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PLOTINO

V. 1 [10]

Sobre as três hipóstases principiais1

Tradução de José Baracat Júnior


Universidade Federal do Rio Grande do Sul
baracatjr@hotmail.com

1. Então, o que é que fez as almas se esquecerem de seu pai deus e,


sendo partes de lá2 e inteiramente dele, desconhecerem tanto a si mesmas
quanto a ele? Sem dúvida, o princípio do mal para elas é a audácia3, a gênese,
a primeira alteridade e também o fato de terem querido ser de si mesmas4.
Uma vez que mostraram-se jubilantes5 com seu arbítrio6, empregando sua
grande capacidade de moverem-se por si mesmas, tendo corrido na direção

1
Plotino emprega com certa freqüência a palavra hypóstasis para designar uma existência
verdadeira, a subsistência ou a realidade de alguma coisa; mas é Porfírio, autor dos títulos dos
tratados, quem tenta conferir à palavra sentido técnico, denotando os três princípios
plotinianos: uno, intelecto e alma. O adjetivo arkhikós não ocorre nenhuma vez nas Enéadas;
seu significado é “relativo à arkhé”, isto é, à origem, ao princípio, mas também, e
especialmente, ao poder e ao comando. Por isso, traduções como “principal”, “primeiro”,
“primordial” etc., se não observamos o componente etimológico dessas palavras, não
abrangem o campo semântico do termo grego. O neologismo “principial” busca, assim, causar
um estranhamento, para chamar a atenção para que as três “hipóstases” são realidades
originárias, causativas, determinantes, fundantes, fundamentais etc.
2
Do domínio inteligível.
3
Tólma: redigir nota.
4
Passagem alusiva de difícil interpretação: entende-se claramente que as causas do mal da
alma são sua vontade de separar-se das realidades anteriores e os processos de progressiva
perda de unidade. Contudo, resta incerto qual seja a primeira alteridade. A primeira alteridade
é, sem dúvida, o intelecto, mas Plotino jamais o descreve como causa do mal para a alma;
além disso, permanece problemática a palavra génesis: qual nascimento ou devir é causa?
Provavelmente, não se trata do devir sensível, pois este está num estágio posterior ao que
Plotino descreve aqui; talvez seja melhor tomar o termo como referente ao nascimento da
própria alma como realidade diferente das anteriores.
5
Embora o sentido geral não se altere muito, este trecho sintaticamente ambíguo pode ser
entendido de pelo menos duas maneiras: 1) tomando o particípio hestheîsai como
complemento de ephánesan (minha opção), “mostraram-se jubilantes com seu arbítrio”; 2)
entendendo o particípio como circunstancial, “jubilantes com seu arbítrio, apareceram”. A opção
de Fronterotta – “chaque fois qu’ elles croient jouir de leur independence” – (in Brisson et al.,
Plotin, traités 7-21, Paris, Flammarion, p. 153) é de difícil sustentação gramatical.
6
Autexoúsios: exprime a capacidade que as almas possuem de agir de acordo com sua
vontade; nesse sentido, “arbítrio” traduz melhor do que “independência”, uma vez que se
relaciona mais com vontade do que com autonomia.
2

contrária e tornado máximo o afastamento7, ignoraram que também elas são de


lá: são como crianças que, imediatamente8 separadas dos seus pais e criadas
longe por muito tempo, ignoram tanto a si quanto aos pais. Então, como não já
vêem nem a ele nem a si mesmas, desestimando-se por ignorância de sua
origem, estimando todas as coisas e maravilhando-se com todas mais do que
consigo mesmas, estupefatas diante delas, admirando-as, dependentes dessas
coisas, afastaram a si mesmas como puderam das coisas às quais deram as
costas por desestimarem-nas; assim, dá-se que a estima por estas coisas9 e a
desestima por si mesmas são a causa de sua total ignorância dele10. Pois
aquele que admira e persegue outro, já no momento em que o persegue e se
admira, concorda que é inferior a ele; colocando-se como inferior às coisas que
nascem e perecem, e tomando-se como a mais desestimável e a mais mortal
dentre todas as coisas que estima, jamais poderia acolher em seu coração11
nem a natureza nem potência a de deus.
Por isso, dois devem ser os discursos dirigidos aos que estão assim
dispostos, se é que se há de voltá-los para as coisas contrárias, as primeiras, e
elevá-los até o altíssimo, o uno e primeiro. Quais são eles? Um é o que mostra
a desestima das coisas estimadas pela alma, que exporemos melhor alhures12;
outro é o que ensina e, por assim dizer, rememora a alma de sua origem e
dignidade, que é anterior àquele e que, esclarecido, mostrará aquele também.
Acerca dele, agora, deve-se falar: pois ele é próximo do que é investigado e o
trabalho será útil para o outro13. Porque quem investiga é a alma, e a alma deve
conhecer o que ela é ao investigar, para que antes conheça a si mesma, se
tem poder de investigar tais coisas, se tem olhos tais para ver, e se lhe convém

7
A direção contrária é o afastamento do princípio, que, levado ao extremo pelo arbítrio das
almas, as faz desconhecer que são partes oriundas e pertencentes aos estágios anteriores da
realidade.
8
Imediatamente após seu nascimento.
9
As coisas sensíveis.
10
Por deus.
11
Thymós: a palavra poderia ser traduzida também por “ânimo”, “mente” ou “espírito”, mas, em
todos os casos, não desaparece a estranheza da fórmula, pois como compreender o ânimo, a
mente, o espírito ou coração da alma? É uma indicação metafórica do âmago da alma, mas
certamente não um ponto ou faculdade dela.
12
Cf. os tratados Sobre a matéria, II. 4 [12], e Sobre o daímon que nos coube, III. 4 [15].
13
O primeiro discurso mostra a inferioridade do sensível em relação à alma, o segundo
relembra à alma que ela é superior ao mundo e é parte do inteligível; portanto, mostrar o valor
da alma implica em mostrar a inferioridade do sensível, posterior a ela.
3

investigar. Pois, se tais coisas lhe são alheias, por que deve investigar? Mas,
se são cognatas, não só lhe convém, como também é capaz de investigá-las.
2. Portanto, que toda alma14 pense nisto: que ela mesma fez todos os
viventes, inspirando neles a vida, tanto os que nutre a terra, quanto os que o
mar, e os que há no ar, e os astros divinos no céu, e ela mesma fez o sol, e ela
mesma esse grande céu, e ela mesma os ordenou, e ela mesma os circunduz
em ordem, sendo uma natureza diferente das coisas que ordena e das que
move e das que vivifica; e ela necessariamente deve ser mais estimável que
essas coisas, que nascem e perecem, conforme a alma lhes abandone ou
proveja o viver, ela mesma existindo sempre “por não abandonar a si
mesma”15. Que ela, então, reflita sobre qual o modo da provisão do viver, tanto
no todo quanto nos particulares, da seguinte maneira. Que à grande alma
investigue outra alma, não pequena, tornada digna de investigar ao ter-se
libertado do engano e das coisas que encantam as outras, por sua calma
estabilidade16. Que esteja calmo não apenas o corpo que lhe circunjaz e o
fluxo17 do corpo, mas também tudo que a circunda; calma a terra e também o
mar, e o ar, e mesmo o céu que é melhor18; pense-se na alma como que fluindo
do exterior19, de todas as partes para dentro dele, imóvel, e vertendo-se nele, e
de todas as partes adentrando-o e o iluminando: tal como os raios do sol,
iluminando uma nuvem escura, fazem-na brilhar dando-lhe um aspecto ourado,
exatamente assim a alma também, vindo ao corpo do céu, deu-lhe vida e deu-
lhe imortalidade, e despertou o que estava prostrado. E ele, movido com um
movimento perpétuo pela alma, que o conduz sabiamente20, tornou-se um

