda negação. Sua posição [...] não é, portanto, essencialmente negativa (o
ateísmo, por exemplo, é contrário ao espírito cético): ela é dubitativa (ou
aporética), ou seja, ela se situa a igual distância da afirmação e da negação.
Ao recusar decidir os problemas, num sentido ou no outro, o cético se reserva
à suspensão do juízo (εποχη). Para exprimir sua dúvida ele faz uso de fórmulas
tais como: ‘não defino nada’ (ουδεη οριξω), ‘não mais isto que aquilo’ (ουδεν
μαλλον), ‘tudo é inapreensível’, ‘não apreendo’, ‘não compreendo’, etc.355

Como mencionou Verdan, em seu trabalho Le scepticisme philosophique (O ceticismo


filosófico), de 1971, provavelmente esse cético antigo, oriundo desse contexto helênico,
apresentava-se como um indivíduo que se isentava de tomar posições claras sobre diversos
assuntos – não porque temia-os, mas porque investigava os vários lados de uma questão,
cogitando várias conclusões para uma única coisa – e assim evitando tomar algum partido
(talvez, por isso, deixando transparecer ao outro que poderia estar em dúvida). Vários conceitos
são especificados aos céticos, ou seja, como serem “céticos” na sociedade – desenvolver uma
mentalidade “cética”. Todavia, vale a distinção mencionada por Verdan, pois, segundo afirmou,
o ateísta antigo seria diferente do cético antigo. Logo, devemos ter o cuidado para não confundir
um potencial “ateu” com um potencial “cético”, ainda mais em investigações dentro desse
mundo não grego. Apesar de relevante, o aprofundamento da questão cética não será nosso foco
aqui. Assim, passaremos aos excertos egípcios que consideraremos como simbólicos às nossas
pretensões. Essas seleções estão na categoria de “populares”, isto é, são cópias antigas de
contos, lendas, cantos, orientações e opiniões de dentro do mundo do Egito Antigo. Vamos
primeiro destacar algumas passagens que colocam as potências (nṯrw, “netcheru”), celestiais ou
não, como imprescindíveis ao bom costume e à sorte do indivíduo que os respeita e neles crê.356

355
VERDAN, op. cit., p. 37-38, grifo e acréscimos do autor.
356
No mais, no Apêndice B deste trabalho, confira a nossa breve contextualização aos egípcios, mesopotâmicos e
israelitas, além de uma concisa introdução sobre algumas questões do mundo helênico, principalmente sobre a
democracia em Atenas, a importância do nome Zeus aos helenos, e da palavra “demônio”. Essa sumária
contextualização, que também conta com uma tabela cronológica, foi preparada para ser lida após o trabalho com
os três capítulos propostos.
127

4.2 Egito Antigo: ter e não ter a bênção em seu imo

Vejamos alguns exemplos coletados do texto Ensinamentos de Ptah-hotep, presente no


Papiro Prisse de Paris357, compilação completa do “Reino Médio” (séculos XXI-XVII
A.E.C.)358, mas provavelmente de tradição mais antiga, na tradução de Emanuel Araújo359:

Que para este teu humilde criado seja mandado fazer um bastão de velho,
(30) e então eu lhe direi as palavras outrora ouvidas,
os conselhos dos antepassados,
que os ouviram dos deuses.
Que assim seja para ti,
a fim de que a contenda seja banida do povo
e as Duas Margens possam servir-te!
A majestade deste deus ordenou:
‘Ensina-lhe [...] o que se disse no passado,
(para que) se torne um modelo aos filhos dos magistrados.
(40) Que o discernimento entre nele,
assim como o equilíbrio. Fala a ele,
pois ninguém nasce sábio’.360

O autor preferiu traduzir “nṯr” ( ) por “deus”, assim como em inglês se optaria por
“god”. Vimos em laudas passadas que esse vocábulo egípcio é especialmente semelhante ao
semita ’ēl, cuja ideia geral implica em uma “grande potência”, seja habitante do céu ou da terra.
Neste caso, o próprio tradutor indica que “deus” também era o faraó, isto é, o rei das Duas

357
De acordo com Araújo, em seu Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico, de 2000, o texto em
hieróglifo pode ser conferido em: CAMINOS, R. A. Literary fragments in the hieratic script. Oxford: Griffith
Institute, 1956; DÉVAUD, E. Les maximes de Ptahhotep d’après le Papyrus Prisse, les papyrus 10371, 10435 et
10509 du British Museum et la Tablette Carnavon. Friburgo: [s.ed.], 1916; FOSTER, J. L. Thought couplets and
clause sequences in a literary text: the Maxims of Ptah-hotep. Toronto: Society for the Study of Egyptian
Antiquities, 1977; ŽÁBA, Z. Les Maximes de Ptaḥḥotep. Praga: Académie Tchécoslovaque des Sciences, 1956.
358
“Egípcio médio, também denominado egípcio clássico, língua que predominou no restante do Primeiro Período
Intermediário, no Reino Médio e também parcialmente na 18ª dinastia, no início do Reino Novo. Convém observar,
todavia, que em muitos textos se continuou a usar o egípcio médio até o Período Tardio. Em sua fase ‘clássica’ foi
muito rico em narrativas, ensinamentos, hinos e textos funerários (são dessa época os Textos dos Sarcófagos)”
(ARAÚJO, 2000, p. 23).
359
Emanuel Oliveira de Araújo (1942-2000) foi historiador brasileiro, tradutor, editor e professor da Universidade
de Brasília (UnB). Utilizaremos as traduções e transliterações hieroglíficas conforme seu trabalho.
360
ARAÚJO, op. cit., p. 246, adaptação nossa segundo LICHTHEIM, 1973, p. 63. O texto é caracterizado por
apresentar ensinamentos através de 37 máximas. Ptah-hotep é um personagem, um vizir, um ministro que tem por
objetivo não só orientar seu filho, mas também os funcionários da casa do rei. Modos de comportamento em várias
situações caracterizam o texto, inclusive a preocupação com as instabilidades da vida e como ser um indivíduo no
mínimo virtuoso, que não prejudica a si e nem aos outros, diante dos imprevistos (ARAÚJO, op. cit., p. 244). “As
virtudes cardeais são autocontrole, moderação, afabilidade, generosidade, justiça e honestidade temperadas pela
discrição” (LICHTHEIM, op. cit., p. 62 apud ARAÚJO, op. cit., loc. cit.). Existem dois vizires sepultados em
Saqqarah, cujo nome é Ptah-hotep, e geralmente se atribui o texto a um deles – ou para Dinastia V ou XII
(ARAÚJO, loc. cit.). A especialista israelense em literatura egípcia antiga Miriam Lichtheim (1914-2004)
acreditou pertencer à Dinastia VI, século XXIV-XXII A.E.C. (LICHTHEIM, loc. cit.).
128

Terras, das Duas Margens361 – assim como no capítulo I conferimos que “faraó” significava um
“casarão”, o “grande palácio” onde habita o rei, o nṯr.362 Mas o que nos interessa de fato nesse
excerto é a tradição que vinha sendo mantida por especialistas da época, uma tradição
transmitida por grandes indivíduos do passado, não por meros mortais, mas por nṯrw e nṯrwt
(forma masculina e feminina, respectivamente), indivíduos, homens ou mulheres, além de seres
especiais (animados e inanimados), considerados excelentes e que construíram não só a
sociedade deles, mas também portavam o poder da ordem e da contenda. Era necessário um
magistrado363 conhecer364 essa antiguidade para discernir sobre o verdadeiro equilíbrio365 e
atingir a sabedoria. Mas, e se não se desse crédito, ou passasse a duvidar da verossimilidade
desses “poderosos” do passado e do presente deles? Vejamos outra passagem do mesmo texto:

Não trames contra as pessoas,


pois o deus pune na mesma medida.
Se um homem disser: ‘Viverei para isso’,
faltará o pão em sua boca.
Se um homem afirmar: ‘Serei rico’,
(é porque) diz: ‘tomarei para mim o que vir’.
(111) Se um homem disser: ‘Roubarei alguém’,
terminará sendo dado a um estrangeiro.
A trama [...] contra as pessoas não triunfa,
e sim a vontade do deus.
Vive então em meio à paz
e o que eles derem virá por si mesmo.366

Essa seria uma sabedoria de tipo ação e consequência que, por meio desse discurso, se
firmava como um legado desses antepassados “excelentes”, da mesma forma que essa
“excelência” era personificada no rei (sua esposa, corte e descendência) – mantendo presente,
passado e futuro conectados. Se essa potência julgadora é um celestial, como o sol,
consideramos que nada pode fazer de fato além de iluminar e aquecer, mas sendo essa potência
o rei do Egito, o mantenedor da ordem, aquele indivíduo que “trama contra as pessoas” terá um

361
ARAÚJO, op. cit., p. 246, nota 3.
362
Assim como “bastão de velho” seria uma metáfora para filho ou herdeiro do cargo (Ibid., loc. cit., nota 2).
363
“Seru”, indivíduos que agiam “como conselheiros do grande intendente no tribunal local, além de exercerem a
função de juízes” (Ibid., p. 229, nota 14).
364
No literal, “saber ouvir” (Ibid., p. 246, nota 5).
365
No literal “ser justo de coração” (Ibid., loc. cit., nota 6).
366
Ibid., p. 248, adaptação nossa segundo LICHTHEIM, op. cit., p. 64-65. “[...] o que eles derem virá [...]”, onde
“eles” refere aos poderosos, aos nṯrw e nṯrwt (ARAÚJO, op. cit., loc. cit., nota 8).
129

destino problemático, será legalmente punido e provavelmente terá seu nome amaldiçoado.367
Claro que não seria possível descobrir qual o sentimento de um egípcio perante seu rei, ou
mesmo como eles compreendiam (em cada época) o sentido de “nṯr” – podemos sim
especular.368 Temos pelo menos a noção de que era um nome que certamente mexia com os
afetos humanos. Acompanhemos a seguinte passagem (do mesmo texto): “Se lavrares e houver
aumento de cultivo no campo e o deus o fizer prosperar em tua mão, não te gabes diante de teu
vizinho: tem-se maior estima pelo homem discreto.”.369 De acordo com o excerto, na tradução
de Araújo, a ação do lavrador que cultiva pode ser ou não “amparada” por essas forças excelsas.
Mas, e se alguém cogitasse desnecessário o termo “deus” nessa sentença? Seria essa uma ação
“moralmente condenável” da parte de um egípcio? Seria possível pensar ser próspero sem esse
elemento “nṯr”, ou, seria de indivíduos discretos, sábios, obedientes, que não conspiram tramas,
que o rei (nṯr) precisaria para manter a ordem nas Duas Terras?

Se fores um homem de distinção


e tiveres um filho pela graça do deus,
(199) se ele for direito e cuidar bem de teus haveres,
faze por ele tudo de bom,
é o teu filho, teu ka o engendrou para ti,
não separes teu coração dele.
Mas um filho pode causar problemas,
e se ele transviar-se, desprezar teus conselhos,
(210) desobedecer tudo o que é dito
e de sua boca jorrarem palavras ruins,
pune-o pelo que diz,
ele nao é teu filho, não nasceu de ti,
[...] repele-o como alguém que eles odeiam, condenaram-no quando (ainda)
estava no ventre.
Aquele que é guiado por eles não pode errar,
aquele de quem eles tiram o barco não cruza (o rio).370

Nesse excerto, ainda dos Ensinamentos, entendemos que “nṯr” também aparece como
um mecanismo de ordem, podendo haver indivíduos que nascem com ele e outros sem ele. O

367
Os substantivos, nomes pessoais, nomes de coisas ou animais, nomes abstratos, no geral, representavam o
próprio ser existente para os egípcios – seja visto, sentido, palpável ou mentalizável. O nome era um retentor de
forças internas, por isso “saber o nome de algo ou de alguém, [...] confere uma espécie de domínio sobre o objeto
enunciado”, é como ter o controle sobre tal coisa, sobre seu destino. Neste sentido, cria-se que as ações cometidas
contra ou em favor de um nome ou de sua escrita incidiam diretamente no destino do seu portador (Ibid., p. 407).
368
Para abstrairmos mais alguns de seus sentidos, Araújo (2000, p. 249, nota 12) dá-nos a entender que “nṯr” pode
tratar-se, da mesma forma, de um indivíduo elogiado por ser educado, distinto, modesto. Supõe-se então que os
ensinamentos de Ptah-hotep, direta ou indiretamente, também buscam a transformação de um indivíduo num nṯr.
369
Ibid., p. 249.
370
Ibid., p. 250, grifo do autor, adaptação nossa segundo LICHTHEIM, op. cit., p. 66-67.
130

excerto mostra que aqueles desprovidos de “nṯr”, desde antes do nascimento, se mostram como
pessoas péssimas para a sociedade, começando a sua ruindade já com os familiares – “repele-o
como alguém que eles odeiam, condenaram-no quando (ainda) estava no ventre”. Contudo, essa
ordem parece abstrata e relacionada com o “ka” do indivíduo – “teu ka o engendrou para ti”.
Esse “ka” ( , )371 geralmente é traduzido por: “força vital”, “folego”, “espírito”, “índole”,
“anseio”, significados simbólicos que contribuem para a localização da “vida” (material e
imaterial, alma), geralmente chamada “ba” ( , ).372 Temos aqui um indício, possivelmente
baseado em discursos mais antigos, que demonstra a índole de alguém que foi escolhido dos
poderosos: de ações nobres, respeitoso, bondoso, obediente, “amado” pelos poderosos e pelos
pais – “Aquele que é guiado por eles não pode errar” –, e outro que não teve a mesma sorte: de
ações ruins, isto é, problemático, que despreza as tradições, os conselhos, desobediente aos
superiores, aos pais, de linguajar torpe, sendo assim um “odiado” dos nṯrw, nṯrwt e dos pais –
“aquele de quem eles tiram o barco não cruza (o rio)”.373 Seria essa a lógica egípcia que
caracterizaria um “ateu”, um “sem nṯr”, um “desprovido de nṯr” em seu contexto? Seria também
esse discurso categoricamente indireto, ou seja, esse chamado “desprovido dos poderosos” não
tem voz própria – seria constantemente uma vítima do discurso educador? Será que essa
problemática aparecerá geralmente em tom de moralidade: “mau” versus “bom”, “odiado”
versus “amado”, “amaldiçoado” versus “abençoado”?
Ainda com os egípcios antigos, apresentaremos excertos cujo tom será bem diferente
daqueles acima apresentados. O texto em questão foi chamado Reflexões de um desesperado
por Araújo374 ou comumente conhecido por Diálogo entre um homem e sua alma ou A Disputa
entre um homem e seu ba.375 Esse texto está preservado com lacunas no Papiro Berlim 3024,

371
No singular representa a proteção da vida, principalmente depois da morte. No plural (kau) são 14 atributos que
podem ser anexados à essência do indivíduo: força, poder, nobreza, abundância, alimento, vida longa, alegria,
brilho, magia, vontade criadora, conhecimento, visão, audição, paladar – sendo que o Sol e alguns reis eram
considerados plenos desses 14 atributos (Ibid., p. 401).
372
Considera-se como um indivíduo vivo depois da morte. Geralmente representado por uma ave com cabeça
humana, simbolizando a liberdade do ser humano nesse estado etéreo. No plural (bau) são forças ou poderes que
atuam de longe de alguma forma, oriundas de pessoas em terra ou de poderosos celestiais (Ibid., p. 381).
373
Por indicação de Araújo, sobre a questão do “destino” no Egito Antigo, cf. MORENZ, Ludwig. Egyptian
religion. Ithaca: Cornell University Press, 1994, p. 66-74.
374
ARAÚJO, op. cit., p. 207.
375
De acordo com Araújo, o texto em hieróglifo pode ser conferido em: BARTA, W. Das Gespräch eines Mannes
mit seinen Ba (Papyrus Berlin 3024). Berlim: Bruno Hessling, 1969; FAULKNER, R. O. The man who was tired
life. JEA, 42: 21-40, 1956; GOEDICKE, H. The Report about the Dispute of a Man with his ba (Papyrus Berlin
3024). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1970.
131

compilação datada entre os séculos XIX-XVIII A.E.C., em finais da Dinastia XII (Reino
Médio). Eis as nossas seleções dos quatro poemas do texto:

Primeiro poema
Repara, repugnante é meu nome,
repara, mais do que o cheiro da carniça
nos dias de verão com o Sol escaldante.

[...] mais do que uma moita de juncos cheia de excremento de aves.

[...] <mais do que> uma cidade do rei


que se rebela às suas costas.

Segundo poema
A quem posso falar hoje?
Os irmãos são perversos,
os amigos de hoje não gostam (uns dos outros).

[...] Os corações são cobiçosos,


todos roubam as coisas do vizinho.

[...] A doçura pereceu,


a violência agride a todos.

[...] (Todos) estão contentes com a maldade,


a bondade é jogada no chão em toda parte.

[...] O passado não é lembrado,


ninguém ajuda agora a quem o ajudou.

[...] Os corações são cobiçosos,


não se pode confiar no coração de nenhum homem.

[...] Ninguém é justo,


o país é abandonado aos que (só) fazem o mal.

[...] Estou oprimido pelo desgosto,


pois me falta um (amigo) íntimo.

[...] O erro vaga pelo país


(130) ( ) e não tem fim.

Terceiro poema.
A morte está diante de mim hoje,

[...] como estar à beira da embriaguez.

[...] como a volta ao lar depois da guerra.

(140) [...] como um homem descobre o que ignorava.

[...] como o desejo de voltar para casa


depois de anos em cativeiro.
132

Quarto poema.
Na verdade, aquele que está além
será um deus vivo
e punirá quem cometer um crime.

[...] será um homem sábio,


não repelido ao suplicar a Rā quando falar.376

Essa nítida angústia apresentada no poema, será arrefecida por meio daquele que está
além, como lemos no final do excerto, que, segundo o tradutor, indica transcendência, um
imaginário da vida além terra.377 Por meio de seu tom de indignação, podemos supor que esse
“eu” narrador representasse, simbolicamente, um dos “amados de nṯr”, alguém que se sentisse
angustiado, desprezado, desesperado, oprimido em um mundo repleto de “odiados de nṯr”, um
mundo dominado por aqueles que abandonaram o conselho dos antepassados – um ambiente
onde nem seu nome faria sentido.378 O cenário construído é distópico e provavelmente sua
narrativa convida à ênfase ou à ideia de que é necessário manter-se firme aos costumes que
apresentamos, por exemplo, nos Ensinamentos de Ptah-hotep – além do que, as compilações
de ambos os papiros estão em contextos próximos, entre as Dinastias XI-XII (século XXII-XX
A.E.C.).379 É possível que esse imaginário “moralmente condenável”, quiçá tratando desses
“filhos odiados”, deixe sua marca nesse texto, no sentido de um mundo em que eles abundam

376
Ibid., p. 210-214, adaptação nossa segundo LICHTHEIM, op. cit., p. 166-169. Supõe-se que seja um discurso
poético que tem como tema um homem frustrado com a vida e temeroso de perder seu ba. Angústia, desesperança,
temor, incerteza, morte, são termos que o poema exalta como sérios problemas da vida terrena – remete ao tema
do suicídio, por exemplo. O ba repudia o homem ao mesmo tempo que mostra que ele deveria aproveitar a vida
(LICHTHEIM, op. cit., p. 163). Também traz mais um sentido para nṯr: “Jamais, assim, subirás (ao céu) para
contemplar o Sol. Os que erigiram em granito, que fizeram salas em pirâmides perfeitas de excelente construção,
tornaram-se deuses, (mas hoje) sua mesa de oferenda está abandonada, como se houvessem morrido à margem do
rio sem descendentes” (ARAÚJO, op. cit., p. 209).
377
Ibid., p. 214, nota 10.
378
Por exemplo hipotético: se ele era chamado Ptah-hotep, ou “Ptah está satisfeito” ou “Ptah está contente”, que
lógica um nome desse teria no ambiente cantado pelo poeta? Repugnante seria seu nome em um mundo dominado
pelos “maus”. Ptah era um nome especial que evocava atributos demiúrgicos, que criava a partir do pensamento
emanado de seu imo, do coração, verbalizava o pensamento e transformava em palavra a coisa que passava à
existência, nomeando-a. Foi cultuado por todo Egito Antigo e em locais da Núbia (atual Sudão), e sofreu
sincretismos com Osíris, sendo também associado aos ritos funerários, não apenas aos artesãos (Ibid., p. 414-415).
379
Especula-se que o contexto entre essas duas dinastias fora de estabilidade social. Todavia, o mesmo não é
considerado para as dinastias seguintes, principalmente pela ameaça e domínio semita (“Hicsos”) sobre o Egito,
de finais do século XVIII até meados do século XVI A.E.C., com a instauração da Dinastia XVIII. Pode-se supor
com isso que, por não serem “egípcios”, seriam administradores da ordem do caos (âmbito que em certas ocasiões
foi associado ao nome Seti). Para mais informações cf. HAYES, W. The Scepter of Egypt: A Background for the
Study of the Egyptian Antiquities in The Metropolitan Museum of Art. Part II: The Hyksos Period and the New
Kingdom (1675-1080 B.C.). New York: Plantin Press; Lunenburg: Meriden-Stinehour Press, 1990 [original:
1959]; BIETAK, Manfred. Avaris, the capital of the Hyksos: Recent Excavations at Tell el-Dab‘a. London: British
Museum Press, 1996.
133

– “(Todos) estão contentes com a maldade, a bondade é jogada no chão em toda parte” – e os
“bons filhos” sofrem, pois nada podem fazer – “Ninguém é justo, o país é abandonado aos que
(só) fazem o mal”. A não ser aguardar pela intervenção do além, talvez por meio de um sábio,
um indivíduo cujas petições não sejam rejeitadas por Rá – “será um homem sábio, não repelido
ao suplicar a Rā quando falar”. O final do poema – que não citamos acima – apresenta a
conciliação desse homem com o seu ba, um momento de verdadeira harmonia, e essa
conciliação só acontecerá no Ocidente, isto é, “quando teu corpo se unir à terra” será o momento
de jogar “o lamento de lado”.380
Por fim, outra seleção, a partir de o Canto de um harpista, na compilação do Papiro
Harris 500 – n.10060 do Museu Britânico – datado para o Reino Novo, mas que guarda traços
típicos do estilo do Reino Médio (referente aos séculos XIX-XI A.E.C.).381 Eis as seleções do
canto, na tradução de Araújo:

Feliz é este bom príncipe,


mesmo que a felicidade tenha um fim.
[...] Os deuses que viveram outrora repousam em suas pirâmides,
(5) assim como os bem-aventurados [...].
O que foi feito delas? Ouvi as palavras de Im-hotep e Hor-dedef,
cujos ditos são tão repetidos,
(mas) onde está sua casa?
Suas paredes esfacelaram-se,
seu local desapareceu
como se nunca tivesse existido!
Ninguém volta do lugar (onde se acham)
para contar como estão,
para dizer o que precisam,
para serenar nosso coração
até irmos para onde eles foram.

Por isso alegra teu coração,


esquece que serás um akh,
segue teu desejo por mais que vivas,
[...] unta a ti mesmo com as genuínas maravilhas de um deus.
[...] Segue teu desejo e os prazeres a que aspiras,
faze tuas coisas na terra ao mando de teu coração.
Quando chegar-te o dia do luto,
o Inerte [de Coração] não ouvirá os lamentos por ti,
os gemidos não livram o homem da sepultura.

