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A vida de Santos Dumont
No Plano Espiritual
Gilson Teixeira Freire

Pelo espírito
Adamastor

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Dedicado àqueles que renegaram

a bênção da vida.

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Agradecimentos
As reuniões no Grupo de Fraternidade Espírita Irmão Vítor,
desenvolvidas no decurso dos três anos que despendi para
escrever esta obra foram o sustentáculo seguro que me
permitiram um ambiente de sintonias propícias ao seu
desenvolvimento.

Por isso devo agradecer aos meus companheiros de


trabalho que não me faltaram com o apoio incansável em
todas as horas de atividades.

Especialmente naqueles instantes em que a dúvida


assaltava-me, ferindo de insegurança minha sensibilidade
mediúnica, eles souberam proporcionar-me a adesão de
confiança de que necessitava.

Foram tantos que não posso aqui enumerá-los, no entanto a


vida registrou suas imprescindíveis contribuições e saberá
recompensá-los.

Devo especial gratidão ainda a Carlos José Horta e Cléa de


Paula Santos, cujas palavras de estímulo e irrestrito apoio
foram imprescindíveis para que os valores do bom ânimo
jamais se esvaíssem em mim, e a Sergito Cavalcanti que,
aquiescendo com veemência à sua imediata publicação,
cuidou de lhe dar corpo no plano físico.
Meu reconhecimento se direciona também para Jarbas
Franco de Paula, Lúcia de Fátima Marques, Vanda Zanete e
Antônio Russi, que colaboraram na indispensável revisão
final do texto e a Noêmia Rezende Teixeira que se
empenhou com extraordinário zelo no trabalho de
editoração, valorizando sobremodo a obra. Desejo ainda
registrar emocionado que, sem o respaldo indispensável de
meus entes queridos, provendo-me com o mais genuíno
amor, este trabalho não teria sido possível.

Tributo que me chegava, não somente em forma do


afetuoso acalento vibracional, como da tolerância pelas
muitas horas roubadas do precioso e indispensável convívio
familiar. E se me sentisse no direito de dedica-lo a alguém,
sem sombras de dúvidas, o consagraria a minha esposa
dileta, Sônia Maria, sobejado pela sua capacidade de amar,
tolerar e servir sem exigências.

E, finalmente, agradeço a Deus por me haver dado


condições de contribuir, um pouco que seja, com a crença
na imortalidade, corroborando a certeza de que o espírito
não morre jamais, crença que é o mais valioso consolo que
podemos ter em vida,

não importando a religião que professemos.


Gilson Teixeira Freire

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O AUTOR ESPIRITUAL

Adamastor é o pseudônimo de um médico que viveu na


França no final do século dezenove e se transferiu para o
Brasil, onde desencarnou em decorrência do abuso do álcool
e do fumo, tendo sido recebido no Plano Espiritual como
suicida. Recuperado, passou a viver em uma colônia
chamada Portais do Vale, edificada nas imediações do Vale
dos Suicidas, transformando-se logo, em vista de suas
conquistas, em assistente dos desafortunados que lá
aportavam a todo momento. Empenhado no crescimento
espiritual, terminou por se fazer seguidor do magno espírito
Bezerra de Menezes, integrando-se à sua equipe de
trabalhos assistenciais.

Conduzido pelos fios do destino, foi convocado para o


atendimento a Santos Dumont, suicida socorrido também
em Portais do Vale, originando-se daí o enredo aqui
desenvolvido. Até onde sabemos, seus trabalhos junto a nós
têm se desenvolvido no Grupo da Fraternidade Espírita
Irmão Vítor, onde já se manifestou através de diversas
mensagens de elevado teor, em nome de Bezerra de
Menezes, algumas dirigidas ao Movimento da Fraternidade.
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O Medianeiro

Gilson Freire é médico homeopata e professor dessa


especialidade médica em Belo Horizonte, onde reside.
Espírita de berço, desenvolveu aptidões psicográficas no
Grupo da Fraternidade Espírita Irmão Vítor, que frequenta
desde a sua fundação, há 21 anos. Estudioso da obra de
Pietro Ubaldi, ministra também cursos e seminários da
profícua filosofia desse autor na capital mineira.
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Esta obra, a história de Santos Dumont após sua morte, é o


cenário onde se desenvolve interessante estudo sobre os
fenômenos degenerativos da alma humana, como a
depressão, o suicídio e os ovoides, sob o ponto de vista da
Ciência do Espírito.

Além de descrever detalhes da vida do grande inventor e


suas encarnações anteriores, justificando-se o seu empenho
na importante missão de dar asas ao homem, o livro relata
ainda a atuação dos Espíritos nos bastidores da I Grande
Guerra Mundial, mostrando-nos os seus horrores e o imenso
equívoco dos conflitos armados.

Juntando-se às muitas vozes que do Mundo Maior nos


trazem a certeza da imortalidade da alma, demonstra-nos
ainda a gravidade do erro de se atentar contra a própria
vida. Contudo, ao relatar o profícuo trabalho de recuperação
do nosso Ícaro, finalmente redimido, comprova-nos que a
misericórdia divina sempre socorre seus filhos com
desvelado amor, não permitindo que se consumam
irremediavelmente em tormentos eternos.

Conhecer o drama do Ícaro Redimido é, no dizer de Bezerra


de Menezes: “Aprender a valorizar a vida e a equilibrar o
voo da alma para que, cientes das ameaças das grandes
altitudes do orgulho e da vaidade desmedida, não nos
deixemos resvalar para o fosso das ignomínias humanas”.

SUMÁRIO
Esclarecimentos necessários, 11

A História de Um Ícaro, 17

1 – Em Portais do Vale, 23

2 – Ovoidização, 27

3 – Heitor, o Novo Amigo, 34

4 – Rumo às Cavernas, 43

5 – O socorro no Tempo Devido, 52

6 – Fisiopatologia da Autodestruição, 58

7 – No Departamento da Embrioterapia, 71

8 – Na Câmara dos Ovóides, 81

9 – Catherine Lyot, 88

10 – A Bênção do Recomeço, 98

11 – Dias Atribulados, 106

12 – Tempestade Vibracional, 112

13 – Doloroso Transe, 117

14 – Um Homem Sem Memória, 133

15 – Nas Estradas do Passado, 150

16 – Aventuras Inusitadas, 162

17 – Dias Gloriosos, 169

18 – Momentos Históricos, 177


19 – Valiosa Ajuda, 189

20 – Fisiopatologia da Arrogância, 197

21 – Depressão: Tempo de Colheita no Campo do Espírito,


212

22 – Em Busca de Soluções, 226

23 – Nas Penumbras da Morte, 239

24 – Confissões da Intimidade, 250

25 – Lições para a Eternidade, 262

26 – Sombras de um Homem, 277

27 – Contenda Inútil, 285

28 – O Senhor dos Canhões, 301

29 – O Padre dos Inventos, 314

30 – Sanando as Chagas do Passado, 335

31 – A Força do Perdão, 354

32 – Enfim, o Trabalho, 361

33 – Nos Bastidores da Guerra, 375

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34 – Um Pedestal Vazio, 393

35 – Quando o Passado Socorre o Presente, 402


36 – Reencontro Memorável, 411

37 – Em um Campo de Luzes, 415

38 – Nas Teias do Destino, 424

39 – De Volta à Colônia, 431

40 – O Canhão da Paz, 437

Glossário, 444

Mensagem de Santos Dumont, 449


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ESCLARECIMENTOS
NECESSÁRIOS

Apresento ao leitor uma obra que não pode ser considerada


simplesmente uma ficção. É fruto de uma estranha parceria
com uma inteligência livre da matéria. Sei que lhe dar tão
exótica origem, coloca-a no rol das literaturas questionadas
quanto à sua veracidade e levanta a suspeita de tratar-se
apenas de um produto da imaginação aguçada de alguém
capaz de se conceber dominado por forças estranhas,
conduzindo o relato dos escritos aqui apresentados. Por isso
ela está estritamente endereçada àquele que aceita a
possibilidade da existência da vida em um outro plano que
não o da carne, e admite a viabilidade de trocas de
informações através das correntes de pensamentos que
trafegam entre os dois mundos.

Este livro no entanto, não foi desenvolvido pelas vias da


psicografia mecânica na qual o medianeiro pouco interfere
em seu trabalho, mas através de um envolvimento ativo e
direto de inspiração consciente. Escrevi-o bastante cônscio
de mim mesmo e com clara percepção das ideias que
entretecia na mente.

Apenas as sentia brotarem com uma profusão


inusitadamente rápida e com uma clareza tão cristalina que
não me deixavam a mínima dúvida quanto à sua origem.
Imagens nítidas se formavam em minha tela mental sem o
mínimo esforço imaginativo, e eu apenas cuidava de lhes
dar corpo, vestindo-as com minhas próprias palavras,
enquanto me sentia enlevado e envolvido por um halo de
vibrações de difícil definição. O tempo parecia-me
estacionado, ainda que a sucessão das ideias fosse muito
superior à minha reduzida capacidade de composição e
habilidade de escrita. Embora já ciente do corpo do
trabalho, não tinha a menor noção do que iria escrever, até
o momento em que penetrava naquele mágico fluxo de
ideias. A presença nítida de alguém que não pertence a este
plano de vida, era evidente e incontestável e sua influencia
bastante poderosa para que me curvasse diante dele com
sentimento de simpatia, admiração e respeito. Eu o seguia
em pensamento, em pleno comando de minhas funções
orgânicas, mesmo sentindo naquele inusitado clima de
enlevo, a sensação de estar flutuando, ou como se meu
corpo estivesse leve e estendido na posição horizontal,
atado apenas pelo cérebro.

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A vivência dos fatos relatados era de tamanha magnitude,


que muitas vezes me atirava em lágrimas, por senti-los com
surpreendente realidade, como se estivesse presente neles,
tal a nitidez com que os quadros se formavam em minha
mente. Essas sensações são as únicas provas, ainda que
restritas ao meu próprio testemunho, de que lidei com
forças fora da realidade e além de mim mesmo.

Outras comprovações para certificar-lhes que os relatos


desta obra são verídicos, não posso apresentar a não ser
minha própria sinceridade. Explicações diferentes,
tampouco seria capaz de lhes dar, embora os descrentes do
espírito se apressem em recorrer aos mistérios do
inconsciente para travestir tais fenômenos de um realismo
coerente com suas doutrinas materialistas, crenças que já
não podem nem mesmo se sustentar diante da
imponderabilidade da própria matéria.

Durante um ano, antes de iniciar este trabalho, fui invadido


no momento do sono, por uma profusão de sonhos muito
reais e que entreteciam todo o enredo da história que iria
escrever mais tarde. No entanto, eu não estava ciente do
fato e não podia compreender a razão daquilo. Passava os
dias acompanhado por aquelas imagens inquietantes e
guardava a estranha sensação de trazer a mente invadida
por pensamentos que não me pertenciam, pressionando-me
as paredes do cérebro para evadir-se. De certa forma me
perturbavam, dificultando-me o trabalho diurno, causando-
me uma íntima inquietude e a inexplicável impressão de
não estar completamente desperto e integrado ao nosso
mundo. Hoje compreendo que se tratava realmente de uma
gestação de ideias, um preparo necessário para o perfeito
desenvolvimento da obra. Embora incômodas, exerciam
uma forma de pressão como se exigissem para serem
escritas. Essa sensação desaparecia por completo no
instante em que as transferia para o papel, proporcionando-
me agradável alívio.

Enquanto o enredo se estendia, minhas noites continuaram


sendo enriquecidas pelos mesmos sonhos vívidos e ricos de
detalhes das imagens e dos ambientes que depois se
desdobravam na dissertação da história narrada. Por isso,
além de escrevê-la, eu a vivi intensamente ao longo dos
três anos, tempo consumido em sua composição.
Uma entidade que não pertence a este mundo esteve
presente junto a mim, inspirando-me no seu relato.
Responde pelo nome de Adamastor, e sentia a força de sua
presença, impondo-me o seu pensamento e dirigindo
ativamente o trabalho. Por vezes podia acompanhar frase
por frase a sua elaboração mental, para

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me perder logo em seguida numa avalanche de ideias e


imagens, qual torrente de água cristalina a banhar-me a
alma com impetuosidade e ternura ao mesmo tempo.
Pedindo-me paciência, falava-me em palavras mudas,
impressas na tela mental: -- “Escuta-me não com teus
ouvidos, mas com a tua alma.

Guarda na memória as imagens que vês e as emoções que


experimentas. Depois escreve-as com calma, sem tanta
pressa e não queiras apreender tudo que te exprime a ideia
evasiva. No final tudo se acomodará. Não temas e nada se
perderá”. No entanto, não pude evitar que minhas próprias
interpretações interferissem no processo e que minha parca
condição intelectual maculasse a clareza das ideias,
percebidas por esta via intuitiva de acesso ao mundo do
imponderável. Certamente que não pude vesti-las com a
mesma clareza com que as anotava na tela mental, e por
isso guardo a certeza de não ter sido suficientemente
assertivo para evitar os erros que assumo, como de minha
inteira e única responsabilidade.

Muitos nomes e termos inteiramente estranhos ao meu


ambiente psíquico eram percebidos com natural
insegurança, exigindo-me posterior e cuidadoso estudo a
fim de conferir-lhes a exatidão, impondo à captação
mediúnica, um perfeito controle racional, evitando-se assim
os enganos naturais decorrentes de minha insegurança e da
rapidez com que se imprimiam em minha mente. Contudo
surpreendia-me, atestando que a maioria deles
correspondia exatamente à forma com a qual se me
apresentaram. Entretanto, muitos não se acham
registrados, ou pelo menos não os pude encontrar nas
biografias ao meu alcance, de modo que admito a
possibilidade de erros, em decorrência da exótica origem
destes dados, e da exiguidade de minha visão
metapsíquica. Ainda que um dos objetivos deste trabalho
seja a aproximação dos fatos desta e da outra vida, a
precisão de seus informes, no que diz respeito à exatidão da
grafia, não foi em momento algum, o seu escopo principal.
Seu enredo e seu personagem serviram apenas como um
propósito secundário para a veiculação da verdadeira
mensagem da obra, que objetiva engrandecer-nos para a
avida real do espírito, incentivando nossa melhoria moral,
ensinando-nos a valorizar a vida, e a vê-la como um meio
indispensável para a conquista dos tesouros da eternidade.

Sei que o protagonista destes relatos desperta especial


interesse para a história de nossa nação por retratar um de
seus mais ilustres personagens, e muitos questionamentos
serão suscitados perante as revelações aqui apresentadas,
por parecer

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desmerece-lo das glórias e feitos que lhe atribuímos. Creio


que a intenção da espiritualidade superior não é diminuir o
valor de quem quer que seja, mas apenas nos revelar fatos
que possam nos instruir e nos tornar mais felizes. Acredito
ainda que se a vida de todos os grandes homens da história
universal, excetuando-se o Cristo e seus mensageiros,
fosse-nos apresentada sob a ótica do espírito, falhas de
caráter e fraquezas incontestáveis lhe seriam imputadas,
não sendo o nosso herói em particular, uma exceção à
regra. Nossos ídolos, quase sempre encarnam nossa
pretensão de hegemonia, representam nossos mais
genuínos anseios de perfeição e realizam nossos sonhos de
audácia, por isso, costumeiramente, vê-los desqualificados
pela realidade, ofende-nos os próprios brios.

Ao perceber o alcance da obra e sua possível relevância


para a nossa história, sentime incapaz de desenvolvê-la
com a envergadura de que se fazia necessária. Porem não
me foi dada a opção de negar o trabalho, e tive que
executá-lo a despeito de minha insuficiência, pois não
guardo dotes de literato, não conheço o idioma o bastante
para evitar grandes erros, e muito menos trago o cabedal
de intelectualismo satisfatório para ser aquele que a
encabeçasse no mundo físico. Sentime fortemente
conduzido e tenho certeza de que a espiritualidade
desprendeu enormes esforços na superação dos óbices que
minha ignorância lhe contrapunha, por isso espero contar
com a compreensão daqueles que, conhecendo minhas
parcas possibilidades e inquestionáveis limitações,
assistem-me projetado em tal patamar de realização, ainda
mais por tratar-se de assunto distanciado do meu âmbito de
atuação profissional.
As notas foram todas elas colocadas posteriormente a fim
de auxiliar o leitor, e pode-se considera-las como de minha
própria autoria. Algumas, contudo, demonstravam
nitidamente tratarem-se de sugestões do autor espiritual e
as registrei como tais. Um glossário foi inserido no final do
livro, com a intenção ainda de se facilitar a revisão dos
neologismos próprios do texto.

As lições que depreendem de seu enredo, as considerações


sobre ovoidização, a energética do psiquismo e as
ponderações sobre a doença depressiva do homem podem
ser julgadas inéditas e questionadas quanto ao seu real
valor doutrinário, se para alguns parecerem não guardar
perfeita identidade com as revelações que até então nos
foram apresentadas como integrantes dos preceitos
espíritas. Contudo, reservando-me o direito, deixo claro que
se trata de opiniões pessoais, tanto minhas quanto da
entidade que as ditou, pois se lhes dei guarida é

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porque se coadunaram com o meu próprio modo de pensar


e conceber os ensinamentos espíritas que me bafejam a
razão.

Embora eu situe suas origens fora de mim mesmo, este não


deve ser o motivo para encará-las como verdades absolutas
e inquestionáveis, pois todos, encarnados ou não, somos
seres ainda em crescimento e estamos sujeitos aos mesmos
equívocos naturais da jornada do conhecimento. Para isso
ressalto as palavras de Al an Kardec, as quais suscito para a
nossa reflexão: “um dos primeiros resultados que colhi das
minhas observações, foi que os espíritos, nada sendo mais
que as almas dos homens, não possuíam nem a plena
sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que
dispunham se circunscrevia ao grau de adiantamento que
haviam alcançado e que a opinião deles só tinha o valor de
uma opinião pessoal. Reconhecida desde o princípio, esta
verdade me preservou do grave escolho de crer na
infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias
prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou
alguns deles”. Portanto a razão plena deve nortear-nos, não
somente na leitura desta obra, como servir também de
peremptório juízo crítico para o julgamento de todo e
qualquer corpo de ideias que se nos apresente como
oriundo do insólito mundo dos espíritos.

Desta forma, acreditar na veracidade dos fatos aqui


narrados, fica por conta da capacidade de cada um em
conceber a vida e seu telefinalismo. Aqueles que creem que
tudo termina nas portas do túmulo, certamente passarão
adiante, sem a mera curiosidade de questionar o sentido da
existência e o significado de obras de tão aparente exótica
origem. Outros contudo, que acreditam na imortalidade da
alma, poderão aceitar a história como um drama real, vivido
no Plano do Espírito.

No entanto, não importa que a encarem como mera ficção,


se dela for possível extrair subsídios aproveitáveis em nossa
melhoria moral. Nosso esforço terá encontrado a sua
recompensa. Eis o que interessa e seguramente este é o
escopo maior de todo o nosso empenho, meu e de meus
companheiros, deste e do outro mundo.
Gilson Teixeira Freire
Belo Horizonte, Outubro de 2000

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Ícaro e Dédalo

Pintura de Carlo Saraceni

Museu de Capodimonte, Nápoles, Itália

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A HISTÓRIA DE UM ÍCARO

Conta-nos o mito dos antigos gregos, que Ícaro, filho de


Dédalo, ousou fugir dos labirintos de Creta, servindo-se de
asas construídas com penas, fixadas com cera. Conseguindo
voar até as alturas, aproximou-se Ícaro tão demasiado do
sol que seu calor derreteu a cera, fazendo-o precipitar-se no
mar Egeu. Este foi o castigo para aquele que, desafiando as
leis da natureza, intencionou voar mais alto que os
pássaros. Sua lenda ficou na memória da História, como
sinônimo daquele que é vítima das ambições
excessivamente elevadas, além das possibilidades do
homem comum. Ícaro personalizou ainda numa época, o
sonho humano de voar como as aves.
Homens eminentes, no desempenho de missões no mundo,
representam essa figura mitológica quando, deixando-se
conduzir pelo orgulho desmedido, alçam voos tão altos na
atmosfera das vaidades humanas, que as luzes da altivez
lhe abrasam as frágeis asas, precipitando-os em grandes
quedas morais. Mas é preciso considerar que Ícaro
representa não somente missionários falidos, porém o
anseio de todo espírito humano, que não basta a si mesmo
e está sempre alimentando sonhos de grandeza quer lhe
façam enaltecer o personalismo enfermiço. Para estes é que
Jesus asseverou que “todo aquele que se exaltar será
humilhado” , pois da arrogância passarão à perda dos
valores que lhe integram a personalidade, em situação
exatamente oposta àquela orgulhosamente pretendida.
Estes movimentos fazem parte da individualidade humana
que ainda não conhece o equilíbrio e não sabe situar-se na
posição de humildade que nos recomendou o Evangelho:
“aquele que entre vós é o menor, esse é grande” .

O inventor, personagem desta história, foi um destes Ícaros


modernos que, escondendo por trás de sua compleição
mirrada e frágil uma alma altaneira e audaz, aspirou à
maior das glórias humanas ao desafiar as leis da gravidade.
Desejou um dia tornar-se uma grande personalidade e
inscrever seu nome nos anais da história, como aquele que
realizou o maior sonho do homem: voar como os pássaros.
Justo imaginarmos que tal encargo, feito sobretudo de
soberbia, poderia terminar em tragédia.

O Ícaro de nossa narração, por estar envolvido em elevada


atmosfera espiritual, julgou ter a genialidade dos grandes
sábios, sendo que na verdade, apenas copiava o que lhe
ditavam à intuição, nobres entidades do invisível, desejosas
de auxiliar o progresso humano. Acreditando que
unicamente a sua inteligência sustinha suas frágeis
máquinas, imaginou-se incapaz

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de falir, enquanto que o mundo espiritual trabalhava


ativamente para instruí-lo e orientá-lo, a fim de que seus
arriscados projetos não se precipitassem em graves
fracassos. Os jornais o focalizavam como o herói do novo
século e, apesar de sua minguada aparência, era tido como
um grande homem, aquele que competia com as águias e
ousava desafiar as grandes altitudes. O mundo espiritual, ao
programar a tarefa necessária ao progresso humano, sabia
dos riscos que tal missão acarretaria para aqueles que se
empenhassem em sua execução. Era preciso uma alma
muito humilde para realiza-la com a resistência precisa, a
ponto de não se deixar abrasar pelas orientações humanas.
Ao mesmo tempo, o malfadado desejo de glórias, precisava
ser utilizado como um pretexto para o bom êxito da
incumbência, pois a alma, que ainda não atingiu a
maioridade, não sabe se mover sem que a jactância lhe
dirija o personalismo rumo ao enaltecimento doentio. A
empreitada era delicada e difícil, mas era preciso correr os
riscos em prol das necessidades do progresso.

Para os escolhidos que iriam voar tão alto e experimentar o


sabor das vaidades humanas, o perigo da queda moral era
uma ameaça altamente provável, superando certamente a
possibilidade de precipitar-se no solo.
O inventor não estava livre dessas ameaças. Conquistou
glórias momentâneas no seio dos povos, mas se viu
invencioneiro ao se dar conta de que outros homens, em
outras terras, também ouviram e responderam aos apelos
do mundo espiritual, que tinha pressa na execução de seus
projetos, e semeava ideias em qualquer campo em que
pudessem florescer. E estes irmãos disputavam-lhe os
mesmos méritos pela primazia do fabuloso invento, como
patrimônio exclusivo de suas vaidades. Alimentaria a falsa
ilusão de ter possuído a maior das genialidades de ter sido o
único mortal a vencer as alturas. Mas suas glórias eram
falsas, tanto quanto eram falsos seus inventos. Com
desespero, descobriu-se tão falível quanto qualquer outro
mortal. Viu seu nome ser preterido na galeria da História por
outros que lhe requisitaram o primado do eloquente feito.
Medalhas, títulos, monumentos e honras caíram, desfeitos
de um dia para o outro, tais quais castelos construídos nas
movediças areias das ilusões egóicas. Não bastaram seus
feitos por demais insignes para uma alma em curso na
Terra. Ele precisava dessa primazia para alimentar o seu
orgulho, que já experimentara o sabor dos louros humanos.
Depois, a guerra, sim, a guerra com toda a sua crueldade,
insistia no uso da máquina que julgava sua, para
protagonizar a destruição, contrariando a suas mais
sinceras

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pretensões de paz. O aeroplano, aquele que teimava em


considerar seu filho dileto, não podia prestar-se a objetivos
tão vis, e sua consciência, martirizada pelo passado de
culpas, feria-lhe ainda mais a alma dolorida, aprofundando-
o no charco a que se atirara.
Seu coração vazio de espiritualismo não encontrou consolo
no respeito e no carinho que o seu próprio povo lhe
dedicava.

Este não se importou com o fato de que outros lhe


houvessem desqualificado do título histórico de pai da
maior invenção de todos os tempos, fingiu não ouvir e
teimou em assim considera-lo, alcançando-o aos píncaros
da merecida glória. Seu nome foi enaltecido e seus feitos
valorizados acima de seus reais méritos.

Mas não bastou. O louvor que lhe consagrava sua singela


gente, distante das realidades do mundo de então, não lhe
era galardão suficiente. A desilusão se instalara em seu
coração, e ser herói apenas em sua restrita nação. Não lhe
bastava para acalentar a alma doente e ferida,
traumatizada pela queda das grandes altitudes do espírito.
O drama estava armado e acreditara não ter como evadir-se
dele, a não ser através do ato ignominioso: fugir e não mais
viver...Pondo fim ao curso da própria vida, o nosso Ícaro se
precipitou no abismo das maiores dores que o ser humano
pode colher. Eis a história urdida nestes singelos relatos. Um
romance da vida real, escrito por quem o acompanhou de
perto como nenhum outro.

Revelando as fraquezas e as virtudes de um herói decaído,


suas lições visam, não a diminuir sua imagem na memória
de um povo e importante para o sustento de uma nação,
porém à nossa educação espiritual, ensinando-nos que
honras e glórias precisam do equilíbrio da simplicidade e da
humildade a fim de não se converterem em prejuízos
evolutivos para aqueles que as protagonizam. E expondo-
nos os bastidores da notoriedade, deixa-nos entrever que o
gênio é somente alguém que se capacitou pelo próprio
esforço, a se transformar em canal receptivo das correntes
intuitivas que trafegam entre os dois planos da vida.

A doença depressiva e seu cortejo de males, encontram


aqui uma rápida, porém profunda reflexão sobre as suas
origens, enriquecendo-nos com acervo de conhecimentos
que nos auxiliam a entende-la sob diferenciados aspectos,
alicerçados nas expressões

do

espírito

eterno,

visando

sobretudo

ao

esclarecimento de medidas seguras para a sua prevenção.

A guerra, fonte de ruinas e de grandes dramas, o maior de


todos os males que o homem terreno pode empreender, é

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também abordada nesta obra, em um inusitado ângulo, sob


a ótica do espírito. As lições daqueles que a viveram sob a
dura realidade do lado de cá, são preciosos ensinamentos
que nos induzem a adotar a mansuetude como norma
indispensável de relacionamento, em toda a extensão da
vida planetária, e envidar todos os esforços para se deter a
jornada de sofrimentos e destruições dos grandes conflitos
fratricidas entre os povos.

Em síntese, esse é o resumo da obra que temos a alegria de


apresentar. Mais um romance lavrado pela influencia direta
dos espíritos dentre tantos já escritos se fazia realmente
necessário?

Certamente que a literatura espírita hoje disponível, é


profícua o bastante para solver toda a necessidade da alma
humana, já de muito carcomida pelo cientificismo
materialista diante da insofismável realidade do espirito.
Não se necessita, é verdade, de mais novidades para
chamar-lhe a atenção, nem de novos fatos que comprovem
a veracidade do mundo do Além. Por isto, esta exposição
nos traz a pretensão de se juntar à plêiade de literatos do
espírito, pois seu relato à guisa de romance, apenas dá
cumprimento às determinações do Mundo Espiritual que
visam sobretudo, mostrar o verdadeiro roteiro dos
acontecimentos que os encarnados podem apreciar
somente em um de seus lados.

Seu valor não está somente em nos mostrar que a vida


continua, apesar de todas as dúvidas do homem terreno,
mas em completar a História que na verdade se realiza em
dois planos de vida e em dois momentos contíguos.
Aproximando o curso dos fatos desta e da outra vida,
unindo causas e efeitos, entretece a verdadeira sucessão da
Historia, em sua lógica impreterível, quando vista sob o
prisma do espírito. E assim, o homem em transito no
planeta não pode mais ignorar que a vida se constrói em
duas etapas complementares de experiências, sempre
interligadas pela continuidade inquestionável da linha da
evolução.

Sem duvida, muitos duvidarão dos fatos aqui narrados, por


se acharem ainda presos à ilusão da matéria; entretanto
lhes pedimos apenas que os analisem com os olhos da
alma, buscando retirar da letra, ensinamentos
imprescindíveis para a reforma moral que a vida nos
suscita. Conhecendo de perto o drama deste Ícaro,
certamente aprenderemos a valorizar a existência, e a
equilibrar os voos do nosso espírito, para que, cientes das
ameaças das grandes altitudes do orgulho e da vaidade
desmedida, não nos deixemos resvalar para o fosso das
ignominias humanas. Adotando a humildade como norma
do viver, aprenderemos a voar até onde nos podem
suportar as

21

frágeis asas da alma, ainda incapazes de nos suster sobre


os imensos abismos que nos separam do Infinito.
Compreenderemos definitivamente que as luminares ideias
que promovem o progresso humano, não são meras e
casuais criações de homens de gênio, mas sim realizações
que obedecem a planos cuidadosamente idealizados pelo
mundo espiritual, fonte de toda inspiração humana. E,
finalmente, que a Historia não caminha ao léu e a evolução
não se faz ao sabor do acaso, mas se realizam dentro de um
edifício conceptual já pronto, obedecendo as diretrizes
divinas, cujas extensões não podemos ainda vislumbrar.
Embora apenas dois nomes se responsabilizem pelo
desenvolvimento destes relatos, convém esclarecer que ele
é fruto de um esforço de equipe, como tudo que se realiza
na vida, sobretudo em nossa esfera. Muitos ajudaram, em
ambos os lados da existência e, embora perdidos no
anonimato, suas contribuições foram registradas pela vida
que lhes recompensará o empenho. O seu autor principal,
Adamastor, embora desconhecido do meio espírita,
mostrará os seus méritos pelo seu trabalho e, com
discrição, dispensa outras apresentações.

Agradeçamos ao esforço de todos por esta contribuição à


Historia, mesmo que os homens da Terra teimem em não
lhe reconhecer a inquestionável veracidade. E agradeçamos
sobretudo, ao Senhor que nos permite a oportunidade do
tempo para trabalharmos em favor de nós mesmos,
engrandecendo o espírito na jornada rumo à Eternidade.

Que o Senhor nos ampare sempre.


Bezerra de Menezes
Belo Horizonte, Setembro de 2000

22

23

1
capítulo
EM PORTAIS DO VALE
“Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir
os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para
confundir os fortes; e Deus escolheu as coisas ignóbeis do
mundo, e as desprezadas, e as que não são, para reduzir a
nada as que são; para que nenhum mortal se vanglorie na
presença de Deus.”

Paulo – I Coríntios, 1:27-29

Após anos de sofrimentos incoercíveis, finalmente Alberto


lançara nos espaços infindos, um brado de socorro em
sussurrada e rouca voz. Sua mente despertara do longo e
profundo sono de inconsciência em que se arrojara.
Conseguira enfim, elaborar um fio contínuo de pensamento
e proferir uma pequena e singela prece, dirigida com
profunda sinceridade de sentimentos às forças superiores.
Sua oração ecoara pela imensidão silenciosa das escuras e
frias cavernas do Vale qual clamor surdo, sufocado de
agonia e piedosa súplica. Esta fora ouvida pelos planos
elevados da vida, os quais não menosprezam as mínimas
oportunidades de auxílio àquele que pede com lisura.

-- Mãe Santíssima, socorre-me, não posso respirar! Mãe


Santíssima, ouve-me, pelo amor de Seu Filho!
E nada mais podia aquela triste alma em frangalhos
suplicar, pois seu pensamento fragmentado mal se dava
conta de sua própria condição. Permanecera detido em
profundos pesadelos de tormentos e dores inenarráveis,
mas naquele dia o socorro chegaria através de entidades
amigas, enviadas de regiões superiores.

Eu fazia então parte da equipe de atendimento aos


dementados que despertavam no Vale dos Suicidas. Já de
alguns anos dedicava-me a esta tarefa, pois por minha vez,
havia sido também socorrido naquele mesmo local e ali
permanecia em trabalho de minha recomposição pelas
pesadas dívidas contraídas para com a vida. Sim, forçoso é
declarar que eu fazia

24

parte daquelas paisagens, porque fora também um suicida.


Por tempo prolongado estive inconsciente naquele vale de
amarguras, um dos mais pesarosos e lúgubres lugares que a
mente do homem comum pode imaginar existir. Perdera de
certa forma, os laços familiares que me entretinham na
crosta, pelo elevado tempo despendido na recuperação de
mim mesmo, e a maioria de meus antigos entes queridos
seguia em avançados passos na jornada evolutiva,
envolvidos em conquistas outras, distanciadas de minhas
necessidades. Eu me retive na retaguarda, por obra de
meus próprios desatinos e não me sentia mais encorajado a
voltar ao seio da família dileta, exigindo tolerância para as
contingencias de minha penúria espiritual. Naturalmente
que um coração de mãe jamais esquece um filho, e de
minha amorosa genitora recebia sempre apelos de
afetividade que me sustentavam no espinhoso caminho que
seguira. Recebera dela todo tipo de socorro e carinho, e a
ela devo minha condição atual. Mas, por força das
circunstancias, permaneci como trabalhador do Vale, vendo
nisso uma maneira de saldar parte de meus pesados
débitos para com a vida. Sim, eu era um caravaneiro do
Vale das Trevas e orgulhava-me de não me contar mais
entre as fileiras dos seus degenerados. Porém, não convém
contar a minha história particular que nada traz de
surpreendente aos homens da Terra. Devo relatar-lhes o
enredo de outro homem, daquele a quem neste instante
iniciávamos o socorro. Por que a sua história? Porque
aprendi a amá-lo e me afeiçoei ao seu coração por razões
que ainda ignoro. Ademais, conheci sua vida como nenhum
outro, acompanhei-a com toda a sua dura realidade e tenho
aa sua devida autorização para discorrer sobre os seus
dramas. Outro enredo também não lhes poderia entretecer,
pois não trago dotes de intelectualismo ou aptidões
literárias para deliciá-los ou instruí-los com outros contos da
vida do lado de cá.

O Vale dos Suicidas já é conhecido daqueles que tem acesso


às informações do Mundo Espiritual. Dele trataram autores
habilitados na arte da escrita, de modo que poucas
informações posso acrescentar. Ali é o triste lugar em que
se reúnem aqueles que são vítimas de si mesmos e lutam
desesperadamente para a recuperação de suas
consciências perdidas, desfeitas no desbaratado ato de
destruírem a si próprios. Vale de lágrimas e dores das mais
pungentes da alma desencarnada, é também local onde se
pode presenciar os mais abnegados esforços daqueles que
sabem amar e socorrer em nome do Altíssimo.

25
Foram almas desse quilate que fundaram, ainda nos tempos
do Brasil colonial, a cidade de Portais do Vale.

Quando os limites da nação brasileira se delinearam na


geografia política da Terra, também nos espaços espirituais
que circundam o globo desenharam-se as suas fronteiras
culturais e linguísticas. Notoriamente é preciso considerar
que, no Mundo Espiritual limítrofe à crosta planetária, os
povos se distribuem em nações semelhantes às da Terra, e
continuam jungidos pelas mesmas afinidades de costumes e
idiomas que os unem durante o estágio na carne,
delimitando uma região de atuação espiritual denominada
“Espaço das Nações”. Aí estagia além-túmulo, a grande
massa de desencarnados à espera do momento precioso de
retorno à carne. Somente em planos superiores, habitados
por espíritos que já ultrapassaram as necessidades de
comunicação verbal e as distinções culturais, é que as
fronteiras das nações se rompem, dando lugar a uma só
comunidade. Estamos, no entanto, muito distanciados
dessas luminares esferas, pois ainda nos apresentamos,
relacionamos e nos comunicamos da mesma forma como o
fazíamos na Terra.

Ao mesmo tempo em que se formava a nação brasileira nos


espaços espirituais, desenhavam-se também as suas
regiões de sombras, ocupadas por aqueles que insistem no
exercício da maldade sem lindes, a fim de colherem as
dores e os lamentos semeados. Nesta época estabeleceu-se
o Vale dos Suicidas como a região que congrega almas em
sofrimentos expiatórios, originários da louca desventura da
autodestruição. A matéria extrafísica é entretecida de
substância muito mais maleável às emanações mentais dos
seres que a habitam, e paulatinamente o ambiente se
amolda às suas características psíquicas predominantes. Por
isso, o Vale dos Suicidas, adaptando-se progressivamente,
formou precipícios, charcos e cavernas em perfeita
correspondência às emissões mentais e às necessidades de
seus protagonistas. É da lei que o homem colha exatamente
o que semeia, pois do contrário o progresso não se faria, se
a vida lhe conferisse sempre confortos imerecidos. Todas as
nações do Mundo dos Espíritos tem assim, os seus Vales de
dores em tudo similares ao nosso.

A maioria dos exilados do Vale ali permanecem por décadas,


aguardando a bênção da reencarnação, comumente a única
porta de acesso para a libertação de suas aflições. Muitos
dormem na letargia profunda, enquanto outros vivenciam
pesadelos intermináveis e angustiosos. Poucos se sentem
vivos, mas não compreendem seus tormentos, guardando
no organismo

26

perispiritual as dores dos últimos instantes de vida e os


estigmas das agressões que infligiram ao próprio corpo.
Suas agonias são inenarráveis, de modo que aqui
encontramos os maiores dramas humanos e os mais
pungentes tormentos a que pode se resvalar o espírito em
transito na evolução. Grande e imenso abismo de dores,
onde aquele que caiu na desgraça, vítima de si mesmo,
lamenta e chora a maior das desditas humanas: o haver
negado a vida, o dom mais precioso que herdamos do
Criador.

Abnegados monges portugueses desencarnados no início da


formação do Vale dos Suicidas, imbuídos do sagrado
propósito de amparar as infelizes almas que se ajuntavam
nestas paragens de dores, fundaram Portais do Vale, uma
colônia dedicada à tarefa de socorro, sob a égide do
Cordeiro. Seus grandes portões, limitando a sua entrada,
conferiram-lhe logo o seu conhecido nome. Nesse local
residem almas nobres, possuídas de imensa dedicação ao
sofrimento humano. Almas que poderiam estar desfrutando
ambientes espirituais felizes, permanecem suportando as
tristes e pesadas vibrações que daí promanam. Grande
parte de seus habitantes no entanto, é formada entre
aqueles que como eu, são recuperados do Vale e se
reintegram nas atividades da vida espiritual como
colaboradores, ajudando os que ficam e os que chegam
constantemente nesse fosso de lágrimas. Assim, nada
fazemos de mais e apenas devolvemos à colônia e à vida o
mesmo que recebemos. E isso faz a nossa felicidade.
27
2
capítulo

OVOIDIZAÇÃO

“O períspirito se dilata ou se contrai.”

Al an Kardec – O Livro dos Médiuns, item 56

Naquela manhã de intensos trabalhos de assistência aos


recém socorridos do Vale, fora convocado com urgência ao
serviço, de maneira que mal tive tempo de adiar algumas
obrigações rotineiras, e me embrenhei mais uma vez nas
Cavernas do Sono. Eu as conhecia muito bem, pois nela
servira não somente como Caravaneiro das Trevas, como
fora também um de seus hóspedes delinquentes por
aflitivos anos. Já não era no entanto, membro ativo das
caravanas de busca, e somente era requisitado em ocasiões
especiais. Exercera atividades de atendente médico por
muito tempo, pois fora profissional da área e ainda podia
fazer jus a tal título em Portais do Vale, embora
desmerecesse essa qualificação. Os enfermos resgatados do
Vale necessitam de cuidados prementes, muito semelhantes
à rotina da medicina terrena, e pelas habilidades exercidas
na vida, acha-se um facultativo em melhores condições de
desempenhá-las do que outros. As graves lesões das almas
dos suicidas refletem-se em seus organismos espirituais,
apresentando-se comumente como é de se esperar, em
frangalhos. Requerem curativos, suturas, e às vezes
verdadeiras intervenções cirúrgicas, por mais impróprio que
isso possa parecer ao entendimento dos encarnados. Fora
desse modo, convocado para préstimos médicos assim que
me vi em condições de reassumir o pleno domínio sobre
mim mesmo, pois quando encarnado, assistira os
dilacerados da guerra, e habituara-me à manipulação dos
corpos mutilados. Depois de muito trabalho e estudos, no
decorrer de largos anos despertara em mim o interesse pela
ovoidização, pois me intrigava e condoía-me sobremaneira
assistir a esta bizarra e grave disformia, própria do mundo
espiritual, tão diferente de tudo que se conhece na Terra,
em prol da qual pouco se pode fazer. Passei assim, a
atender especialmente àqueles suicidas ameaçados por
essa

28

penosa patologia da alma, atuando sobretudo na sua


prevenção.

A ovoidização é uma das mais pungentes enfermidades que


pode acometer o espírito depois da morte. Consiste na
perda da consciência ativa, quando o eu consciente
desmorona-se completamente, em decorrência de atrozes e
insuportáveis sofrimentos, voltando-se sobre si mesmo,
anulando-se e perdendo todo o contato com a realidade. A
atividade consciente da alma entra em letargia, refugiando-
se nas camadas do subconsciente.
O pensamento contínuo se fragmenta, perdendo seu fio de
condução, e a estrutura perispiritual se desfigura
completamente, desfazendo sua natural conformação
humana, adquirindo o formato aproximado de um ovo, cujas
dimensões se aproximam de um crânio infantil. O processo
é em tudo semelhante ao das bactérias que se encistam
diante de condições adversas de vida, aguardando novas
oportunidades para retornarem à atividade normal. A
ovoidização é processo incurável no Plano Espiritual, sendo
uma das mais graves enfermidades de nosso mundo, e
somente pode ser revertido em reencarnações expiatórias,
quando o espírito reencontra-se com novo ambiente de
manifestação e pode refazer o metabolismo do seu
consciente.

Várias reencarnações porém, se consomem em tentativas


frustradas, de modo que a perda evolutiva é imensa para
estes infelizes seres. Muitos regridem a condições tão
primárias da vida humana, que necessitam reencarnar entre
povos primitivos, a fim de que a rudeza dos organismos
ainda involuídos, possam suportar-lhes a grave patologia,
sem se desfazerem em malformações congênitas(Defeitos
anatômicos na formação dos embriões) incompatíveis com a
biologia humana. Por isso, existe em Portais do Vale, um
departamento de serviços que se empenha em estudar e
tratar preventivamente a ovoidização, onde eu situava
naquela época os meus singelos esforços de serviços e
pesquisas.

Os suicidas que dormem nas Cavernas do Sono, são os


candidatos naturais à ovoidização. Permanecem em sono
reparador, em baixíssima atividade consciencial, por anos a
fio.
Ao iniciarem no entanto, o despertamento, a rápida
percepção da amarga realidade que lhes assedia, pode
deflagrar de imediato, mediante reflexo de defesa, a
retirada apressada para camadas ainda mais profundas do
inconsciente inferior. Esse reflexo não somente inibe
totalmente o despertar, como retrai o metabolismo mental,
motivado por novo impulso de contração, estabelecendo-se
a ovoidização de forma incondicional. Por isso, quando o
serviço de vigilância de nossa colônia identifica almas

29

em tais condições, com indícios de ovoidização, somos


convocados em regime de urgência. Neste instante ainda
podemos atuar, antes que o suicida deflagre a contração do

“eu”, tornando o processo tardio demais para ser revertido


em nosso mundo.

O suicídio é possível também no Plano doo Espírito, e não


somente na carne. Quando encarnado, pode o ser danificar
sua veste orgânica de tal modo a torna-la incompatível com
a vida na matéria. Na Esfera Espiritual no entanto, o
períspirito possui mecanismos regeneradores muito mais
eficazes, de modo que destruí-lo por danos físicos é
praticamente impossível. Mediante a contração da atividade
consciente, no entanto, é permitido ao ser continuar
negando a sua existência, fugindo de si mesmo.

Desta forma, podemos considerar de fato a contração


ovoidal como um autocídio espiritual. Como se vê, temos
também nossos suicidas. Suicídio que, naturalmente,
pressupõe mera tentativa de fuga da realidade que envolve
o espírito depois do túmulo, e não a destituição da
individualidade, pois tal não é possível no plano em que nos
projetamos.

As causas do encistamento da alma são as mesmas que


motivam o autoextermínio na carne: o desespero diante de
sofrimentos intoleráveis, somados à falta de preparo para a
existência no Plano Espiritual. Sofrimentos, a bem da
verdade, aparentemente intoleráveis, pois a sabedoria das
leis divinas não nos proporciona nunca dores que
sobrepassem nossa capacidade de suportá-las. Se parecem
aniquilar-nos, é porque nossa revolta diante delas é
incomensurável e indevida. O mais forte indutor de tais
barbaridades no entanto, está na falta de preparo para a
vida espiritual, sendo o materialismo o seu mais poderoso
protagonista. Materialismo que se desenvolve diante do
enfraquecimento do pensamento religioso do homem
moderno, desgastado na ideação de fórmulas mentais
arcaicas, não lhe proporcionando mais subsídios para a
crença no espírito. Os apelos de um ser que aprendeu a
raciocinar e a crer na razão, não podem mais ser satisfeitos
por uma fé cega que macula o conhecimento, genuína
conquista da ciência. Como se vê, urge lutarmos contra tal
situação a fim de que a penúria do espírito seja desterrada
do Planeta e banidos os riscos do mergulho na
inconsciência. Não destituindo as conquistas modernas que
representam valores reais e não podem ser questionadas,
mas renovando o pensamento religioso do homem terreno,
para que seu frio racionalismo não sufoque a alma que
anseia pelos genuínos bens da eternidade. Semeemos
novamente as verdades

30
que consolam, verdades que nos foram reveladas desde
que aprendemos a pensar, mas que acabaram esquecidas e
que precisam ser relembradas e reestruturadas,
compatibilizando-se com o nosso avanço intelectual. Por
isso a implantação do Espiritismo na Terra, protagonizando a
fé alicerçada na razão, pode ser vista como uma das
maiores vitórias do Plano Espiritual Superior na atualidade.

Os ovóides, espíritos em fuga de si mesmos, como se pode


deduzir,

aumentam

assustadoramente

nos

dias

atuais.

Permanecem espalhados pelo Vale dos inconscientes,


atados a rochas ou troncos de árvores, pois podem segregar
substância pegajosa que os fixam a qualquer superfície. No
entanto, preferencialmente aderem-se a outros seres vivos,
encarnados ou não. Tristemente temos que considerar que o
ovóide se torna, na verdade, um parasita. Como todo ser
vivo, seu metabolismo embora baixíssimo devido às suas
reduzidas necessidades, precisa da absorção de seivas
vitais para a sua sobrevivência. Não dispondo de meios para
produzi-las, a manutenção de sua exígua vitalidade
somente pode ser levada a efeito mediante a aquisição de
recursos vitais externos, provenientes de outros seres.
A anatomia e a fisiologia dos ovóides adquirem assim todas
as características próprias dos parasitas da Terra,
especializados na assimilação e metabolismo de forças
vitais roubadas de outros seres vivos. Embora qualquer tipo
de energia vital possa servir-lhes para este fim, aquelas que
melhor se adaptam às suas necessidades e para as quais
eles se especializaram são as energias do psiquismo. Por
isso, o hospedeiro natural do ovóide é a mente humana.
Devido a esta característica, os ovóides comumente são
colhidos por espíritos dedicados ao mal, que os utilizam
como instrumentos de torturas humanas. Eles podem atá-

los aos cérebros de inditosos obsediados, minando suas


forças e deteriorando suas resistências psíquicas através do
escoamento de suas forças mentais. Induzem assim, não
somente a depressões, mas à demência e à loucura,
desequilíbrios de difícil remissão, tanto na carne quanto no
mundo espiritual. Sendo os ovóides joguetes nas mãos
desses infelizes, natural que este seja outro motivo para
lhes evitar a qualquer custo, a proliferação no Vale dos
Suicidas.

Muitos poderão se perguntar por que a Lei de Deus, que é


sobretudo bondade, permite a existência desse estranho
parasitismo, infectando a intimidade consciencial de
espíritos de consideráveis conquistas evolutivas, deixando-
os expostos a esta cruel e aparentemente injusta
espoliação. Podemos apenas

31

responder que tal regime de desamor é o mesmo que


impera no mundo da carne, com sua dura realidade, onde o
parasitismo subsiste como norma de vida entre criaturas de
diferenciados níveis evolutivos. Seres aparentemente
involuídos, dotados de hábeis e intrigantes mecanismos de
exploração de recursos vitais, subjugam hospedeiros
chamados naturais, aos seus caprichos e egoísticas
necessidades de subsistência. Regime de vida que nos faz
questionar se tal comportamento é de fato natural e
representa apenas a obediência à vontade de Deus. Se
nosso Pai é amor, por que a vida em suas primitivas bases
se apóia neste consórcio de iníquas explorações? Como
nada no âmbito da criação pode estar fora do domínio de
Sua Lei, temos que encontrar razões que justifiquem esse
estranho comportamento.

Lucubramos que todos, sem exceção, mantemos um


ambiente de disputas pela supremacia da vida, e ainda
somos parasitas de seres que nos sucedem na jornada
evolutiva, pois nos damos à exploração de seus recursos
vitais, com o sacrifício mesmo de suas vidas, quando na
carne. Justo é assim estarmos por nossa vez, sujeitos ao
roubo exploratório de nossos valores orgânicos por outros
seres, mesmo sendo menos evoluídos do que nós. Porém,
somente o afastamento da bondade pode justificar tais
aparentes barbaridades no seio de uma criação que é feita
essencialmente de amor. Tais inquirições no entanto, não
podem aqui ser respondidas e as deixamos como
suscitantes de questionamentos das razões do viver e do
evoluir.

A ovoidização contudo, não é uma adulteração das leis


perispirituais, pois está subordinada aos mesmos princípios
de miniaturização ou restringimento, fenômeno a que está
submetido o espírito no processo reencarnatório, quando a
tessitura plasmática do períspirito, antecedendo nova
descida à carne, sofre uma contração involutiva, retornando
aos patamares da evolução biológica, para abraçar um novo
óvulo fecundado e elevá-lo rapidamente, à condição das
últimas conquistas no campo da vida carnal, através do
milagre do desenvolvimento embrionário. Este impulso de
contração é o mesmo que deposita a potência de um
carvalho em uma semente, fazendo-a explodir depois, num
anseio incontido de crescimento. O períspirito,
ricocheteando suas forças contraídas, atira-se ao rápido
refazimento, expandindo-se e confeccionando seu futuro
corpo na recapitulação embrionária, quando em apenas
nove meses de gestação, refaz todas as etapas por que já
passou. Sem esta precedente contração involutiva não se
veria tal explosão evolutiva que lhe surge como uma reação
imediata. É assim que

32

temos aprendido que o períspirito está sujeito, como todo


fenômeno da criação, às forças de contração e de expansão.
A ovoidização portanto, em última análise, é apenas uma
contração ou miniaturização patológica, pois ocorre diante
do momento reencarnatório. Não encontrando o
reservatório uterino, meio indutor, mantenedor e protetor
de tal processo de contração, estaciona-se na fase ovóide
deste percurso, restringindo sua consciência às etapas mais
elementares da vida biológica.

Alguns observadores do nosso plano referem-se ao ovóide


como sendo a segunda morte do espírito. Fenômeno este
muito pouco divulgado na literatura dos espíritos, dirigida
aos homens, por tratar-se de tema de natureza ainda muito
complexa e que poderia causar maiores dúvidas e
questionamentos entre os pesquisadores da Terra. De fato,
a morte ovoidal pode ser considerada a segunda morte,
porém para o perfeito esclarecimento do estudioso,
devemos compreender que se trata apenas de um dos
patamares onde pode estacionar a contração perispiritual. O
ovóide ainda traz um metabolismo vital, embora bastante
reduzido, mostrando ademais, resíduos de atividade
consciencial, sendo portanto apenas um dos limiares em
que estagia o ser rumo à segunda morte. Na realidade, esta
é o resultado de aprofundamento em nível ainda mais
inferior da condensação involutiva, acometendo espíritos
com alto quilate de rebeldia e maldade, levando-os à
completa estagnação da consciência, com a total perda da
atividade vital, fenômeno raríssimo e conhecido também
como a petrificação espiritual. Isto, entretanto, pressupõe
apenas o limiar do mergulho do ser no abismo da
inconsciência e não a anulação de sua individualidade.

