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[...] viver sentado é uma mudança radical de vida, uma negação da inquietude do
saltador e do incansável caminhante. Significa assentar e acalmar o andarilho inquieto,
sedar sua necessidade de movimento e sua capacidade de apreender (que significa
agarrar) o que lhe cerca, de explorar curiosamente o mundo, de reagir ao entorno, de
saltar de ideia em ideia. Sentados, estaremos anestesiados, sedados. E talvez seja
realmente esta a intenção de tantas cadeiras e assentos: sedar. É no mínimo instigante
que as palavras “sentar” e “sedar” sejam irmãs muito íntimas, filhas da mesma palavra-
mãe latina (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 21).
Não caminhar traz a progressiva atrofia dos músculos, quer dizer, reforça ainda mais a
já crescente imobilidade de um animal que por natureza sempre foi inquieto e curioso,
saltador ou andarilho, um bate-braços ou um bate-pernas (BAITELLO JUNIOR, 2012,
p. 22).
O ser humano, em sua evolução, sobreviveu a três grandes catástrofes, diz Flusser: a
primeira delas, a hominização, com a descida das copas das árvores, a necessidade do
caminhar bípede e ereto. Da primeira catástrofe surge um ser nômade que na atividade
de “fahren” (“deslocar-se” em alemão) desenvolve o “erfahren” (“tomar conhecimento,
reunir experiências”). A segunda catástrofe denominada “civilização”, modifica sua
natureza de forma radical, inserindo-o fixamente na vida em aldeias, em torno das quais
são domesticados e cultivados vegetais e animais. Surge aí o assentado (cujo verbo em
alemão é, “sitzen”, “estar sentado”), o possuidor e acumulador de bens (do verbo
“besitzen”, “possuir”). Flusser argumenta com a língua alemã, mas pode-se confirmar o
mesmo na língua latina (e suas derivadas), na qual os verbos são igualmente irmãos:
“sedere” e “possedere”, sentar e possuir (em espanhol, o verbo “poseer” mostra mais
claramente a proximidade com o “possedere”). Durante esse breve período sedentário
de pouco mais de 10 mil anos, no aconchego e na proteção das habitações, surgem a
escrita e os sistemas lógicos dela advindos, sistemas numéricos e de cálculos, que
permitiram o desenvolvimento da ciência e da técnica (BAITELLO JUNIOR, 2012, p.
27).
O lugar onde estamos de fato – sempre sentados – é o lugar inóspito, que não se deixa
habitar porque está invadido pela ventania das imagens visuais e sonoras da mídia. Se a
hominização foi ditada pelos deuses do vento, levando o homem a seguir sempre por
caminhos imprevistos e surpreendentes, a civilização foi regida pelas divindades da
terra, do assentamento e da fixidez. E a nova “mobilidade” ou o novo “nomadismo” são
uma reunião paradoxal de imobilidade com fluidez. As imagens fluem celeremente e
nós surfamos virtualmente nelas enquanto o corpo, em torpor, está sentado em alguma
cadeira, sem alma ambos, corpo e cadeira. É bom enfatizar, corpo sem alma e cadeira
sem alma (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 28).
Nossos sentidos precisaram se reposicionar, a visão reduz sua abrangência (até hoje
temos uma fascinação inexplicável pelas visões proporcionadas por lugares altos e
visões panorâmicas), a audição torna-se mais importante como sentido prospectivo, pois
na vegetação densa deve-se escutar o que ainda não pode ser visto (BAITELLO
JUNIOR, 2012, p. 33).
Como o nômade não acumula objetos, é seu corpo (seu cérebro, suas vísceras, seu
esqueleto e seus músculos, bem como sua pele) que guarda experiências, vivências e
associações, memórias e projeções. Carregar coisas é por grandes distâncias. Assim, não
fazia sentido para o nômade possuir bens [...] Se caminhar é ir em direção ao
desconhecido e, portanto, ir ao encontro do próprio medo, narrar é reviver o sobressalto,
o susto e a surpresa depois do suspense. Caminhar e narrar significam manter o
suspense (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 34).
Foi no chão que aprendemos a escrever, riscando, rasgando o solo com um objeto
pontiagudo qualquer. Deixamos rastros intencionais nesses cortes da terra do chão [...]
O corte na carne da terra foi a primeira marca da escrita. E é por isso que as palavras
que a designam procedem do verbo “cortar” – no indo-europeu, “sker”, que deu em
latim “scribere”, mas também “carne” (pedaço cortado de carne), entre outras palavras.
Mas ainda havia outra palavra no indo-europeu, “ghrebh” ou “gherbh”, que deu origem
ao grego “graphein” (gravar) ou ao germânico “graben” (cavar) (BAITELLO JUNIOR,
2012, p. 40).
