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28/08/2023, 12:39 Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Todos os Direitos Reservados http://www.

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A Arquitetura da realidade: espaço e criação, linguagem e gênesis


Autora: Ormezinda Maria Ribeiro[1] - ormezinda.ribeiro@uniube.br

Resumo:

Este ensaio traz como tema a construção da realidade enformada em linguagens, apresentando a prática cultural como a
responsável por essa arquitetura e a própria arquitetura como um símbolo desse processo contínuo de produção e
reprodução de símbolos, estereótipos e conhecimentos regulados por uma interação de práticas, percepção e linguagens.

Resumen:

Este ensayo tiene como tema la construcción de la realidad conformada em lenguajes, presentando la práctica cultural
como la responsable por esa arquitectura y la propia Arquitectura como un símbolo de ese proceso continuo de producción
y reproducción de símbolos, estereotipos y conocimiento regulados por una interacción de prácticas, percepción y
lenguajes.

“O espaço não está em lugar algum. O espaço está em si mesmo como


o mel no favo.”

Joë Bousquet

Todo o campo do saber humano seja ciência ou ficção é perpassado por uma
linguagem. E é a linguagem que constrói a realidade, embora a julguemos sua
geradora. Numa perspectiva fenomenológica não é impróprio repetir Merleau-
Ponty (1984): “O olho que vê o mundo é o mundo que o olho vê”. É
inconcebível, portanto, um mundo desprovido de linguagem. Há mundo,
porque há linguagem. Ecoamos aqui a figurativização bíblica no Livro de
Gênesis, quando, pela palavra, Deus criou o Céu e a Terra e tudo o que neles
se contém. E nessa evocação simbólica não é demais lembrar que a Terra, sem
forma e vazia, foi “construída” por uma evocação sonora e tudo o que nela se
fez formou-se a partir da palavra. Ora, a palavra é um símbolo, e como
símbolo representa, então podemos inferir que a expressão do símbolo criou
uma realidade. E assim tem sido desde Gênesis.

Essa afirmativa pode soar inconsistente e entendida como uma crença a um discurso religioso sem amparo científico, por
isso tentaremos legitimar essa tese apoiando-nos na história do pensamento lingüístico, remontando às reflexões
socráticas acerca da relação entre nome e coisas, que certamente nos remeterá à noção de uma realidade “fabricada”,
também implícita na concepção platônica de linguagem.

Em Platão (2002) lemos que a língua constitui um recorte da realidade, que é, na compreensão desse filósofo, fabricada
por nossa percepção. Avançando na história dos estudos lingüísticos, reportamo-nos ao mestre Saussure (1974, p. 15),
quando nos assegura que não é o objeto que precede o ponto de vista, contudo, é o ponto de vista o criador do objeto.

Schaff (1974, p. 146) reitera essa concepção, quando afirma que o modo de percepção humano está indissociavelmente
ligado à maneira de falar e historicamente ligado a uma práxis social, construída nas relações em comunidade. Schaff
(1974, p. 223) fala também dos “óculos sociais”, os modelos ou padrões perceptivos, com os quais os indivíduos enxergam
o mundo. São os nossos estereótipos. Por eles vislumbramos uma “realidade” que nos parece ser real. Fabricamos,
portanto, uma realidade e acreditamos vê-la com os nossos olhos, ou com os olhos sociais. E assim seguimos o itinerário
iniciado em Gênesis e “quanto mais avançamos no processo de socialização, mais os códigos verbais se apropriam de
nosso sistema perceptual”, afirma Blikstein (2000, p.66-7). Rumo ao apocalipse, seguimos fabricando novos signos e novas
realidades. Somos o que diz Foucault (1995) o resultado dos discursos que nos constroem.

Espaço e criação

Nesse universo construímos também nossas casas e desenhamos nessa realidade novos e inusitados espaços. E com o
poder do olhar humano, com uma percepção fenomenológica organizamos nossa arquitetura. E se entendemos, como Eco
(1987, p.187), que a arquitetura é um fenômeno de cultura e como tal se baseia num sistema de signos, então, como
signo, podemos inseri-la num espaço de criação que se forma a partir de um olhar, de um ponto de vista, ou com os
“óculos sociais” de Schaff.

Nossos espaços arquitetônicos oscilam entre ausências e exageros. Há sempre faltas e sobras e os momentos de equilíbrio
entre uma coisa e a outra são raros. Mas a casa, nos diz Bachelard (1984, p. 200),“é nosso canto do mundo”, “é nosso
primeiro universo”. Sem a casa, o homem seria um ser disperso, assegura-nos esse fenomenólogo, em sua poética do
espaço, para quem o referente “casa” está embutido de uma verticalidade e de uma centralidade, que mantém o homem
através das tempestades do céu e das tempestades da vida.