Refrão
Faze do dia uma festa

380
Ibid., p. 214.
381
De acordo com Araújo, o texto em hieróglifo pode ser conferido em: FOX, M. V. The Song of Songs and the
ancient Egyptian love songs. Madison: University of Wisconsin Press, 1985; MÜLLER, W. M. Die Liebespoesie
der alten Ägypter. Leipzig: J. C. Hinrichs, 1932.
134

e não te canses!
Eis que ninguém pode levar suas coisas consigo,
eis que ninguém que parte volta de novo!382

Seria o ponto central da canção o descrédito ao além? Valeria a pena uma vida de
súplicas, lamentações, oferendas e apreço aos que já se foram e não mais retornam, sejam eles
nṯrw, nṯrwt ou indivíduos “bem-aventurados”? Tal estilo de vida afastaria o indivíduo da
alegria, das festas? Do próprio desejo? Anseios e prazeres que deseja em seu coração seriam
evitados? O “fato” de tornar-se um “akh” ( ) na morte seria um motivo para censurar a
própria vontade de querer durante a vida terrena? Esse canto é interessante por representar o
inverso daquilo que seria considerado comum pelos estudos mais gerais sobre o Egito Antigo,
ou seja, o apreço pela vida post mortem, demonstrado pelos textos e inscrições dos sarcófagos
e das pirâmides, em sua maioria, dos quais muitos ainda estão conservados em nossos dias.
Nem tudo no mundo egípcio fora construído ou pensado para ser “eterno”. Palácios, por
exemplo, não eram construídos para a “eternidade”, como comenta Gaston Maspero (1846-
1916)383, pois seus materiais eram bem diferentes dos templos e pirâmides: “Os palácios
egípcios não eram construídos para eternidade como os templos. São construções leves de
madeira, tijolo, ou arenito não preparado, mas raramente misturadas com granito, exceto pela
decoração das grandes entradas.”.384 Também temos aí uma referência ao “akh”, que pode
significar: “existência”, “folego de vida”, “espírito”, além de “útil”, “benéfico”, “afortunado”,
“correto”, “glorioso”, “excelente”, no caso, o estado acreditado de um indivíduo após a sua

382
Ibid., p. 373-374, adaptação nossa segundo LICHTHEIM, op. cit., p. 196-197. Geralmente atribuídas a harpistas
cegos, as canções em banquetes eram comuns, principalmente entre os abastados, não só em passagens da vida,
mas também em rituais funerários. O problema que aparece nessa canção é que ela, sendo funerária, exalta prazeres
da vida terrena, satiriza a morte, os túmulos e diminui o valor dos poderosos, bem como dos sábios antepassados,
como Im-hotep e Hor-dedef. Para Lichtheim esse tipo de conteúdo já era rejeitado no Reino Novo (século XVI-
XI A.E.C.) ou, pelo menos seu estilo passou por amenizações de sentido (LICHTHEIM, op. cit., p. 195-196).
Tanto para Lichtheim, quanto para Araújo, o seu conteúdo é “cético”. Percebemos que seu teor não demonstra
temor à tradição que temos acompanhado, principalmente no capítulo II, logo, pensamos nele aqui como mais um
arquétipo ao estudo do Ateísmo, do que uma expressão que se aproxime dessa lógica cética (que não toma partido).
A canção também está registrada em um túmulo em Saqqarah e foi dedicada ao rei Intef da Dinastia XI, Reino
Médio (ARAÚJO, op. cit., p. 372-373).
383
Renomado e condecorado egiptólogo ítalo-francês que popularizou a expressão “Povos do Mar” em 1881, que
fora cunhada pelo egiptólogo e filólogo francês Emmanuel de Rougé (1811-1872) em 1855.
384
MASPERO, Everyday Life in Ancient Egypt and Assyria, 2010, p. 113. “The Egyptian palaces are not built for
eternity like the temples. They are light constructions of wood, brick, or undressed freestone, but rarely blended
with granite except for the decoration of the great doorways”. Isso provavelmente pode significar que os
construtores e arquitetos egípcios sabiam as técnicas necessárias para manter um edifício sob uma lógica perene e
outro para ser consumido com o tempo.
135

“morte”, de ter passado para o Ocidente.385 Por fim, o “Inerte”, uma “antonomásia de Osíris”
segundo o tradutor386, uma das figuras excelsas mais reverenciadas e cultuadas do mundo
egípcio antigo, que, no canto, não tem poder nem para ouvir os gemidos nem os lamentos dos
angustiados. Nada, portanto, protege o indivíduo de sua iminente morte, uma morte que
provavelmente nem para uma outra vida leva, uma suposta vida que ninguém jamais retornou
para confirmá-la.

4.3 Mesopotâmia: o mau, um “ateu”?

Afinal, estaríamos ou não diante de textos com conteúdo arquetípico para o estudo do
Ateísmo como tema para Antiguidade não Clássica? Textos esses com mais de 4000 anos, cuja
oralidade pode ser ainda mais antiga? Trouxemos à mesa diversos questionamentos,
principalmente para se poder trabalhar com mais exemplos para a teoria dos níveis de imagens
(inconsciente, semiconsciente e consciente). Atentos à problemática, vamos para mais alguns
exemplos, agora, procedentes do mundo mesopotâmico. O texto antigo em seleção corresponde
ao período acádio-assírio, entre os séculos XVI-X A.E.C., intitulado A poesia do justo
sofredor387, no tablete II (versos 12-22)388, traduzido por Benjamin Foster (1945-)389:

[...] Como aquele que não fez libações para seu potente [ili la],
Nem invocou sua célica [iš-tar-ri la] com oferenda de alimento,
Que não habituou a prostrar-se, nem observou curvar-se,
(15) Cuja boca de suplica e prece estava ausente,
Que pulou dias jubilosos [u-mu ili], menosprezou festivais,
Que foi negligente, omitiu os desígnios celestiais [i-mi-šu],

385
Em seu sentido mais primordial, era uma potência celeste associada apenas aos reis. Com o tempo foi
popularizada e seu plural (akhu) relacionado com entidades que estão entre humanos e divindades (ARAÚJO, op.
cit., p. 378).
386
Ibid., p. 374, nota 4.
387
Segundo Foster, Before the muses: an anthology of Akkadian literature, 2005, p. 392, trata-se de uma poesia
em estilo monólogo, escrita em acádio-babilônio, sob autoria de um suposto oficial do rei cassita Nazi-Maruttaš
(século XIII A.E.C.) chamado Šubši-mešrē-Šakkan, sobre um tema que remete à riqueza perdida, ao desgosto para
com as forças celestes, especialmente Marduk e à certa incompreensão diante da vontade celestial. Para uma edição
bilíngue inglês-acadiano com transliteração cf. LAMBERT, W. G. Babylonian wisdom literature. Winona Lake,
Indiana: Eisenbrauns, 1996. p. 21-62. Essa literatura também é conhecida por “Ludlul bēl nēmeqi” ou “Louvarei
o senhor da sabedoria” (o primeiro verso da poesia).
388
Destaca um aspecto interessante para nossa investigação, pois, lida com as supostas consequências que caem
sobre aquele que, na ótica das tradições de sua sociedade, era um “sem il”, alguém que deixou os celestes, por isso
perde a bonança, a saúde e imerge na pobreza e na doença. Contudo, contrariamente, o indivíduo demonstra sua
dedicação para com tais nomes excelsos, gerando mais incompreensão sua diante da vontade dessas forças
sublimes (FOSTER, 2005, p. 392).
389
Professor de Assiriologia e Literatura Babilônica da Universidade de Yale, EUA.
136

Que não ensinou seu povo reverência e adoração,


Que não invocou seu potente [ìl-šú la], mas comeu sua oferenda de alimento,
(20) Que repreendeu sua célica [iš-tar-ta-šú], nem lhe trouxe oferenda de
farinha,
Como um possesso(?) [im-ḫu-ú], que esqueceu seu superior [bēl-šú],
Que casualmente jurou uma solene leviandade junto a seu célio [ili-šú]: Eu
mesmo assemelhava (como tal)!390

Tomamos a liberdade para traduzir “god” por “potente” ou “célio” (masculino) e


“goddess” por “célica” (feminino). Com isso, manteremos a nossa lógica da busca e da
manutenção dos possíveis significados antigos desses nomes especiais que costumavam
remeter, em geral, ao sublime, ao sobrenatural, ao que é forte e digno de culto e veneração,
sejam eles nomes de caráter genérico ou não. No caso, os termos em acadiano são: “il” e “ištar”;
il, ilu ou ’ēl evocam a ideia de “potestade”, “todo-poderoso”, “meritíssimo”, como já atentamos,
em laudas passadas – da mesma forma que o termo também vai ganhando mais acepções ao
longo do tempo, como “celestial” e “deus”; ištar era designada sinonimamente por “inanna”
(ina-nanna), isto é, “dona do céu”, um epíteto sumeriano para a lua. Segundo Gaston Maspero,
cria-se ali que o indivíduo nato no mundo acadiano (e depois mesopotâmico, no geral) recebia
uma “força” protetora ao nascer, seja expressa em masculino (ili) ou feminino (ištari), para
poder dirigir-se a ela enquanto caminhasse sobre a terra, ou seja, realizando preces e oferendas,
conversando, considerando-se seu filho e também servo dessa potestade, dessa entidade
“pessoal”. Culturalmente, era dito que o papel dessa força (sem designar um “nome” em
particular, preferindo-se apenas “ilu”) seria o de proteção, seja durante o dia, seja durante a
noite. A proteção seria limitada ao que fosse invisível e não ao visível – seres invisíveis que
vagam sem a percepção dos olhos humanos, muitas vezes agressivos. Sendo esse indivíduo um
devoto de sua391 força protetora e também dos célios que guardam a sua terra natal, realizando
os seus desígnios, ordenanças, festivais, conversando com eles, realizando oferendas regulares,
no ideal, seria considerado um “justo”, um “filho do [seu] celeste” (mār ilišu)392 e essas forças

390
Ibid., p. 398-399, acréscimos nossos. “[…] Like one who had not made libations to his god, Nor invoked his
goddess with a food offering, Who was not wont to prostrate, nor seen to bow down. (15) From whose mouth
supplication and prayer were wanting, Who skipped holy days, despised festivals, Who was neglectful, omitted the
gods’ rites, Who had not taught his people reverence and worship, Who did not invoke his god, but ate his food
offering, (20) Who snubbed his goddess, brought (her) no flour offering, Like one possessed(?), who forgot his
lord, Who casually swore a solemn oath by his god: I, indeed, seemed (such a one)!”.
391
Na ideia de obter um celeste, um forte para si. Provavelmente, para não cair numa pura ideia de ilu pessoal,
acompanha-se, paralelamente, a tradição de cultuar também o ilu ou os ilānu da cidade, por seus nomes de
personificação sociorrituais afetivos (como Marduk ou Assur).
392
Cf. Chicago Assyrian Dictionary (CAD I/J 100b 4’), 1956 (1960) apud TAWIL, 2009, p. 19.
137

nunca o abandonarão – ina išarātim illak “terá vida em retidão”393. Assim, em retribuição, o
indivíduo se sentiria mais fértil (abençoado), disfrutaria de uma longevidade de dias, dias de
felicidade, riqueza, e o destino negativo poderia perder o poder sobre ele, bem como tardaria
em escurecer a vista, isto é, em morrer – illikma ana šimatu awīlūtim urri u mūši elišu abki “ele
partiu para o destino da humanidade e chorei em cima dele dia e noite”394.395
O descumprimento desse “contrato” de convivência do indivíduo com essas forças todo-
poderosas (ili la, ilšú la, ištari la, imišu) acarretaria, sobre aquele, o efeito contrário, se tornando
um insano, violento, que passará seus dias atormentado por sensações malévolas, fruto da
presença de maus espíritos que rodeariam seu corpo, corpo este que seria submetido às mais
tormentosas doenças.396 Como podemos supor, segundo referimos sobre a lógica sociopolítica
da crença, esse argumento de repreensão enquadraria, socialmente, o estabelecimento de uma
mentalidade refreada destinada aos “administrados”, tendo como principal objetivo torná-los
submissos às ordens dos “administradores” (sejam forças celestes, reis ou ambos). Na ótica da
teoria de Knapp e Whitehouse, apresentada por Johnson, buscar convencer o indivíduo de que
é necessário respeitar, conversar, reverenciar, cultuar, fazer oferendas e fortalecer o seu afeto
com o seu “ilu” e com os “ilānu” de sua terra, remete às “relações de poder dentro da sociedade”
que “servem para estabelecer autoridade” e “legitimar práticas ideológicas específicas”.397
Por exemplo, essa problemática entorno da lógica da presença humana junto a uma
provável relação com semi-humanos ou com seres superiores de origem astral (ou não), pode
ser evidenciada nas cosmogonias das quais apresentamos seus versos iniciais, no capítulo II.
Além dessas, através de Foster (1996a), destaquemos aqui o primeiro verso do clássico épico
semita acadiano Atrahasis (atra ḫasīs, “o mais sábio” ou “o mais sensato”, nome do herói dessa
literatura) do século XVII A.E.C.: “Quando celestiais eram [como] homem”.398 Para o autor,
existe a possibilidade de que esse verso seja como uma metáfora, principalmente relacionada
com certo imaginário antigo dessa região, onde, antes da criação da humanidade, eram esses
próprios seres astrais que “trabalhavam” (criavam) – e com a criação da humanidade, eles
puderam “descansar”. Assim, “homem” pode ser melhor interpretado não como “eram seres
humanos [no princípio]”, mas sim como “agiam como age o homem”, no sentido de

393
Cf. CAD I/J 224a, 1956 (1960) apud TAWIL, 2009, p. 152.
394
Cf. GEORGE, Gilgamesh, 278: 4’-5’, 2003 apud TAWIL, 2009, p. 50.
395
MASPERO, 2010, p. 233.
396
Ibid., loc. cit.
397
JOHNSON, 2004, p. 48.
398
“inūma ilū awīlum” | “When gods were man” (FOSTER, Before the muses I, 1996a, p. 161, acréscimo nosso).
138

“trabalhavam” como trabalha o ser humano. Contudo, há especialistas que também defendem
a ideia de que “celeste” (ilu) era “homem” no sentido de “autoridade” ou “chefe”.399
Desconsiderar a presença de “forças guardiãs”, também no cotidiano, seria uma opção
que, como vimos, implicaria em diversas questões de problema social. Mas, muito mais do que
um controle da ordem, algo certamente pragmático, não podemos deixar de atentar para o efeito
da moral nessas sociedades antigas – um aspecto que dialoga com as subjetividades. A opinião
de Nietzsche, por exemplo, foi bastante direta e acusadora diante dessa relação que envolve
certas questões entorno de um imaginário que coloca em disputa o “correto a ser feito” e o “seja
você mesmo”. Para o filósofo alemão, em sua obra Crepúsculos dos ídolos, de 1888, “[...]
castração, extirpação, é instintivamente escolhido, no combate a um apetite, por Aqueles que
são demasiado fracos de vontade, degenerados demais, para poderem se impor uma medida”.400
Existirá aí um jogo de poder e domínio que vai além da pontual ideia de administração da
cidade. Um jogo que incide também no controle sobre pessoas, sobre seus corpos, sobre suas
vontades e limites mentais (sem falar nos outros seres, como os demais animais domesticados,
por exemplo). Essa fora uma das preocupações de Nietzsche em sua obra. Certas lógicas que
remetem a esses elementos foram exemplificadas aqui, tanto pelos excertos egípcios quanto
pelos que estamos apresentando, entre os mesopotâmicos.
Para ampliar a abordagem acima, ainda falando em Nietzsche, Além do Bem e do Mal,
de 1886, podemos atentar à pluralidade do comportamento humano: “Existe entre os homens,
como em toda espécie animal, um excedente de malogrados, enfermos, degenerados, fracos e
votados ao sofrimento”.401 A problemática trazida pelo filósofo, em suma, consiste em
questionar-se acerca da ação dos administradores da crença diante dessa crença (ou de outras
crenças). Para Nietzsche, os gestores da crença/sociedade geralmente investiam sua energia na
manutenção do que chama de ideal ascético, um programa social que incidirá de forma muito
mais ferrenha justamente aos homens “excedentes”, do que aos homens “superiores”. Nessa
complexidade social, para o filósofo, tais “superiores” tendiam ao comportamento contrário ao
ideal asceta (gerenciado em geral por sacerdotes), organizando e promovendo as festividades,
os cultos, esbanjando vontade, poder e desejo, indo e vindo livremente, recebendo veneração
dos demais seres humanos, no argumento de que são “potências” vivas e têm direitos
privilegiados ao caminharem sobre a terra; aqui, certamente associados ao imaginário do poder

399
Ibid., p. 161, nota 1. Para uma edição bilíngue inglês-acadiano com transliteração de Atrahasis cf. LAMBERT,
W. G.; MILLARD, A. R. Atra-ḫasīs: the Babylonian Story of the Flood. Oxford: Clarendon Press, 1969.
400
NIETZSCHE, Obras Incompletas, 1999, p. 377.
401
NIETZSCHE, 2003, p. 65.
139

“aristocrático”, desses “homens bons”, dos reis e dos ricos da Antiguidade.402 Por sua vez, aos
demais, “sacrificava-se ao deus os instintos mais fortes que se possuía”.403
Por exemplo, no excerto assírio-babilônio abaixo, datado entre os séculos XI-II A.E.C.,
traduzido e nomeado “A teodiceia babilônia”404 (XXV, versos 270-275)405 por Foster (1996b),
observemos a seguinte argumentação:

(270) Eles rejeitam o homem verdadeiro [ki-i-nu] que [presta atenção a]o
desejo celeste [ṭè-em ili].
Eles preenchem a [casa-forte] dos opressores com refinado ouro,
Eles esvaziam a despensa do pobre de [seus] mantimentos.
Eles fortalecem o déspota [šal-ṭu] de quem tudo é crime,
Eles arruínam os fracos [ú-la-la], eles atormentam os sem poder [la le-e-a].
(275) E quanto a mim, sem recursos [it-nu-šu], um parvenu [bēl pa-ni] me
molesta.406

Como podemos perceber, havia nessas sociedades antigas uma tradição literária,
poética, artística que estava atenta ao assunto que dizia respeito a essa lógica de haver ou não
haver recompensa ou destino justo aos “justos”, aos que devotavam a si mesmos a “ilu”, por
exemplo. É provável que cairia sobre o indivíduo lamento ou atitude crítica, diante da quebra
de expectativa, no momento em que o ideal asceta não simbolizava na prática prosperidade
garantida na sociedade, mas, ao contrário, muitos dos que estavam no poder e muitos dos ricos,
costumeiramente maleáveis para com esses ideais, como acreditou Nietzsche, seriam tomados
como exemplo social, de excelência, enquanto os pobres seriam lançados no campo da
humilhação, onde aparentavam ter sido abandonados, desdenhados pelos seres superiores

402
E se esses poderosos respeitavam ou temiam os homens da crença (sacerdotes), seja porque também exerciam
essa função social ou porque tinham-nos como conselheiros. Para Nietzsche, talvez, eles suspeitassem dos motivos
desses ascetas, imaginando algum tipo de “antinatureza” que vale a pena, ou, um poder desconhecido que mesmo
a “vontade de poder” desses “superiores” não poderia submeter totalmente, se fosse o caso (Ibid., p. 56-57).
403
Ibid., p. 58.
404
Para uma edição bilíngue inglês-acadiano com transliteração cf. LAMBERT, W. G. Babylonian wisdom
literature. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 1996. p. 63-91.
405
Escrita em acádio-babilônio, essa “teodiceia” é um poema (297 versos) em forma de debate entre dois
indivíduos amigos que discutem a justiça celeste. Um deles assume como “sofredor”, uma pessoa devota aos
excelsos, mas, pobre, que demonstra não entender a lógica social que considera alguém bom, justo ou forte só por
ser rico ou rei, e, ao contrário, o pobre como alguém quase sempre considerado um criminoso. O sofredor também
considera não entender os desígnios celestiais, sendo levado a acreditar que a injustiça também faz parte de suas
vontades destinadas aos homens e que não necessariamente recompensam com justiça aquele que devotou a sua
vida a eles. O sofredor tenta inspecionar a sua existência, para saber onde foi que ele errou e pedir por misericórdia
aos todo-poderosos (FOSTER, Before the muses II, 1996b, p. 790).
406
FOSTER, op. cit., p. 797, acréscimos nossos. “(270) They reject the truthful man who he[eds] the will of god.
They fill the oppressor’s st[rongroom] with refined gold, They empty the beggar’s larder of [his] provisions. They
shore up the tyrant whose all is crime, They ruin the weak, they oppress the powerless. (275) And as for me, without
means, a parvenu harasses me”.
140

(humanos ou não), pela justiça e pela controversa “lógica” do bem, em suas sociedades,
independentemente de esses pobres serem ou não adeptos do culto ao âmbito celeste e do
respeito às leis.407 Alguns versos após o excerto acima, lemos (XXVI, 280-285):

(280) Eles os dotaram de posse perpétua de erros [sar-ra-a-tú] e mentiras [la


ki-na-tu].
Solenemente, eles discursam bem de um homem rico [šá-ri-i],
‘Ele é a vossa alteza’, eles dizem, ‘ele é muito próspero’ [meš-ru-ú].
Eles caluniam um homem pobre como um ladrão [šar-ra-qiš],
Eles esbanjam injúria [nu-ul-la-tum] sobre ele, eles conspiram para matá-lo.
(285) Eles o fazem passar por todo infortúnio porque ele não tem recursos.408

Esses vários “eles” podem nos confundir, exceto pelo excerto acima, onde o primeiro
“Eles os dotaram [...]” está ligado aos quatro versos anteriores que omitimos na citação (versos
276-279). Esse primeiro “Eles” refere a Enlil (“Senhor Altíssimo”, relacionado com certa
“ventania” sobre lugares altos)409, o criador da humanidade, Ea (“Correntes de água
subterrânea”), que os talhou da argila, e Mami (“Grande Mãe”)410, que deu suas formas. E todos
eles contribuíram para que a humanidade fosse dotada de falas enroladas.411 A partir daí o tom
é de lamentação e indignação, seja para com a falta de discernimento a respeito do propósito
desses pais ancestrais para com eles, seja para com o valor controverso que pairava sobre a
sociedade deles. Segundo Foster (2007), a tradição geral poética mesopotâmica discorria sobre
muitos temas de inquietude social, mas não há evidências lexicais para nós afirmarmos que
havia, por sua vez, um mecanismo mental, como ἄθεος, que possibilitasse por meio da

407
FOSTER, “Mesopotamia”, 2007, p. 202.
408
FOSTER, op. cit., p. 797, acréscimos nossos. “(280) They endowed them in perpetuity with lies and falsehood.
Solemnly they speak well of a rich man, ‘He’s the king,’ they say, ‘he has much wealth.’ They malign a poor man
as a thief. They lavish mischief upon him, they conspire to kill him. (285) They make him suffer every evil because
he has no wherewithal(?)”.
409
Enlil, Elil (Senhor Vento, Atmosférico), E-ilī (que sustenta os celestiais no céu), Nunamnir (Soberano),
Durankik (Elo entre Céu e Terra) ou Kurgal (Grande Montanha) eram alguns de seus nomes-epítetos de carga
afetiva elevada entre os mesopotâmicos. Era considerado pelos sumerianos o senhor supremo dos celestes, filho
do Céu, descendente de Enki (Senhor Terra) e Ninki (Senhora Terra). Era cultuado em E-kur (Casa Montanha) em
Nippur (atual Nuffar, Iraque), relacionado com os montes Zagros e também cultuado em Dūr-Kurigalzu (atual
‘Aqar-Quf, Bagdá, Iraque) pelos antigos cassitas. Sua personificação também fora relacionada com a constelação
de boieiro (hemisfério norte). A representação tradicional de Enlil era o Chapéu Cornudo – presente na cabeça de
outras personificações celestiais (BLACK; GREEN, 2004, p. 76).
410
Mami, Mamītu, Mama, Aruru, Dingirmah, Ninmah, Nintu, Ninmena, Bēlet-ilī, Nammu são diferentes epítetos
mesopotâmicos para o mesmo princípio feminino criador do céu, da terra e da humanidade. Senhoras celestes,
supremas, patronas dos nascimentos, da fertilidade e de sua guarda (Ibid., p. 132-133).
411
FOSTER, 1996b, p. 797. “a-me-lut-tú it-gu-ru da-ba-ba”. Seria como uma confusão entre idiomas e dialetos,
ou de sentidos em uma mesma língua? Uma falta de lógica em argumentos, ou sentidos supostamente distorcidos?
Tal verso não foi comentado pelo tradutor.
141

linguagem, suspeitar, por exemplo, de que um indivíduo dessa região fosse capaz de duvidar
da existência desses seres celestiais dos mitos, ou que literalmente fosse capaz de enxergar um
mundo sem eles.412
Para Foster (2007), esses poetas questionavam liricamente tradições, como aquelas que
mencionamos acima, no caso daqueles indivíduos que prezavam por seu “ilu” e pelos “ilānu”
de sua terra. Em tal lógica, os devotos jamais deveriam passar por dificuldades ao ponto de
deixarem-lhes pobres, doentes ou desdenhados socialmente. Pelo contrário, os infortúnios
gerais deveriam cair justamente para aqueles que desprezaram “ilu”, desrespeitando a lógica da
tradição. Assim, mesmo que o indivíduo não dissesse abertamente que “ilu” ou os “ilānu” não
existissem, a questão em si desaguaria na dúvida entorno de sua lógica e reais desígnios,
evidentemente confusos aos mortais. Essa problemática nos instiga para alguns
questionamentos: teriam essas forças criadoras inserido na humanidade esse “gene” da
confusão, da contradição, desde os tempos mitológicos? Sofrer e salvar-se do sofrimento eram
lados da vontade celeste que não dependiam da justiça dos homens? Seria o infortúnio fruto de
uma má ação desconhecida, no caso do indivíduo que não compreendia a sua situação
desfavorável?413
Outrossim, como temos percebido, essas sociedades entendiam a pobreza, a doença, a
violência, a insanidade como castigos e a prosperidade, a fertilidade, a saúde, a plenitude como
bênçãos favoráveis aos mortais, sendo que ambas as condições envolviam a crença no âmbito
excelso celestial. No primeiro evento, o indivíduo falhou com “ilu”, deixou-o, afastou-se dele,
traiu-o. No segundo, foi fiel, assíduo, crente, dedicado às vontades dos sublimes – e eis aí a
lógica da tradição. Mas, não haveria aqui uma diferença evidente entre aqueles que “têm ilu” e
os que “não têm ilu”? Seriam esses, porventura, virtuais casos para o estudo do Ateísmo como
tema ao mundo sumério-acádio ou assírio-babilônio? No geral, na literatura, esses seres
celestiais têm seus nomes de inclusão sociorrituais manifestos, mas, parecia haver lá casos
específicos, onde suas presenças poderiam ser “anuladas” e essa anulação ficaria evidente na
argumentação sobre a conduta do indivíduo, interpretada quase sempre pelo “crente” ou pelo
adepto da ordem moral. Com isso, quiçá considerar uma pessoa violenta, desrespeitosa,
revoltosa, criminosa fosse semanticamente semelhante a dizer que essa pessoa tenha sido
abandonada pelos poderosos celestiais, que tenha um corpo vazio de “ilu” – uma observação
que também pode ser válida aos exemplos egípcios.

