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TRICEVERSA

Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro


de Estudos Lingüísticos e Culturais
ISSN 1981 8432
www.assis.unesp.br/cilbelc
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007 CILBELC

PRESENÇA ITALIANA NA LITERATURA BRASILEIRA

Maria Luiza Berwanger da Silva


Programa de Pós-Graduação UFRS

RESUMO ABSTRACT
A vitalidade da poesia de Giuseppe The vitality of Giuseppe Ungaretti’s poetry,
Ungaretti, rememorada pela tradução e recalled in the translation and transcription
transcriação de Haroldo de Campos em by Haroldo de Campos in his “Daquela
Daquela Estrela à Outra, revitaliza o Estrela à Outra,” renews the dialogue
diálogo da literatura brasileira com a between Brazilian literature and Italian
literatura italiana, promovendo o retorno à literature and promotes the return to the
contemporaneidade da proposta contemporary nature of the modernist
modernista de reinvenção da Alteridade. proposal of reinvention of Alterity. It is
Aproxima‐os o traço de visualidade, o approached visually, with the effect of light,
efeito da luz, como forma de representar o as a means to represent the inexpressible
indizível da palavra poética. Com base nature of the poetic word. In this context,
nesse contexto, este artigo propõe this article proposes to examine the way
examinar o modo como essa paisagem de that the landscape of mixed voices has
vozes entrecruzadas repercute na poética repercussions in the poetry of Horácio
de Horácio Costa, que recolhe dessa Costa, collecting from that image the
imagem da luz o simbolismo da symbolism of intermittence and redesigning
intermitência e redesenha o território the national imaginary territory. The
imaginário nacional. A ressimbolização symbolism practiced by the poet is
praticada pelo poeta é mediada pelo mediated by the dialogue of the inter‐
diálogo da intertextualidade com a textual with diversification, having
Alteridade, reiterando a vocação da poesia reiterated the vocation of Brazilian poetry
brasileira para a auto‐referencialidade. Os for the self‐referenced. The verses of
versos de “Satori” de Horácio Costa "Satori" by Horácio Costa permit the
permitem recuperar o fio memorial de um recovery the memory of a place, of a time
lugar, de um tempo e de uma and of a subjectivity redesigned by the
subjetividade redesenhados pela presença foreign presence. Thus, the dialogue
estrangeira. Assim, o diálogo articulado articulated between Horácio Costa and
entre Horácio Costa e Haroldo de Campos, Haroldo de Campos, in the mediation of
na mediação de Giuseppe Ungaretti, Giuseppe Ungaretti, legitimize the
legitima a produtividade da presença productivity of the foreign presence for the
estrangeira para o reexame e a reexamination and the resulting rewriting of
conseqüente reescritura da história da the history of Brazilian literature. In this

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literatura brasileira. Nessa perspectiva, a perspective, Italian literature configures
literatura italiana configura‐se como itself as probable original space and file first
provável espaço matricial e from the lines of “Daquela Estrela à Outra”,
arquivo primeiro dos traços do Outro, printed in the national literary production to
impressos na produção literária nacional a be investigated.
ser investigada. KEYWORDS
Palavras‐chave Giuseppe Ungaretti; Haroldo de Campos;
Giuseppe Ungaretti; Haroldo de Campos; Horácio Costa; “Daquela Estrela à Outra”;
Horácio Costa; Daquela estrela à outra; “Satori”.
“Satori”.

Al caro Haroldo de Campos


per ricordo di
qualche momento
passato insieme
ad amar la
poesia sempre
nuova e sempre
poesia.
Giuseppe Ungaretti
(San Paolo, il 12/5/1967)
Um leão: ruivando arde –
na voz do leão – Leopardi
(céu noturno em Recanati)
virando constelação:
Odi, Melisso ... E o leão
resgata a um fausto de estrelas
caídas, a lua jamais cadente
e a Ursa, magas centelhas.
Depois, o leão (a Leopardi
tendo dado o que lhe cabe)
passa a medir o infinito
ou demoli-lo: do longe
daquela estrela (tão longe)
ao longe daquela estrela.
Trad. de Haroldo de Campos
e Aurora F Bernardini

