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AS ORIGENS DO ZEN: HINDUISMO

A MITOLOGIA DE DEUS: PURUSHA


Boletim Zen - dezembro 2004 - nº 21 - órgão de difusão do Grupo Zen Hui-neng - grupozenhuineng@yahoo.com.br - cx postal 16192 CEP 03402-970-SP

Fundamental para a vida e pensamento da Índia, desde os tempos mais remotos, é o grande
tema mitológico de atma-yajna — o ato de «auto-sacrifício» pelo qual Deus dá origem ao mundo, e
pelo qual os homens, seguindo o modelo divino, se reintegram em Deus. O ato pelo qual o mundo
é criado é o mesmo pelo qual é consumado — a entrega da própria vida — como se todo o
processo do universo fosse o tipo de jogo em que é necessário passar a bola a outro assim que é
recebida. O mito básico do Hinduismo é pois que o mundo é Deus a brincar às escondidas consigo
próprio. Como Prajapati, Visnu ou Brâmane, o Senhor, sob muitos nomes, cria o mundo através de
um ato de auto desmembramento ou auto-esquecimento, através do qual o Uno se torna Múltiplo, e
o único Ator representa inúmeros papéis. No final, volta de novo a si próprio, mas para recomeçar,
uma vez mais, o drama — o Uno morrendo no Múltiplo, e o Múltiplo morrendo no Uno.

Mil cabeças tem Purucha, e mil olhos, e mil pés.


Por toda a parte ocupa a terra, enche um espaço largo de dez dedos.
É Purucha tudo o que tem sido, tudo o que virá a ser;
Senhor da imortalidade que se acrescenta ainda pelo alimento.
Quão poderosa é a sua grandeza; maior ainda é, na verdade, Purucha.
Todas as criaturas são a quarta parte dele, três quartos a vida eterna nos céus...
Quando os Deuses prepararam o sacrifício tendo Purucha como sua oferenda,
O óleo foi a primavera, a dádiva sagrada o outono; a madeira era o verão.
Daquele grande sacrifício geral foi recolhida a escorrente gordura.
Ela formou as criaturas do ar, e os animais, bravios ou domados...
Ao dividirem Purucha, quantas porções fizeram?
Que chamam à sua boca e braços?
Que chamam às suas coxas e pés?
A casta Brâmane era a sua boca, dos seus dois braços foi feita Rajanya,
a casta Kchatriya.
As suas coxas fizeram-se Vaichya, de seus pés foi produzido o Chudra.
A lua foi gerada da sua mente e o sol nascido dos seus olhos;
Indra e Agni nasceram da sua boca, e Vayu do seu sopro.
Do seu umbigo brotou o ar intermédio; da sua cabeça foi construído o céu;
Terra dos seus pés, e da sua orelha as regiões.
Assim formaram eles os mundos (1)

As mil cabeças, olhos e pés de Purucha, são os membros dos homens e dos outros seres,
enquanto Aquilo que conhece a todos e a cada um é o próprio Deus, o atman ou Ser do mundo.
Cada vida é um papel ou interpretação em que a mente de Deus se absorve, um pouco como um
ator se absorve em Hamlet, esquecendo-se de que, na vida real, é o Sr. Silva. Pelo ato de auto-
abandono Deus torna-se todos os seres mas, ao mesmo tempo, continua a ser Deus. «Todas as
criaturas são a quarta parte dele, três quartos a vida eterna nos céus.» Porque Deus divide-se na
representação, no fictício, mas mantém-se indiviso na realidade. Assim, quando a peça chega ao
final, a consciência individualizada desperta para se descobrir divina.

No princípio este mundo era Atman (o Ser), solitário na forma de Purucha.