E em Bachelard (1984, p. 203) buscamos sua poética para reafirmarmos o que antes tentávamos dizer por uma linguagem
mítica, ou apoiando-nos no discurso da ciência:

E todos os espaços de nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos
a solidão, comprometemos a solidão, são em nós indeléveis. E é o ser precisamente que não quer apagá-los. Ele sabe por
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instinto que os espaços da sua solidão são constitutivos. Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do
presente, estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo quando não se tem mais nenhum sótão, mesmo quando a
água-furtada desapareceu, ficará para sempre o fato de termos amado um sótão, de termos vivido numa água-furtada.

O animal, que nem cria cultura, nem precisa de escola, não edifica sua casa segundo uma realidade construída. Suas casas
apenas denotam abrigo, desde a era primitiva até a atualidade, e não espelham nada além disso. A casa do homem, ao
contrário, conta sua história através dos tempos e espelha a realidade intrínseca na cultura a que o homem está imerso,
constitutiva e constituinte de símbolos.

A capacidade de simbolizar e de produzir símbolos é que faz a diferença entre o animal e o humano, e é o exercício da
faculdade de simbolização que cria a cultura que, ao ser reproduzida na práxis social, reflete e refrata uma realidade
construída pelo homem.

Construímos nossos signos e construímos com eles nossas “realidades”, nossos espaços, e neles habitamos.
Coincidentemente, (ou não?) nossos signos são fabricados segundo uma ideologia, e nossas casas se parecem com o
modelo projetado pelo olho social.

Se construímos nossa realidade e nossos signos num processo cíclico de reprodução da práxis, somos essencialmente o
que as lentes do mundo refletem e refratam em nós. Enxergamos o mundo, ou a “realidade” conformada no mundo, com
as lentes desse mundo. Nossas habitações são o exemplo de nossas representações sociais.

Aqui arquitetura e lingüística se confundem: nossas edificações falam por nós. Os reis moram em palácios, os simples em
choupanas. Há aqueles que não têm nem eira, nem beira e ainda os que têm tribeira. Mas todos guardam dentro de si um
estereótipo de uma casa que tanto pode denotar abrigo, como conotar lar, família, fraternidade...

E as salas-de-aulas que habitamos como estudantes e/ou como educadores? Como signos reveladores, são dimensões
interindividuais ou agenciadas em uma determinada cultura que nos cria, recria e molda com poderes muito maiores do
que podemos suspeitar. Existem desequilíbrios muito grandes e muito curiosos. Existe aí algo semelhante à desproporção
entre um espaço arquitetônico e outro, dentro de um mesmo campus. Seriam realidades também criadas pelo olho que vê
esse mundo? Ou seriam forjadas sutilmente em nossas concepções, como um quadro de paisagem para não abrirmos a
janela?

Ora, nessas edificações encerramos pessoas, com olhos de ver o mundo, com óculos sociais e irremediavelmente expostas
à gênesis cotidiana. Nossa impostação semiológica reconhece, como quer Eco (1987, p. 196), que no signo arquitetônico
há, como no signo lingüístico, “a presença de um significante cujo significado é a função que ele possibilita”. Os signos
arquitetônicos são constituídos por significantes descritíveis e catalogáveis, que podem denotar funções precisas se os
interpretarmos à luz de determinados códigos, que por sua vez podem ser preenchidos de significados sucessivos tanto por
via conotativa, quanto denotativa, com base em outros códigos. No sentido dado por Eco (1987, p. 198), “o objeto
arquitetônico denota uma forma do habitar”. Um objeto arquitetônico, nos diz Eco (1987, p.202), pode denotar a função ou
conotar certa ideologia da função, mas pode também conotar outras coisas.

Uma sala de aula com púlpito e tablado podia, num passado muito recente, em termos de história da educação, denotar
uma verticalização na relação professor-aluno, relações rígidas de saber e poder, mas hoje pode conotar muito mais a
possibilidade de interação entre um grande grupo.

A construção de salas espaçosas e verticais, com um pé-direito duplo, e um pórtico imponente podia conotar a magnitude
das universidades e de seus fins, hoje pode denotar inadequação e distanciamento nas relações aluno-professor.

Pensemos que desde tempos imemoriais já se faziam leituras conscientes ou inconscientes desses símbolos arquitetônicos
que circundam nosso universo e se compõem nos espaços que, provisoriamente, ou por boa parte de nossas vidas,
habitamos.

Esses signos, nossas habitações provisórias, mas que nos abrigam por longos períodos, ainda que a idéia de longo seja
construída em nossas idiossincrasias, são representações de nossos desejos e sensibilidades, que vão além de si mesmos,
e constroem assim a sua a face de identidade e realização, ou são reflexos e refrações de projeção social?