Última obra publicada de Haroldo de Campos, a tradução da poesia de


Giuseppe Ungaretti intitulada Daquela Estrela à Outra (WATAGHIN, 2003, p.194),
reaviva o diálogo da Literatura Brasileira com a Literatura Italiana: o efeito
residual desta obra provoca o retorno de certas imagens do Modernismo à
Contemporaneidade, imagens nas quais, reordenada, a figuração da intimidade
lírica ressurge sob forma de paisagem que desdobra a própria continuidade da
própria memória da voz que fica. Entre, pois, a expressão da profunda amizade

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na dedicatória de Ungaretti, e que cede a epígrafe a esta obra de Haroldo de
Campos, e o poema com que se encerra o ensaio intitulado: “Ungaretti: O Efeito
de Fratura Abissal”, melodiosos, mas fortes, ecoam os versos de “Satori”, do
paulista Horácio Costa:

O problema foi ter visto


tantas reproduções com tão pouca idade.
Paragens fabulosas que murcharam,
palácios e suas escadarias comidas
pelos anos. Parques, estatuárias congeladas.
Páginas e páginas. Acervos estanques.
Rostos de turistas apressados
que pouco acrescentaram à banalidade
essencial a todo espaço. Não é esta
minha geografia encantada. Além
dos olhos e do coração selvagens,
cresce e caminha a resultante
supostamente habitável. Gimme shelter.
“Acredite em mim, receberás abrigo.” Acompanho
esta violenta partida de pólo em que jogam
centauros, à qual felizmente faltam regras.
Sou sua bola, de néon. Batem-me: não protesto.
Movimentos de cristal que pesam como chumbo.
La pelouse verte, déchirée à jamais.
Vou dançando. Por minhas veias volatiliza-se
a matéria: mercúrio.

[...]

tu entras no Túnel Rebouças


e subitamente o dia te cumprimenta
m’illumino d’immenso no bairro
de Santa Tereza. Esta sucessão
regressiva, estes cruzamentos
de raças, idéias, dobraduras,
nossos membros unidos, duas
bússolas, todas as sensações
imantadas: arco o pescoço
e mordo meu próprio torso. É
emergente, um estado de atenção
em arestas suspenso antes da chuva;
também eu na planície verde,
molhada, jamais virgem e
sonolenta, jamais descansada: [...] (COSTA,1989, p.61-2)

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Colhida de Ungaretti, neste poema “Satori”, de Horácio Costa, a imagem
“m’illumino d’immenso”, como poeticidade da luz plena e irradiada, traduz a
singularidade da paisagem brasileira pela geografia sensível e relocalizada no
espaço da imensidão íntima. “Micropaisagens, não micropolíticas” (COSTA, 2004,
p.193), diz Horácio Costa em outro poema, representando a comunidade
pós-moderna brasileira que busca fixar na página os ecos da palavra
transnacional, desde o Movimento Modernista de 1922, principalmente.
Confessa ou inconfessa, a mediação efetuada por Horácio Costa, ao
evidenciar a relação do ato de escrever com a memória da leitura, extrai de
citações, pertencentes a literaturas dispersas aproximadas, o ato de decantação
do lírico. Assim, “Satori” permite recuperar o fio memorial de um lugar, de um
tempo e de uma subjetividade redesenhados pela presença estrangeira.
Percebe-se, deste modo, que o significado de “Satori” como “iluminação, graça
ou revelação”, estado absoluto ou desejo de ser plenamente, - “desejo que a
linguagem, em sua condição precária, não pode alcançar, mas insinuar, buscar,
tatear” (apud COSTA, 2004, p.248), no dizer do romancista, crítico e tradutor
Milton Hatoum, - reitera-se na síntese crítica de Pierre Rivas, em recente
tradução da poesia brasileira, quando diz: “le poème [d’Horácio] naît du
manque, de la générosité et du hasard, iceberg aléatoire en lutte pour atteindre
et éteindre le sens qu’il désigne” (RIVAS et al., 2000, p.11).
Tais correspondências críticas permitem visualizar que, de forma singular,
duas vozes modernistas cruzam-se no projeto poético de Horácio Costa,
constituindo o fundo residual de que este poeta extrai modos de atenuar o
indecifrável da linguagem: a voz de Oswald de Andrade, antecipadora da
Alteridade e da Mundialização, na Conferência “L’Effort Intellectuel du Brésil
Contemporain” (Paris – Sorbonne, 11 de maio de 1923), e a de Mário de Andrade
na conferência sobre o Movimento Modernista de 1942, como consciência crítica,
remetem a textos que são revisitados pelo poeta Horácio Costa. Nele,
entrelaçados, os caminhos propostos por Oswald de Andrade e por Mário de

