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AS ORIGENS DO ZEN: HINDUÍSMO

NOME (NAMA) E FORMA (RUPA)


Boletim Zen - FEVEREIRO/ 2005 - nº 23 - órgão de difusão do Grupo Zen Hui-neng - grupozenhuineng@yahoo.com.br - cx
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É fácil ver, por exemplo, que um acontecimento chamado Primeira


Guerra Mundial só muito arbitrariamente se pode considerar que
principiou em 4 de Agosto de 1914 e terminou em 11 de Novembro de 1918.
Os historiadores podem encontrar inícios «reais» da guerra muito antes e
«recomeços» do mesmo conflito muito para aquém dos limites formais do
acontecimento. Porque os acontecimentos podem-se dividir ou fundir como
gotas de mercúrio, de acordo com as formas variáveis da descrição histórica.
Os limites dos acontecimentos são muito mais convencionais que naturais,
no mesmo sentido em que se diz que a vida de um homem começa no
momento do parto e não, para um lado, no da concepção ou, para o outro,
no do desmamar.
Do mesmo modo, é fácil verificar o caráter convencional das coisas.
Regra geral, um organismo humano é encarado como uma única coisa,
embora sob o ponto de vista fisiológico seja tantas coisas quantas as suas
partes ou órgãos, e sob o ponto de vista sociológico seja meramente parte de
algo mais vasto a que se chama grupo.
Por certo que o mundo da natureza abunda em superfícies e linhas, em
áreas de densidade e vacuidade, que utilizamos para marcar os limites de
acontecimentos e coisas. Mas aqui, uma vez mais, a doutrina maya sustenta
que estas formas {rupa) não têm «ser próprio» ou «natureza própria»
(svabhava): não existem por direito próprio mas apenas relacionadas com
outras, tal como um sólido apenas pode ser distinguido relativamente a um
determinado espaço. Neste sentido, o sólido e o espaço, o som e o silêncio, o
existente e o inexistente, a personagem e a cena, são inseparáveis,
interdependentes, ou «mutuamente originantes», e só através de maya ou
divisão convencional poderão ser considerados separadamente.
A filosofia indiana também considera rupa, ou forma, como maya, por ser
impermanente. Na verdade, quando os textos Hindus ou Budistas falam do
caráter «vazio» ou «ilusório» do mundo visível da natureza — como distinto
do mundo convencional das coisas — referem-se precisamente à
impermanência das suas formas. Forma é fluxo, e portanto maya, no sentido,
um pouco mais lato, de não se poder registrar com precisão ou apreender. A
forma é maya quando a mente tenta compreendê-la e controlá-la nas
categorias fixas do pensamento, isto é, por meio de nomes (nama) e palavras,
pois tais são precisamente os substantivos e verbos por meio dos quais as
categorias abstratas e conceptuais de coisas e acontecimentos são
designadas.
Para servir este propósito, nomes e termos devem necessariamente ser
fixos e definitivos como quaisquer outras unidades de medida. Porém o seu
emprego é — até certo ponto — tão satisfatório que o homem está sempre
em perigo de confundir as suas medidas com o mundo assim medido, de
identificar dinheiro com riqueza, a rígida convenção com a fluida realidade.
Mas, tanto quanto se identifica a si próprio e à sua vida com as rígidas e ocas
molduras da definição, condena-se à perpétua frustração de alguém que
tenta acarretar água com uma peneira. Por isso a filosofia indiana fala
constantemente da insensatez de pretender alcançar coisas, de lutar pela
permanência de entidades e acontecimentos particulares, porque em tudo
isto nada mais vê que uma louca paixão por fantasmas, pelas abstratas
medições da mente (manas)(1)
Maya é pois geralmente equiparado com nama-rupa ou «nome-e-forma»,
com a tentativa da mente para aprisionar as formas fluidas da natureza na
rede das classes fixas. Mas quando se compreende que, em última análise, a
forma é vácuo — no sentido específico do inapreensível e incomensurável —
o mundo da forma é imediatamente visto mais como Brâmane do que como
maya. O mundo formal torna-se o mundo real no momento em que deixa de
estar aprisionado, no momento em que deixamos de opor resistência à sua
mutável fluidez. Daí advém que a própria transitoriedade do mundo
constitui o sinal da sua divindade, da sua real identidade com a indivisível e
incomensurável infinidade de Brâmane.
É por isto que a insistência Hindu-Budista sobre a impermanência do
mundo não constitui a doutrina pessimista e niilista que os críticos
ocidentais normalmente crêem que ela seja. A transitoriedade só é
depressiva para a mente que insiste na tentativa de aprisionar. Mas para a
mente que abre as mãos e se deixa levar na corrente fluida da mudança,
para a mente que se torna, segundo a imagem Budista Zen, como uma bola
vagando no rio que desce o monte, a sensação de transitoriedade ou vazio
transforma-se numa espécie de êxtase. Será talvez esta a razão porque, quer
no Oriente quer no Ocidente, a impermanência é tantas vezes o tema da
mais profunda e comovente poesia — de tal modo que o esplendor da
mudança brilha e transparece mesmo quando o poeta mais parece ressentir-
se dela.
Amanha, e amanha,, e amanhã,,
Rasteja no seu mesquinho passo de dia para dia,
Até à última sílaba de tempo recordado,
E todos os nossos ontens alumiaram aos loucos
O caminho para o pó da morte. Apaga-te, minúscula vela!
A vida nada mais é que sombra errante, miserável ator
Que se pavoneia e desperdiça a sua hora sobre o palco
E não mais é ouvido: é uma história
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,
E sem sentido algum.

Exposta deste modo — como observa R. H. Blyth — não parece assim tão
mau, ao fim e ao cabo.
Em resumo, a doutrina maya aponta, em primeiro lugar, a
impossibilidade de aprisionar o mundo real na rede de palavras e conceitos
da mente, e, em segundo, o caráter fluido dessas mesmas formas que o
pensamento tenta definir. O mundo dos fatos e acontecimentos é totalmente
nama, nomes abstratos, e rupa, forma fluida. Escapa de igual modo à
compreensão do filósofo e à garra daquele que procura o prazer, como água
através de um punho fechado. Há algo de ilusório mesmo na idéia de
Brâmane como a eterna realidade subjacente ao fluxo, e do atman como o
fundo divino da consciência humana, porque, na medida em que se trata de
conceitos, são tão incapazes de apreender o real como qualquer outro.
É precisamente este entender a total indefinição do mundo, que se
encontra nas raízes do Budismo. E essa a especial mudança de tônica que,
mais que qualquer outra coisa, distingue a doutrina do Buda dos
ensinamentos dos Upanichades, e que constitui a razão de ser do
florescimento do Budismo como um movimento distinto, na vida e no
pensamento indianos.

texto de Alan Watts, em "O Budismo Zen"


(1) Da mesma raiz que maya, e de onde provêm as palavras «mensurar», «mental»,
«dimensão», «mês» e o próprio
«homem», «medida de todas as coisas».

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