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“A DURAÇÃO DO DIA” (2010) – ADÉLIA

PRADO.

Adélia Prado (Foto Divulgação)

“Sem avisos se mostra / a duração perfeita, / forma que de si mesma se


acrescenta / e na mesma medida permanece.” (O vivente, p. 81).

“A duração do dia” (2010) é o mais recente livro de versos de Adélia Prado. Uma
boa surpresa! Pelo título somos imediatamente levados a crer que, como nas
obras anteriores, aí também se privilegiará a temática do cotidiano. E é o que
acontece. Ao lado disso vem com acentuada força o seu outro bordão predileto,
de teor religioso: a experiência de Deus. Esta, em “A duração do dia”, parece
dramaticamente intensificar-se. É curioso o sofrível latente, na gozosa relação
entre Deus e sua criatura (amada). O livro é dividido em grupos de poemas que
se separam por citações em sua maioria bíblicas. Tais blocos não possuem
títulos como nos livros anteriores. É uno o dia, transcorre ininterrupto. Letras
santas ou falas norteiam-no, sutilmente, sem qualquer ruptura ou ideia de
capitulação.
O poema de abertura já nos coloca diante de um “eu” que se esconde “no porão /
para melhor aproveitar o dia”, “pra rezar, / agradecer a Deus este conforto
gigante.” (Tão bom aqui, p. 9). O enfoque recai sobre o mínimo: “Eu só quero
saber do microcosmo, / o de tanta realidade que nem há. / Na partícula visível
de poeira / em onda invisível dança a luz.” (idem). Este paralelo “visível -
invisível” atravessará “A duração do dia”, é um problema de fundo e moção na
obra. Não se busca no entanto uma solução, frui-se o problema. Nisto, de fato,
vemos que, se a predileção recai sobre o pequeno (mínimo), este é
paradoxalmente potência motora do “dia” e tem matiz evangélico: “minha
fortaleza é a da mostarda. / Um grão.” (O noviço e a abstinência de preceito, p.
44).
No primeiro momento desta obra, “As matemáticas suplantam as teologias /
com enorme lucro para minha fé.” (Uma janela e sua serventia, p. 10). Ou,
“Como oráculos bíblicos, / os paradoxos da física me confortam.” (Pensamentos
à janela, p. 19). Visão romanesca da ciência quântica. Alternam-se luzes e
lágrimas, reminiscências nostálgicas ou muito boas da explicitada mulher, a
sombra de Deus aterradora e aprazível, as contradições do amor. Este livro não
se exime de trazer-nos sobejados ecos de outros tantos da autora, diga-se de
passagem. Tudo, porém, revestido de uma “coisa” nova (original), certo
entretom em sua voz poética, algo sutilizado na maioria dos versos, mas bem
perceptível ao leitor iniciado de Adélia Prado. Pode causar algum
estranhamento, isso, mas é bom.
“Deus há! E pode que haja o diabo, / o que não tem é morte.” (Como um parente
meu, um Riobaldo, p. 17). A presença da morte, pela sua aproximação ou
memória dos que já se foram (ancestrais revivem), é reincidente no conjunto
desta obra, mas nem de longe tem aí seu triunfo. Exceto em fala irônica (cf. Rua
do Comércio, p. 48) ou de tentação (cf. Anjo mau, p. 71). A morte é “a que não
existe.” (Epigráfico, p. 33). Ou, “Só morrem os muito velhinhos / que pedem pra
descansar.” (Aqui, tão longe, p. 21). Ela é uma insistente sombra no “dia”, sem
dúvida, mas tanto como o tempo é relativizada: “não se tem certeza de que
vamos morrer, / (...) / São os relógios / o mais obsoleto dos inventos.” (Dádivas,
p. 42). Todo o mais é cotidiano poetizado, metamorfoseado pelo maravilhoso de
uma “memória dourada” que traz “mentira meio existida, / verdade meio
inventada.” (Aqui, tão longe, p. 21). Não importa se faz noite neste “dia” de
Adélia Prado: “Estrelas na escuridão são ícones potentes.” (Pensamentos à
janela, p. 19). Importa “que amanhã seja outro dia, / igual a este dia, igual, /