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Andrade convergem na cartografia da poesia brasileira contemporânea figurada
como Alteridade a reinventar.
Deste modo, a conferência professada na Sorbonne, em 1923, por Oswald
de Andrade, enfatiza o diálogo com a Alteridade (e ainda sob o impacto da
Semana de Arte Moderna – São Paulo, 1922) quando diz:

Dans la musique comme dans la littérature, le vingtième siècle est


dirigé vers les réalités, remonte les sources émotives, découvre les origines,
en même temps concrètes et métaphysiques de l’art. La France prend un
nouvel élan avec l’air vif du dehors, apporté par Paul Claudel, Blaise
Cendrars, André Gide, Valéry Larbaud et Paul Morand. Jamais on ne sentit si
bien, dans l’ambiance de Paris, l’approche suggestive du tambour nègre et
du chant de l’indien. Ces forces ethniques sont en pleine modernité.
Et là-bas, sous un ciel déiste, le Brésil prend conscience de son avenir.
Dans un siècle, peut-être, il y aura deux cents millions d’habitants latins en
Amérique. L’effort de la génération actuelle doit être de rattacher, non aux
formules vides, mais à l’esprit de des traditions classiques, les précieuses
contributions nouvelles apportées à cette greffe de latinité par les éléments
historiques de la conquête (ANDRADE,O., 1923, p.207).

Transparecem no balanço de Mário de Andrade sobre a prática e a produção


da Arte Brasileira Modernista, por ele sintetizados exemplarmente, em texto de
1942, como “direito à pesquisa estética, atualização da inteligência brasileira e
estabilização de uma consciência crítica nacional”(ANDRADE, 1948, p.142), três
pontos do olhar, em uma palavra, sob os quais a confluência na liberdade da
palavra poética, sublinhada por Mário, antecipa o lugar da Literatura Brasileira
na Mundialização, hoje mediada pela subjetividade. Compreendê-la como
entrelaçamento do Mesmo com o Outro e desse com o primeiro, eis o gesto
subjacente deste teórico, crítico e poeta interdisciplinar, que tem respaldado
pertinentemente o itinerário da produção nacional.
No rastro das nuanças legadas pelos mestres do Modernismo ao paulista
Horácio Costa, Vida e Arte aproximadas transformam a consciência do desgaste
temporal expressa no verso: “as metáforas que o homem fabrica são cápsulas
que o tempo desfaz” (COSTA, 2004a, p.80), em escritura poética que “surge da
falta” (falta como distância interior a completar, representativa da poesia
brasileira vista como lugar da palavra territorial em busca constante do

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extraterritorial). Gesto de auto-referencialidade, por outro lado, onde a lucidez
crítica percebe que “quanto mais microscópica a visão, maior a difração do
sujeito” (COSTA, 2004a, p.59), “Satori”, de Horácio Costa, ressimboliza a página
através da coabitação harmoniosa de fragmentos extraídos de diferentes poéticas
estrangeiras.
Nos fragmentos citados, como amostragem da totalidade do poema
“Satori”, “Gimme shelter” e “La pelouse verte déchirée à jamais”, estas
representações do imaginário do Outro, sintetizadas pela imagem de “m’illumino
d’immenso”, remetem, de certo modo, à presença nomeada de Jacques Derrida,
nos versos:

Vamos.
Conversemos com a eternidade
deste espaço em branco.
[...]
O filósofo disserta infindavelmente
proliferando intenções. O som da voz
bate e reverbera nos cristais
e encontra seu limite nos bordes deste
plano. Croscruza o branco.
Lá fora uma cidade quase dorme depois
da chuva. A alteridade é percebê-la
em stillness, enquanto avança a noite
e se corrompem as palavras (COSTA,1989, p.71)

