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Fernando Pessoa - Heterónimos

Fernando Pessoa explica, em carta a Adolfo Casais Monteiro, a origem dos seus heterónimos. A origem
mental desses heterónimos é, segundo diz, a sua tendência para a despersonalização e para assimulação,
tendência essa, aliás, que se manifesta, desde a infância, tendo criado aos seis anos o seu “primeiro
heterónimo”, um certo Chevalier de Pas.
Mais concretamente explica que, em 1914, quis fazer uma partida ao seu amigo Mário de Sá
Carneiro, “ criando um poeta bucólico de espécie complicada”. As suas tentativas não tiveram êxito, mas,
no dia 8 de Março, o dia triunfal da sua vida, quando estava quase a desistir, escreveu, numa espécie de
êxtase, os trinta e tantos poemas de O Guardador de rebanhos, surgindo assim Alberto Caeiro. Sentiu,
então, que tinha nascido em si o seu “mestre”.
Seguidamente, escreveu, também a fio, os seis poemas da Chuva Oblíqua, como se fosse o regresso de
Fernando Pessoa. Como Caeiro era o “mestre”, resolveu arranjar-lhe imediatamente uns discípulos: sem
interrupção nem emenda escreveu a Ode Triunfal fazendo “nascer” Álvaro de Campos e, do falso
paganismo de Caeiro faz ainda surgir Ricardo Reis. Para todos estes heterónimos Pessoa traça uma
diferente história de vida. Esses heterónimos são, na verdade, várias personagens dentro de uma só
pessoa que deseja “sentir tudo de todas as maneiras”, ver a realidade de diferentes perspetivas. Há, por
isso, diversidade mas também unidade neste poeta-drama, figura singular na Literatura portuguesa.

Alberto Caeiro

● Alberto Caeiro fez apenas a educação primária, e por isso utiliza uma linguagem muito simples.
● Este heterónimo de Fernando Pessoa é o heterónimo mestre, pois é o mestre de Pessoa e dos seus
outros heterónimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
● Características temáticas:
○ Caeiro é o poeta bucólico (da natureza), integra-se na natureza e identifica os elementos
naturais na mesma, e também a presença da divindade no mundo natural. Deambula pela
natureza.
○ Adepto do sensacionismo, sobrevaloriza as sensações, e por isso é considerado o poeta dos
sentidos. Atribui uma importância redobrada à visão, e elege as sensações como o modo de
apreensão direta da realidade.
○ Recusa o pensamento substituindo-o pelas sensações. Nega também a análise e a
interpretação. Têm, por isso, uma atitude antimetafísica (rejeição do que ultrapassa a
apreensão imediata do real).
● Linguagem, estilo e estrutura:
○ Utiliza um estilo coloquial e popular, com linguagem simples e, aparentemente, pobre.
Estilo prosaico, da prosa.
○ Recorre a comparações e metáforas.
○ Prefere as frases coordenadas.
○ Vocabulário do campo lexical da natureza e do olhar.
○ Versilibrismo [irregularidade estrófica e métrica (versos curtos e longos), com ausência de
rima (versos soltos, brancos ou livres)].
● Poemas: “O luar através dos altos ramos”, “Sou um guardador de rebanhos”, “O meu olhar é nítido
como um girassol", “Como quem num dia de sol abre a porta de casa”, “Se, depois de eu morrer,
quiserem escrever a minha biografia” e “Quando vier a primavera”.
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● Cesário Verde foi o mestre de Alberto Caeiro, e Alberto Caeiro irá ser também o poeta da
deambulação.
● Ao contrário de Cesário Verde, Alberto Caeiro não se importa com a regularidade estrófica, métrica.

