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RICARDO REIS

De acordo com a breve biografia que lhe traçou Fernando Pessoa na célebre carta a
Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos, escrita em 1935, Ricardo Reis
nasceu no Porto, teve uma educação formal, tendo estudado num colégio de jesuítas,
cursando depois Medicina. Trata-se de um heterónimo em que se plasma uma cultura
erudita, de matriz greco-latina. Diz Pessoa que Reis é “um latinista por educação alheia
[ou seja, escolar] e um semi-helenista por educação própria”. Politicamente, é um
monárquico conservador, que, em 1919, durante a Primeira República (1910-1926), se
exilou voluntariamente no Brasil.

Sob o ponto de vista formal, Ricardo Reis manifesta a sua filiação clássica através das
composições poéticas que cultiva (odes e elegias, sobretudo), seguindo muito
especialmente o poeta latino Horácio, em cujas odes se exploram poeticamente os
tópicos do “carpe diem” (aproveita o dia, goza cada momento que te é dado) e do
“tempus fugit” (o tempo foge e tudo devora, a vida é fugaz), que também constituem
dois dos tópicos temáticos mais importantes dos poemas deste heterónimo pessoano.

Como latinista que é, Reis utiliza uma linguagem erudita, uma sintaxe alatinada, em que
predomina a subordinação (e em que, justamente, a anástrofe é muito frequente, posto
que o ordem sintática do latim não obedecia à ordem “sujeito + verbo + complementos”,
comum em Português), o que lhe confere um estilo de grande elaboração, que o torna,
de algum modo, solene e “difícil”.

Fortemente influenciado pelas filosofias morais do Epicurismo e do Estoicismo, de


origem grega, Reis expressa na sua poesia um pendor moralista e sentencioso,
estabelecendo máximas que servem de guia para a vida. Daí que recorra frequentemente
ao modo imperativo e ao modo conjuntivo, que são os modos da exortação e do apelo.
Veja-se esta estrofe de um dos mais conhecidos poemas:

Segue o teu destino,


Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

Ao Epicurismo vai Reis buscar o seu conceito de felicidade, que reside no saber
aproveitar, a cada momento e com moderação, os prazeres da vida, sabendo de antemão
que ela é efémera e está “condenada à morte”. Com efeito, viver feliz consiste mais em
evitar a dor do que em procurar desenfreadamente o prazer, que apenas nos conduz de
insatisfação em insatisfação. O que se procura é o estado da ataraxia, que é a
tranquilidade, a indiferença à perturbação, a serenidade em aceitarmos o mundo e a vida
tal como são, pois não podemos alterar nada do seu curso. À filosofia de Epicuro
associa-se o tópico do “carpe diem” horaciano, segundo o qual devemos aproveitar a
vida, mas não desregradamente, aceitando o que em cada momento nos é dado viver e
afastando de nós a insatisfação e a ansiedade. No entanto, dado que, em Reis, há
simultaneamente uma aguda consciência da fugacidade da vida e da certeza da morte,
do mesmo modo que é aguda a consciência de que o homem, tal como os deuses
pagãos, nada mais pode senão obedecer ao destino traçado pelo Fado (o ”fatum”), o
seu Epicurismo tem uma indisfarçável nota de melancolia, sendo considerado um
Epicurismo triste. Daí que dois dos símbolos maiores da sua poesia sejam o rio e as
rosas: para além da associação mitológica à morte (o rio que os mortos têm de
atravessar), o rio passa inexoravelmente; as rosas são efémeras – tal como o ser
humano. Diz Fernando Pessoa do seu heterónimo: “A obra de Ricardo Reis,
profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma
qualquer”.

No Estoicismo, Reis encontrou a autodisciplina e a renúncia enquanto atitudes


conducentes a um estado em que a pessoa se torna capaz de dominar as paixões e os
instintos, que são “desassossegos grandes” que devemos evitar. Porque a liberdade é
apenas “ilusão de liberdade”, a renúncia é, paradoxalmente, uma afirmação de
autodomínio: abdica / e sê rei de ti próprio.

Reis procede, assim, a uma espécie de fusão entre o Epicurismo e o Estoicismo,


procurando conceber um ideal de felicidade, que é sempre relativa, baseada na
moderação, no controle das paixões e dos instintos e na aceitação resignada do destino
inelutável.

Ricardo Reis é, pois, um neoclássico, quer ao nível formal, quer porque revisita grandes
temas da filosofia e da cultura da antiguidade clássica, para além das referências aos
deuses e ao Fado da mitologia greco-latina que abundam nos seus poemas.
Simultaneamente, Reis é também um neopagão, pois herda o paganismo espontâneo e o
apego à simplicidade e à natureza do seu mestre Alberto Caeiro, embora conferindo-
-lhes um maior grau de elaboração intelectual. Ao contrário de Caeiro, sendo um poeta
culto, não pode ter a ingenuidade e a alegria do mestre perante a vida. Pela
intelectualização das emoções e por um certo tom melancólico perante a existência,
aproxima-se também de Pessoa ortónimo, sem deixar de ser, evidentemente, uma voz
autónoma no “drama em gente” criado por Fernando Pessoa.

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