Se a celebração do estrangeiro esbarra nas fronteiras da página, mesmo


assim a “corrupção” das palavras, simbolizando transformação, legitima a
escritura deste poema sobre o próprio ato de escrever, como se o escrever sobre
o escrever requeresse o traçado do Outro. Inapagável, já que contínua, produtiva
e desencadeadora de reinvenções, a lembrança deste crítico francês e teórico da
tradução, (que tantas vezes veio ao Brasil), reafirma o eixo:
intertextualidade/tradução/representações do Outro. Acrescente-se a esta
reminiscência a profunda correlação do traço da prática tradutória como
“transcriação” sublinhada por Haroldo de Campos, reiterando a visualização de
Horácio Costa como arquivo da voz poética brasileira hoje. É, pois, neste
sentido, que, se a transparência dos mestres modernistas evocados e o diálogo

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constante com a Literatura Latino-Americana e a Mundial legitimam a tradução
para o francês da poesia de Horácio Costa, o poeta retece esta “deuxième main”
à luz da geografia recartografada. Deslocar o finito, retocando-o de luzes, cores,
sons e perfumes, eis, em síntese, o verso que refaz a arquitetura da cidade de
São Paulo; como se deambular, errar ou “flâner” pelas ruas da Paulicéia
Desvairada (imagem cara a Mário de Andrade) recentrasse o lirismo da voz.
Silenciosa e inconfessa, redesenha espaços e emoções estéticas: converte-os, o
poeta, em lugares do imaginário primordial, redizendo, a seu modo, o gesto de
ser “paulistamente”, imagem-síntese da constelação de poemas intitulados
“Paisagem”, dispersos ao longo da poesia de Mário de Andrade (BERWANGER DA
SILVA, 2004, p.27-42)1.
Horácio Costa legitima o aprendizado da reinvenção do Outro como lição
legada à Literatura Brasileira pelos mestres modernistas, que incide na
revalorização da Vida pela Arte. Como o sintetiza o poeta, fazendo-se voz da
comunidade poética brasileira, ao examinar Oswald de Andrade:

Em Oswald, literatura é vida; para ele não havia fronteira entre viver e
escrever, ainda que não tivesse nunca se definido se esta era sua melhor
forma de atuação. Em Oswald de Andrade, há uma ética de que eu creio
compartilhar; neste sentido, minha vida/escritura é para ele homenagem
[...] (COSTA, 2004a, p.115).

Surpreende, em Horácio, o impacto da visualidade, recuperando o fio


memorial da geografia urbana que entrecruza a subjetividade. Se o olho recicla,
a mão que escreve grava, sobre a página, a dicção plural de vozes entre o visível
e o invisível, paisagem na qual a Arte amplia a Vida:

Oh tu, que és o enésimo a ver a tarde,


esta singular tarde contemplável,
mostra-me não só a difração do mundo
ao longe, a harmonia não geométrica
que se resolve em planos da cor do ar
e da montanha, e que cada dia é outra:

1
Ver, também: EXOTISMO y Alteridad: lo mismo como otro, lo otro como lo mismo. In: El hilo de la fábula
4. Revista del Centro de Estudios Comparados, Santa Fé (República Argentina): Facultat de Humanidades y
Ciencias – Universidad Nacional del Litoral, año 3, p.49-60, 2004.

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Diz-me como captaste sem paixão
[...]
a noite que se oculta em pleno dia.
Diz-me qual a cor da cor e a do agora.
Tu o sabes. A mim propõe-me a vida
a massa e a presença indiferente
desta montanha Sainte-Victoire (COSTA, 2004a, p.170-1).