Ricardo Reis

● Ricardo Reis é o heterónimo de feição clássica (Antiguidade da Grécia Clássica). Chamado de poeta
clássico, poeta epicurista, poeta estoico e poeta pagão.
● Ricardo Reis nasceu no Porto em 1887, recebeu formação tanto latina como helénica. Formou-se
em Medicina, em 1919 autoexilou-se no Brasil.
● É um aprendiz de Alberto Caeiro, possível observar pela utilização de expressões como
sossegadamente, pela presença de elementos da natureza e a contemplação da mesma.
● Ricardo Reis admirava a calma e serenidade com que Caeiro encarava a vida, por isso procurou
atingir essa ordem e equilíbrio.
● Características temáticas:
o Adepto da intelectualização das emoções. Para isso usa duas correntes filosóficas clássicas e
tenta equilibrá-las para alcançar a ataraxia (estado de felicidade, sem prazeres). Essas
correntes são:
 O Epicurismo (filosofia moral de Epicuro):
 Defesa do prazer moderado e da tranquilidade
 Fuga às emoções intensas
 Apologia da ataraxia: ausência de perturbação, estado de serenidade e
tranquilidade imperturbável
 Carpe diem horaciano: aproveitar o momento presente com moderação
 O Estoicismo (filosofia de Zenão)
 Recusa dos prazeres violentos
 Aceitação do poder do tempo e aceitação voluntário de um Fado involuntário
 Defesa da apatia: estado de indiferença, no qual um indivíduo não responde
aos estímulos da vida emocional, social ou física - ausência de paixão e dor
permite a liberdade
 Autodisciplina e autocontrole
 Abdicação de compromissos
o Ricardo Reis considera que vive para evitar a dor/tristeza (emoções - porque a dor de
partida e de perder serão proporcional à felicidade vivida - Lídia não pode haver contacto) e
que nada vale a pena porque no fim está a morte. O sujeito poético defende a aceitação da
passagem do tempo e a inevitabilidade da morte e apela à autodisciplina e à moderação, o
que nos trará a felicidade (ataraxia).
o O sujeito poético muitas vezes estabelece contacto espiritual com Lídia, uma das musas.
o Ricardo Reis é muito consciente sobre a inevitabilidade da morte, a efemeridade e
irreversibilidade da vida, chegando a sofrer por estes motivos.
o Nos seus poemas existem claras referências clássicas/pagãs, como ao “Fado” (destino -
irreversível) e aos “deuses” (imortais). Cria uma hierarquia, entre os homens (mortais), os
deuses e o fado (Homem<Deuses<Fado).
o Os mortais podem elevar-se à categoria dos Deuses caso: Haja um comportamento altivo;
Se aprenda a aceitar o Destino (Ricardo Reis); se seja “rei de si próprio”
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o “Durar” está para Reis como “ver” está para Caeiro. A ideia de "durar” é recorrente em Reis.
É aceitável como inevitável o desgaste do tempo (“hora fugitiva”) e a fugacidade da vida,
bem ilustrada na imagem das flores da jarra condenadas à sua efemeridade e na das águas
do rio simbolo do fluxo irreversível da nascente para a foz. O homem, refém da passagem
do tempo, é incapaz de lutar contra o seu fado, a implacável morte.
o Na forma e no conteúdo, Reis é o verdadeiro representante do homem clássico. Nas odes,
procura a exaltação da vida; nos valores da Antiguidade e do paganismo, procura encontrar
o sentido para a mesma vida. Advogando o carpe diem horaciano, o prazer natural, mas
controlado, sem paixões violentas, tem plena consciência da brevidade de tudo, da
passagem do tempo, da fragilidade da condição humana e da inevitabilidade da morte. Por
isso, considera importante saber viver os pequenos prazeres de uma forma desapegada,
com equilíbrio e serenidade. Aceitar o Mundo e a existência humana é para Reis o único
caminho para a felicidade relativa.
● Linguagem, estilo e estrutura:
o A sua obra é maioritariamente constituída por odes (forma clássica, que é destinada a ser
cantada).
o Usa regularmente o presente do conjuntivo.
o Estilo rigoroso, com linguagem elevada, disciplina métrica e rimática (versos decassílabos
combinados com hexassílabos) e estrofes regulares.
o Linguagem de inspiração clássica.
o Tom moralista/didático da sua poesia transmite conselhos sobre a forma de encarar a vida.
o Submissão da forma ao conteúdo.
o Recorre à anastrofe e ao hipérbato.
● Poemas: “Quando, Lídia, vier o nosso outono”, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”,
“Prefiro rosas, meu amor, à pátria", “As rosas amo dos jardins de Adónis”, “Antes de nós nos
mesmos arvoredos”, “Sim, sei bem”, “Ponho altiva mente o fixo esforço”.

Álvaro de Campos

● Álvaro de Campos é o heterónimo futurista, ao contrário de Pessoa experimentou todas as


sensações e emoções, contudo foi o heterónimo mais próximo de Fernando Pessoa (fase 3).
● Este heterónimo pode ser considerado a derivação oposta a Ricardo Reis.
● Álvaro de Campos nasceu em Tavira em 1990, estudou engenharia mecânica e engenharia naval.
● Este heterónimo teve 3 fases:
○ 1ª fase- “Opiário”, a fase decadentista;
○ 2ª fase- a fase futurista, o futurismo/o sensacionalismo, “Ode Triunfal” e “Ode Marítima”;
○ 3ª fase- a fase intimista, a fase pessoal, a fase intimista-pessoal ou a fase abúlica.
● Características temáticas:
○ Depois da fase sensacionista, passa por uma fase metafísica (por vezes chamada de fase
abúlica ou intimista pessoal) em que, incapaz de se deslumbrar pela sensação, sente uma
frustração que lhe provoca as insónias de ser. É a fase em que se revela uma angústia
existencial, o tédio e a fragmentação do sujeito. Tal como ortónimo sente dor de pensar,
angústia pelo tempo que passa e a nostalgia da infância. Ex: "Aniversário", "Depus a
máscara…”, “Na casa defronte de mim e dos meus sonhos”.

