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ESTÉTICA I – 2024/01
AULA 2

1. Plotino, Enéadas, IV-8.1 (trad. MAV):


Muitas vezes, despertando do corpo para mim mesmo, indo para fora das outras
coisas e para dentro de mim mesmo, vendo uma beleza espantosamente grande e crendo
então tomar parte no melhor destino [moíras], exercendo a vida excelente [zoén arísten]
e, no divino, indo até ele e nele me assentando, tendo chegado à sua atividade e me
assentado acima de todo outro pensável [noetòn], e, depois desse pouso no divino,
descendo do espírito à razão [eis logismòn ek noũ katabàs], fico perplexo [aporô]: como
enfim agora desço [katabaíno] e como afinal a alma veio-me a entrar no corpo, sendo
tal qual se revelou em si mesma, embora esteja em um corpo?
Heráclito, que nos exorta a investigar exatamente isso, propondo a “necessária
alternância dos contrários” e falando do “caminho para cima e para baixo”, do que
“mudando repousa” e que “é penoso trabalhar e ser governado pelos mesmos”, deu
essas indicações, sem cuidar de tornar claro o seu sentido para nós, como se fosse
preciso buscá-lo por si mesmo, assim como ele mesmo o descobriu buscando.
E Empédocles, tendo afirmado que é lei para as almas que erraram cair aqui e
que chegou “fugindo dos deuses”, “tendo confiado no ódio louco”, transmitiu, penso,
tanto quanto Pitágoras e seus seguidores, que falaram enigmaticamente acerca disso
bem como de muitas outras coisas.
Resta-nos justamente o divino Platão, que, entre muitas e belas coisas sobre a
alma, falou da sua chegada em diversas partes dos seus discursos, dando-nos esperança
de, com ele, entender algo claramente. O que, então, diz este filósofo?
É manifesto que ele não diz o mesmo em todos os lugares, de modo que se possa
saber facilmente a intenção do homem, mas, subestimando de todas as maneiras o todo
sensível e reprovando a comunhão da alma com o corpo, diz que a alma se acha “atada”,
estando nele sepultada, e que “o que é dito nos mistérios é um discurso grandioso”, o de
que a alma está “em cárcere”. E a sua “caverna”, como o “antro” de Empédocles, deve
ser entendida, parece-me, como referindo-se a este todo; e a “libertação dos grilhões” e
a “subida” a partir da caverna ele diz ser a passagem “rumo ao espiritual”. E, no Fedro,
que a perda das asas é a causa da chegada da alma aqui, e que “períodos” trazem a alma
que ascendeu de volta para cá, e que julgamentos enviam outras para cá, e sortes, e
acasos e necessidades.
Reprovando a alma, em todas essas passagens, por sua chegada ao corpo, no
Timeu, ao falar deste todo, ele louva o cosmos, dizendo que é um “deus abençoado”
[theòn eudaímona] e que a alma fora destinada pelo “bom demiurgo” a tornar este todo
“dotado de espírito” [énnoun], pois era preciso que tivesse espírito – e isso não poderia
acontecer sem alma. A alma do todo, então, foi enviada pelo deus com esse propósito, e
a alma de cada um de nós, para que o todo fosse perfeito, pois era preciso que, tal como
no cosmos espiritual, esses mesmos gêneros de viventes também existissem no cosmos
sensível.
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2. Juliano, Hino ao Rei Hélios (trad. MAV, a partir das versões de Wilmer C.
Wright e Christian Lacombrade):
[1] O que vou dizer agora considero da maior importância para todas as coisas
“que respiram e se movem sobre a terra” [Ilíada XVII, 447] e participam da existência
[eînai] e da alma racional [logikês psykhês] e do espírito [voû], mas não é de não menos
importância para mim. Pois sou um seguidor do Rei Hélios. E desse fato possuo dentro
de mim, conhecido apenas por mim mesmo, provas mais certas do que posso dar. Mas
pelo menos isto me é permitido dizer sem sacrilégio: que, desde a minha infância, uma
paixão extraordinária pelos raios do deus invadiu profundamente a minha alma; e que,
desde meus primeiros anos, o meu pensamento [diánoian] foi tão completamente
extasiado [existámen] por sua luz etérea que eu desejava não apenas olhar atentamente
para ele, mas também, quando caminhava à noite sem nuvens, clara e serena, me
afastava de tudo, sem exceção, e me entregava às belezas celestes [ouraníois kállesin],
sem entender o que se me dizia nem prestar atenção ao que eu mesmo fazia. Aparentava
ser muito curioso por essas coisas e me dedicava demais a elas, a ponto de me tomarem
por adivinho dos astros [astrómantin] quando eu ainda nem tinha barba. E, contudo, os
deuses bem o sabem, nunca um livro sobre esse assunto havia chegado às minhas mãos
nem tinha eu conhecimento a tal respeito. Mas por que o digo, quando tenho coisas mais
importantes para falar, pois devo contar como então pensava nos deuses? Que essas
trevas [skótous] caiam de vez no esquecimento! E que o dito indique o fato de que a luz
celeste me envolvia completamente, me despertava e me incitava à sua contemplação
[théan], de modo que eu já compreendia por mim mesmo que o movimento da Lua era
oposto ao movimento do todo [pân], embora até então não tivesse conhecido nenhum
dos que são sábios nesses assuntos. [...]
[7] A luz é a forma [eîdos] desse tipo de matéria difusa [o “diáfano”] que se
insinua nos corpos. Sendo ela mesma incorpórea, os raios [solares] são como o seu
ápice e a sua flor. Segundo a opinião [dóxa] dos Fenícios, sábios [sophôn] e
conhecedores [epistemónon] das coisas divinas, a luz solar [augèn], difundindo-se por
todas as partes, é a energia [enérgeian] imaculada do espírito puro. Não discorda dessa
opinião o discurso [lógos] segundo o qual, sendo a luz incorpórea, a sua fonte não é um
corpo mas a energia imaculada do espírito que incide sobre a sua morada, disposta no
meio de todo o céu, de onde ela se irradia pelas esferas celestes, preenchendo-as e
iluminando todas as coisas com luz divina e imaculada. [...]
[8] Tudo o que percebemos primeiramente com a visão é apenas palavra sem
efeito, se não lhe acrescentarmos o auxílio supremo da luz. Pois o que, em geral, seria
visível, se não fosse antes colocado sob a luz para que então pudesse receber uma
forma, tal como a matéria é colocada sob a mão de um artesão [tékhnítei]? O ouro
fundido é simplesmente ouro, e ainda não uma estátua [ágalma] ou imagem [eîkon], até
que o artesão o revista com uma figura [morphèn]. [...]
[9] Mas isso talvez seja demasiado sutil: quanto ao que todos nós
acompanhamos, sejamos ignorantes e incultos ou filósofos e retóricos, qual poder no
todo tem o deus quando ele se levanta e se põe? Noite e dia ele produz, e diante dos
nossos olhos transporta e revolve o todo. Há algum dos outros astros ao qual pertence
esse poder? [...]
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3. Homero, Ilíada XVII, 426-455 (trad. Frederico Lourenço):