14
No capítulo anterior, Plotino referia-se à alma hipostática; neste, refere-se às almas
particulares.
15
Platão, Fedro 245 c 9.
16
A grande alma é a alma universal ou alma do mundo; a outra alma é toda e qualquer alma
individual que tenha entendido o caráter enganador do encantamento do universo sensível.
17
Cf. Homero, Odisséia XI, 421; Platão, Timeu 43 b 5; Numênio fr. 33 des Places = Porfírio,
Antro das Ninfas, 34.
18
O céu é superior à terra, à água e ao ar por ser menos material. Henry e Schwyzer propõem
a emenda akémon [imóvel], em vez da lição da maioria dos manuscritos, ameínon [melhor]; a
sugestão dos editores é um tanto esdrúxula, pois se trata de um hápax (o Liddell & Scott
registra apenas essa ocorrência; o Bailly sequer traz o vocábulo). A dificuldade não provém do
simples fato de ser um adjetivo raro, mas sobretudo da redundância. A passagem é retomada
quase que literalmente por Santo Agostinho (Confissões, IX. 10. 25).
19
Cf. Platão, Timeu, 36 e 3.
20
Cf. Platão, Timeu, 36 e 4.
4

vivente feliz21, e o céu obteve dignidade quando a alma o habitou, sendo antes
da alma um corpo morto, terra e água, ou melhor, treva de matéria e não ente,
“aquilo que os deuses odeiam”, como diz alguém22.
Mas se tornariam mais claras e evidentes sua potência e natureza, se
refletirmos, aqui, sobre como ela contém e conduz com suas vontades23 o céu.
Pois a ele, a toda a magnitude que ele é, ela doou a si mesma, e a todo
intervalo, seja ele grande ou pequeno, ela animou, mesmo que cada corpo
ocupe um lugar, que esteja este aqui e aquele ali, e que outros sejam
contrários e outros estejam separados entre si de outro modo. Mas a alma não
é assim, e não é fragmentada que os faz viver, com uma parte sua para cada
coisa, mas todas vivem porque ela está inteira, e está presente toda em todo
lugar, assemelhando-se ao pai que a engendrou tanto por ser algo uno quanto
algo onipresente24. E o céu, embora seja múltiplo e distinto em suas partes, é
uno devido à potência dela, e por ela este cosmo é um deus25. E também é um
deus o sol, porque é animado, e os demais astros e nós também o somos, se
há algo, por esse motivo26; “pois cadáveres são mais repulsivos que fezes”27.
É necessário que a causa de os deuses serem deuses seja uma deusa
mais respeitável28 do que eles. Mas a nossa alma também é da mesma espécie
e, caso a observes sem os advenientes, tomando-a purificada29, descobrirás a
mesma coisa estimável30, que era a alma, e mais estimável do que tudo que
seja corpóreo. Pois “todas as coisas são terra”31. E, mesmo que fossem fogo,
que seria o que queima dele? E quantos sejam os compostos desses, quer

21
Cf. Platão, Timeu, 34 b 8.
22
Homero, Ilíada, XX, 65.
23
Isto é, com os atos resultantes de sua vontade.
24
A alma faz o universo viver sem dividir-se, sendo una e onipresente inteira a todas as partes
do universo; assim, ela é semelhante ao intelecto que a engendrou, que da mesma forma está
presente à alma e, através dela, ao universo; e ambos, enfim, se assemelham ao uno.
25
Cf. Platão, Timeu, 92 c 6-7.
26
Os demais astros e nós também somos deuses, se é verdade que há algo de divino em nós,
porque somos animados.
27
Heráclito, fr. 96.
28
A alma superior.
29
Cf. Platão, República, 611 c 3.
30
Isto é: descobrirás que o que é estimável (tímion) em nossa alma é o mesmo que o que é
estimável na causa da divindade do universo e dos astros: ser alma.
31
Igal, nota ad locum, remete à Metafísica, 989 a 9-10, passagem em que Aristóteles diz que a
maioria das pessoas pensa que a terra seja base da formação de todas as coisas.
5

lhes adiciones água ou ar32. E, se algo será digno de ser perseguido porque é
animado, por que alguém persegue outro e desdenha a si mesmo? Se te
encantas com a alma que há em outro, encanta-te contigo mesmo!
3. Assim, sendo a alma coisa de fato estimável e divina, já confiante em
algo desse tipo para alcançar deus, com tal causa eleva-te até ele: não te
lançarás longe de modo algum; nem há muitos intermediários. Portanto, toma
aquilo da alma que é mais divino que esse divino, o vizinho superior, posterior
ao qual e a partir do qual é a alma33. Pois, embora seja coisa do tipo que
mostrou o discurso, ela é imagem do intelecto: assim como o discurso na
proferição o é do discurso na alma 34, ela mesma também o é do discurso do
intelecto35, a atividade toda e a vida que ele projeta para a subsistência36 de
outro: tal como um é o calor inerente do fogo e outro o que ele fornece37. Porém
não se a deve tomar lá como corrente, mas uma é a que permanece nele e
outra a que subsiste38. Então, provindo do intelecto, é intelectiva39, e o seu
intelecto consiste em raciocínios, e sua perfeição novamente provém dele,
como de um pai que criou um filho que engendrou imperfeito em comparação
consigo40. Portanto, não só sua subsistência lhe provém do intelecto, mas
também sua razão está em ato quando o intelecto é visto por ela. Pois sempre
que ela fita o intelecto, recebe do interior e como íntimas tanto as coisas que

