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Fundamental para a vida e pensamento da Índia, desde os tempos mais remotos, é o grande
tema mitológico de atma-yajna — o ato de «auto-sacrifício» pelo qual Deus dá origem ao mundo, e
pelo qual os homens, seguindo o modelo divino, se reintegram em Deus. O ato pelo qual o mundo
é criado é o mesmo pelo qual é consumado — a entrega da própria vida — como se todo o
processo do universo fosse o tipo de jogo em que é necessário passar a bola a outro assim que é
recebida. O mito básico do Hinduismo é pois que o mundo é Deus a brincar às escondidas consigo
próprio. Como Prajapati, Visnu ou Brâmane, o Senhor, sob muitos nomes, cria o mundo através de
um ato de auto desmembramento ou auto-esquecimento, através do qual o Uno se torna Múltiplo, e
o único Ator representa inúmeros papéis. No final, volta de novo a si próprio, mas para recomeçar,
uma vez mais, o drama — o Uno morrendo no Múltiplo, e o Múltiplo morrendo no Uno.
As mil cabeças, olhos e pés de Purucha, são os membros dos homens e dos outros seres,
enquanto Aquilo que conhece a todos e a cada um é o próprio Deus, o atman ou Ser do mundo.
Cada vida é um papel ou interpretação em que a mente de Deus se absorve, um pouco como um
ator se absorve em Hamlet, esquecendo-se de que, na vida real, é o Sr. Silva. Pelo ato de auto-
abandono Deus torna-se todos os seres mas, ao mesmo tempo, continua a ser Deus. «Todas as
criaturas são a quarta parte dele, três quartos a vida eterna nos céus.» Porque Deus divide-se na
representação, no fictício, mas mantém-se indiviso na realidade. Assim, quando a peça chega ao
final, a consciência individualizada desperta para se descobrir divina.
Importa recordar que esta representação do mundo como o drama (lila) de Deus é
mitológica na sua forma. Se, neste momento, tivéssemos de a condensar num resumo filosófico,
traduzi-la-íamos num vago panteísmo, com que se confunde, em geral e erroneamente, a filosofia
Hindu. A idéia de cada homem, cada coisa, tal como cada papel que o Purucha representa em
estado de auto-esquecimento, não deve pois ser confundida com uma declaração de fato, de
ciência ou uma proposição lógica. A forma da declaração é poética, não lógica. Segundo as
palavras do Mundaka Upanichade:
Em verdade este atman (Próprio Ser) — dizem os poetas — viaja neste inundo de corpo para corpo.
A filosofia Hindu não cometeu o erro de imaginar que se pode fazer uma exposição informativa, factual e
positiva, sobre a suprema realidade. Como diz o mesmo Upanichade:
Qualquer declaração positiva acerca de coisas supremas deve ser feita sob a sugestiva
forma de mito, de poesia, pois neste domínio a forma de discurso direta e indicativa apenas pode
dizer «.Neti, neti> («Não, não»), posto que aquilo que pode ser descrito e categorizado pertence
sempre, forçosamente, ao domínio convencional.
A mitologia Hindu constrói o tema do drama divino numa escala fabulosa, compreendendo
não só efeitos colossais de tempo e espaço, mas também os últimos extremos do prazer e dor, da
virtude e depravação. O Ser íntimo do santo é tanto o Rosto velado de Deus como o Ser íntimo do
depravado, do covarde, do lunático, dos próprios demônios. Os opostos (dvandva) de luz e treva,
bem e mal, prazer e dor, são os elementos essenciais do jogo, pois embora o Rosto de Deus se
identifique com Verdade (sat), Consciência (chit), e Bem-aventurança (ananda), o lado escuro da
vida tem a sua parte integrante no jogo tal como qualquer drama deve ter o seu vilão para
despedaçar o "status quo", tal como as cartas devem ser embaralhadas, lançadas no caos, para
que a seqüência do jogo se torne significativa. Para o pensamento Hindu não existe o Problema do
Mal. O mundo convencional e relativo é, necessariamente, um mundo de opostos. Afastada da
escuridão, a luz é inconcebível; a ordem não tem sentido sem a desordem; e o mesmo se dá com o
alto sem o baixo, o som sem o silêncio, o prazer sem a dor.
1 - Rigveda. A tradução é de R. T. H. Griffith. Purucha é "a Pessoa", isto é, a consciência original por detrás do mundo
2 - Brihadaranuaka Upanichade.
3 - Bhagavad-gita