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Luiza Neto Jorge

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Poeta e tradutora (1939-1989). Sem anular a relação do texto com o contexto histórico-so-
cial, na poesia de Luiza Neto Jorge há um espaço que se inventa na linguagem. Ler o seu
primeiro livro – A Noite Vertebrada (1960) – é já perceber como a expressão da poesia, a
partir da leitura da realidade, transforma os significados socialmente cristalizados em sig-
nificantes produtores de novos sentidos. […] A poesia de Luiza Neto Jorge tem […] algo de
encenação dramática. Nela questionam-se as relações socioculturais, familiares, afetivas,
políticas, questionando os próprios discursos que as veiculam. Razão teve Gastão Cruz ao
defini-la uma poesia de situações, de acontecimentos. […] Versos perfeitos, harmoniosa-
mente irregulares, com uma musicalidade intensa, cortados por elipses frasais e semânti-
cas e por uma afiada ironia de comparação difícil na literatura de língua portuguesa.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da, 1997. “JORGE (Luiza Neto)”. In Biblos – Enciclopédia Verbo
das Literaturas de Língua Portuguesa. Vol. 2. Lisboa: Verbo (pp. 1278-1280)

Algumas obras: A Noite Vertebrada, 1960; Quarta Dimensão, 1961; Terra Imóvel, 1964; O
Seu a Seu Tempo, 1966; Dezanove Recantos, 1969; Os Sítios Sitiados, 1973; A Lume, 1989.

O Poema (II)
Piso do poema
chão de areia

Digo na maneira
mais crua e mais
5 intensa

de medir o poema
pela medida inteira

o poema em milímetro
de madeira
10 ou apodrece o poema
ou se ateia

ou se despedaça
a mão ateia

ou cinco seis astros


15 se percorre

antes que o deserto


mate a fome
fotocopiável

JORGE, Luiza Neto, 2001. “Os Sítios Sitiados”. In poesia.


2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 57-58) (1.ª ed.: 1993)
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O Poema Ensina a Cair


O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
5 queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda


da lenta volúpia de cair,
10 quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
JORGE, Luiza Neto, 2001. “O Seu a Seu Tempo”. In poesia. 2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 41) (1.ª ed.: 1993)

Eu, artífice
Atento agora ao traço,
corrijo o mais da matéria,
ergo a minha arte do poço
onde flutua.

5 Como o brilho se desprende


do metal mais bravo,
no forro de cada um
o desgaste é tanto

que eu, artífice, colho


10 o que de mim alimenta,
falo do que estou sendo,
da sua mão em desordem,
dos passos, das lágrimas baixas Manuel Cargaleiro, sem título, 1969.
que se vão constituindo. Museu Calouste Gulbenkian

JORGE, Luiza Neto, 2001. “Os Sítios Sitiados”. In poesia. 2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 135) (1.ª ed.: 1993)
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Comenta a arte poética e a figuração do poeta apresentadas nos poemas.


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68 Poetas contemporâneos

Recanto 2
Viver, entretanto, é ver, ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça ou exclua
no interior dos sonhos.

5 Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios


quando, a passar, se retém a espessa

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água do tempo, da tempestade.

Um comércio, apenas – desvio da moeda


da trajetória do ouro
10 para o papel.

Sempre viver incluiu andar percorrer voar


de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório.
JORGE, Luiza Neto, 2001. “Os Sítios Sitiados”.
In poesia. 2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 179) (1.ª ed.: 1993) Florence Henri, sem título, 1926-1929.
Museu Coleção Berardo

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Identifica o tema da composição poética.


1 

1.1. Expõe brevemente a forma como o sujeito poético o perspetiva.

Explica o sentido do exemplo apresentado nas segunda e terceira estrofes.


2 

A última estrofe apresenta uma evolução relativamente ao que é expresso na pri-


3 
meira.

3.1. Justifica a afirmação.

Identifica o recurso expressivo utilizado no verso 11 e refere o seu valor.


4 

Gramática

Identifica a função sintática desempenhada por “no comércio de viver” (v. 5).
1 

Refere os processos fonológicos ocorridos na evolução do étimo monētam para


2 
“moeda” (v. 8).
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Acordar na rua do mundo


madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
5 por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.


um pombo morto foi na enxurrada
10 junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

15 sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite


sabe ao certo o que aconteceu. Estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios. pombos debicam

o azul dos azulejos. assoma à janela


20 quem acordou. o alarme não para o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai


de um vaso salpicando o fato do bancário
JORGE, Luiza Neto, 2001. “A Lume”. In poesia. 2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 284-285) (1.ª ed.: 1993)

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Identifica o tema da composição.


1 

Refere as sensações representadas no poema, transcrevendo os elementos do


2 
texto em que te fundamentas.