Assim dizem os versos dedicados a Cézanne, versos representativos da busca


do extraterritorial, grão textual com que se redesenha a pintura de paisagens
brasileiras.
Poeta-crítico, esta inquietude com o olhar a Arte de modo amplo e
irradiado confirma-se em A Palavra Poética na América Latina: avaliação de uma
geração (1992), obra organizada e prefaciada por Horácio Costa, onde se sublinha
o traço da poética transgressiva, traço básico da poesia hoje, demarcando a
diversidade dos terrenos comparatistas consagrados ao transtextual. Nesta obra,
a afirmação de que “o centro está em toda parte” (COSTA, 1992, p.26-7) dialoga
com imagens sintetizadoras da reflexão teórico-crítica intermediada por imagens
como o “pas au-delà” de Maurice Blanchot, a leitura por cima do ombro do Outro
em George Steiner, a imagem das “múltiplas moradas” de Cláudio Guillén e com
a do “Arco-Íris Branco” de Haroldo de Campos, imagens-síntese do comparatismo
como lugar de reescritura do Outro. Diz o poeta em entrevista à revista Tsé, Tsé,
transparecendo este fundo textual da modernidade crítica:

Creo que ya pasamos la fase de escribir précis de literaturas o lo que


sea; finalmente hoy en día, y debido a la labor de varias generaciones de
traductores, ya conocemos mucho mejor la literatura hispanoamericana en
Brasil y la brasileña en tierras hispanas, y ya podemos escribir sobre nuestras
literaturas mutuas sin tanta distancia o temor. Y después, la respetable
intención de ofrecer al estimable público historias generales de lo que sea,
bueno, como que se quedó en el siglo pasado, ¿no? Con el avance del
comparatismo, hay una creciente y fecunda tendencia a diálogos sectoriales
entre lenguas, autores, sectores, tendencias, etc. El pensamiento totalizador
sufre recortes todos los días. Yo no puedo escribir ensayos como un Toynbee
o un Cantú, desprendimientos de Spencer. Sí puedo ensayar. Y lo hago, en
mar abierto (DANIEL, s.d., p.69).

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Assim, pois, os versos de “Satori”, ao preencherem o vazio da memória pelo
conjunto de citações diversas, encontram no diálogo com o poeta, crítico e
teórico da tradução Haroldo de Campos o lugar primeiro de uma conversa infinita
(bem ao gosto de Maurice Blanchot), iniciando-se pela palavra de homenagem de
Horácio ao Mestre Haroldo:

[...] a Ave corta o céu com rapidez de palavra, cai na terra como dardo
de poesia no plano da página, enfáticas brasas, micro-explosão, demolição
interior, fósforo e nada, estás imóvel e a acompanhas em seu vôo, rapaz em
busca da carne branda da leitura, veja o mundo como um vitral, o agora
imenso nos olhos do animal se faz memória, gárrulo epigramático, zênite,
singraste-me, a caça terminou e aqui tens teu prêmio, libera o animal, read
me again (COSTA, 2004, p.52).

Nestas palavras, o jogo da intertextualidade representada pela imagem da


caça significando releitura sugere a prática de revitalização articulada pela
evidência de marcas residuais que evocam, de certo modo, a mediação do
simbolismo do “pássaro” como lembrança inapagável da poesia de Haroldo de
Campos.
Faz-se pertinente assinalar que a proximidade simbólica estabelecida entre
Horácio Costa e Haroldo de Campos, nestes versos de homenagem, modelados
pela poeticidade do pássaro, não só relembram a transparência de Xadrez de
Estrelas2, mas também compõem um paralelismo perfeito com a própria
figuração da linguagem por Haroldo, ao explicitar os bastidores tradutórios da
poesia “Mattina” de Giuseppe Ungaretti: “[...] L’Allegria, poemas dos anos
1914-1919, concisos e luminosos, arabescados como se a linguagem pudesse ter a
leveza e a levitação de um vôo” (in WATAGHIN, 2003, 191).

2
Relembro fragmentos de “Teoria e Prática do Poema”, do livro Xadrez de Estrelas, de Haroldo de Campos:
“I Pássaros de prata, o Poema / ilustra a teoria do seu vôo. / Filomela de azul metamorfoseado, / mensurado
geômetra / o Poema se medita / como um círculo medita-se em seu centro / como os raios do círculo o
meditam / fulcro de cristal do movimento. / II Um pássaro se imita a cada vôo / zênite de marfim onde o
crispado / anseio se arbitra / sobre as linhas de força do momento. / Um pássaro conhece-se em seu vôo, /
espelho de si mesmo, órbita / madura, / tempo alcançado sobre o Tempo. / [...] Assim o Poema. Nos campos
do equilíbrio / elísios a que aspira / sustém-no sua destreza. / Ágil atleta alado / iça os trapézios da aventura. /
Os pássaros não se imaginam. / O Poema premedita. / Aqueles cumprem o traçado da infinita /astronomia de
que são órions de pena./Este, árbitro e justiceiro de si mesmo, / Lusbel libra-se sobre o abismo, / livre, / diante
de um rei maior / rei mais pequeno” (CAMPOS, 1976, p.55-56).