412
FOSTER, 2007, p. 202.
413
Ibid., p. 203.
142

Por meio das teorias que temos trazido até o momento, temos igualmente investido no
viés de que as crenças fazem parte do elemento administrador social, organizado de humano
para humano, bem como desse humano para o mundo ao seu redor, onde, em questão de
autoridade, uns são apresentados como “poderosos” e outros são postos como “governados”.
Em favor desses “poderosos”, forjaram literaturas mitológicas que, dentre as suas muitas
possibilidades, também fortaleciam a justificativa do poder e autoridade de alguns poucos sobre
muitos outros. Para os “governados”, foram desenvolvidas uma grande quantidade de normas
que controlam suas vontades, interesses, desejos, ações e que fundamentavam a normatividade
da ordem social geral. Nessa hipótese, tais “poderosos”, geralmente compreendidos como
descendentes, filhos, escolhidos ou abençoados pelos pais e mães celestiais ancestrais,
colocariam ou solicitariam a inserção de seus nomes na categoria de forças sobrenaturais,
dignos de receberem honrarias e oferendas, para que a ordem e a harmonia fossem perenes em
suas sociedades (marca da tradição); por sua vez, esses “governados” poderiam ou não ser bem-
sucedidos em seus empreendimentos (marca geral da humanidade), da mesma forma que
deveriam preferencialmente aderir o culto aos nomes sociorrituais afetivos celestiais para
tentarem mudar os seus destinos positivamente.414
Neste sentido, acrescentaremos mais uma definição ao termo “ateu”, em nosso estudo:
que se distanciou dos celestiais ou foi desprezado pelos celestiais. Sendo que, na primeira
opção, haveria uma escolha evidente da parte do indivíduo, sendo ele próprio o autor da ação
de afastar-se, uma ação motivada por qualquer situação de sua vida; na segunda, uma acusação
oriunda da norma social, desse ideal asceta de homens para homens, como acreditou Nietzsche
– uma acusação que tem como alicerce a inserção e uso dos nomes sociorrituais desses celestiais
de alto valor afetivo. Queremos dizer que, o sentido de “celestiais” 415, nessa ideia de “foi

414
Todavia, acreditamos também que, se um homem dito “poderoso” passar a se sentir “governado” por alguma
força maior (conhecida ou desconhecida), poderá incorrer, primeiro em seu imo e depois em suas ações, nas
mesmas condições de um “governado”. Assim, tendo uma obra qualquer personificado um ser celestial, por
exemplo, as ações dessa personificação poderão transitar entre momentos de “autoridade” ou de “aparente
controle” – igualmente como seria na história da ação dos líderes da humanidade.
415
Celestes ou celestiais: palavra associada, neste trabalho, ao âmbito atmosférico e aos seus fenômenos, aos
corpos celestes, aos astros, identificados socialmente por nomes de personificação especiais que foram plenos de
sentidos que mexem com os afetos humanos (representados de forma naturalista, antropomórfica, zoomórfica ou
antropozoomórfica). Poderosos ou potências: conectados ao âmbito celeste e ao demiúrgico, dotados de nomes
especiais de inclusão sociorritual e política; remetem às forças da natureza: um terremoto, uma erupção vulcânica,
uma correnteza, um tsunami; associados a um guerreiro, um chefe tribal, um sábio, um juiz, um rei (representados
de forma antropomórfica, zoomórfica ou antropozoomórfica). Ambos os termos aqui, evocam o discurso que
ordena a veneração, o culto, a oferenda, a fidelidade, para que os destinos dos devotos ou dos súditos sejam
estabelecidos de forma favorável. Apesar de designarmos para esses sentidos características genéricas e
semelhantes, bem mais do que diferenças, vimos que a ideia de “celestiais” caberia contextualmente na lógica que
envolve a relação do homem com a questão do destino; por sua vez, “potências” na lógica da submissão à ordem
sociopolítica ou do temor à ordem sociorritual. Acreditamos que essa proposta de tradução se torna interessante
143

desprezado”, estaria sendo acionado como pano de fundo para ocultar a provável intensão da
sentença, isto é, de legitimar, com o uso desses nomes que fomentam os afetos humanos, o
poder da “norma” ou da “tradição” (que poderia ser proferida por qualquer pessoa que a
conhecesse), um poder que poderia ser capaz de acusar e/ou condenar.416
De forma incisiva, em sua Genealogia da moral, de 1887, Nietzsche argumentou que
os artistas tendem a exercer um papel social que aqui nos interessa. Ao serem colocados em
uma categoria ligeiramente “livre”, atuando dentro de um determinado espaço social, tais
artistas acabam por promover aos demais, aos espectadores, um momento propício para estes
poderem, caso queiram, exercitar a imaginação, o pensamento sobre alguma coisa, sagrada ou
não, seja o assunto que for. Seria então tal artista, esse poeta, por exemplo, capaz de reler esse
mundo, da mesma forma que o reproduz sob encomenda? Uma encomenda de “si” ou de
“outros”? Para Nietzsche,

Um artista inteiro e consumado está sempre divorciado do ‘real’, do efetivo;


por outro lado, compreende-se que ele às vezes possa cansar-se
desesperadamente dessa eterna ‘irrealidade’ e falsidade de sua existência mais
íntima – e faça então a tentativa de irromper no que lhe é mais proibido, no
real, a tentativa de ser real.417

Segundo entendemos do filósofo alemão418, os trabalhos artísticos tendem a ser de difícil


interpretação ao ouvinte, ao espectador, pois, dificilmente se saberia das motivações que

caso o termo antigo refira de fato a esse contexto “divino”, ou “fabuloso”, que envolvem nomes especiais
sociorrituais, e não a nomes comuns, como evidenciamos na cosmogonia israelo-judaíta (fabulosa, mas vazia de
nomes especiais), ou a nomes que já perderam seu caráter “excelso”, tornando-os cotidianos, como no caso dos
nomes da maioria dos Titãs, na cultura helênica (como gaia (terra), oceano, urano (céu), heméra (dia), nix (noite),
por exemplo).
416
Nos baseamos na Retórica da Alteridade de Hartog (1999). Portanto, dizer “distanciou-se dos celestiais”,
indicaria um afastamento, provavelmente verificável na documentação, seja de forma literal, ou na potencialidade
da ação proposta, possuindo uma carga mais autônoma, ou subjetiva, por assim dizer. Por sua vez, dizer
“desprezado dos celestiais”, remeteria ao campo da moralidade, da acusação, do péssimo, daquilo que seria
socialmente aceito ou não, fundamentado na lógica da tradição ou norma vigente. Assim, não seriam
necessariamente tais “celestiais” os reais desdenhadores desse indivíduo, mas sim a norma ou a tradição que o
condena moralmente – a documentação geralmente colocaria em pauta essa “disputa”, entre aquilo que seria o
“correto a ser feito” (essa vontade dita “divina”) e as contradições entorno desse imaginário. Para Georges Minois,
o “[...] ateísmo prático, no nível do comportamento, pode referir-se a todos aqueles cuja moral não é conforme às
normas dominantes. Essa acepção predomina no povo.” (MINOIS, 2014, p. 67). Todavia, não iríamos tão longe
quanto Minois, já no sentido de trazer para essa questão o nosso termo “ateísmo”, pois, aqui, neste recorte, para
nós trata-se antes de um tema de estudo, e não pensamos para ele abordagens que buscam alguma identidade
individual ou de grupo.
417
NIETZSCHE, 2007, p. 91. Neste sentido, é provável que o artista prefira cantar ou apresentar situações
fantásticas, fabulosas, mitológicas, para assim exprimir alguma coisa ao espectador, aos ouvintes, estando todos
esses “sentados”, em um mundo “real”, “efetivo”.
418
Ibid., p. 90-93.
144

estiveram por de trás deles, a não ser que, desde o princípio de sua expressão musical ou poética,
por exemplo, já tenham sido apresentados: a) “patrocinador”, ou seja, a quem, a que e a qual,
seu serviço artístico responde; b) esclarecimentos específicos sobre o serviço apresentado,
como o “contexto” da expressão; e c) o nível de fama do próprio “artista”. Além disso, para
Nietzsche, tais artistas “[...] sempre foram criados de quarto de uma religião, uma filosofia, uma
moral; [...] necessitam sempre de uma proteção, um amparo, uma autoridade estabelecida: os
artistas não se sustentam por si sós, estar só vai de encontro a seus instintos mais profundos”.419
As informações que temos dos textos poéticos antigos que apresentamos, com versos
provavelmente musicados em seus originais, só nos permitem supor as motivações dos
harpistas, dos poetas, dos literatos, isto é, se cantavam vontades populares, ou aquilo que foi
realidade em suas épocas, ou em uma época contrária, ou seja, cantar sobre desordem em uma
sociedade estável, ou se cantavam encomendas, solicitações de momento, com ou sem relação
alguma com os seus contextos ou com a conjuntura geral que pode ou não influenciá-los.
Todavia, de acordo com Nietzsche, “também na esfera mais espiritual o ideal ascético continua
encontrando [...], apenas um tipo de inimigo verdadeiro capaz de prejudicá-lo: os comediantes
desse ideal – porque despertam desconfiança”.420
Assim, os vários “eles” presentes no excerto assírio-babilônio, excetuando aquele que
refere aos nomes dos pais ancestrais todo-poderosos, provavelmente dizem respeito ao que hoje
chamaríamos de senso comum, um senso comum em versos sobre certa lógica de observação
empírica, que atesta certa contradição ao ideal proposto no programa de convivência social dos
homens com os excelsos e seus nomes, como vimos em Maspero.421 Da mesma forma, tanto os
textos egípcios quanto os mesopotâmicos que fomentaram dúvidas para algumas prováveis
verdades coletivas por meio do lírico, da canção, geralmente apresentaram conteúdo de sentido
sarcástico ou indignativo. Com isso, como mencionou Nietzsche (2007), talvez nesses termos
expostos, essa atividade poética se apresentasse como um elemento mais lúcido, ao mesmo
tempo lúdico, com relação ao comportamento do ser humano diante das “suposições”
tradicionais, isto é, governamentais ou “ascetas”, sobre morte, pobreza, riqueza, violência,

419
Ibid., p. 92.
420
Ibid., p. 146-147, grifo do autor. Febvre apud Barros (2016), como vimos, não considerou os “comediantes” da
moral religiosa (“tradição parodística”) como representantes de uma mentalidade ateia, em seu recorte. Mas Wirth
apud Barros (2016), contrariamente, viu-os como potenciais elementos para serem aproveitados para o estudo do
Ateísmo como tema na história. No caso, a questão envolveu Rabelais, século XVI.
421
Ou seja, seriam como poemas que trazem e/ou reforçam ao ouvinte questões do senso comum, pouco ou nada
recorrentes nas narrativas mitológicas; poemas que podem conduzir à desconfiança, principalmente sobre a lógica
tradicional, moral e/ou normativa de seu meio.
145

ancestralidade, bondade, justeza, destino, suposições que certamente estariam no patamar de


lógica normativa, esta que igualmente selecionaria aquilo que deve permanecer na sociedade e
aquilo que deveria ser extirpado dela.

4.4 Israel-Judá: um protótipo “ateísta”?

Tanto Foster (2007), Maspero422 e Araújo, quanto suas principais referências como Jean
Bottéro (1992)423 e Miriam Lichtheim (1973; 1976), além de outros autores como Rosalie David
(2007)424, consideraram que o conteúdo de algumas dessas obras apresentadas seria de
característica pessimista ou cética: diante da morte, da situação social desfavorável tanto para
“pobres”, quanto para “justos”, além da provável possibilidade de ambiente contextual de
guerra, ou de desestabilidade econômica (ou ambos), como pano de fundo. Decerto que não
saberemos o real contexto de cada artista, mas pelo uso de hipóteses e boas teorias, além do
elemento técnico-investigativo linguístico, arqueológico, paleobotânico e paleoambiental, é
provável que um pesquisador possa promover suas suposições para uma proposta de
reconstrução de um cenário perdido no tempo. No entanto, o que nos interessa é questionar se
também não poderíamos entender essa situação artística em questão como um tipo de expressão
que evoque o Ateísmo como tema nesse mundo antigo – afinal, já começamos a perceber
palavras correlacionadas com o assunto, tais como: “crime”, “desrespeito”, “violência” e
“insânia”. Contudo, não houve evidência para que considerássemos tais artistas “ateus”.425
Também, ao nosso ver, houve de fato um tom pessimista em alguns textos que apresentamos,
por outro lado, cético parece não ter sido o caso, talvez. Acreditamos que os autores
mencionados fizeram uma aproximação semântica entre duvidar e ser cético, lamentar e ser
cético, ser pessimista e ser cético, como geralmente fazemos atualmente.

422
Cf. MASPERO, 2010, p. 89-91.
423
Bottéro (1914-2007) foi renomado assiriólogo e historiador francês das crenças do Antigo Oriente Médio. Cf.
BOTTÉRO, Mesopotamia: writing, reasoning, and the Gods, 1992, p. 260.
424
David (1946-) renomada egiptóloga britânica, uma das primeiras mulheres a trabalhar no ramo, e uma das
pioneiras no estudo não destrutivo de múmias. É diretora do setor de Egito do Museu de Manchester e dos estudos
de biologia forense para egiptologia da Universidade de Manchester. Cf. DAVID, “Ancient Egypt”, 2007, p. 61.
425
Quiçá, enxerguemos tais artistas como potenciais exploradores da questão do desrespeito às coisas ditas
“sagradas”. Sobre a formação de um conceito cf. “Que elementos estão incluídos na palavra ‘Estado’ para que ela
se torne um conceito? Dominação, território, burguesia, legislação, jurisdição, administração, impostos, Exército
– citando aqui os mais recorrentes. Esses conteúdos diversos, com sua terminologia própria, mas também com sua
qualidade conceitual, estão integrados no conceito ‘Estado’ e abrigam-se sob um conceito comum”
(KOSELLECK, 2006, p. 109).
146

Pelo que vimos em Verdan, cético não seria necessariamente quem é pessimista ou quem
lamenta. Segundo argumentou, o cético provavelmente seria um investigador, alguém que
cogitasse possibilidades diversas, alguém que considerasse a si mesmo ciente, por exemplo, dos
vários lados de um dito “dogma” – talvez a dúvida ou o lamento viessem após a ação de se
colocar nesse estilo de vida, de isentar-se do posicionamento em favor de uma opinião,
transparecendo estar em dúvida. Mas, até que ponto seriam sinônimos? Ou, qual a relação dessa
questão da dúvida, do lamento ou do pessimismo, com o Ateísmo como problemática conduzida
ao mundo antigo? Esse aspecto “duvidoso” talvez pudesse ser o motor investigador do cético,
mas, ser cético seria estar em dúvida? Ou, é estar certo de que existem no mundo muitas
possibilidades, muitos lados, e não dogma, uma opinião ou opção absoluta?426 Entretanto, para
mais além dessa problemática conceitual, notamos claramente que há, no conteúdo desses
trabalhos literários citados, uma concepção de que os indivíduos que são desordeiros,
desrespeitosos, pobres, doentes, violentos, malogrados, estão nessas condições por não terem,
de alguma forma, os celestiais em suas vidas, isto é, por estarem “ateus”. Consideramos, assim,
que isso também fica evidente no seguinte salmo israelo-judaíta – condizente com os demais
excertos citados:

(1) Do musicista David. Diz um estúpido em seu próprio imo: ‘não existe
potências’ [’ēyn ’eloḥiym]; seus feitos maldosos corromperam, [assim]
abominaram-se; [entre estes] não existe boa ação.
(2) Do céu, Aquele-que-É [Yḥwh] baixou seu olhar sobre os filhos da
humanidade, para ver ali algum inteligente [que] procura as potestades
[’eloḥiym].
(3) Cada um virou de lado, tornaram-se imorais uns com os outros; [entre
estes] não existe boa ação, não existe igualmente um [dentre os filhos da
humanidade].
(4) Todos os obreiros da perversidade eram ignorantes, devoradores do meu
povo; comeram pão [e] Aquele-que-É não chamaram.
(5) Naquele lugar amedrontaram-se [com] terror, porque potências [está] na
geração do justo.
(6) O conselho do pobre envergonhareis, pois Aquele-que-É [é] seu refúgio.

426
Ou também, como pensou Nietzsche, no momento em que destaca o artista “comediante” do ideal asceta. Até
que ponto uma sociedade permitiria seu sarcasmo? Sobre uma visão geral a respeito do ceticismo antigo e do
moderno, Bicca (2016, pp. 255; 268) comenta: “Os céticos modernos põem em questão a certeza de todos os
nossos conhecimentos e mostram que a maior parte de nossas evidencias não tem nenhum fundamento racional,
em particular nossa crença em um mundo exterior.” Por sua vez, os céticos antigos “levariam suas dúvidas mais a
sério: eles se contraporiam a opiniões ou crenças firmes de um modo geral e, não satisfeitos em mostrar a incerteza
delas, pretenderiam delas livrar-se pela suspenção de sua adesão a toda crença, ordinária ou filosófica. [...] Ao
dizer que é sábio retirar o assentimento, o cético não assumiria um compromisso com a posição assim expressa,
posto que comprometer-se com essa posição já seria dar assentimento. [...] Ele apenas promoveria uma adesão,
digamos, instrumental, utilitária (para fins dialéticos), às afirmações dos eventuais oponentes e aos padrões e
princípios destes”.
147

(7) Quem de Tziyōn [Sião] dará a salvação de Israel? Outra vez [é] Aquele-
que-É; o cativo de seu povo alegrará Ya‘aqov [Jacó], será feliz Israel.427

De forma semelhante ao tom repreensivo que identificamos em alguns dos textos que
apresentamos, egípcio e mesopotâmico, que Nietzsche quiçá chamaria de tipo “ascetas”, o
salmista musicou a situação de um povo ou indivíduo que, por não acreditar na existência de
forças todo-poderosas e criadoras no mundo (’eloḥiym), seria considerado um “estúpido”,
“perverso”, “malvado”, “imoral”, “rancoroso” (‫נָּבָּ ל‬, nāvāl). Mais uma vez, traduzimos ’eloḥiym
por “potências” ou “potestades”, usado aqui novamente como substantivo coletivo, que leva
verbos e adjetivos no singular no texto original, isto é, “grupo ou coletivo de potências”, “grupo
ou coletivo de forças criadoras”, como igualmente consta no acadiano, no ugarita e como vimos
na cosmogonia israelita.428 Segundo esse cântico, pessoas desse tipo, ou seja, que dizem ou
pensam que “não existe” (‫אֵ ין‬,’ēyn) ’eloḥiym, dominam quase todo o “mundo” e onde quer que
estejam agem de forma maldosa (‫עֲלִׁ ילָּה‬, ‘aliylāh), corrompem (‫הִׁ ְּשחִׁ יתּו‬, ḥišḫiytū) e serão
considerados “abomináveis” (‫הִׁ ְּתעִׁ יבּו‬, ḥit‘iyvū) pelos “moralistas”. Entre esses “malvados”,
considerou que “não existe boa ação” (‫אֵ ין עֹ ׂשֵ ה־טֹ וב‬,’ēyn ‘ośēh ṭōv). Na segunda fase do salmo,
esses “corruptores” parecem estar na “moradia” ou “geração” do “justo” (‫בְּ דֹ ור צַ ִׁדיק‬, bedōr
tzadiyq) e nela veem Aquele-que-É, que também refugia e protege (‫מַ חְּ סֵ הּו‬, maḫsēḥū) o conselho