igual a este dia, igual.” (Aqui, tão longe, p. 22).
No livro aparece ainda o drama em palavras da palavra que não (?) acontece.
Em face da luz eterna “Quis dizê-la e não pude, / ingurgitada de palavras /
minha língua se confundia. / (...) / Aquiesci gozosa, / a língua muda, / a folha
branca, / a mão pousada” [o poema “termina” sem ponto final] (Divinópolis, p.
13-14). Esse drama é a luta da “escrivã” (poeta) pelo sentido mais profundo das
coisas. “A beleza transfixa, / as palavras cansam porque não alcançam, / e
preciso de muitas pra dizer uma só.” (A escrivã na cozinha, p. 25). Sabe-se desde
sempre que “as palavras são dúbias” (O clérigo, p. 50). Luta-se com elas, como
Jacó lutou com Deus (se me permitem essa imagem bíblica). Diz-se: “Perdi a
conta das vezes / que retomei esta escritura / sem avançar de sítios
pantanosos, / (...) / Foi ontem e já tem cem anos, / faz um minuto só, / foi agora
e foi nunca, / jamais aconteceu, / não há, não houve,” porque, para além de
brincar com a atemporalidade das melhores letras, no “dia” de Adélia Prado “o
que não tem palavras não existe.” (Nem parece amor, p. 92). Note-se ainda o
problema da palavra, complexificado, em “(...) língua / para todas as línguas
traduzível / sem prejuízo” (cf. Querido louco, p. 93).
Se nos deparamos com certa insuficiência das línguas ante o inefável, é natural
que até as matemáticas do primeiro momento não mais possam dar conta do
milagre em evolução: “Neurônios não explicam nada.” (A escrivã na cozinha, p.
25). E o que dizer de versos como estes: “Como o cão, minha língua ladrava / à
aterradora beleza.” (Constelação, p. 87)? O drama da palavra, em face do
indizível, é vivido em modulações de gozosa agonia, como todo o mais deste
“dia”. Tal ira aplaca-se, no entanto: “E só Vos dei palavras, ó Deus santo. /
Quando achei que exigíeis / cabeças sanguinolentas, / um punhado de versos
aplacou-nos.” (O penitente, p. 65). A conclusão não poderia ser outra: “Toda
compreensão é poesia, / clarão inaugural que névoa densa / faz parecer velados
diamantes.” (Esplendores, p. 88). Sobrevive-se.
O sofrimento é também lugar comum no “dia” duradouro deste livro: “Avia-te
para sofrer – conselho pra distraídos –, / cristãos já sabem ao nascer / que este
vale é de lágrimas.” (A escrivã na cozinha, p. 26). Esta agonia – sempre gozosa –
de ser ou existir no mundo é, inclusive, partilhada por solidário Deus. O
sofrimento não parece ser anômalo ao “dia” adeliano, é parte de seu mistério.
Como o medo: “Ter medo é saber do inaudito, / ninguém até hoje explica / por
que batem as pálpebras.” (Epigráfico, p. 33). Em todo o contraste vivido na
obra, confessa-se sem pejo: “estou feliz e dói.” (Olhos, p. 29). Dói, mas nunca
em sentido totalmente negativo. Dói dor saudável e previsível, como a dor de
um parto.
É, pois, a consciência ou suspeição de um “plus” divino, o que dinamiza esta
obra, movimentando personagens e demais coisas. Isso transubstancia toda a
realidade habitual, deifica o mundo das rotinas e chega, com similar
naturalidade ou estático espanto, aos sacrários e às cozinhas da existência
humana. Igual.
O mundo com todos os seus desvãos é a passarela basilar das múltiplas formas
de “cotidianização” deste “eu” lírico, na obra de Adélia Prado. Inclusive o divino
é “cotidianizado”. Assim, Deus muitas vezes é feito à imagem e semelhança do
homem, ou talvez devamos admitir que o humano é mesmo divino e feito de
Deus. As duas leituras são possíveis na obra, não há aí qualquer
incompatibilidade. Não obstante alguma coisa, este mundo/tudo (em seu viés
original) é assentido: “que bom estar no mundo / a esta hora do dia! / De
maneira perfeita tudo é bom” (Dádivas, p. 42).