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Visto pelo ângulo da cumplicidade intelectual, o ensaio de Horácio Costa
intitulado “Revisión: Dinámica de Haroldo de Campos en la Cultura Brasileña” do
livro Haroldo de Campos, Don de Poesía (2004), organizado por Lisa Block de
Behar, consolida estes laços de profunda amizade ao demarcar a fisionomia
haroldiana pelo traço da “conciliação” e da “coabitação” de presença, temas e
migrações que Haroldo acolhe, “sin abdicar de su propia trayectoria” (COSTA,
2004b, p.100); como se o olhar da travessia com que Horácio Costa singulariza
Haroldo de Campos lhe servisse de matriz e bússola norteadora da pluralidade de
caminhos figurados.
Publicação paralela ao Don de Poesía, o livro Transcriações: teoria e
práticas – em memória de Haroldo de Campos (2004), organizado por Tânia
Franco Carvalhal et al; acentua a face do comparatista, cuja densidade de
pensamento reconfigura a paisagem brasileira pela percepção difratada do
Outro. Portanto, o diálogo de Lisa Block de Behar, ao identificar em Haroldo de
Campos “la previsión que el poeta que sabe, emblematiza en escritura, en um
verso que se ve: ‘escrever é uma forma de /ver’” (apud CARVALHAL, 2004, p.20),
com a percepção de Tania Franco Carvalhal, em Haroldo, de “uma poesia densa
e espacial, de herança mallarmaica” em que se reconhece uma “tradição de
imagens” (CARVALHAL, 2004, p.31), - este diálogo crítico ressalta, em Haroldo de
Campos, o traço da visualidade como lição legada ao poeta Horácio Costa e à
poesia brasileira e reconhece, na paisagem poética, o prazer do confessional em
incessante propagar-se.
Plenitude do dizer ou dizer da plenitude? Paisagem da Alteridade a
retrabalhar o diálogo interno dos poetas brasileiros transforma-se em arquivo de
constelações diversas e residuais. Vista deste ângulo, a composição poemática de
Horácio Costa, como poeta-síntese da amostragem brasileira apresentada por
Pierre Rivas, na Anthologie 18+1 Poètes Contemporains de Langue Portugaise
(2000), evidencia a perspectiva da intertextualidade como a focaliza a Teoria da
Literatura Comparada hoje e poderá configurar a relação interna e externa

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articulada pela comunidade poética brasileira como território do imaginário
perspectivado pelas relações intertextuais com a Alteridade.
“Intertextualité généralisée”, esta a imagem com que Michel Garcia
encerra a Histoires des Poétiques (1997) e transcreve o pensamento de Jean
Bessière, comparatista francês que sublinha, ao longo de sua produção
teórico-crítica, a vocação do literário à transtextualidade. (Refiro-me
especialmente a textos como: “Des Équivoques de la Théorie Littéraire” , no
livro Perspectives Comparatistes (1999), e “Théorie et Critique Littéraires
Contémporaines: Cultures Nationales et Transnationales” , na obra Fronteiras
Imaginadas (2001)). Em olhar que, ao se projetar sobre o Outro e, ao se deixar
por ele atravessar, transgride lugares, fronteiras e sensibilidades, essa prática de
ressimbolização, mediada pelo diálogo da intertextualidade com a Alteridade,
amplia o conceito de paisagem. Emergente da poética de Horácio Costa como
amostragem da produção local, na Poesia Brasileira, do Modernismo à
Contemporaneidade, a Paisagem tanto figura a migração da intimidade lírica ao
Diverso, desenhando certas imagens espacializadas, a exemplo da fábula do lugar
e da memória, quanto articula formas plurais de abordagem de singularidades
próximas e distantes em movimento de constante entrecruzamento e
reconfiguração. Dito de outro modo: o prazer da dicção auto-referencial,
captado da intertextualidade vasta, agrega à consciência do compartilhar e ao
desejo de harmonizar nacional e transnacional, artístico, não-artístico e cultural
o exercício da difração3.
Desdobramento que sustenta a incorporação de novas geografias e
subjetividades, a projeção da imagem “m’illumino d’immenso”, de Ungaretti
sobre a paisagem de Horácio Costa, tal como a de um grão fertilizador,
acompanha-lhe a modulação lírica em seu conjunto de cores, formas, nuanças e
perfumes, como se a luz irradiada das paisagens do Uno e do Diverso em