Ora os cavalos de Aquiles, afastados do combate, estavam
chorando desde o momento em que primeiro ouviram
que seu cocheiro tombara na poeira, chacinado por Heitor.
Com efeito Automedonte, o valoroso filho de Diores,
muitos golpes lhes infligiu com o célere chicote,
muitas vezes lhes falou com palavras suaves, muitas vezes
com ameaças; mas eles recusavam-se tanto a regressar para as naus
no amplo Helesponto como para a luta no meio dos Aqueus.
Tal como fica imóvel uma coluna sobre o túmulo
de um homem morto ou de uma mulher –
assim imóveis permaneciam com o carro lindíssimo,
vergando as cabeças até ao chão. Das suas pálpebras
escorriam lágrimas candentes até o chão ao chorarem
com saudades do seu cocheiro. Sujavam-se suas crinas fartas,
que caíam debaixo da coleira de ambos os lados do jugo.
Ao vê-los se compadeceu deles o Crônida
e abanando a cabeça assim disse ao seu coração:
“Ah, coitados, por que razão vos demos ao soberano Peleu,
um homem mortal? E vós que sois isentos de velhice e imortais.
Foi para que entre os homens desgraçados sentísseis a dor?
Pois na verdade nada há de mais miserável que o homem
de todos os seres que vivem e rastejam em cima da terra.
Mas em vós e no vosso carro maravilhosamente trabalhado
não montará Heitor Priâmida. Não o permitirei.
Não é suficiente que tenha as armas e com elas em vão se ufane?
Nos vossos joelhos e no espírito lançarei a força,
para que também a Automedonte salveis da batalha
em direção às côncavas naus. Aos Troianos darei ainda a glória
de chacinarem até que cheguem às naus bem construídas
e se ponha o sol, na altura em que sobrevier a escuridão sagrada.”

