Você está na página 1de 4

A Alegria em Santa Teresa do Menino Jesus

Aos 21 de janeiro de 1897, memória litúrgica da mártir Santa Inês, Irmã Teresa
do Menino Jesus entregou para Madre Inês de Jesus, em comemoração ao seu dia
onomástico, um poema autobiográfico no qual confidencia em veladas imagens
metafóricas o diagnóstico estado de sua alma. “Toda minha alma está aí”, diz com
simplicidade ao confiar o autógrafo da poesia Minha Alegria, escrito dotado de
paradoxos comoventes, originados de uma amadurecida sabedoria espiritual.
O contexto desta joia da literatura espiritual teve precedentes na mais profunda
noite do espírito, na qual se evidenciam também pungentes sofrimentos físicos, que em
pouco tempo lhe custou a vida. Entretanto, podem-se constatar indícios de tormentos de
perspectivas muito mais angustiosas, inerentes às terríveis ocasiões de provação da fé.
A intensidade interior do escrito segue um movimento ascendente que culmina
em expressões comoventes, que para Teresa não se restringia a uma criação poética
ingênua ou pueril. Sua poesia é invasiva, decodificando na concisão exata dos termos as
experiências internas que a distinguiam, fazendo emergir o fundo dos conflitos,
fragmentações e dores ultrapassados e transformados em resoluções.
Ela se revela no cerne dos conflitos mais atrozes, nos rudes combates da
natureza provada nas purificações passivas descritas por São João da Cruz. Mas ao
indicar a intensidade de seus combates tornou evidente que a serenidade não é
passividade; o domínio de si, a tranquilidade, não significa estado de ausência absoluta
de zonas de conflito. Ao contrário, a profusão intermitente dos mesmos conflitos,
propõe à alma que o absoluto domínio das forças passionais só pode ser possível se as
compreendermos e nos reconciliarmos com elas: “A minha alegria é amar o sofrimento,
sorrio derramando lágrimas. Aceito com reconhecimento os espinhos unidos às flores”1.
Não se trata de se livrar do que custa e de um controle absoluto das emoções para não
derramar lágrimas, mas sim de outra postura interior frente às inevitáveis oscilações
propostas pela vida.
Sua atitude é sapiencial na aceitação do que a vida lhe propõe e que o peso da
natureza lhe impõe. Reconcilia-se e aceita os acontecimentos com serena disposição,
mas numa atitude de total confiança no Senhor: “A minha alegria é a vontade sagrada
de Jesus Cristo meu único amor”2. E acrescenta um paradoxal conceito de grande
relevância nos grandes místicos: “Assim vivo sem nenhum receio. Amo tanto a noite
como o dia”3. De fato, o conceito de indiferença da alma frente aos contrastes espirituais
aludidos como “noite” e “dia” é matéria explorada em distintas tradições espirituais que
passa desde Gregório de Nissa, Pseudo-Dionísio, João da Cruz, Inácio de Loyola, dentre
muitos outros autores.
Com esta chave interpretativa e teológica, Irmã Teresa do Menino Jesus faz uma
releitura de seu próprio caminho de dor, transfigurando-o, dando-lhe sentido como a
verdadeira alegria. A sapiência de suas definições evoca uma nova hermenêutica em
face à obscuridade que se passa com ela. Nos Últimos colóquios com Madre Inês
esclarece em 18 de abril de 1897: “estou sempre contente, adapto-me, mesmo no meio
da tempestade, de forma a conservar-me em paz interiormente. Se me falam de conflitos
entre as Irmãs, procuro, pela minha parte, não me exaltar contra esta ou aquela”4.