Naturalmente, trabalhando nos ambientes espirituais onde


se recolhem as almas embaladas por estes impulsos
autodestrutivos iniciados na carne, na ação suicida,
achávamo-nos envolvidos por esta exótica e triste patologia
do espírito e a ela dedicávamos nossos estudos, abordando-
a em toda sua dura realidade, a fim de encontrar meios
eficazes de auxílio, interferindo como possível e como nos
permite o Senhor da Vida.

À guisa de esclarecimentos para o estudioso, é preciso


considerar que, além da exaltação do impulso contrativo no
suicídio, o períspirito está sujeito ainda à alteração do
movimento contrário, ou seja, a expansão inadequada. A
hipertrofia perispiritual é patologia que guarda igualmente a
sua gravidade, sendo também identificada e estudada no
plano do espírito em

33

que nos achamos. As forças perispirituais hipertônicas se


responsabilizam pelos crescimentos celulares exagerados,
quais os tumores de qualquer natureza e a hiperatividade
de qualquer função orgânica identificada pela medicina
terrena. Guardam sua origem nos estímulos do psiquismo
doentio que se apoiam no exagero do “eu”, como os
sentimentos exaltados de egoísmo e egolatria, vícios da
alma, a que todos, sem exceção, estamos afeitos neste
planeta. Nos capítulos subsequentes tornaremos ao assunto
com mais exatidão a fim de se completar o estudo proposto.
(Nos capítulos 6 e 20 o assunto iniciado aqui encontrará o
seu desenvolvimento mais abrangente)
34
3
capítulo

HEITOR, O NOVO AMIGO

“Bendito aquele que vem em nome do Senhor.”

Salmos, 118:35

A direção dos nossos trabalhos, identificando em Alberto, o


suicida que despertava nas Cavernas do Sono, um risco
iminente de ovoidização, convocara-nos para a atuação sem
demora.

Olegário, o meu dileto companheiro de serviços, aguardava-


me para a partida imediata. Tínhamos pouco tempo para os
procedimentos habituais necessários à jornada e devíamos
apresarmo-nos.

Não pensem os amigos que podemos penetrar nas Trevas


sem o devido preparo. Quais os mergulhadores da Terra, é
necessário precavermo-nos com uma série de cuidados
especiais.
Não que devêssemos nos meter em escafandros especiais
próprios para as águas, mas para se visitar as Cavernas do
Vale, é preciso que se tomem algumas precauções se não
se é um espírito superior. Os espíritos de grandes
conquistas evolutivas podem adentrar nestes ambientes
ocultando suas luzes para não serem notados, e com seus
avançados padrões vibratórios, de modo geral, são imunes
aos fluidos do ambiente. Nós, no entanto, assim como a
imensa maioria dos trabalhadores de Portais do Vale,
espíritos de medianas aquisições morais, não podemos
perambular pelo Vale sem adotar cautelas que nos protejam
das nocivas correntes vibratórias e nos previnam do assédio
das entidades das Trevas. A absorção de emanações
mentais maléficas dessas plagas sombrias, pode envenenar
nossa constituição perispiritual, perturbando-nos com o
chamado “mal do caminhante das Trevas”, que nos lembra
o “mal dos navegantes”, pois ambos se manifestam com
sintomas muito semelhantes, como tonturas e náuseas
incontroláveis. Certo é que, como não estamos imantados
por dano de consciência às redes

35

do mal que aí dominam, não precisamos temer o ataque


direto de entidades das Sombras. No entanto, não somos de
todo imunes contra o cerco desses espíritos, e podemos
sofrer ameaças e mesmo ser expulsos de seus domínios,
como muitas vezes acontece. Nossa sintonia com o
ambiente não é completa e, destarte, não nos libertamos de
todo do mal, pois somos seres ainda em processo de
melhoria e não conseguimos exercer a bondade em toda a
plenitude de que gostaríamos.
Faz-se imprescindível o completo controle das emoções para
se lidar adequadamente com os espíritos mal intencionados
ou travessos que perambulam pelo Vale. Eles estão em seus
domínios e o trabalhador deve saber respeitar-lhes os
limites. Ele deve estar preparado para enfrentar situações
conflitantes e saber abdicar-se de seus interesses
imediatos, pois o ingresso em disputas impróprias e
indignas pode desequilibrá-lo facilmente, indispondo-o à
tarefa e deixando-o à mercê das agressões do meio. Por
isso, o tarefeiro que não consegue dominar os próprios
impulsos diante da maldade alheia e da injustiça, não está
preparado para esta tarefa. A intermediação de modo
inconveniente nas relações entre vítima e algoz deve
obedecer, não a um partidarismo próprio, mas a um roteiro
determinado pelos orientadores, que conhecem as
motivações de tais contendas e as reais necessidades de
cada um. Os verdugos do momento são vítimas do passado,
e tão meritórios de socorro quanto aqueles que são
maltratados. Assim, vestir-se de humildade, controlar com
eficiência a raiva e a indignação, e eximir-se do desejo de
fazer justiça com as próprias mãos são imposições
indispensáveis ao servidor. A arrogância diante dos
sofredores é igualmente atitude condenável que pode
deixar o seareiro em situação embaraçosa.

A bondade, a humildade, a capacidade de perdoar e a


abnegação devem ser as únicas armas ao dispor daquele
que deseja servir com Jesus e atuar com proveito para
todos.

Necessário ainda se faz esclarecer que o tarefeiro, para


atuar com eficiência no resgate de entidades sofredoras,
deve fazer-se visível ao meio a fim de interagir em seu
mesmo nível de manifestação. Os espíritos recuperados
daquelas plagas, transformados em obreiros do bem pela
boa vontade de servir, continuam sendo visíveis aos
companheiros da retaguarda por tempo variado, penetrando
nestes sítios sem maiores inconvenientes. Estes, entretanto,
incentivados à reforma íntima e pela constante dedicação
ao penoso trabalho, terminam por se desvencilhar de parte
de suas inferioridades, tornando-se paulatinamente,
imperceptíveis ao baixo ambiente em que

36

servem. Daí a necessidade de promoverem a condensação


perispiritual cada vez que retornam a ele. Esta condensação
é feita mediante a absorção dos eflúvios atmosféricos do
meio pela respiração, mas o processo requer adestramento
para que não se transforme em prejuízos e incômodos para
o trabalhador, pois se não for subordinado a um controle,
pode ultrapassar determinado limiar de tolerância,
desencadeando nele os mesmos sintomas do

“mal do caminhante das Trevas”, indispondo-o à viagem.

Contudo, chega um ponto que o servidor, pelo esforço


próprio, atinge um nível evolutivo tal em que a condensação
se lhe torna dificultosa e até mesmo impossibilitada. É
assim preciso que um recrutamento constante de novos
elementos, dispostos à penosa tarefa, renove
frequentemente o acervo de caravaneiros das Sombras.

Além de uma primorosa conduta íntima, requer-se ainda do


tarefeiro uma apresentação pessoal discreta e simples, de
modo a não chamar atenção sobre si. Cores alegres e vivas
não são recomendadas, naturalmente. Para aqueles
entretanto, que se sentem incomodados com a ideia de que
os desencarnados usam vestes, somente podemos
asseverar que a vida e as necessidades do mundo
extrafísico não diferem sobremaneira daquelas encontradas
na Terra.

Outro imperativo para o mergulho nas Trevas é o pleno


controle do meio. Como o trabalhador se acha adensado,
sua presença torna-se perceptível não somente aos
sofredores, mas também aos seres malignos que as
habitam, quase sempre dispostos a recebe-los com
animosidades. A simples visão destas entidades,
comumente transfiguradas em formas monstruosas em
franca exibição de agressividade, pode paralisar o servidor
bem intencionado, porém não adestrado à tarefa,
aniquilando-lhe toda a capacidade de serviço e criando
dificuldades para os demais membros da equipe. Por isso
desenvolvem-se em Portais do Vale longas sessões de
treinos especializados com o propósito de dominar o medo
com eficiência. É preciso estar habituado à visão das mais
terríveis mazelas do homem e suas desfigurações
perispirituais sem se deixar aniquilar pelo pavor. Como
todos já passamos pelas Trevas, não é difícil ao encarnado,
imaginar as horripilantes figuras e as lúgubres paisagens
que podem nos paralisar de terror pela sua simples visão.

Não obstante a boa vontade de servir nas Sombras, é


necessário ainda estar habilitado a lidar com suas ameaças.

Ameaças que são mais ilusórias do que reais e que mais


despertam pavor do que realmente significam algum dano à

37
nossa integridade. Se não trazemos a consciência ultrajada
pela prática de grandes males, não guardamos liames com
as entidades que se comprazem com o exercício de
crueldades.

Espíritos que são muito mais infelizes e necessitados do que


realmente perigosos, podem inibir e assustar aqueles que
se lhes mostram suscetíveis, atividade na qual tiram
proveito como única fonte de suas parcas alegrias.
Assemelham-se a adolescentes imaturos e inconsequentes,
que se deleitam em perturbar a ordem estabelecida pelo
simples prazer em dar vazão aos seus instintos rebeldes.

Por todas estas razões, a maioria das caravanas de socorro


é composta de espíritos recém resgatados das Sombras, o
que facilita em muito, não somente suas ambições
vibratórias como também o controle do medo, pois se
acham habituados às suas imagens desagradáveis e não se
assustam facilmente com elas.

A urgência do socorro necessário exigia uma equipe já


treinada, e por isso fomos convocados. Apesar de nossas
parcas condições espirituais, Olegário e eu achávamo-nos
preparados para o serviço, ciente de todos os riscos e
necessidades da empreitada, em decorrência de muitos
anos dedicados a esse tipo de atividade. Contaríamos com a
presença de Adelaide, uma companheira ainda pouco
experiente que nos vinha acompanhando, em obediência à
direção de nossa colônia, a fim de adestrar-se na tarefa
socorrista, sendo já nossa conhecida.
Ao chegarmos ao Posto Avançado, já estava ela
aguardando-nos para a partida imediata. Dois guardas de
Portais que a acompanhavam, zelosos, despediram-se de
imediato ao chegarmos, em busca de seus afazeres. Faziam-
lhe companhia enquanto estava sozinha, cumprindo apenas
com as gentilezas de nossa colônia, pois ali não havia
ameaça alguma à sua pessoa.

Neste dia no entanto, contaríamos com a participação de


um novo amigo, e como sua presença fora autorizada pelos
nossos dirigentes, sabíamos tratar-se de um espírito
experiente neste tipo de serviço. Aguardávamo-lo para a
partida.

O Posto Avançado é o verdadeiro limite entre nossa colônia


e as Trevas. Um grande muro nos separa do ambiente
exterior, lembrando-nos as construções medievais. Ervas
robustas e ressequidas lhe sobem pelas pedras, espinhosas
e desprovidas de flores, emprestando às suas velhas
paredes uma beleza rude. No alto, vislumbra-se um céu de
chumbo, com suas nuvens lúridas e ameaçadoras,
emoldurando permanentemente a extensão do soturno
Vale, onde o sol jamais fulgura com seus raios de vida.

38

Enfim chegava Heitor, a quem esperávamos para a prece da


partida.
-- A paz esteja convosco, irmãos -- saudou-nos com
discrição o novo amigo. – Só posso pedir aos Céus que os
recompensem por esta hora de serviços em prol dos que
sofrem.

Sou Heitor e apresento-me como o mais humilde dos seus


companheiros. Trago do Alto a recomendação para resgatar
um espírito amigo que jaz neste abrigo de dores. Sua hora
chegou.

Portanto, partamos sem demora.

Heitor irradiava tal aura de simpatia que não tínhamos a


menor dúvida de que se tratava de um espírito de escol,
vindo de esferas mais elevadas do Plano Espiritual. Uma
barba grisalha lhe emoldurava a feição de bondade e
sabedoria, exalando paz e convidando-nos à entrega
confiante e imediata ao seu afeto.

Suas vestes e sua aura nos diziam tratar-se de uma alma


religiosa, talvez algum monge, amadurecido na dedicação
ao próximo e na renúncia de si mesmo. Se não divisávamos
sua luz, certamente era porque sua humildade lhe inibira o
fulgor a fim de não nos constranger e não despertar a
atenção dos infelizes seres de nossos escuros caminhos. Há
muito não presenciávamos no Vale um espírito de tão
elevada estirpe a nos acompanhar, de modo que fomos
imediatamente invadidos por confortante alegria e indizível
sentimento de paz.

Convocando a imagem de Jesus para nos abrigar as


intenções e exorando a presença divina, proferia o amigo:
-- Recordemos a palavra do Mestre que, na parábola da
ovelha desgarrada nos dizia: “Qual de vós é o homem que,
possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa as
noventa e nove no deserto e não vai atrás da perdida até
que a encontre? E achando-a, põe-na sobre os ombros,
cheio de júbilo e, chegando em casa, reúne os amigos e
vizinhos e lhes diz: Alegrai-vos comigo porque achei a
minha ovelha que se havia perdido. Digo-vos que assim
haverá maior alegria no Céu por um pecador que se
arrepende, do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento”. É verdade, meus amigos, o
céu não é lugar para se desfrutar de felicidades solitárias,
por isso o pastor que perdeu a sua ovelha é tão infeliz
quanto ela mesma, e não descansará enquanto não a
recuperar.

Em seguida, fechando os olhos, proferiu uma prece sem


palavras. Sentimos seu tórax inflamar-se suavemente e um
facho de luz, partindo das alturas caiu sobre nós,
inundando-nos de inexprimível contentamento. Tive que
conter o meu impulso de

39

sorrir, tal o influxo de energias que sentia percorrer-me o


íntimo e a felicidade que de inopino, invadiu-me a alma.

Sem mais preâmbulos iniciamos a jornada rumo aos portões


que nos separavam do Vale, seguindo os passos decididos
de Heitor, que parecia conhecer muito bem o caminho.
Nossa tarefa demandava urgência e não convinha delongar
o nosso tempo com outras considerações que podiam ser
adiados. Neste percurso no entanto, ainda podíamos
entreter alguma conversação e aproveitamos para nos
conhecer melhor, estreitando os laços que nos uniam no
serviço. Essa era uma oportunidade que não podíamos
dispensar, haurindo os benefícios que a tarefa nos ensejava.

Heitor informava-nos, percebendo de imediato a primeira


impressão que nos causara, que minha intuição era
acertada. Ele se achava ligado a ordem de natureza
religiosa, pois se dedicara ao sacerdócio em suas últimas
encarnações. Vivia no Mosteiro dos Templários de Cristo,
uma colônia de planos superiores, conhecida apenas por
Templários, onde dava continuidade à sua formação
monástica. Servira no entanto, nas caravanas de socorro do
Vale e por isso conhecia muito bem os seus caminhos.

-- Trabalhando na Ordem dos Servos de Jesus por muitas


décadas, pude exercitar o verdadeiro amor cristão e dar
seguimento ao meu aprendizado no socorro aos
necessitados –

agregou Heitor. – Aqui o Senhor pode melhor nos ensinar a


servir, pois na tarefa de resgate temos que renunciar ao
nosso conforto e desprender-nos de antigas comodidades,
forjando nossas almas no real espírito do servo cristão.
Depois, sentindo a necessidade de aprender para melhor
compreender a natureza humana, situei meus esforços em
Templários, onde pela graça do Senhor, venho dilapidando a
rudeza de minha mente, através do beneplácito do estudo e
da meditação. Ouvi, no entanto, os apelos de um espírito
amigo, conhecido de longas eras e não pude furtar-me ao
seu socorro, pois senti nele a ameaça de irremediável
mergulho na inconsciência. Por isso, solicitei de Portais do
Vale a inestimável ajuda de vocês. O socorro todavia, como
sabem, é urgente.

Heitor expressava em seu olhar tal ternura e influxo de


bondade, que por um momento, nasceu-me na alma o
ímpeto de atirar-me aos seus pés. Percebendo meus
sentimentos contanto, o nobre amigo desviou seus olhos e,
com simplicidade, senti seu pensamento desfazer em mim
qualquer atitude de reverência.

-- Fui médico na Terra – disse por minha vez, ainda evitando-


lhe o olhar percuciente que, sem dúvida, tudo já sabia pela
simples incursão em nosso campo mental. – Estou aqui com
o

40

interesse não só de aprender a servir, mas também para


conhecer e estudar o sofrimento humano, e dessa forma
adquirir melhores condições de ajudar sem atrapalhar.
Caracterizou-me a vida o grande apego às riquezas da
matéria e não pude evadir-me do desespero ao me ver
privado de todos os bens. Atirei-me na bebida até configurar
o suicídio, que me trouxe para este Vale lúgubre. Aqui
permaneci por muitos anos, consumindo minha
inferioridade nas Cavernas do Sono até ser socorrido pelos
samaritanos de Portais do Vale. Como se vê, não faço nada
de mais a não ser dar minha cota de pagamento a tudo que
recebi dos amigos que hoje compõem praticamente a minha
família.

Depois de muito tempo fui elevado à condição de médico


socorrista, título para o qual não guardo méritos, mas trato
de desempenhar o melhor que posso.

E indicando Olegário, continuei:

-- Este é meu fiel companheiro de incursões no Vale. Foi


militar quando encarnado e precisa adestrar-se no trato com
os delinquentes, pois exercera sua atividade sem a
necessária benevolência para com os malfeitores. Também
foi socorrido no Vale, através de nossa modesta ajuda, onde
uma grande decepção amorosa o conduziu ao auto
aniquilamento.

Aproveitamos a sua aparência robusta de soldado para


intimidar os delinquentes que nos ameaçam nas incursões
nestes sombrios caminhos.

-- Ademais, alimentei o ódio nas guerras e preciso purificar


minha alma – acrescentou Olegário, com sinceridade nas
palavras.

Realmente,

Olegário
era

prestimoso

companheiro,

indispensável em minhas excursões pelo vale. Fora


designado para servir ao meu lado pela direção de Portais
do Vale, por termos tecido sincera amizade ao longo de
alguns anos em que me empenhara no seu reequilíbrio.
Dedicava-me tamanha amizade que suplantava minha
capacidade de merecê-la, sendo que não fizera por ele mais
do que minha sincera obrigação.

Embora guardasse a distinção e o respeito, impostos pela


disciplina militar, na verdade servia-me como um
enfermeiro, além de encarregar-se de nossa defesa quando
necessária. Sua presença assegurava-nos confiança e
tranquilidade ao serviço.

Caminhando ao nosso lado, silente e humilde, Adelaide


apenas sorria e nos fitava com sua expressão meiga,
despertando de imediato o interesse de Heitor, que
suscitava com o olhar inquiridor, o que justificava aquela
delicada presença feminina em nossa pequena caravana.
Adiantei-me então a apresenta-la:

41

-- Aqui temos Adelaide, nossa aprendiz. É a segunda vez


que excursiona nas cavernas, mas sua serenidade nos fala
de um espírito seguro e confiante nas diretrizes do Alto.
Como o amigo pode perceber, sua alma emana bondade e
ternura, dispensando maiores apresentações.

-- Venho da Escola dos Samaritanos – prosseguiu Adelaide,


levemente intimidada pelas considerações que tecíamos a
seu respeito – e estou em tarefa de adestramento. Não
basta ter o desejo de servir, é preciso estar preparada para
o serviço, como todos sabem. Assim sendo, a melhor
maneira de se fixar o ensinamento é o exercício do trabalho,
sob a orientação de quem pode nos instruir. Quero observar
para aprender, mas também ajudar se possível, sem
importunar.

-- É uma alegria conhece-la, querida irmã – respondeu


Heitor. – A humildade de suas palavras traz imensa
sabedoria, por isso tenho a certeza de que seus objetivos
serão atingidos.

-- A irmã no entanto, é a única que não foi socorrida do Vale


e não traz em sua história o drama do auto extermínio –
apressei-me a considerar.

-- Desejei conhecer o Vale porque tive uma filha querida que


daqui foi socorrida. Eu não tinha na época, condições de
ajuda-la e não podia sequer visita-la, pois a simples
aproximação das vibrações destas plagas abissais me
paralisavam as forças, abalando-me a frágil organização
espiritual. Sentia-me desvalida e infeliz por nada poder
fazer e assim decidi empenhar-me no esforço de aprender a
servir a quem mais precisa. Compreendi com Jesus, que não
são os sãos que precisam de socorro, mas os doentes. E os
impuros dessas Trevas são as criaturas mais necessitadas
que já vi nas paisagens espirituais, onde viceja a dor.

Hoje já trago o espírito mais fortalecido e posso caminhar


por aqui sem que o horror me paralise. Quero conhecer de
perto os serviços socorristas e adestrar-me neles, como uma
maneira de recompensar a vida pelo muito que recebi,
através do amparo à minha filha.

-- Não convinha contudo, delongar mais nossas


interlocuções pois chegamos diante dos enormes portões
que nos permitiriam a entrada no Vale e, com exceção de
Olegário que já se achava devidamente ambientado pelas
suas incursões diárias, devíamos iniciar o adensamento
perispiritual sem demora. Já treinados nos procedimentos
habituais, começamos a alterar o ritmo respiratório a fim de
sorver a longos haustos, os fluidos reinantes. Adelaide,
ainda pouco experiente neste exercício, demandava maior
tempo a fim de promover a condensação

42

progressiva. Sustentávamos-lhe o braço, pois a cada


inspiração ela cambaleava, ainda um pouco nauseada,
porém já ciente dos procedimentos, não tardou para que
obtivesse os resultados esperados.
43
4
capítulo

RUMO ÀS CAVERNAS

“Não é da vontade de vosso Pai que está nos Céus que


venha a perecer um só destes pequeninos.”

Jesus – Mateus, 18:14

Nossa caravana se resumia de fato, a nós quatro, destarte


éramos o suficiente para o trabalho. Não iríamos aos confins
abismais e não tardaríamos mais do que um dia na
caminhada, de modo que não necessitávamos de recursos
indispensáveis às incursões nas regiões mais profundas do
Vale. As Cavernas do Sono ficam próximas e não demandam
maiores esforços para serem atingidas. Guardas de Portais
do Vale as protegem constantemente dos assaltos
frequentes dos mercantilistas das Trevas, que por ali sempre
perambulam à cata de ovóides perdidos. Nas mãos destes
delinquentes, representam mercadoria de barganha de
estimado valor entre os malignos, e por isso são muito
procurados. Se suspeitassem que transportávamos ovóides,
poderiam nos acuar, na tentativa de persuadir-nos a
abandoná-

los. Neste caso, os guardas, informados de nossa missão,


nos ajudariam a dissuadi-los de qualquer ataque à nossa
caravana. A presença de Heitor no entanto, com seu
elevado potencial espiritual, era mais do que o suficiente
para desestimular qualquer ameaça desses infelizes.

Ao sinal de Heitor, os guardas acionaram as roldanas que


movem os pesados portões, que rugindo melancolicamente,
entreabriram-se deixando-nos passar. Bem no alto,
divisamos a lanterna vermelha de localização, sempre
piscante qual farol costeiro, orientando a direção ao
viajante. Poucos passos no entanto, eram suficientes para
ocultá-la completamente de nossas vistas. Embora não
possa ser avistada em regiões mais distantes, este sinal
atrai a direção de aparelhos rastreadores, instrumentos
indispensáveis aos caminhantes inexperientes, que

44

ainda não conseguem se orientar pela percepção das


correntes mentais. Trazíamos também nosso rastreador, à
feição de bússola orientadora, embora não necessitássemos
dele, pois Olegário e eu frequentemente efetuávamos
incursões nestas áreas, onde exercíamos o socorro dos
ovóides e as conhecíamos muito bem.

Heitor trazia um mapa com a localização de Alberto, o


infeliz amigo que iríamos resgatar e deixamo-nos conduzir
por ele que mostrava segurança em sua orientação e não
necessitava de nossa singela ajuda. Rumando para as
Caravanas do Leste a passos decididos e firmes, descemos
uma das trilhas que corta o caminho para as Escarpas.
Devíamos evitar, propositadamente, o trajeto mais largo,
porém mais frequentado pelos errantes do Vale, a fim de
evadirmo-nos de encontros desagradáveis e
desnecessários. Afinal, se ali é o domínio dos atormentados,
é também o reino dos malignos e eles se acham
inteiramente no direito de o defenderem como se realmente
lhes fosse herdade particular, tratando-nos como invasores
de suas propriedades.

A paisagem progressivamente se transforma à medida que


descemos rumo aos grandes Abismos. A atmosfera se torna
pesada, opressiva, imprimindo-nos certa dificuldade na
respiração. Uma angústia, lembrando os pesares da morte
física, estreita-nos o coração. Um odor lamoso invade-nos as
narinas com desagradável impressão. Uma névoa fria e
úmida nos veste paulatinamente de sombras, esmaecendo
a já fraca luz solar. O

solo, pedregoso e irregular, cobre-se de uma umidade


lutulenta, escorregadia, irradiando um frio penetrante e
gélido. A escassa vegetação torna-se paulatinamente
definhada, retorcida e espinhosa, parecendo agredir o
visitante incauto. Troncos ressequidos, tortuosos, sem
folhas, traçam retoques lúgubres na paisagem,
emprestando-lhe um matiz de ruína e desolação.

Nuvens umbrosas e ameaçadoras rematam o sombrio


quadro, emoldurando-o de angustiosos presságios. Pedras
volumosas, cavadas de reentrâncias e saliências, mostrando
farpas pontiagudas, ameaçadoras, interrompem
frequentemente a trilha estreita e íngreme, obrigando-a a
curvas acentuadas.

Frequentemente a pequena estrada é entrecortada por


outras trilhas que dão em todos os sentidos, emprestando
ao visitante a impressão de estar penetrando verdadeiro
labirinto. Estas são as

“estradas de ninguém”, como são conhecidas aqui. Não


levam a lugar algum e por elas perambulam espíritos
verdadeiramente errantes, dementados, cujo único
passatempo consiste em caminhar incansavelmente por
elas, sem rumo, vagueando permanentemente em fuga de
si mesmos.

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Pouco se divisa ao longe, sendo necessária grande destreza


no sentido de orientação para não se extraviar por completo
nestas intrincadas veredas. E, realmente com frequência,
caravaneiros ainda inexperientes se perde, necessitando do
auxílio de tropas de busca, sempre de prontidão em nossa
colônia para este fim. O serviço no entanto, adestrou-nos na
orientação e por ali nos movíamos mesmo de olhos
fechados, pois percebíamos as correntes mentais e
podíamos segui-las com segurança quais animais de fino
olfato que, farejando as emanações trazidas pelos ventos,
podem se guiar para os sítios de seus interesses.

As formações rochosas, lembrando amálgamas vulcânicos


da crosta, parecem crescer como troncos, emprestando ao
ambiente uma atmosfera de exótico irrealismo. Embora
possam espantar neófitos estudiosos do espírito, temos que
afirmar que são estruturas calcárias e graníticas, quais as
do mundo físico. Muitos se surpreendem diante dessa
afirmativa, pois considerariam o Mundo Espiritual
confeccionado em substâncias fluídicas, leitosas, como
mantos diáfanos e não compreendem como seja possível
divisar aqui rochas tão pesadas e firmes quanto às da
matéria bruta. Pois saibamos de uma vez por todas, que o
mundo espiritual também é feito de substância urdida nas
mesmas bases atômicas do mundo físico. As duas matérias,
física e extrafísica, diferenciam-se apenas na íntima
condensação de seus elementos infra-atômicos, e ambas
são de idêntica origem e natureza, oriundas das mesmas
energias coaguladas que entretecem todo o sustentáculo do
universo dinâmico e material.

A atmosfera angustiante e o frio gélido reinam juntos com o


silêncio quase absoluto e ameaçador, entrecortado por
piados melancólicos e rugidos distantes, intimidadores,
avisando aos incautos que estão invadindo território alheio.
Uma impressão de ameaça paira no ar, sugerindo-nos que a
qualquer momento monstros horrendos podem nos atacar.
Se o caminhante não é experiente no exercício do
autocontrole, deixa-se facilmente dominar pelo pavor,
suscitado pelas vibrações do ambiente, capazes de paralisá-
lo por completo, atraindo as entidades das Sombras,
sempre atentas às emanações que o medo irradia.

Somente o pensamento firme nos propósitos superiores e a


certeza de que não pertencemos ao meio, nos reconfortam
e nos protegem. A presença de magnos espíritos como
Heitor nos confere serenidade e segurança, capacitando-nos
para os serviços com a calma e a confiança que demandam.
À medida que penetramos nas trevas mais densas,
podemos perceber formas animalescas esgueirando-se
sorrateiramente

46

entre as sombras ou passando ao léu por não perceber-nos


ou por não se verem atraídas pelos nossos eflúvios, em
nada condizentes com os seus interesses. Sintonizam-se
especialmente com o ódio, as emanações do pavor ou as
vibrações das grandes culpas como se pudessem ver essas
projeções mentais, tal a acuidade que desenvolveram em
percebê-las, de modo que se o transeunte não as exala, não
se deixa ameaçar por tais criaturas infelizes. As efluências
que carreiam propósitos superiores do bem exercem ainda
uma barreira natural, afastando esses seres pela simples
dissonância vibracional. Além desses monstros errantes e
solitários, encontram-se no Vale frequentemente, hordas de
espíritos malignos em busca de presas fáceis para seus
propósitos de dominação ou simplesmente para darem
vazão aos seus instintos agressivos. São aqueles que
realmente podem molestar-nos, perturbando-nos o trabalho.
Formam acampamentos provisórios, quais caçadores
nômades e se apresentam como antigos guerreiros e
bárbaros dos tempos medievais, munidos inclusive, de
armas semelhantes. Organizam-se em base a éticas
involuídas, próximas daquelas que imperam entre os
animais, onde os mais fortes preponderam sobre os mais
fracos, subjugando-os segundo seus interesses. Poderosos
chefes dominam largos territórios e comumente batalhas
selvagens são desencadeadas entre rivais por interesses
antagônicos ou disputas territoriais, formando um palco de
agressões e alucinações coletivas que o homem encarnado
dificilmente poderia imaginar existir. O Plano Espiritual
Superior, que orienta a evolução planetária, tolera esses
círculos de selvagerias, ciente das necessidades de
redenção da alma humana, cerceando-lhes os limites com
desvelo e amor, enquanto aguarda a urgente evangelização
do Orbe para que possam ser saneados e a maldade banida
definitivamente de nossas paisagens.

Ao atingirmos pequena clareira entre aas rochas pontudas,


Heitor estacou-se de pronto, solicitando um minuto de
concentração. Pressentia um bando de entidades mal
intencionadas aproximando-se sorrateiramente. Sem
dúvida, perceberam nossa presença e vinham ao nosso
encalço.

Naturalmente que nos achávamos providos de meios


naturais de defesa e os Senhores das Sombras não podiam
nos infligir sofrimentos. Mas o bom senso nos convidava a
evitar altercações desnecessárias. Assim, era melhor nos
ocultar a fim de passarmos despercebidos. Procuramos
então, por uma reentrância mais próxima nas rochas,
escondendo-nos bem ao fundo de uma pequena gruta, em
completa escuridão. Um forte odor de

47

putrefação de pronto agrediu-nos o olfato, repugnando-nos


os sentidos, exigindo-nos o exercício do autocontrole, para
não nos rechaçarmos espavoridos. Era imperioso
permanecer ali por breve período até que nos sentíssemos
seguros. Heitor, dando-se conta do fato e podendo divisar
na escuridão, afastou-se de nós como à procura de algo que
lhe atraía a atenção. Logo podíamos ouvir os ruídos dos
espíritos que se aproximavam com alarido. Gritos e uivos
ameaçadores indicavam suas disposições de ânimos nada
aprazíveis.

-- Não encontramos sinais dos santinhos podres. Vamos.


Não estão por aqui ou fugiram de medo. Os biltres do
Cordeiro sempre se acovardam – ouvimos um deles dizendo,
em meio à completa algazarra. – Temos mais o que fazer do
que ficar seguindo estes patifes. Retornemos.

Em breve momento a celeuma se dissipava ao longe e


podíamos prosseguir nossa jornada. Senti as vibrações dos
pensamentos de Adelaide recheados de receios, comuns
aos neófitos em seus primeiros confrontos com os seres das
Sombras.

Aconcheguei-a ao meu lado, a fim de apoiá-la em sua


infundada insegurança. Heitor, entretanto, chamava-nos a
atenção, solicitando-nos ajuda. Um desvalido sofredor jazia
no fundo da gruta e a caridade nos suscitava atende-lo
como possível. Era o motivo do forte cheiro de putrefação
que sentíamos. Tratava-se de um espírito recém
desencarnado, jungido ao corpo físico por liames espirituais
do qual hauria as emanações imateriais da degradação
orgânica. Trouxemo-lo para fora com todo o cuidado que a
mobilização demanda nesses casos. Podíamos vê-

lo agora em seu adiantado processo de cadaverização. Sem


dúvida, um dos quadros mais tétricos de se presenciar no
Vale.
Acalmamos Adelaide que dava mostras de apreensão,
embora estivesse já ciente do fato em seus treinamentos
anteriores.

A cadaverização acomete os imprevidentes que


desencarnam sem o devido preparo para a existência no
Além, acreditando tratar-se o plano físico da única
possibilidade da vida. Ocorre ainda entre os suicidas que
não conseguem desvencilhar-se de seu mortuário orgânico,
presenciando em si mesmos os terríveis fenômenos da
decomposição. Em sua grande maioria continuam atados
aos seus féretros, até que se esgotem os últimos alvores de
suas energias físicas, remanescentes nas carnes em
decorrência da prematura morte. Outros são trazidos por
imantação a essas paragens, onde permanecem estirados
nos lodaçais purgativos. Encontrá-los escondidos naquelas
covas era raro, daí o nosso assombro. Possivelmente aquele
fora atirado

48

ali por espíritos vampiros com a intenção de ocultá-lo, a fim


de seviciá-lo mais tarde, dominando-o para seus propósitos
indignos.

É lastimável, mas forçoso é compará-los às feras que


ocultam suas carcaças para as devorar mais tarde, com
paciência. Hostes rivais de entidades vampirescas disputam
essas presas imprevidentes com sofreguidão, cobiçadas por
serem fontes de energias vitais preciosas para seus
sustentos. Quais espantalhos vivos, são lânguidos joguetes
nas mãos destes flibusteiros que lhes sugam todas as
forças, abandonando-os em estado lastimável.
Cautelosamente, para não provocar sobressaltos e
intensificar os pesadelos que vivenciava, acomodamos o
infeliz em nossa padiola a fim de transportá-lo para um local
mais seguro e aprazível. Nada pode nos comover tanto os
sentimentos de fraternidade do que a vista de um ser tão
desvalido. Não podemos nos evadir de um pensamento
condoído de compaixão e meditar nas razões que levam um
ser racional a atirar-se em tamanha desgraça. Comoção que
lança um brado de interrogação rumo ao Senhor da Vida,
como se Ele, Pai magnânimo e de Amor infinito, fosse capaz
de abandonar completamente os seus filhos. Um ser em
frangalhos, desfeito em nauseabunda e repugnante
substância, mas um filho Seu, que guarda uma alma feita
da mesma essência que nos forma, tão sagrado quanto
qualquer ser vivo, como pode ser assim esquecido da
criação? É necessário grande entendimento dos
mecanismos da vida para se compreender isso, pois do
contrário colocamo-nos por nossa vez, revoltados contra a
Sabedoria Divina que deveria cuidar dos ignorantes como
vela pelos animais inconscientes, nunca deixados ao léu
pela natureza. Se Deus cuida das feras e lhes dá as covas
para se protegerem, por que não zela com maior desvelo
pelos seus filhos caídos?

Naturalmente que tais inquirições não podem ser


respondidas aqui. Guardemos a certeza contudo, de que o
Senhor, com Sua infinita bondade e misericórdia, sabe o
que faz, não podendo ser questionado em momento algum,
e muito menos, condenado por estas aparentes atrocidades
da vida.
A visão do infeliz nos cortava o coração, enchendo-nos de
piedosos sentimentos. Adelaide não podia conter o pranto
silente e lutava entre a repugnância e a extremada
comiseração.

Somente quem já esteve perto de um desses seres


consegue aquilatar até onde pode chegar a desventura da
revolta humana e a importância da ciência do espírito que,
preparando-nos para as realidade das vida depois da morte,
protege-nos contra tais lamentáveis situações. Comovido
pela caridade inibo-me de

49

descrever com minúcias a deplorável situação orgânica do


infeliz, detalhando-lhe a grave patologia perispiritual.
Transportamo-lo sem delongas, com toda a suavidade
possível, continuando nossa caminhada silenciosos, rumo
ao nosso objetivo.

Adelaide nos interrogava com os olhos, buscando


esclarecimentos sobre aquele inesperado encontro e suas
razões, mas não era hora para tergiversações.

Em breve podíamos divisar a entrada das Cavernas do


Leste.

Um dos guardas, avisado de nossa excursão, já se achava a


postos para nos receber, saudando-nos de longe. Embora
exercendo intensa vigilância nas entradas das Cavernas,
nossos sentinelas não podem impedir de todo a entrada de
qualquer interessado, pois não conseguimos o completo
domínio sobre o local, em decorrência das vibrações
reinantes e das condições precárias daqueles que ali se
hospedam. Por força da Lei, eles se fazem suscetíveis aos
ataques dos interesseiros do mal, aos quais se prendem
pelos laços da ressonância. O Bem não pode ter o controle
absoluto do reino das Trevas, por própria imposição da Lei
de Deus, que dá a cada um o produto de seus méritos.
Enquanto existir a disposição para a maldade, as regiões
trevosas também existirão como os limites de seus
domínios. A vigilância apenas pode manter contatos com
nossa colônia, avisando-nos da presença de seres perversos
e solicitando socorro para aqueles que se encontram em
condições de receber ajuda. Para os espíritos travessos,
mais inconsequentes do que realmente maus, os vigilantes
podem representar entretanto, alguma intimidação às suas
incursões à cata de ovóides.

Penetramos no largo salão que dá acesso às grutas,


verdadeiras câmaras mortuárias. Aqui jazem os seres
detidos em sono profundo de completa inconsciência,
perdidos de si mesmos, menosprezando a preciosidade do
tempo, verdadeiros estacionários da evolução, aguardando
o dia do despertamento.

Nem de sonhos ou meros pesadelos se revestem suas


consciências, ocultas na mais completa obscuridade. Muitos
podem permanecer nesse estado por décadas sem darem
mostras de qualquer atividade mental, denotando a
gravidade em que atiraram suas almas. Toda a profícua vida
do espírito no plano em que nos encontramos é
malbaratada, desperdiçando-se as oportunidades de
crescimento e aprendizado. Alguns caminham para a
ovoidização como afirmamos, enquanto outros são levados,
pela caridade dos amigos, para reencarnações
reconstitutivas como única possibilidade de regeneração.
Poucos se restabelecem antes de longos anos de profundo
sono. Daí a

50

importância de nossa vigilância, a fim de socorrer com


eficiência aqueles que dão mostras de recuperação.

Adelaide nos perguntava intrigada, quanto aos motivos de


se manter em local tão pouco acolhedor almas necessitadas
de aconchego e proteção, muito mais infelizes do que más.
De fato, muitos são levados para as Câmaras de Retificação,
acomodações mais aprazíveis, em colônias mais iluminadas.
No entanto, a maioria deles pode sofrer choques vibratórios
em ambientes elevados, à semelhança da luz que, quando
muito intensa, pode cegar. A necessidade de permanecer
em sombras traduz-se assim, numa obrigatoriedade para
quem não pode suportar o brilho das regiões superiores
sem se perturbar. Estas cavernas oferecem o meio
adequado para estas almas, em obediência à Lei de Deus,
que situa cada um no devido lugar de suas reais
necessidades. E como nossa colônia, há outras que cuidam
dos desvalidos dessas cavernas, como quem zela por
crianças abandonadas. Mantendo vigilância constante,
nossos dirigentes procuram retirar o mais depressa possível
aqueles que dão mostra de poder suportar sítios mais
elevados.
Tochas pendentes projetam pálidas luzes nos recortes de
rochas, tecendo sombras tremulantes nas paredes do
macambúzio salão. Uma atmosfera adensada emanando
mofo e exalando melancolia e morte nos envolve de
imediato ao penetrarmos o local. O trabalhador que ali
adentra necessita de equilíbrio emocional para não se
deixar abater pelas agonias reinantes, paralisando sua
capacidade de servir. Pelo menos as Cavernas do Leste se
conservam mais secas pela temperatura que ali se mantém
um pouco mais elevada, embora ainda muito frias. A
maioria delas no entanto, são muito mais geladas e úmidas,
tornando-se ainda mais desagradável a permanência nelas.

Depositamos o infeliz suicida recolhido em nosso caminho


sobre uma campa, a fim de socorrê-lo como possível. Heitor
o examinou mais detidamente, enquanto guardas se
aproximavam para observar. Não havia muito a fazer por ele
no momento, a não ser tentar induzi-lo ao sono profundo,
bloqueando-lhe os pálidos resíduos de consciência, a fim de
que se desligasse definitivamente de suas vestes
cadavéricas. Entretecendo delicadas operações magnéticas,
Heitor, adestrado no hipnagogismo (Processo hipnótico de
indução ao sono), operava o tronco encefálico, anestesiando
a região talâmica, bloqueando assim o tráfego dos impulsos
que ainda provinham do que lhe restava do distante corpo
físico e cortou-lhe finalmente, o laço fluídico de

51

retenção perispiritual. Um forte tremor o sacudiu de chofre,


e em breve, assistíamos a sua respiração estertorosa
acalmar-se, adquirindo ritmo lento, bastante irregular,
denotando que o amigo, graças a Deus, entrava em letargia
profunda. Seus olhos esbugalhados finalmente se cerraram,
mostrando que o terrível pesadelo que o perseguia, pelo
menos momentaneamente, lhe daria sossego. Talvez assim
pudesse ambientar-se nas Cavernas, caso não voltasse a
apresentar seus terrificantes delírios, condição então que
lhe exigiria outro tipo de socorro. Por ora, seria deixado ali,
aguardando identificação e o auxílio que demandasse.

Olegário tomava as providências, encaminhando-o para a


assistência devida. Adelaide, comovida, mostrava interesse
em conhecer-lhe a história para melhor ajuda-lo, alegando
que se ele chegou a nossas mãos por vias tão especiais,
aparentando obra do acaso, era porque lhe devíamos
assistência. De fato, poderíamos penetrar em seus registros
mnemônicos(Relativo à memória), identificando-lhe o drama
particular, mas não convinha deter-nos nesta tarefa,
enquanto tínhamos outra mais urgente a cumprir.
Infelizmente, justificava Heitor, não era este o momento e o
que podíamos e devíamos fazer por ele havia terminado.

Cumpríramos essa missão e nosso outro socorrido, motivo


de nossa jornada, corria o risco da ovoidização, exigindo-nos
maior urgência em seu atendimento. Cada minuto era
precioso naquele instante e entregamos o amigo aos
cuidados dos guardas da Caverna que zelariam por ele até
que se tomassem as providências cabíveis, pois esta era
uma tarefa corriqueira para eles.
52
5
capítulo
O SOCORRO NO TEMPO DEVIDO

“O dom gratuito de Deus é a vida eterna”

Paulo – Romanos, 6:23

Descemos, passando por diversas galerias, até atingirmos o


terceiro nível inferior da Caverna. Escadas íngremes,
esculpidas nas rochas, exigiam-nos cuidados redobrados na
deambulação na penumbra quase completa. A iluminação
não deve ser ostensiva neste ambiente, pois as irradiações
eletromagnéticas podem perturbar os que dormem,
suscitando-lhes as vivências inadequadas de pesadelos,
quase sempre terrificantes, de difícil controle e indutores de
loucuras.

Benedito, tarefeiro de nossa Colônia e responsável por


aquele setor da Caverna, já nos aguardava, avisado de
nossa excursão. Após os cumprimentos habituais nos disse
o amigo:

-- Bom que vocês chegaram a tempo. Tenho feito o possível


para acalmar Alberto. Há poucos dias percebi que ele está
semidesperto e suas feições se modificaram. Ele começou
agora a vivenciar a desencarnação. Mas é preciso ajuda-lo
sem demora, pois ele dá mostras de piora rápida.

Espírito simples, porém zeloso, Benedito forjava sua reforma


dedicando-se à sua tarefa com extremada boa vontade,
apesar das condições adversas do ambiente. Trazia ainda a
compleição de anão, oriunda de sua última encarnação e
não tardaria muito a ser transferido, pois há muitos anos se
esmerava no penoso mister.

Seguimos o amigo que se locomovia com destreza na


penumbra, caminhando sem titubear por intricados
labirintos até estacionar diante de pequena gruta,
escondida em pequena reentrância de rocha, mergulhada
em completa escuridão. Heitor

53

conferiu rapidamente a identificação afixada na entrada,


embora sua aguçada percepção espiritual não necessitasse
disso, mas em obediência às normas da direção da Caverna,
pois alguns colaboradores podem se equivocar, perturbando
enfermos que não se acham preparados para o
procedimento visado. Ao penetrarmos, acionamos pequeno
aparelho de iluminação portátil, de tonalidade azulada,
adequada neste momento, focalizando o aflito amigo a
quem iríamos socorrer como possível.

Notamos de imediato, que o pobre companheiro se achava


em completa hipnofobia, estado de terror durante o sono
profundo onde o indivíduo, vivenciando pesadelos horríveis,
não consegue operar estímulos eficientes a fim de
superficializar a consciência para a realidade. Uma agonia
acerba domina a alma do hipnófobo, perseguido por sonhos
horripilantes que considera reais, sem conseguir despertar,
gerando um círculo vicioso de estímulos que podem levar à
rápida deterioração dos mecanismos da consciência e
induzir à ovoidização, única fuga possível. Não convinha
ainda mobilizá-lo, era urgente atende-lo ali mesmo.

Heitor deitou seu amoroso olhar em Alberto e lamentou-lhe


a penúria espiritual, suspirando profundamente. Cerramos
os olhos em breve prece, suplicando aos Céus os recursos
necessários para o serviço. O infeliz amigo achava-se
enrodilhado em cama improvisada na rocha,
completamente paralisado, em rígida posição fetal. Sua
organização psicossomática amoldara-se à morfologia
mórbida do dramático instante do desenlace violento a que
se impusera, retirando-se da vida. Trazia o rosto
edemaciado, com a língua pendente e cianótica, estirada
lateralmente, completamente ressequida. Os olhos
estacionados e esbugalhados parecendo saltar das órbitas.
As mãos atavam-se com sofreguidão ao pescoço, onde
situava toda sua agonia, tentando em vão libertá-lo da
sufocação angustiosa. Seu peito arfava sem conseguir
respirar. Sua mente, embora desfeita em completo
torvelinho de sofrimentos, despertava por instantes de seu
sono comatoso, dando-se conta de seu desespero.
Podíamos ouvi-lo mentalmente, sussurrando palavras
mudas e aflitas de súplicas à Mãe Santíssima. Mas, por não
encontrar nenhum conforto na realidade do momento, seus
pensamentos voltavam-se sobre si mesmo, procurando por
refúgio seguro na inconsciência. O sono no entanto, não lhe
era também possível, pois breve entorpecimento era o
bastante para lhe projetar em angustioso pesadelo de
queda, comum também nesta patologia espiritual. A
sensação de estar caindo em um abismo sem fim

54

caracteriza a mente que se aprofunda rumo à morte da


razão. Aí estava patente o risco de ovoidização iminente,
única defesa possível para um ser que não encontra o bem
estar almejado a todo custo.

-- Depois de longo período de inconsciência absoluta, nosso


amigo despertou para vivenciar afinal o seu traumático
desfecho

– explicava Heitor, embargando as emoções. – Para ele, é


como se a morte se desse neste instante. Vejamos nisso a
providencia divina que acoberta a alma das dores que não
pode tolerar, adiando-as para o momento em que possam
ser suportadas da melhor maneira possível, resguardando-a
do desespero intolerável e da ruína da revolta.

Sua maior aflição, sem dúvida, era motivada pela


impossibilidade

de

respirar,

encontrando-se

a
glote

completamente estrangulada. O enforcamento estava


patente com sua realidade, estampada nas lesões típicas.
Alguns espíritos nestas condições, trazem até mesmo a
corda de que se serviram no ato ignominioso, porém Alberto
não a aparentava, mostrando apenas a região cervical
completamente macerada. Era imperioso então, a
introdução de uma cânula para que pudesse respirar,
encontrando maior conforto e assim nutrir alguma
possibilidade de recuperação. Iniciamos sem delongas o
procedimento, em tudo idêntico à traqueostomia
(Procedimento médico que consiste em abrir e introduzir
uma pequena cânula na traqueia, a fim de se permitir a livre
respiração)realizada pela medicina terrena. Qual
ambulatório aparelhado no socorro aos doentes a que se
serve, mantínhamos nas Cavernas recursos para estas
intervenções. Em breve um prolongado sibilo deu mostras
de que Alberto podia respirar, enchendo a longos haustos os
pulmões arfantes. De imediato sua musculatura relaxou-se
pela veiculação de maior taxa de oxigênio na circulação.
Sua mente enfim se embriagava de ar, após muitos anos de
escassez, fazendo-o finalmente desfalecer. Heitor manipulou
recursos magnéticos a seu favor, tranquilizando-o por
completo, acomodando-o em um sono repousante, sem
sonhos, ativando as conexões ascendentes dos núcleos da
rafe e os neurônios do locus ceruleus (Estruturas cerebrais
responsáveis pela ativação do sono). Seus precários centros
vitais, esmaecidos, revitalizaram-se momentaneamente de
pálida luz azulada, provocando-lhe o afrouxamento dos
membros. Agora podia ser transportado com segurança
para um atendimento mais eficaz em nossas enfermarias,
em Portais do Vale. A ameaça de ovoidização fora superada
de imediato, e com tratamentos mais adequados, tínhamos
chance de trazê-lo à nossa realidade, embora muito ainda
se necessitasse fazer a seu favor. Agradecendo ao Senhor a
55

oportunidade do serviço e, deitando-o em nossa maca,


iniciamos a viagem de volta à nossa colônia.

Não era ainda o momento para conhecermos mais de perto


o drama desse infeliz. Sequer sabia se o teríamos sob
nossos cuidados, de modo que me calei no interesse de
adentrar em sua história.

Adelaide,

naturalmente,

endereçava-me

mudos

questionamentos, mas assinalava-lhe com o olhar que


aguardasse com paciência. Heitor apenas nos informava
que há aproximadamente três anos, ajudara a depositar
Alberto naquela mesma gruta, quando ainda participava das
caravanas de socorro em atividade no Vale. Ali permanecera
em sono profundo, na mais completa inconsciência durante
esse tempo e somente agora entrava de fato, na vivência
traumática da morte.

Período até mesmo curto se comparado à média dos que


permaneciam ali, pois os espíritos submetidos a este tipo de
patologia podem estacionar por décadas, atados ao sono
restaurador da consciência perdida. E sabidamente, tratava-
se de um tutelado seu ou de outros espíritos superiores,
pois sua prontidão em socorrê-lo parecia corresponder aos
interesses de esferas mais altas. Importante considerar que
se as inter-relações no Mundo dos Espíritos baseia-se em
favores e intervenções facilitadas, como no plano dos
encarnados, esses favores obedecem sempre à Lei do
merecimento e não atendem aos propósitos

ilícitos

dos

valores

humanos,

comumente

fundamentados em desideratos egoísticos, de natureza


política ou monetária. Não se atiram pérolas aos porcos,
ensina-nos o Evangelho, por isso, antes de acionar as
benesses de uma assistência espiritual orientada, é preciso
resguardar a condição de merecimento do socorrido que, se
não as detiver, não será objeto delas. Assim é que
seguíamos transportando nosso amigo, cientes de que
chegara a sua vez, embora uma multidão de necessitados
agonizasse ao nosso derredor sem que pudéssemos atende-
los prontamente, antes que os seus dias fossem contados.