Ambas, cortar e cavar, são ações que se referem à terra, ao chão e ao plano. E ambas
atividades cortantes ou perfurantes. Talvez tenhamos uma memória profunda da escrita
como cicatriz, como arranhão ou como escarificação, como corte sobre a pele, como
resquício e marca indelével de uma ferida (nossos índios bororos se escarificam cada
vez que morre um membro da tribo, materializando em cicatrizes a dolorosa perda de
um ente querido) (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 40).
As imagens inanimadas, uma vez associadas ao corpo, animavam-se nele e com ele. O
corpo emprestava vida aos outros seres imaginários, espíritos, demônios ou outras
configurações lendárias ou imaginárias. Assim, tais seres se valeram do plano para
ganhar o status de representação corpórea. Não é outra a dinâmica das máscaras. Veste-
se uma superfície e se confere a ela uma corporeidade emprestada – portanto, um tipo
de vida; dá-se a ela uma animação (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 42).
O corpo reveste-se, assim, de um caráter midiático, passando a ser o centro dos rituais,
dos cultos, das guerras e das festas, dos jogos e das competições. Mas sempre é o corpo
em movimento, em transmutações e transformações, em atividade e em
performatividade. Ainda hoje são vigorosas as manifestações de resistência desse
mesmo corpo nas infinitas imagens geradas pela moda e suas regras, elaborando
sutilezas imagéticas para os rituais sociais mais diversos, para a mimese que constrói
funções e papéis sociais. Eis aqui, na moda, um espaço de sobrevivência do corpo em
sua vivacidade mimética arcaica, em sua capacidade de portar imagens com as quais ele
se funde (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 43-44).
A visão para a frente nos ajuda a formar não apenas uma direção do olhar, mas também
uma direção do pensamento: a ideia de porvir, o sentimento de futuro e, com ele, a
noção abstrata de temporalidade (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 49).
Com o assentamento, o nômade que aprendeu a cultivar plantas (talvez até mesmo para
atrair algumas presas) e criar os próprios animais passa a construir habitações duráveis,
definitivas, para perdurar. Já não é o homem das infindáveis caminhadas rumo a um
horizonte, comparadas mais ou menos breves. É um homem que começa a criar raízes,
vincular-se à terra, libertando-se do vento e de seus deuses. São as deusas da terra e da
fertilidade que regerão seu destino doravante. Assim, ele constrói habitações fechadas e,
para ver o mundo, abre janelas. Seu programa é criar aberturas para ver o mundo a partir
do espaço protegido do Sol, do vento, do frio, do calor, da chuva, da neve. O mundo
torna-se visível pelas aberturas das janelas, que o recortam, o enquadram (de alguma
forma o domesticam também!) (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 50).
[...] janelas são iscas para capturar o nosso olhar. São arapucas com o poder de atrair a
atenção, pois prometem conduzir, transportar, viajar para o espaço de fora e para o
distante, o lugar onde não estamos, transportam-nos para o longe que não podemos
alcançar, são uma forma de utopia (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 53).
Se a função-janela é abrir para o mundo, seu recorte simplificador exclui a maior parte
do mundo, quase o mundo inteiro, se comparamos a imensidão e a vastidão com o
minúsculo pedaço de mundo que cabe nas molduras. Então, somos obrigados a dizer
que toda janela, como todo retângulo, como toda imagem, mais esconde do que mostra
[...] O mais desafiador está fora das molduras dos retângulos e das janelas. E por isso as
janelas são também tão sedutoras, porque escondem e nos desafiam a ver o que está
escondido, conduzem-nos a imaginar o que não é mostrado (BAITELLO JUNIOR,
2012, p. 55).
Como temos horror ao vazio, tentamos preenchê-lo com tudo o que temos à mão: com
os gestos, com a voz, com os rastros (olfativos, visuais, auditivos ou táteis), com as
imagens arcaicas, com escritas de todos os tipos, com as imagens produzidas por
máquinas que até mesmo com as próprias máquinas de imagens. Mas preencher o
abismo é um trabalho insano e inglório, como enxugar gelo ou esvaziar um rio. Há
apenas lampejos de um fugaz preenchimento, pontes fugazes que nos levam até o outro,
transpondo por breves relances o vazio do abismo (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 60).
O corpo fraturado em dois pontos pede sedação e as imagens que proliferam pedem um
corpo fraturado para sedar (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 69).
Enquanto o olhar devora (e, como diz Bataille em seu Dicionário crítico, o olho se
apresenta como um “petisco canibal”, tamanho é seu poder de sedurir), os pés passam e
deixam passar. Não lhes interessa o possuir, só lhes interessa o passar. Por isso o
caminhar nos cura a alma, nos resgata nosso profundo passado animal e proto-humano.
O caminhar autêntico é anticonsumista e, por isso, incompatível com os shopping
centers (que querem por todos os meios capturar o nosso olhar, tornando-o ainda mais
devorador e consumista) (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 73).