427
Mizmōr [Salmo] 14: 1-7, grifos e acréscimos nossos.
‫ֱֹלהים הִׁ ְּשחִׁ יתּו הִׁ ְּתעִׁ יבּו עֲלִׁ ילָּה אֵ ין עֹ ׂשֵ ה־טֹ וב׃‬ִׁ ‫"ל ְַּמנַצֵ חַ לְּ דָּ וִׁ ד אָּ מַ ר נָּבָּ ל בְּ לִׁ בֹ ו אֵ ין א‬
‫יְּ הוָּה ִׁמשָּ מַ יִׁ ם הִׁ ְּשקִׁ יף עַל־בְּ נֵי־אָּ דָּ ם לִׁ ְּראֹ ות ֲהיֵש מַ ְּׂשכִׁ יל דֹ ֵרש אֶ ת־אֱֹלהִׁ ים׃‬
‫הַ כֹ ל סָּ ר יַחְּ דָּ ו ֶנ ֱאלָּחּו אֵ ין עֹ ׂשֵ ה־טֹ וב אֵ ין גַם־אֶ חָּ ד׃‬
‫ֲהל ֹא י ְָּּדעּו כָּל־פֹ ֲעלֵי אָּ וֶן אֹ כְּ לֵי ע ִַׁמי אָּ כְּ לּו לֶחֶ ם יְּ הוָּה ל ֹא קָּ ָּראּו׃‬
‫שָּ ם ָּפחֲדּו פָּחַ ד כִׁ י־אֱֹלהִׁ ים בְּ דֹ ור צַ ִׁדיק׃‬
‫עֲצַ ת־עָּנִׁ י תָּ בִׁ ישּו כִׁ י יְּ הוָּה מַ חְּ סֵ הּו׃‬
"‫ִׁמי יִׁ תֵ ן ִׁמצִׁ יֹ ון יְּ שּו ַעת יִׁ ְּׂש ָּראֵ ל בְּ שּוב יְּ הוָּה ְּשבּות עַמֹ ו ָּיגֵל ַיעֲקֹ ב יִׁ ְּׂשמַ ח יִׁ ְּׂש ָּראֵ ל׃‬
Disponível em: <http://www.qbible.com/hebrew-old-testament/psalms/14.html>. Acesso em: 6 ago. 2018.
428
Apesar de considerarmos historicamente viável essa possibilidade interpretativa, na teologia, área dominante
do estudo da questão, a concepção de plural majestático entre os judeus e de trindade implícita entre alguns
cristãos são as mais aceitáveis, para cada um. Esses estudos colocam ’eloḥyim (que tende a ser traduzido por
“Deus”) como um uso lexical exclusivamente israelita, para distinguir a sua crença da crença de outros povos do
Oriente Médio. Cremos que muitos desses estudos estejam influenciados, não só por uma tradição teológica muito
antiga desta Era Cristã, mas, quiçá, pelo temor a dogmas religiosos, cada um segundo sua vertente e interpretação
bíblica, sendo que, em boa parte convergem para a ideia de que Israel fora um povo monoteísta. Como já dissemos,
“monoteísmo” ou mesmo “politeísmo” são temas de estudo que se tornaram tradicionais e atualmente podemos
considerá-los pouco explorados de forma crítica, principalmente no Brasil, permanecendo como termos
corriqueiramente inseridos em pesquisas sem problematizá-los. No entanto, a arqueologia israelense, e leituras e
investigações de caráter separado de motivações teológicas religiosas dos textos antigos de Israel e Judá têm
evidenciado uma pluralidade de artefatos, como estatuetas da fertilidade, geralmente assim interpretadas, além de
passagens bíblicas que mostram a existência de vários altares dedicados às forças de outros povos, ou melhor, da
própria região na qual os israelitas de forma alguma eram alienígenas, pelo contrário, eram próximos na cultura e
na linguagem. Para uma interpretação teológica influenciada por religião cf. HARRIS et al., Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 1998, p. 68-74. Para uma interpretação teológica mais aberta e
condizente com o nosso estudo cf. TERRA, 2015, p. 179-184.
148

do pobre (‫עֲצַ ת־עָּנִׁ י‬, ‘atzat ‘āniy) e que do céu lança olhos (‫משָּ מַ יִׁ ם הִׁ ְּשקִׁ יף‬,
ִׁ mišāmayim hišqiyf) pelos
“inteligentes” (‫מַ ְּׂשכִׁ יל‬, maśkiyl) na terra, isto é, por pessoas que buscam por ’eloḥiym. Nesse
ambiente, o “imoral”, que também come do pão (‫לֶחֶ ם‬, leḫem) do trabalho dos justos, o faz sem
invocar (‫קָּ ָּראּו‬, qārā’ū) Aquele-que-É, todavia, com isso se sentirá muito envergonhado,
assustado, receoso (‫ ָּפחֲדּו ָּפחַ ד‬, pāḫadū pāḫad).
O que nos interessa de fato nesse Salmo 14 (século VI-V A.E.C.)429 é propor o destaque
para uma dupla lógica que podemos analisar para complementar esse nosso estudo sobre o
Ateísmo como tema. Que dupla lógica seria essa? Consideramos que tal lógica passa por duas
leituras paralelas que podemos realizar entorno desse pressuposto “ateísmo”, e que não
necessariamente passa pela ideia de “descrença”, ou de “ausência divina”. Estamos percebendo,
de uma forma geral, nesse mínimo escopo de fontes apresentadas, que o indivíduo que não
considerasse como verdadeira a existência dessas forças criadoras, seria visto como um
“estúpido” – o que dialoga, de certa forma, com os demais excertos egípcios e mesopotâmicos,
de tipo “indignado” ou “moralizador”, que mencionamos neste capítulo.430 Por sua vez,
paralelamente, os israelitas/judaítas novamente apresentaram seu recurso que aqui também

429
Essa canção é semelhante ao Salmo 53: 1-6(7). Segundo Rodd, “Psalms”, 2007, p. 371, geralmente se atribui o
termo “cativo” como sendo uma releitura dos judeus no exílio ou no pós-exílio (século VI-V A.E.C.). Da mesma
forma, para o Salmo 14 se supõe uma crítica moral aos israelitas no geral; no Salmo 53 quiçá uma crítica aos não
judeus. A canção apresenta o “conselho do pobre”, mas a existência de um grupo que dava assistência aos pobres,
seja no Israel pré-exílico, seja em Judá, ainda seria incerta. Os temas do Salmo são três: 1) um “mundo” imerso na
maldade, leia-se “dominado por aqueles que não creem no Poderoso de Israel”; 2) na casa ou na geração dos justos
a maldade perde o valor, será repreendida e o pobre não será humilhado; 3) Israel se alegrará novamente se confiar
em seu Poderoso Aquele-que-É. O comentador C. S. Rodd sugere uma conexão entre “estúpido” e “ateísta”, na
ideia de que poderia haver israelitas que não criam em ’eloḥiym da forma como desejava o salmista (como coletivo
e não plural? Como atributo de Yḥwh?). Ainda poderíamos dizer que tais israelitas em questão (talvez um grupo)
pudessem ter sido denunciados por não crerem em nenhuma força todo-poderosa, um comportamento que, quiçá,
consideraram ilógico para as tradições da época, sendo alcunhados de “estúpidos”. Também é possível supor uma
datação ao Salmo, segundo o estilo de escrita e proposta. Geralmente é colocado, estilisticamente, como posterior
ao exílio babilônico (SELLIN; FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, 2007, p. 395).
430
Ainda sobre os israelitas e judaítas, cf. Salmo 10: 1-4: “(1) Por que estarias ao longe [e] te ocultarias no momento
de aflição, Aquele-que-É? (2) Um mau, em seu orgulho, atormentará um pobre; serão pegos pelos mecanismos
dessa mentalidade. (3) Pois, um mau vangloria-se de seu próprio desejo, bendiz um cobiçoso e menospreza Aquele-
que-É. (4) Um mau, pela soberba de sua compostura, de modo algum buscará, [pois] todo seu pensamento [será]
‘não existe potestades’” (acréscimos nossos).
Disponível em: http://www.qbible.com/hebrew-old-testament/psalms/10.html. Acesso em: 30 set. 2018.
‫"לָּמָּ ה יְּ הוָּה תַ עֲמֹ ד בְּ ָּרחֹ וק תַ עְּ לִׁ ים לְּ עִׁ תֹ ות בַ צָּ ָּרה׃‬
‫בְּ ַג ֲאוַת ָּרשָּ ע יִׁ ְּדלַק עָּנִׁ י יִׁ תָּ פְּ ׂשּו בִׁ ְּמזִׁמֹ ות זּו חָּ שָּ בּו׃‬
‫ִּׁי־הִׁ לֵל ָּרשָּ ע עַל־תַ ֲאוַת נַפְּ שֹ ו ּובֹ צֵ ַע בֵ ֵרְך נִׁ אֵ ץ יְּ הוָּה׃‬
"‫ָּל־מזִׁמֹ ותָּ יו׃‬
ְּ ‫ָּרשָּ ע כְּ גֹ בַ ּה אַ פֹ ו בַ ל־יִׁ ְּדרֹ ש אֵ ין אֱֹלהִׁ ים כ‬
Por meio desse cântico, também poderíamos elencar mais algumas problemáticas ao tema, como a possibilidade
de um judaíta “devoto” considerar que Yḥwh poderia vir a ocultar-se ou ficar distante, deixando-o “sem Yḥwh” de
alguma forma; também poderíamos ampliar o vocabulário do mal, que vem caracterizando o indivíduo que pensa
que “não existe ’eloḥiym”, na ótica poética do salmista. Isso pode ficar a cabo de uma nova pesquisa. Para Sellin
e Fohrer (2007, p. 395) é provável que esse Salmo 10 seja uma compilação judaíta, exílica ou pós-exílica (século
VI-V A.E.C.).
149

consideraremos interessante ao Ateísmo como tema: ‫( יהוה‬Yḥwh), que traduzimos por “Aquele-
que-É”. Essa tradução foi baseada no trabalho etimológico da língua hebraica de Ernest Klein
(1987)431, uma vez que embasa a teoria de que esse nome próprio de quatro consoantes seria
um tipo de redução fonética da expressão “‫’( ”אֶ הְּ יֶה ֲאשֶ ר אֶ הְּ יֶה‬eḥyeh ’ašer ’eḥyeh, “Serei que
Serei”, ou, “aquele que É”, “que tornou-se em Existência”, relacionado com a raiz acadiana
ewū, ‫)הוה‬432 que se encontra em Êxodo 3: 14.
O que importa perceber, é que esse nome próprio seria um nome de inserção sociorritual
que, aparentemente, não fazia referência a nada que pudesse ser visto, tocado ou sentido pelos
seres humanos, fosse na terra ou no firmamento. Parecia não referir ao celeste (apesar de sua
personificação poética ser capaz de “olhar” das alturas do céu), nem ao sol, nem à lua, nem aos
astros, a nenhum antepassado – todos esses seriam considerados obras suas. Se não refere a
nada nesse sentido, não seria ele um nome sociorritual “ateu”, no sentido de “ausência” de
“seres celestiais”? Um nome que fora costumeiramente associado, nos textos israelo-judaítas,
ao “coletivo de todas as forças” (’eloḥiym), tornando-os, muitas vezes, semanticamente um só?
E se uma conversa entre um judaíta devoto, no estilo do salmista, e um babilônio devoto
tradicional, por volta do século V A.E.C.433, procedesse assim, hipoteticamente, e com fins
elucidativos para nossa proposta:

―Que ’eloḥiym são esses? – pergunta o babilônio.


―Nesse caso estamos usando-o como substantivo coletivo e não plural
comum – responde o judaíta.
―Que ’eloḥiym é esse? – insiste o babilônio.
―A condensação de forças criadoras, criou tudo – argumenta o judaíta.
―Seriam Anu, Inanna, Ea, Šamaš, Marduk, Enlil tais forças? – segue o
babilônio.
―Esses nomes não têm valor senão de céu, lua, estrelas, água, sol,
vento, terra, homens, mulheres, seres e ambientes criados por esse
coletivo de forças – esclarece o judaíta.

431
KLEIN, 1987, p. 255.
432
Cf. CAD E 413b, 1956 (1960) apud TAWIL, 2009, p. 83.
433
Período interessante para se explorar contatos culturais, devido aos conflitos entre gregos e persas. Os persas
promoveram amplos contatos multilaterais entre os séculos VI e IV A.E.C., ao estabelecerem seu reinado por
“províncias” que incluíam, por exemplo: Egito, Babilônia, Assíria, Judá, Ásia Menor, além de localidades entorno
do mar Negro, fronteira com a Macedônia e com a Grécia.
150

―Se não crês nos celestiais excelsos todo-poderosos e pais ancestrais,


quem crês que move essas forças criadoras? – questiona o babilônio
curioso.
―N’Aquele-que-É acredito – conclui o judaíta.
―N’Aquele-que-É? A verdade é que em celestial algum crês, ateu –
afirma o babilônio que sabia grego.

Diagrama 05 – Egito Antigo: arquétipo contextual ateísta não helênico

Com nṯr Sem nṯr

Nasceu com a benção | respeitoso Nasceu sem a benção | desrespeitoso


desde a infância desde a infância

Respeito ao conselho dos O conselho dos antepassados


antepassados desaba como velhas construções

Respeito ao ensinamento dos O ensinamento dos mestres não


mestres vale a atenção

Vida regrada, distinta Vida desordenada, violenta, torpe

Espera uma vida post mortem Deseja uma vida de prazeres


(celeste) pessoais na terra

Amado de nṯr Odiado de nṯr

Fonte: Produção nossa


151

Diagrama 06 – Mesopotâmia: arquétipo contextual ateísta não helênico

Com ilu Sem ilu

Recebe ilu como força protetora Recebe ilu como força protetora
ao nascer ao nascer

Fortalece o afeto com oferenda,


Ignora, desvaloriza, não cultua
culto, conversas

Protegido do mau; é próspero, Torna-se mau; é malogrado,


fértil pobre

Vida justa, em retidão Vida insana, violenta, torpe

Saudável, vida longa Doente, atormentado

Filho/Servo de ilu Desprezado de ilu

Fonte: Produção nossa


152

Diagrama 07 – Israel-Judá: arquétipo contextual ateísta não helênico

• Sábio, inteligente, busca ’eloḥiym


• Ajuda, ama, honra, tem boas ações
Com • Cuida do pobre, é próspero
’eloḥiym

• Estúpido, imprudente, não busca ’eloḥiym


• Prejudica, odeia, faz calúnia, não tem boas ações
Sem • Envergonha o pobre, é imoral
’eloḥiym

•Os celestiais não são criadores, são criaturas


•Os celestiais servem aos seres terrenos
Sem
ilānu; •Os celestiais são desprovidos de nomes sociorrituais afetivos
sem •Yḥwh não refere a nenhum ser terreno ou ser celestial
nṯrw •Yḥwh autoexistido que não está em lugar algum e em todos os lugares
Com simultaneamente
Yḥwh

Fonte: Produção nossa

4.5 Aspectos gerais sobre o Ateísmo como tema para Antiguidade

Da abordagem do tema das cosmogonias, entramos no trato do sentido moral que, como
investigamos, se mostrou inerente à relação dos indivíduos com os seus celestiais, ou seja, com
o significado simbólico e afetivo que reside em seus nomes. Tanto quanto constatou-se a
existência de caracterizações que separam um devoto de um suposto não devoto. As sociedades
em análise foram as mesmas do capítulo II, excetuando os helenos, devido a particularidade e
a complexidade desse estudo, não vislumbrado para este trabalho. Aqui, trouxemos à mesa mais
alguns conceitos interessantes à problemática do Ateísmo como tema ao mundo antigo:
pessimismo, com Nietzsche (1996); erro trágico, com Lesky, Vernant e Vidal-Naquet (1999),
e Pulquério; ceticismo, com Verdan e Bicca; ideal asceta, com Nietzsche (1999; 2003); sobre o
artista, com Nietzsche (2007). Com relação ao “erro trágico”, destacamos um excerto da peça
Agamêmnon de Ésquilo. Para os egípcios, destacamos os seguintes textos: Ensinamentos de
153

Ptah-hotep (tipo moralizador e exortador), Reflexões de um desesperado (tipo pessimista e


angustiado) e o Canto de um harpista (tipo irônico e crítico). Para os mesopotâmicos,
selecionamos: A poesia do justo sofredor (tipo angustiado e indignado) e A teodiceia babilônia
(tipo indignado e crítico). Para os israelitas e judaítas, elegemos o Salmo 14 e por analogia o
Salmo 53 (tipo indignado e exortador), além de menção ao Salmo 10 (tipo angustiado e
indignado). Trabalhamos com os comentários de Torrano, Vernant e Vidal-Naquet (1999) e
Pulquério sobre “tragédia” em Ésquilo; Araújo e Lichtheim (1973; 1976) sobre Egito Antigo;
Maspero, sobre Egito e sobre Mesopotâmia; Foster (1996a; 1996b; 2005; 2007), sobre
Mesopotâmia; Rodd, e Sellin e Fohrer, sobre Israel e Judá.
De todas essas observações, concluímos que os poetas, os artistas eram indivíduos que
traziam aos seus ouvintes os mais diversos temas pertinentes ou não à sua sociedade e no que
diz respeito ao aspecto normativo, que geralmente se fundamentava em nomes especiais
sociorrituais para exercer a ordem, foram capazes de, com “lucidez”434, colocar tal ordem em
desconfiança, por meio de obras que fomentavam: a angústia diante de um mundo distópico,
diante da incerteza da vida após a morte, da injustiça aos justos, do desprezo ao pobre, da
valorização do rico, do desprezo da moral, da inversão de valores, da realidade imprevisível, da
vontade de se deixar levar pelos prazeres e pelos desejos versus uma suposta vontade celestial,
do afastamento do divino da sociedade, de um grupo, ou de um indivíduo; da mesma forma que
os moralistas exaltavam os bons costumes, os ensinamentos dos antepassados, dos mestres e da
vida regrada, da busca pelo equilíbrio, do caminho correto para ser um poderoso, um excelso,
tornar-se como um celeste, ou como um ser amado destes.
Os moralistas também estabeleceram o lado inverso, ou seja, daqueles que ou nasceram
sem a benção divina ou desprezaram-na durante a vida, cujas ações eram socialmente
identificadas: violentos, desrespeitosos, insanos, torpes, além de atormentados por espíritos
malignos, demonstrando para sociedade que tal individuo seria um exemplo vivo de alguém em
estado “moralmente condenável” ou “péssimo”.435 Além disso, consideramos um fator literário

434
O que estamos chamando de “lucidez” aqui seria a porta documental que alguns desses artistas nos
proporcionaram para lidar, milênios depois, com um tema de interesse atual, que, embora repleto de nomes
sociorrituais afetivos, revela o ser humano e seus conhecidos limites linguísticos, físicos e intelectuais, nesse
passado, através do caráter crítico dos versos poéticos, pela indignação, pela ironia ou sarcasmo, também angústia
diante de inconsistências argumentativas geralmente da ordem sociopolítica e da moralidade de suas épocas.
435
Consideramos esse tema literário e poético, que canta sobre a desordem da lógica “tradicional” (esta que
resumimos nos Diagramas 05, 06, e 07), como fundamentais para compreendermos o que pode vir a ser um indício
do paradigma da questão ateísta na sociedade helênica. Com isso, poderíamos investigar e quiçá evidenciar alguma
lógica geral que entrelaça a visão sobre indivíduos “moralmente condenáveis”, entre egípcios, mesopotâmicos e
israelitas, com aquilo que os sentidos de ateísta tenham se tornado no mundo de língua grega e latina (somente
pejorativos, por exemplo?). Este é um elemento para ser aprofundado em uma nova pesquisa, principalmente pelo
fato de, nesta, termos explorado uma gama reduzida de fontes. Será que tais fontes têm todo esse poder de
154

israelo-judaíta, que nos parece outro ponto que devemos atentar, neste estudo. Trata-se de um
fator que retira dos celestiais o protagonismo da criação ou do estabelecimento da ordem no
cosmo, dando-o para um nome sem referencial visual ou imagético algum no mundo.436
A abordagem do capítulo I abriu o leque de possibilidades de estudo que trouxemos ao
capítulo III. No primeiro capítulo elaboramos um estudo etimológico com base nas hipóteses
dos estudiosos da etimologia do grego e do protoindo-europeu e com isso promovemos uma
definição, para já especularmos as possibilidades que poderiam ser abstraídas da própria palavra
e assim pensarmos a sua investigação na Antiguidade, além de uma proposta de tradução
simbólica para θεός/deus, principalmente, para explorarmos as possíveis significações dos
nomes de inserção tribal especiais que tais sociedades investiram no âmbito sociopolítico e
sociorritual, nomes que incidiam sobre seus afetos. Da mesma forma, neste capítulo,
especulamos paradigmas conceituais que pudessem caracterizar possíveis casos de indivíduos
descritos como “sem celestial”, “sem poderoso”, “sem benção”, “sem sorte”, “sem fortuna”,
“sem sabedoria”, “sem inteligência”, ou, mais especificamente, por exemplo: “sem θεός”, “sem
δαίμων” (gregos); “sem deus”, “sem numen” (latinos); “sem nṯr”, “sem nṯrt”, “sem Rá”, “sem
r‘yt”437 (egípcios); “sem ilu”, “sem ištar” (mesopotâmicos); “sem ’eloḥiym”, “sem Yḥwh”
(israelitas); geralmente presentes em poesias, em cantos, ou seja, na atividade artística, sendo
que, no geral, não pudemos afirmar que se trataram de casos diretamente “ateístas”, mas sim de
potenciais ocorrências para serem investigadas – referente à problemática trazida por
D’Assunção Barros entre Lucien Febvre e Jean Wirth, por exemplo.
Dividiremos algumas considerações em quatro pontos: 1) ficou claro que a poesia
irônica ou sarcástica não simbolizaria necessariamente a opinião do artista – afinal sua obra
poderia ser uma encomenda. Isso também não significaria que o artista ou o seu cliente eram
“ateus”, “pessimistas” ou “desconfiados”. Não saberemos de suas motivações. Só podemos,
como analistas, colocar tais materiais de pesquisa no patamar de boas documentações sobre

“generalização”, como deixamos explícito neste trabalho? De fato, não saberemos a realidade dessas sociedades.
Tais generalizações fundamentadas em poucas fontes, refletem o nosso acesso limitado a tais fontes, seja porque
não chegaram até nós, não sobreviveram ao tempo, estão em uma língua que ainda encontramos dificuldade para
trabalho, ou mesmo são documentos que não estão disponibilizados na Internet para consulta. No geral, tais
generalizações propostas aqui demonstram que há, no mínimo, uma lógica que deve ser levada em conta entre
essas sociedades exploradas, uma lógica que dialoga com a atitude da norma diante dos indivíduos que, no seu
entender, estão “sem θεός”, abandonaram θεός, desdenharam θεός ou foram desprezados ou abandonados por θεός,
ou seja, desprezados da norma, da tradição social entorno da lógica do bem e do justo de suas cidades. Normas ou
tradições que foram associadas aos nomes sociorrituais dos celestiais, nomes de caráter afetivo, que mexem com
os ânimos daqueles que os ouvem ou neles creem como verdades, como efetivos, em suas realidades.
436
Cujas abstrações poéticas e literárias caracterizam-no de forma antropomórfica.
437
“Rayt”, princípio feminino do Sol (Rá).
155

certa lucidez crítica diante de questões de ordem sociopolítica, bem como de ordem sociorritual.
Elas foram apresentadas com um conteúdo questionador, que coloca certezas contra a parede,
que demonstra indignação diante de lógicas normativas, principalmente no quesito sobrenatural
e de sua relação com o natural – visível versus invisível, práxis versus mito ou logos, pragmático
versus contemplativo, desejo versus moral, sensação versus seu(s) significado(s). Também o
contato com seu conteúdo demonstra que as suas sociedades, em certos momentos, admitiram
sua existência e provável divulgação.
2) os materiais cujo tom foi moralista seguem a mesma lógica da anterior, ou seja, não
sabemos se o artista canta sua crença ou exibe uma encomenda (ou ambas, ou nenhuma). Dessa
forma, seja um ensinamento, uma declaração deprimente que clama por presta solução ou
salvação, ou uma exortação, não poderemos afirmar que se tratou de uma opinião própria ou de
um pedido de um cliente. No entanto, elas evidenciam duas lógicas: a) os seres superiores (reis
ou celestiais) interferem na vida humana (subordinados do rei e ascetas) proporcionando ao fiel
alegria, prosperidade e tranquilidade e ao desordeiro punição, pobreza e morte; b) explicam as
ações violentas, criminosas, os linguajares torpes, o mau comportamento público e privado de
certos indivíduos por meio da acusação de que não possuem em si mesmos os desígnios
superiores, ou seja, ou nasceram sem essa benção ou foram desprezados pelos sublimes durante
sua vida, levando-os ao colapso mental, à pobreza, ao crime.
3) os excertos mais lúcidos demonstraram que a lógica apresentada no parágrafo anterior
poderia ser arruinada, no momento em que um indivíduo que se diz fiel (ao rei e ao culto celeste,
por exemplo) passa por dificuldades financeiras, doenças, acusações de crime e é desdenhado
socialmente, sendo injuriado através de assertivas como “desprovido de celeste” ou
“abandonado dos poderosos”. Os poemas expunham uma grande interrogação em suas cabeças
(ou também nas nossas), afinal, o que desejam os poderosos celestiais? É ou não é a justiça a
recompensa dos justos? Seria a injustiça uma vontade dos sublimes, mesmo aos fiéis? Por qual
motivo os ricos e afortunados tendem a fazer o que bem entendem, inclusive maldades aos
pobres? Como então se tornaram ricos? São todos os ricos assim? Pobres (ou aqueles que
perderam as suas posses) que não compreendem a sua condição social, afinal, argumentam que
são fieis, que frequentam os rituais de oferenda, que conversam com sua força protetora
invisível, e mesmo assim caem ou se encontram em desgraça. O mundo é cantado distópico,
sem solução evidente, os maus dominam (são os governantes), desrespeitam os bons costumes,
ofendem os desprovidos de sorte (os pobres), incriminam-nos como ladrões; a maioria das
pessoas se adequam a esse mundo, são maus amigos, valorizam a inversão de valores antigos
legados pelos sábios ancestrais, desrespeitam os pais. Todos são temas cantados em versos por
156

artistas, poetas cujos contextos pessoais são praticamente desconhecidos, excetuando as raras
exceções, onde as hipóteses são mais consensuais (como no caso de Ptah-hotep, Šubši-mešrē-
Šakkan, David e Ésquilo), e nas hipóteses baseadas nas datações dos materiais que conjecturam
sobre seus contextos gerais (sociopolíticos, econômicos, etc.) – e muitos desses
questionamentos são nossos, para nossa problemática.
4) o caso dos termos “poderosos” (’eloḥiym) e “Aquele-que-É” (Yḥwh) no contexto
literário mitológico israelo-judaíta, que identificamos como prováveis arquétipos de “ateísmo”,
no sentido estrito de culto ao céu e de suas personificações. Podemos dizer que custou aos
exortadores de Israel (‫יאים‬
ִׁ ‫נְּ ִׁב‬, neviy’iym, “inspirados”, profetas) a fixação dessa, diríamos,
estranha ideia sobre cosmogonia e moral baseada em regras entregues por uma entidade cujo
nome sociorritual não teria ponto de referência no seu mundo conhecido – mesmo dentro de
seu templo, em Jerusalém. Mas é importante levar em consideração que na cultura
mesopotâmica já havia uma lógica bastante difundida, pelo menos desde o século XX-XV
A.E.C., onde cada indivíduo receberia uma força invisível particular de proteção, que deveria
ser respeitada, cultuada e que deveria se dirigir a ela como se dirige a um amigo visível. Com
o passar dos anos, essa força poderia ser tanto contatada por um nome genérico (ilu), quanto
por Marduk. Esse assunto merece atenção especial, que não traremos para este trabalho, mas
que pode ser conferido nos estudos de Maspero (2010) e de Terra (2015).