Percebíamos ainda que Alberto não maculara seu destino


com grandes feitos de maldades e por isso não contava com
perseguidores implacáveis atormentando-lhe o coração na
requisição de vinganças. Dava mostras de ter sido vítima
apenas de si mesmo, o que lhe facultava facilidades no
atendimento.
Quando os laços do ódio se imiscuem nas grandes tramas
humanas, as enfermidades que geram na alma são de
tamanha gravidade que não encontram solução na
erraticidade, requisitando a contribuição de sucessivas
reencarnações para que a real cura se instale no campo do
espírito. Há uma lei que

56

confere benefícios segundo méritos, funcionando


inexoravelmente em todas as paisagens da alma humana e
diante dela temos que submeter nossos interesses
exclusivistas, sempre prontos a burlar todos os limites. Por
isso, muitas vezes, em operações de resgates, temos que
entregar à própria sorte desventurados companheiros,
atados pelas recíprocas inimizades, até que as exigências
de vingança das vítimas do ontem, vestidas em verdugos do
hoje, se esgotem no tédio dos dissabores ou na
inconsciência de seus protagonistas. Somente as grandes
dores sanam os grandes males, e nestes casos, os
sofrimentos atrozes são os únicos recursos da misericórdia
divina em favor dos inconsequentes.

Não havia tempo para o repouso, mesmo breve, pois


devíamos voltar antes que anoitecesse. No retorno, nossos
passos seriam mais lentos e à noite as dificuldades no Vale
são maiores.

Os malévolos, habituados às sombras intensas, colocam-se


mais à vontade e dispostos a perturbar aqueles que
trabalham, exigindo-nos maior vigilância. Ademais,
transportando socorridos, temos que tomar cuidados
redobrados para não chamar a atenção de espíritos
levianos, que se aproximam para averiguar se o que
levamos representa para eles algum interesse. Caso
suspeitem que sim, podem se dispor a disputar conosco o
assistido, como se tratasse de mera carga de interesses
mercantilistas. Naturalmente que caravanas como a nossa,
contam com defesas seguras para óbices desses, mas é
preferível evitar a todo custo altercações desagradáveis
com seres inconsequentes e sem outros propósitos que não
perturbar a ordem. Seres também dignos de piedade, os
quais somente o tempo e a dor podem convencer de alterar
a jornada de revoltas em que se comprazem. É preciso
considerar que a dura lei de relações que impera neste
reino de maldades se assemelha ainda à ética primitiva dos
guerreiros, baseada na imposição pela força e em interesses
egoísticos em que todos menosprezam a piedade e ignoram
o mínimo respeito ao bem estar alheio.

Avançamos silenciosos pelo caminho de volta. Heitor


redobrava sua acuidade espiritual a fim de perceber a
presença de entidades mal intencionadas antes que nos
notassem. Apenas por duas vezes tivemos que nos ocultar
de transeuntes errantes e, felizmente, nosso trajeto se fez
sem maiores incidentes. Em breve podíamos respirar
aliviados ao avistarmos de longe o sinalizador que marcava
a presença dos portões de nossa colônia.

Atingindo os pórticos que sustentam os enormes muros de


Portais do Vale, ponto mais alto de nossa caminhada, fomos
surpreendidos por uma imagem inusitada, raramente vista

57
naquelas paragens. Não pudemos deixar de nos deter
diante do inesperado. Naquele instante o sol poente
penetrava um de seus raios avermelhado e fugidio por uma
fresta de nuvem, invadindo as eternas brumas do Vale,
iluminando-as por um raro momento.

Sua larga extensão, sempre enevoada, deixou-se embeber


pelos matizes pálidos da diáfana luz, permitindo-nos
entrever sua exótica paisagem. Picos íngremes, como farpas
imensas, vestidos de névoas esbranquiçadas e planícies
estiradas ao longe, cobertas de mantos leitosos,
desdobravam-se diante de nossos atônitos olhos, como
nunca havíamos visto. Um cenário exótico, porém
profundamente melancólico ecoava dor e lamento,
estampando em nossas almas, pesar e espanto. Extasiados,
não sabíamos o que dizer diante daquela singular visão,
gota de piedade da natureza que, apenas por um instante,
libertava o Vale de dores das eternas sombras, como a
lembrar aos seus infelizes habitantes, que a alegria ainda é
possível para aquele que sabe esperar. Um sentimento de
esperança nos invadiu na certeza de que um dia o Planeta
se verá livre deste imenso fosso de amarguras. A visão se
perdia nas névoas mais distantes, incendiadas por
evanescente vermelho, que rapidamente se desfazia em
tons rosados, vazadas por cumes elevados que, como mãos
postas, afiguravam suplicar misericórdia aos Céus.
Seguramente ali deve ser o fim do mundo e, embora tácito,
parecíamos ouvir o som de mil vozes clamando por
compaixão.

A nostalgia própria desta mágica ocasião fecundou-nos do


mais genuíno e sagrado sentimento da presença do Divino e
nos detivemos em breve oração de louvor e gratidão ao
Senhor da Vida, arrancando-nos as mais recônditas lágrimas
das almas doridas e carentes da paz verdadeira.

58
6
capítulo

FISIOPATOLOGIA DA AUTODESTRUIÇÃO

“Em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado,
é escravo do pecado.”

Jesus – João, 8:34

Alberto, depositado em confortável leito, respirava com


certa tranquilidade, mas não dava ares de recuperação
imediata. Arregalava os olhos buscando inutilmente divisar
o exterior mas somente conseguia enxergar os próprios
pensamentos, desalinhados e caóticos. O efeito calmante do
sono induzido se esgotara e o infeliz retornava à vivência de
seus terríveis pesadelos.

-- Que falta faz o sentimento de religiosidade para um


espírito atormentado – considerava Heitor. – Se nosso amigo
tivesse alimentado a fé sincera, motivada por crença,
qualquer que fosse, estaria em melhores condições de
reagir hoje. Se ele não voltar a orar com lhaneza, não se
colocará em condições de colher as energias divinas que o
envolvem. Ele não cultivou esse hábito e aprendeu a confiar
somente em si mesmo. Não alimentou a vida do espírito e
se deixou convencer de que apenas o vazio o esperava
depois do túmulo. Ele não está habilitado a perceber os
estímulos de nosso meio e não consegue se desvencilhar
dos tormentos íntimos. Temos que aproveitar um pequeno
potencial de bondade e humildade que ainda traz no
espírito.

Achávamo-nos na Casa de Apoio, nosocômio dedicado aos


recém socorridos do Vale, em quarto acolhedor e individual.
O

ambiente, mantido ainda na penumbra, contava com


isolamento acústico e tênue luz azulada, a fim de não
perturbar o repouso do enfermo com estímulos prejudiciais.
Sua dispneia (Falta de ar, dificuldade de respirar) não fora
de todo sanada com a traqueostomia, porque os delicados
alvéolos pulmonares achavam-se também

59

lesionados pela prolongada hipóxia (Baixo teor de oxigênio


no sangue) e a musculatura brônquica reagia com
espasmos violentos, obstaculizando o processo respiratório,
tão importante à manutenção da fisiologia perispiritual
quanto carnal. O coração batia desalinhado e aflito na
tentativa de compensar a baixa taxa de oxigenação
reinante.
Um quadro em tudo semelhante à enfermidade asmática se
instalara em Alberto. Os amigos do plano terreno,
habituados aos efeitos drásticos dos medicamentos de
potente ação no quimismo da carne, perguntar-se-ão se por
ventura o plano espiritual não disponibilizará de recursos de
igual natureza em tais circunstâncias.

Certamente que qualquer médico gostaria de contar com a


ajuda de substâncias broncodilatadoras (Substâncias
farmacologicamente ativas que promovem a dilatação dos
brônquios, usadas na crise asmática) em momentos como
este. Não nos iludamos, os remédios podem ajudar, mas
seu efeitos, quando aplicados com o princípio dos opostos,
se fazem acompanhar de reações adversas que levam ao
aprofundamento subsequente da lesão que intencionam
sanar. A cura real somente pode ser alcançada pela
ativação das vias do próprio equilíbrio, do contrário não se
mantém no períspirito, conquanto possa se suster por
algum tempo na carne, simulando uma solução segura para
o processo mórbido. A introdução de substâncias
bloqueadoras dos receptores adrenérgicos (Estruturas
moleculares das paredes celulares, onde atua a adrenalina),
possível também em nosso plano de ações, levaria a um
efeito fugaz de abertura dos ductos brônquicos, mas se faria
seguir de um mais intenso reforço nos espasmos, pois a
reatividade perispiritual é surpreendentemente muito mais
rápida e enérgica do que a física, podendo agravar
sobremaneira o processo, ao invés de conferir o mínimo
alívio. Por isso nos valemos de recursos magnéticos muito
mais efetivos em nosso plano. O uso de substâncias
medicamentosas sutis, modeladas e aplicadas segundo os
princípios da Homeopatia terrena, é recurso de maior
eficácia no plano espiritual, pois atuam como um estímulo
para o refazimento do próprio equilíbrio. E, neste caso, as
utilizaríamos se nada pudéssemos esperar da terapêutica
energética.
Os amigos inscientes do espírito, certamente estranharão
nossas afirmativas, considerando que estamos
materializando sobremaneira o ser desencarnado,
mencionando detalhes da fisiologia comum à carne. A estes
lembramos que o espírito, ainda se serve de um organismo
em tudo semelhante ao corpo físico, possuindo a mesma
tessitura celular e o mesmo arranjo de órgãos com
funcionamento exatamente idêntico. Os detalhes da

60

conhecida anatomia humana se aplicam perfeitamente à


anatomia perispiritual por serem em tudo análogos. Estas
estruturas funcionam em íntima conexão com o espírito,
formando com ele uma unidade indissolúvel, e por isso irão
refletir sempre, em forma de desorganizações estruturais ou
funcionais, os mínimos desequilíbrios. Desorganizações
estas no entanto, muito mais evidentes e consistentes no
períspirito, por ser este um veículo de maior maleabilidade
do que o corpo físico. O cérebro, sede de nossa unidade
substancial, a mente, sendo a estrutura mais importante e
mais complexa da nossa organização é o palco imediato
destes desequilíbrios, onde se manifestam de forma mais
incisiva e mais drástica. O períspirito por isso, trabalha
sabiamente a fim de desviar dele estas perturbações,
depositando-as como possível, em regiões mais superficiais
de nossa unidade. Faz assim adoecer a periferia a fim de se
resguardar o máximo de equilíbrio para o psiquismo e seus
apurados instrumentos de manifestação.

Desse modo, toda enfermidade superficial é uma defesa da


mente, e se o corpo adoece, o faz sempre para proteger a
integridade do espírito. Quando no entanto, o processo
mental se avulta sobremaneira, não há como impedir que
os próprios pensamentos desalinhados firam a delicada
tessitura do encéfalo em forma de distúrbios funcionais e
lesões neuronais. Transtornos estes que por sua vez, irão
obstaculizar o perfeito funcionamento da mente, devido à
íntima unidade com que funcionam. Não digamos
entretanto, com isso, que as desordens mentais se devam
às alterações de sua estrutura, como o faz a equivocada
visão materialista da medicina terrena.

Heitor operou novamente delicadas intervenções no campo


mental de Alberto de onde na verdade partiam as
excitações nocivas para a manutenção de seu mórbido
estado orgânico, mas com pouco resultados atenuantes. Era
preciso empregar outros meios de alívio, pois do contrário
nosso assistido iria iniciar sem dúvida, o processo de
encistamento da consciência.

O nobre amigo no entanto, necessitava deixar-nos e nos


confiou a guarda do tutelado. Estava convencido de que a
misericórdia divina se faria presente através de nossos
modestos recursos e despediu-se agradecido e contente
pelos resultados até então alcançados, não antes
naturalmente, de comprometer-se a nos ajudar no que fosse
possível, pois estaria acompanhando de longe o seu
tratamento, envidando todos os esforços necessários à sua
recuperação. Retornaria nos momentos devidos para nos
orientar no que fosse preciso.

61
Assumimos naquela hora a tutela de Alberto. Adelaide,
colocando-se ao meu lado, dava mostras de que dividiria
comigo a responsabilidade, e que juntos conduziríamos o
seu processo de recuperação. Ela se admirava no entanto,
de Heitor ter partido sem nos esclarecer alguma coisa de
sua história e nem sequer nos orientar quanto às
providências serem tomadas no cruciante instante.
Esclarecemos que Heitor apenas dava mostras de plena
confiança em nossa atuação, deixando-nos inteiramente
livres para tomar as decisões que julgássemos cabíveis.
Sabia que iríamos mobilizar todos os recursos para a
condução do tratamento e, colocando em nossas mãos
todas as decisões que o caso demandava, evadia-se
humildemente, evitando nos roubar os méritos do sucesso
se porventura o obtivéssemos.

Atitudes assim se encontram entre almas nobres que não


enxergam no outro, o serviçal inútil que somente faz o que
se lhe manda, anulando-lhe a capacidade de auto realização
no serviço. Certamente que ele estaria vigiando nossas
ações e não se eximiria de intervir caso adotássemos
procedimentos errôneos que viessem prejudicar o seu
tutelado.

A sós, diante do amigo que sofria, de pronto nos


interessamos pelo seu drama. Despertou-nos o desejo de
conhecer-lhe o passado para melhor ajuda-lo, no entanto
não era ainda o momento, pois Alberto caminhava para a
ovoidização e era preciso adotar providências mais
urgentes. Posteriormente, caso fôssemos bem sucedidos,
então seríamos convocados a penetrar em sua intimidade
com maior precisão a fim de conduzi-lo a um efetivo
restabelecimento.

Ofegante, o infeliz reassumia a posição fetal como se


recolhesse em si mesmo. A desvitalização perispiritual nos
mostrava a incapacidade de resposta eficaz aos estímulos
energéticos ou mesmo aos medicamentos de que
dispúnhamos.

Seus membros enrijeciam-se e os movimentos oculares


rápidos, demonstravam a imediata reentrada nos pesadelos
cruciantes.

Convidamos Adelaide a um exame mais minucioso do


enfermo a fim de adotarmos as providências cabíveis. O
quadro configurava todos os efeitos da doença
autodestrutiva ainda intensamente atuante e aproveitamos
o ensejo para detalhá-la para a amiga, interessada em
aprender para melhor servir.

-- Vejamos, Adelaide – disselhe, procurando envolve-la no


interesse pelo estudo – a que ponto pode a louca
desventura do autoextermínio conduzir o ser. Observemos a
completa desorganização de nosso suicida a fim de
compreendermos com mais detalhes a sua fisiopatologia.
Sei que são velhos hábitos da

62
nossa medicina, que parecem atender muito mais à
curiosidade do que ao sincero desejo de ajudar, mas
certamente conhecer primeiro é o caminho para se melhor
interferir depois.

A autodestruição opera graves danos à organização


perispiritual, sobretudo nas delicadas estruturas encefálicas,
onde induz suas lesões mais importantes. Para se
compreender esta patologia da alma conhecida em nosso
meio por Psicólise (Palavra composta de psyché, termo
grego que significa espírito ou mente, e lysis, ruptura ou
destruição) ou Autocatálise, é preciso entender o
comportamento das forças que operam no períspirito e
identificar as etapas do processo desencarnatório, momento
em que se estabelecem as suas perturbações.

Em nosso plano, o períspirito, também chamado


psicossoma, é entendido como um organismo energético,
impulsionado por duas forças básicas: uma de expansão e
outra de contração. O

primeiro impulso, caracterizado como hiperdinâmico, ter


caráter construtivo, operando crescimento, atividade e
aumento do metabolismo. O segundo, o hipodinâmico, gera
repouso, diminuição de metabolismo e degeneração. A
contração faz decrescer o tônus vital e a expansão o
dinamiza, portanto não são movimentos necessariamente
espaciais, porém dinâmicos e vibracionais. A expansão
promove construções de órgãos para atender às
necessidades do espírito, impulsionando a vida, enquanto
que a contração os destrói, protagonizando a morte.
Morte que nunca é fim, mas apenas mudança de plano de
manifestação, permitindo-se com isso a constante
renovação do organismo. Do equilíbrio e alternância entre
estas duas pulsões, nascem todas as atividades
operacionais do períspirito, e consequentemente, do corpo
físico. A diminuição de um deles condiciona o impulso para
o aumento do outro, de tal forma que o psicossoma
funciona qual mola que, se contraída, tende a se expandir e,
se estendida, propende a se contrair, dentro dos princípios
de ação e reação que embalam todos os fenômenos do
universo, sejam físicos, químicos, biológicos ou espirituais.

A elaboração evolutiva, desta forma, se faz pela alternância


entre ciclos de retração e de expansão, com resultados
efetivos no desenvolvimento constante do espírito. Por esta
razão, crescimento e destruição, vida e morte devem se
alternar no palco da evolução onde uma é apenas condição
que propicia o desenvolvimento da outra. Isso faz ainda da
evolução, qual onda de fases opostas, uma trajetória de
ascensão, entrecortada por períodos de desfazimentos.
Assim se faz o progresso que, como todo ciclo, deve alternar
suas fases. Tal é a mecânica da criação,

63

que não permite acúmulos em um único sentido. De outra


forma o espírito seria eterno na matéria e não amadureceria
para a realidade maior que o aguarda.

Os momentos do nascimento e da desencarnação são os


instantes nos quais se pode verificar com maior precisão a
atuação destas duas forças perispirituais. Precedendo à
reencarnação o períspirito é dominado pelo impulso
contrativo, condensando-se em uma diminuta unidade
celular, processo conhecido em nosso plano por
restringimento ou miniaturização, cuja intimidade está
intimamente relacionada à condição de cada espírito, sendo
tanto mais intensa quanto menor o seu patrimônio
evolutivo. Ao entrar em contato com a carne, abraçando um
óvulo fecundado, o períspirito deflagra o movimento

oposto,

expansionista,

realizando-se

com

impressionante desenvoltura a rápida expansão da


maturação embrionária. O impulso de contração no entanto,
não está por completo detido, mas segue impondo ritmos
de pequenos retrocessos

ao

organismo,

induzindo-o

destruir

momentaneamente o que fez, mas apenas para se refazer,


movimento chamado de catabolismo. O impulso
expansionista predomina nitidamente, realizando-se o
crescimento orgânico, movimento denominado pelos
fisiologistas de anabolismo. Dessa forma o metabolismo
orgânico se compõe de uma fase de crescimento, a
anabólica, interposta por uma outra de destruição, a
catabólica. Ao atingir seu ápice, em torno da metade do
período da vida na carne, quando o organismo chega à
maturidade, o impulso expansionista inicia o seu
decréscimo perdendo paulatinamente a potência,
permitindo assim que o contra impulso volte a predominar.
Instala-se o envelhecimento, o catabolismo passa a imperar
sobre o anabolismo e o ser entra em automática e
comedida auto degeneração orgânica, que irá culminar com
a completa morte na matéria. Chegando ao fim da fase
contrativa, o períspirito deixa o corpo e transfere-se a
consciência para novo plano de manifestação. A unidade
perispiritual, é então embalada por novo impulso
expansionista, reconstituindo-se outra vez, em renovado e
refeito organismo, completando-se assim o seu ciclo. Ciclo
que em breve se reiniciará em novo nascimento na matéria.

As forças perispirituais embalam consigo não somente o


metabolismo físico-celular, mas também a consciência, pois
essa igualmente se apoia sobre uma base energética. Na
fase de contração

consciência

se

deprime

se
apaga

momentaneamente, e na fase de expansão ela se exalta e


se

64

desenvolve, de forma que o períspirito, assim como a


matéria e a energia, é também uma elaboração baseada em
uma síntese clínica. E sempre que se inicia uma nova fase
de expansão, tanto a consciência quanto a forma passam
por período de refazimento na qual se reconstroem,
recapitulando as etapas já percorridas em seu processo de
desenvolvimento. Assim é que o crescimento embrionário
refaz, em curto espaço de nove meses, os milhões de anos
que já perpassou na evolução. E o mesmo se verifica na
morte física, quando a consciência, após breve período de
contração, novamente se expande, reconstruindo-se quase
que imediatamente e recapitulando todas as etapas vividas
em sua última encarnação. Tal fenômeno, chamado de
revivência mnemônica ou recapitulação panorâmica, é
assistido como uma projeção cinematográfica tridimensional
e se passa em fugazes minutos, embora seja percebido em
uma outra realidade, parecendo demandar longo período de
tempo.

Apoiados nestas considerações teóricas recordemos agora,


com mais detalhes, as etapas do processo desencarnatório
para melhor compreendermos os fenômenos em jogo na
patologia da autodestruição. O plano espiritual, com muita
propriedade, compara o momento da morte com a
metamorfose dos insetos, pois em tudo lhe é semelhante.
Uma vez cessada a vida física, o desencarnante, embalado
pela contração perispiritual, inicia também a retração do
metabolismo consciencial, entrando na fase de crisálida,
onde a atividade consciente se recolhe e se apaga completa
e momentaneamente. Nesse momento o períspirito,
acelerando a fase destrutiva e contrativa, promove a quebra
de suas malhas teciduais, movimento conhecido em nosso
mundo por histólise perispiritual (Palavra composta do
grego histós, que significa tecido, e lysis, quebra. Portanto
histólise perispiritual é a dissolução dos tecidos orgânicos e
perispirituais). Ainda sob o império do impulso de contração,
irá então intensificar a absorção dos remanescentes
energéticos que moviam o corpo físico, a fim de reciclá-los
dentro da sábia economia da natureza que procura tudo
aproveitar. Terminada essa fase, dá-se lugar à histogênese
perispiritual (Do grego histós, tecido, e génesis, formação;
portanto na histogênese o períspirito reconstrói os seus
novos tecidos, preparando-se para a nova vida no mundo
espiritual), quando o psicossoma, expandindo-se, processa
rapidamente a sua auto reconstrução, seguindo o mesmo
molde previamente desfeito, em base aos registros
morfológicos retidos em suas malhas energéticas. Nesse
mesmo momento a consciência desperta e, entrando em
reconstrução, recapitula rapidamente toda a experiência
realizada na matéria, momento nobre da vida do espírito, no
qual ele recolhe tudo o que semeou, revive o que aprendeu,
fixa

65

ensinamentos ou erros e se prepara para a nova existência


que se inicia. Em seguida, finalmente cai a consciência em
novo sono revitalizador para despertar logo mais, ativa e
reconfortada, encetando a rica vida espiritual.
A revivência mnemônica é importante etapa do processo
desencarnatório que visa à sedimentação dos
conhecimentos hauridos na vida, retirando deles proveitos
para a jornada no Mundo Espiritual na forma de
conhecimentos automatizados, sendo indispensável recurso
de reedificação do psiquismo. Através dela o espírito
encontra-se em melhores condições de dar uma sequencia
à sua vida mental egressa da carne e promover, de uma
maneira mais proveitosa, a sua evolução. As experiências
vividas e os conhecimentos adquiridos na existência terrena
serão, desta forma, transformados em impulsos instintivos,
funcionando como pendores e dons natos, tanto na
erraticidade quanto na futura reencarnação do ser.

O suicida, deixando-se embalar pelo impulso autodestrutivo,


altera esses movimentos naturais e necessários para a
caminhada do ser na linha da evolução. Alimentando o
desejo de retirar-se da vida e intencionando a dissolução
completa de seu próprio eu, faz preponderar o movimento
de contração sobre o de expansão, promovendo assim a
deterioração das forças reconstrutivas do períspirito. Desse
modo se pode compreender todo o desenvolvimento de
fisiopatologia envolvida na autocatálise.

Como o períspirito é sumamente muito mais sensível às


ações da mente do que do corpo físico, refletirá de forma
instantânea e intensa, os profundos desequilíbrios oriundos
da Psicólise. E será ainda no momento da desencarnação
que essas alterações far-se-ão sentir de modo mais
proeminente, deixando depois suas marcas indeléveis
registradas em disformias perispirituais atípicas.
As etapas naturais da morte não se completam eficazmente
no suicida, embalado por intenso fluxo antivital. A histólise
perispiritual é acelerada e a histogênese é extremamente
enfraquecida. A contração da consciência é tal que,
obnubilando-a, não permite o semidespertamento para dar
lugar à revisão mnemônica. A assimilação dos eflúvios vitais
remanescentes do corpo físico não se conclui, de forma que
o cordão fluídico, por onde trafegam os impulsos
comunicantes entre este e o psicossoma, permanece
ativado, unindo ambos em fortes liames e fazendo com que
os fenômenos

da

decomposição

sejam

sentidos

pelo

desencarnante. E, mesmo que os trabalhadores do


desligamento sejam bem sucedidos nesta separação,
estaciona-se a histogênese na conformação do momento da
morte, retendo por

66

isso de modo vivo, todos os processos traumáticos a que o


corpo físico fora submetido. De acordo com a fixação do
suicida em um desses momentos, determina-se o tipo de
patologia perispiritual e não efetivara o despertamento da
consciência. A histólise não se detivera e ainda operava-se
a retração perispiritual. Seu psicossoma, por isso, mostrava-
se completamente desvitalizado, moldado na aparência
física do momento da desencarnação e com a consciência
completamente bloqueada. A revivência mnemônica não se
estabelecera e o impulso de reconstrução fora
completamente inibido, revolvendo-se o infeliz em
adiantado contra-impulso vital, embalado pela doentia
vontade de não viver. Permanecera em completa
inconsciência, sem dar mostras de nenhuma atividade
mental por longo período, até que finalmente despertara
para a vivencia de pesadelos, não conseguindo manter-se
desperto na dura realidade em que se projetara.

Apreciando a complexa patologia da Psicólise, o homem


encarnado poderá melhor ajuizar-se quanto à gravidade de
suas levianas ações ao acelerar as forças destrutivas de sua
alma. Não somente engendrando o suicídio consciente, mas
se permitindo agredir de forma insciente e inconsequente
pelo abuso de substancias tóxicas de toda natureza que lhe
facultem, nos prazeres fugazes, a fuga de suas
insatisfações. Em que pesem todas as condições adversas
que obstaculizem a plena concretização da felicidade na
Terra, nada justifica a louca desventura de se auto aniquilar,
pois as drásticas consequências do ato perdurarão por
prolongados períodos, quando o autocida terá que conduzir
a reconstrução de si mesmo em longa jornada de dores e
refazimentos, perturbando sobremaneira a sua carreira
evolutiva, entretecendo-a de agruras ainda maiores do que
aquelas de que intencionou fugir.

Tocamos a fronte do moribundo com nossas destras, a fim


de ouvirmos os seus pensamentos e inteiramo-nos de suas
necessidades imediatas. A desorganização da estrutura
mental era assustadora e, de imediato, percebemos
vibrações enegrecidas alargando-se como um manto
lamacento, recobrindo toda a delicada tessitura neuronal
dos lobos frontais, estendendo-se pelo sistema límbico
(Complexo sistema neuronal formado por diversas regiões
do cérebro que fazem a integração entre a emoção e o
corpo físico, através do sistema nervoso autônomo. Por
meio dele a vida emocional interfere, positiva ou
negativamente no funcionamento visceral e na
regulamentação metabólica de todo o organismo. Dele
fazem parte o giro hipocampal, o tálamo, o corpo
amigdaloide e o giro do cíngulo, dentre outras estruturas).
As meninges, delicadas lâminas defensivas do sistema
nervoso central,

67

tentavam desesperadamente recolher essa substancia


tóxica, concentrando-a em si mesmas.

-- São as energias do pessimismo, da angústia e da negação


de todo o potencial divino depositado em nosso espírito –

acrescentava, diante do espanto da amiga. – Estas forças


degradadas, geradas e alimentadas por uma doentia
vontade autodestrutiva, caracterizam um processo
depressivo de longa duração, Adelaide.

Alberto mostrava ter vivenciado prolongado período de


autodesvalorização, promovendo com isso a destruição das
forças espirituais que sustentam a consciência. Tal
sentimento funciona, não somente como material isolante
das potências sagradas que trafegam pela mente e que
fazem a manutenção do eu, como contamina toda a malha
neuronal em que se assenta o pensamento. Engendrado
pela vontade doentia e nutrido pelas frustrações a livre
realização dos intentos ególatras, depois de longo tempo,
passa a funcionar por retroalimentação automática, como
se tivesse existência própria, degenerando todo o delicado
maquinário encefálico.

Nosso amigo trazia toda a tela mental enegrecida por essas


emanações degradadas. O centro coronário empalidecido,
sofrendo o bloqueio temporário das energias divinas que o
mantêm, não conseguia dinamizar as outras peças do
cérebro.

Até mesmo a articulação mental das palavras estava


impossibilitada porque as ondas mentais originárias dos
núcleos conscienciais não atingiam a área de Broca (Assim
é chamada a área da fala no cérebro, que na verdade não a
gera, mas apenas coordena as estruturas físicas que
propiciam ao pensamento escoar-se pelas vias da
comunicação sonora). O hipotálamo sobrecarregava a
hipófise com estímulos desesperantes de síntese de
adrenocorticotróficos (Hormônios produzidos pela hipófise
que estimulam a produção de adrenalina pela glândula
supra renal, substância esta necessária nos momentos em
que o organismo está submetido a alguma ameaça),
objetivando uma resposta contra a iminente ameaça de
ruína orgânica. Toda a região somestésica (Região do
cérebro responsável pela sensibilidade) estava coberta por
manto cinzento, determinando o bloqueio de quase toda a
sensibilidade proprioceptiva. A obstaculização das conexões
do sistema límbico impedia a perfeita troca de estímulos
entre o hipocampo (Estrutura cerebral situada nos lobos
temporais, considerada a principal sede da memória e
importante componente do sistema límbico), o giro para-
hipocampal (Uma das circunvoluções cerebrais, as
saliências sinuosas situadas em sua superfície, localizada
em sua parte inferior e interior. Faz parte do sistema
límbico, além de ser sede da olfação) e o corpo amigdaloide
(O nome não se refere às amigdalas propriamente ditas, os
órgãos defensivos da orofaringe, mas sim às massas de
neurônios situadas internamente no cérebro que fazem
parte do sistema límbico, sendo importante centro
regulador do comportamento sexual e da agressividade),
ameaçando a instalação

68

de uma verdadeira ablação bilateral dos lobos temporais


(Quadro conhecido na Terra como Síndrome de Klüver-Bucy,
observada no homem como consequência da remoção dos
lobos temporais e caracterizada por alterações do
comportamento, como a cegueira psíquica e a regressão à
fase oral, levando o indivíduo a colocar na boca tudo o que
pega, mesmo coisas completamente inadequadas ao
consumo humano. A síndrome, embora muito rara entre os
encarnados, é manifestação comum entre os suicidas em
estado de consciência reduzida a limites críticos). Além
disso, a interrupção do círculo de Papez (Conjunto de várias
estruturas cerebrais que compõem parte do sistema
límbico. Este sistema por sua vez, é um importante conjunto
de estruturas nervosas intracerebrais que participam das
emoções) se impunha como uma necessidade defensiva
contra a grave depressão e a ansiedade desmedida.
Numa desesperada tentativa de evacuar essas energias
degradadas, as células da glia(ou neuroglia, conjunto de
células e fibras que sustentam os neurônios no sistema
nervoso central) trabalhavam intensamente, defendendo a
integridade da delicada tessitura neuronal, com o sacrifício
de seus próprios metabolismos. Captavam as emanações
pestilentas drenando-as nos vasos que se dirigem à pia-
máter (Uma das membranas que formam as meninges,
lâminas protetoras do encéfalo), onde se acumulavam de
modo assustador. As meninges se intumesciam
prenunciando os mecanismos que levam, em etapas
posteriores, ao aparecimento de processos infecciosos,
quando os bacilos patogênicos, verdadeiros lixeiros dos
sistemas biológicos, são chamados também para colaborar
com a drenagem vibratória, em suas etapas derradeiras. As
energias mais sutis no entanto, escapam a este processo
mais grosseiro de limpeza e derivam-se para os sonhos,
onde são escoadas na geração de correntes mentais
atordoantes, mas capazes de lhes consumirem parte do
potencial destruidor. Por isso os pesadelos, quando não se
trata de ideações induzidas por entidades malévolas, são
mecanismos automáticos de defesa da mente ao se ver
ameaçada de desorganização pelos próprios impulsos
destrutivos.

Sua consciência se enchia assim de sensações


desesperantes e imagens aterradoras, fazendo-o
experimentar todas as emoções primitivas da alma humana:
uma forma de exauri-las, porém recurso de valor limitado,
pois impõe ao ser uma lamentável vivência de pânicos.
Sentindo-se esmagar por situações dramáticas, Alberto
vivenciava tormentos de destruição de si mesmo,
imaginando-se em meio a tempestades, furacões e outros
perigos que lhe ameaçavam o aniquilamento completo.
Um tormento mental em tudo semelhante à síndrome do
pânico (Patenteia-se aqui uma das origens desta
psicopatologia de causas ainda ignoradas pela medicina),
descrito pela psiquiatria terrena. Presenciava de fato, uma
situação real de perigo iminente e por isso todas as reações
típicas do

medo

extremo

estavam

presentes,

dominando-o

69

completamente. Qualquer associação lógica era impossível.


O

sistema autônomo simpático protagonizava todas as


reações possíveis de fuga. O coração acelerava-se
descompassadamente e o sistema vascular se retraía,
concentrando-se nas regiões de maior requisição orgânica
no momento, deixando a pele fria e pálida. Os pelos se
eriçavam como um animal acuado e os pulmões arfavam
com pressa o oxigênio impossível de ser absorvido com
eficácia. Seus músculos estremeciam como a se prepararem
para uma imediata evasão. O centro gástrico, totalmente
retraído na inatividade, fazia desaparecer qualquer
sensação de fome ou sede.
-- Como você pode ver, Adelaide, nosso amigo está em
plena fuga. Foge da vida que parece ameaçar-lhe, enquanto
que suas verdadeiras ameaças são internas e engendradas
por ele mesmo. Por isso foge de si mesmo, de seus próprios
pensamentos, de seu angustioso mundo íntimo e da desdita
que cavou para si próprio.

Compadecíamo-nos

do

amigo,

na

medida

que

vislumbrávamos a extensão de seu drama íntimo. Podíamos


sentir seu imenso pavor e seu desalento ao se ver
completamente impossibilitado de evadir-se do tormento
em que vivia. De forma impressionantemente realista o
víamos na tela mental, refugiado dentro de uma pequena
gaiola, à qual se agarrava com desespero, solta em queda
livre rumo a um abismo de trevas, em meio à fúria de uma
forte tempestade.

-- Trata-se de uma barquilha, o pequeno cesto pendente dos


balões, onde se acomoda o aeronauta – dizia. – Ela, no
entanto, desprendeu-se de seu apoio aéreo e está caindo no
vazio. Aí, nesta frágil estrutura, seu espírito busca um
refúgio desesperado e inútil. Nosso amigo degenerou os
mecanismos de suporte de sua consciência espiritual e o
desastre parece iminente e inevitável. A defesa segura
somente se faz mediante a completa desestruturação dos
mecanismos que sustentam o eu na massa neuronal,
fazendo-o retroceder às etapas primordiais da organização
mental, mergulhando-o na completa inconsciência.

A qualquer momento ele irá ultrapassar os limiares da


atividade consciencial

estará

irremediavelmente

encistado

na

pseudomorte ovoidal (O processo de formação, assim


chamado por simular a morte para um espírito que já
adquiriu a consciência – ver glossário). Nós o perderemos,
Adelaide, se não agirmos com urgência. Sua permanência
no Plano Espiritual não mais se sustenta. Seu mundo
orgânico, perante tamanha desorganização, não irá resistir
por muito tempo.

-- Somente a reencarnação...

70
-- Sim, Adelaide, somente a reencarnação – continuei-lhe o
pensamento – ou várias reencarnações em condições
precárias poderão proporcionar-lhe o refazimento do
espírito. No exercício paciente de novas e dolorosas
experiências de vidas, sua trajetória evolutiva será
restituída, ainda assim com graves danos às suas
conquistas atuais, que praticamente se perderão. A
memória de suas últimas experiências na carne será
desfeita quase por completo, tornando-se de difícil acesso,
por se verem resvaladas para os porões ocultos do
subconsciente. Pouco proveito auferirá ele de suas últimas e
preciosas lições de vida.

Trata-se de um grave dano ao espírito, minha amiga, um


dos quadros mais lamentáveis que se pode presenciar em
nosso plano. Vemos no entanto, que embora sua mente não
consiga articular palavras, seu coração irradia uma
silenciosa e desesperada súplica a Deus, seu último refúgio.
Esses sentimentos sustentam o seu sistema circulatório,
apesar do caos orgânico, dotando-lhe de alguma
capacidade de reação. Aí reside um pequeno potencial de
resposta, que temos de aproveitar, agindo rapidamente.
Resta-nos ainda um último recurso, vamos recorrer à
Embrioterapia sem demora. Não há outro caminho.

A janela deixava-nos entrever os alvores da aurora


prenunciando um novo dia, ofuscando com miríades de
matizes pálidos o manto de estrelas que rapidamente se
esmaecia no veludo purpúreo da abóbada celeste. O
encanto do momento ensejava-nos a presença do Divino e
recolhemo-nos em sentida prece ao Senhor da Vida, para
que nos ajudasse a realizar algo em favor daquele
desventurado suicida. Nossos corações se inundaram de
sentimentos elevados, que recaindo sobre ele, o
apaziguaram momentaneamente. A fim de prepara-lo para
breve incursão na carne, acomodamo-lo na câmara de
restringimento, disponível para este fim e, sem demora,
demandamos o Departamento de Embrioterapia.

71
7
capítulo

NO DEPARTAMENTO DE
EMBRIOTERAPIA

“E terás confiança, porque haverá esperança; olharás ao


redor de ti e repousarás seguro, deitar-te-ás, e ninguém te
amedrontará.”

Jó, 11:18

Deixamos a Casa de Apoio rumo ao Departamento de


Embrioterapia. As intensas atividades noturnas se
encerravam em nossa colônia e muitos trabalhadores
buscavam o repouso em seus lares, enchendo as ruas de
expressiva movimentação. O

quadro se assemelha às grandes cidades da Terra, no fim do


expediente diário, mas aqui se verifica o contrário.
Aproveita-se o período noturno, quando os encarnados
repousam, para se trabalhar com mais proveito junto aos
espíritos desligados do corpo físico. O dia nos serve para o
recolhimento e o serviço interno, digamos assim. Muitos
desencarnados ainda precisam do descanso para a
restauração das forças perispirituais desgastadas no
trabalho corriqueiro, recolhendo-se para isso, comumente
em seus lares ou em locais de lazer durante parte do dia. À
medida que o espírito se habitua à vida espiritual, reduz-se-
lhe essa necessidade de refazimento, enquanto os recém
chegados da Terra ainda se utilizam do período noturno para
o sono, como de hábito quando encarnados. Adelaide e eu
já estávamos afeiçoados ao serviço quase constante e
nossa necessidade de descanso se fazia unicamente
semanal, sem que déssemos mostras de exaustão. Por isso,
avançamos rapidamente para o referido Departamento, a
fim de agilizarmos a assistência a Alberto.

Rumando para o outro extremo de nossa colônia, o


ambiente paulatinamente se modifica, enriquecendo-se de
jardins acolhedores, árvores frondosas, fazendo-se mais
presentes as irradiações solares, tão salutares para a vida
do ser, em qualquer

72

nível em que se manifeste em nosso orbe. A Casa de Apoio


encontra-se no limiar do Vale, recebendo ainda de forma
expressiva a sua influencia vibracional, pois os enfermos ali
acolhidos necessitam de uma ambientação progressiva.

Poderíamos compará-los àqueles que, vivendo nas trevas,


para retornarem à luz do dia, precisam de paulatina
adaptação à claridade a fim de não se enceguecerem. Por
isso esse nosocômio não conta com proteções seguras
contra as vibrações do Vale e seus ambientes são um tanto
quanto lúgubres e sombrios. Suas construções são rudes e
seus jardins áridos, embora o ambiente se faça acolhedor e
confortável em comparação às cavernas e charcos de onde
a maioria procede.
Adentrando os portões do Departamento de Embrioterapia,
Adelaide Admirava-se de seus ricos e floridos jardins, um
dos mais belos de nossa colônia. Seguíamos por uma larga
passarela ornamentada de flores, onde podíamos admirar
uma série de estátuas situadas a distâncias regulares,
representando as sete etapas principais da embriogênese. A
primeira delas mostra uma mórula, uma massa de 16
blastômeros, desenhada em minúcias, marco inicial do
desenvolvimento morfogênico. Seguem-se esmeradas
reproduções das demais fases embrionárias, na exata
sequencia de seus desenvolvimentos, cópia perfeita de suas
congêneres vivas, talhadas em substância vítrea, deixando
entrever em seus interiores todos os seus ricos detalhes
anatômicos. Todas elas ademais, emitem vibrações sonoras
de delicada composição musical, a se difundirem por todo o
ambiente. A última, no entanto, nos desperta especial
atenção, uma das mais belas esculturas de nossa colônia:
dois vigorosos braços de mármore, saídos da rocha bruta,
sustentam no alto um bebê humano recém nascido, ainda
com o cordão umbilical pendente, estampando na face um
meigo sorriso para a vida, no lugar da habitual expressão de
dor. Um receptáculo, à feição de uma concha uterina,
envolve-a em delicado espelho d’água, refletindo-lhe a
beleza no líquido cristalino. Realmente uma linda
construção capaz de suscitar admiração a quantos dela se
aproximam, despertando não somente os sentimentos de
maternidade e paternidade, mas sobretudo a gratidão pelas
dádivas do processo reencarnatório.

Adelaide estacionou-se extasiada, diante do magnetismo da


obra. Desejava beber-lhe as sutis emanações e fazer
embalar sua alma nos doces sentimentos da maternidade
terrena, bênção incontestável do Pai, através da qual somos
partícipes de seu sagrado ato de criar.
73

-- Esta é uma das mais famosas estátuas de Portais do Vale


expliquei ante o emudecimento da irmã. – Chama-se


Esperança e representa os sentimentos do suicida perante a
vida, que lhe brinda com novas oportunidades de
refazimento, através da bênção da reencarnação. Quase
sempre o retorno à carne dentre os suicidas se faz em
estágios dolorosos, em corpos deformados e através de
embriões frustros, abortados na primeira oportunidade,
quando não são cruelmente expulsos por mães que não lhes
toleram as emanações negativas. No entanto, o sorriso
desta criança guarda a esperança em futuros renascimentos
saudáveis e felizes. Diante deste monumento muitos se
emocionam, ansiosos pelo retorno ao ritmo natural da vida.

-- São realmente emocionantes e nos retiram vibrações do


mais fundo da alma – respondeu enfim, a amiga ao lhe
cessar o influxo vibracional de sadia emotividade.

Examinando essas estatuetas nos perguntamos como pode


o homem moderno se convencer de que as formações
embrionárias são meras construções de forças casuais da
carne.

Absurdo igual seria afirmarmos que essas estatuetas são


produtos de encontros fortuitos das substâncias que as
constituem. As estruturas embrionárias são resultantes de
cálculos precisos que preveem com exatidão detalhes que
desconhecemos. As células germinativas não detêm um
conhecimento de conjunto para levar a tamanha sabedoria.
Tal não se pode exigir de uma unidade celular ou mesmo do
código da vida, o DNA, mero registro de moldes proteicos.
Há necessidade de uma fonte diretora e unificadora de
propósitos, que conheça a finalidade e o resultado final da
construção levada a efeito. Imaginar o contrário seria o
mesmo que admitir que bastaria ajuntar os materiais
formativos de uma casa para se obter a sua perfeita
edificação, sem a necessidade do arquiteto e dos
executores da obra. Por isso é muito mais lógico
compreendermos que as células físicas são meros tijolos
posicionados pela sabedoria formativa do espírito; este sim,
o verdadeiro artífice do edifício orgânico sob a orientação
divina.

-- Estes monumentos guardam o propósito de prepararem o


visitante

para

adentrar-se

no

sagrado

ambiente

do

Departamento, suscitando-lhe o respeito pela magnitude da


vida
– prosseguia. – Entretanto, esta última funciona também
como um coletor vibracional. Todos os visitantes que por
aqui passam, deixam aos seus pés as mais santas emoções
da maternidade, impossíveis de não serem suscitadas.
Energias emocionais que são colhidas a fim de servirem à
reencarnação de muitos espíritos

74

infelizes, desprovidos de suficiente força vital para se


sustentarem na carne.

Atrás dessa última estátua, abre-se um admirável e sereno


lago, tendo em seu centro as construções do Departamento.

Árvores frondosas e floridas contornam todo o lago, tecendo


verdadeira coroa de flores ao seu redor.

-- Aqui, Adelaide – continuei, diante da amiga ainda


extasiada -- estamos em um Departamento que necessita
de defesas seguras contra as emanações que se irradiam do
Vale, pois acomoda os suicidas em interregnos
reencarnatórios, quando se acham extremamente
suscetíveis às emanações do mal, desguarnecidos de suas
proteções naturais. Poderíamos dizer que aqui os espíritos
se encontram quase nus, desvestidos de suas habituais
roupagens. Não, não pense que os veremos em forma pura
– adiantei-me ao perceber-lhe o pensamento assustado – o
espírito puro não existe ainda no plano em que vivemos. Na
verdade continuam revestidos de material orgânico, porém
bastante tênue e instável. Acalme-se! Vamos visita-los e
logo você compreenderá melhor.

O lago atua qual malha absorvente de eflúvios, particular


propriedade da água, como sabemos. As árvores ao redor
são cerejeiras mantidas em permanente estado de floração,
cujo viço branco também guarda especial absortividade das
irradiações do pesar. As melodias, permanentemente
irradiadas das estátuas, funcionam como um manto musical
abafador das emanações do desespero e da insegurança,
neutralizando com eficiência seus efeitos perturbadores. O
visitante no entanto, que aqui chega ainda portando
sentimentos pesarosos, é impedido de atravessar a ponte
que leva ao interior do Departamento, devendo aguardar ou
retornar desse ponto. Espíritos lúgubres, repletos de
negativismos, não podem adentrar neste ambiente, e por
isso, a vegetação aqui não lhes sofrendo as influências
nefastas, detém especial exuberância, sendo até mesmo
mais expressiva do que a do nosso Templo Central, onde
todos têm natural acesso.

Três enormes edifícios em forma de cúpulas erguem-se na


pequena ilha rodeadas por águas puras e mansas. No centro
uma torre pontiaguda, vítrea, como uma espícula, erige-se
para o alto, emprestando à arquitetura um aspecto
futurista. Entramos em um imenso salão onde vários
operários transitavam e procuramos por Fausto, o
interlocutor direto de nosso trabalho. Expusemos-lhe a
situação de Alberto e ele se prontificou a agilizar os
procedimentos habituais mediante a urgência do caso.
Recorreria prontamente a informações superiores,
estabelecendo o plano de
75

tratamento e em breve, os contatos necessários com os


envolvidos diretamente no processo seriam levados a efeito.

Alberto foi imediatamente transferido para o Departamento


a fim se agilizar o seu preparo, dando-se prosseguimento ao
seu restringimento, o que demandaria alguns dias. Restava-
nos por ora, apenas esperar o andamento do tratamento
proposto.

A embrioterapia é o mais eficaz recurso terapêutico usado


em nosso plano em favor dos suicidas, principalmente
daqueles que estão na iminência de ovoidização. Visa
coloca-los em contato com as salutares energias maternas,
a fim de adestrar convenientemente seus impulsos auto
catalíticos. Como vimos, tais pulsões podem terminar por
desorganizar completamente a estrutura perispiritual do
psicolítico (Termo de origem espiritual oriundo de Psicólise,
já definido, significando aquele que no mundo espiritual
continua se auto destruindo, o suicida do espírito).
Conduzido no entanto, para o ambiente uterino, ele
encontra sua devida orientação, de modo a se acomodar
em natural processo reencarnatório. O impulso contrativo,
dessa forma, não é simplesmente forçado a uma repressão,
mas reorientado e devidamente aproveitado. O homem
terreno guarda a ilusão de que se pode simplesmente
eliminar estes impulsos patológicos, fazendo-os
desaparecer, mas no mundo biológico eles funcionam quais
projéteis cujas trajetórias não podem ser obstaculizadas
sem que provoquem estragos ainda maiores, devendo ser
reorientados a fim de que minorem seus efeitos. Ao entrar
em contato com o útero materno, esgota-se-lhe o impulso
contrativo, invertendo-o no sentido da expansão, levando
ao refazimento do períspirito. O impulso histolítico é
exaurido e o histogênico é estimulado satisfatoriamente,
detendo-se assim a ovoidização.

Serve ainda a embrioterapia para o escoamento do


potencial de negatividade do suicida. A massa embrionária,
por especial propriedade da carne, presta-se como
adstringente poderoso de suas energias degeneradas,
drenando-lhes o potencial destrutivo. De modo geral esse
escoamento vibracional é de tal monta que imprime graves
deformidades à massa celular em desenvolvimento,
tornando-a incompatível com a vida, terminando o autocida
(Aquele que comete autocídio, o mesmo que suicídio) por
ser espontaneamente expulso. Em muitos casos no entanto,
o abortamento natural não se faz esperar, pois as energias
negativas que irradia na mãe tornam-no vítima de criminosa
expulsão. Um mal sem justificativas, mas que as sábias leis
da vida fazem com que redunde em proveitos para o Bem,
servindo-se para a correção dos rumos do suicida. O
sofrimento abortivo termina também por ser terapêutico
para este, pois sua

76

consciência registrará a frustração diante da morte


prematura, fixando o ensinamento da real valorização da
vida.
A isso ainda se deve acrescentar o fato de que o fole uterino
é um auxiliar da drenagem vibratória do reencarnante,
funcionando também como uma desembocadura para os
seus impulsos negativos. Tudo isso faz da embrioterapia o
melhor remédio para o suicida, indispensável na maioria das
vezes, à sua recuperação.

-- Mas para isso então, a embrioterapia deve contar sempre


com mães dispostas ao sacrifício. Será sempre possível
encontra-las receptivas, acolhendo em suas intimidades
entidades tão desequilibradas?

-- Isso requer cuidadosas considerações. Na verdade, as


mães nem sempre se acham de fato, dispostas a esse
sacrifício, e quase sempre a prova lhes é imposta por
deméritos. Trata-se comumente de mulheres que realizaram
abortos em outras existências e não detém condições
saudáveis para o pleno desenvolvimento fetal. Trazem
lesões energéticas no aparelho reprodutor, tornando-as
incapazes de saudável sustento ao embrião, servindo então
para a reencarnação de espíritos igualmente lesados, como
os suicidas. Outras, são mulheres levianas, que praticam o
sexo descompromissado, guardando natural aversão à
gravidez, com firme disposição à prática do aborto
criminoso. Não somente mulheres, mas homens frívolos em
busca dos prazeres fáceis, que também são chamados à
responsabilidade pelos seus atos. Neste caso a prova lhes é
imposta pelas Leis Divinas, que acomodam aqueles que
negaram a existência junto àqueles que também recusam o
nascimento.
São fatos que servem como recursos terapêuticos para
todos os envolvidos, chamando a atenção daqueles que
lidam com o sexo como se fosse mero veículo de prazeres e
ensinando a outros a valorização da vida. Assim funciona a
Medicina da Lei, que a tudo condiciona de modo que nada
exista sem objetivos sublimes, e até mesmo o Mal encontre
realizações no Bem.

Os protagonistas do processo no entanto, não são


escolhidos ao acaso. O Departamento de Embrioterapia se
encarrega da cuidadosa seleção daqueles que irão receber o
suicida.

Normalmente exige-se a existência de relações entre os


envolvidos, pois dificilmente um espírito é aceito para
reencarnação sem o consentimento, mesmo inconsciente,
de seus pais. Essas relações são cuidadosamente
estudadas, buscadas muitas vezes no passado, para que o
processo se faça alicerçado na lei de causa e efeito e
redunde em proveito para todos. Sem

77

que essas interações se estabeleçam, suas chances de êxito


se tornam muito reduzidas.