32
Todos os corpos compostos por esses elementos necessitam de um princípio que lhes dê
forma e que, para Plotino, é a alma do universo, que não se confunde com eles.
33
O intelecto, que é mais divino e do que a alma, que já é coisa divina.
34
Plotino repete essa idéia em I. 2 [19] 3. 29; cf. Aristóteles, Segundos Analíticos, A. 10.76b
24-5; Stoicorum Veterum Fragmenta, II, n. 135.
35
“Discurso” traduz imperfeitamente lógos: o lógos proferido é imagem do lógos na alma, assim
como a alma é imagem do lógos no intelecto. É preciso ter em mente que lógos tem vários
significados e, em Plotino, é termo técnico, significando a expressão intelectiva de um princípio,
aquilo que um produtor transmite ao produto, a expressão da perfeição produtiva de um ente.
O tratado III. 8 [30] 1-8 é o escrito plotiniano que mais claramente expõe essa tese: o intelecto
é a expressão da perfeição produtiva do uno, assim como a alma é a expressão da perfeição
produtiva do intelecto, e o universo sensível o é da alma; o lógos coincide, se identifica à
atividade resultante de uma essência. Evidentemente, o discurso ou a expressão uno e do
intelecto nada tem a ver com a articulação de palavras.
36
Hypóstasis.
37
Este é um princípio importante da metafísica plotiniana; segundo ele, todo ente possui duas
atividades, uma inerente que é constitutiva de sua essência, outra derivada dessa e que é
transmitida; cf. V. 4 [7] 2. 27-30.
38
A atividade no intelecto não deve ser concebida como uma atividade que se esvai, que
diminui; ela é uma atividade permanentemente idêntica e estável, constitutiva do próprio
intelecto, ao passo que dessa deriva outra, que adquire subsistência e coincide com a alma.
39
A alma.
40
Também é possível entender esta oração assim: “um pai que criou um filho que foi
engendrado não perfeito como quando estava em si”.
6

intelige quanto as que ativa. E apenas essas devem ser chamadas atividades
da alma, as que são intelectivas e as que vêm de seu íntimo; e as inferiores
provêm de outro e são afecções de tal41 alma.
Portanto, o intelecto a faz ainda mais divina por ser seu pai e por estar
presente; com efeito, nada há entre eles senão o serem distintos, uma porém
como seguinte e como recipiente, outro como forma: a matéria do intelecto
também é bela, uma vez que é intelectiforme e simples. Como é o intelecto,
todavia, é evidente por isso mesmo, porque é superior à alma que é desse tipo.
4. Mas poder-se-ia ver também a partir disto: se alguém admira este
cosmo sensível, olhando para sua grandeza, sua beleza, a ordem de seu
movimento perpétuo, os deuses que nele estão, tanto os visíveis quanto os
inaparentes, e os dáimones, e todos os animais e plantas; que ele, depois de
elevar-se ao que é seu arquétipo e mais verdadeiro, veja que lá todas as coisas
são inteligíveis e que nele são perpétuas, em compreensão42 e vida íntimas, e
ainda que o intelecto incontaminado é o presidente delas, e também a
sabedoria inconcebível, e a vida que é verdadeiramente, sobre Crono, deus
que é saciedade43 e intelecto. Porque contém em si todas as coisas imortais,
todo intelecto, todo deus, toda alma, sempre estáveis. Pois, estando bem, por
que buscaria mudar? Aonde haveria de ir, uma vez que tem todas as coisas em
si mesmo? Mas sequer busca aumentar, dado que é perfeitíssimo. Por isso,
todas as coisas que estão nele são perfeitas, para que ele seja completamente
perfeito, sem ter nada que não seja assim, sem ter nada em si que não intelija;
porém ele não intelige buscando, mas possuindo44. E sua felícia não é
adquirida, mas é todas as coisas na eternidade e é a eternidade realmente, à
qual imita o tempo45 corrente em torno da alma, deixando algumas coisas irem
e aplicando-se a outras46. De fato, na alma as coisas ocorrem umas após as
outras: ora Sócrates, ora cavalo, sempre um único dentre os entes; mas o
intelecto é todos os entes. Tem, portanto, todas as coisas estáveis no mesmo

41
De uma alma inferior.
42
Sýnesis.
43
Kóros: cf. III. 8 [30] 11. 38ss. e nota ad locum; e Platão, Crátilo 396 b 6-7.
44
O intelecto não busca seu objeto de intelecção, como faz a alma, mas o possui em si
mesmo; cf. Aristóteles, Metafísica, Lambda 7. 1072b 23.
45
Cf. Platão, Timeu 37 d 7; Plotino desenvolve a idéia platônica em III. 7 [45].
46
Alusão ao passado e ao futuro.
7

lugar, e apenas é, e o “é” é sempre, não havendo lugar para o futuro – pois
mesmo então é – nem para o passado – pois nada ali passou –, mas todos os
entes estão sempre presentes porque são os mesmos, como que amando a si
mesmos por serem assim. Mas cada um deles é intelecto e ente, e a totalidade
é o intelecto total e o ente total, o intelecto fazendo subsistir o ente em
conformidade com o intelegir, e o ente, por ser inteligido pelo intelecto, dando o
inteligir e o ser. Mas a causa do inteligir é outro, que o é também para o ente:
então, outro é simultaneamente causa de ambos. Pois eles são simultâneos e
coexistem, e não abandonam uns aos outros, mas, sendo dois, esse uno é
intelecto e ente juntos, inteligente e inteligido, o intelecto segundo o inteligir e o
ente segundo o que é inteligido. Porque não haveria o inteligir, se não fossem a
alteridade e a identidade. Portanto, as coisas primeiras são intelecto, o ente,
alteridade, identidade; mas devem-se incluir movimento e repouso47. O
movimento, se intelige, e o repouso, para que seja o mesmo. E a alteridade,
para que seja inteligente e inteligido. Ora, se retirares a alteridade, ao tornar-se
uno, ele se calará; é preciso que as coisas inteligidas sejam outras umas em
relação às outras. E deve-se incluir a identidade, porque é uno consigo mesmo,
e há uma unidade comum a todos: e sua diferença é a alteridade. Essas
coisas, tornando-se múltiplas, produzem o número e a quantidade; e a
individualidade48 de cada uma delas, a partir das quais, como princípios, as
demais provêm.
5. Múltiplo, portanto, é esse deus acima da alma: mas é próprio da alma
estar em contato com essas coisas, se não desejar afastar-se49. A
aproximando-se dele e como que tornando-se algo uno, ela investiga50: então,
quem é que o engendrou51? É o simples, o anterior a tal multiplicidade, o
responsável tanto por que ele seja quanto por que seja múltiplo, o produtor do
número. Pois o número não é o primeiro: com efeito, o uno está anterior à