4.5.1 Problemática do conceito

Começamos este trabalho com a definição lexical de um dicionário não especializado,


ou seja, que não foi feito para lidar com o tema em um recorte mais afastado, mas com um
conjunto de termos que, juntos, passariam para nós, contemporâneos, a ideia geral do que se
trata o termo português “ateu”: “1. que ou o que não crê em Deus ou nos deuses; ateísta | 2. que
ou aquele que não revela respeito ou deferência para com as crenças religiosas alheias; ímpio,
herege”.438 No Dicionário de conceitos históricos temos:

Os ateus são aqueles que rejeitam a existência de divindades, sendo que alguns
estudiosos defendem mesmo a existência de religiões ateias, que não
consideram a existência de divindades. Exemplos seriam o Budismo, o
Confucionismo, o Taoísmo, além da já mencionada religião tupi-guarani.
O agnosticismo, por sua vez, nega tanto o deísmo como o ateísmo, pois
não considera que seja possível discutir e muito menos resolver a questão da
existência ou não de poderes superiores. O agnosticismo se recusa a discutir a

438
Dicionário Houaiss, s. u.
157

existência da religião como característica intrínseca à humanidade, assim


como a possibilidade da existência de divindades. Para ele, na verdade, assim
como é impossível provar a existência de Deus, é igualmente impossível
provar Sua inexistência. Para os agnósticos, a discussão em torno da existência
de divindades é, no mínimo, fútil e inútil, pois jamais vamos poder chegar a
um resultado. Mas ateísmo e agnosticismo são conceitos complexos e muitas
vezes pouco definidos. É comum, inclusive, a definição de agnóstico como
aquele que não pertence a nenhuma religião, mas crê na existência de alguma
entidade sobrenatural. Esses seriam os deístas. Sinteticamente, é possível
afirmar, de forma simplista, que o ateu não acredita em deuses e o agnóstico
enfatiza a dúvida.439

Por sua vez, dicionários especializados para a língua latina e para a língua grega
demonstram ora semelhanças, ora nuances ao termo em questão. No A Latin Dictionary I, de
Lewis e Short, destaca-se sua origem grega e refere a alguém que não acredita nos seres
divinos440; no Diccionario Latino-Español, de Fraile, enfatiza a imagem de alguém que não crê
na existência dos seres divinos441; no seu Diccionario Español-Latino, traz a acepção de
negação e rejeição da questão divina442; no Novissimo Diccionario Latino-Portuguez, de
Francisco Saraiva, segue a acepção “que não crê na existência dos deuses”443; no Dicionário
Português-Latino, de Torrinha, acompanha “que não crê em” e “negador de”, também
associado aos adjetivos “descrente” e “ímpio”444. No caso grego, o Dicionário Grego-
Português, de Rudolf Bölting, indica “quê não crê em Deus”, além de “sem Deus”, “ímpio” e
“malvado”445; no Diccionario manual Griego Clásico-Español, de Pabón, fortalece a acepção
de negador dos deuses, de abandonado pelos deuses e também a associação com os termos
“malvado”, “infame”, “ímpio” e “desgraçado”446; no A Greek-English Lexicon, de Liddel e
Scott, designa como “sem Deus”, “negador dos deuses reconhecidos pela cidade”, “ímpio”,

439
SILVA, K; SILVA, M., 2009, p. 355.
440
LEWIS; SHORT, 1955, p. 188.
441
FRAILE, 1946, p. 232.
442
FRAILE, 1966, p. 169.
443
SARAIVA, 1881, p. 119.
444
TORRINHA, 1939, p. 144.
445
BÖLTING, 1953, p. 15.
446
PABÓN, 1967, p. 12.
158

“sacrílego”, “terrível”, além de “abandonado dos deuses” e “não procedente de Deus” 447; no
Lexicon to Pindar, de Slater, enfatiza o sentido “ímpio”448.449
Em complementação aos sentidos que mostramos dos dicionários, ainda
mencionaríamos o verbete, no Léxico das religiões: “[...] se designa com o termo o estado de
loucura como abandono de Deus, estando assim estabelecida a estreita conexão com o mundo
grego dos deuses e dos mitos”.450 De acordo com o Léxico das religiões, para os gregos,
indivíduos tidos como insanos, loucos ou dementes assim ficaram por terem abandonado θεός
ou terem sido deixados por ele. Acrescentaríamos aqui a explanação do filólogo dinamarquês
Anders Drachmann (1860-1935):

No grego eles diziam atheos e atheotes; [...]. Exatamente como em ímpio,


atheos foi usado como uma expressão de severa censura e condenação moral;
[...] mas se pode dificilmente ser posto em dúvida que atheos, [...] implica não
apenas uma negação dos deuses de culto popular, mas uma negação de deuses
num sentido mais amplo da palavra [...]. Na lei criminal de Atenas nós
encontramos o termo asebeia – literalmente: impiedade ou desrespeito aos
deuses.451

Se partimos de nossa definição proposta no capítulo I452, onde desconsideramos


acepções metafóricas ou contextuais, veremos que o vocábulo tem seu sentido expandido pelo
uso dos falantes de grego. Mas, ainda não tomando ciência dessa amplitude vocabular helênica,
com seus sinônimos, como o termo ἀσέβεια (“impiedade”, “malevolência”, “ruindade”,
“sacrilégio”), direcionamos nossos olhares pesquisadores para uma época em que as sociedades

447
LIDDEL; SCOTT, 1889, p. 29.
448
SLATER, 1969, p. 14.
449
Além dos termos atheus (latim) e ἄθεος, a língua grega antiga ainda nos oferece os termos ἀθεότης e ἀθεεί.
Particularmente, esta segunda opção, trata-se de um advérbio homérico (século VIII-VII A.E.C.) presente na
Odisseia, canto 18, verso 353, sendo, provavelmente, uma interessante evidência de uma expressão sintética e não
analítica para mentalizar uma situação “sem θεός” (cf. BÖLTING, 1953). Neste caso, vem acompanhado de uma
negação: “[...] οὐκ ἀθεεὶ [...]”, isto é, “Não sem θεός”, que geralmente é interpretado por “Não sem a ajuda ou
auxílio de θεός” (cf. LIDDEL; SCOTT, 1889, s. u.; PABÓN, 1967, s. u.; CHANTRAINE, Grammaire Homérique
I, 1948, p. 249). Para a relevância da expressão ao estudo do tema na Grécia cf. WHITMARSH, 2015, p. 260, nota
3. Veja que, nesse caso homérico, o termo não possui conotação pejorativa, mas um sentido literal.
WALDENFELS, 1995, p. 46. Original em alemão: “Lexikon der Religionen”, de 1987, editado por Hans
450

Waldenfels (1931-) renomado teólogo jesuíta alemão; obra traduzida por Luis Sander et al.
451
DRACHMANN, 1922, p. 5-6, grifos do autor. “In Greek they said atheos and atheotes; […] In exactly the
same way as ungodly, atheos was used as an expression of severe censure and moral condemnation; […] but it
can hardly be doubted the atheos, […] implied not only a denial of the gods of popular belief, but a denial of gods
in the widest sense of the word […]. In the criminal law of Athens we meet with the term asebeia – literally: impiety
or disrespect towards the gods.”.
Que nem é contra nem a favor de θεός, que sente estranheza diante de θεός, pois não o conhece, ou desconsidera
452

que θεός existe, que não foi permitido que o conhecesse, ou, desproveu-se de θεός, privou-se de θεός.
159

egípcia, mesopotâmica e israelita estabeleciam suas significações de mundo e existência,


determinando o local daquele que é amado dos seres excelsos e daquele que foi abandonado
por estes. Como não encontramos em tais sociedades um termo sintético que correspondesse ao
grego, tivemos que optar por um estudo que partisse da onomasiologia do termo grego, ou seja,
partir dos seus significados para assim convertê-los em indícios de estudo e investigação. Com
isso, tivemos que atentar para situações que, de alguma forma, na documentação escolhida,
dialogassem com a ideia etimológica de “sem θεός”, “negação de θεός”, “afastado de θεός”,
“descrédito de θεός”, “privado de θεός”.
Com a indicação dos teóricos que utilizamos neste capítulo III, selecionamos uma
documentação exemplar para este trabalho com o Ateísmo como tema aos estudos na
Antiguidade. Dessa forma, percebemos que o campo semântico da situação tendeu à correlação
díspar entre um lado moralmente aceitável e outro condenável, diante dos sistemas
administrativos desses grupos ou de seus crentes/ascetas. Nessa questão, os nomes sociorrituais
afetivos celestiais tiveram um papel imprescindível para a contínua formalização do que seria
ou não aceito na ética ou na moralidade dessas sociedades. Isso também nos pareceu evidente
nas significações do vocábulo grego, mencionados anteriormente – mostrando que essa lógica
não seria estranha aos mantenedores da ordem no âmbito helênico. Nesse sentido, segundo o
filósofo francês Michel Onfray (1959-), “[...] ateísmo provém de uma criação verbal de
deícolas. A palavra não se desprende de uma decisão voluntária e soberana de uma pessoa que
se define com esse termo na história.”.453
Nesse recorte contextual que pretendemos aqui, o indivíduo ou grupo “ateu” fora sempre
acusado de existir socialmente e sua existência descrita como péssima e ignóbil para a ordem
dita do “bem”, isto é, a ordem do “divino”. Vimos que esse dito “divino” ou “excelso” não só
se limitava à semântica afetiva sociopolítica e ritual por traz dos nomes de inserção tribal dos
corpos celestes e forças da natureza, muitas vezes de caráter personificador, seja na poesia, na
cosmogonia ou no mito, mas também fora acionado como qualidade humana, principalmente
de um líder, um chefe, um rei, um juiz, um sábio, fora como sinônimo de seu poder e autoridade,
fora também como um epíteto seu.454 O mais próximo daquilo que chamaríamos de
subjetividade ou autonomia em definir-se “ateu”, foram os trabalhos de tipo irônico ou

453
ONFRAY, Tratado de Ateología, 2006, p. 42. “[...] ateísmo proviene de una creación verbal de deícolas. La
palabra no se desprende de una decisión voluntaria y soberana de una persona que se define con ese término en
la historia.”.
454
Decerto que não discutimos a fundo a ordem dessas aplicações, por exemplo: se nṯr caracterizaria
primeiramente os reis, ou algum nome de personificação celeste, para Rá, o Sol-ao-Meio-Dia, e.g., pelo qual
posteriormente os reis tenham se apropriado.
160

sarcástico, que geralmente evocava um tipo de “carpe diem” ou “aproveite o dia”, como
dizemos hoje, ironizando a vida asceta regrada e celebrando os desejos próprios. Contudo, não
seria de forma alguma interessante procurar por identidade “ateísta” nesse recorte, seja esta
dada (como uma acusação ou apelidação) ou assumida, uma vez que não existiam termos,
aparentemente, para situar socialmente alguém do modo como veremos surgir, pelo menos, no
mundo helênico – este que exerceu mais influência nos latinos e, por fim, na língua portuguesa,
do que a sânscrita ou a avéstica, por exemplo. Todavia, é inegável o fato de que houve sim
indivíduos ou grupos que inspiravam em outras pessoas a ideia de que fosse possível cogitar a
“ausência” divina ou o seu “afastamento”, principalmente se levarmos em conta que geralmente
um rei ou um sábio eram as personificações de valores como o bem, a justiça e o destino, tudo
compreendido sob uma semântica dita celestial, divina, e com isso, tal grupo ou indivíduo seria
capaz de levantar suspeitas negativas diante de uma determinada ordem tradicional,
fundamentada nos valores morais de seus sábios, e de seus reis antigos e contemporâneos.
Mesmo que tal situação de “ausência” não fora nomeada nesse recorte contextual, ficou
claro para nós que outros léxicos foram acionados pelo “moralista” para descrevê-la, para
evocá-la ao ouvinte. Dessa forma, foi possível identificar a amplitude do Ateísmo como tema,
mesmo que essas sociedades não tenham caracterizado um termo para explorarmos o seu
conceito. Mas, ao observarmos as definições que formam a compreensão de ἄθεος na
Antiguidade, ainda não ficaria suficientemente claro o motivo de os judeus terem sido acusados
de ateístas, segundo coletou Flavio Josefo. Não exploramos essa particular observação.
Contudo, ao levarmos o tema aos israelitas/judaítas, notamos aí já a complexidade da questão,
pois, não só identificamos a crítica do salmista, por exemplo, ao acusar alguém ou um grupo de
estupidez e ignorância por dizer que “não existe ’eloḥiym”, mas também, pela sua cosmogonia,
onde os seres criadores tradicionais das mitologias de sua época foram descaracterizados de sua
semântica sociorritual afetiva e tratados ali com nomes comuns, como criaturas e não criadores,
onde nenhum deles passou à existência por si sós, mas foram criados e verbalizados à existência
por um nome que provavelmente evocara a ideia de coletivo de todas as forças criadoras.
Durante a experiência das tribos de Israel na história, principalmente após as reformas
judaítas pelo rei Josias, tais forças, ou ’eloḥiym, foram associadas ao nome sociorritual afetivo
Yḥwh, que, por sua aproximação etimológica hipotética do verbo semítico “tornar-se” (‫ )הוה‬e,
por analogia, também de “tornar-se”, “vir a existir”, “ser”, “haver”, “ter”, “ocorrer” (‫)היה‬,
traduzimo-lo por “Aquele-que-É”, aparentemente um nome pensado sem referência ao âmbito
celestial. Sendo os nomes deus, Zeus, Júpiter, quiçá θεός, além de ilu ou ištar, por exemplo,
vinculados ao respeito e à devoção ao “mundo celestial”, tal nome de personificação israelo-
161

judaíta não estaria destoante para com essa lógica, caso seja essa uma hipótese de tradução
viável? Sua personificação pode até investigar os seres humanos das alturas do céu, como
vimos, mas supostamente não referiria a um ser celestial, ou a uma força da natureza ou até
mesmo a um epíteto de reis ou sábios.455 Eis um termo que precisa de mais problematização na
Antiguidade.
Em um apanhado “conceitual” geral, poderemos dizer que antes da cunhagem do termo
no mundo helênico, haveria todo um campo semântico mais antigo que não se fixara em
fronteiras culturais, para expor socialmente aquele individuo ou grupo que não era visto em
acordo com a moralidade ou com os costumes tradicionais, sendo que tais costumes e tradições
foram fortemente estabelecidos sob uma dada autoridade aos nomes de personificação
sociorrituais de seres animados e inanimados à vista do homem. Se cogitara, assim, que a
ausência ou o afastamento desses nomes especiais ou de suas personificações (como um rei,
por exemplo) traria aos homens uma condição moral repudiável, de ignorância diante do bem
e do justo. Se cogitaria também que pessoas pobres, de linguajar torpe, violentas,
representariam, à vista da ordem e da tradição, um resultado do desdém dos excelsos para com
um ser humano. Além disso, o não nativo da região (o estrangeiro) também poderia ser visto
como alguém a quem os poderosos não guarda – quiçá um tipo antigo de manifestação de
identidade com a própria terra de nascimento. Por outro lado, haveria também a formação de
uma outra lógica semântica em parelha com as anteriores, evidenciada na ironia entorno de
valores morais e de tradições, que fomentara a busca pelos desejos e prazeres que agradem ao
homem em si (sendo que, aparentemente, esses não se encontrariam nas ordenanças regradas
ou ascetas que dizem reprimir a “real” vontade do ser), e outrossim, a própria ideia de que as
divindades tradicionais nada mais são do que representações de criaturas não criadoras,
geralmente astros, forças da natureza, animais e seres humanos.456 É certo, como vimos nos
dicionários, que todo esse complexo pensamento antigo tenha sido manifesto no mundo
helênico pelo conhecimento expresso através da palavra ἄθεος (e toda sua sinonímia e
antonímia), em seu uso no âmbito artístico, filosófico, administrativo.457

455
Essa lógica também procede, com as devidas ressalvas, para com os nomes dos antigos titãs aos gregos.
456
“Sem dúvida, existem também estruturas que são tão duradouras que permanecem guardadas no inconsciente
ou na não-consciência daqueles que a viveram, ou cujas alterações se dão a tão longo prazo que escapam ao
conhecimento empírico dos atingidos. Aqui, somente a sociologia ou a história como ciência do passado podem
dar notícia que conduza para além dos campos de experiência das gerações contemporâneas de então”
(KOSELLECK, 2006, p. 137).
457
Para essa abordagem no âmbito jurídico em Atenas cf. WHITMARSH, 2015, p. 115-137. Além disso cf. LEÃO,
Delfim. Matéria Religiosa: processos de Impiedade (Asebeia). In: LEÃO, D.; ROSSETTI, L.; FIALHO, M.
162

5 CONCLUSÃO

Ao final de cada um dos três capítulos, inserimos tópicos que funcionaram como
primeiras conclusões ou considerações para cada um desses, respectivamente. Esta conclusão
será menos detalhada do que essas primeiras. Nem tudo aquilo que discutimos nessas primeiras
conclusões, será reapresentado aqui. Seu objetivo será condensar o que trouxemos ao leitor ao
longo deste trabalho, além de retomar objetivos apresentados em nossa introdução. Todavia,
não sabemos se de fato é possível concluir algo após todas as questões e generalizações que
levantamos. Mas, de toda forma, apresentaremos aquilo que acreditamos fechar nossas ideias,
para cada capítulo deste trabalho.
No primeiro capítulo, tivemos por objetivo maior a investigação etimológica da palavra
grega ἄθεος. Como demonstramos, tal vocábulo corresponde ao étimo mais remoto da palavra
portuguesa “ateu”. Cientes disso, objetivamos investigar sua composição para, em seguida,
adentrarmos nas suas significações etimológicas instanciadas, ou seja, identificar a significação
mais simples ou menos metafórica possível. Tendo explorado essa problemática etimológica,
promovemos uma introdução à importância dos termos gregos θεός e Ζεύς para a comunidade
helênica. Após, lançamos uma primeira definição para ἄθεος e θεός. Com isso, objetivamos
não só destacar o sentido um tanto artificial oriundo da etimologia, mas desde já apresentar ao
leitor a complexidade dos referidos termos imersos no mundo do falante.
Nossas principais fontes para o trabalho com etimologia foram os termos selecionados
dos dicionários etimológicos protoindo-europeu, proto-germânico, indo-europeu e indo-
iraniano. Como insistimos, durante essa fase analítica, a busca pela significação mais simples
ou menos metafórica passou pelas línguas artificiais desses povos pré-históricos, ou ágrafos. A
arqueologia é imprescindível para o avanço dessas pesquisas. Na segunda etapa, após o trato
etimológico, remetemos a certos termos que dialogassem com o vocábulo θεός. Para diálogo
bibliográfico, utilizamos o dicionário de grego clássico de José Pabón, de 1967, e como fonte
um trecho da Constituição dos Atenienses, de Aristóteles (século IV A.E.C.). Com relação ao
nome Ζεύς, utilizamos um excerto do Crátilo, de Platão (século IV A.E.C.).
Como teoria, lidamos primeiramente com a questão etimológica, cuja importância é
atestada por Koselleck, na sua teoria e metodologia da História dos Conceitos (de 1979). A
definição teórica e metodológica ficou por conta da combinação que promovemos entre os

Nomos: Direito e sociedade na Antiguidade Clássica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2004. p.
201-226.
163

linguistas Mattoso Camara Jr. (de 1956), Mário Viaro (de 2011) e Michael Clarke (de 2010).
Após o trato com a etimologia, partimos para a teoria explorada por Knapp (de 1988) e
Whitehouse (de 2002), apresentada por Karen Johnson (2004), sobre a lógica sociopolítica das
crenças antigas. Por ser uma teoria “ateísta”, ou seja, que responsabiliza os seres humanos por
suas ações no tempo, aproveitamos sua lúcida leitura de mundo principalmente para introduzir
o leitor nesse aspecto que geralmente é tratado como religião, e nem tanto por lógicas de poder.
Como metodologia etimológica, utilizamos os três referidos linguistas.
Respectivamente, essa junção metodológica nos ajudou a identificar, primeiro, quais os étimos
próximos e remotos da palavra “ateu”. Em seguida, tendo o étimo mais remoto em mãos,
analisamos os constituintes que o compõem. Tendo proposto a primeira definição, “sem θεός”,
“privado de θεός”, partimos para a instanciação do segundo elemento, θεός, para assim
identificarmos sua hipótese de sentido mais simples, pré-histórica. Consideramos aí a
dificuldade do trabalho com as hipóteses etimológicas. Assim, por meio da associação com seu
provável parente dialetal Ζεύς, e com os latinos Iuppiter e deus, prováveis equivalências na
família linguística, supomos para θεός a associação pré-histórica com o “brilho solar” em um
céu limpo. Tal associação é tida como mais verossímil entre Ζεύς, Iuppiter e deus, mas nem
tanto para θεός. Todavia, seguimos ainda assim com essa relação proposta, pois, de qualquer
forma, o nosso “ateu” também dialoga com o latino deus, não apenas com o grego θεός.
Se a teoria e o método da História dos Conceitos de Koselleck admite a influência da
análise dos termos, da gramática, da filologia, da semasiologia ou da onomasiologia,
consideramos então a validade de nosso primeiro capítulo. O estudo etimológico, mesmo que
quase inteiramente hipotético e repleto de demasiadas suposições, devido ao grande recuo no
tempo, mantém o pesquisador alerta em relação à distinção entre o termo antigo e o seu
correlacionado moderno, em uso corrente. Assim, consideramos o estudo etimológico o
primeiro passo dado aqui, para mostrar ao leitor a diferença entre o nosso uso do termo “ateu”
e a complexidade conceitual que incorre sobre ele desde os tempos mais remotos. Para nós, fora
a primeira etapa de desnaturalização da palavra, principalmente do termo “deus”, naturalmente
aceito no senso comum.
Por sua vez, o principal objetivo de nosso segundo capítulo foi a ampliação do aspecto
teórico iniciado no capítulo anterior, com a lógica sociopolítica das crenças antigas. Para isso,
apresentamos mais algumas questões referentes à problemática da investigação do termo “deus”
e do termo “ateu”. Aqui, mostramos como “deus” ainda precisa ser mais problematizado, pois,
tendemos a considerar “deus” muitas coisas no passado, da mesma forma que fazemos no
presente. Objetivamos também a apresentação teórica inicial do trabalho com o Ateísmo como
164