Importa ainda considerar que o organismo materno está,


até certo ponto, defendido pelo alto poder destrutivo das
energias fetais degradadas, pois a natureza lhe dotou de um
dos mais qualificados mecanismos de defesa contra tal
potencial desorganizante: a placenta. Esta é, seguramente,
o mais eficiente instrumento biológico de adstringência
vibracional que se conhece. Ao mesmo tempo em que nutre
o reencarnante e recolhe seus excretos biológicos, absorve
também com sabida avidez as suas energias negativas,
impondo-lhes eficazes bloqueios e drenando-as com
segurança através da organização materna. É, dessa forma,
um verdadeiro filtro miraculoso cujas células, especializadas
nessa função, sustentadas pelo amor materno, minoram a
carga deletéria do reencarnante, proporcionando-lhe um
desenvolvimento embrionário compatível com suas
necessidades. Muitas vezes no entanto, essa carga
vibratória ultrapassa o limiar neutralizador da placenta,
tornando-se passível assim de atingir o organismo da mãe,
desencadeando os incômodos sintomas da gestação. O
metabolismo materno, ativando os seus próprios
emunctórios vibracionais (Órgão, abertura ou canal por
onde se eliminam do organismo os produtos da depuração
do metabolismo, não somente físicos, mas também
vibracionais), intensificará a eliminação de líquidos
orgânicos, carreadores dessas energias deletérias, através
do aumento do fluxo urinário, da sudorese e, mais
frequentemente, dos vômitos, estabelecendo-se dessa
forma a hiperemese gravídica (Vômitos habituais da
gravidez). Em graus mais avançados, essas vibrações
podem ainda ocasionar as infecções ginecológicas e
urinárias da gestação, quando essas cargas energéticas são
de tal monta que os microrganismos são convocados para
auxílio mais eficiente na drenagem fluídica excedente. Se
nada disso é suficiente, assistiremos então ao
estabelecimento dos quadros de eclampsia (Quadro
caracterizado pelo aumento da pressão arterial durante a
gestação, podendo trazer graves consequências para a mãe
e o feto), que a medicina terrena chama também de
toxemia gestacional e que corresponde a uma verdadeira
intoxicação vibratória, podendo aí sim, trazer graves danos
à organização materna, quando a gravidez não é
interrompida pelo abortamento espontâneo ou induzido.
Quadros mais dramáticos estes que, no entanto, guardarão
sempre correspondência entre causa e efeito para se
estabelecerem nos destinos de seus protagonistas.

Caminhando por extenso corredor, notávamos o grande


número de colaboradores movimentando-se ativamente,
porém

78

com calma e respeitoso silencio sem provocar o mínimo


sinal de tumulto no ambiente. O Departamento não
somente estabelece as diretrizes da embrioterapia, como
prepara, acomoda e acompanha o suicida em sua incursão
na carne, até a sua plena libertação do processo auto
catalítico. O serviço demanda número expressivo de
trabalhadores especializados. Suas enfermarias acolhem
ainda os suicidas nos interregnos reencarnatórios,
estacionados em delicados estágios em que se apresentam
detidos na fase embrionária do desenvolvimento físico,
impregnando-se suas malhas perispirituais da aparência de
fetos dismorfos (Sem forma), fenômeno aqui chamado de
embriomorfia.

Percebendo a extrema curiosidade da irmã, convidei-a para


uma rápida visita à Câmara dos Embrióides, como também
são conhecidos os embriomorfos, a fim de que pudesse
avaliar a delicada condição desses espíritos. Mediante
autorização, penetramos assim a referida enfermaria.
Enorme sala acomoda pequenas câmaras semelhantes às
estufas existentes na Terra, onde se abrigam os recém
nascidos. Fios quase invisíveis pendem do teto, conectando-
se a estes pequenos cestos.

-- São todos espíritos suicidas, assistidos pela nossa colônia


explicava à Adelaide. – Passaram por uma primeira


encarnação a fim de se refazerem da louca desventura da
auto destruição. Estes Embrióides no entanto, participaram
de encarnações malogradas, pois não detiveram suficientes
impulsos vitais para se sustentarem na carne. Poucos
entretanto, evoluíram até a expulsão espontânea, sendo a
maioria vítima do aborto criminoso.

De modo geral estes espíritos desencarnam com reduzido


potencial expansionista e por isso não estabelecem
adequada histogênese perispiritual, aprisionando-se na
forma física embrionária detida. Muitos trazem os sinais de
teratogenias (Desenvolvimento fetal em formas
monstruosas), impostas na carne, pelas suas vibrações
deletérias e outros ainda se deixam impregnar pelas lesões
próprias do abortamento instrumental. Assim permanecerão
até que novas oportunidades reencarnatórias os libertem do
aprisionamento da forma. Sob os cuidados de dedicados
colaboradores permanecem aqui, aguardando as bênçãos
de novas reencarnações. Suas necessidades de sustento
são muitíssimo reduzidas e consistem praticamente de calor
e vibrações, principalmente aquelas oriundas da
maternidade. Os fios pendentes do teto trazem estas
emanações, colhidas de diversas origens, como
pensamentos de familiares distantes, preces de entes
queridos e energias colhidas em reuniões de

79

intensificação vibracional, sessões levadas a efeito pelo


Departamento com este fim.

-- Quer dizer que os sentimentos maternais que a estátua


suscitou-me, estão sendo empregadas aqui neste
momento? –

lembrou a amiga admirada.

-- Sem dúvida, e muito bem aplicados!

Convém esclarecer que o Departamento acomoda somente


os Embrióides oriundos do Vale, enquanto outros, não
suicidas, encontram assistência em diferentes colônias do
mundo espiritual. Existem ainda aqueles que muitas vezes,
permanecem imantados aos organismos maternos depois
de expulsos do meio uterino, jungidos por laços de amor ou
intensos ódios recíprocos, compondo quadros graves,
exigindo solução no tempo.

Comumente tal comportamento contudo, não decorre de


reencarnantes suicidas, pois devido aos seus precários
estados vibracionais, estes não se acham capazes de
alimentar tais sentimentos, e mesmo inconscientes, dão-se
conta de suas condições de devedores da vida.

Observando respeitosamente os pobres seres dismorfos,


protegidos por incubadoras translúcidas, podíamos perceber
suas atividades vitais através dos batimentos cardíacos,
visíveis nas pulsações das artérias superficiais. A intensa
contração de suas auras, condensadas pela miniaturização,
envolve-os em névoa leitosa, deixando-lhes os limites
físicos pouco precisos.

O aborto criminoso entretanto, deve ser considerado como


um fator agravante da embriomorfia. Quando o suicida
consegue maior permanência no ambiente uterino, pode
neutralizar com mais eficiência o seu potencial contrativo,
desencarnando em melhores condições de completar
satisfatoriamente sua histogênese perispiritual. Fato,
todavia, diretamente dependente da potenciação espiritual
de cada um e dos méritos morais arquivados. Quanto maior
as aquisições evolutivas do indivíduo, maiores são suas
possibilidades de refazimento.

-- Penso naquelas que abortaram e hoje se dão conta de


haverem provocado tanto mal a seres já por si tão infelizes.
Como poderemos ajudar a consolar esses corações que
caíram? –

questionou a irmã, preocupada com aquelas que


acobertaram o crime em plena ignorância de seus atos.
-- Devemos compreender que não são somente as mulheres
que abortam. Muitas vezes são elas vítimas da
incompreensão de familiares ou de companheiros que não
assumem com elas as responsabilidades pela maternidade.
Desvalidas e rejeitadas pela sociedade, veem-se compelidas
ao ato por forças das

80

circunstancias e profundas inseguranças diante da vida.


Sem considerarmos aquelas que são alvos de estupros ou
seduções.

Não nos iludamos, os homens também realizam abortos e


podem se responsabilizar muito mais pelo ato impensado,
do que as mulheres. Para aquelas que incorreram no erro
sem conhecer a extensão do mal praticado, podemos
aconselhar a dedicação à gravidez desamparada, ajudando
as mães que desejam ter seus filhos, mas não encontram
recursos para isso. E que tratem de criar condições para
engravidarem, o mais rápido possível, se puderem, a fim de
minorarem seus compromissos diante da vida.

-- Nosso Alberto corre o risco de se estacionar na


embriomorfia neste caso? – perguntou preocupada a amiga.

-- Sim, não conhecemos ainda o seu potencial moral, mas


mesmo que ele se aprisione na embriomorfia, sua condição
será muito melhor do que na pseudomorte ovoidal, e seu
tratamento será muito facilitado. A ovoidização é patologia
muito mais grave e significa perda evolutiva muito mais
expressiva do que a embriomorfia. Os embrióides detêm
mais rápido potencial curativo, e muitos conseguem se
desenvolver completamente até a forma adulta, mesmo no
Plano Espiritual, sem passar por imediata reencarnação.

81
8
capítulo

NA CÂMARA DOS OVÓIDES

“O salário do pecado é a morte”

Paulo – Romanos, 6:23

Não podíamos no entanto, deixar o Departamento sem


completarmos as lições do dia, e por isso convidei Adelaide
para examinar de perto a Câmara dos Ovóides, contígua à
enfermaria que visitávamos.

-- Conheço a existência destes estranhos seres, mas jamais


vi um deles – dizia a estudante, admirada diante da ímpar
oportunidade.

Uma sala de iguais dimensões continua a Câmara dos


Embrióides, construída nas mesmas feições, contendo
pequenos berços também conectados por fios translúcidos.
Ali no entanto, estes são abertos, pois os ovóides não
necessitam de proteção vibratória e temperaturas
diferenciadas, como os embrióides.

-- Aqui se acomodam os ovóides suicidas em preparo para a


embrioterapia com seletivo potencial de recuperação, pois
existem outros, oriundos de outras etiologias. Há aqueles
que são filhos do ódio, centralizados em monoideísmo de
revolta e vingança. Os que aqui são assistidos entretanto,
não alimentaram tais sentimentos, mas são apenas vítimas
de avançada Psicólise.

Examinemo-los detidamente a fim de que você possa


ajuizar-se dos limites da queda humana.

O ovóide é uma verdadeira regressão biológica,


representando o colapso da forma e da consciência. O
progresso se efetua através de paulatinas degradações em
que a configuração humana se contrai, inicialmente pela
perda dos membros e redução significativa do tronco, até
que se estaciona em sua forma final, assemelhando-se a
uma mórula embrionária agigantada, pois guardam
dimensões que variam entre as de uma laranja e as de um
crânio de recém nascido. A alta densidade da psicosfera (O
mesmo que aura) envolve-o em uma

82

névoa, tornando-lhe os contornos imprecisos e


emprestando-lhe um aspecto gelatinoso, como os
embrióides. Sua membrana externa acinzentada, à
semelhança da mórula, apresenta desenhos losangulares
arredondados.

Toquei de leve a fronte de Adelaide de modo a permitir-lhe


uma visualização mais abrangente do estranho ser sob
nossa respeitosa análise. Abaixo da membrana protetora,
podíamos vislumbrar os vasos sanguíneos com pulsões
quase imperceptíveis denotando-se-lhe a fraca atividade
vital. Os órgãos internos se apresentam reduzidos em suas
formas embrionárias. A bomba cardíaca bate fracamente
em sístoles frouxas, intercaladas por longas diástoles. Sua
anatomia está regredida ao coração dos répteis,
apresentando quatro câmaras incompletas, formadas por
dois átrios e um só ventrículo parcialmente dividido. O
sistema nervoso também se acha retrocedido aos
primórdios de seu desenvolvimento

embrionário,

mostrando-se

como

arquencéfalo, o cérebro primitivo, constando de um tubo


neural dividido nas três vesículas encefálicas primordiais. Os
doze pares de nervos cranianos e suas formações
ganglionares no entanto, acham-se presentes. Sua
temperatura é instável, variando com a do ambiente,
mantendo-se menos de um grau acima deste.
-- Estes cistos humanos, assistidos por dedicados
enfermeiros espirituais, estão em permanente sono estival,
quais os animais hibernantes – disse à Adelaide. – O
pensamento contínuo está neles detido momentaneamente
e não há registro sequer de sonhos. O fenômeno aos nossos
olhos demonstra, sem sombra de dúvidas, que o
encistamento não é unicamente um patrimônio dos animais
inferiores. O longo letargo lhes permite a espera por
melhores condições de vida, e dessa forma, podem resistir
às situações adversas do ambiente espiritual em que se
projetaram.

Importa ainda considerar junto ao estudioso, que a


ovoidização, embora pareça exótica aos nossos olhos, não
se trata de uma aberração biológica completamente
estranha à natureza do ser.

Foi e continua sendo um procedimento vitorioso nos reinos


inferiores da existência, arquitetado pelo princípio
inteligente com o fim precípuo de se resguardar, diante de
condições adversas da vida. Aparentemente foi abandonado
no plano carnal, à medida que este evoluiu e desenvolveu
organismos mais complexos para a sua subsistência, porém
continuou a ser um mecanismo biológico útil após a morte
física. Depois do desenlace, por não encontrarem no Plano
Espiritual condições favoráveis à manutenção de suas vidas,
os animais superiores e mesmo o homem primitivo
promovem o encistamento perispiritual,

83

recolhendo a consciência ainda insciente, em sono letárgico,


aguardando desse modo de forma cômoda, a oportunidade
de novo renascimento na carne. Por isso, os ovóides
humanos já habitaram abundantemente as paisagens
espirituais de nosso planeta nos primórdios da humanidade,
até que conseguiu o homem desenvolver o seu períspirito e
amadurecer sua consciência, a tal ponto de viabilizá-los
para o sustento do pensamento contínuo fora da matéria,
modelando no mundo extrafísico uma estrutura capaz de
mantê-lo em vida ativa, tal qual nos encontramos hoje.
Desta maneira, os desencarnados que recorrerem à
ovoidização estão apenas recordando antigo e bem
sucedido mecanismo da evolução, amplamente utilizado no
passado e registrado na memória espiritual do ser vivente.

-- Observe outros aspectos deste estranho ser – continuei. –

Olhe mais atentamente na sua superfície e veja que nos


centros dos losangos da membrana protetora, que não
poderíamos chamar propriamente de pele, há pregas que
confluem para pequenos orifícios. São dutos que vertem
uma secreção pegajosa, secretada quando o ovóide não
está acomodado na intimidade de algum hospedeiro. Essa
secreção o protege, ajudando-o a fixar-se em qualquer
superfície em que esteja. Notemos também que na parte
inferior do ovóide se observa um pequeno orifício
pregueado que continua em fímbrias delgadas. Trata-se de
sua ventosa, através da qual ele se alimenta. Não de
detritos ou substâncias de natureza material, porém de
vibrações.

Instalam-se estes cistos humanos, regredidos a organização


tão rudimentar, preferencialmente na mente humana, pois
se alimentam das emanações psíquicas de suas vítimas.
Comumente se alojam na fronte de seus hospedeiros em
íntima conexão com o centro cerebral, fonte de intensos
eflúvios mentais. Como essas vibrações não produzem
resíduos e o metabolismo celular está praticamente
estacionado, a organização do ovóide dispensa o trabalho
dos órgãos digestivos e excretores, que se encontram
reduzidos em suas formas embrionárias, completamente
destituídos de atividade orgânica. Naturalmente que levarão
ao esgotamento das energias psíquicas daqueles que
parasitam, acarretando-lhes graves transtornos mentais.

-- Não estaremos sujeitos ao ataque de um deles?

-- Não se intimide, minha amiga, tal assédio se fundamenta


em certos quesitos que seguramente não trazemos no
momento.

Há necessidade de sintonia para que a parasitose se instale


em qualquer nível em que se manifeste, pois vítima e algoz
sempre se unem mediante anuência da Lei de Deus.
Observe no entanto,

84

que o ovóide possui um lentíssimo movimento pulsátil, que


é a sua respiração, na razão de um ciclo completo a cada
dois minutos aproximadamente, na mesma frequência das
vibrações que está absorvendo neste instante. Este
movimento cessa por completo, uma vez que não esteja se
alimentando. Ele absorve neste momento, nossas emissões
de simpatia, como podemos notar pela ligeira sensação de
frio nas pontas de nossos dedos, ao lhe aproximarmos
nossas mãos. No mundo subumano das trevas no entanto,
eles são temidos e usados como verdadeiras armas de
persuasão por espíritos com intenção de domínio, que
podem aplica-los tanto em encarnados quanto em
desencarnados, e por isso os ovóides são muito procurados
por estes infelizes. Uma triste realidade de nosso mundo,
minha amiga.

-- É assustador, Adamastor, observarmos como pode


degenerar a alma humana. Um ser superior transmudado
em uma massa embrionária disforme, perdendo
completamente a configuração já conquistada. Isso me
deixa pasma diante da possibilidade da regressão.

-- Nossos amigos da carne costumam suscitar controvérsias


diante do ovóide, detentor de nítido processo retroativo da
forma, por não terem compreendido muito bem a revelação
que parece formalmente contestá-la. Aqui o fenômeno da
degradação está patente aos nossos olhos, e todos os dias o
constatamos em nossos assistidos, portanto não podemos
lhe negar a veracidade.

Sabemos contudo, que o patrimônio evolutivo já


conquistado pelo ser, continua retido como potencial e na
verdade não se perde.

Porém, não há dúvidas de que as forças involutiva da


contração foram colocadas em funcionamento pela alma
doente, que requererá imenso esforço para se recuperar,
retardando sobremodo o seu progresso. De forma que não
podemos mais duvidar da possibilidade de regressão,
representando sem dúvida, o maior dano que o espírito é
capaz de se infligir. As grandes quedas morais do ser em
evolução são sempre possíveis, desencadeando
movimentos retrógrados para si mesmo, até que este atinja
os patamares da sublimidade, de onde se torna improvável
resvalar-se novamente para os abismos do mal e da revolta.
Enquanto isso for possível, permite o Senhor a liberdade de
se rebelar contra suas leis; destarte, tais graves erros
recorrerão sempre em forma de prejuízos evolutivos para
quem os pratica, única forma de se coibi-los, ensinando com
isso, a não mais exercê-los.

A câmara dos ovóides no Departamento de Embrioterapia


detém aqueles com algum potencial de recuperação
imediata.

85

São encaminhados para reencarnações frustras, mas


bastante salutares para eles. Levarão a formações
teratogênicas, incompatíveis com a vida, muito mais graves
naturalmente, do que as induzidas pelos embrióides. Serão
assim os protagonistas de diversas patologias da prenhez,
como as ectopias gestacionais (Gravidezes que ocorrem
fora do útero, frequentemente na tuba uterina, e mais
raramente no ovário ou na cavidade abdominal), os
deslocamentos placentários, os blastomas coriais (Tumores
uterinos oriundos de trofoblastos fetais defeituosos. Os
trofoblastos por sua vez, são as células que formarão a
placenta), como a mola hidatiforme (Processo tumoral
desenvolvido na gravidez, pela degeneração das vilosidades
coriônicas, produzindo-se uma massa de cistos que lembra
um cacho de uvas), e sobretudo as malformações
embrionárias (Defeitos na forma dos embriões), absurdas do
ponto de vista biológico, despertando no observador terreno
a noção de que a vida está subordinada ao acaso e a
presença do Divino é incerta e duvidosa.

-- O pesquisador da Terra imputa a erros genéticos


aleatórios e injustificáveis as perturbações induzidas pelos
espíritos regredidos

– dizia a Adelaide, -- mas não são nada disso, são ensaios


biológicos de desovoidização como chamados aqui.
Produzem verdadeiras aberrações biológicas, mas ricas de
inquestionável valor terapêutico para esses desvalidos
seres. A natureza não produz inutilidades, e mesmo a
teratogenia guarda sua necessidade. Após vários ensaios
reencarnatórios frustros, o ovóide pode se recuperar e
refazer seu molde perispiritual na conformação humana.
Depois nascerão ainda como mongóis, imbecis ou portando
outras malformações genéticas, as mais diversas,
catalogadas pela ciência terrena, sem lhes alcançar a causa,
erradicada no espírito. Com esforço porém, podem se
recuperar e continuar assim a acompanhar o grupo humano
ao qual pertencem. Grande parte deles no entanto, não se
restabelecerão e serão enviados para humanidades
primitivas, onde prosseguirão suas evoluções.

-- Portanto, deduz-se que os homens não deveriam deter


estes processos uma vez identificados, não é mesmo?

-- Sim, Adelaide, mais uma vez o aborto comparece aqui


como fator de prejuízos para todos os envolvidos. Estes
processos gestacionais devem ser suportados até o ponto
em que não ameacem a vida das mães que os acomodam.
Embora dolorosos, são ressarcimentos expiatórios e devem
ser tolerados ao máximo, a fim de que cumpram com suas
finalidades. As energias desequilibrantes da massa ovoidal
são exoneradas para a carne nesses choques biológicos,
aliviando-lhes a danosa ação no períspirito. Para o espírito
nessas condições, funcionam como

86

verdadeiros choques, quais os eletrochoques da psiquiatria,


levando a efeito com o mesmo propósito de despertamento
da consciência adormecida na loucura. Irão refletir no
espírito como salutar impulso de refazimento, invertendo
como já vimos, o impulso contrativo do encistamento
ovoidal.

Cabe ainda considerarmos que existem ovóides, tão


intensamente atados aos seus hospedeiros desencarnados,
que reencarnam jungidos a eles, produzindo estranhas
enfermidades para a análise dos estudiosos do mundo,
como o cisto dermóide, uma malformação embrionária,
descrita pela patologia humana, rara e incompreensível.
Esta evidente comprovação da existência do ovóide
consiste num exótico tumor cístico, que se desenvolve de
forma anômala na região frontal daquele que o transporta,
formado por uma pele envolvendo uma massa de restos
embrionários em estado rudimentar, onde se nota a
presença de pelos, glândulas sebáceas e sudoríparas,
cartilagens, ossos e dentes, demonstrando que junto com o
hospedeiro, o ovóide submeteu-se a caótico ensaio de
desenvolvimento embrionário.
Nosso conhecimento da perfeição das leis divinas obriga-
nos a inocentar a natureza pela produção dessas estranhas
patologias, sendo o próprio espírito caído, o único artífice
dessas graves desarmonias.

Adelaide dava-se por satisfeita e era forçoso terminarmos


nossas observações, finalizando a proveitosa visita ao
Departamento. Respeitosamente deixamos a enfermaria
com a esperança de que o homem terreno aprenda
definitivamente a valorizar a existência e a se deixar
conduzir pelo amor, a fim de que as aberrações, sob nossas
vistas, deixem definitivamente de macular as paisagens
divinas da vida.

-- Não terminamos nosso trabalho, em absoluto, Adelaide –

disse à amiga que acreditava estarmos encerrando ali nossa


tarefa, ao entregar Alberto aos cuidados do Departamento.

Quando assumimos uma tutela, responsabilizamo-nos pela


sua completa execução. Podemos nos servir da ajuda de
outros tarefeiros, mas trabalhamos com um modelo de
assistência integral, há muito adotado em nossa colônia.
Acompanhamos nosso enfermo até que ele se veja capaz de
caminhar por si mesmo. Enquanto não terminamos essa
tarefa, não passamos adiante. Tal roteiro de serviço
pressupõe o contato com várias atividades assistenciais,
que nos levam à dilatação do conhecimento em um sentido
unitário e global. Afastamo-nos assim da assistência
estritamente especializada ainda em curso na Terra, forma
eficaz de trabalho, mas que nos distancia da visão de
87

conjunto, tão necessário ao nosso crescimento. É certo que


em diversas

circunstancias,

necessitamos

de

conhecimentos

especializados como agora, mas somos forçados a


acompanhar de perto o processo, e com ele crescemos na
assistência integral.

Outrora funcionávamos no modelo terreno, onde cada


especialista tratava de uma particularidade do enfermo,
mas se perdia o contexto global de suas necessidades, e
ninguém terminava por responsabilizar-se por ele. Por isso
nossos dirigentes nos trouxeram esta outra forma de
intervenção muito mais eficiente, capaz de nos atar aos
destinos do assistido, de nos fazer envolver afetiva e
efetivamente com ele, incentivando-nos a lutar
verdadeiramente pela sua recuperação. Na Terra, com muita
propriedade se diz que o doente tem muitos médicos; na
verdade não tem nenhum. Isso é exatamente o que
conseguimos evitar.

Por isso, todos os embrióides e ovóides, além da carinhosa


assistência que aqui recebem de enfermeiros
especializados, tem todos os seus tutores zelando de perto
pelos seus destinos. Assim funciona a misericórdia de Deus,
que assiste o homem através do próprio homem.

Deixamos o Departamento com o compromisso de nos


encontrar no momento aprazado, com os encarnados que
seriam envolvidos no processo de auxilio ao nosso amigo.

88
9
capítulo
CATHERINE LYOT
“Aquele dentre vós que está sem pecado, seja o primeiro
que lhe atire uma pedra.”

Jesus – João, 8:7

Fez-se noite e demandamos a crosta, acompanhados de


Fausto. Rumávamos para grande metrópole das terras
brasileiras e seguíamos o tarefeiro do Departamento de
Embrioterapia, encarregado de nosso auxílio. Levávamos
Alberto, resguardado em envoltório protetor. Volitávamos
por região de densas trevas, atravessando ligeiros sem nos
deter nas particularidades do triste caminho, repleto de
angustiosas paisagens. Em breve atingimos agitado centro
urbano, que ainda se acomodava nas últimas atividades do
dia e os humanos se preparavam para o repouso noturno.
Seguíamos silentes e resolutos, pois Fausto sabia com
precisão aonde se dirigir. Adentramos turbulenta região
urbana, impregnada de intensas radiações mentais, que nos
penetravam quais dardos agudos e dolorosos. Entidades
vestidas de sombras se revolviam intensamente em cada
dobra de rua, movimentadas por aspirações humanas de
baixo teor vibratório. Não havia dúvidas: estávamos em
região de prostíbulos, no submundo humano. Acomodavam-
se os homens cansados de suas lides diárias, mas os
espíritos amantes das paixões carnais despertavam para os
prazeres noturnos, agitando de augúrios sombrosos a
aparente quietude da noite terrena.
Adelaide mostrava-se assustadiça diante do ambiente nada
aprazível. Ofereci-lhe o apoio do meu braço a fim de que se
sentisse mais segura.

-- Não se aflija, irmã, nada temos a temer do lugar que


adentramos, pois estamos a serviço do Cordeiro – afiancei,
procurando tranquiliza-la. – Mantenha firme o seu
pensamento e sua presença nem mesmo será notada pelos
espíritos vampirescos que se comprazem neste ambiente de
sevícias aviltantes.

Estacionamos diante de um casarão à semelhança de


pequeno palacete, protegido por grades em meio a
exuberante

89

vegetação. Espíritos viciados do sexo se acomodavam


sequiosos dos prazeres da carne, acotovelando-se nos
cantos escuros, denotando a triste natureza do lugar onde
adentrávamos. Uma carruagem estacionava nos portões do
palacete no mesmo instante em que chegávamos, deixando
simpática madona, vestida com exuberante sedução,
exalando extravagantes essências francesas, acompanhada
de uma jovem de traços morenos.

-- Aqui temos Catherine Lyot, irmãos, a amiga a quem


vamos recorrer nesta noite – dissenos Fausto, indicando
respeitosamente a mulher madura que chegava. – Trata-se
de uma francesa radicada no Brasil. Como os amigos já
notaram, estamos numa casa noturna de comércio do sexo,
onde infelizmente, tivemos que buscar socorro para Alberto.
Sei que vocês esperariam melhor ambiente para situar
nosso amigo em posição tão delicada, porém em obediência
às determinações que nos chegaram do Plano Superior, este
é o lugar que melhor lhe convém, e esta a pessoa mais
apropriada para recebe-lo, tenham a certeza disso.

Ainda não sabemos o que une os protagonistas do nosso


roteiro, mas estejamos convencidos de que estão atados
por laços do passado, cujas origens ainda ignoramos.
Ademais, fomos informados de que entidades de planos
mais altos estão interessadas no socorro a esta
desventurada amiga e guardam a intenção de mudar-lhes
os rumos do destino, chamando-a para responsabilidades
diante da avida. A jovem que a acompanha é Rosa, uma
órfã a quem ampara e devota apreço maternal, apesar de
ter sido levianamente induzida à sua mesma vida
desgraçada.

-- Ela será coagida a receber o nosso amigo por filho frustro


neste caso? Não me parece com cara de quem irá aceitar
isso de bom grado – considerou Adelaide.

-- Embora tenhamos meios de efetivar o processo à revelia


de sua anuência, é conveniente que tentemos convencê-la
da necessidade de aceitar a prova, aproveitando o ensejo
para renovar os tristes caminhos de sua vida. Assim tudo
será mais fácil e as chances de êxito serão maiores para
todos – explicou-nos o dedicado tarefeiro, já bastante ciente
de seu trabalho.
-- Catherine – prosseguiu o amigo – merece todo o nosso
respeito. Não a tratemos com a hipocrisia dos homens, que
usam de palavras condenatórias e atitudes de menosprezo,
como se lhes fossem superiores, pois não temos esse
direito. Sabemos pouco de seu passado, porém embora
identifiquemos nesse momento a condição de hetera (Termo
que na Grécia antiga designava a mulher dissoluta, sendo
empregado comumente para caracterizar uma prostituta
elegante e

90

distinta), no exercício de execrável proxenetismo (Ato de


servir como mediador à libidinagem alheia, favorecer a
prostituição, manter prostíbulos ou ter lugar destinado a fins
libidinosos), estamos cientes de que se trata de valoroso
espírito, antiga monja, desviada de suas intenções na
presente encarnação. Esconde por trás dessa sua aparência
de requintada mulher da vida, uma alma aflita e vazia,
profundamente sofrida, pois sabe que este não é o destino
para o qual renasceu.

Entregou-se à prostituição ainda na França, de onde vem.

Sua família faliu nos negócios, após o falecimento de seu


pai e ela, renegando-se a viver na simplicidade, preferiu
prostituir-se, explorando seus dotes de refinada beleza.
Seus entes queridos a repudiaram por isso, e para não cair
no descaso, preferiu partir para longe unicamente com o
propósito de enriquecer e reconquistar a posição social
perdida em seu país de origem. E
aqui já se firmou como pessoa de prestígios e dotes de
conquistas fáceis, embora naturalmente, desperte profunda
aversão e inimizade nas pessoas que se consideram na
posição de moralistas. Especializou-se em servir os
senhores mais abastados dessa sociedade fútil e com isso
acumula bens que lhe conferem respeitável situação
econômica. É a dona desta casa e arregimenta jovens para
o vil comércio do sexo, às quais explora.

Eis o triste cenário tecido pela nossa desventurada amiga,


palco de nossos trabalhos, mas o Senhor está conosco do
mesmo modo que está no coração dessas infelizes.
Naturalmente não podemos apoiar esse abjeto negócio,
porta para profundas dores da alma, mas como já nos
asseverou o Mestre, não temos o direito de atirar-lhes as
pedras da condenação. São apenas irmãs trêfegas,
esquecidas de que são feitas de substâncias divinas,
merecedoras de nossos melhores sentimentos.

De imediato percebemos que o pensamento de Heitor, o


amigo que nos acompanhou nas Cavernas, se fazia presente
em forma de ondas de reconfortante apoio, indicando-nos
que liames do coração o uniam à amiga sob nossos olhos.
Respeitosamente oramos em silêncio para que Jesus nos
abençoasse a empreitada e algo nos permitisse realizar em
seu benefício.

Catherine dirigia-se aos seu aposentos a fim de se preparar


para mais uma de suas costumeiras noites. Duas entidades
femininas, vestidas de sombras, aguardavam-na ansiosas
na entrada do casarão, risonhas e frívolas. De imediato
percebemos tratar-se não de entidades malévolas, mas
levianas, unidas pelas teias do sexo, compartilhando com
nossa amiga os seus vícios carnais.

A algazarra do salão que adentráramos era intensa.


Espíritos envolvidos em tristes atitudes obscenas
despertavam-nos profunda

91

compaixão. Emanações pestilentas, mal cheirosas,


atordoavam-nos os sentidos, exigindo-nos grande
concentração a fim de não afetar o nosso trabalho.
Sentíamos por Adelaide, mas ela se mostrava estar em
condições de enfrentar o sórdido panorama sob nossos
olhos, e além disso, precisava adestrar-se no manejo do
submundo humano, se desejava mesmo servir aos que
sofrem, pois este era o palco natural de nossos
empreendimentos assistenciais.

Ademais, aprendemos com Jesus que não são os sadios que


precisam de médicos.

Penetramos nos aposentos de Catherine, acompanhando-a


respeitosamente. O quarto, decorado em primoroso luxuário
francês, repugnava-nos pelos tristes eflúvios da mais baixa
lascívia.

Na porta, um espírito de aspecto grotesco exercia a função


de guarda do erótico aposento, vigiando aqueles que
podiam participar do estranho conúbio de prazeres da
carne, mas sua baixíssima condição vibratória o impediu de
nos notar a presença.

-- O Mal tem também sua organização – disse à Adelaide – e


aproveita para tirar vantagens do comércio com os homens.

Entidades infelizes, cativas do sexo, esgueiravam-se por


entre os móveis, ansiosas pelos prazeres que a noite
prometia, felizes com a chegada daquela que pareciam
idolatrar. Catherine colocou-se diante de grande espelho,
revelando sua enorme vaidade, contrafeita com as
pequenas rugas que já ameaçavam se imprimir em seu
rosto jovial.

Aproximamos nossa destra de sua fronte para lhe ouvir


melhor os pensamentos, tendo em vista que as destoantes
vibrações do ambiente nos obstaculizavam percebê-los de
longe.

Sua mente fervilhava. Pensava em Abelardo, o jovem que


seguidamente a procurava nos últimos meses. Ele lhe
despertara os desejos de mulher há muito obscurecidos
pelos vícios da sexualidade e exigia exclusividade nas
volúpias amorosas.

Desejava realmente estar com ele, mas não convinha


manter-lhe fidelidade, pois não podia dispensar seus
endinheirados clientes. O

pequeno conflito no entanto, logo se diluiu nas fantasias


sexuais que a lembrança do jovem lhe suscitava. As ondas
mentais que se lhe escapavam de imediato refletiram nas
infelizes desencarnadas jungidas a ela, despertando-lhes
atitudes obscenas, fazendo-as proferirem gritos e
gargalhadas estridentes.

-- São crianças inconsequentes, meus amigos – dizia Fausto.


Deixam-se inebriar pelas emanações das fantasias sexuais


de nossa imprudente amiga, nas quais não somente se
comprazem, como também se alimentam. Não podemos
afasta-las daqui, pois estão imantadas ao ambiente. Como
podem perceber, na

92

aparente privacidade deste quarto, pratica-se realmente um


abjeto sexo em grupo. Todos aqueles que se deixam
macular pelos prazeres mundanos deste tipo de erotismo,
onde não imperam os valores da afetividade, do respeito
mútuo e da responsabilidade, veem-se obrigados a
compartilhar com seres das Sombras suas sagradas
energias sexuais. Se os humanos pudessem observar esta
triste realidade, enojar-se-iam dessa prática que repugna
tanto quanto a assistir a loucos deleitarem-se em uma
pocilga sem se dar conta do fato. Um dia os homens
aprenderão que o sexo deveria ser um ato tão sagrado
quanto uma prece.

Fausto tocou carinhosamente a fronte de Catherine e lhe


pediu o recolhimento das ideias em jogo, sugerindo-lhe a
figura paterna a quem muito se afeiçoara. Sabia que a
lembrança do genitor há muito tempo desencarnado impor-
lhe-ia salutar sentimento de culpa, chamando-lhe a atenção
para as responsabilidades da vida. A irmã imediatamente,
abrindo uma das gavetas da penteadeira, pousou os dedos
sobre uma foto antiga onde se adivinhava a imagem do pai,
e deixou que grossas lágrimas lhe corressem pela face
ricamente maquiada, suplicando mentalmente pelo perdão.
Energias de profunda amargura lhe surgiram nos centros
cerebrais da emotividade em direção à região cardíaca.
Fausto, adestrado no manejo das forças vitais, desviou a
corrente, concentrando-a em uma das têmporas de nossa
irmã. Notamos que de imediato, aí se iniciava um processo
de dilatação das artérias temporais. No mesmo instante
Catherine levou seus dedos na referida região, sentindo que
se lhe ameaçava uma de suas terríveis crises de enxaqueca.

-- Aproveitemos o valor da enfermidade que os homens


costumeiramente amaldiçoam – disse o amigo. – Sentimos
ter que lhe desencadear essas dores, mas lhe são benfazejo
freio aos desgastes inconsequentes de forças que lhe
roubam preciosos recursos de desequilíbrio. Embora nos
pareça um estranho paradoxo, a saúde precisa da doença
para se realizar, pois é a única linguagem a que o homem
terreno sabe obedecer, ignorante ainda das leis do
equilíbrio que lhe regem o bem estar orgânico.

Não demorou muito e víamos a decepção na face dos


espíritos obsessores, ao notarem que sua parceira de
prazeres se atirava na cama, meio combalida e
desalentada.
Em breve, Rosa, a jovem que chegara junto com Catherine,
era chamada, adentrando-se ligeira no quarto, trazendo-lhe,

93

ciente do que se passava, a toalha molhada para lhe atar na


testa, único alívio que experimentava nessas ocasiões.

O tumulto dos espíritos se somava agora ao bulício dos


humanos, pois a casa se enchia de janotas, oriundos da alta
sociedade local. Pelintras de faces frívolas, emolduradas
pelos sorrisos irônicos dos aproveitadores e disfarçando a
luxúria em trajes de requinte, exalavam eflúvios pestilentos,
imiscuídos dos odores maléficos do álcool e do fumo,
causando-nos piedade e repugnância pela baixeza da alma
humana.

-- Um bando de obsessores encarnados, explorando


corações infelizes que vendem prazeres fáceis a fim de
sobreviverem! Que triste realidade! – proferi pesaroso, à
Adelaide.

Uma frase do Evangelho no entanto, ressoava em minha


mente:

“raça de incrédulos e perversos, até quando vos sofrerei?”


Assaltado pelas minhas reminiscências, surpreendia-me
contrito e aflito, sem o direito de menosprezo a nenhum
daqueles senhores, pois no passado já havia pertencido às
suas fileiras.

Lágrimas aflitivas marejavam-me os olhos, mas o momento


no entanto, requisitava-nos o máximo equilíbrio e não
convinha perturbar o trabalho com minhas tristes
recordações. Recolhime em sentida prece agradecendo ao
senhor por já não me contar entre aqueles devassos
cavalheiros. Adelaide, percebendo-me a emotividade,
dirigiu-me caricioso olhar e silentemente me envolveu em
seu braço de amigável conforto, sem exigir-me explicações
para a repentina manifestação de sensibilidade.

Trazemos na vida da carne muitas lembranças que


gostaríamos de simplesmente apagar da memória, mas elas
nos perseguem quais fantasmas renitentes, impossíveis de
se aniquilar, exigindo-nos o aprendizado do equilíbrio. O
trabalho em favor dos infelizes, o estudo nobilitante e o
exercício constante de sentimentos elevados são os únicos
remédios para uma alma que enseja a regeneração.

Neste momento, rompendo minhas amargas conjecturas,


um rapaz em trajes militares batia à porta dos aposentos de
Catherine, com vigor. Na impetuosidade de sua expressão
vimos tratar-se de Abelardo, o jovem que habitava as
fantasias de nossa amiga pouco antes. Ansiava estar com
ela e exigia-lhe que atendesse os rogos de moço fogoso e
apaixonado, Rosa, gentilmente o afastava, explicando-lhe
que Catherine estava enferma, mas ele desconfiado, queria
atestar por si mesmo, temendo que sua preferida estivesse
nos braços de outro.
94

-- Precisamos afastá-lo para que não nos obstaculize os


serviços da noite – pedia Fausto, que continuava a operar o
plano mental de Catherine, diligenciando adormecê-la.

Intentava inutilmente apaziguar o companheiro imprudente,


quando um robusto marinheiro, ciente do que se passava,
reprimiu-o indignado, dizendo-lhe que se acalmasse pois

“madame Catarina” não era propriedade dele. Foi o que


bastou para que os dois se encarassem, ameaçando se
engalfinharem em animalesca luta. Acorreram-se todos a
fim de se evitar o pior, enquanto os espíritos, sedentos de
emoções vis, exasperados, procuravam excitar ainda mais
os ânimos, desejosos de presenciar os sabores dos embates
humanos. Rosa ameaçou sair para chamar a polícia, o que
acalmou Abelardo que finalmente consentiu em se retirar,
não sem antes constatar que Catherine estava realmente
sozinha. Ela não tivera força sequer para levantar-se e
acalmar a situação, apenas acenou de longe para o seu
preferido, serenando-o. Sendo atendido, retirou-se o jovem,
contrafeito e ofendido. Decepcionados, os espíritos levianos
retornaram às motivações de seus prazeres e a casa voltou
à sua rotina. Com grande alívio agradecemos a Deus pelo
bom desfecho da situação que poderia ter prejudicado
nossos planos, adiando ainda mais o socorro a Alberto, já
sem condições de aguardar mais tempo para o ingresso na
carne.
Catherine, após acessos de vômitos, sentiu esgotar suas
forças físicas e finalmente adormeceu. Os obsessores,
vendo que nada mais conseguiriam, deixaram-na sozinha, e
sequiosos de prazeres, saíram em busca de outros repastos
para seus ignóbeis regalos. Finalmente o ambiente se
acomodou em um pouco de sossego e pudemos entretecer
um escudo magnético em torno de seu leito, higienizando
um pouco a sua envilecida atmosfera vibracional.
Desprendendo-se do corpo físico, sentia-se envolvida por
eflúvios de inefável paz jamais aspirados. Enquanto Fausto
se retirava demandando outros afazeres, operávamos o
campo visual de Catherine para que ela pudesse nos
perceber e entretivesse conosco algum diálogo. Ao divisar-
nos, prostrou-se de joelhos, acreditando-nos enviados do
Céu.

-- Anjos de Deus, não me mandem para o inferno – dizia, em


choro veemente, revelando sua consciência profundamente
ferida pelos exaltados sentimentos de culpa.

-- Levante-se, irmã, somos apenas seus amigos, não somos


enviados do Céu e sequer estamos aqui para lhe condenar
por qualquer atitude que seja – respondi-lhe, procurando
acalmá-la. –

95

Contenha seu pranto e procure orar a Jesus para que sua


alma se refaça na paz que a envolve.
De imediato Catherine começou a proferir sentida prece em
francês, recordando-se de sua meninice, quando Fausto
adentrou o quarto acompanhado de Heitor, nosso já
conhecido companheiro.

-- A paz esteja com todos, amigos. É uma satisfação revê-


los, embora em ambiente tão desagradável para as suas
sensibilidades – saudou-nos o dileto mentor. – Catherine,
como já previram, é estimada pupila de nosso coração, e
não podemos deixar de prestar-lhe socorro nesta hora tão
importante, no destino profundamente infausto que traçou
para si mesma. Vamos ao trabalho. Temos que lhe trazer à
presença o genitor, único capaz de movê-la do lameiro em
que se atirou. No entanto, encontra-se ele reencarnado, em
plena infância, e demandaríamos precioso tempo
preparando-o para um mergulho no passado. Só nos resta
ludibria-la, meus amigos. Com o devido respeito, far-me-ei
passar por ele, pois assim se faz necessário para o seu
próprio bem.

Em seguida, aproveitando o potencial de oração em que se


movia Catherine ainda de joelhos, extasiada diante das
luzes espirituais que a iluminavam, Fausto operou seus
centros mnemônicos, copiando-lhe a imagem do pai e
projetou-a através de surpreendente manipulação
ideoplástica sobre Heitor, que se vestiu assim da exata
figura paterna. Vendo-se diante do querido pai, estirou-se
em pranto convulso suplicando por perdão, como uma
criança surpreendida em condenáveis peraltices.
-- Que fizeste, minha filha, da moral e dos costumes
aprendidos na infância? – perguntou-lhe Heitor, na figura do
pai, no mais perfeito francês. – O que fazes, filha querida,
neste ambiente imundo e indigno da realeza divina de que
todos fomos feitos?

Catherine, sem compreender o que se passava, tentava


evadir-se para o refúgio seguro do corpo físico, em imenso
conflito de consciência, dividida entre o irrefreável desejo de
abraçar o pai querido, e a vergonha que se lhe estampava
na alma maculada de ignomínias. Adelaide e eu
sustentávamos-lhe a organização carnal, constrangida a
tremores espásticos, refletindo os inopinados estímulos
oriundos do espírito parcialmente desprendido.

-- Perdoa-me, papai, não queria manchar-te de opróbrios o


honrado nome ... – respondeu arfante nossa amiga, abalada
na profundeza da alma. – Compadeça-te de meu infortúnio
que já me serve de oneroso castigo... Perdoa-me...

96

-- O perdão genuíno, entre aqueles que não atingiram ainda


a maioridade do espírito, somente é possível diante da
sincera disposição de transformação de quem o suplica. Se
reconheces o erro, nada te imputa maior desdita do que
persistir nele, filha querida, tornando-se assim, difícil a
oferta do perdão sincero.
Promete-me que abandonarás a estrada de devassidão em
que transitas, e então moverei os Céus e a Terra para trazer-
te a felicidade que almejas.

-- Dá-me forças para isso, meu pai. Não quero mais a


penúria do pecado que me sufoca o coração, mas não tenho
outros caminhos por onde transitar. Ajuda-me, pai querido...
perdoa-me... – suplicava em plangente pleito, domada pela
comoção intensa que lhe eclodia da alma dorida.

-- Há um meio de desvencilhar-te do atoleiro em que te


chafurdas, minha querida. Vês os espíritos amigos que te
amparam neste momento? Eles te trazem um filho como
dádiva preciosa do Céu, e com ele uma esperança de
redenção. Aceita de bom grado o presente de Deus e tua
vida se transformará...

-- Pai, o que me pedes não posso aceitar, não sou digna da


maternidade... trago o sei enodoado de culpas e vícios...

-- Teu empenho sincero na reforma íntima e a dedicação ao


bem serão o bastante para te incendiar de luzes,
acendrando-te as nódoas do pecado, filha. Abre o coração e
aceita, apenas isso te pedimos.

Nesse momento, Fausto ofereceu-lhe formoso bebê,


entretecido em linhas de forças ideoplástica, cópia viva e
perfeita com a finalidade precípua, não de ludibria-la, mas
para que se sedimentasse em sua obnubilada mente o
realismo do ato, como se fazia necessário.

Diante da oferta, Catherine desfeita em lágrimas, motivada


por sublime sentimento maternal e sentindo-se aliviada por
merecer a consideração daqueles que imaginava enviados
dos anjos, abriu as portas de seu coração, estendendo os
braços para receber em seu regaço a messe divina.

Conduzimo-la ao corpo físico, a fim de permitir-lhe


recuperar-se das imensas emoções vividas, e pudesse
guardar reminiscências claras dos momentos vividos.
Despertando, plangia entre comovidos soluços, sentindo
ainda a presença do filho no colo e a figura do pai querido,
reais e vívidos na memória. Após breve intervalo em que lhe
permitimos sedimentar os ensinamentos recebidos,
induzimos-lhe novo sono reparador, a fim de encerrarmos a
tarefa. Fausto, por meio de delicadas operações
magnéticas, fixava Alberto, miniaturizado em encistamento
perispiritual, na cavidade uterina de nossa amiga, onde

97

permaneceria ambientando-se nas energias maternas, à


espera do primeiro óvulo fecundado em processo de
nidação (O processo de fixação do óvulo fecundado no
útero).
-- Terminamos por ora nossa tarefa, amigos, podemos partir
– disse Heitor. – Agradeçamos a Jesus a proveitosa noite de
trabalho. Temos a esperança de que nossa irmã encontre a
sua redenção, mediante o processo doloroso que a espera.
Sabemos o quanto lhe custará não somente mudar de vida,
mas ainda viver a frustração do filho que não virá.
Estejamos no entanto, felizes, confiantes e cientes de que a
sabedoria da vida opera o espírito através da dor, alavanca
indispensável ao nosso progresso, rumo à angelitude.

-- E quanto ao pai, não precisamos de sua anuência no


processo?

– interrogou Adelaide.

-- O pai será apenas o portador dos recursos biológicos para


o processo reencarnatório e não lhe solicitaremos
responsabilidades de que sabidamente não poderá, em
absoluto, dispor. Uma prostituta grávida dificilmente terá o
reconhecimento da paternidade no mundo de nossos dias,
minha amiga. Não nos iludamos. As sábias leis da vida no
entanto, registrarão o dolo e cobrarão de seu protagonista
no momento devido, estejamos cientes disso – respondeu
Heitor com criterioso bom senso.

-- Tampouco precisaremos estar presentes para a eleição da


carga genética mais conveniente ao nosso amigo em
trânsito na carne? – insistia Adelaide com o fito de se educar
na ciência da assistência espiritual.
-- Nesse caso, o processo irá decorrer de suas próprias leis
de atração, pois nosso Alberto não precisará contar com um
organismo aprimorado para dar cumprimento às finalidades
de sua reencarnação.

Não pelo fato de estarmos diante de um suicida que por


isso, desmereça maiores cuidados, mas porque sabemos
que será impossível impedir que estampe nas células
embrionárias as malformações oriundas da
autodestrutividade alimentada, tornando-as inviáveis.

Infelizmente foi o que semeou o nosso amigo, e será o que


vai colher –

esclareceu Heitor prestimoso, para o aprendizado de minha


pupila.

Acalmando as ansiedades da irmã, anuí:

-- Não se preocupe, acompanharemos de perto a incursão


de Alberto na carne, permitindo-lhe a observação mais
acurada do processo.

Heitor proferiu sentida prece, encerrando os nossos


trabalhos no momento. Solicitando licença para nos deixar,
retirou-se carregando nos braços Catherine, adormecida em
espírito, a fim de propiciar-lhe breve passeio em regiões
espirituais mais elevadas, afagando-lhe a alma dorida e
fatigada das agruras terrenas.

98
10
capítulo

A BÊNÇÃO DO RECOMEÇO

“Não te admires de eu te haver dito:

necessário vos é nascer de novo.”

Jesus – João, 3:7

Nosso serviço assistencial se intensificou com o


recolhimento de Alberto no vaso físico e passamos a visita-
lo frequentemente, procurando sustenta-lo como podíamos,
para auxiliar a desventurada amiga que o recebera. Através
do Departamento de Embrioterapia, estabeleceu-se um
canal de comunicação permanente entre o nosso plano e a
casa de Catherine, facilitando-nos o trânsito quase diário.

Nos primeiros dias nossa tarefa objetivou a limpeza do


aparelho reprodutor da nossa irmã, preparando-a da melhor
maneira possível, para o bom andamento do processo
gestacional a que se submeteria em breve. Era lastimável
observar-lhe a precária situação orgânica, devido à prática
abusiva do sexo mundano. Energias aviltantes lhe
habitavam os delicados órgãos genésicos, inundando-os de
emanações pestilentas. Demandamos vários dias em
paciente trabalho de varredura dos maléficos eflúvios,
concreções semicarnais tão densas que podíamos quase
tocá-las. Identificávamos a cada camada de limpeza,
variados bacilos patogênicos, imantados de modo
ameaçador aos seus tecidos, aguardando a melhor
oportunidade para eclodirem na forma de diversas doenças
venéreas descritas pela medicina terrena.

-- Os estudiosos do mundo acreditam que estes sejam os


agentes das enfermidades infecciosas – considerava –
porém justo é observarmos que a presença deles se deva à
atração de natureza vibratória em perfeita ressonância com
as energias deterioradas, geradas e absorvidas pela nossa
irmã, das quais se alimentam. Na verdade, não somente aí,
mas em qualquer

99

departamento da economia orgânica, todo processo


infeccioso guarda raízes na esfera espiritual do homem.

Em meio a vibriões, bacilos e vírus diversos, notávamos que


havia um grande predomínio dos espiroquetas sifilíticos.

-- Estão perfeitamente ambientados em seu mundo


energético – mostrava à Adelaide, assustadiça. – A qualquer
momento nossa irmã iria irromper-se em um quadro de Mal
de Lues (Sífilis, doença venérea sexualmente transmitida)
de graves proporções.

Vemos como a Providência Divina atuou em seu favor,


devido à sua anuência no auxilio a Alberto. Quem ajuda é
ajudado, assim é a Lei. Naturalmente que aqui se alojam em
decorrência do ambiente vibracional que os atrai. Não
podemos deixar de compreender que todo contágio
somente se estabelece mediante um convite ao agente
infeccioso, coadjuvante da enfermidade, Adelaide. Tratemos
de evacuar a carga vibratória que os sustenta como nos é
possível, diminuindo-lhes o potencial patogênico.

Não podíamos no entanto, simplesmente fazer evadir essas


emanações deletérias da intimidade orgânica de nossa
amiga, por estarem a ela imantadas por laços de natureza
perispiritual, que somente poderiam ser definitivamente
rompidos mediante a mudança de seu padrão vibratório.
Era-nos possível somente desloca-los dos tecidos mais
internos, carreando-as para o canal vaginal onde se
acumulavam em grande quantidade.

-- As células mucosas da vagina, infatigáveis trabalhadoras,


irão iniciar a produção de abundante secreção, carreando
essas impurezas energéticas para o exterior – dizia à
Adelaide, ainda intimidada. – Nossa irmã irá padecer os
incômodos de incoercível corrimento, perturbando-lhe o
bem estar por muitos dias. Será no entanto, recurso
defensivo importante para a manutenção de seu equilíbrio.
A medicina terrena ainda não se deu conta disso e trata de
inibir com insistência, essas importunas leucorréias (
Corrimento vaginal de qualquer natureza), dificultando
muitas vezes o trabalho de drenagem dos miasmas
pestilentos.

