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POESIA DOS HETERÓNIMOS

O processo de heteronímia é iniciado em 1914, dia considerado pelo poeta como “triunfal” pois revela
a sua tendência de multiplicação em várias personalidades. Pessoa perspetiva em cada heterónimo um
fragmento da totalidade a que aspira porque cada um à sua maneira sofre da mesma angústia de existir,
pretendendo fugir à dor de pensar, ou seja, é como se Pessoa usasse e criasse pessoas que gostaria de
ser e escrevesse em nome delas – os heterónimos. Esta várias figuras irreais a que Pessoa confere
realidade assumem através da imaginação do poeta uma verdadeira identidade.

Alberto Caeiro, o poeta «bucólico»


Alberto Caeiro, heterónimo de Pessoa que se diz «o único poeta da Natureza», é o mestre dos
heterónimos e do próprio ortónimo. O espaço de Caeiro é o campo, as sensações são o modo de
conhecer o mundo, em detrimento da razão. Preconiza uma arte poética espontânea, sem artifícios,
alinhada com uma filosofia de vida simples e bucólica (campestre, relativa à vida dos pastores, à Natureza
e às coisas simples da vida).
Nasceu em 1889, em Lisboa, e morreu em 1915, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve
profissão, nem educação quase nenhuma: apenas a instrução primária. Era de estatura média, frágil, e
era louro, de olhos azuis. Ficou órfão de pai e mãe muito cedo e deixou-se ficar em casa a viver de poucos
rendimentos. É anti metafísico, é menos culto e complicado do que Ricardo Reis, mas mais alegre e
franco. É sensacionista.
Pessoa considera Caeiro “o mestre” porque ele é o único que consegue atingir a paz, a tranquilidade
e a serenidade através da recusa do pensamento e do privilegiar dos sentimentos, isto pode ser visto
pela frase “Eu não tenho filosofia, tenho sentidos.”
Alberto Caeiro representa o oposto de Fernando Pessoa ortónimo, para Caeiro a única via de atingir a
felicidade é não pensar.
Em toda a sua poesia, faz-se notar uma abundante predominância de descrições da
natureza. Caeiro privilegia a atividade sensorial em detrimento da atividade reflexiva, isto é, considera as
sensações primordiais para a perceção real e objetiva da realidade imediata, que é o seu principal
interesse. Assim, o poeta procura ver o real objetivo, sem atribuir às coisas que observa quaisquer
conceitos ou sentimentos humanos – é antimetafísico. Citando versos de “O guardador de rebanhos”,
considera que “O Mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos) /Mas para
olharmos para ele e estarmos de acordo…”. Revela, assim, a sua descrença na utilidade do pensamento
como meio de compreensão da natureza. Como sensacionalista, defende que o pensamento apenas
falsifica o que os sentidos captam, manifestando o seu ceticismo relativamente à atividade
conceptual.
Propõe-se, assim, a não passar do realismo sensorial, aprendendo a negar o pensamento, de
maneira a libertar-se de tudo o que possa perturbar a apreensão objetiva e concisa da realidade concreta.
Defendendo a primazia dos sentidos, nos seus poemas são notórios inúmeros vocábulos do
campo lexical de “olhar”, através dos quais o poeta deixa entrever a valorização da sensação visual.
Caeiro dá especial relevância à natureza e o que a ela se associa, pretendendo estar sempre em
conformidade e estabelecer uma relação estreita com a mesma. Assim, ao longo da sua poesia, faz-se
notar uma descrição exaustiva do que ele observa enquanto deambula.
Alberto Caeiro só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade, com a qual contacta a
todo o momento. Daí o seu desejo de integração e de comunhão com a natureza. Para Caeiro, "pensar"
é estar doente dos olhos. Ver é conhecer e compreender o mundo, por isso, pensa vendo e ouvindo.
Recusa o pensamento metafísico, afirmando que "pensar é não compreender". Ao anular o pensamento
metafísico e ao voltar-se apenas para a visão total perante o mundo, elimina a dor de pensar que afeta
Pessoa. E porque só existe a realidade, o tempo é a ausência de tempo, sem passado, presente ou futuro,
pois todos os instantes são a unidade do tempo.
Constrói os seus poemas a partir de matéria não poética, mas é o poeta da Natureza e do olhar, o
poeta da simplicidade completa, da objetividade das sensações e da realidade imediata ("Para além da
realidade imediata não há nada"), negando mesmo a utilidade do pensamento. No entanto, muitas vezes
não consegue escapar à racionalização, e é esse facto que lhe provoca alguma tristeza.

Linguagem, estilo e estrutura


• Uso de linguagem corrente, próximo da oralidade, com vocabulário familiar.
• Aproximação à prosa pelo uso do verso longo e pelo ritmo lento.
• Predomínio do presente do indicativo.
• Preferência por recursos expressivos simples, como a comparação, a metáfora e a anáfora.
• Recurso a frases de estrutura simples e predomínio da coordenação.
• Irregularidade estrófica e métrica dos poemas e uso do verbo branco (não rimado).

