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Augusto dos Anjos: um poeta singular

Augusto dos Anjos (1884-1914) é um caso singular: do Parnasianismo,


herdou o gosto pelo soneto; do Simbolismo, o tema da angústia existencial;
de ambos, o cuidado com a forma. Valeu-se, ainda, do cientificismo natu-
ralista, do qual extraiu o inusitado vocabulário e a visão materialista. A in-
fluência de estéticas do século XIX aproximou-o dos demais pré-modernis-
tas, mas a ausência de referências ao Brasil de sua época diferenciou-o deles.
Seus poemas tematizam a dor de existir e a inevitabilidade da morte.
Não se trata, porém, de uma poesia espiritualista, que reflete sobre o desti-
no da alma. Ao contrário, fixa-se na matéria e na decomposição do corpo.
O eu lírico afirma a incondicional podridão para a qual se dirigem todos
os seres humanos, destino que desqualifica a existência. Seguindo o pensa-
mento do filósofo alemão Schopenhauer, de grande repercussão no perío-
do, Augusto dos Anjos via a dor como a essência do mundo e os momentos
de prazer apenas como sua suspensão temporária.
Para expressar sua visão negativa, o eu lírico desestabiliza a própria poe-
sia, recorrendo a termos e a imagens incomuns no campo poético, como se
lê em “Psicologia de um vencido”.
Margens do texto
Psicologia de um vencido
1. Transcreva os termos científicos
Eu, filho do carbono e do amoníaco, presentes no poema.
Monstro de escuridão e rutilância, 2. Como é abordado o tema da
Sofro, desde a epigênese da infância, morte? Justifique.
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
VOCABuLÁRIO DE APOIO
Que se escapa da boca de um cardíaco.
análogo: semelhante
carnificina: massacre, matança
Já o verme – este operário das ruínas – epigênese: teoria do desenvolvimento dos
Que o sangue podre das carnificinas seres por transformações graduais
Come, e à vida em geral declara guerra, espreitar: espiar, observar de lugar oculto
frialdade: frieza
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, hipocondríaco: indivíduo que se preocupa
E há de deixar-me apenas os cabelos, excessivamente com a própria saúde
Na frialdade inorgânica da terra! rutilância: cintilância, brilho
Capítulo 2 – O Pré-Modernismo – retratos do Brasil

ANjOs, Augusto dos. Melhores poemas. 3. ed. São Paulo: Global, 2001. p. 51.

O soneto descreve as ações do eu e do verme. O eu somatiza o dra-


ma existencial, enquanto o verme arquiteta silenciosamente sua destruição
Ouça
final. O vocabulário científico, tomado principalmente da Química, e as
imagens repulsivas reforçam a natureza perecível e finita do ser humano. Ninguém, de Arnaldo Antunes. Rio de
Janeiro: BMG, 1995. 1 CD. Faixa 1.
Para explicar o fazer poético de Augusto dos Anjos, o crítico Anatol Ro-
O compositor Arnaldo Antunes criou
senfeld usou a expressão exogamia linguística, que significa a introdu- uma versão cantada do soneto “Budismo
ção de um elemento estranho no fluxo histórico de uma língua. Na poesia moderno”, de Augusto dos Anjos, que
pré-modernista, esse elemento não eram os estrangeirismos, mas o voca- é acompanhada de uma mistura de
sons inusitada: sons estridentes, como
bulário científico, os coloquialismos e os termos ligados à deterioração do ruídos de serrote, são combinados a
corpo, que, ao lado de palavras usuais em poemas, resultaram em uma sons harmoniosos. Dessa forma, retomou
a tendência do poeta pré-moderno de
combinação provocativa, dessacralizando o poema e dando-lhe novo vigor. mesclar estilos. A canção está no álbum
A opção por introduzir elementos estranhos no discurso poético fez de Ninguém. É possível ouvir um pequeno
Augusto dos Anjos um poeta alinhado com algumas das inovações da lite- trecho dela no site do cantor e compositor.
Disponível em: <http://linkte.me/v0gk1>.
ratura europeia, sobretudo a alemã. Sua poesia, porém, chocou a crítica e o Acesso em: 6 maio 2016.
público e, no princípio, muitos o consideraram desequilibrado.
Sua leitura
Augusto dos Anjos escreveu três sonetos em memória do pai. Leia dois deles, transcritos a
seguir, para responder às questões.
VOCABuLÁRIO
DE APOIO
II III alento:
A meu Pai morto respiração
Madrugada de Treze de Janeiro. Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra. cidra: tipo de
Rezo, sonhando, o ofício da agonia. Em seus lábios que os meus lábios osculam laranja