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○ No poema “O que há em mim é sobretudo cansaço”, da fase intimista de Álvaro de Campos,
existe um afunilamento, assemelhando-se ao cansaço, que é causado pela energia gasta.
● Linguagem, estilo e estrutura:
○ Tendência para o emprego do verso solto e estrofes longas
○ Vertigem da palavra, que se traduz numa gradação da linguagem;
○ Uso de onomatopeias, aliterações, apóstrofes, adjetivação, enumerações, anáforas,
interjeições e outros recursos fonéticos;
○ Recurso a grafismos expressivos, pontuação emotiva e um tom intenso
○ Discurso caótico

Álvaro de Campos – 2ºCaracterização

Álvaro de Campos é o poeta vanguardista e cosmopolita que, numa linguagem impetuosa, canta o
mundo contemporâneo, celebra o triunfo da máquina e da civilização moderna, da força mecânica e da
velocidade. Integrado no espírito do modernismo, vem implementar uma nova visão estética,
apresentando a beleza dos “maquinismos em fúria”, da energia e da força, por oposição à beleza
tradicionalmente concebida.

A obra de Álvaro de Campos condensa três fases, que estabelecem entre si uma sequência lógica.
Em primeiro, está a decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações.
Proveniente desta carência, segue-se a fase futurista e sensacionista*, que se caracteriza pela exaltação da
energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força. Surge, aqui, como heterónimo cultor dos
sentidos, pois para ele a sensação é a realidade da vida e a base da arte. A nova tecnologia na fábrica, as
ruas da metrópole, e todos os elementos alusivos à indústria, despoletam nele a vontade de ultrapassar os
limites das próprias sensações. Ao manifestar querer “ser toda a gente em toda a parte” e “sentir tudo de
todas as maneiras”, deixa entender a sua procura incansável pela totalização de todas as possibilidades
sensoriais e afetivas da humanidade, independentemente do espaço, tempo ou circunstâncias. A Ode
Triunfal e a Ode Marítima são obras exemplificativas desta necessidade de unificação das sensações. É
também nestas obras que Álvaro de Campos deixa perceber o seu desejo excêntrico e radical, que assenta
na fusão e total identificação com a civilização industrial (“Ah, poder exprimir-me todo como um motor se
exprime!/ Ser completo como uma máquina!”).

* Identificação das Marcas Futuristas: reprodução de um ambiente moderno, marcado pela força e pelo
ruído das máquinas descritas e exaltadas; elogio da agressividade dinâmica e vital do presente.

*Identificação das Marcas Sensacionistas: perceção sensorial do ambiente descrito (sensações visuais,
auditivas, tácteis e olfativas); desejo de fusão com as máquinas, com a realidade, num excesso de
sensações violentas.

Sentindo-se impossibilitado de atingir o desejo de unificação que projeta na máquina, e depois de


constatar a impossibilidade do excesso de sensações, Álvaro de Campos cai no desânimo e na frustração
(“Ah, não ser eu toda a gente em toda a parte!”). Face à incapacidade das realizações, o heterónimo deixa-
se envolver pela apatia, abulia, angústia e deceção, bem como pelo tédio existencial, pelo enfado e pelo
cansaço psíquico, que constituem a fase intimista, caracterizada primordialmente pela introspeção e pela
atividade reflexiva.

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Nela está também patente a nostalgia da infância – um tema comum a Fernando Pessoa
(ortónimo). A infância é considerada uma fase da vida marcada pelo prazer de viver e pela despreocupação
face ao futuro, sentimentos que proporcionam a plenitude existencial. Recordando esse tempo, Álvaro de
Campos diz que “tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma (...) E de não ter as esperanças que
os outros tinham por mim”, citações que remetem para a alusão à inconsciência e ingenuidade das
crianças como fatores propiciadores da felicidade, bem como a ausência de ambições e obstáculos a
enfrentar. Em síntese, o tempo da infância caracteriza-se pelo prazer de sentir e agir livremente, pela
espontaneidade, pela ligeireza e despreocupação e pela inocência, face ao desconhecimento das agruras
da vida. O sujeito poético aborda a temática do saudosismo desta fase da sua vida com lamentação e
tristeza, pois recorda-a como tempo de harmonia existencial que ficou confinada à infância, cuja
racionalidade e a lucidez o fizeram perder.

Além disso, também a relação contrastante entre o “eu” e “os outros” é uma temática comum a
Álvaro de Campos e o ortónimo. O heterónimo estabelece uma oposição entre ele e os outros, delineada
pelo facto de estes se integrarem harmoniosamente no espaço físico e social em que se inserem, enquanto
que o poeta se sente distanciado da sociedade. Assim, nas suas composições poéticas, é feita alusão à
felicidade alheia, que não deixa de ser a comprovação de que é incapaz de a viver no seu íntimo. Uma vez
sentindo-se desajustado de si próprio e da vida, Campos projeta nos outros os sentimentos positivos de
que carece, isto é, tem a necessidade de perspetivar uma realidade ideada, como contraponto ao vazio
existencial que o habita. Por outro lado, a felicidade que atribui aos “outros”, propiciam no sujeito poético
a mágoa de não ser como eles (“São Felizes, porque não são eu). Em síntese, Álvaro de Campos, ao
reconhecer que o sentimento de felicidade lhe está interdito, apercebe-se de que a única maneira de a
experienciar passa por ascender a um cenário idílico, onde figuram outros atores que não ele.

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