47
Cf. Platão, Sofista 254 d- 255 a.
48
Idiótes.
49
Cf. Platão, Parmênides 144 b 2.
50
A lição dos manuscritos, zeteî (“busca”, “investiga”), é preferível à emenda de Seidel, zêi aeí
(“vive sempre”); cf. P. Henry, Les États du texte de Plotin, Paris e Bruxelas, Desclée de
Brouwer, 1938, p. 196.
51
Segue-se uma passagem importante sobre o engendramento do intelecto pelo uno, em que
várias teses, desenvolvidas em outros tratados, são apresentadas por Plotino de modo
bastante condensado.
8

díada, e a díada é segunda e, originada do uno, tem a ele como limitante,


sendo ela ilimitada por si mesma; quando se define, já é número: e é número
como essência: e a alma também é número. Pois os primeiros não são massas
nem magnitudes; pois são posteriores essas coisas espessas52, que a
sensação considera entes. E o líquido valioso não é o que está na semente,
mas o invisível: mas isso é número e razão53. O que lá é chamado número e a
díada, portanto, são razões e intelecto; mas a díada é indefinida ao ser
recebida pelo que é como que substrato54, ao passo que cada número que
provém dela e do uno é uma forma, tendo sido o intelecto formatado pela
formas 55 nele geradas; ele é formatado de um modo pelo uno e de modo
diferente por si mesmo, como a visão em atividade: porque a intelecção é uma
visão que está vendo56, e ambas são unas.
6. Então, como e quem ele vê? Como, em suma, veio à existência e
nasceu a partir daquele, para também poder ver? Porque, agora, a alma tem
como necessário que essas coisas são, mas ainda anseia a isto, bastante
repetido pelos antigos sábios: como, a partir de um uno que é tal como
dizemos ser o uno, alguma coisa teve existência57, seja multiplicidade, seja
díada, seja número? Por que aquele não permaneceu em si mesmo, mas
emanou tamanha multiplicidade, que se vê nos entes, embora pensemos que
se deva remontar a ele? Digamos, então, desta maneira, depois de invocar a
deus, não em voz alta, mas com a alma, espichando-nos à uma oração para
ele, desse modo capazes de orar sós para o só58. Pois bem, uma vez que ele59

52
Pakhéa; o adjetivo pakhús significa “grosso”, “espesso”, “pesado”; Plotino quer dizer que
qualquer tipo de massa, tamanho ou espessura são posteriores à alma e às realidades
primeiras, isto é, as inteligíveis.
53
Assim como é a harmonia invisível que produz a visível (I. 6 [1] 3. 28-29).
54
Esta passagem suscita problemas interpretativos. Se levamos em consideração o tratado II.
4 [12] 1-5, a díada é indefinida, mas ela coincide com o substrato, a matéria inteligível. Seria
natural entender a construção significando “ao ser concebida (lambanoméne) como um tipo de
substrato”, mas não é sintaticamente possível.
55
Faço uso, certamente reprovável, de “formatar” para traduzir o verbo morphoûn. Às vezes,
Plotino emprega morphé e eîdos de modo indistinto, porém em muitas passagens eles não são
sinônimos; cf. Collete-Ducic, Plotin et l’ordonnancement de l’être, Paris, J. Vrin, 2007, pp. 38-
39, para uma interessante distinção entre os dois conceitos.
56
Cf. III. 8 [30] 11. 1-2.
57
Hypóstasis.
58
Embora invoque as Musas (III. 7 [45] 11. 6) e um deus que pode ser o intelecto (IV. 9 [8] 4. 6-
7), esta é a passagem mais em que Plotino menciona mais explicitamente uma oração a deus,
neste caso o uno. Esta passagem, contudo, não é suficiente para se sustentar que Plotino
acredita num deus pessoal, a quem se possa orar, idéia que seria contrária à constante
9

é por si mesmo, como no interior de um templo, permanecendo quieto acima


de todas as coisas, o contemplante deve contemplar as estátuas, por assim
dizer, erigidas no exterior, ou melhor, a estátua que primeiro apareceu,
aparecida deste modo: para tudo que se move deve haver algo para o qual se
move; mas como nada há para ele, assumamos que ele não se move, mas, se
algo surge depois dele, é forçoso que tenha surgido porque ele está sempre
voltado para si mesmo 60. Que esteja fora do nosso caminho o nascimento no
tempo, quando fazemos um discurso sobre os entes que são sempre: quando,
no discurso, aplicamos a eles o nascimento, atribuiremos a eles causa e
ordem61. Portanto, aquilo que nasce de lá, deve-se dizer, nasce sem que ele se
mova62; pois, se algo nasce com ele se movendo, aquilo que nasce nasceria
como terceiro a partir dele, depois do movimento, e não segundo63. Logo, se há
um segundo depois dele, é preciso que este tenha vindo a existir estando
aquele imóvel, sem que se incline ou queira, sem que, definitivamente, ele
tenha se movido. Como é, então, e que devemos pensar que há ao redor
daquele, que permanece? É um circum-lampejo a partir dele, a partir dele que
permanece, tal como um lampejo do sol circulando ao redor dele, sendo

afirmação da impessoalidade do uno, que não tem nenhum tipo de preocupação com seus
produtos. Esta oração, creio eu, é um recurso retórico para ilustrar a enorme dificuldade de
responder às questões elaboradas; ademais, é também uma recomendação ao recolhimento, à
interiorização, ao autoconhecimento, ponto de partida para o retorno ao uno; cf. P. A. Meijer,
Plotinus on the Good or the One (Enneads VI, 9). An analytical commentary, Amsterdam,
Gieben, 1992, pp. 324-325. É isso que sugere a célebre expressão “sós para o só” (sobre ela,
cf. I. 6 [1] 7. 9, VI. 9 [9] 11. 51, VI. 7 [38] 34. 7-8, e Meijer, op. cit., pp. 157-162) e as linhas
seguintes.
59
Deus, isto é, o uno; neste trecho, os pronomes “ele” e “aquele” indicam o uno. Sobre a
imagem do deus no interior de um templo, retirada das religiões mistéricas, cf. I. 6 [1] 8. 1-3 e
VI. 9 [9] 11. 17-22.
60
Há uma ambigüidade textual nesta oração: apesar de os manuscritos atestarem a forma
reflexiva hautó, ekeínou poderia ser entendido como referente tanto ao uno quanto ao intelecto;
se se referisse ao intelecto, a leitura melhor seria autó (Plotino freqüentemente emprega autó
como reflexivo, cf. J. H. Sleeman e G. Pollet, Lexicon Plotinianum, Leyde, Brill-Louvain,
University Press, 1980, sub voce). Assim, poderíamos entender: se alguma coisa surge depois
do uno, surge necessariamente porque a) o uno permanece voltado para si mesmo; ou b)
porque o intelecto se volta para o intelecto. Como a passagem enfatiza a imobilidade do uno, a
opção a) parece ser preferível; mas devemos nos lembrar de V. 2 [11] 1. 10 (cf. nota à
tradução), em que Plotino parece provocar propositadamente uma ambigüidade semelhante.
61
Observação importante e repetida insistentemente por Plotino; as realidades inteligíveis, a
alma e mesmo a matéria e o universo sensível enquanto totalidade (isto é, enquanto parte da
realidade, não enquanto este homem ou aquele cão), não têm origem temporal; o discurso a
seu respeito é inevitavelmente imperfeito e reproduz, na medida do possível, as relações
causais e hierárquicas dessas realidades.
62
O intelecto nasce do uno, que permanece imóvel e inalterado.
63
1) uno, 2) movimento do uno, 3) intelecto.
10