Meu Pai nessa hora junto a mim morria Microrganismos fúnebres pululam clepsidra: relógio
Numa fermentação gorda de cidra. de água
Sem um gemido, assim como um cordeiro! cuidar: pensar,
cogitar
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro! Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
Elias: um
Quando acordei, cuidei que ele dormia, A uma só lei biológica vinculam, dos profetas
E disse à minha Mãe que me dizia: E a marcha das moléculas regulam, do Antigo
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro! Com a invariabilidade da clepsidra!… Testamento;
segundo o texto
bíblico, subiu ao
E saí para ver a Natureza! Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos céu em um carro
Em tudo o mesmo abismo de beleza, Roída toda de bichos, como os queijos de fogo, em vez de
morrer
Nem uma névoa no estrelado véu… Sobre a mesa de orgíacos festins!…
festim: pequena
festa
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas, Amo meu Pai na atômica desordem flóreo: viçoso,
Como Elias, num carro azul de glórias, Entre as bocas necrófagas que o mordem belo
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu! E a terra infecta que lhe cobre os rins! hidra: animal
invertebrado de
ANjOs, Augusto dos. Sonetos. Melhores poemas. 3. ed. São Paulo: Global, 2001. p. 133-134.
menos de 1 cm,
que vive na água
Sobre os textos doce fixado em
folhas e gravetos
1. Como o tema do falecimento do pai é tratado nos dois sonetos? hórrido:
2. Qual soneto é mais representativo do estilo de Augusto dos Anjos? Justifique sua resposta horrendo
citando ao menos uma característica do estilo do poeta. Em seguida, descreva como ela infecto:
repugnante,
aparece no soneto em questão. pestilento
3. No soneto “II”, o que o verso “E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!” e os versos do primei- necrófago:
ro terceto sugerem em relação ao modo como ocorreu a morte do pai? aquele que se
alimenta da
4. A frase “Podre meu Pai!”, que abre o soneto “III”, propõe um jogo de linguagem. Qual é esse carne de animais
jogo? O que ele evidencia? mortos
orgíaco: com
5. Augusto dos Anjos costuma associar temas sérios a referências vulgares, cotidianas. Cite características de
trechos em que ocorre essa mistura de estilos. orgia (excesso de
bebida, euforia,
6. Que reação, nesse caso, a mistura de estilos provoca no leitor? Pode-se supor que a leitura desregramento e
feita pelo público da época do poeta seja diferente da feita por um leitor hoje? Justifique. libertinagem)
oscular: beijar
O QuE VOCÊ PENSA DISTO? pulular: brotar,
surgir em
abundância
Os autores pré-modernistas empenharam-se na compreensão
Emerson, da série Ulterior, 1998, imagens de lixo. Sem
acervo. Muniz, Vik./Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2009.

vidrar: fazer
da realidade nacional e deram voz a grupos sociais que não con- perder o brilho,
tavam com a assistência do Estado. Muitos artistas têm mostrado embaçar
preocupação semelhante, como o artista plástico contemporâneo
Vik Muniz, que chamou a atenção para o caso das crianças em
situação de rua nas obras da série Ulterior, imagens de lixo. O tom
cinza do menino, contrastante com a colorida moldura de lixo,
sugere a invisibilidade desse grupo social.
MUNIz, Vik. Emerson,
1998. Cópia
1. Imagine-se como artista contemporâneo. fotográfica por
Que grupo marginalizado você destacaria? oxidação de corantes,
Por quê? 127 cm 3 101,6 cm.

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