Olhando em redor nada mais viu além de si próprio.
Primeiro disse, «Eu sou».
Dai veio a palavra «Eu».
Por isso ainda hoje, quando alguém é interpelado, primeiro responde simplesmente, «Sou eu», e diz depois o nome
que tiver.(2)

Em toda a parte Aquilo tem mãos e pés;


Em toda a parte olhos, cabeças e rostos;
Em toda a parte do mundo ouve;
E todas as coisas abarca (3)

Importa recordar que esta representação do mundo como o drama (lila) de Deus é
mitológica na sua forma. Se, neste momento, tivéssemos de a condensar num resumo filosófico,
traduzi-la-íamos num vago panteísmo, com que se confunde, em geral e erroneamente, a filosofia
Hindu. A idéia de cada homem, cada coisa, tal como cada papel que o Purucha representa em
estado de auto-esquecimento, não deve pois ser confundida com uma declaração de fato, de
ciência ou uma proposição lógica. A forma da declaração é poética, não lógica. Segundo as
palavras do Mundaka Upanichade:

Em verdade este atman (Próprio Ser) — dizem os poetas — viaja neste inundo de corpo para corpo.

A filosofia Hindu não cometeu o erro de imaginar que se pode fazer uma exposição informativa, factual e
positiva, sobre a suprema realidade. Como diz o mesmo Upanichade:

Quando no conhecimento não há dualidade, ação, causa ou efeito;


quando ele é indizível, incomparável, para além de qualquer descrição,
que poderá ele ser? Ê Impossível dizê-lo!

Qualquer declaração positiva acerca de coisas supremas deve ser feita sob a sugestiva
forma de mito, de poesia, pois neste domínio a forma de discurso direta e indicativa apenas pode
dizer «.Neti, neti> («Não, não»), posto que aquilo que pode ser descrito e categorizado pertence
sempre, forçosamente, ao domínio convencional.

A mitologia Hindu constrói o tema do drama divino numa escala fabulosa, compreendendo
não só efeitos colossais de tempo e espaço, mas também os últimos extremos do prazer e dor, da
virtude e depravação. O Ser íntimo do santo é tanto o Rosto velado de Deus como o Ser íntimo do
depravado, do covarde, do lunático, dos próprios demônios. Os opostos (dvandva) de luz e treva,
bem e mal, prazer e dor, são os elementos essenciais do jogo, pois embora o Rosto de Deus se
identifique com Verdade (sat), Consciência (chit), e Bem-aventurança (ananda), o lado escuro da
vida tem a sua parte integrante no jogo tal como qualquer drama deve ter o seu vilão para
despedaçar o "status quo", tal como as cartas devem ser embaralhadas, lançadas no caos, para
que a seqüência do jogo se torne significativa. Para o pensamento Hindu não existe o Problema do
Mal. O mundo convencional e relativo é, necessariamente, um mundo de opostos. Afastada da
escuridão, a luz é inconcebível; a ordem não tem sentido sem a desordem; e o mesmo se dá com o
alto sem o baixo, o som sem o silêncio, o prazer sem a dor.

Como diz Ananda Coomaraswamy:

Para aquele que afirma que «Deus fez o mundo», a questão,


Porque permitiu Ele a existência do mal ou d'Aquele em que todo o mal se personifica (o Demônio), carece em
absoluto de sentido; do mesmo modo se poderia inquirir porque não fez Ele um mundo sem dimensões ou sem
sucessão temporal.
De acordo com o mito, o drama divino prossegue através de ciclos infindáveis de tempo,
através de períodos de manifestação e desaparecimento dos mundos, medidos em unidades de
kalpas, sendo o kalpa um espaço de 4 320 000 000 de anos. Considerada de um ponto de vista
humano, uma tal concepção representa uma terrível monotonia, dado que continua, sem qualquer
finalidade, por todo o sempre. Mas, do ponto de vista divino, tem todo o fascínio dos jogos
repetitivos das crianças, que prosseguem indefinidamente porque o tempo foi esquecido,
reduzindo-se assim a um único instante de maravilha.

Texto de Alan Watts em "O Budismo Zen"

1 - Rigveda. A tradução é de R. T. H. Griffith. Purucha é "a Pessoa", isto é, a consciência original por detrás do mundo
2 - Brihadaranuaka Upanichade.
3 - Bhagavad-gita

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