3
Tomo de empréstimo da poesia de Horácio Costa o simbolismo da difração que corresponde ao
efeito poético gerado pelo movimento da luz disseminada, mas intermitente, assegurando o
prazer da sublimação.

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entrelaçamento antecipasse a plenitude da palavra poética no espaço ainda em
branco da página que virá.
Se, de um lado, a lembrança de Ungaretti legitima a prática da
intertextualidade revitalizadora, incidindo no desenho de comunidades
simbólicas, por outro lado, evidencia a produtividade da tradução para o ajuste
do imaginário do Outro ao espaço do Mesmo, amplo e disseminado, “difratado”,
sopraria Horácio Costa em voz seminal: no exame da Alteridade, reinvenção e
retradução constituem faces do mesmo percurso da memória estrangeira a
retecer.
Deve-se retornar a Haroldo de Campos, aos bastidores do desejo de traduzir
G. Ungaretti, poeta que lhe ensina a transgressão do “efeito de fratura abissal”
da linguagem mediado pela inscrição, na página em branco, das imagens do
infinito, do indeterminado e do inexprimível ou, como o elucida o próprio
Ungaretti, na conferência “Difficoltà della Poesia”, (figurando na poesia), “a
concentração de toda realidade naquela partícula dela que lhe foi dado
perceber” (CARVALHAL, 2004, p.193), enquanto tentativa de decifração do traço
enigmático da linguagem poética. Um diálogo singular se estabelece, pois, de
modo quase inaudível, na poesia brasileira, cujos ecos (e “bruissements”) da
presença estrangeira revitalizam, explicitando, a aproximação de Horácio Costa
com Haroldo de Campos. Como elos que se soldam àquela conversa infinita,
traduzida pelos versos de homenagem de Horácio a Haroldo, gera-se, entre estes
dois poetas-críticos brasileiros, uma zona de convergência figurada pelo projeto
de expressar o inexprimível, “núcleo duro” da poética de G. Ungaretti. Paisagens
difratadas que sublimam, decantando, o olhar que atravessa e propaga, a
exemplo dos versos de Horácio:

[...]
num ponto imóvel entre o ser o sendo
aquém do sonho e muito além do canto
corpo em abandono, devir em tréguas
irrompe e pousa em mim o movimento
plenitude escassa entre praia e monte
rosto encontrado, flor intermitente,

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escritura uma vez reverberante
anábase e silêncio, vida ou nada
(in RIVAS et al., 2000, p.208).

Se a incidência na visualidade captada do poeta italiano difrata a paisagem


poética brasileira, Horácio Costa recolhe deste simbolismo da luz, do “m’illumino
d’immenso”, o simbolismo da intermitência. E, entre dois espaços luminosos,
redesenha o território do imaginário nacional pelo efeito da luz cambiante, da
paisagem cujo contínuo recartografar tanto reitera a inclinação da poesia
brasileira à auto-referencialidade, quanto se faz produtivo para o exame da
presença estrangeira na Arte do Brasil. Dito de outro modo: sombra e mancha, o
traçado do poeta italiano, em sua passagem por estas terras tropicais, ao ampliar
a cronologia apontada por Haroldo (1936-1947), evidencia a exemplaridade do
trabalho intertextual incessante (e, por vezes, inconfesso) da “remodelização da
inteligência brasileira”, como o ensejava Mário de Andrade, emergente destes
espaços de trégua e de reencontro, nos quais o sujeito harmoniza-se com a
própria subjetividade. Provavelmente, a “forma” a que alude G. Steiner (1989,
p.226) em Réelles Présences, quando diz “la vie des arts vit dans une forme
d’extraterritorialité”, corresponde a esta escuta silenciosa: instalado entre a
sedução luminosa da Diversidade e a consciência da interioridade, o sujeito
concede a si mesmo o desejo de habitar “múltiplas moradas” alternativamente,
nomeando paisagens inusitadas às quais, intermitente, a luz assegura o desvelar
da consciência poética, contínuo e progressivo.
No retorno a São Paulo, após um longo período de vivências em outros
países, o poeta Horácio Costa deixa-se novamente invadir pelo caleidoscópio da
luz difusa, claridade do espaço rememorado sobre o espaço visto com que se
surpreende o poeta nestes fragmentos de um poema recente e inédito:

[...]
dezesseis graus na Paulista
[...]
folhas que se dispersam
sim vou com elas
rumo ao meu santuário

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interior
no “chiaroscuro” me ilumino
deslindo o que há
o agora é o que há
o onde é o agora
sob os teus
cascos
(São Paulo, 17.07.2005).

Do sopro do exercício de reinvenção, estimulado pelos teóricos


modernistas, na síntese exemplar de Oswald de Andrade e Mário de Andrade,
permanece ainda retido, na Literatura Brasileira, o fio da Alteridade a examinar.
No caso de Giuseppe Ungaretti, sua passagem pelo Brasil conforma uma voz
de resistência que, tal a imagem da “flor intermitente” na poesia de Horácio
Costa, reordena a comunidade poética local, antecipando-lhe a inserção na
Literatura Mundial. Assim, o diálogo articulado entre Horácio Costa e Haroldo de
Campos, na mediação de Giuseppe Ungaretti, legitima a produtividade da
presença estrangeira para o reexame e a conseqüente reescritura da história da
Literatura Brasileira. Vista sob este efeito da poética da luz difratada e, pois,
espectral, sorvido do poeta italiano, a Literatura Italiana configura-se como
provável espaço matricial e arquivo primeiro dos traços do Outro, marcados na
produção literária nacional a ser investigada.
A vitalidade de Ungaretti, rememorada no Brasil por ocasião da tradução
definitiva de Haroldo de Campos, faz pressupor que a transparência da
italianidade condense um dos lugares de alta irradiação para a poesia brasileira
hoje. Imagens como a da luz, a da distância infinita, a da alegria e tantas outras
representam faces do sujeito que se autocontempla na busca de transgredir o
“efeito da fratura abissal”, referido por Haroldo de Campos e extraído de
Ungaretti para simbolizar o indizível da palavra poética; como se redizer a
amplidão da geografia brasileira pela poética à luz retraduzisse, irradiando, a
subjetividade multifacetada. Residual, esta constelação imagética legada
provoca em todo leitor, nacional, transnacional e virtual, o desejo de relocalizar
textos fundadores do Modernismo nos de ressonâncias poéticas, a exemplo da

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obra de Horácio Costa, tanto por constituir obra derradeira do Mestre Haroldo de
Campos quanto por reacender os laços da amizade Brasil-Itália, Daquela Estrela à
Outra condensa, no prazer do ato tradutório, o próprio prazer das constelações
recartografadas, singularidade do vasto legado haroldiano. Comunidades
simbólicas, pois, em que o jogo entre paisagem em difração e em intermitência
articulado pela Alteridade mostra o grão seminal de uma escuta poética a ecoar
na Poesia Brasileira da Contemporaneidade. Vista deste ângulo da palavra que
fixa sobre a página a voz de uma escuta primeira, a dedicatória de Ungaretti a
Haroldo de Campos como “ricordo di qualche momento passato insieme ad amare
la poesia sempre nuova e sempre poesia”, ao acionar em Haroldo o próprio fundo
memorial de Leopardi, figurando a paisagem de vozes entrecruzadas e que
repercutem em Horácio Costa, imprime, nesta obra última publicada de Haroldo
de Campos, o traçado de um percurso inaugural: confunde-se a luz na poesia que
cria, sempre a mesma e sempre outra.

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