sempre engendrado a partir dele, que permanece. E todos os entes, enquanto


permanecem, necessariamente produzem, a partir de sua própria essência, a
partir da potência neles presente que se dirige para seu exterior, uma
realidade64 deles dependente que permanece ao redor deles, sendo como que
uma imagem dos arquétipos de que brotaram: o fogo, ao calor dele oriundo: e a
neve não guarda somente no interior o frio: e as coisas bem cheirosas,
especialmente, dão prova disso: pois, enquanto existirem, algo provirá delas
para o arredor delas, e delas fruirá quem está próximo, enquanto subsistirem. E
todos os entes que são já perfeitos engendram: mas o sempre perfeito
engendra sempre e a algo perpétuo: e engendra algo inferior a si mesmo 65. Por
quê, então, é necessário falar sobre o perfeitíssimo? Nada provém dele senão
as coisas máximas depois dele. O intelecto é o máximo depois dele e o
segundo; com efeito, o intelecto o vê e necessita dele apenas; mas ele em
nada necessita do intelecto; e o que é engendrado a partir do que é superior ao
intelecto há de ser intelecto, e o intelecto é superior a todas as coisas, porque
as demais são posteriores a ele: assim como a alma é expressão66 do intelecto
e uma atividade, este o é daquele. Mas a da alma é uma expressão obscura –
pois é como uma imagem do intelecto –, por isso ela também precisa olhar
para o intelecto: e, do mesmo modo, o intelecto para aquele, para que seja
intelecto. E não o vê separando-se dele, mas porque está depois dele e nada
há entre eles, como nada há entre a alma e o intelecto. Tudo anela àquele que
o engendrou e a ela ama, especialmente quando o que engendrou e o
engendrado estão sozinhos67: mas, quando o que engendrou é o melhor,
necessariamente está junto dele, a ponto de estarem separados apenas por
alteridade.
7. Dizemos que o intelecto é imagem daquele; mas devemos falar mais
claramente: em primeiro lugar, que o nascido deve ser de algo modo aquele,

64
Hypóstasis.
65
Plotino acaba de enunciar dois axiomas de sua metafísica: a) a atividade (aqui, a potência)
de uma essência dá origem a uma outra realidade subsistente, porém dependente de sua
origem – já apresentado antes no tratado, cf. nota 37; b) todo ente, quando plenamente
realizado, dá origem a outro ente, necessariamente inferior a si, de modo que a causa é
sempre superior que o efeito.
66
Lógos: cf. nota 35.
67
Uma variação sobre o tema “sós para o só”; cf. nota 58.
11

conservar muito dele, e ser semelhante a ele, como a luz do sol68. Entretanto,
aquele não é intelecto. Como, então, engendra um intelecto69? Ora, porque em
sua reversão para si pôs-se a ver: e essa visão é o intelecto70. Pois aquilo que
apreende algo outro é sensação ou intelecto; a sensação é uma linha, e assim
por diante71; porém esse tipo de círculo72 pode ser dividido: mas ele73 não é
assim. Sem dúvida, há um uno aqui também, mas o uno é potência de todas as
coisas74. Então, essas coisas, das quais ele é potência, a intelecção as vê
como que separando-se da potência: ou não seria intelecto. Porque já tem, por
si mesmo, um tipo de apercepção75 da potência, de que ela é capaz da

68
Todo efeito deve guardar semelhança com sua causa, neste caso o intelecto e o uno, assim
como a luz do sol é semelhante ao sol.
69
Daqui em diante, sucedem-se um sem número de dificuldades textuais e interpretativas;
discussões mais amplas dessas dificuldades podem ser encontradas em J. Igal, “La genesis de
la inteligencia en un passage de las Enéadas de Plotino (V 1, 7, 4-35), Emerita, 39, 1971, pp.
129-157; M. Atkinson, Ennead V 1: on the Three Principal Hypostases, a Commentary with
Translation, Oxford, Oxford University Press, 1985, ad locos; J. Bussanich, The One and Its
Relation to Intellect in Plotinus. A Commentary on Selected Texts, Leyde, Brill, 1988, pp. 40ss.
70
Este período requer três observações. A primeira diz respeito ao sujeito do verbo heóra (um
imperfeito com valor incoativo, como o entendo): Henry e Schwyzer sugerem que se entenda tò
hèn, o uno, “aquele”, que é o sujeito das orações anteriores; entretanto, a descrição do
nascimento do intelecto a partir de uma visão que o uno tem de si mesmo não tem paralelo nas
Enéadas; além disso, tal autovisão do uno, que é absoluta simplicidade, implicaria que há uma
dualidade necessária para o surgimento do intelecto no âmago do primeiro princípio. Portanto,
parece preferível tomar como sujeito do verbo o intelecto – mudanças bruscas de sujeito não
são raras na prosa de Plotino. A segunda observação, derivada da primeira, relaciona-se ao
pronome reflexivo hautó: se tomarmos o uno como sujeito do verbo, o pronome deve
necessariamente ser reflexivo; se, porém, entendermos que o intelecto é o sujeito, temos então
duas opções: modificar o espírito do pronome (autó), que passaria a ser pessoal, e entender
que o intelecto olha para o uno – opção quase que unanimemente aceita pelos estudiosos
atuais; ou manter o reflexivo é também a ambigüidade: o uno engendra, por superabundância
produtiva, uma realidade informe que, só após retornar sua visão para o uno – mas através de
si mesmo –, passa a ser intelecto; cf. nota 60. A terceira observação é a respeito da palavra
epistrophé, que denota a “ação de voltar-se para”: em Plotino, corresponde ao movimento
contrário ao próodos, “progressão” ou “processão”.
71
Henry e Schwyzer assinalam esta frase como locus nondum sanatus; Igal e Armstrong
consideram o texto são, vendo aí uma alusão à metáfora geométrica que representa o uno
como centro, o intelecto como círculo e a alma e suas faculdades como linha. Pela seqüência
do texto, compreendemos que Plotino esboça uma comparação da intelecção com um círculo:
a percepção sensorial apreende seus objetos singularmente, um após o outro; a apreensão
intelectiva apreende um conteúdo integral imediatamente.
72
Esse círculo pode ser o intelecto, que é uma unidade múltipla, ou a figura do círculo; cf. nota
seguinte.
73
Toûto: o uno (conforme interpretam Henry a Schwyzer), assim como o centro de um círculo,
é indivisível; contudo, o demonstrativo poderia referir-se ao intelecto, marcando a imprecisão
da metáfora: a intelecção é como um círculo, mas esse tipo de círculo (objeto matemático)
pode ser dividido (circunferência, raios, centro, metades), ao passo que esse círculo que é a
intelecção não pode ser realmente dividido.
74
No intelecto também existe uma espécie de unidade (hén), mas o princípio de todas as
coisas, o potência que produz tudo que existe, é o uno (to hén).
75
Synaíthesis.
12

essência76. Ele mesmo, certamente, por si mesmo, define seu próprio ser
através da potência recebida daquele e porque a essência é, por assim dizer,
uma parte una dentre as partes daquele e oriundas daquele, e também é
roborado por aquele e é tornado perfeito como essência por aquele e a partir
daquele77. E vê de lá lhe advêm, como do indivisível para o divisível, o viver e o
inteligir e tudo, porque aquele não é nenhuma dentre todas as coisas78: por
isso, tudo vem daquele, porque ele não era contido por uma forma79: pois ele é
apenas uno: e se fosse todas as coisas, estaria entre os entes. Por isso, ele
não é nenhum dos que estão no intelecto, mas todos vêm dele. Por isto esses
também são essências: porque já estão definidos e cada um tem uma forma,
digamos. O ente não deve pairar, por assim dizer, no indefinido, mas fincado
pelo limite e pela estabilidade; e a estabilidade, por sua vez, para os
inteligíveis, é limitação e forma, pelas quais também recebe sua existência.
Esse intelecto é, “com efeito, dessa estirpe”80, digna do intelecto mais puro que
não é nascido de outro lugar senão da causa primeira e que, uma vez surgido,
imediatamente gerou consigo todos os entes, toda a beleza das idéias e todos
os deuses inteligíveis; estando pleno dos entes que gerou e, por assim dizer,
tendo-os engolido novamente, porque os em si mesmo e porque não tombaram
eles na matéria nem foram criados junto a Réia81 – como os mistérios e os