1
Santa Teresa do Menino Jesus, Obras Completas, Poesia 45,2, Edições Carmelo, Marco de Canaveses,
Portugal, 1996, p. 795.
2
Ibid., P 45,3.
3
Ibid.
4
Últimos Colóquios, 18.4.1, p. 1113.
Sua poesia, portanto, é credível, pois tem como sustento e apoio acontecimentos
cotidianos concretos, fundados na escolha de acolher a noite e o dia, aceitando com
serenidade a vontade de Deus. “Amo tanto a noite como o dia” 5, este trecho poderia ser
largamente explorado, mas vejo conveniente sublinhar um aspecto importante desta
estrofe, pois não deixa de fazer alusão ao poema “Nas Mãos de Deus” de Santa Teresa
de Jesus, a mãe do Carmelo Reformado. Numa estrofe admirável a Santa Reformadora
descreve: “Dai-me, pois, sabedoria, / Ou, por amor, ignorância; / Anos dai-me de
abundância, / Ou de fome e carestia; / Dai-me treva ou claro dia, / Vicissitudes sem fim:
/ Que mandais fazer de mim?”6. Irmã Teresa do Menino Jesus certamente faz-lhe eco.
Em Irmã Teresa do Menino Jesus nitidamente se evidencia o peso místico de
suas escolhas, maturidade comprovada diante das antíteses que se apresentam em sua
pena e também em sua alma. O desenvolvimento de cada estrofe traz a potência
aterradora de seu combate interior, entretanto ancorado numa profunda experiência de
fé obscura: “Quando o céu azul se torna escuro. E que parece abandonar-me, a minha
alegria é ficar na sombra. Esconder-me e humilhar-me”7.
Um imaginário desordenado, sob o constante influxo das paixões, não tem
condições de organizar a potencialidade luminosa da razão de forma a tê-la como bem
elaborada, constituída e evoluída. Pode-se atrofiar o processo do desenvolvimento
natural e sistemático da razão e torná-la simplesmente escrava de tendências viciosas e
imaturas, quando diante das sombras dos acontecimentos não se é capaz de encontrar
uma luz mais elevada. Irmã Teresa do Menino Jesus vai mais longe nesta estrofe acima
citada, admitindo a possibilidade de encontrar alegria na sombra, indo ainda um pouco
mais distante ao tolerar esconder-se e humilhar-se.
A condição mortal é feita de oposições. O que é humano, terreno, é frágil e a
alegria, na sua essencialidade e na sua aparência invólucra, é igualmente frágil. A única
alegria possível neste mundo é viver com heroísmo a alternância entre alegria e
sofrimento, entre a luz e a sombra, como condições irremediavelmente interligadas. Há
um enlace profundo entre os opostos, pois a experiência do efêmero e do frágil traz a
compreensão dos limites. E só no interior dos limites demarcados pelas contradições
intrínsecas da existência que é possível reorientar a própria vida. Essa sapiência é para
quem já alcançou o domínio das paixões, pois o verdadeiro sábio não se embriaga na
alegria e não se desespera de modo algum na instabilidade, fragilidade, fugacidade e
escuridão. Superou tais incongruências, não pelo instinto pessoal aprimorado, mas pela
graça de Deus: “A minha alegria, é ficar pequenina. Por isso quando caio no caminho.
Posso levantar-me rapidamente. E Jesus pega-me na mão. Então enchendo-o de
carícias. Digo-lhe que Ele é tudo para mim. E redobro minha ternura. Quando se
esconde à minha fé”8.
A poesia prossegue em chave heroica, fruto de maturada virtude, a excelência
que os antigos gregos buscavam. Irmã Teresa prossegue fiel a esses ditames: “Se às
vezes choro algumas lágrimas. A minha alegria, é escondê-las bem. Oh! como a dor tem
encantos. Quando com flores a sabemos ocultar” 9. A condição comportamental do ser
humano presta-se a tal mutabilidade, divagando por vezes em antagonismos
sentimentais. A jovem religiosa normanda soube driblar a diversidade de reações
compreensíveis chegando a esconder as inevitáveis lágrimas impostas pelas condições
difíceis que atravessava. E a metáfora das “flores” utiliza para designar as dores que