Catherine de fato, em breve se submetia ao tratamento de


duchas vaginais, devido ao fenômeno que prevíramos. Um
dia os médicos compreenderão que tais enfermidades
desempenham tarefas no organismo, deixando de vê-las
como meras e injustificáveis casualidades do mundo celular
que devem ser detidas a todo custo.

Segundo recomendação médica, diante da providencial


enfermidade, a amiga detivera suas atividades sexuais,
propiciando-nos benfazejo período de trabalhos
assistenciais.

100

Alberto se acomodava cada dia mais em seu organismo e


seu períspirito se reduzia a dimensões unicelulares.
Adelaide, admirando-se do fato, considerou:

-- Vemos que Alberto se retrai a cada dia que passa. Não era
isso que queríamos a todo custo evitar?

-- Não se assuste, minha amiga, o processo de


miniaturização perispiritual apenas prosseguiu o seu ritmo e
está finalmente chegando ao fim. Aqui ele encontrou o seu
ambiente natural e em breve o útero desempenhará sua
função, atuando como um refletor para as energias
psicossomáticas condensadas ao máximo, fazendo-as
explodirem em nova e vertiginosa reconstituição orgânica.
Observe atentamente a nova forma de seu períspirito.
Assemelha-se a um funil, uma verdadeira formação
vorticosa, cujo vértice termina na dimensão unicelular. Este
ponto tocará o óvulo fecundado, envolvendo-o e aspirando-
o qual fole poderoso, estimulando-lhe a surpreendente
construção orgânica, cujo crescimento febril supera o ritmo
de todas as formas vivas existentes. Estamos diante do
mesmo processo que condensa a futura árvore em uma
semente para depois, encontrando ela o ambiente
adequado ao seu desenvolvimento no seio da terra, explodir
no inopinado crescimento. O meio uterino é para o espírito,
qual o solo fecundo que recebe e nutre a semente com os
recursos necessários à sua restituição. Eis a maravilha do
renascimento, que funciona sob o império das forças de
condensação e expansão do períspirito. A contração
máxima, como a vemos, era já esperada porque Alberto se
defrontou com o meio adequado para isso, e a executou
convenientemente. Se no entanto, ele não tivesse se
acomodado no seio uterino, aí sim, o processo lhe seria
drástico, pois terminaria como já vimos, na ovoidização. A
expansão será deflagrada no instante em que Alberto
identificar a presença do substrato masculino, necessário ao
seu desenvolvimento. No entanto, é conveniente que esse
momento seja um pouco adiado, a fim de prepararmos da
melhor forma possível o ambiente orgânico de Catherine.

Notávamos em breve que a aura de Alberto lançava laços


fluídicos em direção a um dos ovários de Catherine,
abraçando-o com sofreguidão.
-- Embora tenha participado por incontáveis vezes de
momentos como este, não me canso de extasiar-me diante
da maravilha do processo reprodutivo – comentava
admirado, com Adelaide. – Alberto cuida instintivamente, de
amadurecer o óvulo mais adequado às suas necessidades
neoformativas. Sem o sabermos,

trazemos

na

memória

espiritual

minuciosos

101

conhecimentos de genética e podemos selecionar de modo


automático, a carga hereditária que mais nos convém ao
renascimento. Aprendemos isso ao longo das infindáveis
experiências reencarnatórias de que já participamos.

-- Caso Catherine venha a se valer de métodos


contraceptivos, como iremos socorrer nosso amigo, com seu
envoltório perispiritual completamente contraído e
inadequado para se sustentar no mundo espiritual? –
interrogou preocupada, Adelaide.
-- As forças envolvidas no processo reprodutivo, colocadas
em funcionamento de forma instintiva e inconsciente pelo
reencarnante, são muito mais poderosas do que podemos
imaginar. Funcionam de forma vitoriosa há incomensuráveis
milênios e são capazes de façanhas inimagináveis,
superando muitos obstáculos que se lhes anteponham.
Podem apressar o amadurecimento do óvulo e interferir no
ritmo hormonal feminino.

São capazes ainda de suscitarem os desejos humanos,


fazendo-os meros joguetes das energias sexuais,
movimentadas segundo as suas intenções ocultas. Se
pudéssemos ver o reino invisível das ondas onde se operam
essas maravilhas, ficaríamos admirados ao reconhecer seus
dilatados tentáculos, dirigidos com precisão pelo espírito e
sua vontade. A bem da verdade no entanto, temos que
admitir que há intrincados processos, movidos por fortes
rejeições maternas ou paternas, que inviabilizam
completamente o processo reencarnatório, exigindo
trabalhosas interferências do mundo espiritual para serem
superadas. E forçoso é admitirmos ainda a existência de
esterilizações definitivas que não podem ser contornadas
pela vontade do espírito, por mais poderosa que seja.

-- E seu futuro pai não poderá dificultar-lhe o ingresso na


vida, negando-se a recebe-lo? – continuou a indagar a
querida estudante.

-- Sem dúvida, seu pai será Abelardo, o jovem militar que se


encantou com os dotes físicos de nossa francesa. Embora
não guarde nenhuma intenção de ter com ela um filho, ele
não lhe impõe obstáculos á aproximação, pois não identifica
em sua memória espiritual os laços que seguramente os
unem na urdidura do destino. Embora se apresente com
uma atuação aparentemente neutra, sua primeira e
espontânea intenção será de negar o filho inesperado,
contudo sua rejeição não traz força suficiente para interferir
no processo e por isso sua participação nos parece ser
meramente biológica, levada a efeito pelas circunstancias a
que se expõe. Certamente que a lei de causa e

102

efeito nos move na vida sempre rumo ao Bem e às


oportunidades de refazimento dos erros do pretérito, por
isso lhe será sem dúvida, uma ótima ocasião para o
exercício e o aprendizado do amor, indispensável à própria
felicidade.

Abelardo continuava a manter intensos encontros amorosos


com sua preferida, nutrindo-lhe verdadeira paixão.
Catherine, apesar de ser-lhe um pouco mais velha, na
verdade afeita àquele amor fogoso e incomum, deixava-se
levar pelos rogos do jovem apaixonado, atendendo-lhe a
exigência de fidelidade. Pelo menos por uns tempo,
pensava, pois admitia a aventura como breve e passageira.
E brincava com os sentimentos do moço, proporcionando ao
coração roído por grandes decepções amorosas do passado,
refazer-se nas fantasias de Eros, fingindo ser ainda uma
jovem adolescente, debutando no amor. Ademais, sentia-se
mais equilibrada, a pesada angústia que sempre lhe oprimia
o peito a abandonara sem explicação e começara a nutrir
certa aversão aos contatos sexuais movidos por meros
interesses pecuniários.
As entidades obsessoras que compartilhavam com ela as
aventuras sexuais permaneciam em seu ambiente psíquico,
porém meio contrafeitas com as modificações que
denotavam no campo mental da parceira. Sem se darem
conta do que lhe passava, imputavam a mudança à
presença do jovem que lhe encantava os sentimentos
femininos. Alheias à nossa atuação e à presença

de

Alberto,

ressentiam-se

dos

prazeres

da

promiscuidade em que compraziam, notando-a comedida


diante do comércio do sexo. Frequentemente as
observávamos maquinando planos para afastarem o moço
intrépido que lhes roubava a atenção da sócia de prazeres,
obstaculizando-lhes o manejo dos interesses menos dignos.

-- Se nossa amiga se deixasse orientar por algum


sentimento religioso, qualquer que fosse, que lhe sofreasse
um pouco os desregramentos morais, poderia se precaver
contra tal assédio das Sombras – considerava eu à Adelaide.
– Precisamos esforçarnos para mantê-la nos propósitos que
vem alimentando, a fim de proporcionar-lhe uma melhor
saúde física na gravidez e um mínimo de paz para o nosso
desventurado Alberto. O

entrechoque das energias sexuais viciadas na


promiscuidade pode perturbar-lhe ainda mais a delicada
situação perispiritual.

O bem estar que Catherine passou a desfrutar com a


melhora de suas angústias, ajudava-nos a manter-lhe os
pensamentos num nível um pouco mais elevado. Durante o
sono físico, sugeríamos-lhe as lembranças da meninice,
quando seus

103

genitores a levavam para o catecismo, procurando trazer-


lhe à memória física os valores religiosos cultivados no
passado. E lhe suscitávamos frequentemente a oração,
cientes de sua vivência como freira em encarnação remota.
Não obstante, não conseguimos induzi-la ao hábito da
prece, embora a tivéssemos surpreendido certo dia, lendo a
bíblia. E assistíamos sua mente alimentando interesses há
muito não cultuados, como um forte e inexplicável desejo
de ir à missa. A hipocrisia da sociedade de então não
tolerava no entanto, a presença de meretrizes em seus
templos, por sentir que maculavam seus sagrados
ambientes, embora o Senhor lhes tenha deixado o exemplo
vivo de Madalena. Não convinha, assim pensava Catherine,
expor-se a esse incômodo, pois conhecia a história de
muitas companheiras que haviam sido duramente
enxotadas das igrejas, e severamente repreendidas pelo
ultraje a Deus.
Saneando um pouco o hálito psíquico de nossa amiga,
desenvolvemos certa paz em seu devasso ambiente,
embora em torno, a chusma de pelintras encarnados e
desencarnados, seguisse seus condenáveis roteiros de
tripúdios.

Não tardou muito para que enfim, nos deparássemos com


um quadro diferente. Ao efetuarmos nossa costumeira visita
à Catherine numa noite, notamos que Alberto se agitava
febrilmente em seu nicho uterino, motivado pela presença
dos elementos masculinos em dia de fertilidade de sua
futura mãe.

Estendia delicados laços fluídicos em direção ao óvulo


maduro, já desprendido do ovário, conduzindo-o
apressadamente pela tuba uterina, a fim de trazê-lo para o
encontro com os espermatozoides.

-- Chegamos a tempo de presenciar o momento miraculoso,


Adelaide. Nossa amiga, conhecedora de seu período fértil,
foi ludibriada pela poderosa ação das forças espirituais de
Alberto, que

abraçando

um

de

seus
ovários,

amadureceu

antecipadamente o óvulo de que necessita, alterando-lhe o


habitual ciclo hormonal. O fantástico instante da fecundação
não tardará, pois as contrações uterinas estão fortemente
ativadas, elevando o sêmen até o seu objetivo. Note como
isso apressa a ascensão do líquido seminal. Sem a
contribuição desses espasmos uterinos, a viagem dos
espermatozoides demandaria tempo muito maior do que
lhes permitem seus reduzidos ciclos vitais.

-- Ocorre-me, Adamastor, o sentimento de que estamos


num conluio com Alberto, constrangendo Catherine a
engravidar-se –

considerou Adelaide, algo contrafeita e ensimesmada. – Não


estaremos participando de um engodo? Será que realmente
ela

104

aceitou engravidar-se ou foi constrangida pela presença da


imagem do pai?

-- Minha boa amiga, Catherine aceitou receber Alberto,


inebriada por indizível ambiente de luzes espirituais,
vislumbrando alegrias nunca antes sentidas, e coagida pela
memória do genitor, é bem verdade. Isso no entanto, não
invalida sua livre disposição de servir à vida. Ainda não
sabemos como reagirá na consciência da carne, que não
guarda reminiscências tão nítidas das resoluções
deliberadas no plano do espírito, mas os méritos de sua
anuência já lhe foram computados pela Lei de Deus. Se ela
não tivesse aceitado receber Alberto de boa vontade,
estaríamos lutando com enormes dificuldades para manter-
lhe a presença no nicho uterino que o rechaçaria, e nossas
chances de sucesso seriam bem reduzidas. Ainda que de
forma inconsciente, ela sabe o que está lhe passando neste
momento. Conhecendo sua personalidade e a vida que
entreteceu para si mesma, podemos aventar uma ideia bem
aproximada de como irá se comportar quando realmente se
vir grávida, mas não convém gerarmos expectativas que
poderão influenciar no campo sutil das sugestões mentais.
Os dirigentes superiores da vida certamente já selaram o
seu prognóstico, mas quanto a nós, guardemos nossos
sentimentos a esse respeito. E não olvidemos que todo esse
processo, embora lhe pareça um engodo, está contribuindo
para reformar-lhe o patético destino, antes que sua alma se
precipite em queda nos abismos de aflições, de onde
somente poderia esquivar-se com dores muitíssimo maiores.
Sem esquecermos ainda que nossos protagonistas criaram,
através de suas condutas, as condições favoráveis ao
desencadeamento da situação que vivenciarão. A vida não
se constrói somente com prazeres, sabemos disso, e cedo
ou tarde ela nos cobra a colheita das ações levianamente
semeadas.

Adelaide se deixou convencer da realidade, persuadida de


que o espírito necessita de vicissitudes e sofrimentos às
vezes salutares, como única linguagem de que a Lei dispõe
para que a evolução se faça vitoriosa no campo das
realizações mais nobres do espírito. Afastando de sua
delicada alma os sentimentos que a incomodavam,
voltamos nossa atenção para os maravilhosos fenômenos
em jogo no precioso instante. Em breve podíamos
presenciar o óvulo envolvido por agitada nuvem de
espermatozoides.

-- Note, Adelaide, que não é o primeiro que chega, que


guarda o direito de fecundar o óvulo – observei. – A união
dos gametas se estabelece mediante liames vibratórios,
ainda não

105

compreendidos pela ciência terrena. Veja como a aura de


Alberto neste momento, dilata-se e envolve o óvulo em um
halo energético, atraindo com vigor o espermatozoide mais
condizente com suas necessidades. O processo se opera de
forma completamente automática com base nos ensaios
reencarnatórios milenares do ser. Por isso nem sempre é o
gameta mais hábil e mais perfeito o escolhido, porém
aquele que sintoniza com as exigências provacionais do
reencarnante, podendo ser um portador de graves
deformidades genéticas. Aprendemos assim, que na
verdade, herdamos sempre de nós mesmos, e a
hereditariedade do corpo é dominada completamente pela
hereditariedade do espírito.

Catherine, parcialmente desligada do corpo pelo sono físico,


permanecia ao nosso lado, já ambientada em nossa
presença, porém sem se dar conta do campo divino em que
se convertera o seu centro genésico naquele momento. Sua
mente obnubilada, não detivera a necessária clareza para
se inteirar do fato, porém inconscientemente sentia-se
possuída por apoteótica alegria, oriunda da mais deificante
satisfação do espírito, a de ser partícipe do sagrado ato de
criar. Pálida luz acendeu-se em seu centro genésico, há
muito obscurecido, denotando a presença divina em meio
às suas vilipendiadas energias sexuais. Era quase de manhã
quando deixamos a sua casa.

Embevecidos pelo milagre da fecundação, olvidávamos até


mesmo o sorumbático ambiente de nossas atividades e
louvamos a Deus e ao Seu amor, em meio a messalinas
doidivanas, adormecidas nos braços de jagodes
refestelados, constritos aos seus viscerais prazeres urdidos
na mais ordinária das paixões humanas. Elevando-nos sobre
a mata próxima, divisamos surpreendente paisagem
terrena. O sol despontava rente à linha do horizonte,
inflamando o mar de cores esfuziantes e ateando fogo às
nuvens incautas, mal refeitas do repouso noturno. O

chilrear de gaivotas distantes e a carícia da brisa matinal


emolduravam a artística paisagem, comovendo-nos diante
de tanta exuberância.

Parecia-nos que a natureza, desejosa de recompensar-nos


pelos serviços , brindava-nos com admirável regalo. Um
sentimento melancólico nos assaltava o espírito naquele
momento, pensando na frivolidade do homem encarnado,
que se deixa chafurdar na vileza dos engodos mundanos,
ainda infantilizado diante das dádivas da criação, incapaz
de se reconhecer herdeiro da divindade e partícipe do
egrégio milagre da vida. Somente a prece podia expressar
as emoções que nos brotavam em profusão, e com as almas
genuflexas diante do Altíssimo, oramos pedindo luzes para
os inconsequentes que certamente ainda somos e para os
irmãos que, não obstante, ainda teimam em caminhar sob a
nossa retaguarda. Finalmente retornamos à nossa colônia
completamente aliviados pelo bom êxito da tarefa.
Satisfeitos, corremos até Fausto, dando-lhe em primeira
mão a notícia de que Alberto se fixara em definitivo no
organismo materno. Enfim, podíamos descansar um pouco,
na paz do dever cumprido.

106
11
capítulo
DIAS ATRIBULADOS
“Não vos inquieteis pois, pelo dia de amanhã, porque o dia
de amanhã cuidará de si mesmo. A cada dia basta o seu
mal.”

Jesus – Mateus, 6:4

A fecundação sela a união do espírito com a carne, tornando


a junção irreversível, cuja ruptura somente se faz possível
mediante a morte. Iniciando o desenvolvimento de sua nova
veste, o espírito entrega-se completamente à sua
reconstrução, o que lhe requisita total exclusividade de
ação. Somente entidades de altíssimo quilate evolutivo
conseguem manipular à distância o desenvolvimento de sua
forma, mantendo-se em relativa liberdade de consciência
durante o processo. A maioria dos homens no entanto,
necessita da permanência constante junto à massa
embrionária para propiciar a devida orientação à sua
maturação. Por isso, toda a atividade consciencial do ser,
acompanhando a redução perispiritual, regride também aos
patamares da evolução de onde parte para a nova aventura
na esfera do recomeço. E como vimos, toda mudança de
fase de vida requer a recapitulação das fases precedentes
para se reiniciar, sendo a reconstrução nada mais do que
uma rememoração. Desse modo, durante o
desenvolvimento embrionário, o espírito recorda a evolução
biológica já percorrida e refaz, em curtos nove meses, os
milhões de anos já perpassados na carne. Assim é que, nas
primeiras semanas, o embrião humano é de todo
indistinguível do embrião dos animais inferiores, pois a
ontogenia rememora a filogenia (Ontogenia é o
desenvolvimento do indivíduo desde a fecundação até a sua
maturidade. Filogenia é o desenvolvimento do filo genético.
Filo é classe ou categoria ao qual um animal pertence.
Quando se diz que “a ontogenia rememora a filogenia”,
quer-se dizer que o desenvolvimento de um ser em especial
é um processo que relembra o desenvolvimento da classe
animal a qual ele pertence), como temos aprendido da
observação da embriologia. Fato que comprova a
veracidade do fenômeno e a pré-existência de uma
consciência ativa e extrafísica que recorda e dirige todo o
processo.

107

Estabelecidos de modo indissolúvel os liames que atavam


Alberto ao vaso físico, vivenciamos apenas a primeira parte
de nossa incumbência e a tarefa se intensificou desde
então. Fausto comparecia nos primeiros dias subsequentes,
auxiliando-nos na condução inicial da delicada elaboração
que exigia cuidados redobrados, tendo em vista a
instabilidade de suas forças perispirituais.

-- Estamos diante de um ovo hipoativo, como


apropriadamente o denomina a medicina terrena –
explicava-nos o tarefeiro do Departamento de
Embrioterapia. – Embora Alberto se encontre ávido por
reconstituir seu novo corpo, os exaltados estímulos
autodestrutivos anteriormente alimentados ainda
reverberam na intimidade de suas forças psicossomáticas,
impondo-lhe inibições à expansão e retardando-lhe o ritmo
de desenvolvimento. Temos que lhe apressar os passos, pois
do contrário ele se fixará na tuba uterina, onde sua
permanência naturalmente, será dificultada pelo
estabelecimento de uma gravidez tubária (A gravidez que
de forma anormal, ocorre na tuba uterina e não no interior
do útero. exige intervenção cirúrgica, sendo incompatível
com o desenvolvimento do feto, pois pode levar a mãe à
morte) com as graves consequências que acarreta. Já se
passaram quatro dias e em apenas três, como de hábito, o
ovo já deveria ter se fixado na cavidade uterina.

Auxiliemos como nos é possível.

Apesar das intensas operações de ativação empreendidas


pelo tarefeiro, decorreram sete dias e o trofoblastos (O
conjunto de células embrionárias que dão origem à
placenta) ainda não apresentava condições de nidação.
Ultrapassando a região fúndica do útero (Região situada no
fundo do útero, de maior amplitude, próxima à qual se fixa o
ovo, em situação de normalidade), seu sítio habitual de
fixação, terminou por se implantar nas margens do orifício
interno do canal cervical (O canal que comunica a cavidade
do útero com o exterior) como previra o hábil servidor.

-- Sim, meus amigos, conseguimos evitar o pior, mas a


placenta prévia (Implantação baixa da placenta, próxima ou
sobre o orifício uterino, levando a hemorragias na gravidez)
já está configurada e será inevitável –

disse ele. – Catherine experimentará sangramentos


importantes no segundo trimestre da gravidez se Alberto
não for vitimado por abortamento natural ou induzido, antes
disso. Aguardemos agora os acontecimentos.

Finalmente acomodada, a massa embrionária dava livre


curso ao seu desenvolvimento. Fausto nos deixou a sós na
condução da operação que passou a demandar menores
cuidados, entregue agora à orientação de seu próprio
automatismo. Acompanhávamos o seu progresso em visitas
quase diárias, exercendo a vigilância que nos cabia e
permitindo a

108

Adelaide o enriquecimento de seus conhecimentos no


exame do processo reencarnatório. Embora parcialmente
refeito pelo salutar contato com as energias maternas,
podíamos já observar a massa embrionária refletindo a
desorganização energética do nosso amigo, revelando
movimentos anormais em seu desenvolvimento.

Dentro em breve notávamos que o coração não se


desenhava segundo sua perfeita conformação, deixando
entrever alterações importantes em sua anatomia
embrionária. O tubo neural primitivo, onde se concentrava o
potencial de suas forças deterioradas, era palco de
adiantado processo patológico, na formação

das

vesículas

primordiais,
prenunciando

estabelecimento de graves patologias no sistema nervoso


central.

Fluidos escurecidos escoavam de seu psicossoma reduzido,


aviltando a massa celular que se contorcia, desgovernada
pela desorientação magnética imposta à forma.

Verificávamos com evidência, que a carga genética herdada


pelo nosso amigo era da melhor qualidade possível e não se
responsabilizava pelas alterações sob nossa análise. As
malformações se deviam unicamente às adulterações de
seu molde perispirítico. Sabemos, sem sombras de dúvidas,
que o DNA tão venerado na ciência dos homens, não é o
único responsável pelo estabelecimento das formas dos
seres vivos. Esta surpreendente molécula se responsabiliza
apenas por impor modelos específicos de formações
proteicas, mas a adequada utilização e o devido
posicionamento destas proteínas não pode, naturalmente,
ser esperado de uma unidade destituída de vontade e
inteligência próprias. Isso é da alçada da entidade espiritual
formadora e seu molde energético que, como hábil
arquiteto e executor da construção, sabe como orientar o
material que recebe para a edificação da obra previamente
idealizada. Seria pedir muito a uma simples molécula.
Certamente é inegável que a conformação das estruturas
proteicas, propiciadas pelos polímeros do DNA, pode e
influencia em muito o resultado final da arquitetura
orgânica, da mesma maneira que desenho dos tijolos afeta
as linhas finais de um conjunto arquitetônico. Não digamos
com isso, que os tijolos constroem a casa, com toda a sua
complexidade, o que seria completamente ofensivo à lógica.
Compreendamos de uma vez por todas que o código
genético detém indispensável molde de elementos
proteicos necessários à construção do edifício orgânico, mas
sua ação se compara a de uma olaria, produtora das
variadas peças que entram na formação de uma casa, e
nada mais.

109

Notávamos

ainda

admirados,

que

feto

em

desenvolvimento absorvia energias sifilíticas, irradiadas da


mãe, em perfeita sintonia com suas lesões energéticas. Os
espiroquetas trafegavam à vontade pelo seu organismo,
impondo-lhe novas dificuldades, mas ao mesmo tempo
absorvendo em seu ávido metabolismo as energias
igualmente aviltantes.

-- Estamos presenciando um verdadeiro conúbio – dizia à


Adelaide – onde os bacilos apenas se alimentam das
energias espirituais degradadas, auxiliando a sua
evacuação da malha energética de Alberto. Por isso
podemos considera-los auxiliares da drenagem vibratória e
sustentados pelas irradiações de igual natureza que
promanam de sua alma.

Além deles, abundavam na massa embrionária, igualmente


ambientados pela corrente fluídica, os vibriões fetais
(Chamado vibrio fetus, agente microbiano associado
também às septicemias), agentes identificados pela
medicina terrena como responsáveis pelo abortamento
patológico.

Apesar de estarmos presenciando um desenvolvimento


anormal, exigente de cuidadoso acompanhamento e
suscitante de preocupações, tínhamos motivos para nos
alegrar, pois sabíamos que as dificuldades do momento
prometiam salutares soluções para os intrincados dramas
dos espíritos envolvidos no procedimento

assistencial

que

empreendíamos.

Nosso

contentamento era ainda maior, pois passamos a contar


com outro grande feito. Orientadores de nossa colônia
identificaram parentes desencarnados das duas entidades
femininas que obsediavam Catherine. Já cientes das
responsabilidades da vida espiritual, submeteram-nas aos
seus bons alvitres, encaminhando-as para o devido socorro
em casa de assistência espírita cristã.

Embora não obstaculizassem sobremaneira o nosso


trabalho, pesava-nos ver-lhes a penúria espiritual sem nada
poder fazer.

Além disso, elas promoviam desgastes vibracionais em


Catherine, excitando-a à prática abusiva da sexualidade e
poderiam perturbar-lhe o processo gestacional, assim que
dessem conta do fato.

Catherine prosseguiu sua rotina de vida, mantendo-se


felizmente, fiel ao seu apaixonado companheiro, facilitando
em muito o nosso trabalho assistencial. Dávamos graças a
essa providencia divina, que sem o sabermos, cuidava
também com desvelo pelo bom andamento do processo,
certamente em obediência a outros determinantes da Lei
que ignorávamos.

Frequentemente a presenciávamos recordando-se de seu


sonho, trazendo-lhe lágrimas de doce emotividade à alma
sensibilizada.

110

Durante o desprendimento noturno, ainda não conseguia


perceber-nos a presença com clareza a fim de confabular
conosco, mas se dava conta de estar habitando ambiente
vibracional diferenciado. Os espíritos levianos que
habitualmente a procuravam para os folguedos libidinosos
durante o seu repouso físico, paulatinamente se afastavam,
tendo em vista a mudança de seu hálito vibracional. A
imagem da figura paterna, na lembrança do sonho,
continuava a exercer-lhe forte influencia à mente, impondo-
lhe salutares sentimentos de culpa. Muitas vezes
percebíamos seus pensamentos mergulhados em sinceros
desejos de mudança e podíamos verificar os efeitos
benéficos que o remorso, desprovido de exageros doentios,
é capaz de suscitar no espírito, induzindo-o a importantes
reformas ao longo de sua linha evolutiva.

A placenta agora desenvolvida, exercia intensamente sua


atividade de abafador das toxinas, tanto materiais quanto
vibratórias, emitidas pelo reencarnante. Como estas, pelo
seu caráter aviltante e excessiva quantidade, ultrapassava o
seu limiar de trabalho, não tardou muito para que se
estabelecesse em Catherine o quadro de náuseas e
vômitos, típicos dos processos gestacionais, com a
finalidade de se facilitar a drenagem das energias vertidas
pelo feto em desenvolvimento. Iniciávamos assim, um
período crítico no processo em andamento, quando ela
finalmente se reconheceria grávida, apesar de
inconscientemente já estar plenamente ciente do fato.

Em breve acompanhávamos nossa amiga em visita ao


médico terreno. Convinha estarmos presentes a fim de
orientar o facultativo como nos fosse possível, evitando-se
maiores agruras para nossos inimigos. Aproximando-nos da
companheira, notamos-lhe a vibração pesarosa e oprimida
no semblante constrito, pois sua intuição já lhe adiantava
com clareza, a condição em que se encontrava. Sabia-se
grávida, apesar de todos os cuidados que aprendera a
adotar a fim de evitar esse dissabor sempre temido no tipo
de vida que empreendia. Rosa, a fiel amiga de todas as
horas, acompanhava-a já ciente da novidade, pois em sua
percepção previra o sucedido, por assistir à sua fácil
capitulação diante dos galanteios de Abelardo.

Adentrando o consultório médico, notamos que a mente do


facultativo não se mostrava acessível a qualquer tipo de
influencia de nosso plano. Confirmando as impressões de
nossa companheira, apressava-se a despedi-la pouco afeito
a ouvir os seus reclames. Catherine porém, ressumando
aflitivo pesar nos olhos que deixavam pender grossas
lágrimas, dizia-se

111

extremamente infeliz diante da inesperada gravidez, e


atendendo às nossas sugestões ainda que com extrema
dificuldade, insistia procurando ouvir-lhe os conselhos para
enfrentar o inevitável processo.

-- A madame tome as providencias que achar melhor, mas


eu não posso fazer nada pela senhora – dizia o médico,
ainda contrafeito.

Notávamos-lhe a sólida formação moral, rica de


possibilidades para a devida orientação à nossa amiga,
porém sua pressa e seu pouco interesse em se envolver
com o caso tornavam-no completamente impérvio à nossa
atuação. Intensificamos nossa capacidade de influenciação,
a fim de não perdermos a valiosa oportunidade, insistindo
para a continuação do diálogo, ao que Catherine anuiu:

-- Tive um sonho, doutor, em que meu finado pai me


entregava um bebê...

-- Madame, já está provado que os sonhos são meras


criações do inconsciente, não dê confiança a essas
bobagens – retorquia o médico impaciente, interrompendo-a
e despedindo-a, visivelmente contrariado e sem a mínima
disposição para atender ao nosso instante petitório.

Ciente da vida de meretrício de nossa companheira, estava


certo de que ela não toleraria o processo e lavava suas
mãos, abstraindo-se dos conselhos nobilitantes que lhe
ditávamos com insistência à mente refratária. Não pudemos
deixar de lamentar o fato, recordando que a palavra amiga,
menosprezada por muitos profissionais da saúde, é auxílio
muito mais eficaz do que qualquer medicamento para um
doente aflito.

Ao deixar o consultório, apoiando-se no ombro de Rosa,


Catherine mal se conteve para chegar em casa e
prorromper em choro copioso. Como enfrentar a nova
situação diante da vida que levava?

Abelardo tolerar-lhe-ia o descuido? Assumiria com ela o filho


inesperado? Rosa, alma sensível e mais afeita às nossas
sugestões, considerava:
-- Lembra-se do sonho que você me contou há pouco
tempo?

Não será verdade que seu pai tenha vindo do além para lhe
alertar quanto a este filho? Como pôde acontecer
exatamente o que você viu no sonho?

-- Como disse o doutor, os sonhos são apenas fantasias,


Rosa. Isso não é possível, ninguém volta do Mundo dos
Espíritos. É pura coincidência – respondia Catherine,
inconsolável, entre soluços.

Restava-nos aguardar o repouso noturno para tentar


consolar-lhe a alma dorida, convencê-la da realidade do
sonho e da necessidade de aceitar o processo com boa
vontade, lembrando-lhe os compromissos assumidos.

112
12
capítulo
TEMPESTADE VIBRACIONAL
“Por que sois assim temerosos? Ainda não tendes fé?”

Jesus – Marcos, 4:40

Retornando à noite, não contávamos com as dificuldades


imprevistas na jornada. Era carnaval na Terra e nesses dias
de folia, o plano das Trevas se aconchega à crosta unindo
suas sombras aos folguedos inconsequentes dos homens.
Orientadores de nossa colônia recomendam aos seus
tarefeiros que evitem a todo custo as incursões terrenas
nessas épocas. Nem todos são capazes de se resguardarem
das intensa tormentas vibracionais e do assédio de hordas
de espíritos inferiores que, junto com os homens, entregam-
se às imprudências nesses dias de algazarra. Era
recomendável aguardar que as pesadas nuvens fluídicas
envolvendo a grande cidade se dissipassem para que
tornássemos aos afazeres assistenciais; no entanto, o
serviço não podia esperar. As ondas mentais que Catherine
desferia poderiam perturbar Alberto, danificando-lhe ainda
mas a delicada tessitura perispiritual, ameaçando o bom
êxito de nossa tarefa. Era imprescindível algo tentarmos
para alívio da situação, evitando a semeadura de
infelicidades ainda maiores para nossos amigos.
Demandamos assim às regiões trevosas da Terra, cientes
das dificuldades, embora as nossas parcas condições
espirituais não nos resguardassem por completo das
agressões do colidente ambiente de nossos trabalhos.
Empreendemos a jornada bastante inseguros, como
marinheiros que se dispõem a enfrentar tempestades
desconhecidas em alto mar, munidos de frágeis
embarcações. O

horizonte ensombrecido e agourento que vislumbrávamos


ao longe nos ameaçava com maus presságios, infundindo-
nos verdadeiro pavor. Foi preciso vencer o temor quase
infantil que nos assaltava para partirmos, confiando na
proteção divina. Ao nos aproximarmos do halo vibratório da
metrópole terrena,

113

sentíamos como se adentrássemos numa borrasca de


graves proporções. Vibrações antagônicas nos açoitavam,
quais farpas agudas em meio a vendaval de fluidos escuros
soprando com fúria. Parecia que nos embrenhávamos na
mais tenebrosa região umbralina.

Os encarnados, não habituados à percepção das vibrações


ambientais, não podem fazer uma ideia precisa de como os
desencarnados as registram através dos seus sentidos
aguçados.

Em nosso esforço descritivo, não encontramos outra forma


de caracterizar essas emanações trevosas, do que compara-
las a um temporal. A imagem se lhes aproxima, porém
trata-se de analogia acanhada que não corresponde à exata
realidade do fato. Os espíritos inferiores no entanto, quais
os homens comuns que habitualmente as compartilham,
não lhes denotam a sordidez, por se acharem perfeitamente
adaptados a elas.

Alheio aos entrechoques da atmosfera vibracional que


respira, o homem terreno desfruta dos festejos
carnavalescos sem se dar conta da vileza do ambiente que
o envolve. Se lhe fosse possível vislumbrar o panorama
espiritual que o assedia nesses dias de levianos arroubos de
festividades, aterrar-se-ia ante as assustadoras imagens
que se desdobrariam aos seus atônitos olhos,
conspurcando-lhe o alegre colorido das fantasias e a
exuberância festiva das alegorias.

A alegria sincera destituída de intencionalidades inferiores


não encontra, naturalmente, reprovações nas Leis que nos
dirigem, se n~~ao nos deixássemos contaminar pelos
interesses menos dignos que menoscabam o espírito,
advindo daí o seu erro.

Pudesse o homem, na busca da diversão a que tem direito,


resguardar-se do conúbio com as Trevas, desfrutaria das
festividades populares, continuando a respirar as emoções
superiores sem descer à vil sensualidade.

Atravessamos silentes e apressados as tristes paisagens


povoadas de corriolas de vândalos, favorecidos pelas
bênçãos da volitação e encobertos pelos diferenciais
vibratórios que nos destoavam do ambiente, mas não sem
registrar o entrechoque das emissões inferiores que nos
atingiam de forma desagradável, causando-nos tensões e
receios.
O casarão francês envolvia-se na festa de Momo enfeitando-
se tipicamente como exigia a ocasião. Entretanto fora
invadido pelos mesmos espíritos umbralinos que povoavam
as ruas, e as trevas se somavam às cores vivas da exótica
decoração. Catherine não se dispunha ao sono reparador,
embriagava-se, embora não estivesse ainda perfeitamente

114

habituada aos folguedos carnavalescos, entregava-se com


ânimo às folias típicas dessa festividade. Como uma criança
em fuga das responsabilidades que previa pela frente,
parecia desejar somente esquecê-las, atirando-se na bebida
inconsequente. Não notávamos a presença de Abelardo e
logo a vimos atirar-se nos braços de outros amantes,
retornando aos velhos hábitos da promiscuidade sexual.
Espíritos viciados do sexo invadiam-lhe novamente o
ambiente psíquico desguarnecido, voltando a compartilhar-
lhe os arroubos libidinosos. Lamentávamos não poder
contar com uma de suas crises enxaquecosas, a fim de
coibir-lhe os desmandos nos imprudentes excessos a que se
entregava, pois o metabolismo gestacional afastava
momentaneamente estes salutares incômodos. A
madrugada avançava e não víamos a menor possibilidade
de assediá-la com nossas influenciações, a fim de evitar o
pior. Não nos cabia outra alternativa que nos recolhermos
em nossa colônia à espera do fim da exótica e lúgubre festa
humana.

Ao retornarmos, ouvimos um chamado de socorro ao longe,


proferido por entidade de nosso plano. Aproximando-nos,
vimos que um jovem gesticulando desesperadamente,
suplicava por ajuda de matula infrene de espíritos
vampirescos. Três encarnados armados de facas
ameaçavam um cavalheiro, visivelmente embriagado, em
solitária e escura ruela. A súcia de entidades demoníacas
gritava por sangue em meio a desesperante algazarra. O
rapaz aflito, temia pelo velho assediado pelos bandidos.
Acalmamo-lo na esperança de algo fazer em seu auxílio,
mas não nos era possível qualquer atuação. Em minutos os
facínoras, dando ensejo aos incentivos da corja que os
excitava, desferiram golpes mortais no imprevidente
homem, deixando-o agonizando na sarjeta. Os vampiros,
ávidos e enlouquecidos, atiraram-se qual bando de hienas
selvagens sobre a vítima, sorvendo-lhe as emanações vitais
do sangue que vertia em abundância. A inesperada e
terrificante cena nos paralisou por completo os sentidos.
Ocultos pelas barreiras vibracionais, estávamos de certa
forma defendidos contra a cambada de malfeitores
desencarnados, mas muito pouco pudemos fazer em auxílio
do cavalheiro. Acercamo-nos com dificuldade, apenas para
constatar que a vítima agonizava nos seus últimos minutos
de vida. O jovem revelava-se ser seu filho em condições
espirituais mais relevantes, porém se tratava de uma
entidade encarnada em desprendimento noturno, e ante o
choque e a ameaça da cena, retirara-se espavorido, para o
refúgio seguro do corpo físico.

Convocamos entidades de socorro, assentada em grupo


espírita

115

cristão nas imediações, de onde valorosos companheiros


acorreram em nosso auxílio. Tentamos embalde
desvencilhar o pobre ébrio do assédio dos vampiros, mas
era impossível. Achava-se jungido a eles por fortes liames e
ainda se debatia com restos de vitalidade orgânica,
vilipendiada pelos malignos. Os amigos nada puderam
também fazer; era necessário deixa-lo entregue à própria
sorte. Adelaide, em desespero, suplicava para que
socorrêssemos o infeliz boêmio.

-- Querida amiga, é preciso conformar o coração diante das


tristes realidades da vida ainda extremamente primitiva que
levamos na Terra – disse consolando a desesperada
companheira.

– Este cavalheiro sem dúvida, semeou para si mesmo seu


trágico destino. Alimentou vibrações que atraíram estes
vampiros e estará nas mãos deles como um espantalho,
servindo-lhes de joguete por tempo indeterminado e por
obra de seus próprios desatinos. Tais elos somente serão
quebrados pela dor e podemos auxiliá-lo incluindo-o em
nossas preces.

Abandonamos o local da tragédia humana, deixando alguns


espíritos de nosso plano velando pelos acontecimentos.

Certamente invocariam a presença de encarnados no local,


a fim de recolherem o infeliz e encaminharem as
providências habituais em tais ocasiões. Nada mais
podíamos fazer.

Apressadamente voltamos ao refúgio seguro da nossa


colônia, deixando que a tempestade das paixões humanas
se aplacasse no dissabor dos apetites momentaneamente
refestelados e no esgotamento providencial dos ânimos
exaltados.

Retornando às nossas atividades junto a Catherine, findos


os tormentosos dias, encontramo-la ainda se recompondo
dos abusos a que se atirara. Sua aura exalava ainda odores
alcoolizados e a graça da enxaqueca retornara finalmente, a
fim de fazer valer o seu justo merecimento depois de tantos
excessos empreendidos. A situação de Alberto era de se
lastimar. Sua delicada tessitura perispiritual encharcara-se
dos produtos maléficos sorvidos pela imprudente irmã. Era
urgente nossa intervenção para que ele não sucumbisse
naquele momento. Seus batimentos cardíacos eram quase
imperceptíveis e sua psicosfera empalidecida prenunciava a
morte próxima. Iniciamos urgente terapêutica de limpeza a
fim de libertá-lo do guante do álcool.

Fizemos adormecer nossa amiga, exausta e desfeita em


seus desvarios. As emanações psíquicas que lhe vertiam da
mente permitiam-nos entrever o intenso desregramento a
que se entregara nos últimos dias. Abandonara os
imperativos da consciência,

deixando-se

conduzir

pela

inconsequência,

116
certamente procurando na bebida olvidar os compromissos
que a vida lhe suscitava. Desprendemo-la a custo do corpo
físico, mas sua consciência permanecia obnubilada pelos
desatinos assoberbados. Era impossível qualquer tentativa
de contato com ela no momento. Solicitamos com urgência
a presença de Fausto, a fim de nos auxiliar no imperioso
socorro a Alberto. Envolvendo-o em delicadas operações
magnéticas de limpeza, demandamos várias noites de
tratamento intensivo a fim de libertar nosso pobre amigo da
acentuada intoxicação a que fora acometido.

-- Os homens agem como crianças imprudentes diante dos


sagrados valores da vida. Lidam com suas energias
orgânicas como se fossem feitas unicamente para o prazer –
considerava-nos Fausto, concitando-nos à meditação. – As
consequências a que se expõem não compensam os
fugazes gozos que desfrutam.

Após alguns dias pudemos verificar os graves danos na


organização de Alberto, decorrentes das peraltices de sua
incauta mãe. A massa embrionária sofrera sérios prejuízos e
valiosas células físicas foram sacrificadas na tentativa de
evacuar as toxinas impostas à sua frágil organização. porém
conseguíramos evitar o pior e podíamos repousar um pouco.
117
13
capítulo
DOLOROSO TRANSE
“É impossível que não venham tropeços,

mas ai daquele por quem vierem!”

Jesus – Lucas, 17:1

O cortejo de atribulações seguia a sucessão do tempo sem


nos deixar esquecer que o Mestre nos recomendou olvidar
de cada dia o seu próprio mal. Ainda estamos distantes da
vivência integral do Evangelho para o ressarcimento de
todas as nossas dores e prosseguimos semeando-as no
campo de nossos destinos, sem reconhecer que somente o
Bem nos pode conferir alegrias verdadeiras. As vicissitudes
se amontoam em forma de desesperos, as aflições nos
assolam em cada estação da existência, pois não sabemos
praticar a vida na retidão do dever e no amor ao
semelhante. Justo ansiarmos pela felicidade, genuíno anelo
herdado do Criador, porém enquanto não nos fizermos
seareiros da alegria, não deteremos méritos para desfruta-la
e seguiremos como meros fantoches de agonias, sombras
de nós mesmos, colhendo os tormentos livremente
fomentados.

Catherine não estava preparada para a reforma sadia de


seu destino. Não encontrou seus novos caminhos na
execução dos projetos que a vida sabiamente lhe ofertara.
Dera asas ao desespero, pois não desejava abandonar as
comodidades e a luxúria sustentadas pelo dinheiro fácil,
embora advindo de tão execrável fonte. Abelardo, ciente da
gravidez de sua amada e certo de que deveria se
responsabilizar pela paternidade, preferiu dar vazão à
covardia, pois não lhe convinha assumir uma prostituta e
seu filho, ambos renegados pela sociedade. Era-lhe muito
mais cômodo ignorar o fato e olvidar sua pretensa afeição,
embasada na mais fugaz das paixões carnais. Nunca mais
fora visto, deixando nossa amiga inteiramente sozinha,
multiplicando-lhe as agruras. A Lei, que é feita de uma
substância inalcançável pela nossa parca percepção, tudo
assinala e registrou com imagens vivas na memória de seu
protagonista, o instante do dolo.

Ela saberá retorná-lo ao seu destino em forma de reação, no

118

momento mais apropriado. Não nos convinha qualquer


indignação com sua ignorância, cabendo-nos apenas o
pesar e um pensamento de paz em seu favor.

Tivesse ele disposto a apoiar nossa irmã e ela teria


angariado condições para mudar a sua vida. Encontraria
ensejos para sustentar sua gravidez, e juntos poderiam ter
entretecido um lar, meritório de grandes venturas. Mesmo
que não recebessem Alberto, outros filhos tecer-lhes-iam a
alegria de um destino benfazejo. Os ganhos evolutivos
seriam incalculáveis, e dores imensas evadir-se-iam de suas
almas. Mas nossos amigos optaram pela desdita eximindo-
se de assumir as suas responsabilidades. O

destino é força poderosa que tende a seguir em roteiro


previamente estabelecido, mas funciona qual nau em
cruzeiro determinado. Embora a rota esteja já traçada, o
timoneiro tem liberdade de segui-la ou não, podendo
aportar na segurança do cais desejado, ou atirar o barco da
vida de encontro a rochedos ameaçadores. Elegeram eles
por livre escolha, o caminho da comodidade, rumando para
as perigosas falésias da irresponsabilidade. O pobre Alberto
guardava a predisposição de expor-se aos danos advindos
da infeliz eleição. Tivesse ele no entanto, encontrado
guarida segura junto aos amigos encarnados, teria haurido
maiores benefícios de sua fugaz incursão na carne, apesar
de todas as dificuldades que o envolviam no processo
reencarnatório.

Se o amor habitasse o coração dos homens, a felicidade


lhes seria hóspede permanente. Enquanto isso não se dá, o
infortúnio contumaz lhe parasitará a alma, por força de
expressão de uma Lei que é sobretudo, justa e proporciona
a cada um os frutos de suas obras.

A perda de Abelardo ferira a alma sensível de Catherine


muito mais do que se poderia esperar. É verdade que ela
brincara com os sentimentos do rapaz, mas nunca se
sentira tão feliz, confiando em um braço amigo em quem
apoiar seu profundo desterro. Na desilusão em que se
chafurdava, a gravidez indesejada se lhe desenhava como a
vilã que lhe afastou o companheiro, e com ele a doce
alegria de se sentir amada.

Durante o repouso noturno, intentávamos embalde desliga-


la do corpo físico, a fim de entretecer com ela algum diálogo
amistoso, consolando-a diante das aparentes dificuldades
da vida, mas eranos impossível qualquer tentativa nesse
sentido. Seus olhos espirituais se cerraram diante da
responsabilidade assumida, completamente dominada pela
ideia fixa de deter a qualquer preço, o divino processo
gestacional de que era palco. Desferia

119

perigosas ondas mentais contra Alberto, que lhe


penetravam quais aguilhões afiados, danificando-lhe a já
frágil organização perispiritual. Auxiliávamo-lo como
podíamos, mas não tardaria o momento que não mais seria
possível o seu sustento na carne. A placenta, imiscuída de
energias repulsivas ao feto, feria-se de pontos inflamatórios,
que logo deixariam processos cicatriciais calcificados,
promovendo-se a atrofia de seus delicados tecidos.

Além disso, desenvolvendo seus vasos sanguíneos


ricamente intumescidos nas margens do orifício uterino, não
demoraria ainda o instante em que se romperiam,
deflagrando um fluxo hemorrágico, comprometendo-se
então de forma incisiva, o andamento da gestação, como já
nos prevenira Fausto.

Catherine, sem saber que sua gravidez seria


inexoravelmente interrompida, não se dispunha a aguardar
o que o destino lhe reservara. Enceguecida, não enxergava
senão o próprio corpo desfeito, o filho incômodo, a ausência
de um pai com quem dividir as responsabilidades da
maternidade, somadas à negação de uma sociedade
incomplacente, disposta a condenar-lhe desapiedadamente
os deslizes da conduta. Seu orgulho não se curvaria diante
dos olhares de desdém, desonrando-lhe a altivez da alma.
Rosa permanecia ao seu lado, disposta a lhe dar o apoio
nestas difíceis horas, tornando-se nosso único canal para
transmitir-lhe o sustento que intentávamos, e os conselhos
que gostaríamos que ouvisse.

Mas foi tudo em vão. A promessa proferida em espírito foi


esquecida, o sonho olvidado e as esperanças fenecidas nas
tramas da desilusão. Catherine, desfeita em desenganos,
buscava no abusivo uso de bebidas a inútil fuga de suas
vicissitudes.

Incapazes de lhe proporcionar qualquer alívio, os efeitos


nocivos do

álcool

somente

multiplicavam-lhe

as

aflições,

comprometendo-a ainda mais diante das Leis da vida,


medida que promoviam desapiedada agressão ao feto.

Até que numa manhã, embora o sol brilhasse com sua


habitual alegria fazendo o dia avançar despreocupadamente
pela ingerência do tempo, encontramos Catherine em uma
carruagem, acompanhada por Rosa, dirigindo-se para
retirada região no subúrbio da grande cidade. Seu
semblante exalava um fatídico pesar. Não tínhamos a
menor dúvida para onde se dirigiam. O cocheiro, ciente da
direção que lhe indicaram, seguia os passos de seu
obediente cavalo, mostrando receio do ambiente hostil que
adentrava. Apenas o pataleio surdo do animal na terra seca
da poeirenta ruela quebrava o sorumbático silencio que
movia as nossas personagens, atrizes da vida real. Não

120

havia mais lugar para confabulações ou qualquer


desesperada tentativa de persuasão. Em vão intentamos
todos os recursos. Não se podia mais alterar o rumo de seu
destino. Estava inexoravelmente traçado. Cumpria-nos a
obrigação do apoio, mesmo em hora tão abjeta.
Convocamos Fausto para nos auxiliar na dura empreitada e
o valoroso amigo não tardaria a chegar.

No fundo de um morro, uma velha ponte quebrada


interrompia a marcha do veículo, forçando o cocheiro a
estacionar diante de casebre singelo, ao lado de córrego
mal cheiroso. O ambiente de imediato nos assaltou com
desagradáveis eflúvios, mas não era o mangue próximo
com seu característico odor que nos feria com tamanha
repugnância. As entidades que se amontoavam nas suas
proximidades eram as que o descoloriam de intensa
abjeção. O cheiro de sangue pútrido emanava de todos os
cantos. Vibrações que gritavam as agonias de muitas
mortes bafejavam de odor cadavérico o triste barraco,
conquanto a vegetação do entorno, indiferente à vileza do
ambiente, esmerava-se na exuberância.
O cocheiro afastou-se macambúzio, entretendo seu
obediente animal com o verdejante pasto em derredor,
enquanto uma senhora atendia à porta, desenhando na face
macilenta a figura de uma assustadora estrige (Vampiro
com traços de mulher e cadela em certas lendas orientais).
A chegada do coche despertou de imediato o interesse da
turba de espíritos, agitando-a com frenética algazarra.
Muitos acorriam da mata próxima, onde pareciam aguardar
o ansiado instante. Acotovelavam-se em torno de Catherine,
ao denotar-lhe de imediato a disposição íntima de vítima
próxima. Entidade monstruosa de aspecto reptiliano,
parecia chefiar a súcia de comparsas, impondo-lhes certa
ordem, pois buscava com os olhos determinar aqueles que
tinham o direito da vez, ordenando aos outros que se
retirassem.

Ao longe, duas entidades aparentando bondade nos


observavam, percebendo-nos de imediato a presença.

Aproximaram-se sem receio e se apresentaram:

-- Meus amigos, vemos que são espíritos benfeitores. Não


podemos dar-lhes as boas vindas a este vil lugar, aonde
somente os malignos se comprazem em vir. Apresento-me
como Matias, servo de vocês, e este é Daniel.
Representamos aqui a vigilância dos Obreiros do Bem.

Os nobres companheiros, dispostos à ingrata tarefa,


recebiam-nos com amabilidade e explicavam que nos
achávamos em local sob a guarda de poderosos Dragões,
como são denominados em nosso plano, os espíritos
malignos que

121

dominam largas regiões trevosas das esferas inferiores.


Uma flâmula tremulante composta de dois compridos
triângulos sobrepostos, vivamente coloridos de vermelho e
verde, assinalava-lhes a posse e domínio absoluto da
localidade. Para ali eram enviados vampiros, que estes
Dragões guardavam interesse em recompensar por serviços
prestados, a fim de se comprazerem com os remanescentes
vitais dos fetos criminosamente sacrificados. Sim,
estávamos em uma casa dedicada à prática do aborto
criminoso. Dona Carmen, a senhora encarnada que a dirigia,
expressando em seu períspirito o triste aspecto de uma
bruxa, era antiga e respeitada parteira da região, que após
nobilitantes serviços no bem, envolvera-se com espíritos
das hordas draconianas, optando pela prática dos delitos
hediondos a que se entregava. Estabelecera-se no solitário
casebre isolado da cidade, na beira do imundo córrego, a
fim de não levantar suspeita das autoridades locais.
Utilizava-se ainda do ribeirão que se achava bem próximo
ao mar, para atirar os restos fetais servindo-os de alimento
aos peixes, ocultando assim de modo eficiente, as provas do
seu crime.