tema. Com isso, foi possível delimitar aquilo que nos interessou de fato, isto é, a investigação
do ateísmo como problemática ao passado, principalmente entre povos que aparentemente não
possuíam um termo equivalente ao grego ἄθεος: egípcios antigos, mesopotâmicos e israelitas,
grupos que conviveram em contextos relativamente próximos dos indo-europeus.
Como diálogo bibliográfico, o Dicionário Houaiss foi inicialmente relevante, pois,
através dele coletamos sentidos para “ateu” e “deus” que podemos atualmente utilizar,
cotidianamente. Retomamos o cronista Gândavo (de 1576) e o linguista Everett (2009), para
notarmos a distinção cultural entre tribos indígenas e as concepções cristãs de mundo, com
especial ênfase ao aspecto das línguas. Após, para o trabalho com os egípcios antigos,
utilizamos como fonte o excerto adaptado por Mackenzie (1913), sobre o Surgimento de Rá
(produções entre os séculos XX-XII A.E.C.). Com relação aos mesopotâmicos, utilizamos os
primeiros versos do Enūma Eliš (compilação do século VII A.E.C.). Para os israelitas e judaítas,
os primeiros versículos do livro de Gênesis (originados supostamente entre os séculos IX-VI
A.E.C.). Para o trabalho com a cosmogonia tradicional helênica, utilizamos a Teogonia, de
Hesíodo (séculos VIII-VII A.E.C.). Essas cosmogonias nos ajudaram a perceber a importância
daquilo que chamamos de nomes sociorrituais de inserção tribal, nomes forjados para mexerem
com os afetos daqueles que os ouvem.
No segundo capítulo trouxemos diversas teorias, mas aquelas que nos foram mais
relevantes trabalharam com a questão do mito, da identidade e alteridade. Primeiramente, a
problemática da identidade “ateísta”. Em seguida, a possibilidade teórica de se investigar a
temática em uma época cujos falantes não conheciam o termo. Para tanto, trabalhamos
principalmente com Lucien Febvre (obra sobre Rabelais, de 1942), e Jean Wirth (1977),
apresentados por D’Assunção Barros (2016). Para um outro aspecto da questão identidade e
alteridade, principalmente no trato com o conteúdo de uma fonte literária antiga, trabalhamos
com Nuno Simões Rodrigues (2005). Nesse momento do capítulo, exploramos as fontes já
referidas no parágrafo anterior. A ideia então elaborada foi a teoria dos níveis ou camadas de
imagem inconsciente, semiconsciente e consciente (aqui, relacionamos com a retórica da
alteridade, de 1980, de Hartog), que um povo pode absorver, reler ou reaproveitar de um outro.
Da teoria dos mitos que apresentamos, nesta ocasião, destacamos Rocha (1994) e Salavisa
(2006), autores que instigam a problematização do mito de forma mais condizente com a teoria
sociopolítica da crença.
Como trabalhamos no segundo capítulo com textos, como cosmogonias, seguimos a
lógica da abordagem de Nuno Rodrigues, particularmente no trato com a imagem inconsciente.
Foi necessário previamente apresentar os excertos, seus contextos, especificidades e termos
165

importantes. Essa abordagem também condiz com a História dos Conceitos, pois nela é mister
levar em conta a questão sociopolítica do documento, o uso da língua em questão, da autoria,
se possível, além da particularidade das palavras que se pretende investigar e relacionar. Assim,
dentre outras coisas propostas, promovemos um aparato crítico entorno dos nomes especiais
nṯr (egípcio antigo), ilu (mesopotâmico semita), ’eloḥiym (israelo-judaíta), θεός e deus.
Também percebemos a semelhança entre as cosmogonias selecionadas, e disso supomos a
proximidade cultural entre esses grupos, mesmo sendo falantes de línguas diferentes, da mesma
forma que confirmamos os aspectos teóricos levantados por Rodrigues.
Nesse segundo capítulo, mostramos ao leitor que a palavra “deus” é bastante complexa
para ser naturalmente associada a outro termo, cuja etimologia nem sempre é semelhante. Nesse
caso, trabalhamos com dicionários de cada língua e comparamos os seus sentidos. Para a
História dos Conceitos isso se torna fundamental, pois, principalmente na observação
diacrônica, questões de permanência e alterações são indicadores de fatores extralinguísticos
em uma sociedade. Foi neste sentido que criticamos a livre tradução de nomes com etimologia
e contextos próprios, como nṯr, ilu e ’eloḥiym, por “deus” (ou “god”, na língua inglesa).
Atualmente, podemos considerar que uma das traduções para a palavra hebraica ’eloḥiym é
“deus” (“god”), devido ao que a História dos Conceitos atesta como potencialidade de uma
palavra como conceito, mas, como insistimos neste trabalho, na Antiguidade, a questão
sincrônica deve ser levada em consideração, e daí notamos a importância do estudo etimológico
e dos dicionários especializados. Levando em conta toda problemática que levantamos,
atestamos a importância de nosso segundo capítulo para este trabalho sobre o tema do Ateísmo.
Nosso terceiro e último capítulo comportou a nossa análise sobre a possibilidade do
trabalho com o Ateísmo como tema entre egípcios antigos, mesopotâmicos e israelitas. Nele
objetivamos primeiramente estabelecer as diferenças entre pessimismo, ceticismo e ateísmo, e
como também se confundem e se conectam. Enfatizamos a importância da atividade artística
antiga (literária, cantada, encenada, etc.) para esse estudo do Ateísmo, pois a consideramos
fonte privilegiada para tal problemática, devido a sua lucidez e potencialidade em ser crítica ou
comediante da ordem social.
Através dos teóricos, como Whitmarsh, Minois, Foster e Lichtheim, selecionamos as
fontes mais interessantes e simbólicas para as nossas pretensões. Primeiro, fizemos um paralelo
entre o herói trágico, particularmente em Ésquilo, Agamêmnon (século V A.E.C.), e o tema do
Ateísmo. Em seguida, para o trabalho com os egípcios, selecionamos excertos das seguintes
obras: Ensinamentos de Ptah-hotep (papiro Prisse, séculos XXI-XVII A.E.C., tipo moralizador
e exortador), Reflexões de um desesperado (papiro Berlim 3024, séculos XIX-XVIII A.E.C.,
166

tipo pessimista e angustiado) e o Canto de um harpista (papiro Harris 500, séculos XIX-XI
A.E.C., tipo irônico e crítico). Para com os mesopotâmicos: A poesia do justo sofredor (séculos
XVI-X A.E.C., tipo angustiado e indignado) e A teodiceia babilônia (séculos XI-II A.E.C., tipo
indignado e crítico). E para com os israelitas: Salmo 14 ou Salmo 53 (séculos VI-V A.E.C., tipo
indignado e exortador) e Salmo 10 (séculos VI-V A.E.C., tipo angustiado e indignado).
Nesse capítulo, expandimos ainda mais o aparato teórico do trabalho. Trouxemos
discussões sobre moralidade social, crença e atividade artística, com Nietzsche (1996; 1999;
2003; 2007), na segunda metade do século XIX; sobre as ações problemáticas de heróis
trágicos, em Ésquilo, com Lesky (de 1938), Pulquério (de 1970), Vernant e Vidal-Naquet (de
1972); sobre ceticismo, com Verdan (de 1971) e Bicca (2016); sobre ateísmo, com Barros,
Febvre, Wirth, além de Whitmarsh (2015), Minois (de 1998) e Drachmann (1922); sobre os
textos mesopotâmicos, com Foster (2007) e Maspero (de 1892); sobre os textos egípcios, com
Araújo (2000), Lichtheim (1973; 1976) e Maspero; sobre os textos israelitas, com Rodd (de
2001), Sellin e Fohrer (de 1910).
No aspecto teórico, percebemos que, os textos que aqui conectamos ao tema do Ateísmo,
tendem a ser identificados primeiramente como característicos ao pessimismo, ao ceticismo e
ao sarcasmo, e também ao moralismo social, tendo como princípio os nomes sociorrituais dos
seres celestiais (como chamamos os deuses, ou seres divinos, neste trabalho). Por meio disso,
percebemos como é antiga a lógica da rejeição dos crentes para com os ateus em nossos dias.
Atualmente, essa rejeição, repúdio e desconfiança que muitos dos fiéis (geralmente da parte dos
monoteísmos) têm perante aqueles que atualmente se declaram ateus, apresenta sua gênese
nessas antigas ordens estruturais de sociedade. Uma ordem estrutural que toma como padrão de
moralidade e ordem o culto aos nomes dos seres celestiais, forças criadoras ou da natureza. A
criação de suas personificações (na literatura, pintura, poesia, etc.) só fortificaram aos ouvintes
essa lógica de gerência, de administração, nesse passado. Assim, como concluímos, ironizar,
fazer comédia, ser imprudente, violento, pobre, falar com atrevimento, irar-se, agir de forma
insolente, são evidências, aos que assim ganham algo com isso, de que tais indivíduos ou foram
rejeitados pelos seres divinos ou de fato os abandonaram.
Como, mais uma vez, utilizamos textos como fonte, nossa metodologia não foi diferente
da utilizada no segundo capítulo. Ou seja, especificamos os vocábulos que nos interessaram,
apresentamos o contexto e o conteúdo da produção, e, principalmente, nos dedicamos aos
principais nomes sociorrituais mais relevantes para cada cultura que estavam interconectados
com os textos. Comparamos os significados extraídos dos dicionários especializados. Também
167

fomos aos verbetes atheos e ἄθεος para comentar e comparar os seus significados com as
considerações que abstraímos de cada excerto analisado.
Concluímos, com este trabalho, que tomou como base a lógica da História dos
Conceitos, de Koselleck, a valia do tema ao estudo sobre Egito Antigo, Mesopotâmia e Israel.
Principalmente, o estudo do tema em sociedades que não cunharam um termo sintético como
ἄθεος para designar a “ausência” de θεός. Esse estudo nos mostrou a potencialidade do ateísmo
como um conceito, isto é, que abrange muitas outras terminologias em si, da mesma forma que
evoca uma quantidade considerável de relações sociais, seja no campo da administração social,
da moralidade, da religiosidade, da vida pública e privada, da identificação do bem e do mal,
por exemplo. Se este trabalho não foi particular a nenhuma dessas sociedades, ou a uma única
fonte, é porque se propôs, como dissemos, ao lançamento de ferramentas para se pensar e
trabalhar dentro dessa temática. Este trabalho atuou, de forma geral, na gênese daquilo que viria
a ser a mentalidade comum, tanto no âmbito da ordem sociopolítica quanto da ordem
sociorritual, da contradição argumentativa entorno dos nomes e das personificações dos seres
celestiais, forças da natureza e da criação.
A evidência dessas contradições argumentativas instigou a criatividade humana. Dessa
criatividade nasceu a comédia, o sarcasmo, a ironia, o ceticismo, o naturalismo, a tragédia,
todos termos com características próprias, definições próprias, contextos de origem próprios,
cuja ação pode ser investigada no tempo, mesmo em sociedades que não cunharam
nomenclaturas equivalentes (eis o recurso da onomasiologia). Assim, portanto, vimos como o
tema do Ateísmo conectou todos esses, para juntos trilharem uma lógica semelhante: pôr em
dúvida ou em ironia, a verossimilidade dos seres celestiais, de suas personificações no mundo
do efetivo, do real, como diria Nietzsche, e da argumentação que se divulga entorno de seus
nomes. Disso, consideramos que o ateísmo não só é um tema rico e interdisciplinar para
pesquisas, mas também está vivo em nossa sociedade contemporânea, sendo de claro interesse
sociorreligioso e sociopolítico.
168

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APÊNDICE A – TRANSLITERAÇÃO GREGO E HEBRAICO


Transliteração para alfabeto grego antigo e para hebraico

Grego Translit. Grego Translit. Grego Translit.


Α, α a Λ, λ l Υ, υ y
(som ‘ü’)
Β, β b Μ, μ m Φ, φ ph ou f
Γ, γ g Ν, ν n Χ, χ kh ou ḵ
Δ, δ d Ξ, ξ ks Ψ, ψ ps
Ε, ε e Ο, ο o Ω, ω ō
Ζ, ζ dz ou z ΟΥ, ou ᾿ mudo
(som ‘u’) (1ª letra)
ου
Η, η ē Π, π p ῾ ḥ
(+ 1ª letra)
Θ, θ th ou ṯ Ρ, ρ r
Ι, ι i Σ, σ, ς s
Κ, κ k Τ, τ t

Hebraico Translit. Hebraico Translit. Hebraico Translit.


‫א‬ ’ ּ‫כ‬ k ‫ק‬ q
‫ב‬, ‫ב‬ b, v ‫ ך‬,‫כ‬ kh ou ḵ ‫ר‬ r
‫ג‬, ‫ג‬ g ‫ל‬ l ‫ש‬ š
‫ד‬, ‫ד‬ d ‫ ם‬,‫מ‬ m ‫ׂש‬ ś
‫ה‬ ḥ, h (final) ‫ ן‬,‫נ‬ n ‫ת‬, ‫ת‬ h
t ou t
‫ו‬, ‫ֹו‬, ‫ּו‬ w, ō, ū ‫ס‬ s ָּ | ַ | ֲ ā, a, a
‫ז‬ z ‫ע‬ ‘ ֵ |ֶ |ֱ ē, e, e
‫ח‬ ḫ ‫פ‬ p ‫ֻ|ׄ| ׅ‬ i, o, u
‫ט‬ ṭ ‫ ף‬,‫פ‬ f ְּ e | mudo
‫י‬ y ou ī ‫ ץ‬,‫צ‬ tz ou ṣ ‫ׇ‬ o
182

APÊNDICE B – BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO


Breve contextualização

Cosmogonias utilizadas para se trabalhar a teoria da imagem inconsciente (Capítulo II)

Séculos A.E.C. Egito Antigo Mesopotâmia Israel Antigo Grécia Antiga


O Surgimento
XX-XII
de Rá
XIX-VII Enūma Eliš
IX-VI Gênesis
Teogonia
VIII-VII
(Hesíodo)

Fontes utilizadas para se trabalhar o Ateísmo como tema (Capítulo III)

Séculos A.E.C. Egito Antigo Mesopotâmia Israel Antigo Grécia Antiga


Ensinamentos
XXI-XVII de Ptah-hotep
(papiro Prisse)
Reflexões de um
desesperado
XIX-XVIII
(papiro Berlim
3024)
Canto de um
XIX-XI harpista (papiro
Harris 500)
A poesia do
justo sofredor
XVI-X
(Šubši-mešrē-
Šakkan)
A teodiceia
XI-II
babilônia
Salmos 10, 14,
IX-V
53 (David)
Agamêmnon
V
(Ésquilo)
183

Reinados ou Dinastias envolvidas (Capítulos II e III)

Séculos A.E.C. Egito Antigo Mesopotâmia Israel Antigo Grécia Antiga


Reino Médio
XXI-XVIII (dinastias 11 a Acadianos
14)
Egípcios
subjugados aos
Reino Amorreu
XVII Hicsos
Babilônio
(dinastias 15 a
17)
Reino Novo
Reino Cassita
XVI-XI (dinastias 18 a
Babilônio
20)
Dinastias 21 a Reinado
XI-VII Reino de Israel
26 Neoassírio
Período Tardio
Reino Caldeu
VIII-VI (dinastias 25 a Reino de Judá Período Arcaico
Babilônio
27)
Egípcios
Assírios e
subjugados ao Judaítas
Babilônios
Império subjugados ao Período
V-IV subjugados ao
Aquemênida Império Clássico
Império
(dinastias 27 a Aquemênida
Aquemênida
30)
Egito Mesopotâmia Judeia Período
IV-II Ptolemaico Selêucida Helenística Helenístico
(Alexandrino) (Alexandrina) (Alexandrina) (Alexandrino)

Egito Antigo (3600-500 A.E.C.)

É provável que egípcios, assírios, babilônios e israelitas tenham não só convivido entre
si, mas também trocado experiências culturais. Não só no âmbito das cosmogonias, mas
também na própria crítica ao suposto indivíduo “afastado” ou “abandonado” dos seres sublimes
(seres celestiais ou reis) – pois, no geral, foram conclusões semelhantes. Durante as dinastias
egípcias que destacamos, o rei (família e agregados) e a sua própria terra natal eram o centro da
crença e da identidade do povo em suas cidades às margens do Nilo, ou próximo delas. Foi uma
era marcada pela popularização de muitos costumes que, no passado, eram mais comuns no
cerne das castas palacianas. Um dentre esses foi a espera pela vida eterna post mortem, apesar
das diferenças entre a situação do rei e dos súditos, nessa crença. No entanto, desde há muitos
séculos de então, os egípcios não viviam em comunidades distintas e esparsas ao longo do Nilo,
184

onde cada tribo ou assentamento humano fora gerenciado por um chefe local. Com o tempo,
elas foram se unindo por questões maiores de sobrevivência ou através de disputas entre chefes
tribais, cujo vencedor dominava a tribo do chefe derrotado. Essas aproximações conectaram os
avanços tecnológicos e arquitetônicos de uma para outra – uma espécie de cooperação para
benefício mútuo.
Assim, até o século XXXV A.E.C., essas pequenas vilas ou assentamentos (wḥt, wḥyt)
foram sendo agregadas em distritos (wꜤrt), governadas por chefes relativamente aliados, até
formarem grandes divisões administrativas (spꜢt). Após o referido século, dois reinados
surgiram: Terra Baixa Vermelha (Mênfis, ao norte, no Delta do Nilo, clima mais úmido) e Terra
Alta Branca (Tebas, ao sul, clima mais seco). Por volta do século XXXII A.E.C., o soberano da
Terra Branca (nsw, , ) assume o governo da Terra Vermelha (bỉty, , ) criando assim as
dinastias unificadas sobre as Duas Terras (sḫmty, a dupla coroa, ), ou seja, sobre o Egito – o
imaginário social egípcio permaneceu relativamente semelhante ao longo das eras, mas com a
dominação macedônia e romana, após o século IV A.E.C, acabou sincretizando alguns
costumes e mitologias com seus dominadores.458
Como podemos perceber, o Egito459 (as Duas Terras) não era um país, um “ente”
nacional como entendemos em nossos dias, mas sim uma geografia imaginada, idealizada, até
virtualizada para a eternidade pós morte, provavelmente forjada sob ideais de cooperação entre
distritos. Não falamos aqui de “nação”, mas de cidades que compartilhavam linguagem e
cultura semelhantes, que unificaram seu imaginário universal entorno de um rei e de sua terra.
A terra e o rei eram os principais elementos unificadores e racionalizadores do mundo. Já
Mesopotâmia, não era uma “região nacional”, mas uma designação helênica que pode ser

458
Texto baseado em DAVID, 2007, p. 71-73. Termos egípcios antigos por nossa conta.
459
A origem do nome é grega (Αἴγυπτος, Aígyptos), e, baseado em afirmações do historiador Mâneton, em sua
Aegyptiaca (História do Egito), do século III A.E.C., supõe-se que seja uma adequação helênica de um dos nomes
egípcios da cidade de Mênfis, uma das principais do Baixo Egito, no Delta do Nilo: ḥwt kꜢ ptḥ (hut-ka-pteh),
“Morada do ka de Ptah”. De qualquer forma, o uso dessa escrita pelos helenos é mais antigo, aparecendo nas
Histórias de Heródoto (no sentido de “rio Nilo”), do século V A.E.C. e na Ilíada, canto IX, verso 382, do século
VIII A.E.C. Contudo, existe uma provável origem mais arcaica para o termo. Nos estudos sobre a forma escrita
dos antigos cretenses micênicos (linear B) foi identificada a palavra “ai-ku-pi-ti-jo” (KN Db 1105), um nome
próprio masculino (Αἰγύπτιος, “egípcio”). Essa forma era provavelmente emprestada, ou seja, não micênica (não
indo-europeia), pois, na mesma época (século XVI-XII A.E.C.), os ugaritas já alcunhavam o Egito e a cidade de
Mênfis por Ḥikupta, correspondente com Ḫikuptaḫ das cartas/tabletes de Amarna (VENTRIS; CHADWICK,
Documents in Mycenaean Greek, 1959, p. 136). Também cf. CHADWICK; BAUMBACH, 1963, p. 168; KLEIN,
1966, p. 503 e LETE; SANMARTÍN, “A Dictionary of the Ugaritic Language”, 2003, p. 358. Vale lembrar que
“miṣrû” era o nome semita acadiano para os egípcios – que deu no ugarita “mṣrm”, no hebraico “mitzrāyim” (‫)מצְּ ָּריִׁ ם‬
ִׁ
e no árabe “miṣr” (‫)مِ صر‬. Geralmente, no acádio, evocava os sentidos de: “borda”, “fronteira territorial”, “área
delimitada”, “vizinho”, “território governado” (Chicago Assyrian Dictionary – CAD M2, 2004, p. 113-116, s. u.).
185

encontrada nas Antiguidades Judaicas I, 152 de Josefo460, para identificar as sociedades que se
estabeleceram no “meio” (μέσος) do “rio” (ποταμός), no Levante, sendo uma área muito menos
unificada que o próprio Egito Antigo.

Mesopotâmia (6000-600 A.E.C.)

Assentamentos (é-duru5) humanos (lú-u18) foram formados em regiões pantanosas (sug)


nas proximidades dos rios Tigre (idigna) e Eufrates (buranun). Mas, entre o VI milênio A.E.C.
e o IV milênio A.E.C., também já havia culturas humanas desenvolvendo-se ao norte, nas
regiões mais montanhosas (ḫur-saĝ). No período pós-V milênio, a mais evidente comunidade
da Mesopotâmia foi a sumeriana, ao sul do Tigre e Eufrates, nas proximidades do Golfo Pérsico.
Os “nascidos livres” (dumu-gir), os “cabeças negras” (un saĝ-ĝi), ou, os sumerianos (do
acadiano “Šumeru”, significando talvez, “anteriores” – quiçá: uma língua, um povo, uma
região) são alguns de seus nomes. Eles não eram um grupo de língua semítica como os acádios.
Os sumerianos espalharam seus costumes, sistemas administrativos e crenças ao longo dos rios,
desde o Golfo até as regiões próximas dos grandes montes, na Acádia e na Anatólia. Essa
sociedade promoveu o surgimento de cidades (uru, iri ou rí) mais complexas que vilas, com
muralhas, grandes construções, templos ornamentados, sistemas de irrigação e outros (além da
escrita cuneiforme). A construção de templos se tornou uma prática bastante explorada por
todos os povos mesopotâmicos. Cada sociedade estabelecia locais de culto, tanto aos regentes
da cidade quanto aos antigos seres celestiais, forças da natureza, e reis e rainhas do passado. Os
templos eram usados para marcar a presença de algum ser potente na região, e geralmente
consideravam válido todo tipo de argumentação sobre isso, mesmo considerando algumas
dessas como falsas ou frutos de imaginação, principalmente aquelas que fossem de fora da
Mesopotâmia.461
As comunidades semíticas do norte adotaram o sumeriano como língua, se tornando
bilíngues, e acabaram promovendo paralelismos culturais entre si. No final do III milênio,
século XXIII A.E.C., o rei semita acadiano Sargão (Šarru-kīnu, “soberano justo, legítimo”)

460
Identificamos em JOSEPHUS, Antiquities I, 149-153, 1961, p. 74-75, edição da Loeb Classical Library,
tradução de Henry Thackeray (1869-1930), britânico, foi especialista em grego koiné e Josefo na King’s College,
Cambridge: “[...] εἰς Χαρρὰν τῆς Μεσοποταμίας [...]”; “[...] to Charran in Mesopotamia [...]”. | “[...] para Kharrán
(Aram) na Mesopotâmia [...]”. Expressão israelo-judaíta: “‫”א ֲַרם ַנה ֲָּריִׁ ם‬, isto é, “Aram entre rios”. Aram é
particularmente a atual Síria, principalmente Aleppo (cf. e.g. Juízes 3: 8-10, compilação do século VI-V A.E.C.).
Todavia o termo já era conhecido como “terra entre rios” desde Políbio, geógrafo e historiador grego (século II
A.E.C.) em suas Histórias V, 44. 6. Para mais cf. verbete em LIDDEL; SCOTT, 1889, p. 944.
461
Termos sumérios por nossa conta.
186

submeteu militarmente muitas cidades ao longo dos rios, findando com a “independência” que
cada uma possuía, padronizando relativamente costumes e crenças, e colocando a língua
suméria cada vez mais a nível de erudição, isto é, deixando de ser falada pelas pessoas comuns.
O acadiano assumiu o papel de linguagem para ser aprendida por todos, e outros povos semitas,
como os sírios, babilônios e amorreus, trouxeram novas visões de mundo à Mesopotâmia.
Dentre essas, a implantação de sistemas de governo dinásticos, com grandes e pequenas cidades
anexadas entorno de um rei, como ocorreu na dinastia assíria, cassita e hurrita (entre os séculos
XVIII-VII A.E.C., que se arrefeceu com a submissão aos persas), e com eles a crescente
popularização da ideia de que cada pessoa poderia ter para si uma força celestial protetora.462
Como vimos, muitas cidades e vilas se estabeleceram ao longo dos veios fluviais, mas,
não necessariamente possuíam uma linguagem e uma cultura em comum. O cenário mudou
com o trabalho dos sumérios, que ocasionou certa padronização linguística e cultural, mas, as
cidades continuaram relativamente independentes. Com o tempo, alguns chefes exerceram
influências que ultrapassavam as fronteiras de sua cidade natal, mas nada ainda comparado com
a incursão militar acadiana, que trouxe mais “padronização” aos povos da região entre rios.
Esse modelo se popularizou e por muitos séculos diversos povos e dinastias assumiram a
administração de várias cidades simultaneamente, mas, no geral, a maioria delas era
“independente”, todavia, submissas à vontade dinástica da região.