Ricardo Reis, o poeta «clássico»


Ricardo Reis é um heterónimo que escreve poesia influenciado pela cultura e pela visão do mundo
da Antiguidade Clássica. O poeta convoca para a sua escrita os deuses pagãos, a noção de Destino e o
pensamento da Grécia e da Roma Antigas, mas também a língua e os estilos dos autores destas
civilizações.
Nasceu no Porto em 1887, foi educado num colégio de jesuítas e é médico. Fisicamente é um pouco
mais baixo, mas forte, moreno de cara rapada. Viveu no Brasil e expatriou-se voluntariamente por ser
monárquico.
Na poesia de Ricardo Reis, tudo é racional e não emocional, há um sentimento da fugacidade da vida,
mas ao mesmo tempo uma grande serenidade na aceitação da relatividade das coisas e da miséria da
vida. Para o poeta, a vida é efémera, ou seja, curta, e o futuro é imprevisível, sendo por isso que Reis
estabelece uma filosofia de vida: “carpe diem”, isto é, aproveitar o momento, o prazer de cada instante
em virtude da consciência brevidade da vida. Está presente nos seguintes versos: “Que em o dia em que
nascem, Em esse dia morrem”, “Breve o dia, breve o ano, breve tudo. Não tarda nada sermos”.
Ricardo Reis, é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma lucidez, a relatividade
e a fugacidade de todas as coisas. “Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio”, “Prefiro rosas, meu amor,
à pátria” ou “Segue o teu destino” são poemas que nos mostram que este discípulo de Caeiro aceita a
antiga crença nos deuses, enquanto disciplinadora das nossas emoções e sentimentos, mas defende,
sobretudo, a busca de uma felicidade relativa alcançada pela indiferença à perturbação.
A filosofia de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer do momento, o ideal
“carpe diem”, como caminho da felicidade, mas sem ceder aos impulsos dos instintos (estoicismo).
Apesar deste prazer que procura e da felicidade que deseja alcançar, considera que nunca se consegue a
verdadeira calma e tranquilidade – ataraxia.
Considera que a verdadeira sabedoria de vida é viver de forma equilibrada e serena, “sem
desassossegos grandes”. Ricardo Reis é considerado um estoico epicurista, na medida em que advoga o
domínio das paixões e a renúncia dos impulsos dos instintos, como regras de vida propiciadoras da
felicidade. Há que nos contentarmos com o que o destino nos trouxe. Há que viver com moderação, sem
nos apegarmos às coisas, e por isso as paixões devem ser evitadas, para que a hora da morte não seja
demasiado dolorosa. O ideal ético do estoicismo é a apatia (ausência de paixões).
Ricardo Reis, que adquiriu a lição do paganismo espontâneo de Caeiro, cultiva um neoclassicismo
neopagão (crê nos deuses e nas presenças quase divinas que habitam todas as coisas), recorrendo à
mitologia greco-latina, e considera a brevidade, a fugacidade e a transitoriedade da vida, pois sabe que o
tempo passa e tudo é efémero (de curta duração).
A vida como «encenação» da hora fatal (previsão e preparação da morte): despojamento de bens
materiais, negação de sentimentos excessivos e de compromissos. Considera que a verdadeira sabedoria
de vida é viver de forma equilibrada e serena, "sem desassossegos grandes" (emoções e sentimentos
que perturbam a tranquilidade).

Neste poema o poeta defende uma filosofia de vida


assente na aceitação do destino de uma forma tranquila, sem
tentativas de o mudar, nem alimentando esperanças, pois
"Nada mais nos é dado". É inútil tentar fugir ao destino, pois
viver reside num total desajuste entre o que se deseja e o que
se alcança.
O sujeito poético revela, o seu conformismo face ao
destino, de fase estoicista – não vale apenas desejar, não vale
apenas ter esperanças, porque a nossa vida será apenas
como foi programada e o melhor é aceitar isso com
dignidade.

Linguagem, estilo e estrutura


• Disciplina e rigor na escrita e precisão verbal.
• Uso da sintaxe alatinada, originando anástrofes (alteração da ordem das palavras).
• Introdução de vocabulário culto, como latinismos e helenismos.
• Recurso ao imperativo e à apostrofe para transmitir um conselho.
• Tom coloquial e didático, veiculando uma filosofia de vida.
• Uso da ode, forma poética clássica de métrica e estrutura estrófica regulares.