Matias e Daniel muito pouco podiam fazer em socorro aos


infelizes que aportavam no local quase que diariamente.
Acudiam um ou outro e cuidavam de convocar as equipes
de trabalho de nosso plano que atendiam à caridade cristã,
amparando as pequenas vítimas que ali desencarnavam em
delicadas condições perispirituais, providenciando ajuda
para aqueles que não mereciam, por força da Lei, cair nas
mãos da plévia ali acampada. Recebiam ainda os
trabalhadores que como nós, costumeiramente

compareciam

acompanhando

suas

imprevidentes assistidas. Achavam-se à nossa semelhança,


e por graça divina, protegidos pelas barreiras vibratórias
que nos tornavam ocultos à turba de criminosos.

Cumprindo com suas obrigações, avisou-nos Matias:

-- Amigos, todo cuidado aqui é pouco. Embora ciente de que


já conhecem o fato, é de minha obrigação alertá-los de que
devemos nos esforçar ao máximo para não alimentar
qualquer atitude menos honrada como a indignação, a
revolta ou a raiva, diante das barbaridades aqui
acometidas. Se deixarmos que estes sentimentos nos
dominem a alma, como sabem, poderemos nos impregnar
dos fluidos aqui reinantes, adensando nossos períspiritos a
ponto de torná-los perceptíveis a alguns dos criminosos aqui
reunidos, colocando-nos assim ao alcance de suas
agressões.

Achávamo-nos rodeados de verdadeira súcia de vampiros


da mais vil estirpe. Há muito não percebíamos entidades em
122

condições tão lastimáveis. Sustentava Adelaide, solicitando-


lhe manter o pensamento elevado em prece constante, a
fim de não se permitir afetar pelo ambiente.

Empregamos a denominação de vampiro para espíritos


bastante inferiorizados que se comprazem em se suster das
vibrações hauridas de matérias vivas como os
remanescentes vitais dos corpos recém mortos, e
principalmente do sangue, seja de origem animal ou
humana, onde os elementos de vitalidade se concentram de
modo significativo. Obviamente que não podem degustar e
deglutir essas substancias, como o fariam se estivessem
encarnados, mas são capazes de absorver pela olfação os
ricos eflúvios energéticos que emanam delas. São espíritos
estropiados, almas em frangalhos com terríveis expressões
draconianas desenhadas em suas faces, porém sem os
caninos agudos e as vestes típicas que conhecemos dos
vampiros que entretecem o imaginário humano. De fato,
esta é uma triste realidade do mundo espiritual em que
vivemos. Primitivos antropófagos, que permaneceram
arraigados à alimentação excessivamente carnívora, e
espíritos sanguinários, animados por disposições malignas e
habituados ao crime na Terra, assumiram após a morte o
estranho costume do vampirismo. Hábito delinquente
também chamado draconismo, faz-se não somente pelo
assédio aos restos cadavéricos, como também através do
consórcio com encarnados que, afinados com seus
macabros escopos, são estimulados ao crime fácil e
aparentemente sem propósito, com a precípua finalidade de
lhes arrebanharem vítimas. Conúbio hediondo estabelecido
desde remotas em seitas primitivas, dedicados à oferta de
sangue animal ou mesmo humano aos pretensos deuses,
estes na verdade, os antigos comparsas desencarnados,
que assediando seus companheiros de retaguarda,
dissimulados em abominável sacerdócio, davam
continuidade aos seus terríveis vícios. Ainda hoje se pode
verificar esse sinistro costume nas festas de sangue,
levadas a efeito nos cultos satânicos. Afora estes ritos
sanguinários, esses espíritos se reúnem em qualquer local
onde se pratique a mortandade de animais e abunde o
sangue, como nos matadouros. Outros ainda habitam
necrotérios, velórios e cemitérios onde absorvem os restos
mortais de cadáveres. Naturalmente que não está todo ser
humano sujeito a essa vil depredação vibratória, mas
somente aqueles que não guardam na vida a devida reserva
moral a fim de resguardá-los da maldade alheia.
Obviamente os encontraremos também nas casas
clandestinas de aborto criminoso, onde absorvem os restos
vitais dos fetos assassinados e

123

do sangue que habitualmente promana daquelas que


infelizmente se dispõem ao grave delito.

Justo é que o estudioso sincero, crente nas sabedorias das


leis da vida e ciente de que o amor governa a criação,
interrogue os motivos que levam a comportamento tão
adulterado, distanciados da bondade que a todos deveria
nortear na jornada da vida. O vampirismo contudo, pode ser
entendido como um continuísmo inadequado daquilo que
nos foi usual ao longo da estrada evolutiva, pois no baixo
mundo animal a vida se sustenta no jogo da morte, onde o
mais forte pode devorar o mais fraco. A persistência no
entanto, em tais hábitos baseados em ética tão primitiva e
tolerada pela Lei do Amor apenas nos passos iniciais do ser,
não se justifica à medida que o espírito cresce despertando-
se para a razão e para o exercício da bondade como normas
indispensáveis do viver. Preferimos assim compreender que
a demora neste animalizado vício é uma contrafação da
criação, divorciada das pretensões divinas, promovida pelo
espírito que optou pela franca negação da benevolência
para com os irmãos da retaguarda evolutiva.

Nosso sustento na vida ainda se baseia em inadequado


vampirismo, praticado em refinadas expressões, sem nos
darmos conta de que exercitamos na verdade, um regime
em oposição à Lei do Amor. Se insistimos nesse estranho
hábito de ingerir as vísceras de nossos irmãos inferiores,
justificados por viciadas e pretensas necessidades
biológicas, justo é estarmos por nossa vez, sujeitos ao roubo
exploratório de nossas biomassas doentiamente surrupiadas
de outros. O amor e não a morte, deve alimentar a nossa
vida, se queremos de fato que a felicidade habite nossa
alma. A indústria da morte, sustentando nos séculos o vício
do vampirismo, deve ser assim banida de nossa sociedade,
a fim de que ela se harmonize com as Leis de Deus e a paz
se estabeleça em seu seio. Sem dúvida que o homem
encontrará diversas maneiras de prover sua vida física no
planeta, de forma eficiente e saudável, que não se baseie
no extermínio de seus irmãos menores, maculando o puro
amor que lhe consubstancia a alma divina. Mas isso é
assunto que extrapola o âmbito destes nossos relatos e aqui
os deixamos apenas como motivação para a nossa reflexão.
Todos os espíritos que se nutrem das emanações da carne,
são classificados no Mundo Espiritual em que vivemos,
como vampiros. Em qualquer panorama em que se
manifestem, experimentam graves transformações
perispirituais. Naturalmente que depois da morte, não se
metamorfoseiam em morcegos,

124

como entretecido na lenda dos encarnados, mas promovem


regressões em suas feições, desenhando em seus
períspiritos deformações animalescas, misto de homem e
fera em variados contornos, compatíveis com suas posições
mentais e com as vibrações inferiores que haurem de seus
irmãos menores. Por isso, a fantasia humana na verdade,
não se distanciou da realidade, ao lhes delinear as
assustadoras imagens, presentes em seus romances
dantescos ou películas de terror. Quando o homem
santificar-se, purificando o seu ambiente planetário, se tais
espíritos persistirem na vil prática, aqui não poderão mais
reencarnar e serão levados para outros planos da vida
universal, a fim de prosseguirem a evolução junto a
rebanhos humanos primitivos, capazes de lhes tolerar as
criminosas atitudes e nefandos apetites.

Não estávamos assim, rodeados de verdadeiros Dráculas,


saídos de um filme de terror ou dos contos do famoso
novelista inglês, mas sim de espíritos infelizes, teriomórficos
(Que tem forma de animal), bestificados e mutilados,
verdadeiros loucos, distanciados da realidade divina em que
fomos criados. Não podiam na verdade, infligir-nos dano
algum e nos infundiam mais pesar do que pavor. Não se
assustem os homens, nutrindo em suas imaginações o
temor da morte com o receio de se entregarem a essas
terríveis criaturas. Entretanto, urgem a prática constante do
bem e o exercício de uma vida moralmente elevada, a fim
de nos resguardarmos contra esta dura realidade da vida
espiritual. A verdadeira proteção contra tais ataques não
advém do uso de armas ou de escudos especiais, mas sim
da prática constante do bem. Por obra do Senhor,
achávamo-nos munidos destas defesas, não por méritos
que ainda não detínhamos, mas por trajarmos já a
armadura do bem sincero.

Enquanto Catherine encetava negociações com a senhora


das Trevas, indignando-se diante da vultosa quantia que lhe
exigia para a tarefa, adentramos o casebre visivelmente
contrafeitos, diante não só da algazarra dos espíritos, como
das péssimas condições de higiene do local. Notávamos
pela conversação que entreteciam, que Catherine já era
conhecida da ex-parteira, certamente por ter-se servido de
seus préstimos para algumas de suas cortesãs.

De imediato observamos que restos fetais, envolvidos em


trapos sanguinolentos, descansavam em um canto atraindo
as moscas, certamente oriundos das práticas do dia
anterior.

Adelaide, sobressaltada, questionava-me se porventura a


entidade espiritual que se associava àqueles despojos não
estaria

125
ainda presente. Atendendo à ansiedade sadia da amiga
desejosa de ajudar, esclareci-lhe:

-- Não se apavore, Adelaide. A Misericórdia Divina assiste o


ser em qualquer situação em que se encontre. Os obreiros
do desligamento já estiveram aqui e encaminharam o
espírito que estava unido a estes restos carnais. Embora as
condições de desencarnação variem sobremaneira de
acordo com a bagagem moral de cada um, o Plano
Espiritual dedica especial atenção ao desenlace destes
espíritos em situações tão delicadas, com o mesmo desvelo
com que o homem terreno recebe aqueles que renascem
com dificuldades físicas. Deus socorre o homem através do
próprio homem, como temos aprendido, portanto estes
espíritos nunca jazem abandonados à própria sorte.

Alguns permanecem unidos ao organismo feminino pelos


laços do amor ou do ódio. A maioria no entanto, encontra
socorro nas enfermarias de embrióides, quais as que
visitamos no Departamento de Embrioterapia a fim de se
restabelecerem do choque reencarnatório interrompido, ou
tornarem em curto intervalo de tempo, ao vaso físico.
Raríssimos detém o demérito de se deixarem cair nas
garras dos draconianos, servindo-lhes de joguetes em
interesses indignos, sem que os obreiros da caridade nada
possam fazer.

Adelaide interrompia-nos o diálogo, desviando sua atenção


para Catherine que se preparava para a intervenção,
ingerindo uma beberagem na qual identificávamos a
presença da Nux moschata, erva utilizada para se estimular
as contrações uterinas. Posicionava-se em seguida para o
início do procedimento abortivo, quando se nos apresentou
para alívio de nossas aflições, a figura majestosa de Heitor,
acompanhado de Fausto. Vergonhoso pesar entretanto,
corou-me o pensamento por não ter conseguido manter
Catherine na linha do seu dever, evitando-se um desfecho
tão infeliz na programação que intentávamos. Heitor,
espírito nobre e percebendo de imediato a minha
desconcertada disposição íntima, aduziu:

-- Caros amigos, novamente nos encontramos em situação


adversa, maculando-lhes a alma sensível. Sinto muito tê-los
envolvido nesta constrangedora conjuntura. Guardem a
certeza de que estou ciente dos fatos e sei que fizeram todo
o possível para evitar o drama que se desenvolve diante de
nossos olhos. Não permitam que culpas infundadas
contaminem a nobreza de suas intenções e agradecemos
imensamente todo o empenho que despenderam em favor
da tarefa.

As condutas de nossos companheiros na carne já eram


perfeitamente previstas , como certamente todos havíamos
intuído. Não nos convinha contudo, simplesmente aguardar
pelo esperado, eximindo-nos do esforço sincero em
modificar-lhes as infelizes disposições íntimas.

Naturalmente não seria sensato, pois como sabemos, o


conhecimento de nosso destino pode nos inibir toda
tentativa de modifica-lo, por isso não nos é conveniente a
certeza de um futuro inexorável. E estejamos certos de que
a vida nos faculta sempre a possibilidade de se evitar o

126
pior, pois se o escândalo é necessário como nos disse o
Mestre, podemos sempre criar condições para desmerece-
lo.

Fausto, cumprimentando-nos e expressando o pesar em sua


face, acrescentou:

-- Nossas preocupações se justificam devido ao quadro de


placenta prévia estabelecido em Catherine. Temos
informações de que nossa infeliz irmã Carmen utiliza-se da
introdução de velas no orifício uterino, ferindo de morte o
feto e induzindo o aborto, mas ela não sabe que encontrará
a placenta ricamente vascularizada em seu caminho,
provocando uma hemorragia de graves consequências. Eis o
motivo de nossos receios, meus amigos, e o que justifica a
presença de nosso nobre mentor.

A ex-parteira iniciava sem delongas o processo, hábil no


manejo de seu instrumental de morte. Com destreza
posicionava o espéculo vaginal a fim de expor o colo
uterino, iniciando vagarosamente a introdução das velas,
para a sua progressiva dilatação. Heitor, aproximando-se de
sua pupila, aconchegou-a amorosamente ao seu regaço,
osculando-lhe a face suarenta. Grossas lágrimas pendiam
de seus olhos, aparentando aceitar com doçura e
compreensão os deslizes da tutelada, que capitulava ante a
ímpar oportunidade de renovação.

Sensibilizava-nos sua atitude, semelhante à de um pai


diante da filha travessa que desconhece a extensão das
faltas cometidas.
Rosa, aflita, recolhida em angustioso silencio, proferia
sentida prece a Nossa Senhora, pedindo por aquela que
considerava sua benfeitora, sustentando-lhe a mão trêmula.
O sol, a meio caminho do zênite, inundava de escaldante
calor a pequena choupana, enquanto os espíritos
vampirescos se posicionavam ansiosos, para o pequeno
banquete. Apesar da celeuma reinante, respeitavam a
ordem estabelecida por três deles, estampando sorrisos
macabros nas faces licântropas, apresentavam-se como os
pretendentes da hora. Um dos mais afoitos, com punho
cerrado, desferia golpes contra o abdome de Catherine, na
tentativa de estimular as contrações uterinas e acelerar a
expulsão do precioso repasto.

Não tardou muito para que uma vela mais grossa fosse
cuidadosamente introduzida, porém com força, com a
intenção de penetrar na cavidade uterina e matar o feto
indefeso. Quando então, um jorro de sangue em profusão
assustou de imediato a assassina, ciente de que estava
diante do imprevisto. Algo apavorada, aplicou-lhe
tamponamentos de algodão, que no entanto, não surtiram o
efeito desejado. Irritada diante do inesperado, ordenou a
Catherine que se levantasse e fosse logo embora, pois
estava terminado. Mais tarde o feto sairia por si mesmo.
Despedia-se sem delongas e meio aflita, desejosa de
desvencilhar-se imediatamente do que poderia ser-lhe grave
incômodo. Entre lágrimas de dores, Catherine levantou-se
ainda cambaleante, sem compreender muito bem o
impositivo de ir-se tão cedo e os motivos da súbita irritação
de D. Carmem. Rosa, amparando-a, não se dava também
conta do que acontecia, somente assustava-
127

se com o sangramento abundante que lhe descia pelos


membros inferiores. A ex-parteira corria para chamar o
cocheiro com palavras ríspidas e apressadamente
despachava nossas amigas.

Os vampiros, que espreitavam especialmente os restos


fetais ricamente vitalizados, vivamente decepcionados,
encolerizaram-se, vociferando gritos terríveis. O mais audaz
deles, inconsolado, atirou-se então de encontro a Catherine,
agarrando-se às suas pernas, em triste atitude, aspirando
com sofreguidão entre uivos apavorantes, o sangue vivo
que lhe jorrava da intimidade. A cena nos feria a
sensibilidade com imenso pesar e repugnância, mas nada
podíamos fazer ante o assédio das Sombras, pois nossa
amiga lamentavelmente criara em si mesma a condição de
se expor à sobre-horrenda espoliação vibratória. Heitor não
deixava de lhe suster amorosamente a cabeça, constrito,
porém mantendo a suavidade que lhe caracterizava a
nobreza do espírito.

Adelaide chorava, procurando inutilmente desviar os olhos


da terrível cena, ocultando-os com as mãos. E eu orava com
sinceridade a Deus para que se compadecesse de nossas
desditas neste planeta de horrores.

O cocheiro assustado, obedecia ao pedido aflito de Rosa,


indeciso entre a ordem de apressar o passo de seu animal e
a necessidade de evitar a todo custo os solavancos na
condução da carruagem, pois a cada forte balanço do
coche, novos grotões de sangue vivo afluíam abundantes de
Catherine.

Finalmente acomodada em seu leito, a irmã respirava


aliviada, conquanto o sangramento prosseguisse sem sinais
de que diminuiria.

Extremamente fraca, aguardava ansiosamente que o feto


fosse eliminado, detendo-se a hemorragia, mas as horas
corriam sem que nada se passasse. As cólicas de expulsão
não davam mostras de se iniciarem. Apenas o sangue vivo
continuava a lhe brotar em abundancia. O infeliz licômano
permanecia agarrado ao seu quadril, sugando os eflúvios
que se evadiam junto com o precioso liquido da vida.
Aplicávamos passes de alívio em nossa amiga sem nada
mais poder fazer.

Sensibilizados diante do aviltoso ataque do vampiro,


entreolhávamo-nos paralisados, esperando que Heitor
tomasse alguma atitude. Este, no entanto, guardando
serenidade diante da lastimável situação, explicava-nos que
para agirmos com segurança, teríamos que adensar nossos
períspiritos de modo a tornar-nos invisíveis para o monstro,
e então tentar persuadi-lo ou ameaça-lo para que desistisse
de seu demoníaco intento, tarefa que nos exigia pesados
esforços e nos dificultaria depois a continuidade do trabalho
assistencial. Os espíritos viciados do sexo, frequentadores
assíduos do lugar e dispersos nas redondezas, logo se
deram conta da inabitual movimentação da casa naquelas
horas da tarde, e acorreram para se inteirarem do que
estava acontecendo. Ao se depararem com o vampiro
agarrado a Catherine, indignaram-se com o infeliz,
ameaçando-o com rudeza, ordenando-lhe que a deixasse,
pois se tratava de pessoa protegida pelo bando. A

128

presença da robusta entidade que vimos servindo-se de


guarda nos aposentos de Catherine, foi o bastante para
intimidar o licomaníaco, que resolveu desistir de suas
intenções, não sem antes bramir coléricos uivos que pouco
intimidaram os circundantes. Admirados, demos graças a
Deus pela providencia que partiu dos próprios consorciados
da casa, pois nós mesmos nada teríamos feito. Heitor citava
a palavra de Jesus que nos recomendava granjear amigos,
ainda que com os recursos da iniquidade, para que não nos
faltem nas horas de aflições, e naquele momento
compreendíamos a extensão dos conselhos do Mestre.
Embora bastante materializados e grosseiros, os espíritos
que se ligavam por laivos carnais àquelas messalinas, eram
entidades muito mais ignorantes do que verdadeiramente
más, e se prestava pelo menos, para lhes guarnecerem de
certa proteção contra o cerco de seres realmente malévolos.
Aproveitamos então para tecer em torno da nossa amiga
um manto de proteção magnética a fim de resguarda-la de
outros possíveis assédios, visto não ter ela alimentado a
postura moral elevada o bastante para lhe conferir natural
segurança. Para isso, foram-nos de imensa utilidade as
vibrações que se desprendiam de Rosa, única pessoa capaz
de se manter com o pensamento elevado em preces,
mesmo diante da intensa concupiscência do ambiente.

Agradecíamos a Deus, cientes de que a oração tem o seu


valor e pode ser empreendida em qualquer lugar, mesmo
no mais vil deles.

Afastado o vampiro, Fausto pôde examinar com mais


cuidado a condição em que se encontrava Alberto,
verificando que o mesmo agonizava em seus derradeiros
instantes de vida. Adelaide, algo preocupada, questionou-
me se porventura o espírito em tais condições, tem
consciência do que lhe passa e registra dores em sua frágil
organização. Atendendo-lhe a sadia curiosidade, considerei:

-- Recordemos que Alberto já completou três meses de


permanência na carne e seus liames com a matéria já se
estabeleceram de forma suficientemente forte para lhe
reter o espírito, tornando o processo desencarnatório
semelhante a qualquer outro.

Embora os órgãos sensitivos ainda se encontrem em estágio


de desenvolvimento, já são capazes de veicularem
sensações ao espírito de modo bastante efetivo, podendo
ele já registrar o frio, o calor, o toque, e naturalmente os
estímulos dolorosos. Compreendamos sem sombra de
dúvidas, que é uma grande ilusão do homem terreno achar
que está lidando, no aborto criminoso, com seres ainda
incapazes de sentir e sofrer. Eles padecem não somente as
dores físicas do ato, como também os sofrimentos de ordem
moral que se lhes impregnam profundamente a alma. O
medo, a intensa frustração diante dos anseios não
realizados, as sensações da morte traumática e o ódio por
aqueles que lhe infligem o mal compõem o cortejo de
sentimentos que acompanham essas pequenas e indefesas
vítimas da ignorância humana. Embora seus instrumentos
físicos ainda estejam incompletos para o reconhecimento
seguro de tudo que lhes sucede, o espírito encontra-se ativo
e percebe o que lhe passa. Ainda que estes

129

acontecimentos não possam inscrever-se na memória física,


são registrados em detalhes na memória espiritual, à qual a
consciência pode ter acesso em estados alterados de
percepção.

-- Quer dizer que se a placenta não o tivesse protegido...

-- Isso mesmo. Felizmente para Alberto, a placenta


antepondo-se entre ele e o orifício uterino, protegeu-o dos
golpes dolorosos da ferramenta abortiva, resguardando-o de
padecimentos ainda maiores.

Sua consciência neste instante, pressente a morte próxima


e agoniza também, sofrendo as dores do desenlace
prematuro, registrando não somente as angústias próprias
do momento, como o malogro pela vida que se frustra.
Recordemos que, embora usando veste física ainda
prematura, estamos diante de um espírito velho, habilitado
nas sensações da vida e no julgamento das emoções
humanas. Ele percebe as impressões mentais que movem
sua mãe neste momento e se dá conta de que é presença
indesejada. Sofre pelas injúrias físicas de que é alvo,
sentindo-as como um ato de maldade. Por isso, muitos
espíritos nessas condições passam a nutrir verdadeiro ódio
por suas pretensas mães, sentimentos que unirão seus
destinos, aguardando solução no tempo. Alberto, no
entanto, em sua intimidade consciencial sabe que não é
meritório da vida que não soube valorizar na última
encarnação e tal disposição íntima restringe sua capacidade
de gerar animosidades. O momento o alimenta sobretudo
de profunda tristeza e frustração diante do renascimento
malfadado, sensações que não deixam de ser curativas para
suas tendências autodestrutivas. Ele arquivará a lição,
estabelecendo doravante maiores cuidados para com o
próprio corpo e aprendendo a valorizar devidamente a
existência física.

-- Entretanto, temos que reconhecer que muitas vezes o


aborto é inevitável para se salvar a vida da mãe – ponderou
assustada a amiga.

-- Sem dúvida, é preciso considerar que o aborto encontra,


em raras ocasiões, indicações terapêuticas, como também
muitas vezes se dá como ato espontâneo. Todas estas
condições, no entanto, guardam correspondência com as
necessidades do reencarnante, como já vimos. E lembremos
que nestes casos o ódio não encontra lugar nos corações
envolvidos, resguardando-se de futuros sofrimentos
expiatórios.

Adelaide dava-se por satisfeita e prosseguimos na tentativa


de algo realizar em benefício de nossos amigos. Fausto nos
explicava a necessidade de Alberto esgotar a maior parte
de seu tônus vital para desprende-lo da massa fetal,
cabendo-nos portanto, aguardar.
Catherine, como pressentíamos, em breve deixaria a vida,
caso não fosse prontamente socorrida. Heitor, numa última
tentativa de evitar a desencarnação próxima de sua pupila,
tratou de sugestionar Rosa, infundindo-lhe forte
preocupação pelo estado de sua tutora, a fim de que se
dispusesse a buscar ajuda rapidamente e não aguardasse
mais pelo desfecho do aborto. Obediente e facilmente
influenciável, a jovem deixou-se invadir por terríveis
presságios, vendo que Catherine se

130

mostrava a cada momento mais lânguida, pedindo


insistentemente por água sem dar mostras de melhoras.

Era já tarde quando ela saiu apavorada à procura do


médico, enquanto o dia se dissipava nas cores melancólicas
do crepúsculo.

Acompanhamo-la eu e Adelaide, deixando nossos amigos


sustentando como podiam a desventurada amiga. O médico
entretanto, negava-se a comparecer em sua casa, apesar
das súplicas insistentes de Rosa.

Perfeitamente ciente de que se tratava de cabaré famoso,


dava mostras de orgulhosa dignidade, achando
inconveniente sua presença em tão deplorável lugar, pois
poderia ser notado pelos circundantes, denegrindo-se-lhe a
imagem de homem probo. Insistimos com nossa capacidade
de influenciação, porém não encontrávamos qualquer
ressonância no facultativo, que colocava a sua honra acima
dos deveres de médico e dos sentimentos humanos. Que
lhe trouxessem a doente, determinou secamente, sem
delongas, despedindo a aflita moça. Lacrimosa, Rosa
retornou apurada e bastante contrafeita, pois suspeitava
que Catherine não detivesse forças para resistir a nova
caminhada, mesmo que não tão longa.

Encontramos Catherine já em estado de choque e


completamente obnubilada. Acomodando-se em camadas
profundas do inconsciente, atirava-se a desvarios, quando
Heitor me convidou ao exame minucioso dos pensamentos
que a moviam naquela hora de agonias. Com a destra em
sua fronte podia ouvir-lhe as correntes mentais aflitivas,
enquanto Rosa providenciava a sua remoção urgente.

Na iminência de perder o bebê, seus sentimentos maternais


se exaltavam, nutrindo-a de frustrações e pesares diante da
covardia a que dera vazão, evadindo-se de recebe-lo com
amor e desfrutar os encantos da maternidade. Sentimentos
ambíguos que no entrechoque das forças psíquicas
despertavam reminiscências profundas em sua memória
espiritual, trazendo-lhe à tona época remota, advinda de
outra existência. Sem plena consciência da preciosidade do
instante que vivenciava, via-se enclausurada em uma
solitária e fria masmorra, em hábitos de freira, sentindo
imenso pesar por grave ocorrência. A mesma ambiguidade
de sensações em intenso antagonismo consigo mesma a
movia, pois se via constrangida pela morte de um homem
que amava, porém responsabilizava-se pelo seu
assassinato. Dominada pela vingança diante da afeição não
correspondida e de infame traição, revolvia-se entre o amor
e o ódio. Uma amargura infinda dominava-lhe a alma de
angustiosas recordações que não sabia de onde provinham.
Podia ver ali as forças poderosas do passado agindo no
presente. Segredos que o espírito transporta, emoções não
resolvidas que vinham à tona aguardando ensejo para
soluções definitivas.

Certamente presenciava a execução de importantes lições


para os amigos envolvidos naquela trama e as premissas do
presente não os uniam por mero acaso, mas obedeciam às
instruções do destino, contidas nas páginas do pretérito,
escritas em linhas indeléveis no livro da vida. A gravidade
do momento frenava-me o ímpeto de atender à

131

curiosidade, questionando Heitor sobre o quadro que se


desdobrava ante minha análise e calei-me respeitoso.
Atendendo à caridade cristã, emitia ondas de paz tentando
confortar a amiga, em instante tão decisivo para o seu
destino. Pressentia que o momento de alguma forma se
ligava àquele drama distante e os sentimentos que a
inundavam pareciam corresponder aos mesmos que lhe
afloravam sub-reptícios, da remota lembrança, afigurando-
se-me o irmão reencarnante como o mesmo personagem,
alvo de seus contraditórios sentimentos de paixão e ódio.

Alberto,

nesse

momento,

iniciava
seu

processo

de

desencarnação, recolhendo-se para as camadas internas do


inconsciente, apagando-se para a realidade em que mal
iniciara os passos. Seu períspirito começava a absorção do
tônus vital remanescente na massa embrionária, a fim de
deixa-la definitivamente, e se contraía inibindo todos os
exaltados estímulos expansionistas, colocados em
funcionamento. Concretizara assim o seu desfecho, pondo
fim a todas as suas esperanças de vida nova. Dava
cumprimento porém, às linhas do seu destino, traçadas
pelas próprias desventuras, como todos já prevíramos.

As estrelas mais afoitas já enfeitavam o céu quando enfim,


Rosa conseguiu mobilizar sua amiga, carregando-a com
ajuda de outras companheiras para a carruagem que a
levaria ao médico.

O fluxo hemorrágico não cessara e as entidades, que por


curiosidade permaneciam ao seu lado, retiraram-se
obedientes a outros convites da noite. O quadro de choque
já se achava instalado e Catherine não conseguia mais
responder aos estímulos ambientes. Ao ser colocada
cuidadosamente no veículo que a levaria, novo e intenso
fluxo hemorrágico colocou-a no limiar da morte. Não
guardava mais a vitalidade suficiente para atingir o médico.
As amigas, sem se darem conta disso, saíram á procura do
socorro. Sudorese fria cobria-lhe o corpo e sentimos que sua
pulsação chegava ao fim. Sua consciência se retraía nas
reentrâncias do espírito, apagando-se completamente para
a realidade. O óbito clínico estava efetivado e Catherine
entrava nos estágios iniciais do desenlace, pouco depois de
Alberto.

Ambos no entanto, permaneciam jungidos às vestes


corpóreas como de praxe, nos momentos iniciais da morte.

Diante do consultório do médico, pôde o profissional apenas


constatar que a enferma já havia falecido, recomendando
que retornassem para providenciar o seu funeral, sem
questionar as verdadeiras causas que desencadearam o
inopinado e grave episódio hemorrágico.

Findo

primeiro

período

de

recolhimento

da

desencarnação, em curto tempo, Fausto com delicada


destreza, pôde recolher Alberto de seu pequeno manto
físico, colocando-o

132
em uma cesta prateada, própria para este fim. Enquanto o
reduzido séquito de amigos, vestidos com o luto da
ignomínia e lastimando a ausência da parentela francesa,
enterrava os despojos da famosa cortesã, demandamos as
regiões espirituais que nos aguardavam, ciosos de que
cumpríramos o melhor ao nosso alcance. Deixando os
humanos transportando seus fardos de infortúnios,
exaltados diante dos mistérios da morte, distanciamo-nos
do palco de seus intermináveis dramas de cada dia.

Heitor permaneceu ainda velando por Catherine e dias


depois pôde providenciar o seu desligamento. Embora nossa
irmã transportasse consigo uma consciência denegrida no
exercício de uma vida ímproba, deixou o plano físico nos
braços de seu protetor, partindo rumo às esferas de
refazimento.
133
14
capítulo

UM HOMEM SEM MEMÓRIA

“Vendei o que possuís e dai esmolas. Fazei para vós, bolsas


que não envelheçam.”

Jesus – Lucas, 12:33

A morte é o fim somente da organização carnal temporária


de que se serve o espírito em sua romagem terrena. Limita
apenas uma das infinitas dimensões da vida, que se
desdobra além, em panoramas inalcançáveis para a mente
humana. Para o espírito em evolução, sujeito a quedas e
recomeços, os recursos propostos pela Mente Divina para a
sua educação, são ilimitados, sobrepondo-lhe a reduzida
capacidade de empreender o mal e sofrer-lhe as
consequências. Embora isso não justifique a permanência
no desacerto, é-lhe dado o livre arbítrio para errar, pois
sempre é possível o reparo da consciência ferida e
vilipendiada pelo desamor. Os atropelos não compensam os
abusos livremente pretendidos, mas todas as oportunidades
são oferecidas para a regeneração do espírito, e o seu
retorno definitivo ao seio amoroso do Pai, que o aguarda
com paciência e o quer livre na capacidade de eleger e agir,
vivendo enfim por espontânea vontade, confinado nas
fronteiras do amor sem limites. A dor comparece como
recurso de correção, inibindo novos sofrimentos para que o
espírito conquiste a alegria perene, herança genuína com a
qual foi criado. Além dela, o amor se estabelece como
auxílio poderoso, capaz de cicatrizar as maiores chagas do
espírito, remédio seguro, sempre disponível na criação em
qualquer instancia, aguardando somente que a vontade do
ser se manifeste para utiliza-lo em proveito de si mesmo.
Por isso o apóstolo pescador nos asseverou que a
benevolência pode cobrir a multidão de nossos males.

Não fosse o amor de Heitor por sua pupila, estaria ela


entregue ao dissabor de um traspasse doloroso e
prolongado. O

óbito a surpreendera com um coração desalentado e a alma


despreparada para uma vida espiritual feliz. Porém, a
misericórdia

134

do pai lhe sustentava os passos vacilantes na nova


existência que iniciava. Se a Lei é capaz de punir, ela o faz
com o escopo único da correção, nunca visando à
semeadura de desesperos, frutos exclusivos da própria
desdita do ser. E se é possível amparar antes que coimar,
esta sem dúvida é a opção da Misericórdia Divina.

Catherine seguiu seu caminho e não nos cabia acompanha-


la por ora. Heitor a ampararia com a dedicação de
verdadeiro e amoroso pai, orientando-a com segurança na
nova estrada que se desdobrava aos seus pés. Cumprira
ela, embora com dificuldades, a tarefa que a vida lhe
pedira, e se foi protagonista do escândalo, era porque o
escândalo se fazia necessário.

Não fosse a disposição de Heitor em amparar Alberto,


possivelmente não estaríamos empreendendo a sua
assistência naquele momento. Mas a misericórdia de Deus a
ninguém abandona e assiste o homem através do próprio
homem sem que ele se dê conta de Sua amorosa presença.

Alberto, em obediência à Providencia Divina, fora recolhido


no Departamento de Embrioterapia, na mesma enfermaria
que anteriormente visitara em companhia de Adelaide. Em
breve, acompanhado da dedicada amiga, retornávamos ao
local a fim de nos certificarmos dos novos rumos a tomar
em nossa tarefa de tutoria. Embora amparado pelo
Departamento, continuava ele sob o nosso encargo e
devíamos nos inteirar de suas novas necessidades. Ainda
não conhecíamos a sua história e ignorávamos as causas
que o levaram ao infeliz autoextermínio, mas no momento
nossa expectativa se direcionava ao estado em que iríamos
encontra-lo. Ter-se-ia fixado na embriomorfia?

Necessitaria de novo e urgente mergulho na carne? Haveria


ainda risco de ovoidização?

O espírito que é abortado na fase de desenvolvimento


embrionário tem destino variado, guardando dependência
direta de sua condição evolutiva e do período em que deixa
o corpo em formação. De modo geral, aqueles que
interrompem sua incursão na carne antes da terceira
semana de gestação desligam-se quase que
automaticamente de suas vestes orgânicas ao serem
abortados. Seus liames com o períspirito feminino são mais
fortes do que com o próprio corpo em desenvolvimento, e
assim continuam por tempo indeterminado, jungidos às
mães que os abortaram por qualquer motivo que seja,
aguardando nova oportunidade de renascimento, segundo
programação espiritual. Por isso, na maioria das vezes, o
espírito expulso até essa fase é o mesmo que torna a nascer
logo depois.

Esta é a forma como a natureza protege esses seres,


surpreendidos

135

em delicada situação de trânsito entre os dois mundos. Os


que falecem depois da terceira semana de modo geral,
abandonam a intimidade materna juntamente com os seus
restos orgânicos, estando o desligamento perispiritual
subordinado aos mesmos princípios que norteiam a
desencarnação em geral, ou seja, guarda dependência
direta com a posição evolutiva de cada um, sendo tanto
mais dificultosa quanto menos evoluído é o ser.

Alguns, da mesma forma, podem voltar à união quase


imediata com suas mães, aguardando novo nascimento,
quando assim programado, enquanto que outros são
cuidadosamente recolhidos às casas assistenciais que se
dedicam a esse tipo de amparo, qual o Departamento de
Embrioterapia. Estejam seguros os homens de que o mundo
espiritual dispensa atenção a esses espíritos, da mesma
forma que na Terra se cuida com desvelo os bebês
prematuros. Aqueles que não tornam á carne logo de
imediato, demandam período variável para se recuperarem,
de acordo com os seus potenciais evolutivos. Uma pequena
parcela de modo geral oriunda de ovóides ou suicidas, não
se recupera, tornando-se embrióides como vimos, presos ao
molde embrionário, tendo a reencarnação como única
possibilidade de volver à normalidade da forma.

Sabemos no entanto, que os liames do pretérito e as forças


do ódio podem alterar todas essas condições, modificando
sobremaneira

os

destinos

dos

envolvidos.

Embrióides

comprometidos com processos dolorosos, comumente


renitentes criminosos do passado, podem cair nas garras de
espíritos malignos, servindo-lhes aos interesses nefastos,
situação bastante rara, que cria graves consequências para
o ser, exigindo a interferência da Misericórdia Divina. No
aborto criminoso, como regra geral, estabelecem-se laços
de ódios recíprocos, jungindo mãe e filho, tecendo destino
de amarguras para ambos, com difícil solução no tempo.
Mesmo transportando precárias condições orgânicas, os
embrióides podem promover de imediato, acirrado ataque
às infelizes mães que os abortaram, em triste urdidura
obsessiva, que pode conduzi-las à loucura ou mesmo à
morte. Fora do âmbito dessas conjunturas, os embrióides de
modo geral, encontram socorro nos serviços especializados
de assistência onde são amorosamente cuidados, a fim de
se restabelecerem do choque reencarnatório ou tornarem,
em curto intervalo de tempo, ao vaso físico.

Ao chegarmos ao Departamento de Embrioterapia, fomos


surpreendidos por Fausto que nos informava haver
transferido Alberto para as Câmaras de Retificação. O amigo
se desculpava

136

por não ter nos inteirado do fato a tempo, mas a nossa


alegria pela notícia suplantava qualquer sentimento de
desagrado. O

tarefeiro nos dava conta de que o pequeno impulso


contrativo do desenlace de Alberto esgotara-se
prontamente, dando início à efetiva expansão reconstrutora
perispiritual, levando ao seu pronto refazimento. O
tratamento proposto redundara no resultado esperado.
Como o desamor não interferia no processo e uma onda de
simpatia lhe amparava a alma desvalida, a qual até mesmo
Fausto dizia não saber de onde provinha, nosso amigo pôde
se recuperar, pois detinha suficiente potencial evolutivo
para isso. Apesar do aborto lhe ter sido hedionda imposição,
o processo fora benéfico o bastante para efetuar o
saneamento de suas energias negativas, evacuadas com
proveito para a massa embrionária. A embrioterapia tinha
sido bem sucedida. Podíamos respirar aliviados e dar graças
a Deus pelo êxito do tratamento.
Demandamos às Câmaras de Retificação ansiosos por
examinar nosso amigo. Estas câmaras são usadas no plano
espiritual para se acomodarem com relativo conforto,
espíritos que necessitam passar por sono prolongado após o
óbito, mas somente aqueles no entanto, cujas consciências
não se achem desequilibradas por ódios comprometedores
ou aflições angustiosas a ponto de perturbarem a paz que
reina em tais ambientes.

Apesar

de

serenos,

trazem

intimidade

psicossomática

imiscuída

de

remanescentes

vibracionais

deletérios, oriundos de desequilíbrios da vida mental na


carne, e ainda se ressentem dos sintomas que lhes
acompanhavam a jornada terrena nos últimos dias. Aí
permanecem eliminando tais resíduos fluídicos, a fim de
amealhar um bem estar maior na vida que iniciam. Espíritos
que, embora providos de certas conquistas morais, nutriram
a crença na nulidade após a morte e não conseguem
despertar para a realidade espiritual, aí também se
estacionam em sono prolongado, às vezes por anos a fio.

Respeitosos e silentes, adentramos a Câmara que o retinha,


a fim de nos inteirar do seu estado atual. Surpreendidos,
encontramo-nos com um espírito rejuvenescido, dormindo
serenamente. A angústia respiratória e a expressão de
desespero se lhe evadira da fisionomia, deixando-a
estampar um rosto jovial que, embora bastante lívido,
irradiava mansidão. Orelhas salientes, cabelos negros e lisos
repartidos ao meio, testa larga, sobrancelhas delgadas,
desenhavam-lhe o semblante enfeitado por fino bigode,
delineando-se aos nossos olhos a figura de um jovem de
baixa estatura com idade aproximada de vinte anos.

Sem denotar mais os sinais da constrição cervical do

137

enforcamento, seu perispírito estava completamente refeito


e se apresentava de modo aparentemente saudável.
Naturalmente que os graves desequilíbrios que engendrara
para si mesmo não haviam sido de todo sanados, mas
estavam momentaneamente apaziguados. Um salutar
período de refazimento lhe seria doravante concedido pela
Lei. O entrechoque das forças psíquicas autodestrutivas que
conflitavam em seu palco mental, serenou-se por um
instante. Sua condição fora amenizada pela Misericórdia
Divina e doravante poderia ele possivelmente, reconstruir o
panorama íntimo sem a necessidade dos bruscos choques
reencarnatórios, haurindo maiores benefícios de
tratamentos mais amenos.
Seus olhos, estacionados sob as pálpebras cerradas, não
denotavam os característicos movimentos rápidos,
indicando-nos a ausência absoluta de sonhos, típico dessa
fase de recuperação da consciência. Retiramo-nos em
silencio a fim de dialogar com proveito, sem perturbar-lhe o
repouso prolongado.

-- Podemos agora compreender o valor do estágio na carne


para um espírito em desespero. A bênção do renascimento,
embora curto como no caso de Alberto, é recurso seguro
que a Providência Divina coloca a nosso favor. Em que
pesem todas as dificuldades do processo e os dramas
engendrados ao seu derredor, devemos agradecer à
misericórdia do Pai, sempre disposto a amparar-nos sob
quaisquer circunstancias –

considerava junto à Adelaide, embora confabulasse comigo


mesmo.

-- O escândalo se fazia necessário, compreendemos a


assertiva do Mestre...— completou a amiga, trazendo a
figura de Catherine em sua mente.

-- Vejo o seu pensamento buscando por Catherine.

Certamente teremos a oportunidade de revê-la.


Aprendemos a querê-la e tecemos com ela uma teia de
simpatia que certamente nos unirá no futuro. Por ora
convém enviar-lhe o nosso sentimento de reconforto e paz
para que se refaça do doloroso transe sem graves
consequências para a sua consciência. Não obstante as
dificuldades com que se envolveu no processo, conferindo-
lhe o infeliz desfecho, o prejuízo angariado foi muito mais
para si mesma do que para Alberto, que a despeito do
acréscimo de dores impostas aos próprios sofrimentos,
hauriu benefícios com a acerba experiência. O Mal muitas
vezes é via de correção para o próprio mal, o que não que
dizer que ele seja necessário, pois a Lei não depende de sua
realização para engendrar o Bem que sempre almeja na
educação do ser.

138

Verificávamos que a embrioterapia permitira a Alberto


enfim, completar com eficiência a histogênese perispiritual,
alijando de sua organização os obstáculos impostos pela
autocatálise.

Adelaide admirava-se da perfeita recomposição


psicossomática de nosso amigo, obedecendo aos moldes
anteriores ao seu renascimento e não a configuração
embrionária com a qual deixou a carne.

-- Seu perispírito se refez em obediência aos registros


morfossomáticos prévios, os quais o choque biológico do
renascimento não fora suficiente para alterar a orientação
anterior – apressei-me a lhe explicar. – Podemos comparar o
processo à exposição de limalhas de ferro fortemente
imantadas a pequeno e diferente campo magnético, que
não é poderoso o bastante para desviá-las da direção inicial
à qual retomam com facilidade, uma vez terminada a
insuficiente interferência. Sua recuperação pressupõe no
entanto, que ele traz recursos evolutivos suficientes para
exercer certo domínio sobre a sua constituição e que seu
corpo mental se acha preservado. Ele não precisará de
breve retorno à esfera física e poderá desfrutar de um
período de refazimento no Plano Espiritual. Os riscos da
embriomorfia e da ovoidização estão definitivamente
superados, Adelaide. O choque reencarnatório lhe foi salutar
impulso de reconstrução perispiritual, livrando-o de grave
encistamento ovoidal. As forças psicossomáticas da
contração foram dominadas e a histogênese perispiritual,
finalmente pôde dar livre curso à sua plena realização.
Enfim a desencarnação anterior completou o seu ciclo. Não
nos iludamos no entanto, Adelaide, o processo não
terminou. Acredito que ele irá despertar, mas situações
dificultosas ainda o aguardam para o completo
restabelecimento de seu panorama íntimo, desfeito pelo
suicídio.

-- Haverá então outros danos a se esperar nesse caso? O

restabelecimento de sua forma não pressupõe sua plena


recuperação? – interrogou a amiga, admirada.

Vemos apenas o refazimento de suas linhas


morfossomáticas, mas certamente sua consciência, ainda
necessitará de tempo para se reequilibrar. O dano do
suicídio ao espírito é severo o bastante para desestruturar o
sutil metabolismo do pensamento. A personalidade pode
sofrer lesões graves, apresentando quadros psicóticos de
difícil remissão no plano em que estamos. O choque
reencarnatório, embora salutar, pode provocar amnésias
importantes, apagando-se da memória consciente os
registros da encarnação prévia. Outros não conseguem o
despertamento eficaz da consciência e necessitam ser
encaminhados à

139

reencarnação da forma como estão. Significativo processo


depressivo costuma acoimar ainda os suicidas, ao se
depararem com a realidade depois da morte, reconhecendo
que suas dificuldades diante da vida e de si mesmos
multiplicaram-se com o ato impensado. Não conhecemos
casos em que o autocida desperte realmente refeito como
se nada houvesse sucedido. A irradiação de serenidade de
sua psicosfera é sem dúvida um bom prognóstico, mas
aguardemos que nosso companheiro desperte para verificar
a extensão da chaga espiritual estabelecida em sua alma e
as suas novas necessidades.

Diariamente o visitávamos, aplicando-lhe passes de


drenagens a fim de auxiliar na limpeza fluídica necessária
ao seu despertamento.

Prontamente ele reagia, eliminando pela regurgitação


substância espumosa e escura. Diante do espanto de
Adelaide, expliquei:

-- Todos trazemos na carne vibrações deletérias acumuladas


pela mente no exercício da vida, Adelaide. Vibrações que
não são necessariamente produto de maldade, mas de
ansiedades, inseguranças, temores infundados, bem como
dos equívocos do orgulho e do egoísmo. O perispírito
quando já alcançou certo patamar evolutivo, não as tolera
em teores perturbadores, daí a necessidade de que sejam
evacuadas de sua delicada intimidade. Essa limpeza fluídica
residual é efetivada normalmente, através do que
chamamos drenagem emunctorial ou fisiológica, assim
denominada por utilizar as vias orgânicas e não patológicas
de eliminação, como a transpiração, a regurgitação, o
vômito e as vias urinárias. Exsudam de modo geral
secreções pegajosas e escuras, que variam em intensidade
e duração segundo necessidades individuais. Recordemos
que há concreções energéticas tão arraigadas e graves que
não podem ser evacuadas do perispírito por essas vias,
estabelecendo chagas através das quais se consomem,
sendo chamadas drenagens não emunctoriais ou
patológicas. Outras ainda, de maior condensação, frutos de
atos ignominiosos relevantes, somente podem ser
absorvidas pela carne.

Estas são as drenagens expiatórias, fontes da maioria das


enfermidades do homem encarnado.

Por longo tempo assistimos Alberto no repouso regenerador


nas Câmaras de Retificação. À medida que os dias se
passavam nos dávamos conta de que éramos os únicos
interessados no auxílio ao nosso desventurado amigo.
Inusitadamente ele se encontrava aparentemente só. Se
não era assediado por inimigos ansiando por justiça,
tampouco era procurado por vibrações angustiantes de
familiares e amigos, encarnados ou desencarnados, fato que
de certa forma o deixava livre para recuperar-se.
Estranhávamos o fato pois é frequente a presença assídua
de parentes aflitos, pedindo por notícias e ansiando favores
especiais junto às enfermarias de Portais do Vale. Seu
isolamento nos fazia pensar estarmos diante de um espírito
que possivelmente não constituíra família quando
encarnado. O Vale dos Suicidas se compara a imenso
hospital, onde frequentemente aportam

140

familiares em busca de notícias de seus detentos e nossa


colônia conta com equipes empenhadas em acalmar essas
aflições comuns na alma humana. A bem da verdade,
nossos mentores informavam-nos que muitas pessoas,
entre parentes e amigos, apoiaram-no pelo pensamento e
pelas preces logo após o seu desenlace, como uma de suas
irmãs e sua fiel caseira. No momento entretanto, não
observávamos mais essa teia da afetividade sustentando-o,
possivelmente devido ao longo tempo que ele despendera
nas Cavernas do Vale, caindo em momentâneo
esquecimento por parte daqueles que o querem. A
Misericórdia Divina que a ninguém desampara, contava com
nossa modesta colaboração para lhe sustentar os passos na
vida espiritual e procuraríamos fazer isso da melhor
maneira possível, condoídos pelo seu quase completo
abandono, somente suplantado pela presença magnânima
de Heitor.

Nem mesmo os genitores de nosso amigo se mostravam


preocupados com ele, pois não lhe percebíamos os
pensamentos angustioso procurando-o. Habitualmente os
pais não olvidam os filhos, a não ser quando em trânsito na
carne, e possivelmente esse seria o caso em questão.
Embora os parentes remanescentes na crosta não
demonstrassem excessiva inquietude pela sua situação,
notávamos uma enorme aura de simpatias envolvendo de
forma significativa a sua atmosfera espiritual. Nos
momentos em que entrávamos em prece a fim de aplicar-
lhe os passes de drenagem, podíamos sentir estas ondas de
ternura em proporções nunca vistas, excitando-nos a
imaginação quanto à sua origem. Não guardávamos a
menor dúvida de que essas afáveis vibrações eram oriundas
de pensamentos generosos em seu favor, sendo-lhe
bálsamo precioso e salutar, interferindo beneficamente em
sua recuperação.

Certamente grande número de amigos, pessoa que


possivelmente foram beneficiadas por ele, procuravam-no
com sentimentos de reconforto e gratidão, verdadeiro fluxo
de apoio, amparando-lhe o espírito frágil e vacilante nos
primeiros passos no Mundo Espiritual. Como não se
acompanhavam de ondas aflitivas, denotavam não partir de
familiares, cujas irradiações mentais, comumente
veiculadas em cruciantes preocupações, mais perturbam do
que amenizam o desencarnado em situação delicada como
a de Alberto.

-- Podemos observar aqui as evidencias dos efeitos


telessomáticos

– dizia à Adelaide, convidando-a ao estudo. – É reconhecida


no mundo dos homens a possibilidade de se atuar na
organização somática de outrem à distância, pelo emprego
da vontade, direcionada para o bem ou com o intuito de
prejudicar. A prática do vodu, através do qual se inflige um
ato de maldade a outrem sem contato físico, é fenômeno
conhecido desde épocas remotas, o que atesta igualmente
a possibilidade de se propiciar o bem onde quer que seja.
Não há extensão suficiente para apartar o pensamento,
onda poderosa que

141

encontra sempre o seu destino com precisão e eficiência.


Um sentimento de bondade afaga e consola, onde quer que
se encontrem as dores que objetive sanar. Por isso a oração
é um recurso seguro que a Divindade coloca à nossa
disposição em qualquer momento e em qualquer lugar.
Alberto está sendo beneficiado por vibrações, que mesmo
separadas pelas barreiras dimensionais, chegam a ele
servindo-lhe de recurso inigualável de recuperação.
Podíamos senti-las reverberando em sua organização
perispiritual e certamente contribuíram decisivamente para
amenizar o seu doloroso quadro e apressar sua melhora,
que demandaria tempo muito mais prolongado para se
efetivar.