5
P 45,3.
6
Santa Teresa de Jesus, Obras Completas, P 2,8, Edições Loyola, 1995.
7
P 45,3.
8
P 45,4.
9
P 45,5.
procurava ocultar. Tudo é vivenciado dentro dela numa perspectiva de fé, ainda que
sensivelmente não conseguia atribuir-se a nenhum estado de consolação. Agia por amor
a Jesus, mas sempre na escuridão. Estava mergulhada em densa noite espiritual, nos
estágios passivos. E concluía com os sentimentos que lhe invadiam: “Quero sofrer sem
o mostrar. Para que Jesus seja consolado. A minha alegria, é vê-lo sorrir. Quando o meu
coração está exilado”10. E adiante prosseguia em tons assombrosos: “Sinto-me feliz em
sofrer. A minha única alegria na terra. É conseguir alegrar-te” 11. Essa admirável estrofe
não se trata de um tributo ao sofrimento pelo sofrimento em si. Há uma relação
intrínseca mais aprofundada, levando em conta o seu estado de alma e a condição última
de que seja como for visava tão somente alegrar a Deus, estando predisposta a qualquer
vicissitude por amor d’Ele.
Para uma maior compreensão do alcance da expressão “Toda minha alma está
aí”, mencionada acima para designar a palavra dita à Madre Inês ao entregar este
poema, teremos ainda que percorrer alguns pormenores mais aprofundados da situação
interior de Irmã Teresa. Em suas relações autobiográficas, precisamente no início de seu
Manuscrito C, dirigido à Madre Maria de Gonzaga, faz menção das trevas espirituais
que padecia: “Nos dias tão alegres do tempo pascal, Jesus fez-me sentir haver almas
sem fé que, por abuso das graças, perdem esse precioso tesouro, fonte das únicas
alegrias puras e verdadeiras. Permitiu que minha alma fosse invadida pelas mais densas
trevas e que a ideia do Céu, tão suave para mim, não passasse de tema de combate e
tortura… Essa provação não devia durar apenas alguns dias, algumas semanas, só devia
desaparecer na hora marcada por Deus e… essa hora não chegou ainda… Gostaria de
poder expressar o que sinto, mas creio ser impossível. É preciso ter andado por esse
túnel escuro para compreender a escuridão”12. Em 3 de julho de 1897 Madre Inês de
Jesus lhe dirige uma pergunta importante para esclarecer este tema: “Como é possível
que deseje morrer nessa provação contra a fé, que não passa?”. Ao que Teresa
acrescenta: “Ah! Creio firmemente no Ladrão! Tudo conduz ao Céu. Como é estranho e
incoerente!”13. Não podia contar com sua sensibilidade e consolação nas questões de fé
– achava-se incoerente! – , mas agora, nas trevas purificadoras, contava apenas com sua
instabilidade e desolação, a mais profunda noite do coração: “Quando canto a felicidade
do Céu, a eterna posse de Deus, não sinto alegria alguma, pois só canto o que quero
crer”14. Pode parecer estranho e paradoxal um padecimento de tal envergadura numa
alma de tão grande santidade, todavia a tradição mística de São João da Cruz vem-lhe
em auxílio no percurso descrito na Subida do Monte Carmelo e na Noite Escura. Edith
Stein, ao comentar São João da Cruz em sua obra magistral, A Ciência da Cruz, aborda
largamente a questão purificativa: “Infeliz aquele que pensa a ausência de deleites
espirituais como ausência de Deus, ou, os possuindo, ache que então possui a Deus. A
união a Deus só é obtida pelo vazio das tendências quanto a qualquer gozo particular” 15.
Na via segura que os místicos acenam, a aridez é antes sinal de presença de Deus do que
de ausência. Em plena Idade Média o dominicano, Mestre Eckhart, aludia aos noviços
com insuperável acerto: “Não há melhor conselho para encontrar a Deus senão lá onde a
gente se sente longe dele”16. Os verdadeiros espirituais privilegiam antes a escuridão
como meio para a plena união com Deus, sendo essa linguagem talvez misteriosa e
10
P 45,5.
11
P 45,6.
12
Manuscrito C, 5v.
13
Últimos Colóquios 3.7.3.
14
Manuscrito C, 7v.
15
Edith Stein, A Ciência da Cruz, Edições Loyola, São Paulo, 1988, p.82.
16
Mestre Eckhart, Conselhos Espirituais, Vozes, Petrópolis, 2016, p. 28.
estranha às tendências contemporâneas, altamente voltada para o sensível e imediato,
sem nenhum traço de profundidade sapiencial.
Irmã Teresa do Menino Jesus encerra magistralmente o seu poema, dando-lhe o
verdadeiro significado do seu obscuro processo interior, maturado de ausências e
significações elevadas, de quem já estava plenamente consumida no místico incêndio de
amor. Para ela as oscilações do caminho não são divergências, mas convergências para
a única finalidade que lhe invadia o coração, o desejo de amar, somente amar a Jesus. E
para tal as discrepâncias de situações propostas não invalida a meta do amor, antes se
alimenta de tudo o que lhe sobrevém nas situações comuns, aproveitando-se de cada
migalha para provar o quanto Jesus é tudo em sua vida.
Permita-me, para encerrar, fazer um inusitado paralelo entre Teresa e Cecília
Meireles, a grande poetisa do modernismo na literatura brasileira. Cecília entre 1933 e
1937 redigiu uma comovente Elegia dedicada à memória de sua avó, Jacintha Garcia
Benevides. Enquanto Teresa enfatiza seu processo interior com o termo “Minha
alegria”, Cecília, ao contrário, na terceira parte do seu poema reflete sua própria
situação interior com o recorrente uso do termo “Minha tristeza”. A poetisa brasileira
reproduz na pena a emoção sentida pela morte de sua avó e canta os compreensíveis e
lícitos sentimentos de escuridão ao perder uma pessoa que tanto amava: “Minha tristeza
é não poder mostrar-te as nuvens brancas, e as flores novas, como aroma em brasa, com
suas coroas crepitantes de abelhas (...) Minha tristeza é não poder acompanhar contigo o
desenho das pombas voantes, o destino dos trens pelas montanhas, e o brilho tênue de
cada estrela brotando à margem do crepúsculo”17.
Longe de desmerecer a grande Cecília ao comparar seu comovente poema com a
ardente poesia de Teresa! No entanto, naquilo que Cecília expressou como tristeza,
Teresa sempre descobriu como uma misteriosa alegria e a frase final da grande santa
reitera: “Que me importa a morte ou a vida? Jesus, a minha alegria é amar-te” 18. A
sombra que Cecília canta realça a luz que Teresa se lança. O horizonte da grande santa
de Lisieux transformou todas as tristezas lícitas em alegria purificada na chama de amor
viva. Em tudo Irmã Teresa do Menino Jesus encontrou o Senhor e possibilidade de amá-
lo.

Irmã Maria Ana de Jesus, OCD


Mosteiro Santa Teresa - SP

17
Cecília Meireles, Mar absoluto e outros poemas, Global Editora, São Paulo, 2015, p.177.
18
P 45,7.

Você também pode gostar