Israel e Judá (1300-500 A.E.C.)

Formada em um período mais recente (século XII-XI A.E.C.), e um tanto quanto


conturbado, pois fora marcado por conflitos armados na região entre Assíria e Egito, a
sociedade israelita foi constituída por doze tribos semitas com uma língua e costumes
semelhantes. Se tornou conhecida mais por sua literatura geral e poética do que pela sua cultura
material arquitetônica. Essas tribos passaram por situações distintas, durante as suas
experiências na região siro-fenícia (‫כְּ נָּעַ ן‬, Kenā‘an, “Mascate”, Canaã, Fenícia). Até por volta do
século X-IX A.E.C., as tribos eram relativamente independentes, cultuavam forças da natureza,
forças pessoais “invisíveis”, quiçá uma “voz interior”, erigiam pequenos altares, plantavam
árvores para veneração, e algumas dessas tribos foram mais próximas da cultura tradicional
mesopotâmica e da canaanita. Com o advento da casta dos reis, a propagação de literaturas e
poesias, cujo tema propõe a submissão das antigas forças de culto a uma força suprema,

462
Texto baseado em FOSTER, 2007, p. 165-171.
187

condensada e criadora, ganha mais relevância, principalmente, com as vitórias dos primeiros
reis de Israel sobre outros povos da região. A edificação de um único grande templo na
Jerusalém judaíta afirmou a importância dessa força todo-poderosa que passou a ser
oficialmente identificada pelo nome sociorritual afetivo ‫“( יהוה‬Aquele-que-É”), um nome
aparentemente sem ponto de referência no mundo visível, ou seja, personificável na poesia, mas
não na escultura.
Contudo, foi somente no reinado judaíta do sul, de Josias, que seu culto suplantou os
demais, pois, o rei impôs uma dura reforma estrutural na mentalidade dos moradores, ordenando
a destruição de altares pessoais, árvores sagradas, reorganizando ritos e festividades, dentre
outros (século VII-VI A.E.C.). A essa altura, o reino israelita do norte já havia sido conquistado
pelos assírios, em finais do século VIII A.E.C. Sendo assim, considera-se atualmente que a real
experiência dos judeus e levitas (a casta sacerdotal sem uma terra definida) com o
transcendental, com a sua crença (e não dos israelitas com um todo), só ocorreria efetivamente
no exílio babilônico e persa, nos séculos seguintes, incluindo a maioria das elaborações
literárias, leis, ritos, registros selecionados da oralidade pré-exílica, organização oficial de sua
origem, cosmogonia, crônicas régias, literatura sapiencial, e coletânea de hinos e poesias.463
Israel fora um pouco de Egito e um pouco de dinastias mesopotâmicas. Israel era fruto
de uma identificação em comum entre doze tribos semíticas, que defendiam mais ou menos o
imaginário de uma terra própria e legitimada por sua crença no coletivo das forças criadoras.
Para pôr em prática esse “ideal”, tais tribos se envolveram em diversos conflitos armados com
variados povos, que residiam na região siro-fenícia. Apesar do imaginário de ligação com a
terra, semelhante aos egípcios, as tribos eram independentes, como nas sociedades
mesopotâmicas. Com a instauração das castas reais, surge a ideia de “Israel”, que logo seria
desfeita pelas intrigas internas e conflitos externos com as castas estrangeiras, dividindo outra
vez as tribos politicamente e culturalmente – sendo evidente que a tribo/reino judaíta se
apropriou da identidade geral e literária, fortalecendo sua visão de mundo durante e após o
exílio, na Babilônia.464

463
Argumentações com base em ROGERSON, “Ancient Israel to the fall of the Second Temple”, 2007, p. 220-
232. John W. Rogerson (1935-2018) britânico, foi padre e músico da Igreja da Inglaterra, em Sheffield, especialista
em linguística e filosofia dos textos hebraicos, professor emérito pela Universidade de Sheffield e por muitos anos
secretário da British Society for Old Testament Study.
464
Não é de se estranhar que a apresentação contextual desses povos seja superficialmente semelhante. Não é de
se estranhar também que sejam povos que produziram conhecimento que ainda nos seja relevante, ética e
moralmente, por exemplo. Acreditamos que toda essa “semelhança” seja fruto da própria marca da interpretação
oriunda do presente do pesquisador, afinal, não compreenderemos o passado de forma geral se não partirmos dos
nossos anseios e linguagens do cotidiano. O passado, por ele mesmo, não significará nada aos olhares do leitor do
188

Grécia Antiga (800-300 A.E.C.)

De forma análoga, aquilo que geralmente é chamado “mundo grego” foi essencialmente
formado por várias cidades independentes, sem uma “capital”, sem nenhum centro prepotente
com a intenção de expandir sua cultura pelo mundo – mas sim várias dessas possuíam
entrepostos comerciais e vilas associadas por todo Mediterrâneo. Eram cidades diversas, com
costumes diferentes e estilos administrativos distintos. Os tipos administrativos mais
recorrentes foram a aristocracia465/oligarquia466 e a tirania467.468 A “Grécia”, a “Hélade” fora
claramente uma ideia, um imaginário, não uma realidade administrativa. Havia um ideal de
união entorno de uma língua semelhante, de uma origem supostamente igual, de alguns ritos
parecidos, do culto aos nomes de personificação sociorrituais celestiais, com poucas variantes
– o Oráculo de Delfos, os Jogos Olímpicos469, os nomes Homero e Hesíodo (obras e
personagens associadas) são alguns dos elementos que evocavam unidade entre as tribos e suas
cidades, praticamente todos esses oriundos do século VIII A.E.C.
Nesse período mencionado, essas cidades independentes (πόλεις – radical do nosso
“político” e variantes, por exemplo) ganhavam a configuração estrutural que mais se tem noção
a respeito, em nossa época – Período “Arcaico” e “Clássico”. Boa parte delas eram muradas,
possuindo separações entre a seção mais urbanizada (cidade alta, acrópole), e entre a região
agrícola. Comportavam templos, reservatórios de água, espaços públicos onde se desenvolvia
o comércio, atividades jurídicas, lúdicas, educativas, etc. A evolução arquitetônica promoveu a
arte em mármore, escultura, olaria, colunas (pórticos); muitos de seus valores, leis e opiniões
eram expostos em espaço público, gravados em pedra. A maioria dessas cidades exploravam o
comércio, principalmente pelo mar Mediterrâneo e esse investimento proporcionou o

presente, sem interpretação, contextualização e tradução com ressalvas, uma atividade que deve ser fundamentada
teórica e metodologicamente para não tornarmos anacronismos em verdades históricas.
465
ἄριστος: “o mais apto”, “hábil”, “nobre” e κράτος: “força”, “poder”. | εὐπατρίδαι: chamados de “bem nascidos”
ou de “bons pais”, descendentes de grandes senhores de propriedades. Um sistema de governo tradicional entre os
indo-europeus.
ὀλίγος: “pouco”, “curto” e ἄρχός: “chefe”, “primogênito”, “o mais poderoso”, “guia”, “senhor”, “autoridade”.
466

Um sistema onde poucos governam muitos, comumente associado com a aristocracia.


467
τύραννος: “senhor de tudo”, “rei”, “soberano”, “todo-poderoso”. Um sistema semelhante à monarquia, não
necessariamente com conotação pejorativa. Geralmente o tirano e seus descendentes governavam uma cidade,
mantendo a conexão com as famílias mais abastadas e mais tradicionais da região.
468
Cf. HERÓDOTO, Histórias-Talia III, 80-83, no debate persa sobre modos de governo, In: Gredos, 1979, p.
157-166; e LEWIS, “The tyranny of the Pisistratidae”, 1988, p. 287-289, sobre a tirania de Pisístrato em Atenas
(século VII-VI A.E.C.). Não vamos nos aprofundar em sistemas de governo neste apêndice.
469
Jogos Olímpicos, Píticos, Ístmicos e Nemeus eram os principais.
189

enriquecimento e fama de algumas, como Atenas, na região Ática. Esse investimento no


comércio e exploração mediterrânica ou eram frutos de ações individuais ou de alguns grupos
de interessados, e isso fomentava a competição e a rivalidade entre esses. Tal estilo de comércio
favoreceu o contato com os demais povos mediterrânicos, principalmente com os egípcios,
cipriotas, líbios e fenícios (estes já famosos por suas explorações mediterrânicas) – o
desenvolvimento do alfabeto grego, de sua marinha e do uso de moedas, foi provavelmente
fruto desses contatos.
Vários dialetos estavam vinculados a tipos de “língua grega”, e os mais recorrentes na
região foram: o eólio, desenvolvido no noroeste da Anatólia, na ilha de Lesbos e na região
Tessália; o dório, falado no sul da Anatólia, na região sul do Peloponeso e em Creta; o jônio,
que se espalhava pela região ocidental da Anatólia, ilhas do Egeu, localidades da Macedônia e
na região Ática; o antigo cipriota, na ilha de Chipre – dentre outras variações. Como os cantos
homéricos e hesiódicos foram compostos numa forma jônica, tal dialeto pode ter adquirido um
pouco mais de prestígio intelectual – mas não necessariamente na fala comum.470 O sistema
sociorritual dessas cidades foram similares e cada interpretação proposta sobre o mundo não
eram categóricas entre si – exceto pela manutenção da própria ordem in loco. Com isso, não
havia uma “cidade santa”, mas sim ritos familiares locais, respeito à memória dos antepassados,
crença em seres celestiais e da natureza personificados, santuários públicos e privados, e
festividades anuais de âmbito comunitário.471
A região Ática, as cidades de dialeto jônio e particularmente a cidade de Atenas, tendem
a ser os principais modelos, os principais exemplos daquilo que chamamos genericamente de
“Grécia”, de “legado cultural grego” ou de “língua grega”. Independentemente desse senso
comum, de fato exploraremos mais esse ambiente ateniense, do que os de outras cidades, pois,
não deixa de ser a região mais bem documentada desse mundo grego. Até o século VI A.E.C.,
a região Ática esteve sob o governo de famílias nobres, de origens abastadas e tradicionais, ou
seja, era um domínio aristocrático ou oligárquico.472 Atenas era a mais influente, maior e mais

470
Cenário que ocorre em todas as línguas vivas, isto é, em uso corrente. Como se percebe com o português pelo
mundo, com as suas variações regionais, sonoras e semânticas, além de formações dialetais por influências
culturais diversas – mas sempre há variações colocadas com mais prestígio social. Lembremos aqui que, além de
dialetos, o dório, o eólio, o jônio, além do mixolídio, do lídio e do hipolídio, também figuravam como estilos
harmônicos melódicos (para mais cf. PEREIRA, In: PLATÃO, República, 2001, p. 127; BACCOU, In: PLATÃO,
República, 1965, p. 168.).
471
Contexto organizado baseado em WHITMARSH, 2015, p. 17-20.
472
Fora um período onde força, nobreza, beleza e o bem eram valores aristocráticos que não se aprendiam numa
escola, por exemplo, pois eram como heranças de família (ORTEGA, 1984, p. 41, In: PÍNDARO, Odas y
Fragmentos).
190

populosa cidade dessa região, principalmente após os governos do tirano Pisístrato (século VI
A.E.C.) e do aristocrata Clístenes (século VI-V A.E.C.), reformador e introdutor da constituição
democrática ateniense. Atenas era rural, como foram a maioria das demais cidades, mas, a partir
do século V A.E.C., o centro urbano cresceu. Esse sistema de governo ateniense, a
“democracia”, interessa ao pesquisador do Ateísmo, por ser nele que incidirão os principais
processos jurídicos no âmbito do respeito aos nomes socioafetivos dos celestiais e de sua
relevância para a manutenção da ordem da cidade.
Desse sistema democrático (século V-IV A.E.C.), podemos destacar os seguintes
pontos: havia os magistrados, designados por sorteio para cargos públicos por um ano
(militares, financeiros, de secretaria, tesouraria, além do direito de impor multas ou processos
nos tribunais); os arcontes, eleitos por sorteio para exercerem cargos públicos por um ano (o
arconte-chefe administrava a cidade, os eventos e as leis familiares; o basileu conduzia os cultos
públicos e julgava os homicídios; o polemarco geria as tradições e as causas do cidadão; os
arcontes menores dirigiam questões de justiça e lei, na cidade); os generais, eleitos por escolha
na Assembleia para exercerem atividade militar e estratégica para a cidade; o Conselho (Boulé),
constituído de 500 cidadãos eleitos por sorteio, recebiam soldo e eram isentos da atividade
militar, para exercerem cargos de administração pública, financeira, lúdica, diplomática e
judicial; o Areópago, o conselho mais antigo de Atenas, que cuidava de casos de homicídio
doloso, envenenamento e incêndios dolosos, além de atividades investigativas sobre faltas
contra a cidade; a Assembleia (Ekklesía), maior instituição da democracia, pois incorporava
qualquer cidadão de Atenas, num quórum de 6000 pessoas, que recebiam um dracma (moeda
grega) por sessão, para serem discutidas e votadas questões públicas, para fins de ostracismo e
revisão das leis.473
Agora, apresentaremos alguns dos pontos mais centrais sobre a formação da família
ateniense, esse âmbito privado, além da relação do indivíduo com o meio público, isto é, com
a cidade. Para a filósofa Hannah Arendt, “[...] todas as palavras gregas e latinas que exprimem
algum tipo de governo de um homem sobre os outros, como rex, pater, anax, basileus, referiam-
se originalmente a relações familiares e eram nomes que os escravos davam a seus senhores”.474
Dessa forma, vemos como a valorização de um homem e de sua casta sobre outros indivíduos

473
Baseado em PETRIE, Introducción al estudio de Grecia, 1995, p. 86-93. Para mais detalhes documentais cf.
PSEUDO-XENOFONTE, A constituição dos atenienses, tradução de Pedro Martins, de 2013. Alexander Petrie
(1881-1979), britânico, foi pioneiro no estudo de Clássicas na Universidade de Natal na África do Sul nas primeiras
décadas do século XX.
474
ARENDT, A condição humana, 2007, p. 42. Hannah Arendt (1906-1975) filósofa judia alemã, sionista, crítica
da Teoria Política, da Modernidade e da Filosofia da História, foi uma das mentes mais influentes do século XX.
191

e suas famílias são reflexo de uma longa experiência administrativa da humanidade no tempo.
Geralmente, um indivíduo nessa posição de destaque seria considerado “grande”, “sábio”,
“poderoso”, enviado dos “céus”, fonte de inspiração para artistas e poetas. Não exploraremos
essa lógica em si, mas consideramos importante tal observação, pois, como mostrou Arendt,
seja o imaginário que for, provavelmente partiu antes do mundo privado, familiar, para depois
figurar no espaço público, sendo ressignificado para a comunidade, para os habitantes de uma
cidade.
Diante disso, também devemos atentar para a problemática existente em fontes das quais
atribuímos conteúdo normatizador. É provável que tais documentos – ensinamentos, sabedorias
ou exortações, por exemplo – dessem foco somente às ações moralmente aceitáveis, imaginadas
como ideais para a convivência humana, forjadas para serem um tipo de programa cidadão. No
entanto, decerto que não refletiriam uma realidade social, ou seja, não evidenciariam o que
estaria acontecendo, mas provavelmente uma esperança de realização – a mesma lógica também
é válida para as fontes de conteúdo distópico, como exploramos no capítulo III. Com isso, nossa
contextualização familiar apresentará mais o ideal normativo de convivência do que aquilo que
provavelmente estaria ocorrendo na época. Logo, se trata de um contexto semivirtual, baseado
no ideal da norma, e se fosse distópico, exemplificaria um contexto caótico, também
semivirtual. Mas cada conjuntura eventualmente coloca em situação de possibilidade os lados
apresentados: no tema da normatividade, os adeptos tentarão praticar o ideal, forjando modelos
para serem seguidos; no tema da distopia, os adeptos tentarão mostrar como seria um cenário
contrário ao da normatividade. Em ambos os casos, serão forjados ambientes e acontecimentos
virtuais – mesmo que, quiçá, inspirados em pontos de vista sobre a sua realidade ou sobre a
realidade estrangeira, e por isso, “semivirtuais”. Cabe ao leitor estar ciente de que pode sim ter
existido pessoas que tentaram seguir as regras, e outras que acumularam mais faltas do que
acertos – sendo que, possivelmente, será nesse âmbito jurídico que encontraremos os marginais
da ordem administrativa de uma cidade.
Aquilo que traduziremos por “programa cidadão”, ou conjunto de qualidades que deve
prezar um cidadão, contextualmente um homem, em Atenas chamava-se “παιδεία”. Nesse
programa, nessa παιδεία, um homem deveria se casar com uma única mulher, normatizando a
monogamia, sendo que, socialmente, o homem era o cidadão de plenos direitos com ativa
participação na vida pública, enquanto a mulher era um ser de significado biológico para a
procriação e crescimento da cidade. O casamento legalizado, isto é, legítimo, era aquele
efetuado entre indivíduos de família ateniense – geralmente organizado durante o inverno. No
mais, a união formal entre um homem e uma mulher não seria tanto fundamentada em conceitos
192

abstratos como o “amor”, mas numa obrigação, prática e objetiva, para legitimar os seus
descendentes na cidade – o casal recebia um dote, uma porção de terra dada pela família da
moça.475 A moça ateniense deveria sempre estar sob os cuidados de um homem, um
responsável: seu pai, um guardião ou seu marido, pois, como mostra Foucault,

[...] a temperança e a coragem são no homem virtude plena e completa ‘de


comando’; quanto à temperança ou à coragem da mulher, são virtudes ‘de
subordinação’, o que significa que elas encontram no homem, ao mesmo
tempo, seu modelo perfeito e acabado e o seu princípio de funcionamento. [...]
intemperança implica uma passividade que a aparenta à feminidade. Ser
intemperante, com efeito, é encontrar-se num estado de não-resistência.476

Sendo costumeiramente colocada abaixo do homem, a jovem moça deveria permanecer


em casa, para desenvolver habilidades manuais com a sua mãe. Mulheres eram praticamente
excluídas da vida pública, excetuando a necessidade de ir às compras, ao mercado e, em alguns
casos, era permitida a sua presença em apresentações teatrais, como espectadora, e em eventos
de culto público. Como mulher do lar, deveria manter a ordem e o comando sobre escravas;
como mãe, deveria ensinar as filhas a serem boas esposas, educando-as em atividades manuais,
como bordado, tecelagem e cozinha; também deveria responsabilizar-se pelos meninos até o
recebimento de um tutor. A educação familiar não era vigiada por lei, uma herança do período
aristocrático, mas havia alguns lugares destinados ao ensino privado. Tal educação fora
estruturada segundo as narrativas mítico-poéticas dos cantos homéricos e das fábulas; o pai era
autorizado a bater nos filhos para fins educacionais; o menino deveria ser entregue ao seu tutor,
um homem bem mais velho, sendo tal relação chamada de pederastia assimétrica, isto é, uma
relação educativa entre um jovem (ἐρώμενος) e seu tutor (ἐραστής), fundamentada na arte da
conquista e da formação do futuro homem cidadão – que geralmente durava dos sete aos trinta
anos de idade.
As escolas tinham por principal objetivo ensinar a conduta cidadã aos rapazes, e não
necessariamente formar “pensadores” da realidade. O mancebo deveria ser educado em música,
para o desenvolvimento mental, em ginástica, para o desenvolvimento muscular, além de leitura
e escrita; já rapaz, deveria seguir com os estudos em aritmética e geometria, além da poesia,
para o estímulo da memória e para o aprendizado dessa conduta moral, geralmente
fundamentada nos cantos de Homero e Hesíodo e em outras literaturas líricas de temática épica,

475
Em caso de divórcio, o dote retornaria ao pai ou ao responsável pela esposa.
476
FOUCAULT, História da Sexualidade II: uso dos prazeres, 1998, p. 78.
193

gnômica ou dramática, como Teógnis477, Sólon478 e Tirteo479 – geralmente produções jônicas


datadas entre os séculos VIII-VI A.E.C.; também desenvolvia habilidades instrumentais para a
música, como flauta e lira; estudava canto e harmonia, principalmente para distinguir entre as
mais adequadas ao cidadão – diziam, por exemplo, que a dória inspirava virilidade, a lídia a
suavidade e a frígia a selvageria. Paralelo ao ensino moralizador e intelectual, o rapaz deveria
praticar esportes, como a corrida, o salto, o lançamento de disco, de lança, além da luta, do nado
e da dança. O sistema democrático admitiu dois tipos de escolas para jovens adultos: a escola
sofista, para o estudo da arte da eloquência, da oratória e da retórica, mediante pagamento; e a
escola efebia, para a introdução dos jovens no convívio militar, que, com o tempo, daria mais
relevância ao ensino da filosofia, da retórica e das ciências naturais.
Por volta dos trinta anos de idade, o rapaz estaria concluindo os seus estudos, tendo sido
preparado todo esse tempo para ingressar na vida cidadã, pública, para ser reconhecido pelos
demais e ser considerado como um igual – esperando-se dele, ser um cidadão virtuoso,
excelente (ἀρετή), crente e assíduo aos ritos, ativo na vida pública, sexual, lúdica e militar.
Como homens, eram cidadãos, tendo o direito de decidir sobre a situação da cidade (πόλις);
eram políticos, ou seja, atuantes na vida pública, na cidade; deveriam investir na oratória, para
promoverem seus argumentos (λόγος), nas assembleias e conselhos; deveriam deixar a vida do
lar, da família, desse âmbito privado, para poderem dar suas vidas pelo bem público, pela
questão comunitária, sendo essa, para eles, uma característica do macho da espécie: a coragem
(ἀνδρεία). Para Arendt,

A coragem, [...] tornou-se a virtude política por excelência, e só aqueles que a


possuíam podiam ser admitidos a uma associação dotada de conteúdo e
finalidade políticos e que por isso mesmo transcendia o mero companheirismo
imposto a todos – escravos, bárbaros e gregos – pelas exigências da vida.480

Com o tempo, a cidade foi se transformando em um espaço onde o homem cidadão


pudesse se sentir “livre” entre os seus iguais (homens). Seu mundo privado, ao contrário, foi
sendo associado à sensação de serventia, pois, se sentiria “escravo” dessa condição: de dever
sustentar a si mesmo e aos de sua casa, que não necessariamente eram seus iguais (esposa,
crianças, escravos). Apesar de parecer negativo esse sentimento familiar, havia quem preferisse

477
Poeta lírico, exortador de Mégara, cidade próxima de Atenas do século VI A.E.C.
478
Poeta, moralista, líder político, legislador e sábio de Atenas, do século VII-VI A.E.C.
479
Poeta lírico, motivador espartano que compunha em jônio e dórico, do século VII A.E.C.
480
ARENDT, 2007, p. 46.
194

estar “servil” em casa do que arriscar a sua vida pela cidade, em nome da liberdade. O marido
estava encarregado do sustento familiar e a mulher, principalmente, deveria ser fértil para o
bem da cidade. Os filhos nascidos com deformações eram desnecessários aos interesses do
âmbito público e, geralmente, eram vendidos ou deixados expostos ao relento, para que o
destino se encarregasse deles. Como a cidade administrava as produções agrícolas e comerciais,
se o negócio familiar ia bem, a cidade prosperava. A liberdade relativa do homem estava
geralmente relacionada com a sua necessidade de sobrevivência: se doente, deseja cura; se
pobre, deseja riqueza; se escravo, deseja liberdade; se é capaz de agredir, é livre; se apenas
apanha, é escravo; se trabalha arduamente para si e sua família, é livre; se é corpo de outro, é
escravo; se é pobre ou quase mendiga, é livre; se vende o próprio corpo por alguma comodidade,
é escravo; se domina os desejos, é livre; se se deixa levar pelos prazeres, é escravo. Segundo
Arendt,

O que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem
à vida na polis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política;
que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico
da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta
última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade [...] e
alcançar a liberdade.481

Essa questão, evidencia que a cidade foi transformada em uma grande família, em uma
fraterna comunidade (κοινωνία), e a vida pública (πολιτεία) era o bem maior conquistado pelo
cidadão ateniense. O cidadão (πολίτης, ἀστός) era educado para proteger a liberdade (ἐλευθερία)
oferecida pela cidade, era o defensor (φύλαξ) da democracia (δημοκρατία), desse imaginário da
igualdade (ἰσονομία), desfrutada entre homens cidadãos. Tais cidadãos deveriam lutar para não
perderem a ordem e assim não caírem no conflito interno, numa guerra civil (στάσις). Tal
cidadão deveria cultivar a coragem, a excelência, a justiça (δικαιοσύνη), a moderação
(σωφροσύνη), o correto (ὀρθός), o belo (καλός), o verdadeiro (ἀληθής) e afastar-se do falso
(ψευδής), da injustiça (ἀδικία), do feio (κακός), bem como da falta contra a ordem sociorritual
(ἀσεβής) e do apreço pelo particular, pelo privado, pelo isolamento social (ἰδιωτικός, μυστικός,
μισάνθρωπος).482

481
Ibid., p. 40.
482
Todo o contexto sobre a relação entre indivíduo, família e cidade em Atenas foi elaborado tomando por base:
ARENDT, 2007, p. 37-47; FOUCAULT, 1998, p. 31-87; PETRIE, 1995, p. 109-125; ALVES, A evolução nas
definições de família [...], 2014, p. 13-14; SANTOS, “O direito de família na Grécia da Idade Antiga”, 2007, p. 7-
9; GALÁN, Amor y sexo en la antigua Grecia, 1997, p. 61-86; LOBATO, Revisitando a educação na Grécia
Antiga: a Paidéia, 2001, p. 31-34; CHAUÍ, Convite à Filosofia, 2000, p. 42-43; JAEGER, Paidéia: a formação do
Homem Grego, 1994, p. 763-767. Todos os termos em grego utilizados são de nossa conta.
195

Se bem notamos, nesse último elemento em destaque, o cidadão ateniense deveria evitar
o afastamento do convívio no espaço público. Os judeus, segundo Josefo, foram acusados de
ateísmo e misantropia – duas palavras gregas, como observamos. Seria provável, que os judeus,
residindo em cidades gregas, fossem vistos cometendo faltas contra a ordem sociorritual
helênica, ou mesmo vistos se isolando do convívio público, afastando-se da sociedade ou
declarando mais apreço pela particularidade judaica do que pela questão pública helênica? Tais
observações certamente devem ser levadas em conta nesse caso judaíta. Todavia, devemos
considerar a possibilidade de que haja certa lógica nessa acusação de ateísmo e misantropia,
caso tenha havido casos relacionados com o que questionamos há pouco.