76
A interpretação que nos parece mais provável desta passagem é que o intelecto possui, a
partir de si mesmo, uma certa consciência da potência produtiva do uno, consciência de o uno
é capaz de engendrar a essência. Mas há outras possibilidades, igualmente prováveis: o
sujeito pode ser o uno, que então teria consciência de sua própria capacidade de engendrar o
intelecto; ou, ainda, seria o intelecto, ainda como matéria inteligível informe, uma visão ainda
indefinida, quem tem consciência da sua própria capacidade de se definir e tornar-se essência.
A oração que segue nos fornece um argumento para preferir a primeira interpretação.
77
Uma das passagens das Enéadas que mais claramente afirma a autodefinição da segunda
realidade, o intelecto. O uno é pura potência produtiva que, por excesso, transborda para além
de si mesmo; seu excesso é o intelecto, que recebe a capacidade de produzir e que, ao voltar-
se para o uno, é incapaz de vê-lo como absoluta unidade; porém, vê o uno como multiplicidade
una e assim se define como sua imagem: não como imagem do que ele é, mas como a
imagem que é capaz de ver.
78
Porque, se o uno fosse alguma coisa, ou mesmo todas as coisas, seria definido e seria
capaz de produzir apenas isso; não sendo nenhuma, é a capacidade de produzir todas elas.
79
Morphé, aqui, aparentemente, sinônimo de eîdos; todas as ocorrências de morphé, neste
capítulo, são traduzidas por “forma”.
80
Ilíada VI. 211, provavelmente citado a partir de Platão (República VIII, 547 a 4-5).
81
Plotino identifica o intelecto a Crono (cf. capítulo 4), que devorou sua prole no momento de
seu nascimento (cf. Hesíodo, Teogonia, 453ss.); a prole do intelecto, interior e idêntica a ele,
são os inteligíveis, as idéias, que não se misturam à matéria. Réia, filha de Urano e Gaia (Céu
e Terra) e esposa de Crono, é associada no Crátilo (402 b 2-4) ao verbo rheîn (fluir, escorrer)
e, portanto, como Plotino sugere aqui, ao devir e ao domínio sensível.
13

mitos a respeito dos deuses enigmam que Crono, o deus mais sábio, antes de
Zeus nascer retém em si novamente aqueles que gera –, por isso, ele é um
intelecto pleno e em saciedade; depois, dizem, quando já saciado, gera Zeus82;
pois o intelecto gera a alma, quando o intelecto é perfeito. Ora, sendo perfeito,
era preciso que gerasse e, sendo potência tamanha, que não fosse desprovido
de prole. Entretanto, não podia ser melhor, nem aqui o gerado é83, mas sim
uma imagem inferior a ele, da mesma maneira indefinida, sendo definida e,
digamos, informada por quem a gerou. E a prole do intelecto é uma razão e
realidade84, é a discursividade85: ela é quem se move ao redor do intelecto, é
luz do intelecto, traço que dele depende, de um lado unida a ele e, por isso,
locupletando-se, regozijando-se, participando dele e inteligindo; de outro, em
contato com os que são posteriores a ela, ou melhor, gerando ela também as
coisas que por necessidade são inferiores à alma: acerca delas devemos falar
depois. Até aqui, foram as coisas divinas.
8. Eis a razão das realidades triplas de Platão, de “que todas as coisas
estão em torno do rei de todas” – eles se refere às primeiras –, “e as segundas
em torno do segundo, e as terceiras em torno do terceiro”86. Ele diz também
que há um “pai da causa”87, chamando causa ao intelecto88; pois, para ele, o
intelecto é o demiurgo: e diz que este cria a alma naquela cratera89. E diz que o
pai do intelecto, que é a causa, é “o bem” ou “o além do intelecto” e “além da

82
Buscando ser coerente na explicação simbológica, dado que Crono corresponde ao intelecto,
seu filho Zeus corresponde à alma; cf. V. 8 [31] 12-13, em que Plotino retoma a mesma
correspondência, incluindo Urano, pai de Crono, que corresponde ao uno; cf. também III. 5 [50]
2, que identifica a alma a Afrodite.
83
O intelecto, prole do uno, não pode ser melhor do ele: nem mesmo aqui, no mundo sensível,
os filhos são superiores aos pais. Armstrong (ad locum) faz uma pergunta perspicaz: “Plotino
se considerava inferior aos seus pais?”.
84
Lógos e hypóstasis.
85
Tò dianooúmenon; a diánoia, pensamento racional e discursivo é a atividade própria da
alma.
86
Citação quase precisa da Carta II 312 e 1-4, atribuída a Platão. Plotino menciona essa
passagem várias vezes, em diferentes tratados, mas apenas aqui e em I. 8 [51] 2. 28-32 ela a
cita com mais cuidado. Entretanto, ocorre algo curioso com o texto: em Platão, há anástrofe da
preposição perí, o que causa o recuo do acento (tà deútera péri, tà tríta péri); mas, no texto das
Enéadas, apesar da anástrofe, não há o recuo do acento, o que inverteria o sentido da fórmula
platônica: dessa forma, deveríamos entender que o segundo rei está em torno das segundas
realidades e o terceiro, das terceiras. Dentre os tradutores, apenas Igal traduz o texto como
está.
87
Platão, Carta VI, 323 d 4.
88
Cf. Platão, Fédon 97 c 1-2.
89
Cf. Platão, Timeu 34 b-35 b, 41 d 4-5.
14

essência”90. E, em muitos lugares, diz que o ente e o intelecto são a idéia;


assim, Platão sabia que o intelecto vem do bem, e a alma, do intelecto91. E
essas doutrinas não são novidade, nem são de agora, mas foram enunciadas
há muito tempo, não explicitamente, e essa doutrinas de agora exegeses
daquelas, com os escritos do próprio Platão atestando que estas opiniões são
antigas. Antes, Parmênides também tocava em uma opinião assim na medida
em que levou à identificação o ente e o intelecto, e não punha o ente entre os
sensíveis, ao dizer: “pois o mesmo é o inteligir e o ser”92. E diz ainda que ele é
“imóvel”93 – embora acrescente a ele o inteligir – retirando de todo movimento
corporal, para que permaneça da mesma maneira, comparando-a à “massa de
uma esfera”94, porque contém todas as coisas abarcadas e porque o inteligir
não é exterior, mas está em si mesmo. Entretanto, ao dizer, em seus escritos,
que era “uno”95, caía em reprovação, porque se descobriu que esse uno é
muitas coisas. Mas o Parmênides de Platão, falando mais acuradamente,
distingue entre si o primeiro uno, que é o uno mais propriamente96, e o segundo
uno, chamando- “uno-muitas coisas”, e o terceiro uno, “uno e muitas coisas”.
Dessa maneira, ele também está de acordo com as três naturezas.
9. Já Anaxágoras, dizendo que o intelecto é puro e não-mesclado, afirma
também ele que o primeiro é simples e que o uno é separado97, mas descuidou
da exatidão por causa de sua antiguidade98. Também Heráclito sabe que o uno
é perpétuo e inteligível: pois os corpos devêm e fluem sempre99. Para