Álvaro de Campos, o poeta da modernidade


Álvaro de Campos cultiva o sensacionismo associado à Modernidade, à exaltação da máquina e da
velocidade. Contudo, a sua poesia também revela a angústia existencial, a consciência da inexorabilidade
do tempo e a saudade de um paraíso perdido.
Nasceu em Tavira a 15 de outubro de 1890. Teve uma educação vulgar de liceu. Fisicamente usa
monóculo, é alto, magro e tem cabelo liso; cara rapada, tipo judeu português. Foi para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval (Glasgow). Viajante, vanguardista e cosmopolita.
Campos é o "filho indisciplinado da sensação" e para ele a sensação é tudo. O eu do poeta tenta
integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir.
Este heterónimo aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a «sensação das coisas
como são»: procura a totalização das sensações e das perceções conforme as sente, ou como ele próprio
afirma "sentir tudo de todas as maneiras".
O poeta procura incessantemente "sentir tudo de todas as maneiras", seja a força explosiva dos
mecanismos, seja a velocidade, seja o próprio desejo de partir. Campos tanto celebra, em poemas de
estilo torrencial, amplo, delirante e até violento, a civilização industrial e mecânica, como expressa o
desencanto do quotidiano citadino, adotando sempre o ponto de vista do homem da cidade.
Álvaro de Campos é o heterónimo que apresenta uma evolução mais nítida, podendo na sua obra
distinguir-se três fases:
▪ Decadentista (fase do "opiário") - exprime o tédio de viver, o enfado, o cansaço, a náusea, o
abatimento e a necessidade de novas sensações; traduz a falta de um sentido para a vida e a
necessidade de fuga à monotonia; inadaptado ao mundo e à vida.
▪ Futurista/Sensacionista (civilização moderna/excesso de sensações - "Ode Triunfal") - Campos
celebra o triunfo da máquina, total identificação com a civilização moderna industrial (“Ah, poder
exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!”) . Sente-se
nos poemas uma atração quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Intensidade e
totalização das sensações. A nova tecnologia na fábrica, as ruas da metrópole, e todos os
elementos alusivos à indústria, despoletam nele a vontade de ultrapassar os limites das
próprias sensações. Ao manifestar querer “ser toda a gente em toda a parte” e “sentir tudo de
todas as maneiras”, deixa entrever a sua procura incansável pela totalização de todas as
possibilidades sensoriais A par da paixão pela máquina, há a náusea, provocada pela poluição
física e moral da vida moderna. Nesta fase, a sensação é mais intelectualizada. Sensacionismo
excessivo e conturbado.
▪ Intimista e pessimista - Sentindo-se impossibilitado de atingir o desejo de unificação que projeta
na máquina, e depois de constatar a impossibilidade do excesso de sensações, Álvaro de Campos
cai no desânimo e na frustração (“Ah, não ser eu toda a gente em toda a parte!”).
Perante a incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento, mundo exterior e interior,
traz de volta o abatimento (o cansaço, o tédio, solidão). Conflito entre a realidade e o poeta. Este
sente-se vazio, um marginal, incompreendido. Angustiado e cansado. Revela, tal como Pessoa, a
mesma angústia existencial, ceticismo, dor de pensar e nostalgia da infância.
A infância é considerada uma fase da vida marcada pelo prazer de viver e pela despreocupação face
ao futuro, sentimentos que proporcionam a plenitude existencial. Recordando esse tempo, Álvaro de
Campos diz que “tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma (...) E de não ter as esperanças
que os outros tinham por mim”, citações que remetem para a alusão à inconsciência e ingenuidade
das crianças como fatores propiciadores da felicidade, bem como a ausência de ambições e
obstáculos a enfrentar.
Em síntese, o tempo da infância caracteriza-se pelo prazer de sentir e agir livremente, pela
espontaneidade, pela ligeireza e despreocupação e pela inocência, face ao desconhecimento das agruras
da vida. O sujeito poético aborda a temática da saudade desta fase da sua vida com lamentação e tristeza,
pois recorda-a como tempo de harmonia existencial que ficou confinada à infância, cuja racionalidade e
a lucidez fizeram perder.
Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância
- Campos manifesta vazio interior, cansaço e falta de ânimo, que se associam à incapacidade de
sentir, ao pessimismo e ao desencanto.
- Sente-se minado pela «dor de pensar», como se sentia Pessoa ortónimo.
- O eu revela um individualismo exacerbado que o condena ao isolamento (solidão) e o impede de
criar laços afetivos e de se relacionar com os demais.
- O sujeito poético recorda nostalgicamente o passado e a infância, tempo de afeto e de harmonia.
- O facto de o tempo ser irreversível e a infância irrecuperável condu-lo a um novo e profundo
desalento.

Linguagem, estilo e estrutura


• Irregularidade da estrutura estrófica e da métrica, verso longo e não rimado.
• Na poesia da fase futurista:
- recurso à ode, forma poética de celebração («Ode triunfal»);
- estilo declamatório e esfuziante e ritmo desenfreado e tenso;
- vocabulário do mundo moderno da máquina, incluindo neologismos e onomatopeias;
• Na poesia da fase intimista:
- monólogo em tom confessional e ritmo distendido.
• Recursos expressivos: aliteração, anáfora, anástrofe, apóstrofe, enumeração, exclamação,
gradação, metáfora, sinestesia e personificação.

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