Ζεύς (1500 A.E.C.- )

Como apresentamos no capítulo I, “Zeus” pode ser um nome investigado e analisado


etimologicamente, principalmente por meio dos radicais indo-europeus – como o micênico di-
we (KN F 51, PY Tn 316)483. Compreendemos que, para essa sociedade antiga, o nome de
personificação sociorritual afetivo para o “brilho celeste em um dia ensolarado” foi Ζεύς, ou
seja, uma referência celestial por excelência. O nome genérico para o céu (firmamento,
atmosfera, clima) foi urano (οὐρανός) e o nome sociorritual geral de cada um na comunidade
dos habitantes celestes e das forças da natureza foi θεός, como acreditamos.
Todavia, para Vernant (2006), o nome “Zeus” foi semanticamente isolado dos demais
nomes sociorrituais. Para o autor, isso não seria uma lógica comum aos demais povos indo-
europeus – mencionando a ideia de agrupamento trifuncional: soberania e justiça; força, poder
e guerra; prosperidade, fecundidade e produtividade.484 Zeus foi um nome especial para os
gregos, pois, personificava e evocava simultaneamente: criação, providência, onipotência,
onisciência, onipresença, o ideal de rei e soberania, autoridade, justiça, lei, libertação, salvação
e totalidade.485 Vernant ainda exemplifica, mostrando que a potência do nome prevalecia diante
dos nomes dos demais olimpianos; evocava a justa repartição de dons e honras; também a
ordem e a desordem; a bondade e a violência; bem como a vontade de concordância. Sua

483
Para mais informações sobre Zeus (e Hera) em linear B micênico e grego cf. CHADWICK; BAUMBACH,
1963, p. 198-199. Particularmente os britânicos John Chadwick (1920-1998) e Michael Ventris (1922-1956) foram
os principais responsáveis pela decifração da linear B micênica.
484
Aos romanos, respectivamente: Júpiter, Marte e Quirino; aos indo-iranianos: Mitra, Indra e Nasatya. Para mais
detalhes cf. TERRA, 2001, p. 167-176. No mundo nórdico destacavam-se respectivamente: Ódin, Týr e Freyr. Há
quem considere também certa influência disso na lógica da ordem do cristianismo católico: Pai, Filho e Espírito
Santo, como unidades trifuncionais distintas de um único todo-poderoso deus criador.
485
Sobre a hipótese do “monoteísmo” em Zeus cf. TERRA, op. cit., p. 341-363.
196

personificação distribuiu também a funcionalidade dos demais celestes: Hefesto e os ferreiros,


Ares e os militares, Ártemis e os caçadores, Apolo e os musicistas/cantadores, e o próprio Zeus
e os governantes.486
O historiador francês também destaca que o nome Zeus era geralmente relacionado com
um ou dois nomes sociorrituais em situações específicas: com os nomes Poseidon e Hades, para
delimitação do imaginário da ordem-mundo: céu, superfície terrestre, mar e subterrâneo
(autoridade suprema); com o nome terra (γῆ), evidenciando seu sentido celestial fertilizador,
com sua chuva procriadora no solo que faz surgir as vegetações; com o nome Hera,
simbolizando o ideal de matrimonio monogâmico entre um homem e uma mulher, que validava
uma descendência por lei – que devia ser evidente na relação rei e rainha; com o nome Métis,
relacionando-se com a astúcia, com a inteligência, com o imaginário da manutenção do poder,
da longevidade do reinado, que inspirava o precaver-se do golpe ao trono, também aos
imprevistos e às armadilhas dos rivais; com o nome Têmis, executando a justa partição do
tempo com as suas estações anuais, além da patronagem ao equilíbrio humano e dos seus
destinos. O nome “Zeus Pai” simbolizava a autoridade sobre todos os seres viventes, mesmo
que sua personificação não os tenha gerado diretamente. Com o nome Apolo, evocava a
ancestralidade paterna; com o nome Atena, fomentava a irmandade comunitária helênica,
principalmente entre os de língua jônia (festa das Apatúrias)487; em Atenas, o nome guardava a
cidade e os seus cidadãos, evocando a sorte para seus habitantes.
Ainda, com o nome Héstia, através do fogo sagrado, guardava os lares familiares e o
centro da vida pública na cidade. Como “Herkeîos”, o nome reforçava o imaginário da
autoridade do chefe de família, delimitando seu domínio; como “Klários”, era o nome forte das
fronteiras, do limite dos lotes – sendo Apolo “Aigieús” e Hermes os nomes afetivos da guarda
das entradas. Como “Hikésios” e “Xénios”, fomentava o respeito ao hóspede, ao suplicante,
fazia a sua segurança e para isso não cobrava assimilação ao viajante; como “Ctésio”, evocava
a proteção aos bens familiares; como “Chthónios” ou “Meilíchios”, invocava o subterrâneo, de
onde poderia subir riquezas ou vinganças. Quando “Ómbrios”, “Hyétios” ou “Ikmaîos”,
recobria a terra com chuva e umidade; se “Oúrios” ou “Euánemos”, mantinha os lugares
ventilados; como “Astrapaîos”, “Brontaîos” ou “Keraúnios”, fulminava seres, clareava o céu
com raios. Os desígnios cabidos por Zeus eram interpretados ao se ouvir o balançar das

486
Para supor um paralelismo cultural com o semita Marduk cf. TERRA, 2015, pp. 37-44; 251-265.
487
Festa comunitária que evocava o sentimento de união e fraternidade em Zeus e Atena (VERNANT, 2006, p.
33-34).
197

folhagens de altos carvalhos, no antigo templo em Dodona488. Em Delfos, onde localizava-se o


principal oráculo do mundo grego, Apolo era tido como aquele que entregava as vontades de
seu pai, Zeus, ou seja, Apolo não falava por si, mas em nome de seu pai, para quem soubesse
escutar.489 Assim, completa Vernant, em suas palavras:

Os diferentes qualitativos de Zeus, por mais amplo que seja seu leque, não são
incompatíveis. Situam-se num mesmo campo cujas múltiplas dimensões eles
sublinham. [...] o Zeus grego embora apresente muitas facetas, não pode ter
nada em comum com um deus que morre. [...] O verdadeiro Zeus não nasceu
em Creta, como contam os cretenses [...]. Aos olhos dos gregos, a
imortalidade, que traça entre homens e deuses uma fronteira rigorosa, é um
traço demasiadamente fundamental do divino para que o senhor do Olimpo
possa ser assimilado de algum modo a uma daquelas divindades [...] que
morrem e renascem. [...] Contudo, é inegável que, entre os séculos XIV e XII,
os deuses reverenciados pelos aqueus – e cujos nomes figuram nas tabuinhas
em escrita linear B de Cnossos e de Pylos – são em sua maioria os mesmo que
encontramos no panteão grego clássico e que os helenos, em seu conjunto,
reconhecerão como seus [...]. O mundo religioso dos invasores indo-europeus
da Grécia pode até ter se modificado e aberto a influências estrangeiras; [...]
Essa permanência, contudo, não deve iludir. [...] uma série de mudanças e de
inovações introduziu, por traz das aparentes continuidades, uma verdadeira
ruptura que o texto da epopeia apaga mas cuja amplitude as pesquisas
arqueológicas, após a leitura das tabuinhas micênicas, nos permitem medir.490

Notemos, então, como o nome inclusivo tribal helênico de personificação sociorritual


afetivo para o céu ensolarado “Ζεύς” fora fortemente carregado de aspectos de ordem
sociopolíticos, rituais e intimamente conectado aos afetos humanos, como mostrou Vernant. O
seu nome sagrado e seus diversos epítetos estavam profundamente integrados à formação do
ser humano na região. Seu respeito e culto remetiam ao ideal de justiça, ordem, prosperidade,
riqueza, fraternidade entre famílias, do respeito ao hóspede, do respeito às leis no âmbito
público e no privado, da fixação de fronteiras, sejam abstratas, como no campo de atuação de
um indivíduo responsável por um grupo, sejam concretas, como na demarcação de lotes e dos
limites da própria cidade; também aos ideais pessoais, como vontade de segurança, de saúde,
de poder, de vingança, de sorte; tanto quanto à incidência dos elementos atmosféricos, como
chuva, fertilidade do solo, temporais e brisas, o esplendor de um raio e de seu perigo, ao atingir
um ser vivo.

488
Sítio arqueológico localizado na província de Epiro cuja capital é Joanina, na Grécia atual, fronteira com a
Albânia.
489
Contextualização elaborada segundo VERNANT, op. cit., p. 30-36. Todas as palavras gregas transliteradas são
de Vernant.
490
Ibid., p. 38-39.
198

Seria o nome Zeus, um equivalente afetivo grego similar a Rá ou Osíris, aos egípcios, a
Anu ou Marduk, aos mesopotâmicos, ou a Aquele-que-É, aos judaítas? Certamente que não são
as mesmas entidades, não são necessariamente nomes sociorrituais especiais para os mesmos
elementos atmosféricos e da natureza, mas, nessas sociedades, certamente evocavam
sentimentos sociopolíticos parecidos e eram usados para lançar afetividades na humanidade,
que fomentavam diferenças sociais, como quem seria bom, justo, sábio ou próspero e quem
seria mau, injusto, insano ou malogrado, por exemplo. Parece ser evidente que um indivíduo
ou grupo que ironizasse o nome Zeus, portanto, se colocaria numa situação nada favorável, no
caso de sua sociedade ser fundamentada legalmente nesse nome sacro. Mas seria essa uma
situação de ateísmo no mundo helênico? E em Atenas?

Δαίμων (800 A.E.C.- )

Mas, afinal, que δαίμων (daímōn) é esse? Tem relação com o nosso “demônio”? Vamos
investigar esse termo e conhecer um pouco de sua relevância social.
De acordo com Beekes, o termo grego “δαίμων” foi relacionado com pelo menos três
significâncias: “forte como um olimpiano”, “destino” e “ser celestial”. 491 Entretanto, sua
hipótese etimológica seria mais distinta, sendo baseada no radical protoindo-europeu *deh2-(i-
), “cortar”, “separar”, “dividir”, “ferir” – associado ao verbo grego δαίομαι “dividir” ou
“festejar”. Beekes também fez aproximação com o sânscrito bhájati (“partir”, “dividir”, radical
“भाग”, “bhága-”) e dáyate (radical “दयिे”, “dividir”, “destruir”). Chadwick e Baumbach
conectaram o termo ao micênico e-u-da-mo KN X 57, um composto aparentemente formado
por ἐύς (advérbio ἐύ, εὖ) e δῆμος (do dórico “δᾶμος”), podendo significar “bem”, “satisfatório”,
“adequado” + “partição”, “território”, “terra”, relacionado com um grupo de pessoas.492 Então,
a protossemântica de δαίμων poderia ser “partição” ou “partido”? Um grupo de pessoas? Caso
tenha lógica, como evoluiu semanticamente para algo mais abstrato como “destino”? Ou
relacionou-se com “celestiais”? Qual a sua aproximação com θεός? Tem ou não relação com o
português “demônio”?
De acordo com o Dicionário Houaiss (2009), o termo “demônio”, século XIII, é uma
evolução fonética e morfológica do grego δαίμων. Mas isso não esclarece a sua evolução
semântica. De acordo com tal dicionário, para o caso grego, o termo designa: “espírito

491
BEEKES, 2010, p. 297.
492
CHADWICK; BAUMBACH, 1963, ppp. 181; 184; 189. Também cf. BEEKES, op. cit., pp. 325; 484. Para
mais aprofundamento cf. CHANTRAINE, 1999, p. 246-248.
199

sobrenatural que, [...] apresentava uma natureza entre a mortal e a divina, frequentemente
inspirando ou aconselhando os humanos”. De “grupo de pessoas”, “partição”, “partilha”,
“divisão” para “espírito que inspira e aconselha os humanos” e depois “espírito maligno” ou
“entidade personificada do mal”? Vamos analisar um pouco mais essa problemática.
Não vamos precisamente nos aprofundar no tema, mas pretendemos esclarecer aqui essa
questão pois, é provável que “ateu” seja também aquele que tivesse alguma aversão, ou que
fosse irônico ao tema dos “demônios”, no sentido helênico – e que sentido seria esse? Para o
historiador francês Jean Beaujeu (1916-1995),

O termo δαίμων aparece nos poemas homéricos, onde ele é frequentemente


empregado para designar os mesmos personagens divinos θεός, na Odisseia,
parece que uma distinção tende a se estabelecer entre os Olímpicos fortemente
caracterizados pela mitologia e os δαίμωνες, que conservam os traços arcaicos
da divindade.493

Então, de Homero para Hesíodo, o termo passará a simbolizar supostos seres que
intermediam a relação entre celestiais e humanos. Um δαίμων seria, portanto, um acompanhante
da humanidade, semelhante a um ilu semítico, que teria por função cuidar da pessoa, do seu
destino e de sua sorte. Segundo Karol (2018),

Essa ideia ainda se expande para o εὐδαίμων, que poderia ser assimilado ao
bom gênio, e o κακοδαίμων, ao mau gênio, em relação à influência exercida
em cada mortal; muitos acreditavam estar sempre o homem sob a influência
de um εὐδαίμων ou κακοδαίμων que lhe cabia por sorte na hora do nascimento.
Por outro lado alguns chegaram mesmo a crer que os homens eram
frequentemente disputados por dois δαίμονες, um bom e outro mau, ideia que
se expande entre os séculos V e IV a.C.494

Por questões celestiais, o termo foi corriqueiramente associado ao âmbito atmosférico e


seus fenômenos, presentes no cotidiano das tribos, e também ao âmbito influenciador das ações
humanas, todavia, com um sentido hierarquicamente abaixo dos olimpianos, mais elevado do
que os dos heróis míticos, e superiores aos dos seres humanos.495 Provavelmente, o termo
genérico θεός e o termo δαίμων acabaram semanticamente confundidos devido ao sentido de
alguns dos nomes de personificação olimpianos guardarem a sua relação com a natureza, com
o céu e com os fenômenos atmosféricos, ou seja, funcionariam como “aparições aos humanos”,

493
BEAUJEU, Apulée. Opuscules Philosophiques, 2002, p. 185 apud KAROL, 2018, p. 86-87.
494
KAROL, op. cit., p. 87, grifos do autor.
495
Ibid., loc. cit. Discussão corrente na escola pitagórica helênica, fundada durante o século VI A.E.C.
200

como uma revelação celestial, uma inspiração divina – positiva ou negativamente para a
sociedade.496
Em questões de sentido, pode ser que encontremos alguma semelhança entre o δαίμων
(grego), o akh (egípcio) e o ilu,’ēl (semita), pois, todos foram nomes utilizados para inserir nas
suas comunidades a ideia de contato com o além, relacionada com a existência pós-morte, de
“alma”, “espírito”, de intermediário entre sobrenatural e humano, de proteção aos mortais,
principalmente contra espíritos maus, de mensageiros particulares, de inspiração oriunda do
mundo celeste, de repartidor dos destinos dos seres humanos. Com esta última, ainda
aproximaríamos do sentido primordial sumério para DINGIR, isto é, “aqueles que entregam o
que está decidido”, evidenciando a antiguidade da crença supostamente compartilhada, na qual
esses astros eternos influenciavam os nascimentos dos mortais, entregando para estes os seus
destinos, da mesma forma que podiam ou não se comunicarem, protegerem ou ajudarem a
humanidade mortal – incluindo a crença de que um indivíduo dito excelente ou especial poderia
ascender ao mundo espiritual dos astros após a sua partida do mundo material terreno.
Dessa forma, quiçá, para nós, mesmo partindo de suposições hipotéticas, fique mais
compressível a evolução semântica do termo nesse mundo grego.497 Diríamos: uma evolução
na ordem da investigação inconsciente ou semiconsciente. Como vimos, tais δαίμωνες, no geral,
acompanhavam o homem positivamente (εὐδαίμων) e negativamente (κακοδαίμων). Assim, um
δαίμων pode designar: uma entidade celestial, como em θεός; a força de θεός, principalmente
em Homero; como numen latino (merece investigação a parte); como genius latino (merece
investigação a parte); destino, fortuna (sorte); δαίμονες: as “almas dos antepassados”; como
lares, manes ou lemures latino (merece investigação a parte); elo etéreo entre θεός e seres
humanos; que distribui os destinos; a alma de um morto. Segundo Liddel e Scott, o termo θεός
nunca será usado para um δαίμων, todavia um δαίμων pode ser um elemento de θεός.498
Entretanto, a “personificação do mal”, o nosso “demônio”, vem de evoluções de
interpretações cristãs ao longo do tempo – que não aprofundaremos aqui. Segundo o filólogo
classicista Anders Drachmann, os primeiros pensadores cristãos, com o intuito de combaterem
o culto aos δαίμωνες entre os adeptos, comum na época clássica grega e romana (daemonēs),

496
Para mais aprofundamento cf. BEAUJEU, op. cit., p. 186-192 apud KAROL, op. cit., p. 87-89. Aliás, como já
indicamos no capítulo I, sobre a demonologia na Antiguidade, principalmente na ótica de Apuleio (século II E.C.)
cf. KAROL, 2018.
497
Ou seja, palavra etimologicamente relacionada com os sentidos de “partição”, “divisão”, assim, posteriormente
associada com a ideia de “repartição” do destino, neste caso, um destino determinado pelos nomes de
personificação sociorrituais de caráter afetivo, nomes que inserem os astros celestes na comunidade, na tribo.
498
LIDDEL; SCOTT, 1889, p. 322.
201

tornaram inteiramente maléfico o sentido do termo grego δαίμων e transferiram todo caráter
benéfico para outro termo grego: ἄγγελος, isto é, ao “anjo”, palavra que designa “mensageiro”,
“que carrega notícias ou instruções”, uma versão da Bíblia Septuaginta499 para o vocábulo
hebraico “‫( ”מַ לְּ אָּ ְך‬mal’āḵ), de sentido semelhante.500 Desse radical δαίμ(ο)- podemos destacar
as palavras: δαιμονάω (“estar em fúria”, “possuído por κακοδαίμων”), δαιμονίζομαι (“estar
possesso por δαίμων”), δαιμόνιος (“maravilhoso”, “extraordinário”, “origem celeste”,
“estranho”, “raro”, “incompreensível”, “voz interior”, “gênio”, “espírito bom ou mau”, “graça
celestial”, “inspiração celeste”), δαίμονος (“ser celestial”, “força regente pessoal”, “guardião
espiritual”, “alma dos mortos”, “fantasma”, “sombra”, “vontade celeste”, “decreto celeste”,
“destino dado pelo celestial”).

499
Nome dado ao cânon de textos judaicos traduzido ao grego comum (coiné) durante o século III A.E.C., período
de dominação helenística (ptolemaicos) na Judeia e no Egito. Também pode ser referida por LXX (70).
500
DRACHMANN, 1922, p. 129. No cristianismo, tende a ser uma entidade teoricamente maléfica, inimiga da
humanidade e de Deus. Mas no senso comum, ainda podemos identificar traços de sua antiguidade na fala das
pessoas, principalmente quando se encontram espantadas diante de algum feito humano considerado
extraordinário, belo, demasiado complexo, geralmente evidenciado pela expressão: “Estava possuído(a) [pelo
demônio].”, num sentido ligeiramente positivo.
202

ANEXO A – TRANSCRIÇÕES HIEROGLÍFICAS

BUDGE, E. A. W. An Egyptian Hieroglyphic Dictionary I. London: John Murray, 1920. ppp.


XLIV; LIX-LXI; LXIII.
203
204
205

ANEXO B – ENŪMA ELIŠ, TABLETE I, 1-24

TALON, Philippe. The Standard Babylonian Creation Myth Enūma Eliš: introduction,
cuneiform text, transliteration, and sign list with a translation and glossary in french. Helsinki:
State Archives of Assyria Cuneiform Texts; The Neo-Assyrian Text Corpus Project; Printed by
Vammalan Kirjapaino Oy, 2005. ppp. XIII; 3; 33-34
206
207
208

ANEXO C – HESÍODO, TEOGONIA, 114-138

HESIOD. Theogony; Works and Days; Testimonia. Translation by Glenn Most. Cambridge;
Massachusetts; London: Harvard University Press, 2006. p. 12-14.
209

ANEXO D – ÉSQUILO, AGAMÊMNON, 205-239

AESCHYLUS. Volume II: Agamemnon, Libation-Bearers, Eumenides, Fragments (Loeb).


Translation by Herbert W. Smyth. London: William Heinemann; New York: G. P. Putnam’s
Sons, 1926. p. 20-22.
210
211

ANEXO E – SÍMBOLOS

BEEKES, Robert S. P.; LUBOTSKY, A (ed.); Leiden Indo-European Etymological Dictionary:


Etymological Dictionary of Greek. Leiden; Boston: Brill, 2010. (Volume 10). p. XLVIII.

KROONEN, G.; LUBOTSKY, A. (ed.). Leiden Indo-European Etymological Dictionary:


Etymological Dictionary of Proto-Germanic. Leiden; Boston: Brill, 2013. (Volume II). p. XII.

ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 13.

[ ] Restauração.
( ) Interpolação do tradutor.
< > Omissão óbvia do copista.
--- Pequena lacuna no texto.
------ Grande lacuna no texto.
212

KLOEKHORST, A.; LUBOTSKY, A. (ed.). Leiden Indo-European Etymological Dictionary:


Etymological Dictionary of the Hittite Inherited Lexicon. Leiden; Boston: Brill, 2008. (Volume
5). pp. XIII; 15.

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