Identifica os recursos expressivos presentes nas expressões que se seguem e re-


3 
fere o seu valor.
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a. “soa o sino sólido as horas” (v. 6);


b. “os lençóis na corda / abanam os prédios” (vv. 17-18).
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Evidencia, através de exemplos, a perspetiva crítica do sujeito poético.


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70 Poetas contemporâneos

Endecha dos mais novos


Enquanto o nosso coração voraz

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bate a descompasso com o da Terra,
não queremos ripostar demais à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

5 Compêndios de nojo, atas de festa,


são escrita tremida para nós,
mas não se lembrem doutores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem


10 quando ao leme do ventre almareámos1;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém.
Vangel Naumovsky, 1973, Pearls of Youth. JORGE, Luiza Neto, 2001. “A Lume”. In poesia.
National Gallery of Macedonia 2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 245) (1.ª ed.: 1993)
(Exposição)
1. de almarear – ter uma sensação de vertigem, tontura, enjoo.

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Com a ajuda de um dicionário, justifica a classificação do poema como “endecha”.


1 

1.1. Interpreta o título do poema, considerando o seu assunto.

Delimita os diferentes momentos da organização interna do texto, fundamentando


2 
a divisão que efetuares.

Identifica os recursos expressivos presentes nos versos seguintes e explicita o seu


3 
valor:
a. “não queremos ripostar demais à guerra, / fugimos de apostar demais na paz”
(vv. 3-4);
b. “Só a voz do sangue ouvimos bem” (v. 9).

Destaca a dimensão crítica da composição poética.


4 

Divide os dois primeiros versos em sílabas métricas e classifica-os.


5 

Descreve a estrutura rimática do poema.


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Natureza morta com Bernardo Soares


Esta mesa de mármore
mó absorvente onde
as folhas espadanam1
põe-me na rota dessoutro
5 bojo2 calipígio3 onde o poeta
ele-mesmo copiava a escrita.

Vagueia a paisagem, irradiando-me;


embaciado sol me localiza
sou eu, é minha a mesa,
10 meu o sossego, e mói.

Sobre o ringue sem patinadores,


cisterna seca à minha frente,
poluídas tílias em flor.
Ousarei invocar outro terreiro,
15 o sol a sol do só, a poluída vida,
os duplicados que o poeta fez?

Plagiadas arcadas:
Fernand Leger, Nature morte, 1914.
e o meu olhar margina In Les Soirées de Paris: recueil mensuel,
as águas, pródigas águas n.º 26-27, julho e agosto de 1914.
Biblioteca Nacional de França, Paris
20 que redemoinham após a seca.
JORGE, Luiza Neto, 2001. “A Lume”. In poesia.
2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 239) (1.ª ed.: 1993)

1. jorram;
2. parte mais reservada e fundamental, âmago;
3. de nádegas formosas.

Escrita Exposição sobre um tem a

Redige uma exposição bem estruturada, de duzentas a trezentas palavras, na qual


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apresentes as linhas de leitura do poema.


Planifica previamente o teu texto, atendendo ao género, e aplica-te na textualiza-
ção. Faz a sua revisão e aperfeiçoamento e, caso recorras às tecnologias de infor-
mação na edição do teu trabalho, utiliza-as com acerto.

b lo co i n fo r m at i vo pp. 320-321
fotocopiável
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Leitura | Compreensão Questionário resolvido

Lê atentamente o poema de Luiza Neto Jorge.

Encantatória

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Custa é saber
como se invoca o ser
que assiste à escrita,
como se afina a má-
5 quina que a dita,
como no cárcere
nu se evita,
emparedado, a lá-
grima soltar.

10 Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
15 a porcaria.
JORGE, Luiza Neto, 2001. “A Lume”. In poesia.
2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 240) (1.ª ed.: 1993)

1. Apresenta o estado de espírito do sujeito poético, tal como evidenciado na primeira


estrofe.
O sujeito poético deixa transparecer a dificuldade na concretização da sua poesia
(vv. 1-3), associada à falta de inspiração (“como se afina a má- / quina que a dita”, vv. 4-5) e
ao aprisionamento em que se sente (“como no cárcere / nu se evita / emparedado, / a
lá- / grima soltar, vv. 6-9).

2. Descreve a estrutura interna do poema, relacionando o assunto das duas estrofes.


Depois das referências da primeira estrofe ao processo poético e ao sofrimento que
dele faz parte, surge, na segunda, a escrita/poesia como elemento purificador (que “ar-
reda / do branco suporte / a porcaria”, vv. 13-15), que ainda que custoso, permite, pela
palavra, “emendar” ou “desviar” realidades negativas.

3. Explicita o valor das repetições dos versos 1 e 10.


As anáforas intensificam as dificuldades e o intenso sofrimento do sujeito poético na
procura da palavra poética, transpondo para a composição um ritmo intenso e ansioso.
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