4. Gasquet, Conversas com Cézanne (trad. Julia Vidile), pp. 192-209:


Eles tinham uma tal vitalidade que, em todas as árvores mortas, faziam a seiva
circular novamente, a seiva deles, sua vida prodigiosa... Eles não tinham outra verdade.
Era sua natureza, esses corpos de deuses e deusas. São verdadeiros pagãos. Há, nessa
renascença, uma explosão de veracidade única, um amor pela pintura e pelas formas que
nunca mais encontramos... Sim, quero saber. Saber para melhor sentir, sentir para
melhor saber. Por isso, quero ser um verdadeiro clássico, voltar a ser clássico pela
natureza, pela sensação. No fundo, não penso em nada quando pinto. Vejo cores.
Desvelo-me, regozijo-me em transportá-las tais quais as vejo em minha tela. Elas se
organizam ao acaso, como querem. Às vezes, cria-se um quadro. Eu sou um selvagem.
Seria bom se eu pudesse ser um selvagem. Este velho caminho é uma estrada romana.
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Essas estradas dos romanos são sempre admiravelmente situadas. Siga uma delas. Eles
tinham um senso da paisagem; de todos os seus pontos, ela dá um quadro. Nossos
engenheiros estão pouco se importando com a paisagem. A natureza fala a todos. Escute
só, o literato como o senhor exprime-se com abstrações, ao passo que o pintor
concretiza, por meio do desenho e da cor, suas sensações, suas percepções. Existe uma
lógica colorida, ora essa. O pintor só deve obediência a ela. Jamais à lógica do cérebro;
se ele se abandona a esta última, está perdido. Sempre à dos olhos. Se ele sente justo,
pensará justo, oras. A pintura é uma óptica, para começar. A matéria de nossa arte está
aí, naquilo que pensam nossos olhos... A cor é viva, só ela torna as coisas vivas. Os
camponeses sentem espontaneamente, diante de um amarelo, o gesto de ceifa que
devem iniciar, como eu deveria, por minha vez, diante da mesma nuance amadurecida,
saber por instinto aplicar em minha tela o tom correspondente e que faria ondular um
trigal. De toque em toque, assim, a terra reviveria. À força de lavrar meu campo, uma
bela paisagem brotaria... Sim, quanto aos progressos a realizar, há apenas a natureza, e o
olho se educa ao seu contato. Ele se torna concêntrico à força de olhar e trabalhar. Ora, a
natureza para nós-homens é mais em profundidade que em superfície, donde a
necessidade de introduzir em nossas vibrações de luz, representadas pelos vermelhos e
amarelos, uma soma suficiente de azulados, para fazer sentir o ar. Eu, como lhe dizia
esta manhã, necessito conhecer a geologia, como a Sainte-Victoire se enraíza, a cor
geológica das terras, tudo isso me comove, me torna melhor. Quando não pintamos
molemente, escute bem, mas de maneira calma e contínua, isso não pode deixar de
trazer um estado de clarividência, utilíssimo para nos dirigir com firmeza na vida. Tudo
se sustenta. Compreenda-me, se minha tela está saturada com essa vaga religiosidade
cósmica, que me comove, a mim, que me torna melhor, ela irá talvez tocar os outros em
um ponto de sua sensibilidade que ignoram. Sim, sim, a sensação está na base de tudo.
Eu quero me perder na natureza, brotar junto com ela, como ela, ter os tons teimosos
das rochas, a obstinação racional do monte, a fluidez do ar, o calor do sol. Em um verde,
meu cérebro inteiro fluirá com a corrente seivosa da árvore. Há diante de nós um grande
ser de luz e de amor, o universo vacilante, a hesitação das coisas. Serei seu Olimpo,
serei seu deus. O ideal no céu se conciliará em mim. As cores, escute só, são a carne
manifesta das ideias e de Deus. A transparência do mistério, a irisação das leis. Só
acreditamos de fato no que vemos. A divindade inacessível, invisível, o sol!... O senhor
viu, em Veneza, o gigantesco Tintoretto, no qual a terra e o mar, o globo terrestre
suspendem-se acima das cabeças, com o horizonte que se desloca, a profundidade, os
longínquos marinheiros, e os corpos que levantam voo, a imensa redondez, o
mapa-múndi, o planeta lançado, caindo, rolando em pleno éter? Em sua época! Ele nos
profetizava. Já trazia essa obsessão cósmica que nos devora. Sou um cerebral, como
queira, mas também sou um selvagem. Gostaria de ser burro feito uma porta. Meu
método, meu código, é o realismo. Mas um realismo, entenda bem, cheio de grandeza,
sem dúvida. O heroísmo do real. Não sou romântico. A imensidão, a torrente do mundo
em uma pequena polegada de matéria. O senhor acredita que é impossível? Não é mais
de nosso tempo, isso tudo. A tarde do mundo cai. A pintura, com todo o resto, se vai...
Ficaria feliz se esquecerem de mim e me deixarem morrer no meu canto enquanto
trabalho.

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