No “dia” põe-se então holofotes sobre o que já está aí. Nada de grande se
inventa, maravilha-se do que há. É a trama das coisas que se enfoca, quase
sempre a partir da ótica da mulher, seja a perspectiva feminina ou virilizada.
Esse mundo é, portanto, palco da ação de Deus (às vezes “deus”), que se
apresenta ora amoroso, terno, ora terrível em seu poder e rigor antigos. Aqui a
experiência de Deus é a experiência do sentido radical da existência/vida, sem
qualquer divórcio entre sagrado e profano. Se o Deus da obra é onipotente em
suas epifanias, cuja glória até chega a doer, ele também é um Deus carente: “É
Ele, Deus, quem me dói pedindo amor / como se fora eu Sua mãe e O
rejeitasse.” (Consanguíneos, p. 99). Há aí sobejante cumplicidade: “Jungidos
como estamos em formidável parelha, / enquanto Ele não dorme eu não
descanso.” (idem).
O corpo tem neste livro a mesma visibilidade nunca preterida na vasta obra
adeliana: “Este é meu corpo, / corpo que me foi dado / para Deus saciar sua
natureza onívora. / Tomai e comei sem medo, / na fímbria do amor mais tosco /
meu pobre corpo / é feito corpo de Deus.” (A necessidade do corpo, p. 28). Dir-
se-ia, em jargão tomista, que este corpo é transubstanciado, torna-se corpo de
Deus, hóstia viva (não por acaso aí também figuram as palavras evangélicas da
ceia eucarística, ditas em cada missa: “tomai e comei”). O corpo é sacralizado
pela presença/ação de Deus. A carne (visível) dá sentido ao mais sagrado
(invisível), e o que não alcança isso é vão: “Contra o que se sente / toda filosofia
é mesmo vã, / o livro é sagrado / quando o que apregoa / é revelado na carne”
(Epigráfico, p. 33). A carne não é prescindida pelo esplendor epifânico. O ápice
deste é, mais que tudo, encarnação!
“A duração do dia” sugere ainda reclusão: fala-se a partir do porão, de dentro da
casa, de dentro de si, de trás das vidraças, das não poucas janelas etc. Porém
nunca se insinua aprisionamento, tudo se reveste de serenidade e até
resignações heróicas. Quando há sentimento diverso, este participa do que
chamei de “agônico gozoso”. É o bom multifacetado nas contradições de um
mesmo “dia”.
A condição humana é exposta de modo desconcertante em toda a obra de Adélia
Prado. A grande extensão do mistério humano se mostra em dramático teor
psicológico igualmente profundo aqui. Bastam estes versos para ilustrar o que
se diz: “Quem me dera os lobos fossem fora de mim, / bastava um pau e os
afugentaria. / Mas seus fantasmas é que uivam inalcançáveis.” (Alcateia, p. 73).
Dentro. E fundo.
Alvíssaras chegam na hora boa. Neste livro como em outros da autora, a
misericórdia se mostrará intacta e a salvação vaza para todos os lados, ainda que
custe a suspensão do “dia” no sono do Cordeiro/pastor e esquecimento dos
pecados: “A salvação, mais que viável, / é certa para santos e réprobos.” (A
suspensão do dia, 78).
Pode não agradar a todos (o que é normal), mas este é um livro maduro, bom,
de quem está muito segura do que faz e sabe o que quer. Alguns de seus poemas
erigem-se tão acima da média, que podem figurar em qualquer antologia. Adélia
escreveu a poesia dela (nossa), como ela mesma (a poesia) pediu para ser
escrita. Sem artifícios. Sem enfeites. Só poesia. Nuinha. Três versos do mesmo
livro, aplicados aqui a nosso propósito, serviriam para sintetizar em clímax “A
duração do dia”: “a lâmpada de repente partindo-se / com estrondo e
multiplicado clarão, / tudo sequencial, tudo no mesmo dia!” (Credo, p. 31).
Dancemos com essa luz. Amém.

(Bibliografia das citações: PRADO, Adélia. “A duração do dia”. Rio de Janeiro:


Record, 2010.)

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