[...] o corpo se coloca contra a imagem e a imagem se coloca contra o corpo. Ao mesmo
tempo, um se espalha no outro, desejando-o. [...] a imagem é o outro do corpo [...] o
outro do corpo é a imagem [...] O complexo fenômeno dos corpos-imagens é uma das
demonstrações do poder das imagens sobre os corpos. Estes aspiram à idealidade eterna
e imutável daquelas e se submetem a qualquer sacrifício para apagar o tempo e suas
marcas, escritas, sinais e cicatrizes [...] a imagem é feita para não se transformar
(BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 91).
Imagem é morte (quando imaginamos coisas, elas são como um molde ou uma forma
vazia, uma ausência, uma lembrança ou uma saudade, coisas que de fato não estão lá a
não ser em imagem imaterialmente)? Hans Belting fala de imagens endógenas (quando
elas estão dentro de nós, no sonho, no devaneio, na imaginação, no sonho diurno, nos
cenários que construímos) e exógenas (quando habitam o espaço fora de nossos corpos,
nas paredes, no papel, nas telas, nos objetos) (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 95).
Uma imagem é uma vida depois de outra vida. Aí está o seu poder; uma imagem evoca
a assustadora permanência daquilo que já se foi (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 103).
A falta é um sentimento corporal. Quando nos falta alguma coisa, é nosso corpo o
primeiro a registrar essa falta. E a falta de pessoas que se ausentam para sempre ou por
um tempo é justamente aquela que mais grita dentro de nós. Se o corpo pede corpo e
não é atendido, criam-se mecanismos para que ele se contente com o que recorda o
preenchimento de sua carência. E, às vezes, ele se contenta com imagens (internas e
externas), recordações, resquícios, formas de vazio Mas as imagens tanto lemvram a
presença como igualmente recordam a ausência. E o corpo é algo da ordem da presença
com toda a sua sensibilidade (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 105).
[...] corpo pede corpo (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 106).
[...] as imagens visuais exteriores tornaram-se tão numerosas, tão gritantes, tão
chamativas, tão atraentes, tão sedutoras, que nos esquecemos de nossas próprias
fantasias e sonhos (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 111).
As imagens interiores são do âmbito do corpo, são geradas pelo corpo e se realizam
dentro do próprio corpo. Como todo corpo pede corpo, as imagens endógenas também
operam nesse registro; são essencialmente corporais, existem no corpo, pelo corpo e
para o corpo, pedindo o corpo para serem plenas (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 113).
Passar por imagens é, de certo modo, a inversão de um desfile. Quem quer se mostrar,
desfila, expõe-se de modo a atrair a atenção. Nas vias de imagens são as imagens que
assumem o papel de espectador, elas é que ficam paradas nos olhando enquanto
passamos. E o mais incrível é que elas sabem com detalhes quem somos, quantos
somos, como somos, nós que passamos (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 115).
A iconofagia também ocorre quando pautamos nossa vida pelas imagens, desejamos ser
como as imagens (dos corpos esculturais, dos ídolos, dos rostos perfeitos, das peles sem
rugas nem cicatrizes de tempo, dos cabelos sedosos e sempre lisos e esvoaçantes, dos
narizes de padrão Barbie e tantos outros modelos desejados), queremos ser como as
imagens ideais. Perdemos o contato com nosso corpo real, com o mundo das
diversidades infinitas de corpos, de rostos, de narizes, de cabelos e peles. Alimentamo-
nos com iamgesne nos transformamos em imagens. Os exemplos dramáticos de
enfermidades como anorexia, bulimia e obesidade mórbida nos desafiam a pensar sobre
os efeitos danosos de uma sociedade da imagem sobre os corpos reais. Os médicos
denominam tais enfermidades de “distúrbios da imagem corporal” (BAITELLO
JUNIOR, 2012, p. 124-125).
[...] o excesso de imagens externas pode bloquear o movimento das imagens internas
(BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 132).
É mais fácil colecionar sapatos do que flanar pela cidade, passar pelas ruas, sentir sua
ambientalidade, sua complexidade, sua sensorialidade e sensualidade sem devorá-la
nem ser devorado por ela. A sedução de querer levar a rua para casa dentro de sacolas
de compras é uma simplificação infantil e empobrecimento da experiência (BAITELLO
JUNIOR, 2012, p. 134).
Quem parte, caminha para o desconhecido, para o incerto, para o perigo. Então, voltar
da leitura à vida é motivo de júbilo quando a leitura insufla ar (pneuma, spiritus, ruach,
ruch), o ar que anima, o sopro de vida que nos desperta de sonhos seculares de
imobilidade. É isso que desejo, que a leitura tenha insuflado um pouco dos deuses do
vento em todos nós, os que escrevemos e os que lemos. [...] isso significa corpo livre,
movimentos livres, pensamentos ao vento, pés e mãos que pensam e... imagens, sim,
mas imagens que movem, nos movem comovem, imagens que nos levantam, fazem
andar, fazem saltar (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 142).