90
Cf. Platão, República 509 b 8-10.
91
Exemplo notável, nas Enéadas, do esforço de Plotino para conciliar vários diálogos de Platão
a fim de conferir o lastro da tradição à sua doutrina das três hipóstases primárias.
92
Parmênides, fr. B 3 Diels-Kranz.
93
Fr. B 8. 26 Diels-Kranz.
94
Fr. B 8. 43 Diels-Kranz.
95
Fr. B 8. 6 Diels-Kranz.
96
Platão, Parmênides 137 c-142 a; para o segundo uno: 144 c 5; e para o terceiro uno: 155 e
5.
97
Cf. Anaxágoras, fr. B 12 Diels-Kranz.
98
Para Plotino, foi Platão quem mais se aproximou da verdade e quem mais claramente a
expressou, apesar de freqüentemente falar “por enigmas”; aos pré-socráticos, mesmo que mais
antigos do que Platão, Plotino não os vê com mais autoridade do que a este, mas, pelo
contrário, considera-os um estágio incipiente da descoberta filosófica, como mostra esta
passagem.
99
Cf. Heráclito, fr. A 1; o uno primeiro de Plotino não é nem perpétuo nem inteligível, mas está
acima tanto da eternidade quanto da intelecção, de modo que deve-se entender que o uno de
Heráclito, mencionado nesta passagem, é o segundo uno, isto é o intelecto.
15

Empédocles, a discórdia divide, mas a amizade é o uno100 – e também ele o vê


como incorpóreo –, e os elementos são como matéria. Aristóteles, mais tarde,
ao dizer que o primeiro é separado101 e inteligível102, mas que intelige a si
mesmo103, o faz novamente não ser o primeiro104; e, fazendo muitos outros
inteligíveis, tantos quantas esfera há no céu, a fim de que cada um mova cada
uma, explica os entes os entes entre os inteligíveis de modo diferente do de
Platão, sustentando algo que é razoável, mas não necessário105. Alguém
poderia objetar até mesmo que seja razoável: pois seria mais razoável se todas
elas, porque contribuem para uma única coordenação, olhassem para um uno,
isto é, o primeiro. E alguém poderia investigar se, para ele, os muitos
inteligíveis são oriundos do uno, o primeiro, ou se há muitos princípios nos
inteligíveis; se provêm de um uno, evidentemente haverá uma analogia com o
modo como são as esferas entre as coisas sensíveis: uma contém a outra, mas
apenas a externa domina; desse modo, também lá o primeiro conteria e
haveria um mundo inteligível106; e assim como as esferas daqui não são ocas,
mas a primeira é onusta de astros e as demais também contêm astros, da
mesma maneira lá também os moventes107 terão em si muitos outros e os mais
verdadeiros estarão lá. Mas, se cada um é um princípio, os princípios serão
segundo o acaso108; e por que estarão juntos e em concordância em uma única
obra, a sinfonia de todo o céu? Como os sensíveis no céu serão iguais em
número aos inteligíveis e moventes? Como, enfim, se são incorpóreos, serão
tantos assim, uma vez que não há uma matéria que os separe? Assim, dentre
os antigos, aqueles que mais se juntavam às doutrinas de Pitágoras, de seus
sucessores e de Ferécides109 se ocuparam dessa natureza, certamente; alguns,

100
Cf. Empédocles, fr. B 17. 7-8 = 26. 5-6 Diels-Kranz.
101
Aristóteles, Sobre a Alma, Gama 5. 430a 17.
102
Metafísica, Lambda 7. 1072a 26.
103
Metafísica, Lambda 7. 1072a 20.
104
Como Platão estabelecera, segundo Plotino, a transcendência do primeiro, Aristóteles
representa um retrocesso na investigação, porque faz o primeiro ser o segundo (intelecto-
inteligível).
105
Cf. Aristóteles, Metafísica, Lambda 8. 1074a 14-17.
106
“Lá” parece denotar a investigação aristotélica, que deveria ter chegado à conclusão de
Plotino.
107
Os princípios ou realidades que causam os movimentos de outros.
108
Syntykhía: “acaso”, “coincidência”; se todos os inteligíveis forem primeiros motores, isto é,
princípios, então será o acaso que determinará seu encontro e o resultado de sua causação.
109
Cf. Ferécides, fr. A 7 Diels-Kranz.
16

contudo, a minuciaram em seus próprios discursos, ao passo que outros não a


expunham em discursos, mas em conversas não escritas ou a negligenciaram
completamente110.
10. Já está demonstrado que se deve pensar que é assim, que existe o
que está além do ente, o uno, tal como o discurso queria demonstrar, tanto
quanto era possível demonstrar algo acerca dessas coisas, e que existe em
seguida o ente e intelecto, e que a natureza da alma é a terceira. Assim como
na natureza estes de que se falou são três, igualmente se deve pensar que
também em nós o são. Não digo nos sensíveis – pois esses estão separados –,
mas nos que estão fora das coisas sensíveis, e “fora” se entende do mesmo
modo que aqueles também estão fora de todo o céu111: assim também o são as
partes do homem, o homem interior, como diz Platão112. Portanto, nossa alma
também é algo divino e de uma natureza diferente, como o é toda a natureza
da alma; e é perfeita a alma que possui intelecto: mas há o intelecto que
raciocina e o que possibilita o raciocinar. Ora, a isso que é raciocinante da
alma, uma vez que não carece de nenhum órgão corporal para seu raciocinar,
mas tem sua própria atividade em pureza para que também possa raciocinar
puramente, se alguém o situa no lugar inteligível, separado e não misturado ao
corpo, não poderia estar errado. Pois não se deve buscar um lugar onde o
estabeleceremos, mas fazê-lo estar fora de todo lugar. Porque é assim o que é
por si mesmo, o que está fora, o imaterial, quando está sozinho, sem nada
reter da natureza do corpo. Por isso, diz113 ainda, ele114 de fora lançou a alma
sobre o universo, indicando isso da alma que permanece no inteligível; e que