De fato, os diretores de nossa colônia nos informavam que


estávamos diante de um homem que cultivara o apoio
popular, pois deixara uma mensagem de paz na Terra e
desempenhara uma missão de relevo entre seus irmãos. As
emanações de simpatia que registrávamos ao seu redor
provinham de suas ações dignas para com os semelhantes,
embora indignas para consigo mesmo. Admirados,
podíamos sentir a importância dos atos de bondade na
romagem terrena, retornando em benefício do seu próprio
protagonista. São os únicos valores que trazemos para o
Mundo Espiritual, a única moeda que pode atravessar as
barreiras dimensionais que separam os dois mundos. Eis o
tesouro que ninguém rouba, a bolsa que não envelhece, da
assertiva evangélica.

Sem dúvida alguma esse manto invisível de amparo foi o


único responsável pelo pronto restabelecimento de nosso
amigo. Em breve, para surpresa nossa, Alberto despertou e
abrindo os olhos, fixou-os serenamente em nós, denotando
perceber-nos a presença. Leve ar de interrogação se
estampava em sua face, e de pronto interrogou-nos em
polido francês:

-- Onde estou? No sanatório de Valmont? Ou Biarritz?

-- Fique calmo, não há motivo para inquietar-se, você está


de fato num hospital e entre amigos. Volte a dormir, mais
tarde conversaremos.

Alberto, denotando ainda os olhos pesados, voltava a


mergulhar no sono profundo. Adelaide, admirada,
questionava-me quanto aos nomes referidos em seu curto
diálogo, ao qual anuí:

-- De fato, recordo-me da existência de uma casa de saúde


em Valmont, na Suíça junto aos Alpes, e Biarritz é uma
cidade no sul da França, famosa pelas suas estações de
repouso. Certamente nosso amigo esteve internado nesses
locais em seus últimos dias de vida. Não convém no
entanto, delongarmos uma conversação mais acurada com
ele, pois ainda necessita do repouso para recompor-se.

Guardemos nossa curiosidade.

Em breve Alberto passava mais tempo desperto do que


dormindo e o transferimos para as estâncias de
hidroterapia, onde prosseguia em tratamento nos banhos de
imersão. A água como sabemos, possui admirável
capacidade de absorção vibratória, auxiliando a drenagem
de fluidos remanescentes do corpo físico estacionados no
psicossoma,

142

completando a sua retificação. Auxiliávamo-lo na prazerosa


higienização perispiritual, amparando-lhe os passos ainda
vacilantes.

Fraco e trêmulo, ainda não conseguia entreter uma


conversação prolongada conosco. Mantinha um olhar vago e
perdido e falava muito pouco. Em breve lhe pedimos que se
pronunciasse em português por se achar entre brasileiros.
Embora eu tivesse ainda lembrança de minha origem
francesa e pudesse entende-lo, o mesmo não se daria com
os demais que o envolviam.

-- Estamos em Petrópolis então? Por favor, chame o Dr.

Sinésio Pestana que está a par do meu caso – solicitava


nosso amigo. – Meu sobrinho Jorge também virá procurar-
me em breve.

Nossa colônia depois nos informava que se tratava do


médico que o atendera nos últimos dias de vida na terra e
que de fato ele vivera em Petrópolis.

À medida que se recuperava, Alberto no entanto, se retraía


em mutismo injustificado. Não queria mais saber onde se
encontrava e não chamava mais pelo Dr. Sinésio ou pelo
sobrinho, até o dia em que nos demos conta dos motivos do
laconismo.

-- Vejo que vocês me querem bem e me ajudam, mas por


favor, digam-me quem sou eu? Não sei sequer o meu nome.

Vocês me chamam de Alberto, mas não tenho certeza de


que assim me denomino – dizia-nos bastante entristecido,
retornando ao acanhado e arredio mutismo.

Estávamos diante de um homem sem memória, que não


sabia nem o próprio nome. Uma patologia espiritual comum
e esperada

nesses

casos

se

estabelecera:

a
amnésia

transreencarnatória.

A memória, definida como a capacidade de registrar


movimentos e fixa-los na personalidade em forma de
automatismos, estabilizando-os por ação prolongada, é
importante habilidade do espírito, ferramenta indispensável
da evolução. Sem sua atuação o progresso não se faria
possível, pois o ser deveria reiniciar seus passos na matéria
sempre que tornasse a ela. Por isso a memória é recurso
ativo na gênese dos instintos biológicos desde os primórdios
da vida. Na matéria bruta ela ainda pode ser vista como a
persistência da ação de forças que guardam a lembrança de
suas trajetórias e no efeito que sempre recorda a sua causa.

No plano espiritual estudamos essa poderosa força dividida


em duas formas de manifestação: a memória somática e a
memória psíquica. A primeira, também chamada memória
cerebral, baseia-se nos registros de impulsos de natureza
elétrica retida pelos neurônios do corpo físico ou
perispiritual, a serviço da função cognitiva e emocional que
o espírito empreende no

143

presente, no exercício da vida. Funciona qual impressão


magnética dos instrumentos que gravam sons e imagens,
pois os neurônios especializados na memória utilizam
sistema idêntico, embora de muito maior complexidade pela
intricada rede de interações que estabelecem no aparelho
cerebral. A memória psíquica, denominada também
extracerebral é tecida em substancia espiritual consistindo
de precisos registros de lembranças guardados na
consciência profunda, cuja natureza íntima ainda nos
escapa à compreensão. Está consubstanciada na sutil
mecânica do pensamento, compondo forças espirituais na
complexidade da mente e não guarda dependência alguma
com as células neuronais perispirituais ou carnais. É
chamada de memória espiritual, memória profunda ou
inconsciente, sendo responsável pela cognição e pela
autoconsciência, a noção nata que o ser vivo tem de si
mesmo e de sua própria existência, que o acompanha ao
longo de todas as suas muitas vidas.

A memória somática, à qual o espírito tem livre acesso, é


instável e limitada no tempo, guardando relação com o
presente, enquanto que a memória psíquica é extracerebral
e está além do tempo, abrangendo todo o passado
metafísico do espírito. A primeira registra as informações no
decorrer de uma encarnação e a segunda, todas as
informações decorrentes de todas as encarnações.

A memória espiritual é a força operosa que se projeta na


massa neuronal física ou perispiritual, configurando a
memória somática, carreando informações cognitivas,
emocionais e sensórias que funcionam como impulsos-
tendências ao longo da trajetória evolutiva, superando o
tempo e mantendo a continuidade da vida do ser, através
dos seus variados ciclos de renascimento e morte. Devido à
sua ação oculta é que os seres vivos não somente
desempenham atividades sem aparente conhecimento
prévio, como reconstroem seus corpos copiando
exatamente a forma precedente, impondo-lhes as inovações
quando necessário. A nossa ignorância preferiu chamar essa
propriedade de instinto, reconhecendo-lhe a surpreendente
sapiência sem questionar as razões da sua existência. O
instinto nada mais é do que a força mnemônica do espírito,
que sabe recordar o que foi aprendido. A vida nos mostra
com evidencia a presença dessa memória pré-
reencarnatória agindo de forma inquestionável, sem a qual
a experiência na matéria seria impossível. Se a semente
não guardasse a lembrança da árvore que já foi, não saberia
reconstruí-la com exatidão. E se o animal não rememorasse
as habilidades conquistadas, não agiria com

144

destreza diante das exigências da vida. Embalde a ciência


humana irá perscrutar os escaninhos cromossômicos, na vã
esperança de encontrar os agentes genéticos responsáveis
pela hereditariedade de tal sabedoria. A memória não é
herdade física, é herança do espírito que torna à vida,
trazendo seu prévio aprendizado, prova contundente da
anterioridade de sua existência. Basta admitirmos fato tão
simples para que tudo se explique dentro de lógica
irretorquível.

A memória supera a morte, transportando de uma vida para


outra as informações essenciais de que o ser necessita para
prosseguir na evolução, permitindo que as novas aquisições
se agreguem às antigas, que nunca se perdem. Trafegando
entre os dois mundos nos quais realiza o progresso, o físico
e o extrafísico, o espírito necessita de uma consciência de
continuidade para a sua existência entrecortada de
nascimentos e desenlaces. A memória espiritual, não se
sediando na matéria, resiste à morte e o acompanha nesta
jornada, permitindo a reconstrução da memória somática
em cada novo renascimento, retendo o conhecimento já
alcançado. A recapitulação das fases biológicas do
desenvolvimento animal, durante a embriogênese, é
expressão dessa memória de natureza espiritual,
manifestando-se na confecção da forma. Dessa maneira se
mantém a constância das linhas morfossomáticas, bem
como os traços do caráter e dos hábitos, fazendo com que a
personalidade se configure sempre sobre os alicerces do
passado. Carreia ainda os liames cármicos, unindo o efeito à
sua causa, permitindo a colheita fiel do que foi semeado,
nutrindo o ser de dores ou alegrias em perfeita
conformidade com a natureza dos mananciais retidos em
seus registros.

A memória espiritual, de modo geral, não é de fácil acesso.

Embora

se conserve constantemente ativa, mantendo

permanente troca de informações com a memória cerebral


e sustentando as forças que integram a nossa
personalidade, os espíritos de mediana evolução não
guardam a capacidade de penetrar-lhe os preciosos
arquivos. O pleno acesso ao seu conteúdo se verifica em
altos patamares da evolução, quando então o espírito
conquista a capacidade de recordar todas as suas
existências entrecortadas em uma única linha de
continuidade.
A ciência terrena estudando a memória, viu nela também a
existência de duas partes distintas: uma de ação a longo
prazo chamada memória remota, e outra de curto prazo
denominada memória recente. A primeira é expressão da
memória espiritual, e

145

a segunda da somática. Embora se reverbere em sítios de


atuação física, identificados pela ciência terrena nas
estruturas cerebrais como o hipocampo e partes do
intrincado sistema límbico, a memória como um todo é um
complexo sistema feito de impulsos imateriais e sem
localização precisa na massa cinzenta. Conquanto lesões
físicas do encéfalo possam perturbar-lhe o funcionamento,
como as deficiências circulatórias do idoso, isso não se
pressupõe que sua origem se encontre na matéria, pois é
como o pensamento, que embora necessite do aparelho
encefálico para se manifestar, não lhe pertence.

Ao iniciar nova aventura na carne, toda a memória somática


se retrais para os níveis inconscientes da memória
profunda, que passa a operar como poderosa força,
reconstruindo o presente com base nos impulsos do
passado. A lembrança do pretérito se apaga
momentaneamente do consciente para que o espírito
reconstrua no livro da vida novos registros, e conquiste mais
elevado patamar na evolução, experimentando e
reexperimentando suas habilidades, fixando assim o
aprendizado em alicerces firmes e permitindo-se o reparo
dos desvios de rota. Podemos considerar que sem o resumo
do que foi no passado, a personalidade jamais se
reconstruiria para prosseguir no rumo de novas aquisições.
Esta lógica facilmente compreensível da gênese dos dons
natos, não pode ser contestada por mais que teimem os
homens em negar-lhe a veracidade.

Ao desencarnar, contudo, o espírito deve manter na


consciência a recordação ativa de sua última experiência de
vida, para que sua existência se dê na mesma linha de
continuidade e sua personalidade se mantenha. Desta
forma, a individualidade não se desfaz, mas é a exata
continuidade do que foi na matéria com seus mesmos
automatismos, habilidades conquistadas e defeitos
adquiridos. Os laços afetivos seguem também
fundamentados nas mesmas vivencias da última
experiência de vida. Assim a memória somática refaz sua
integridade no perispírito logo depois do desenlace,
permitindo a reconstrução de exata cópia do corpo físico,
retendo nele os mesmos impulsos que lhe foram
impregnados na carne. Para que isso se dê, a revisão
panorâmica no momento da reencarnação, é ferramenta
essencial à reconstrução da memória somática, quando a
memória espiritual transfere para os sítios mnemônicos do
perispírito refeito, todo o conteúdo de sua última vida, para
que o ser possa lhe dar perfeita continuidade.

146

Por tudo isso, ressurgir no plano espiritual não é nascer de


novo, como o é de fato quando se retorna à carne. Desta
forma, enquanto que para o espírito a carne é a esfera do
recomeço, o Plano Espiritual é a esfera da continuidade.
Os registros de memória participam ativamente da
reconstrução do ser depois da morte, interferindo no
processo a época em que ele desencarna e a sua potência
evolutiva.

Aqueles que deixam a vida na fase intra-uterina ou mesmo


falecem em tenra idade, de modo geral reconstroem tanto
suas formas perispirituais, quanto suas personalidades.,
subordinando-se à memória profunda e não à somática,
refazendo-se portanto, segundo o panorama consciencial e
morfológico da reencarnação anterior. Os arquivos
mnemônicos referentes à última existência, retidos na
memória espiritual, permanecem inalterados, pois a
memória somática ainda em formação, não é
suficientemente capaz de alterar a prévia orientação das
linhas de forças morfossomáticas das malhas perispirituais.
Devido a esse fato, a maioria dos espíritos nessa condição
volta ao que era antes de reencarnar. Entretanto, suicidas
com elevado grau de autodestrutividade e baixa condição
evolutiva, como já vimos, podem ficar detidos na
embriomorfia pela incapacidade de acessar a memória
profunda.

Da mesma forma, aqueles que deixam a vida na primeira


infância, período considerado até os sete anos, podem
retroceder à personalidade e à forma física da encarnação
anterior ou seguir na mesma linha de desenvolvimento do
corpo físico, fenômenos dependentes da capacidade de
cada um em interferir no próprio destino. Espíritos de maior
gabarito evolutivo, de modo geral reconstroem-se
obedecendo aos registros morfológicos anteriores, enquanto
que aqueles de medianas potencialidades continuam presos
à memória somática, e permanecem atados à forma física
infantil com que foram surpreendidos pela morte. A maioria
desses continua desenvolvendo-se e amadurecendo como
se estivesse na carne, embora de forma muito mais
acelerada, atingindo o que chamamos de patamar de
comodidade, quando então o espírito se estaciona até o
próximo retorno à carne. Indivíduos inseguros e temerosos
comumente encontram esse patamar de comodidade na
própria infância e nela se fixam, permanecendo como
crianças estacionárias no Plano Espiritual, até que nova
reencarnação os tire do sonho de insensatez que pensam
desfrutar. Estes espíritos pouco aproveitam do rico estágio
de vida após a morte e normalmente reencarnam em curto
período de

147

tempo, retornando quando possível, ao seio familiar que


deixaram na Terra.

A memória do desencarnado é muito mais passível de


lesões do que no homem terreno, em decorrência da maior
instabilidade das forças psicossomáticas que a sustentam
no Mundo Espiritual, destituídas do peso que a carne lhes
impõe. No entanto, é preciso considerar que o dano à
memória espiritual, patrimônio inalienável do ser, é
impossível, pois esta faz parte da substancia imaterial que
entretece o espírito. Somente a memória somática, sediada
no perispírito, está sujeita a prejuízos nas diversas
peripécias do ser, tanto na carne quanto fora dela. O
desfecho precipitado e infeliz dos suicidas, impedindo a
realização da revisão panorâmica a contento, assim como
os abruptos choques reencarnatórios das mortes
prematuras em fase embrionária que obstaculizam a
perfeita recomposição dos registros mnemônicos, podem
propiciar danos significativos à memória somática do
desencarnado. Lesões suscetíveis de perturbar não somente
a perfeita recordação do passado, mas bloquear o acesso à
memória profunda, impedindo a correta reedificação tanto
da forma quanto da personalidade, afetando os delicados
mecanismos da cognição e da autoconsciência, que
terminam por estabelecer a grave perda da auto-identidade,
base para o assentamento das esquizofrenias.

-- Os homens precisam reconhecer a gravidade do autocídio


e do feticídio (O ato de se matar um feto) – exclamou
Adelaide. – São muitos os entraves e dores que provocam
em nosso mundo, depois da morte...

-- E que irão repercutir por muito tempo, não somente na


vida espiritual, como no transcurso da própria existência na
carne.

Guardemos a esperança de que o homem terreno um dia se


convença dessa realidade, Adelaide.

Observando a expressão de vazio e o profundo


desvalimento estampados na face macilenta de Alberto,
amargurava-nos a alma reconhecer sua completa
impossibilidade de assumir qualquer direção em seu
destino. Inteiramente perdido, dependia completamente de
nossa atuação ou da benevolência de entidades superiores
para a continuidade de sua vida. Um espírito que
adivinhávamos valoroso, pleno de possibilidades de
crescimento, ali estava inutilizado, totalmente entregue à
sua própria desdita. Se não encontrasse o socorro,

dificilmente

se

restabeleceria

no

Plano

Espiritual,

encaminhando-se para urgente retorno à carne em


lamentáveis condições de sofrimento. Condoídos de sua
situação, continuamos nossa troca de observações.

-- Temos agora o quadro estabilizado e conhecemos suas


necessidades imediatas, Adelaide. Alberto manifesta uma
amnésia transreencarnatória, uma lesão que se estabelece
naqueles que passam por processo desencarnatório
incompleto, e não executam a recomposição adequada da
memória ao migrarem de um plano para

148

outro. Ele não refez adequadamente os seus registros


mnemônicos pela falta da revisão panorâmica após o
suicídio traumático, tendo acrescido ao dano os prejuízos da
desencarnação prematura na fase embrionária, infelizmente
necessária, para resguardá-lo do risco de ovoidização. Estes
súbitos entrechoques biológicos lhe afetaram a memória
somática, sustentada pela massa de neurônios do
perispírito, somados à desorganização imposta pelas forças
autodestrutivas ainda em vigência. Ele manteve os registros
operacionais de atividades automáticas como a fala, os
traços caracterológicos da personalidade, e podia recordar
poucos fatos mais recentes que lhe restaram na lembrança
fugaz, porém em decorrência da perda do acesso à
memória remota, estes logo se desvaneceram. Como a
lesão foi profunda, ele foi perdendo paulatinamente o
conhecimento que tinha de sua vida e a consciência de si
mesmo.

-- A recordação plena de suas últimas experiências de vida


estará irremediavelmente perdida? Não haverá recuperação
para ele no plano em que estamos? – perguntou Adelaide,
surpresa.

-- Vamos trabalhar para que isso não aconteça. O quadro é


esperado nos suicidas que se recuperam através da
embrioterapia. O

dano nessa caso não é completo, pois afeta somente a


parte consciente da memória. O amnésico mantém em
vigência os traços que compõem sua personalidade, as
tendências adquiridas no exercício das muitas vidas e as
aptidões do caráter. Ele perde o acesso consciente à
memória remota, as lembranças do que ele foi e o que fez
na última experiência reencarnatória, o que o atordoa
sobremaneira e pode leva-lo a uma crise severa de
despersonificação e loucura.
-- Não podemos então consultar as anotações que o Plano
Espiritual mantém das suas histórias individuais e com isso
ajuda-lo a se lembrar antes que isso aconteça?

-- Minha amiga, não é tão simples assim. Podemos consultar


apontamentos, e melhor do que isso, sob hipnose profunda
nos é possível vasculhar a intimidade da memória
inconsciente do amnésico.

Mas se o indivíduo não refaz as vias de acesso próprio a


essas informações, pouco valor tem. A reencarnação
permanece como o recurso seguro para os casos extremos,
mas deve ser empreendida somente depois do fracasso de
todas as tentativas de recuperação, pois o renascimento de
modo geral, traz novas dificuldades para o ser.

Os amnésicos não são raros nas enfermarias de Portais do


Vale, já lidamos com eles há muito tempo, e nossos
estudiosos, devido a isso, desenvolveram recursos para o
seu tratamento. O método consiste em propiciar-lhes a
recapitulação das experiências passadas, única forma de
fazê-los resgata-las completamente. Não precisamos
desesperar-nos, o prognóstico é favorável; somente temos
que estar dispostos a longo trabalho pela frente.

-- E se não obtivermos êxito na tarefa? O que acontecerá


com o nosso amigo?

149
-- Nesse caso a reencarnação será a única via para o seu
reequilíbrio, embora acarrete certos transtornos. O homem
sem memória ao renascer, encontra sérias dificuldades em
situar-se na vida com proveito, pois a lesão traz, irá
acarretar graves perturbações na reconstrução da memória
cerebral. Os laços afetivos se refazem com certa eficiência,
a personalidade se reestrutura sem maiores entraves, mas
diversas deficiências intelectuais se estabelecerão,
refletindo-se na dificuldade de aprendizado na infância,
fixando-se a idiotia em suas variadas expressões, sem que
se identifique a existência de lesões orgânicas, sustentando
tais alterações. Todas as funções mentais que se baseiam
na memória pregressa serão perturbadas, manifestando-se
a dislexia (Dificuldade de compreender e se expressar na
linguagem escrita) e os distúrbios da linguagem em todas
as suas formas, inexplicáveis do ponto de vista puramente
orgânico. E se a lesão atingir a reestruturação da
personalidade, obstaculizando a identificação dos pendores
do automatismo nato, poderá afetar a autoconsciência,
estabelecendo-se patologias mais graves, como as
síndromes de despersonalização (Distúrbio psiquiátrico no
qual o paciente perde a noção de quem é, sentindo-se
estranho a si mesmo) e a esquizofrenia.

-- Compreendo...

-- Daí a necessidade de trabalharmos com afinco a fim de


recupera-lo da lesão mnemônica. E não devemos perder de
vista que todo este transtorno foi desencadeado pela louca
desventura da autodestruição.
-- Entendo agora porque Heitor foi tão reticente em nos
revelar o seu passado. Ele estava apenas nos estimulando a
tarefa, pois já previa que teríamos que ajuda-lo a se
reencontrar, não é isso, Adamastor?

-- É possível, Adelaide, é possível...

150
15
capítulo
NAS ESTRADAS DO PASSADO

“Alegra-te, mancebo, da tua mocidade, anima o teu coração


nos dias da tua juventude e anda pelos caminhos do teu
coração e pela vista dos teus olhos; sabe, porém, que por
todas estas coisas Deus te trará a juízo.”

Eclesiastes, 11:9

A cada dia notávamos Alberto mais acabrunhado e


introvertido, aprofundando paulatinamente o seu estado
depressivo. Caminhava sorumbático e entibiado pelos
corredores da Casa de Amparo, movido por passos lentos e
indecisos. Olhar lânguido, vagueando pelo infinito perdido
em si mesmo, procurava por respostas onde somente
encontrava interrogações insolúveis. Sem caminhos, não se
dava mais conta de quem era, o que devia à vida e para
onde ir. Condoía-me vê-

lo completamente solitário e desvalido no plano em que se


recolhera, embora ciente de que a misericórdia divina não
desampara nenhum de seus filhos. Nasceu-me então o
desejo de acolhê-lo em minha modesta residência e solicitei
da direção de nossa colônia a conveniência de tal ato. Far-
me-ia companhia à solidão por sua vez, e poderia quem
sabe, aconchegando-me ao seu coração, melhor auxiliá-lo
no reencontro consigo mesmo. E passei a conviver com
aquele amigo sem palavras, portando a ingenuidade de
uma criança, digno de cuidados. Seu olhar intimidado,
carregando de humildade sua compleição minguada e frágil,
deixava transparecer um coração que, mesmo tresmalhado
em dores, transpirava bondade, incitando-nos a ampará-lo
como um verdadeiro irmão. Embalde buscava entreter com
ele um diálogo mais prolongado, pois sua memória
claudicante o impedia de manter a sequencia lógica de
qualquer assunto, por mais simples que fosse. Todo
raciocínio lhe parecia por demais complexo para o parco
entendimento. É penoso confessar que ao mirá-lo, perdido
no completo desvalimento, um sentimento de piedade me
invadia o coração, esquecido de que a dignidade e o amor
com que o Senhor da vida nos confeccionou a alma, jamais
nos faz indigentes de sua misericórdia.

151

Era imperioso iniciarmos um tratamento eficaz a fim de


arrancá-lo do fosso de amarguras em que se atirara, antes
que se refugiasse em psicose de difícil solução.

Forçoso é reconhecer que se o choque amnésico é


consequência de traumas desencarnatório como o suicídio,
é também compreendido como recurso inconsciente de
defesa do

“eu” diante de sofrimentos intoleráveis. Refugiando-se no


olvido, evade-se o espírito das dores que as lembranças
amargas lhe suscitam, apagando-as da memória. Porém,
como é impossível fugir de si mesmo, os pesares
prosseguem em escala crescente.
Por isso, amarfanhar a alma na irracionalidade da insânia
pode ser a única via para o insolúvel drama íntimo. Antes
que esse passo seja dado é preciso ajudar o fugiente,
auxiliando-o a enfrentar com galhardia suas amargas
recordações, predispondo-o à conquista da saúde
emocional. A psiquiatria terrena identifica quadros
semelhantes ao caracterizar as amnésias e as fugas nas
síndromes de transtornos dissociativos, verdadeiros, porém
inadequados mecanismos defensivos da mente, quando o
“eu” se vê na impossibilidade de engendrar outros recursos
mais eficazes na prevenção do desequilíbrio consciencial.

O tratamento da amnésia transreencarnatória consiste em


levar o paciente a mergulhar em seu passado, revivendo-o
sob orientação, permitindo-lhe refazer as vias de acesso à
memória profunda, recompondo assim o conteúdo da
memória somática.

Chamado de recapitulação mnemônica dirigida ou dinâmica


revivencial, pode-se compará-lo às psicoterapias do homem
moderno, os quais, induzindo o enfermo à vivência de seus
traumas íntimos, capacitam-no para a reconstrução de seu
panorama emocional desfeito. Forçoso é reconhecer, no
entanto, que é preciso habilidade na condução do
procedimento, a fim de que a vivencia não aprofunde os
sofrimentos e nem redunde em mero lustre para o
personalismo já doentio, nutrindo-o com valores errôneos da
vaidade humana.

O conhecimento prévio da história do paciente é sempre


recomendado para se facilitar a condução do processo, e
neste momento já tínhamos em mãos registros da vida de
nosso amigo, obtidos no Departamento de Informações de
nossa colônia. Não convém que o terapeuta inicie o
mergulho no passado sem esse conhecimento, se ele não é
suficientemente capaz de perceber os entraves ocultos dos
hábitos personalísticos do enfermo, antevendo seus erros,
pois ele corre o risco de se deixar levar por caminhos
inadequados em sua recuperação. Agrada a este, de modo
geral, iludir-se de que seja vítima de injustiças e não o

152

artífice de suas próprias dores, o que o leva ainda que de


forma inconsciente a ocultar as culpas e a justificar seus
erros nas inconsequências e maldades alheias,
resguardando-se assim de denegrir a própria imagem,
exaltando-lhe o contumaz orgulho. Eis os riscos que a
ciência da Terra, ao empreender o mergulho no passado,
precisa saber evitar. Por isso, o terapeuta, qual juiz
prestimoso, deve examinar antecipadamente com cuidado,
os laudos pertinentes ao caso particular que conduz,
resguardando-se de se orientar pela ética errônea de seu
paciente, e de assumir equivocados julgamentos das tramas
engendradas por ele.

A lei de causa e efeito deve ser chamada a justificar as


dores encontradas, mostrando ao enfermo sua real
participação na semeadura dos males que sofre, levando-o
a arquivar as sábias lições da vida em favor de sua
educação espiritual.
A dinâmica revivencial é empreendida no Mundo Espiritual
mediante variadas técnicas, porém todas empregam as
energias adestradas do hipnotismo, capaz de operar a
orientação do pensamento do assistido. Podemos dizer que
se trata de verdadeira cirurgia psíquica, exigindo habilidade
e conhecimento no manejo dos tecidos emocionais de que
se veste a alma. Serve-se ainda do auxílio de aparelhos
especiais como o projetor psicocinegráfico, espécie de
espelho configurado em matéria plástica altamente sensível
que capta e dá forma às projeções da mente, permitindo-se
visualizá-las, sendo muito utilizado no plano em que
atuamos. Observando exatamente o que o enfermo
vivencia, o terapeuta tem melhores condições de
acompanhar o processo e interferir nele para a sua correta
orientação. Espíritos superiores mais habilitados na arte de
operar a mente podem dispensar aparelhos, sendo capazes
de penetrar na intimidade do enfermo, enxergando
diretamente em sua tela mental as imagens que aí se
desdobram.

O uso da psicometria é também recurso útil no processo,


facilitando a muitos espíritos o ingresso no passado,
principalmente os mais resistentes à indução hipnótica.
Como sabemos, esta técnica consiste em aproximar o
enfermo de objetos que lhe foram alvo de devoção no
passado e se impregnaram de suas energias mentais. Os
fetiches, de qualquer natureza, sempre exerceram poder
sobre a mente daqueles que lhes dedicaram atenção, por
refletirem sobre eles as próprias energias emocionais aí
retidas, e por isso, quando existem e podem ser alcançados,
são recursos de grande utilidade no tratamento regressivo.
Pessoas que foram marcantes na vida do enfermo são
elementos de grande auxílio para trazê-lo à realidade,
quando se

153

pode contar com elas. Alberto, naturalmente, tivera


parentes e amigos, mas não formara uma família na última
encarnação e não dispunha de alguém que convivera
intensamente com ele a fim de ajuda-lo nessa empreitada.
Seus pais encontravam-se já reencarnados, atravessando
agora a infância e não poderiam se convocados sem que se
dispusessem a largos preparos e complicados
procedimentos para retornar ao pretérito.

Detínhamos em mãos referencias de algumas pessoas, em


sua maioria ainda encarnadas, e poderíamos recorrer a elas,
caso fosse necessário.

Convém recordar que a terapia segue os mesmos princípios


da revivência panorâmica da desencarnação. Como vimos,
esse processo se passa de modo automático, logo após a
morte física e refaz todos os momentos da vida do indivíduo
na ordem cronológica crescente dos fatos. Menos
frequentemente, esse regresso mnemônico pode realizar-se
na ordem inversa das ocorrências, e ainda mais raramente,
em saltos aleatórios pelas lembranças da vida. Nenhum
incidente é perdido. É a síntese da vida que se transfere
para a memória profunda, em forma de impulsos que irão
influenciar as futuras experiências do espírito. Nos óbitos
súbitos, quando o indivíduo não se dá conta de que faleceu
e continua a agir como se ainda estivesse presente na
carne, fenômeno que na verdade é um desdobramento sem
possibilidade de retorno, a revisão panorâmica não ocorre
de imediato, sendo adiada até o instante em que o
desencarnado se retrai no esgotamento de suas forças, e
mergulha no sono reparador. Em raras ocasiões pode
ocorrer em indivíduos que experimentam momentos de
quase-morte, condição já reconhecida pelos pesquisadores
da Terra. Muitos ainda relatam não havê-la presenciado,
mas nesses casos se dá o mesmo que se verifica com os
sonhos, que muitas vezes não deixam recordação clara de
sua ocorrência.

Contudo, nos casos patológicos em franca depleção das


forças psíquicas, a técnica recomenda evitar-se em uma
primeira etapa, a rememoração das experiências mais
pungentes, chamando à tona somente as lembranças mais
felizes, por isso a exata sequencia cronológica nem sempre
é a mais indicada. As forças psíquicas, ainda impregnadas
dos impulsos autodestrutivos da psicólise, podem
aprofundar suas ações deletérias, motivadas por novas
dores emersas do passado, daí a imperiosa necessidade de
se tornar a recordação o mais prazerosa possível,
preparando o enfermo para vivenciar posteriormente as
plangentes realidades que matizam o seu espírito.

154

Ao contrário da recapitulação espontânea, a induzida não


segue a mesma rapidez, pois não está automatizada de
forma natural. À medida que o amnésico mergulha nos
escaninhos do inconsciente e revive suas lembranças mais
marcantes, as vias de acesso à memória profunda vão se
refazendo restaurando-se a automática e constante
alimentação da memória somática.

Quando oportuno, se o paciente se mostra em condições de


enfrentar a própria penúria espiritual aproveita-se a sua
lenta sequencia para estimular a adequada vivencia
emocional dos fatos trazidos à superfície, tecendo-se uma
elaboração racional e interpretativa dos mesmos, a fim de
que sejam devidamente solucionados e acomodados nas
camadas profundas da alma, inibindo-se-lhes o potencial
enfermiço.

Numa primeira fase, a revivência é induzida hipnoticamente


até que o amnésico restabeleça o livre acesso às suas
lembranças, quando então se passa à análise consciente de
suas recordações, concatenando-as em sequencia de
causas e efeitos, a fim de que as lições da vida sejam
interpretadas em benefício de seu crescimento espiritual.

Como um verdadeiro procedimento cirúrgico, a intervenção


exige também o adequado preparo do enfermo, para que
seja proveitoso e não redunde em males ainda maiores. A
musicoterapia, para isso, é o recurso que utilizamos não
somente neste preparo, mas para o seu sustento em todo o
processo. Ainda insciente no mundo dos encarnados, tal
recurso é um dos mais importantes procedimentos de apoio
terapêutico dentre aqueles empreendidos em nosso plano,
para os doentes da mente, especialmente os
desmemoriados. A música é capaz de suscitar a
reconstrução de vias neuronais perdidas e auxiliar na
dilatação dos limites da mente humana. Basta observarmos
os sentimentos que uma melodia antiga nos suscita,
trazendo à tona o mesmo panorama emocional vivenciado
em sua época, e nos daremos conta de sua fantástica
capacidade de penetração em nosso mundo íntimo. Pelas
propriedades da ressonância, as ondas sonoras podem
interferir no ritmo das ondas mentais, impondo eurritmia ou
disritmia, segundo sua própria natureza. Assim é que desde
épocas remotas os primitivos as usavam como estímulo à
luta, imprimindo-lhes o frenético ritmo cardíaco, excitante
das paixões. De igual modo podem impor acalmia se a
sonância de seus acordes reverberam paz e quietude,
induzindo a mente desalinhada a ressonar na normalidade,
quando perfeitamente orientada para isso.

155

Registros de sons que fizeram parte da vida dos pacientes,


do mesmo modo que as músicas, são cuidadosamente
cuidados e usados como estímulos eficazes para direcionar
o mergulho no pretérito. Sem essa orientação, comumente
estes enfermos se deixam atrair fortemente para os
momentos mais traumáticos de seu passado, pois os
impulsos psicolíticos ainda lhes dominam o cenário íntimo.
Todos estes recursos e cuidados são necessários nesses
casos onde o acesso aos registros mnemônicos está
obstaculizado pela depleção das forças mentais, movida
pela Psicólise. Recordemos que estamos diante de casos
patológicos, necessitados destes estímulos, pois em
situações de normalidade, o desencarnado mantém
naturalmente, a memória plena de sua última experiência
na carne, bastando ainda uma pequena indução hipnótica
para que a recordação de outras vidas venha à tona, o que
pode mesmo ocorrer de forma espontânea nos espíritos
equilibrados, em nosso plano.

Alberto terminara a etapa de alijamento dos eflúvios


negativos de sua unidade psicossomática, deixando a
terapia de imersão que cumprira o seu papel, e o
encaminhamos para o tratamento musicoterápico. Os
campos da música, onde se processa a agradável terapia, a
exemplo de outras colônias do Plano Espiritual, são locais
extremamente aprazíveis, compostos de bucólicos jardins,
onde se executam as audições musicais, muitas vezes ao
vivo. Profissionais de nosso plano especializados no
procedimento, indicam para cada caso as melodias mais
convenientes, depois de pormenorizado trabalho de
identificação das harmonias necessárias ao equilíbrio
mental. Aparelhos delicados tanto emitem as composições
diretamente ao enfermo, como identificam o teor de suas
desarmonias íntimas e suas necessidades.

O progresso de nosso companheiro era visível, pois o


víamos a cada dia mais refeito. Sua face ensandecida dava
lugar a expressão mais serena, irradiando confiança onde
antes se via o desespero. A irmã Eurídice, quem o conduzia
nos campos da música, informava-nos que identificara
algumas melodias do passado, registradas em seus
escaninhos mnemônicos, e as utilizava para suavizar-lhe a
angústia íntima. Aproveitaríamos esses mesmos registros
sonoros para conduzir a recapitulação dirigida.

Deliciando-se com os procedimentos suaves e seguros do


tratamento, Alberto encontrara conforto ouvindo peças de
Mozart, Charles Gounod e Offenbach, identificadas como
aquelas de que mantinha recordações melódicas precisas e
às quais mais se afeiçoara quando encarnado.

156

Finalmente chegara o instante de iniciarmos o mergulho no


passado, enquanto prosseguia o tratamento no campo da
música. Na companhia de Adelaide, instalamos Alberto em
confortável cama, a fim de que fosse induzido ao sono
hipnótico.

Com a ajuda do refletor psicocinegráfico, minha estudante


poderia com facilidade acompanhar o desenrolar das visões
projetadas de sua mente, pois não seria possível sustentar-
lhe o acesso direto aos panoramas mentais do nosso
enfermo durante o processo. Eurídice preparou-nos uma
coletânea de sons registrados em sua meninice e que se
faziam acompanhar de emoções prazerosas, a fim de
facilitar-lhe o acesso a essas recordações, tornando sua
revivência o mais real possível e orientando o nosso
trabalho segundo uma sequencia lógica, a fim de não nos
perdermos nos labirintos de suas reminiscências.

Convocando-o por força hipnótica a retroceder no tempo,


colocamos o aparelho de projeção sonora para reproduzir os
primeiros sons que nos eram recomendados, começando
pelas mais ternas lembranças de sua infância.

A primeira sequencia de sons, a princípio mal identificada


por nós, logo se fazia compreensível, à medida que a visão
de Alberto se esboçava no imenso espelho do aparelho, em
perfeita consonância com os rudes acordes. Víamos
pequenas mãos de um garoto de quatro a cinco anos
ansiosamente tentando alçar-se no beiral de uma janela, ao
ouvir a lamuriante melodia que um carro de boi cantava
melancolicamente ao longe, anunciando sua chegada.
Corria por largo terreiro tomado de entusiasmo, à espera do
veículo que já se adentrava pela porteira. Um senhor
moreno o tomava então pelos braços e o colocava sobre a
carroça, repleta de grãos de café recém colhidos. Enquanto
os obedientes animais continuavam a puxar a pesada carga,
fazendo gemer suas rodas, ele se embriagava, chafurdando-
se nos prazeres proporcionados pela sua mágica piscina
improvisada. No pátio de descarga, chegava à apoteose de
seu deleite, quando ao abrir a portinhola, ele escorregava
junto com a avalanche de grãos, caindo imerso em um
oceano vermelho.

Seu sorriso ingênuo nos encantava, despertando-nos as


emoções que experimentava.

-- Conte-nos Alberto, o que se passa? – interroguei


suscitando-o a vivenciar as alegrias do momento.

O Sr. Urbano é um amigo. Sempre fico esperando que ele


chegue com seu carro de boi carregado de café. É uma
delícia escorregar junto com as sementes maduras, quando
a portinhola da carroça se abre. Minhas irmãs correm para
contar para minha mãe, que às vezes parece não gostar
disso, mas meu pai diz que não tem

157
importância. Passo horas aqui, nadando nesta lagoa de
grãos, lutando com dragões...imaginários, é claro! Veja
como é gostoso escalar as dunas, depois deslizar por elas à
maneira de um esquiador. Fui eu mesmo que aprendi a
brincar nestas montanhas de café. Às vezes, minhas irmãs
Gabriela e Sofia compartilham comigo essa brincadeira.

-- Onde você está, Alberto?

-- Estou na fazenda de meu avô, em Casal, no município de


Valença. Nós moramos aqui. Sinto o cheiro gostoso dos
grãos de café maduro e nada neste mundo é melhor do que
rolar neles.

-- E as pessoas com quem você está, Alberto? Fale-nos


delas.

Conte-nos sobre sua família.

-- Meu pai chama-se Henrique e minha mãe Francisca.


Tenho uma grande família. Meu irmão Henrique é o mais
velho, Maria Rosalina também já é grande. Virgínia, Luiz e
Gabriela também são maiores, já a Sofia tem quase a minha
idade e é minha companheira de brincadeiras. Francisca é a
menor. Gosto mesmo da Virgínia, ela me defende quando os
maiores querem me bater...
Denotando certo cansaço, atirava-se Alberto em sono
profundo.

Sua primeira incursão nos porões do passado fora bem


sucedida. A lembrança da família é o alicerce sobre o qual a
personalidade se constrói na vida, e talvez ele passasse
doravante, a se recordar deles espontaneamente.

-- Realmente nosso amigo passou a sua infância numa


fazenda de café – disse a Adelaide, consultando os registros
que trazia. – Seu pai cuidava das terras do sogro, onde
plantava e beneficiava café.

Descendia de franceses que vieram para o Brasil em busca


de diamantes e se formara em engenharia na terra dos pais.
Aqui se dedicou à construção das primeiras estradas de
ferro, até que passou a cultivar o café, com o qual fez
grande fortuna. Seus filhos, educados na primorosa cultura
europeia do fim do século dezenove, da qual ele nunca se
desligou, sentiam-se franceses radicados nas terras
americanas. O café fez parte realmente da vida de Alberto,
responsável por toda a riqueza da família e por isso está
marcado em suas reminiscências. Já sua mãe era filha de
um comendador português que vivia em Ouro Preto, onde
Henrique fora trabalhar e se conheceram. Dentre os irmãos,
realmente com Virgínia detinha ele maior afinidade. Alma
de sólida formação cultural, ela lhe ensinou as primeiras
letras na infância e seguia seus estudos com interesse,
despertando-lhe o gosto pelas ciências e pela leitura.
Depois viemos a saber que realmente as preces desta irmã
foram decisivas para o sustento vibracional de nosso amigo,
logo após o fatídico desfecho de sua vida.

Após breve intervalo, recomeçamos o processo com novos


sons que traziam agora um longo aulido de um lobo.

-- O uivo comprido do lobo guará! Que medo! Ele vem junto


com o frio da madrugada e neste momento quero me
aconchegar no colo

158

de minha mãe. É o melhor lugar do mundo para se estar


nestas horas. É

gostoso e me sinto seguro.

-- Onde você está?

-- Em Cabangu, na parada de João Aires...nasci aqui na


encosta da Mantiqueira...Nossa casa branca de janelas
azuis...meu pai está construindo uma estrada de ferro...A
locomotiva...tenho medo...parece um monstro
pavoroso...tenho vontade de esconder quando ela chega
cuspindo fumaça...
Uma algazarra de ruídos de ferragens e polias o
interrompia, situando-o em seguida em outro lugar. Víamos
um imenso galpão onde máquinas azafamadas fremiam
impacientes.

-- A usina de beneficiamento de café da fazenda de meu


pai, em Arindeúva, meu lugar preferido de brincadeiras.
Passo horas aqui brincando com essas máquinas. Admiro os
seus movimentos e gosto de observar meu pai desmontá-
las quando estragam. Até já aprendi a consertar algumas
delas. É divertido seguir a viagem dos grãos, correndo pelas
esteiras, espremidos pelo despolpador, voando nos
secadores e sendo sacudidos pelas peneiras. Veja como
sobem apavorados pelos tubos furados do separador! Cada
grão caindo em seu lugar certo, a moca toda reunida em um
mesmo reservatório. Os operários ensacam os grãos
separados e limpos, os coitados vivem aflitos, pois a cada
saco que fecham, lá vem outro apressado já cheio.

Depois todos ficam quietos nas grandes pilhas, onde somos


proibidos de subir, pois uma vez o Luiz ficou soterrado sob
um monte deles que fez ceder sobre si. Gosto de ver como
tudo funciona perfeitamente, tudo bem encaixado e em
seus devidos lugares. Só as peneiras é que são antipáticas,
vivem se recusando ao trabalho. Elas balançam sem jeito,
num tremelique desengonçado. Aprendi muito cedo com
elas que as máquinas não gostam desse movimento de
sacolejo de vai-e-vem, ao qual não podem resistir por muito
tempo... Meu pai me falou que as máquinas são melhores
que os homens para trabalhar e um dia vão dominar o
mundo. Estamos na era das máquinas, diz ele, são
poderosas e podem fazer tudo por nós. Menos voar, não se
esquece sempre de explicar.
O lamento choroso de um longo apito de locomotiva, em
meio à sua rítmica e típica troada, cortava-lhe as
reminiscências para projetá-lo em novas vivencias.

-- É uma Balduína (Antiga locomotiva idealizada por William


Baldwin, um engenheiro americano, e que pelo seu
difundido uso tornou-se sinônimo popular de trem a vapor,
no final do século dezenove e início do século vinte.). Eu já
sei manejá-la! Meu pai nem precisa ficar ao meu lado, ele
vai com Henrique a cavalo na frente. Eu sou o maquinista!
Gosto de acionar a corda de seu apito, encompridando seu
lamento até ouvi-lo ribombar, choroso, nas montanhas lá
longe. Sei que depois minha mãe vem me chamar a
atenção, dizendo não ser preciso tanto escândalo. Mas
assim todos na fazenda sabem que sou em quem chega,
trazendo o café. Montado neste dragão que cospe fogo, eu
sou o

159

maior de todos os meninos... olham-me com admiração...

respeitam-me... ninguém na minha idade é capaz de fazer


isso.

Neste ponto notávamos o início de uma patologia do


orgulho instalando-se, mas não era ainda o momento para
ser trabalhada e deixamos que ele continuasse o seu deleite
pelo agradável
passeio

nas

estradas

do

passado.

Nossos

apontamentos indicavam que realmente seu pai fizera uma


ferrovia particular a fim de facilitar o escoamento de sua
imensa produção cafeeira, em suas extensas terras em
Ribeirão Preto.

-- Eu tinha sete anos quando meu pai me ensinou a manejar


a locomotiva – continuava a relatar o nosso amigo. – Ele não
resistiu à minha imensa curiosidade, sempre junto ao
maquinista, especulando-o. Não eram ainda as Balduínas,
eram outras menores, com grandes rodas trazeiras,
desprovidas de cabine, com uma chaminé muito alta. Ele
porém não me deixava ir sozinho. De pé, ao lado da
caldeira, segurava a manivela de aceleração, me vigiando.

Achava ruim aquilo, ele não confiar em mim, pois eu sabia


muito bem quando a caldeira perdia pressão e devia
alimentar a fornalha com novos troncos de madeira
cortados bem pequenos. Nessa época elas não levavam
café, mas apenas a lenha, que os operários retiravam das
matas. Todas as máquinas precisam de lenha para
funcionar, inclusive as que tudo fazem girar no galpão de
beneficiamento, pois funcionam graças à força do vapor e o
fogo é que faz o vapor. São como cavalos de vapor, diz meu
pai, porém muito mais fortes do que eles. Agora chegaram
essas novas locomotivas, mais modernas, mais ágeis e
muito mais fáceis de manejar. Meu pai construiu uma
estrada de ferro só para transportar o café que
produzimos... tenho muito orgulho dele, devo dizer...

Com as pequenas mãos metidas em enormes e rústicas


luvas, nós o víamos abrindo a portinhola da fornalha, onde o
fogo vivo lambia com vigor a madeira seca, fazendo-a
crepitar, enquanto o monstro de ferro gemia, reclinando nos
trilhos fiapos de grunhidos agudos.

-- Já tenho doze anos e agora meu pai me deixa conduzi-las


completamente sozinho. É gostoso ver a chaminé comprida
vomitando fumaça, suas rodas robustas puxando os vagões
carregados. Veja como gemem! Parecem reclamar do
trabalho! Que força! Seria preciso muitos cavalos para
puxar todo esse peso. Uma maravilha! Está frio, mas é uma
delícia esse calorzinho gostoso da caldeira!... Dizem que sou
muito tímido, é verdade, mas aqui esqueço minha timidez e
posso ver a satisfação nos olhos de meu pai quando sou o
maquinista. Ele confia em mim, não é como os meninos da
fazenda. Dizem até que ele me protege e gosta mais de
mim do que dos outros. Vendo-o orgulhoso de mim, fico
muito feliz também...

Após breve intervalo, seu sorriso infantil se descoloriu e ele


prosseguiu, deixando aflorar pesares e rancores de uma
alma em contida altivez:

160
-- Sei que sou baixinho e fracote... Todos me chamam de
nanico, é péssimo, mas ninguém faz o que eu faço. Os
garotos não me deixam participar de suas brincadeiras, pois
não dou conta de enfrenta-los, sei disso. Às vezes eles
cedem por imposição de meu irmão maior, mas me tratam
com indiferença como se eu nada valesse... prefiro ficar no
meu canto, lendo meus livros de Júlio Verne... ou ir brincar
sozinho com as máquinas da usina de café... são
companheiras, não menosprezam a gente...

Interrompemos neste ponto a sua digressão, pois a


dinâmica de seu pensamento evocava energias depressivas
que no momento precisavam ser evitadas. Um mecanismo
de defesa, empreendido por uma personalidade carente de
valor pessoal, já se delineava nitidamente, porém não era o
instante de deixar que os núcleos de sofrimentos
aflorassem e preferimos deter-lhe a marcha do regresso.
Induzimo-lo então ao sono reparador, sugerindo-lhe sonhar
com as delícias do passeio em sua locomotiva cuspindo
chispas de luzes, conduzindo-o por trilhos entre relvas
esplêndidas, planícies cobertas de paz e recantos enfeitados
de bucólicas paisagens. Seus lábios sorriam e sua alma se
nutria das lembranças sadias, carreando energias de
positividade, entusiasmo e alegria para a recomposição de
suas forças mentais depressivas. Despertando, irradiava
serenidade pela primeira vez, embora ainda se estacionasse
na amnésia e o olhar vagasse perdido no vazio.

-- Estamos diante de uma criança ferida – detive-me


explicando à Adelaide – primeiro convém socorrê-la com
amparo amoroso, pensando-lhe os ferimentos, para depois
lhe chamar a atenção, mostrando a lição da dor para que
não recaia nos mesmos erros. Nosso amigo traz a alma
atassalhada e necessita de socorro antes que de
corrigendas. Por isso é nossa obrigação neste processo,
obstaculiza-lo na revivência dos momentos felizes, por ora,
para que não resultem em um aprofundamento de suas
lesões. Suas forças psicodinâmicas estão em nítida fase
depletiva e podem se desgastar mais ainda, agravando-lhe
a enfermidade mental.

O passado é força operosa que ressurge sempre que as


condições lhe favoreçam a correção de seus desvios. Se o
convocarmos em instante fora de sua espontaneidade, é
preciso saber conduzi-lo para que atue com proveito e sem
prejuízos para o seu protagonista. A sabedoria das Leis da
vida nos oculta o pretérito com o objetivo precípuo de
poupar-nos o acúmulo de dores sem soluções na alma,
trazendo-o em doses adequadas e justas de modo a não nos
liquidar as possibilidades de

161

soerguimento e aprendizado. Daí a necessidade de que o


condutor da terapêutica regressiva se adestre na maestria
dessas forças mentais, Adelaide.
162
16
capítulo
AVENTURAS INUSITADAS
“Anuncia-lhes o quanto o Senhor te fez,

e como teve misericórdia de ti.”

Jesus – Marcos, 5:19

Por alguns dias o víamos um pouco mais feliz, mas ainda


não dava mostras de ter reavido suas preciosas lembranças
e não comentava nada a respeito das experiências que
revivera.

Seguimos então nossas sessões de recapitulação, a fim de


que ele recompusesse a memória perdida. Agora um outro
apito de um trem surgia ressoando distante, acompanhado
de latidos de cães, perdidos em uma imensidão de silêncios.
Um céu vazio se desenhava em sua tela mental, em meio a
nuvens estáticas.

Como uma imensa tigela, a Terra se desenrodilhava, fugindo


aos poucos embaixo, salpicada de névoas e coberta de
mantos brancos. Adivinhamos que era inverno e embora o
frio fosse intenso, o momento era de grande deleite. Ele
flutuava aos sabor dos ventos, suspenso no ar.

-- Que aventura é essa, Alberto?


-- Aqui só chegam os apitos das locomotivas e os latidos dos
cachorros. Estou fazendo com Machuron a minha primeira
ascensão em balão. É deslumbrante. Tudo é muito bonito,
limpo e calmo. Veja como os raios de sol refletidos nas
nuvens criam jatos iridescentes de fantásticas luzes! É
facílimo manejá-lo. Vendo o aeronauta conduzir-se nas
manobras acho tudo muito natural e simples. Tenho a alma
sobressaltada, é verdade, a respiração parece faltar-me em
certos momentos, mas não sinto absolutamente medo
algum. Não nos dá uma gostosa sensação de estar
suspenso no vazio? Parecemos livres no espaço. Olhe para
cima! Não vemos mais o balão! Ele agora se escondeu no
meio de densas nuvens. Opa! Não, não vamos cair, as
nuvens mais pesadas o esfriaram, depositando sobre ele
grossas camadas de neve, fazendo-o precipitar-se
abruptamente. É simples, basta atirarmos fora um pequeno
punhado de areia para recobrar o

163

equilíbrio. Essa sensação de medo junto com a ilusão de


estar solto no vácuo me provoca um arroubo de êxtase
misturado com pânico, deixando-me a alma em suspense,
num sentimento mágico que não sei como descrever. Um
misto de alegria e temor me arranca arrepios da alma e o
sangue parece fervilhar em minhas veias. É selvagem e
doce ao mesmo tempo. Estamos entregues ao sabor dos
ventos, mas podemos dominar completamente a situação,
subindo, soltando um punhado de areia, ou descendo,
liberando gás. É fascinante! Nada na Terra se compara a
esse poder de desafiar as alturas e subjugar o
imponderável. Sinto que nasci para isso...
-- Onde você está, meu arrojado amigo?