Numa perspectiva culturalista, que combina sociedade, cultura e linguagem, que não acredita na existência de um sujeito
soberano e de uma verdade a ser alcançada, e entende que se deve enfatizar a provisoriedade das múltiplas posições em
que somos colocados, em função das múltiplas mudanças discursivas que nos constitui, inferimos que a linguagem
arquitetônica que nos cerca compõe-se dos múltiplos olhares sociais, das lentes que muitas vezes nos são impostas como
um olho mecânico, até para quem não é sequer míope.

É possível, nesse simulacro da caverna, cuja luz nos apresenta ao fundo, quando pensamos que sua claridade nos cegará,
quebrar essas sombras que vislumbramos como realidade?

Linguagem e gênesis

Se entendermos que a linguagem não é só reflexo, reprodução ou reiteração da práxis, mas que ela pode também
desenvolver uma ação dialética e criativa, de forma a desagregar os estereótipos de nossa percepção, podemos inverter a
posição do quadro: deixar a moldura lá fora e trazermos a paisagem para a sala. Em outras palavras: a arquitetura da
universidade, ou de qualquer espaço habitado para a prática pedagógica, pode sim ser transformada ou recriada pela ação
da palavra que se faz criadora. E nessa gênesis transgressora, o verbo pode iluminar.

A linguagem que usamos para ler o mundo determina, em grande medida, a forma como pensamos e agimos no e sobre o
mundo, uma vez que não existe uma realidade fora da linguagem e dos signos. A linguagem e os signos são constitutivos
da realidade. Assim, não existe lugar para uma perspectiva que pretenda enxergar além da aparência do discurso. A
aparência é a própria realidade, manifesta em discurso. Entendendo que, na linguagem, produzem-se compreensões
particulares do mundo, isto é, significados particulares. Tal significado é sempre construído, produzido, de forma
contextual, no interior de práticas determinadas. Se as práticas sociais são pontos de criação de signos específicos, então a
atividade semiótica é produtiva, não uma distorção ou reflexo de uma realidade material que está situada em outro lugar.

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Assim, reportemo-nos a Demo (2002), quando nos diz que "História e cultura oferece-nos contexto intrínseco da linguagem
e interpretação". E, mesmo se tomarmos a cultura em suas diferentes concepções e sentidos, podemos reconhecer que
cultura é muito mais um sistema de símbolos e significados, pelo qual pessoas e grupos humanos se comunicam e dão
sentido ao que sentem, ao que pensam e ao que fazem, do que sistema de práticas dirigidas à manipulação produtiva da
natureza e à ordenação pragmática da vida social. (LARAIA, 1997, p. 60-65)

Sendo assim, a educação e seu simbolismo são motivados pela cultura e dela se abastecem, pois tanto a história, quanto a
educação se compõe de símbolos e gera símbolos que se reproduzem no seio da comunidade na e pela cultura. Ora, essa
cultura, simbólica, alimentada pela educação, formal ou não, e projetada na história, é materializada pela linguagem. E
numa eterna gênesis criadora segue produzindo símbolos que representam outros símbolos, e assim sucessivamente como
apregoa Nietzche, para quem a linguagem faz sempre o movimento escavador, ad infinitum. (FOUCAULT, 1997).

Arquitetura é linguagem e em toda linguagem há uma arquitetura, no sentido de criação. Arquitetura é símbolo, pois como
linguagem não é por si, mas representa. E ao representar cria e recria como reflexo e refração de uma cultura, de um
processo constante e contínuo. Arquitetura é, pois, gênesis, e, como tal pode subverter modelos, despir dos óculos sociais
que nos fazem enxergar apenas silhuetas nas sombras de nossas projeções de realidade.

Bibliografia

BACHELARD, G. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.


BLIKSTEIN, Izidoro. Kasper Hauser. Ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 2000.
DEMO, Pedro. Complexidade e Aprendizagem. São Paulo: Atlas, 2002.
ECO, Umberto. A estrutura ausente.São Paulo: Perspectiva, 1987.

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: Rabinow, P; Dreyfus Rabinow, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx: theatrum philosoficum. São Paulo: Princípio, 1997
LARAIA, R. Cultura. Um conceito antropológico.11 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MERLEAU-PONTY, M. O homem e a comunicação. Rio de Janeiro: Bloch, 1984.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2002.
SAUSSURE, F. de. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, Cultrix, 1974.
SCHAFF, A. Langage et conaissance. Paris: Antropos, 1974.

Notas:

[1]Mestre em Lingüística pela UFU. Doutorado em Lingüística pela Unesp/Araraquara. Professora do Instituto de Formação
de Educadores da Universidade de Uberaba. Universidade de Uberaba/Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita
Filho".

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