110
Para Plotino, Pitágoras e os pitagóricos, entre eles Platão, são os filósofos antigos que se
ocuparam da natureza do primeiro princípio transcendente; alguns expuseram suas doutrinas
em seus escritos (“discurso” traduz lógos, que é primeiramente aquilo que se fala, mas que
está aqui como “escrito”, em contraposição a ágraphois synousíais), outros não as escreveram
(de modo que não podemos saber com certeza o que pensavam), e outros simplesmente não
trataram dessa natureza. Esta passagem é de muito interesse, uma vez que Plotino parece
externar certa necessidade de escrever suas reflexões.
111
As três hipóstases estão dentro de nós também, não dentro dos homens tomados como
realidades sensíveis, dado que as hipóstases são imateriais, mas dentro de nós homens
enquanto seres que não são sensíveis, cujo verdadeiro “eu” é a parte superior da alma (cf. I. 1
[53] 8); nesse sentido, o verdadeiro homem está fora do domínio sensível, assim como se diz
que o uno, o intelecto e a alma estão completamente fora do mundo (ou do céu, por
metonímia).
112
Cf. Platão, República 589 a 7.
113
Platão, Timeu 36 e 3, citado livremente.
114
O demiurgo.
17

disse, cripticamente, que ela está sobre nós, no cume da cabeça115. E sua
exortação não é para nos separarmos 116 através do espaço – pois isso está
separado por natureza –, mas por não termos inclinação, nem ilusões, nem
alheamento na presença do corpo117, se alguém elevar também a forma
restante da alma e junto levar para o alto a parte dela que está estabelecida
aqui, que é o único demiurgo e plasmador do corpo e que dele se ocupa118.
11. Portanto, como há uma alma que raciocina acerca das coisas justas
e belas, e há um raciocínio que investiga se isso é justo e se isso é belo, é
forçoso que exista algo justo estável, a partir do qual se dá o raciocínio na
alma. Se não, como poderia raciocinar? E se a alma ora raciocina acerca
dessas coisas, ora não, é preciso que haja em nós um intelecto que não seja
raciocinante, mas que possua sempre o justo, e que haja também o princípio e
causa do intelecto, deus – este não está dividido, mas ele permanece, porém
não permanece num lugar –, e que ele, por sua vez, seja contemplado em
muitas coisas, segundo cada um dos que são capazes de recebê-lo como um
outro eu119, assim como o centro está em si mesmo, mas cada um dos pontos
no círculo também está nele e as linhas levam para ele individualmente. Por tal
motivo, com efeito, também nós estamos em contato com as realidades que
estão em nós, e estamos com elas e delas dependemos120; e lá nos
estabelecemos, os que convirjamos para lá.

115
Cf. Timeu 95 a 5; Platão diz que a alma está “no cume do corpo”, isto é, na cabeça. Plotino
não acredita que a alma, sendo imaterial, se situe em alguma parte específica do corpo e, por
isso, também não acredita que Platão, quando afirma que a alma está na cabeça, seja explícito
e preciso; portanto, para Plotino, o sentido de tal afirmação é velado e não pode ser tomado
literalmente: cf. a nota de Armstrong (ad locum) e IV. 3 [27] 23, especialmente as linhas 24-26.
116
A exortação de Platão é para que nos separemos do corpo, mas não espacialmente, uma
vez que o que é corporal está naturalmente separado no espaço; cf. Platão, Fédon 67 c-d.
117
Na presença do corpo, que inexplicavelmente a atrai, a alma, que é nosso verdadeiro “eu”,
não deve inclinar-se para ele nem se deixar levar pela ilusão ou aparência (phantasía, aqui),
para não tornar-se outra em relação a si mesma.
118
A parte inferior da alma é a parte responsável pela criação e organização do sensível, ao
passo que a parte superior não tem nenhum contato com este; a ascensão, dessa forma, se dá
primeiramente pela unificação da alma.
119
Állon autón: os seres capazes de receber o uno o recebem como se ele fosse um outro eu
ou, ainda, como um outro ele esmo, isto é, recebem-no como diferente do que ele é em si
mesmo. É impossível não pensar na definição aristotélica para amigo (Ética Nicomaquéia,
1166a 31; cf. Armstrong em Igal ad locum).
120
Nesta passagem, todos os tradutores costumam seguir Ficino, entendendo que tôi toioútoi
refere-se a deus: “pois, com algo desse tipo (deus), dentre as coisas (hipóstases, capacidades)
que há em nós, também nós estamos em contato com deus, estamos juntos com ele e
dependemos dele”. Essa interpretação, contudo, não parece satisfatória porque ignora a
comparação entre o uno e um centro, e porque deixa kaì hemeîs (“também nós”) sem sentido
18

12. Como, então, se possuímos coisas tão grandiosas, não as


percebemos, mas no mais das vezes temos desativadas tais atividades, e
alguns não as ativam de modo algum? Sem dúvida, elas estão sempre em
suas próprias atividades, o intelecto e o que é anterior ao intelecto estão
sempre em si mesmos, e a alma – o sempremóvel121 – está assim. Porque nem
que tudo que há na alma é-nos imediatamente sensível, mas chega até nós
sempre que chega à sensação122: quando algo em atividade não a transmite
para o que é percebido, ainda não atravessou toda a alma. Logo, ainda não as
conhecemos, porque estamos acompanhados da capacidade sensível e não
somos uma parte da alma, mas a alma inteira. Ademais, cada uma das
atividades anímicas, uma vez que vivem, tem sempre ativa por si mesma sua
própria atividade; porém o notá-las dá-se quando ocorre a transmissão e a
percepção. Conseqüentemente, se há de haver percepção das atividades
assim presentes, é preciso voltar a capacidade de receber para o interior e
fazê-la deter sua atenção ali. Assim como alguém, se espera ouvir a voz que
deseja, se afasta das demais vozes e desperta a audição para a voz que é
melhor dentre as audíveis, quando isso se aproxima, da mesma maneira aqui
também é preciso, deixando de lado as audições sensíveis (a menos que seja
necessário ouvir), guardar o poder de perceber da alma puro e pronto para
ouvir os sons que vêm do alto.

(deus está em nós e, por meio dele, nós também estamos em contato com ele?). Entendo tôi
toioútoi como “por tal razão”, “por isso” (cf. Liddell & Scott, sub voce): assim como todos os
pontos de um círculo estão em contato com o centro, e os raios de uma circunferência partem
(ou levam) e dependem do centro, por um motivo desse tipo (uma analogia geométrica)
também nós estamos em contato com (epháptesthai explica o genitivo ton) as três hipóstases
que estão em nós, e elas nos estão sempre presentes porque nossa existência depende delas
sob todos os aspectos.
121
Platão, Fedro 245 c 5.
122
Nem todas as atividades da alma são imediatamente percebidas pela nossa consciência,
mas nós as percebemos quando elas resultam em algo sensorialmente perceptível, como o
tempo, por exemplo, que é resultado do movimento da alma, mas é mais bem percebido
através da sucessão das coisas sensíveis; cf. IV. 8 [6] 8. 7-9.

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