-- Estou em Paris. Moro aqui agora e já sou maior de idade.

Subir em um balão foi um sonho que acalentei por muito


tempo, desde quando li os fantásticos romances de Júlio
Verne. Um dia vi um balão cativo em São Paulo e nunca
mais desisti da ideia de subir em um deles. Agora o Sr.
Lachambre e seu sobrinho Machuron estão proporcionando-
me esta aventura, da qual nunca mais me esquecerei. E
olhe que foi uma sorte encontra-los!

Vou pagar somente 250 francos, enquanto outros queriam


cobrar-me uma fortuna por isso.

O badalar agudo e insistente de um sino de igreja repicava


melancolicamente ao longe, reconduzindo-o à reminiscência
nítida do momento:

-- É meio dia, hora de nosso almoço. – continuou,


estampando sorriso de imensa satisfação nos lábios
estreitos, como a se preparar para o banquete. – O que
temos aqui? Uma garrafa de champanhe, licores, frango e
vitela, ovos cozidos, algumas frutas... Uma mesa posta nas
nuvens! Comer em meio a vapores em ebulição e jatos de
gelos, a três mil metros de altura é um privilégio de poucos!
Nem mesmo os reis da Terra foram agraciados com tal
distinção! Pobres e efêmeros humanos, presos à superfície
do globo, não sabem como aqui somos grandes!...
Sinto-me na verdade, um pequeno deus... se devo confessar
meus sentimentos...

Novamente a soberba aflorava em seu íntimo, mostrando a


imperiosa e doentia necessidade de sobrelevar-se, mas
precisávamos dar-lhe o sabor dos prazeres do passado a fim
de que reconstituísse o seu panorama íntimo desfeito. Mais
tarde seria necessário trazê-lo à real medida destes núcleos
enfermiços de altivez, onde certamente se situava a
etiologia de sua penúria espiritual. Adelaide consentia com
os olhos, compreendendo a

164

necessidade de enaltecer-lhe o desvalimento e continuamos


ouvindo seus surpreendentes relatos de ousadias:

-- Meu pai mandou-me aqui para estudar e estou morando


com meus primos – prosseguiu com vivo entusiasmo. – Sou
rico, ele colocou em minhas mãos uma grande fortuna... Os
automóveis de Paris me fascinam, na primeira vez que aqui
estive com meu pai, comprei um. Tivemos que ir à usina de
Valentigney para adquiri-lo: um Peugeot de quatro grandes
rodas como uma carruagem, com três cavalos de força.
Aonde ia chamava a atenção dos curiosos que me cercavam
para ver essa maravilha moderna. Não foi difícil aprender a
manejá-lo, mas este ficou no Brasil. Agora comprei outro
menor, um triciclo, mas muito ágil, de três cavalos e meio
de força. Com ele corro feito maluco pelas ruas dessa
cidade de meus encantos. Um sucesso! Não preciso
trabalhar para viver e posso comprar o que quiser. Mas é
dos balões que eu gosto. Dirigir é fácil para quem tem
dinheiro, mas a aerostação exige uma grande coragem,
como dizem, é preciso ser verdadeiramente um homem
para se manter nestas máquinas flutuantes. Na barquilha
(Nosso amigo utilizava o termo “nacelle”, como na época
era costume, porém usaremos a sua denominação mais
conhecida na atualidade – nota do autor espiritual. ) de um
balão me transformo de imediato, de um cidadão vulgar em
um explorador da ciência... Sou Phileas Fogg, dando a volta
ao mundo! Sou Robur (Phileas Fogg e Robur são
personagens de Júlio Verne.), o conquistador!... Posso
pesquisar em terras desconhecidas, visitar as regiões
polares, atravessar mares! Posso escolher a altitude e com
ela aceitar ou não uma corrente de ar que me leva a uma
direção. Mas nunca se sabe onde se vai descer, que ventos
vão leva-lo e para onde, em que país se vai pousar. Posso
frequentar o céu acima das nuvens, onde nenhum mortal
jamais esteve, dar saltos gigantes por sobre montes e
bosques e depois pular da cesta como um deus saído de
uma nave de outro mundo... Não, nada se compara a isso...

-- Volte ao seu almoço. Termine o passeio no meio das


nuvens que tanto o encanta. Conte-nos mais.

-- Já almoçamos e estamos voando há mais de duas horas. É

hora de pousar, pois nosso lastro já está acabando.


Machuron confiou-me o controle da válvula... estamos
descendo... Opa! Um vento mais forte, segure-se! Não foi
nada, somente um pequeno solavanco, a corda-guia
(Chamado na época de “guide rope” – nota do autor
espiritual) agarrou-se a um grande carvalho... mais um
punhado de areia e nos soltamos... Que salto enorme! Olhe!
Uma floresta!... É

Fontainebleau, veja suas grandes árvores! Machuron está


dizendo que o outro lado do bosque, protegido do vento, é
um ótimo lugar

165

para pousar... Vamos lá! A válvula já está totalmente


aberta... A âncora... Pronto! Sãos e salvos! Veja como o
enorme balão se revolve no solo, parece um grande pássaro
abatido, revoltado por lhe determos o voo... Puxa, sinto-me
como se chegasse de outro planeta!... Não se pode imaginar
o que é passear nas nuvens! Não quero fazer outra coisa,
nasci para voar! Um esporte muito caro, é verdade, mas
que importa se tenho dinheiro? Meu pai deixou-me muito
mais do que necessito para viver, não preciso trabalhar para
sustentar-me, então por que não voar?... Sabe, ocorreu-me
uma ideia... Machuron faz, para o seu tio, ascensões em
balão para espetáculos públicos...vou oferecer-me para
fazer este trabalho em seu lugar sem nada pedir em troca...
simplesmente voar, e de graça! Minha tia já ficou sabendo
do fato e foi logo escrever à minha mãe, acusando-me de
relapso por abandonar os estudos para me tornar
exibicionista circense. Claro que isso a encheu de desgosto,
agravando-lhe o estado da alma, que já não anda muito
bem depois da morte de meu pai... Meus primos agora
deram para me criticar e acusam-me de extravagante.

Que me importa se é isso que quero?... Vou mudar-me, vou


tratar de viver sozinho, fazendo o que gosto... Já posso
dominar completamente um balão e sou capaz de
peregrinar sozinho pelas estradas de vento... já subi
incontáveis vezes em muitos lugares, mais de trinta
ascensões... Um dia, em Péronne...

Repentinamente sua tela mental se enegreceu e o


desespero tomou conta de sua alma. E ele continuou, antes
que pudéssemos intervir:

-- Ouço trovões... relâmpagos cortam os céus ao meu lado...

meu Deus, a escuridão me envolve, estou perdido no meio


de uma grande tempestade... sinto a morte...

Seu peito arfava e sua mente atirava-me num torvelinho de


imagens terrificantes. Detivemos sem demora a sua entrada
na vivencia do drama que vertia de seu pretérito de loucas
aventuras, sugerindo-lhe que dormisse e não se lembrasse
disso agora. Com a destra sobre seus olhos, impusemos-lhe
por força magnética, pesado sono restaurador, sugerindo-
lhe novos sonhos com os momentos felizes. E o vimos
flutuando no caminho de brisa faceira, num minúsculo e
transparente balão, feito de bolha de sabão, rolando por
sobre extenso bosque mosqueado de matizes outonais.
Ainda em estado de sono hipnótico, pedimos que nos
descrevesse a cena evocada no sonho:

-- Este é o meu balão preferido, o menor de todos que já se


construiu. O único que tem um nome, chama-se “Le Brésil”.
Vejam como tudo nele é pequeno. Andei notando como os
balões são
166

feitos de materiais pesados. “É por segurança”, me dizem,


“não se pode arriscar nada em um balão”, justificam, mas
isso apresenta uma grande dificuldade no transporte ao fim
da viagem, pois o conjunto todo pesa muito mais de
duzentos quilos. Reconheço que não sou forte o bastante
para ficar içando tanto peso. É um absurdo! Por isso
empenhei-me na ideia de diminuir em tudo um pouco,
tornando o balonismo mais prático e mais fácil de ser
manejado, especialmente para os mais fracos como eu, não
posso negar. O Sr. Lachambre e seu sobrinho me criticaram
e não acreditavam em meus cálculos, diziam que o balão ia
adernar, sem estabilidade. E consentiram em fazê-lo para
mim somente porque estavam certos de que não subiria. E
vejam como se eleva e como seu voo é estável! E tem
somente pouco mais de cem metros cúbicos de volume,
cerca de um quinto da cubagem de um balão ordinário. É de
seda japonesa, muito mais leve do que a chinesa, que
normalmente se usa. Troquei a pesada âncora por um arpão
de três quilos e fiz a rede de cordas muito finas, porém de
igual resistência. Encomendei uma barquilha muito menor e
mais leve. E para lhe dar maior estabilidade, aumentei os
cabos de sustentação e a corda-guia. Pronto! E aí estou no
menor dos balões, tirando também vantagem de meu
pequeno peso. E não está adernando ou girando como
previram! Ainda assim dizem que os fortes ventos o levarão
com facilidade. Pois para que preciso enfrentar os ventos
fortes? Basta subir em dias calmos. E

ainda posso usar somente três ou cinco quilos de lastro.


Fantástico, não? Andam falando que posso até transporta-lo
em uma mala, o que naturalmente não é verdade, mas no
final da viagem tenho todas as comodidades a meu favor. Já
fiz muitas e felizes ascensões com ele sem nenhum
acidente. Só não posso levar amigos, mas voar é coisa que
se faz sozinho mesmo...

Adelaide, endereçando-me olhares de admiração,


interrogava-se da realidade de tudo aquilo. Aproveitando o
intervalo em que ele se entregou a novo sono profundo,
disselhe:

-- Realmente este foi seu primeiro e grande feito na


navegação aérea que se iniciava. Insistindo na substituição
dos materiais, começava sua missão entre os homens,
Adelaide.

Continuemos mais um pouco, aproveitando o seu


entusiasmo e a sua entrega confiante, à nossa indução
hipnótica.

Voltando ao comando de seu transe vivencial, pedimos-lhe


que nos contasse mais sobre suas intenções:

-- Estou com uma secreta vontade que me domina o


pensamento noite e dia... Sei que parece loucura, mas
quero construir um dirigível! Ninguém fez mais dirigíveis
nesta cidade

167
desde os fracassos de Giffard. Não deu certo porque ele
usou uma máquina a vapor, pesada e perigosa, para
conduzir seu dirigível. Se ele tivesse um motor menos, teria
conseguido... Estou pensando, o motor de meu triciclo é
leve e muito eficaz, um espetáculo da engenharia moderna.
Três cavalos e meio de força, mas vibra muito, iria
despedaçar toda a estrutura de um balão, me dizem. Falam
que é loucura colocar um motor a explosão sob um balão de
hidrogênio altamente inflamável... mas penso em colocar as
válvulas de gás bem atrás do balão, não deve haver perigo.
O Sr. Lachambre me disse que se eu quero suicidar-me, é
melhor sentar-me em um barril de pólvora e atear fogo, pois
é menos dispendioso. Tenho que convencê-lo a tecer para
mim o balão fusiforme, para que ele corte o ar... Vai ser um
balão fechado... insiste ele que não poderei mantê-lo em
forma pela contínua dilatação e contração do gás, nas
subidas e descidas do aparelho, mas não vou voar alto,
somente uns cem metros e não mais... não haverá
problemas...

Após pequeno intervalo, voltando a caminhar nas


lembranças, continuou:

-- Tive a ideia de acoplar dois cilindros do motor em


oposição, um sobre o outro, a fim de que seus solavancos se
anulem, alimentados por um único carburador e uma só
biela.

Informaram-me que na rua do Coliseu havia um exímio


mecânico que podia fazer isso para mim... e ele conseguiu.
Colocamos o motor de volta no triciclo e funciona que é
uma maravilha! Outro dia conduzi François até o bosque de
Boulogne e içamos o triciclo em um forte galho de uma
grande árvore. Funcionei a máquina no ar e montei nela.
Não senti nenhuma trepidação, nem fui atirado longe... Com
ele segui a distancia uma corrida de carros e vi que poderia
ganhar facilmente, mas não quis forçar o motor, pois tenho
melhor destino para ele.

Sei que é arriscado, mas a ideia de coloca-lo para


impulsionar um balão com uma hélice não me sai da
cabeça.

Poderei morrer, é verdade, mas me sinto com coragem para


isso.

Falam de um tal retorno de chamas que pode explodir o


reservatório de combustível, mas este perigo existe mesmo
em terra, com qualquer automóvel e ninguém anda por aí
com este temor... Vou fazer funcionar o motor na mais
completa escuridão para examinar até onde ele pode
projetar fagulhas para cima, a fim de verificar a que
distancia segura deve ficar do balão...

Depois quero ainda suspender o motor em um balão


convencional, fixado em cordas, acioná-lo e sair de perto.
Tenho

168

certeza de que nada vai acontecer... vou conseguir... Se


Giffard e Tissandier tivessem um motor desse teriam feito o
mesmo...
Depois de breve intervalo, ele prosseguiu em vivo
entusiasmo:

-- Suprimi o silencioso e dobrei o cano de descarga para


baixo... Vejam! As fagulhas ficaram grandes e se dirigem
para o solo, nenhuma sobe... Vai dar certo!

Um pouco cansado, nosso amigo adormecia. Era hora de


pararmos. Efetuamos operações magnéticas em núcleos
nervosos de seu cérebro, bloqueando-lhe por ora as
atividades oníricas, como o momento exigia, a fim de não
forçar mais seu aparelho mental, permitindo-lhe a
recomposição das forças psíquicas.

Adelaide

admirava-se,

denotando

arroubo

de

imprudência de nosso amigo, revelando já uma


predisposição suicida, mostrando não se importar muito
com o perigo da aventura.
-- Ele dá mostras de que não parou por aqui, Adamastor.

Embora arriscada, a empreitada o seduzia. Ouvi mesmo


dizer destas aventuras na Terra. Terá ele de fato voado num
dirigível movido por um motor?

-- Realmente nosso amigo realizou esse surpreendente feito,


Adelaide. Ele subiu mesmo em um balão dirigível, conduzido
por um motor a explosão. Foi o primeiro a utilizar um
propulsor desse tipo na navegação aérea, a princípio com
muitos insucessos e dificuldades, colocando em risco sua
vida, mas ele conseguiu como veremos, e em muitas
ocasiões. Movido pela ânsia do êxito e pelos aplausos dos
parisienses, ele se atirou a essa louca aventura, como pude
ver nos relatos que trago em mãos. Temos sob nossos olhos
um pequeno homem, porém um intrépido personagem,
alguém que se embrenhou nessa exótica e arrojada tarefa
na Terra. A humanidade exigia de fato que se conquistasse a
aeronavegação e sabemos que muitos foram enviados à
crosta com esta missão. Eis um deles, Adelaide. Estamos
agora envolvidos nessa história. Ele participou efetivamente
do início da conquista aérea e se dispôs a colocar em
prática suas frágeis e arrojadas invenções de voar. Ficou,
por isso, famoso no mundo dos homens, venerado como um
herói em sua terra natal, embora no Plano Espiritual não
seja reconhecido como um espírito de destacada relevância.
Este, Adelaide, é Alberto Santos Dumont.

169
17
capítulo
DIAS GLORIOSOS
“Não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados
pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua
recompensa.”

Jesus – Mateus, 6:2

Alberto paulatinamente tornava-se mais amigo, mais


próximo. Embora bastante sóbrio, estampava na face
sempre amargurada feições mais ternas, e seu olhar,
deixando de fixar-se no vazio, já parecia interagir com o
ambiente, compartilhando um pouco da nova realidade que
o envolvia. As poucas sessões de dinâmica revivencial já
haviam surtido efeito, embora não mantivesse ainda na
memória somática a real lembrança de seu passado e a
própria identidade permanecesse oculta a si mesmo.

Como verificávamos, trazia a alma maculada por grandes


dores, adornadas, não obstante, por soberbas glórias, e uma
grande vaidade deixava-se exalar em meio à dissimulada
modéstia.

Pedia com simplicidade e muito pouco, porém, como um


demente, esperava sempre que o atendêssemos, realizando
por ele o que a si mesmo competia fazer.
-- Inconscientemente ele já se dá conta de que foi alguém
de importância entre os homens – ponderei com Adelaide. –

Convém tolerarmos sua pequena arrogância, exercitando-


nos na humildade de servir com desinteresse,
considerando-o um enfermo. O orgulho é chaga crônica de
difícil remissão em nossa alma e aqueles que retornaram da
Terra engrandecidos por títulos eméritos, muitas vezes
imerecidos, não se acomodaram-na realidade com
facilidade. Comumente, em nosso trabalho assistencial,
deparamo-nos comestes espíritos enlouquecidos e
jactanciosos que, mesmo completamente desvalidos e
carentes de todos os cuidados, continuam a exigir
serventias especiais de seus socorristas, ordenando que
seus caprichos sejam atendidos,

170

movidos pelas antigas e doentias disposições de


arrogâncias.

Aprendemos a atende-los, dispostos ao comedimento da


própria presunção, até onde não nos fira o bom senso,
aguardando que abandonem o insano pendor, enxergando a
penúria espiritual em que se encontram.

Alberto mostrava grande habilidade manual e realizava com


destreza pequenas tarefas de manipulação que eu lhe
solicitava.
Muito metódico, sempre o via organizando as coisas ao seu
redor, obstinadamente, manifestando certo desagrado
quando as encontrava fora de seu lugar. Folheava livros,
detendo-se longamente em gravuras do início do século XX.
Ainda não podia manter um diálogo por muito tempo, mas
voltou a querer saber onde se encontrava. E, para surpresa
nossa, por vezes chamava novamente pelos sobrinhos Jorge
e Henrique.

Costumava presenciá-lo despertando á noite, como uma


criança assustada, quando me chamava para ajuda-lo e, por
insistência minha, relatava seus sonhos, sempre povoados
de balões, alguns pavorosos em meio a tempestades e
outros muito curiosos onde se encontrava em meio a
multidões, em estado de completa nudez. Sonhos que, sem
dúvida, refletiam cenas de seu pretérito e do estado de seus
dramas íntimos, que oportunamente analisaria com
Adelaide.

Outro fato curioso que me despertou a atenção foi uma


estranha e insistente solicitação, a quantos dele se
aproximassem, para que lhe arrumassem penas de gansos,
as maiores possíveis, pois intencionava confeccionar duas
grandes asas, alegando que voaria. Insistia com veemência
no inusitado pedido, por mais que o dissimulássemos,
tentando fazê-lo esquecer a exótica tarefa.

Dizia, com arrebatado entusiasmo, que seria o mais


sensacional de todos os inventos do homem e requisitava a
presença de Chapet, seu exímio mecânico de sua oficina em
Saint-Cyr, para que o ajudasse na composição do motor.
Esquecendo às vezes, a insólita rogativa, perguntava ainda
pelos livros para encadernar e se apreciáramos os últimos
que havia feito.

Constatava de fato, que em seus últimos anos, quando


certamente já dava ares de leve demência, dedicou-se a
estudar as asas dos pássaros e despendeu largo tempo
confeccionando uma complicada asa, com a qual desejava
empreender o voo individual. Certamente tal desvario era
motivado por alguma grande frustração que ainda não
compreendíamos. E confirmava também que, quando
internado no sanatório de Valmont, em uma de suas crises
de neurastenia, executara por muito tempo a tarefa de
encadernação de livros, a qual realizava com esmero.

171

Sinal de que sua memória dava ares de aflorar-se no


consciente atual, alegrando-nos pelos resultados já
alcançados. No entanto, revivia ainda os momentos finais
de sua vida passada, quando não se achava em perfeito
equilíbrio mental e a possibilidade de estacionar-se em um
processo psicótico continuava viável. Era hora de
retomarmos às recapitulações dirigidas, na tentativa de
ajuda-lo a recobrar a memória.

Continuamos assim nossa incursão em seu pretérito,


pesquisando ainda os seus momentos de glórias, nutrindo-o
com as lembranças dos sucessos a fim de modificar-lhe a
disposição francamente destrutiva das forças mentais. Mais
uma vez, posicionado para a sessão terapêutica junto com
Adelaide, acionei novos ruídos na sequencia que Eurídice
nos sugerira, a fim de situá-lo em outros instantes
prazerosos de sua vida. Ouvíamos aplausos e ovações de
uma pequena multidão em meio ao ruído de um motor
rugitando surdo e contínuo.

Em sua tela mental desenhou-se imediatamente uma


bizarra máquina voadora, onde o víamos montado em um
pequeno cesto de vime, rompendo o espaço, contornando
uma esguia estrutura de ferro, que de imediato
identificamos como a Torre Eiffel. Um enorme balão
fusiforme sustinha por finos fios de aço uma quilha
triangular de madeira, contendo um motor a explosão que
fazia girar uma delicada hélice de seda, esticada em uma
armação metálica. Em meios a cabos e alavancas, nosso
amigo manobrava com volúpia seu estranho e frágil
aparelho. Podíamos ouvir o rangido da estrutura de madeira
e alumínio vergando-se sob o vento e sentíamos a sua
ânsia, somada ao delírio de prazer , ao se ver ovacionado
pelo povo reunido ao pé e no alto da torre.

Agitados chapéus, lenços alvos e sombrinhas de rendas


frenéticas lhe acenavam, nutrindo-o do mais vivo
entusiasmo. Uma apoteótica imagem que, sem dúvida, ficou
impregnada em sua tela mnemônica para sempre. Abaixo
notávamos a tira prateada do Sena, que rapidamente ficava
para trás, refletindo o sol do início da tarde. O vento
soprava-lhe forte na face, jogando seu aparelho para
estibordo, forçando-o a dobrar o leme a fim de completar a
volta da torre. Agora o rio novamente aparecia e nosso
amigo, transparecendo alívio, mirava em frente sem olhar
para baixo.
-- Esta é a parte mais arriscada da viagem, devo manter
uma distancia segura da torre. Meu medo era de que o
vento me atirasse contra ela, mas felizmente ele sopra do
oeste, afastando-me dela. Agora vou enfrenta-lo de proa,
mas vejo que gastei menos de dez minutos no trajeto de
vinda – disse olhando para o

172

pulso, onde prendera o seu relógio de algibeira. – Devo


voltar ao parque de aerostação de Saint-Cloud, antes de
completar os trinta minutos...

-- Que se passa, meu amigo? Que você está fazendo?

-- Desta vez vou ganhar o prêmio Deustch! – proferiu


apurado, sem interesse em nos responder, ocupado que se
achava em atender às operações de seu aparelho voador.

-- Que dia é hoje?

-- 19 de outubro de 1901, ora! Penso que não viverei dia


mais feliz em minha vida! Sinto a falta de meu pai, gostaria
que ele estivesse aqui para ver esta minha vitória e como
me tornei um homem...
O repicar do motor começava a falhar, com engasgos secos,
ameaçando deter-se.

-- Meu Deus! Só faltava essa, o motor não responde bem a


aceleração, tenho que verificar o carburador...

O intrépido homenzinho deixava o seu cesto, caminhando


pela frágil grade até o motor, desequilibrando seu delicado
aparelho. Ele mal dirigia o olhar para baixo, onde pessoas se
assustavam com a posição inclinada de sua máquina, mas a
situação não tardou a retornar ao normal. Perguntava-me
naquele momento, que forças poderosas operavam na alma
daquele destemido indivíduo, conduzindo-o a tão arriscada
aventura, algo tão inabitual e intrigante, mas era preciso
aguardar, detendo momentaneamente minha curiosidade.

-- Meu caprichoso motor resolveu responder à aceleração na


última hora e acabei passando do ponto de chegada.
Precisei fazer nova volta para finalizar a prova... Será que
ganhei? Será possível?

-- Deustch de La Meurthe, um magnata do petróleo do início


do século, com a intenção de incentivar o uso do novo
combustível na navegação aérea, instituiu um prêmio para
o primeiro aeronauta que, partindo de Saint-Cloud,
contornasse a Torre Eiffel e voltasse ao ponto de partida em
apenas meia hora –
expliquei discretamente à Adelaide. – Alberto era o único
capaz de vencer essa prova e venceu. Não de imediato, mas
depois de algumas tentativas, um grave acidente e por fim
muitas querelas, pois ele ultrapassou o ponto de partida na
volta e alguns juízes da prova julgaram que o tempo que ele
gastou na manobra deveria ser computado. O seu motor
que vinha falhando, subitamente engrenou-se, imprimindo
inopinada aceleração à sua máquina voadora, de modo que
ele não pôde se deter no exato pontoo em que partiu.
Outros admitiam que passar pelo marco de

173

chegada era o suficiente para satisfazer as exigências da


prova.

Essa foi a origem das polêmicas e controvérsias que se


estenderam por muitas semanas. Mas a maioria dos juízes
finalmente votou a favor de nosso irmão, forçados é
verdade, pela opinião insistente do povo de Paris, simpático
ao “Petit Santô”, como carinhosamente o chamavam. Foi
um feito surpreendente para a época, uma façanha
apregoada nas primeiras páginas dos jornais do mundo
todo. Com ele o homem vencia a dirigibilidade dos balões,
libertando-se do domínio dos ventos. Era rompida a primeira
barreira. Nosso pequeno amigo conquistou grande fama.
Recebeu telegramas e cumprimentos de eminentes
personalidades da época, como Thomas Edson, Marconi,
presidentes e príncipes de nações. O povo brasileiro nesta
época, viu-se orgulhosamente projetado no cenário mundial
através de seu pequeno e intrépido representante, e o
governo apressou-se a homenageá-lo, enviando-lhe a igual
quantia em dinheiro, junto com uma medalha de ouro,
marcando o grande feito. Nosso pequeno jovem vestiu-se
das maiores glórias possíveis ao homem encarnado. Eis a
altura onde ele se dignou alçar seu voo na atmosfera das
vaidades humanas, Adelaide!

-- Não sei se ganhei! Meus nervos não aguentam outra


tentativa... – continuou Alberto, transparecendo indignação
com a demora da decisão. – Poderia, mas não vou concorrer
novamente e já preparei a minha carta de demissão do
Aeroclube. Parecem deixar claro que não desejam que eu
ganhe o prêmio, pois passaram a exigir que o candidato, e
no caso eu sou o único, convocasse a comissão julgadora
por carta, com 24

horas de antecedência, sem que se possa prever as


condições atmosféricas na hora da prova. Uma temeridade,
pois uma vez requisitada a comissão, não se pode deixar de
tentar a empreitada...

Denotando sentir-se ultrajado pela situação que feria sua


dignidade, continuou:

-- Cento e vinte mil francos! Mas já decidi, não quero esse


dinheiro, não vou deixar que pensem que fiz isso pelo vil
metal.

Não preciso! Vou distribuí-lo entre os meus mecânicos e os


pobres de Paris. Assim saberão que não estou aqui pelo
dinheiro, mas pelo prazer de vencer a prova. Já me aborreci
bastante com a diretoria do Aeroclube... Mudaram as regras
do concurso somente para dificultar-me. Certamente não
querem que um estrangeiro vença a prova... Com o dirigível
nº 6 tentei antes sem sucesso...

Tentei outras vezes com o nº 5... Uma vez tive que descer
nos jardins do Trocadero para consertar uma corda do leme
que se

174

soltara... No dia 8 de agosto, no mesmo Trocadero...Meu


Deus, estou caindo! Ouço uma grande explosão... Os céus
me acudam!

Vou morrer...

-- Vamos detê-lo antes que se impregne do pavor que


vivencia – disse à Adelaide, apressando-me a inibir-lhe a
excruciante recordação e induzindo-o novamente ao sono
profundo. – Os momentos traumáticos se instalam na alma
com maior sofreguidão do que os instantes de alegria,
Adelaide, e se apressam em vir à tona na primeira
oportunidade que se lhes suscite a lembrança. São
presenças indesejáveis em nossa consciência, que deseja
alijá-los de suas paisagens interiores.

Somos feitos para a alegria, e por isso, a dor e o mal que


vivenciamos são insistentes feridas do passado em
permanente exercício de reparação. Nosso amigo traz a
alma povoada de arrojadas aventuras aéreas, que
ocuparam toda a sua encarnação, como vejo nos relatos
que trago. Ele viveu alegrias e glórias, mas também
momentos de intensos perigos e decepções que lhe
dilaceraram o espírito, impregnando-o de enormes traumas.
Seu balão nº 5 caiu sobre os telhados da cidade, o mais
grave acidente que sofreu, dentre muitos que lhe
sucederam.

Esteve realmente perto da morte.

Após breve intervalo, em que o deixamos recompor as


forças mentais, retornamos, chamando-o novamente aos
momentos de glórias. Ouvíamos agora longos apitos de uma
grande embarcação. Era manhã e ele estava no convés de
um navio. Estampidos de canhões se precipitavam dos
montes que pontilhavam, ainda indecisos, no horizonte
enevoado. Muitos barcos se aproximavam do transatlântico,
ruidosos e festivos. Caía uma garoa fina... Gritos, acenos,
bandas, foguetes, novas aclamações!

-- Estou aportando em minha terra. Vejam o que estão


fazendo! Prepararam uma grande festa para minha
chegada.

Tenho que conter minha vontade de chorar, um aeronauta


não pode demonstrar descontrole das emoções... Veja
quanta gente me espera no cais! Quantas embarcações
vindo ao meu encontro! Nem a chuva os impediu de virem...
não sei o que dizer, essas recepções me deixam
embaraçado... Povo muito bom e que memória tem! Já se
passaram dois anos que ganhei o prêmio Deustch, mas eles
o comemoram como se fosse hoje... Aqui é mesmo a minha
nação...

-- Que dia é hoje, Alberto?


-- 7 de Setembro de 1903. Como esse povo me admira! Não
preciso sentir-me mais um estrangeiro aqui. Eu vivo este
dilema

175

como se não tivesse minha própria Pátria. Na França me


sinto um pária, um renegado, um estranho imigrante de
país de somenos importância, que ninguém conhece. Aqui
me vejo como alguém de fora, sentindo falta dos bulevares
da grande Paris, seus modernos automóveis, o povo
elegante e belo. Mas são frios, distantes, estranham se lhes
tocamos o ombro... mas hoje vejo que esta é minha terra.
Gente simples e hospitaleira! Não poderei esquecer esta
demonstração de veneração à minha humilde pessoa...

Imagens que realmente impressionavam perfilavam em sua


tela mental. Um luxuoso galeão, movido por dezenas de
remadores fardados, o conduzia agora com pompas, para o
cais.

Bandas tocavam marchas militares... uma carruagem


ornada de orquídeas o carregava triunfante em meio a uma
multidão em delírio... revoada de pombos, confetes,
foguetes, flores atiradas das janelas... discursos e
homenagens, trovas e versos desfilavam em sua mente
como imagens inesquecíveis de um dia de glórias.
Ouvíamos nesse momento uma modinha que cantava as
glórias do rei dos ares: “A Europa curvou-se ante o Brasil...
Brilhou lá no céu mais uma estrela... E apareceu Santos
Dumont... Salve Brasil, terra dourada, a mais falada no
mundo inteiro... Guarda teus filhos, lá nessa altura, mostra a
bravura de um brasileiro!...”.

Alberto, dominado por vivas emoções, arrancadas dos


recessos da alma, não pôde conter as lágrimas silentes que
afloravam abundantes nos olhos cerrados.

-- Não imaginava que ele tivesse sido tão querido e


idolatrado pelo povo – Admirou-se Adelaide diante das
singulares imagens.

-- Sem dúvida, sua alma deixou-se embevecer da fama.

Efêmera alegria que, ao alimentar as vaidades e exaltar o


orgulho do indivíduo, pode imprimir doentio rumo às forças
do psiquismo, se não forem bem conduzidas. Por isso Jesus
nos aconselhou precaver-nos das glórias dos homens.
Alberto tornou-se uma celebridade em sua terra. Por onde ia
era recebido com louvores e aclamações. Governadores lhe
homenageavam, discursos e ditirambos exaltavam seus
feitos. A voz do povo, falando de seus próprios anseios,
sentia-se representar na pessoa deste pequeno e intrépido
aeronauta, exaltando seu orgulho no cortejo das nações.
Festas de fatuidades, ornadas de vaidades humanas e muito
perigosas para um espírito em trânsito na Terra, Adelaide...

perigo maior do que arrojar-se nas nuvens e enfrentar os


ventos...
-- O irritante é que esse povo bom, mas simplório, reclama
insistentemente por eu não ter trazido o meu dirigível,
mostrando-

176

se mesmo contrafeito – prosseguiu o nosso amigo,


evocando as dificuldades do momento. – Não compreendem
que eu não poderia fazer isso sem a máquina de produzir
hidrogênio, os meus mecânicos, o hangar onde guarda-lo...
mas não se conformam...

e como gostam de discursar! Não me chamem para fazer


discurso, por favor... um público me espreitando para que
eu fale algo é muito pior do que desafiar as alturas...
177
18
capítulo

MOMENTOS HISTÓRICOS

“Todas as suas obras eles fazem a fim

de serem vistos pelos homens.”

Jesus – Mateus, 23:5

Alberto enlevava-se nas recordações dos seus dias de


triunfos, alimentando-se das alegrias vividas, deixando-se
envaidecer pelos efêmeros valores da notoriedade como se
toda a ventura do espírito se reduzisse em sobrepor-se aos
irmãos de jornada. Vã pretensão! Toda conquista, se não é
embasada em contingentes morais, termina em fatuidades
e desenganos, deixando a alma dorida e vacante de suas
reais necessidades. As poderosas forças que nos constituem
o espírito precisam do equilíbrio para a elaboração do bem
estar e da saúde plena, necessitando para isso, afastarem-
se tanto da orgulhosa satisfação de ser mais do que os
outros, quanto da destruição dos próprios e sagrados
patrimônios pessoais. Alberto ainda transitava entre a
autodestrutividade e a exaltada satisfação do orgulho,
posições inadequadas para a solução definitiva das
profundas e pungentes desarmonias de sua alma. Era
imprescindível buscar-lhe a justa medida, para que se
estabilizasse na verdadeira saúde. O

momento porém, obrigava-nos a preencher-lhe o vazio


íntimo com as reservas do passado, repletas de
inadequadas e perigosas vaidades. Este não era, entretanto,
o fim, mas apenas o meio para se atingir o verdadeiro
desiderato, a harmonia necessária à vida mental saudável.
Depois trabalharíamos para que a altanaria, identificada na
etiologia de suas dores, não produzisse novos danos. Por
ora o caminho era este: seguir os passos por onde trilhara,
para depois refazer seus equilíbrios perdidos.

Os momentos de glórias vividos por nosso impávido amigo


pareciam não terminar. Retomando o caminho das
vivencias, vimo-lo agora em pomposa solenidade,
recebendo uma medalha de honra ao mérito, que
adivinhávamos estar sendo entregue pelo governo francês.

178

Após novas e rápidas sucessões de imagens vivas, ei-lo


então de pé em cima de uma barquilha, observando o povo
que se amontoava ao seu redor.

-- Ele está agora realizando um de seus habituais passeios


aéreos e parece deliciar-se, apreciando do alto do seu
inusitado posto, os franceses que acorrem para admirá-lo de
perto – mostrei à Adelaide, chamando-lhe a atenção para
sua atitude francamente soberba, em arriscado
exibicionismo.

Um largo sorriso de orgulhosa satisfação se esboçava em


seus lábios finos. Sua pequena estatura, ornada de altivez,
se projetava, elevando-se sobre os míseros humanos adesos
ao solo, prisioneiros da gravidade. Ele se fazia,
seguramente, naquele instante, o maior de todos os
homens. Percebíamos seus pensamentos transpirando o
incontido desejo de que, diante de tão esplêndido e glorioso
momento, o átimo do tempo detivesse seu inexorável fluxo,
deificando-o para sempre.

-- Desci aqui para tomar um café, em minha residência... Av.

Champs Elysées, esquina com a rua Washington... no futuro


os homens se conduzirão assim... eu sou o futuro! – dizia,
exultando-se de triunfante deleite.

Acomodando-se em sua estrambótica máquina voadora,


dava a partida e gritava:

-- Larguem tudo!

E puxava com delicadeza o cabo corrediço sob a quilha, a


fim de inclinar a proa do balão, forçando-o a subir.
Suavemente a nave adernava e se elevava, enovelando no
ar suave bailado, encantando de admiração o povo que o
ovacionava com estridores de entusiasmo. Apoteótica
satisfação lhe vestia a alma altaneira, ao dirigir o olhar para
baixo, a fim de apreciar a insignificância daqueles que lhe
acenavam em efusiva excitação, agitando lenços e cartolas.

-- O “Baladeuse”, nº 9, o mais querido de meus balões! Os


franceses o apelidaram assim... O menor e mais prático dos
meus dirigíveis! Atingi a perfeição de minhas máquinas
aéreas! Fácil de manobrar, com ele faço passeios diários
sem precisar repor a mínima quantidade de gás... Somente
uma única vez... eu voava sobre o Sena... Meu Deus, um
retorno de chama no motor!... está pegando fogo!... Vou
explodir!...

Mesmo em meio ao susto e sem se deixar dominar pelo


pânico, vimos nosso jovem apagando o fogo do motor com
admirável ousadia e sangue frio, abafando-o com seu
chapéu.

Calmamente retomava o comando de sua aeronave, como


se nada tivesse acontecido, tratando de terminar o seu
passeio.

179

Sequer tive tempo de detê-lo na vivencia do terrificante


momento, pois com habilidade e coragem impôs rápido
controle à situação, impedindo que a experiência se fixasse
em traumática emoção.
-- Salvo pelo meu chapéu... – sorria, demonstrando o mais
perfeito autocontrole.

-- Compreendemos agora porque ele sempre era visto com


este desabado e deselegante chapéu, Adelaide! Ele o
manteve como uma espécie de amuleto da sorte por havê-
lo salvo de terrível morte – comentei reservadamente com
minha pupila.

-- Além de lhe ocultar as orelhas de abano, possivelmente,


Adamastor – completou a estudante, demonstrando
acertado senso de observação.

-- É verdade, Adelaide. E vemos que nosso amigo


atravessou grave incidente sem o menor constrangimento.
O maior perigo, no entanto, que ele afrontou sem o saber,
não estava em arriscar-se nestas alturas em tão frágil
máquina, ou enfrentar um retorno de chamas no motor,
mas em se deixar inflar pela exaltada propulsão psíquica
que lhe enfatuava a alma de grave arrogância. O

espírito traz consigo poderosas forças sustendo a


personalidade e que necessitam de equilíbrio...

Tiros disparados por arma de fogo nos assustaram,


interrompendo-nos as confabulações. Logo víamos Alberto
flutuando em seu dirigível, com revolver em punho, e
compreendíamos de imediato que ele realizava uma salva
de tiros. Abaixo uma extensa multidão se reunia em torno
do que se nos apresentava ser um desfile militar, pela
presença de grande número de soldados cavalgando em
pelotões ordenados.

Sobressaltados, todos miravam para cima, admirando o


insólito acontecimento.

-- Não se assustem! É apenas a grande parada militar de 14

de julho em Longchamps. Fui convidado para participar com


o meu dirigível, demonstrando o que será a mais formidável
arma de guerra – dizia, fortemente entusiasmado e um
pouco temeroso de que os disparos desequilibrassem seu
aparelho. – O presidente Loubet, todos os seus ministros e
autoridades de outros países estão presentes. Não poderia
deixar de vir...

O balão se aproximava agora da aglomeração. Muitos


corriam, cavalos assustados empinavam-se, revolvendo-se
a turba em tumultuosa agitação, apreciando a nave que
adejava em baixa altitude. Vendo soldados e povos
alvoroçados diante do admirável aparelho, Alberto sorria
intimamente, exibindo nítida

180

satisfação e não pôde deixar de exprimir com clareza a


exaltação doentia do orgulho que lhe movia a alma.
-- Como daqui do alto todos são insignificantes! Generais,
autoridades de Estado, os homens mais eminentes desta
nação, e os mais importantes do mundo, o fabuloso exército
francês, todos aqui prosternados aos meus pés. Poderia
abater com facilidade até mesmo o presidente Loubet se o
desejasse... Fabuloso, não?...

Reservaram-me um local para pousar, mas acho melhor não


descer. Causarei muito tumulto, com tanta gente reunida...
Vejam como se agitam...

Deixando a capital do planeta postada de admiração,


moveu o contrapeso do dirigível inclinando a sua proa, e
imprimindo aceleração ao motor, subiu, entregando os
parisienses às suas parcas homenagens como a lhes dizer
que ele não fazia parte daquele mundo rasteiro, procumbido
e aglutinado ao solo.

Já havia realizado o bastante para sobrelevar-se e assegurar


a sua inquestionável supremacia.

Segurando agora uma carta, dizia em vivo entusiasmo:

-- Vejam! O General André respondeu à minha carta. O

governo francês aceitou minha oferta...

-- O que você ofereceu, meu amigo?


-- A minha frota de dirigíveis, em caso de guerra. Exceto
contra as Américas, é claro, uma hipótese muito improvável.

Agora estão compreendendo a importância de meus


dirigíveis! O

auxílio que prestarão a um exército será inigualável!


Poderão facilmente atirar cargas de dinamites sobre os
inimigos. O único problema será manter-se fora do alcance
de suas balas... E qual poderá ser a mais segura defesa
contra os submarinos, senão um dirigível? Facilmente os
localizarão e poderão atirar explosivos sobre eles. Esta será
a mais formidável arma do futuro, as nações se curvarão ao
seu poderio destruidor nas guerras... Enviaram oficiais à
minha oficina em Neuil y para observar meus inventos...

Pensam em construir, com minha ajuda, um grande


dirigível, para ser usado em caso de uma guerra...

Contudo, do vivo entusiasmo o víamos passar subitamente


ao intenso pesar. Sua tela mental se enegrecia novamente
de eflúvios negativos e ele prosseguia com dificuldade:

-- A guerra... não devia ter feito isso... Estão usando mesmo


os dirigíveis e os aeroplanos nesta guerra sem sentido...
Dói-me pensar que cidades estão sendo bombardeadas...
inocentes civis morrendo... É inegável, tenho participação
nisso... mas eu queria apenas chamar a atenção do mundo
para a importância da

181
navegação aérea... não pensava que seria tão sério... Meu
Deus, o que eu fiz!...

Contivemos sua vivencia, identificando importante passado


de culpas incidindo nas distonias do presente, que teríamos
que convocar à realidade, porém em outro momento. Era
imperioso torna-lo ao caminho das glórias.

Acionando nosso parelho sonoro, emitimos o próximo som


na sequencia sugerida. Um forte estardalhaço de um motor
muito mais intenso que o rutilar compassado que movia
seus leves dirigíveis o conduzia agora a outra expressiva
vivencia, interrompendo a angustiosa lembrança da guerra.
Agora porém, ele deslizava nas asas de um avião de seda...

-- Estou voando! Vejam, estou voando!

A imagem que se delineava em sua mente se esmaecia,


desfeita em forte emoção. Manipulando suas energias
psíquicas, acalmamo-lo, sustentando-lhe a revivência que
se refazia paulatinamente, deixando-nos entrever em
detalhes o inusitado momento: um enorme papagaio feito
de tecido encerado e bambu, agitado por barulhenta hélice,
freme em um instante de indecisão. Ele, agora o maior dos
homens, de pé, dentro da mesma barquilha roubada de
seus balões, segura complicados cabos, e sem hesitar, puxa
e fixa o acelerador depois de acenar para que a multidão se
afaste do grande pássaro. Uma indescritível ansiedade
afugenta todo receio e um exaltado autocontrole frena toda
e qualquer hesitação. A obstinação cega em vencer a
gravidade! Voar! Fazer algo que ninguém jamais fez!

Ficar na História! Um sabor de celebridade misturado à


audácia aflora de seus sentimentos em suspense. Uma
satisfação orgulhosa de se ver enfim um grande homem. A
nave branca ergue seu bico com suavidade, balança
suavemente e se eleva enfim, como um imenso pato
selvagem em fuga para a primavera. O galeio do motor, o
vento soprando forte em sua face. Sente que as rodas já
não tocam mais o solo. Ele paira no ar! A respiração se
detém. A alma se enleva! Curva-se ligeiramente a fim de
equilibrar o veículo que ameaça adernar, descrevendo um
gracioso arco para a esquerda. Um movimento brusco, o
aparelho inclina-se. Ele apaga o motor e com leve solavanco
sente resvalar-se no chão. Um mero minuto no tempo dos
homens, um marco na História! É a glória de muitos séculos
que se realiza. Sessenta metros no ar, três metros acima do
solo.

Alberto chorava de emoção. Reviver a apoteose do seu


primeiro voo do mais-pesado-do-que-o-ar era a exaltação

182

máxima de seu ego. Atingira, no ápice da deificação de um


ser humano, o ponto mais elevado de sua vida.

-- Sou imortal, os deuses me saúdam! Todos me aclamam.


Mas por que eu?

Sentindo que suas combalidas forças íntimas recrudesciam,


incendiadas por ardente alacridade, revestia a alma ainda
denegrida pelas dores, com o esplendor de uma conquista
soberba, tresmalhando uma curiosa mistura de humildade e
altivez. A inédita façanha impregnara-o de exaltados
sentimentos de elação, a máxima glorificação do ego,
porém a sensação de pequenez impressa na alma ferida,
continuava a se manifestar com marcada expressividade. As
frustrações de uma personalidade apoucada e carente e os
encargos assumidos com um passado de culpa tingiam de
amarguras o feito memorável, roubando-lhe o merecido
júbilo. E adivinhávamos que as reais alegrias que lhe
bafejavam a alma naquele momento não eram somente as
da vitória sobre o impossível ou dos louros da glória que
orgulhosamente ostentava na fronte, mas do alívio que o
cumprimento de uma missão lhe entretecia no imo da
consciência. Um débito para com a humanidade era
resgatado, devolvendo-lhe a liberdade do viver.

Novamente os jornais do mundo destacaram-no em


primeira página. O homem vencia enfim o espaço da prisão
que a gravidade lhe impunha. Nova era se iniciava para a
humanidade.

As distâncias se estreitariam, as culturas encontrariam


união. Um momento memorável na história da civilização!

-- E estamos vendo este dia, Adelaide, revivendo-o com


detalhes – disse à minha amiga, um tanto emocionado pelo
feito histórico que se desdobrava aos nossos olhos.

-- Ganhei o prêmio Archeacon! – exclamou Alberto,


denotando ainda forte estado de emoção. – 23 de Outubro
de 1906, o dia mais importante da minha vida! Uns dizem
que foi um grande pulo, mas senti que planava e poderia ter
continuado o meu voo se não tivesse perdido a direção.
Temi pelas pessoas que corriam demasiado perto do
aeroplano...

O povo se precipitava ao seu redor. Erguiam-no em triunfo.

Ele escapulia e voltava para examinar o aparelho. Sua


curiosidade era enorme em averiguar as avarias. Eufórico e
ainda com a respiração em suspense, continuou:

-- Apenas uma das rodas torcida, dois balaústres quebrados


e o bambu do leme partido. Nada a dever à fortuna dos
deuses!

Não posso dominá-lo muito bem, mas vou tentar melhorar


isso. A inclinação de suas asas tem que ser controlada, pois
apenas o

183

galeio do meu corpo não é capaz de mantê-lo na


horizontal...
Preciso de mais velocidade, vou reduzir o peso de
compensação para aumenta-la...

Um pequeno homem envolvido em tamanha empreitada! O

que a princípio nos parecia uma simples aventura de


alguém muito endinheirado, desejando apenas divertir-se
com a vida por não ter o que fazer, tornava-se de fato uma
missão. Contudo, aduzia que se somente o empenho em
realizar tão importante tarefa em benefício do progresso
humano o movia nessas ousadas aventuras, ele não teria se
atirado no fosso de dores tão expressivas como as em que
se encontrava. Outras forças psíquicas estariam atuando
em sua personalidade. A necessidade de satisfazer as
vaidades mundanas costuma ser o verdadeiro escopo que
alimenta tais empreendimentos, e nosso amigo as
apresentava com clareza. Sua apoucada compleição física
certamente carecia de compensar-se através de outros
arroubos de valorização, mas questionava-me se somente
isso justificaria sua coragem, arrostando com tamanha
temeridade os tremendos riscos de vida. Pressentia que
outras motivações silenciosas se combinavam em sua
personalidade para conduzi-lo à superação de si mesmo e
dos limites humanos. Mas não era a hora de atender à
minha curiosidade.

Sua tela mental voltava a ser percorrida por rápida


sequencia de outras imagens do passado, detendo-me as
conjecturas. Novamente no ar em seu papagaio de seda.
Outra conquista! Perfazia agora duzentos e vinte metros,
oito metros de altura! Outra vez ovações e homenagens!
Um jantar de pompas!
Depois, ao lado de um pedestal, com um aplaca
comemorativa onde se lia o seu nome, seu espírito se
enfatuava de admirável e perigosa ufania. Um discurso
improvisado e sofrido diante de autoridades eminentes,
prova mais difícil do que voar... Aos poucos porém, seu
panorama mental tingia-se de penumbras e ele continuava:

-- Devo esquecer estes momentos... Querem convencer-me


de que não fui o primeiro a voar... Depois que me alcei aos
ares na vista de todos, vieram dizer-me que muito tempo
antes de mim, já faziam o que eu fiz... às escondidas... Não
posso compreender...

Roubaram-me o título... Deus não quer que meu humilde


nome conste entre os pioneiros da aviação...

Uma vez mais a dissonância do pessimismo e da


autodestrutividade retornavam, conduzindo-o ao embalo
enfermiço das forças psíquicas deterioradas. A negatividade
imperava doentiamente sobre todos os valores íntimos,

184

amealhados no esforço de auto-realização. Cada afluxo de


energia de emotividade positiva induzida, por reflexo, à
vivencia do insucesso, da negação e da dificuldade,
situando-o outra vez na hipodinamia das forças mentais em
depleção.
-- Sua alma traz uma ferida aberta, Adelaide, corroída por
energia psíquica de natureza degradante. Vemo-lo oscilando
na verdade, entre duas polaridades de uma mesma
potência que assume direcionamentos opostos, segundo a
vontade do espírito, quase sempre inconsciente.
Movimentos que, quando muito acentuados, manifestam-se
com súbitas alternâncias entre a euforia e a depressão,
caracterizando patologia conhecida da psiquiatria terrena.
Observamos com clareza estas pulsões em ação em Alberto,
nestas vivencias. Sempre que a alma se posiciona na
euforia do sucesso, a instabilidade vigente dessas forças o
conduz de volta ao pessimismo e à autodestrutividade,
subordinando-o a um movimento qual o de um pêndulo que
sempre retorna, em seu balanço, ao oposto de sua posição
inicial.

Frenando suas desditas, induzimo-lo a outras visões


prazerosas, alimentando-o de novas alegrias. E o vimos
preparando-se para novo voo, em um diminuto avião,
semelhante a uma grande libélula de asas transparentes.

-- É a “Demoiselle”. Meu novo aeroplano, a mais perfeita de


todas as minhas invenções, a mais querida. O menor de
todos, porém o mais ágil, o mais bonito e fácil de manobrar.
Com ele posso subir e pousar em qualquer lugar plano –
dizia, orgulhando-se de sua criação. – Com a “Baladeuse” fui
muito feliz, mas com a

“Demoiselle” superei todos os limites... Voo todas as tardes


com ela... Consegui um motor potente de apenas quarenta
quilos, com dois cilindros opostos. Anzani afirma que sua
lubrificação ficou deficiente e que ele não resistirá por muito
tempo, mas seu equilíbrio é perfeito, a trepidação é quase
imperceptível... Meus amigos admiram minha coragem
voando neste aparelho que julgam muito frágil. Dizem que é
loucura, que estou querendo me matar... Mas um aeroplano
precisa de leveza e não de solidez...

uma queda lhe seria tão grave quanto para o robusto Blériot
ou o enorme Voisin... Agora de “Petit Santô” deram para me
chamar de “Petit Fou” (Pequeno louco, em francês.), mas
não me importo, sinto-me feliz em minha pequena libélula...

Admirados, notávamos que a sua grande ousadia, vendo-o


assentado em seu pequeno avião, apoiado em uma mera
tira de tecido encerado, servindo-lhe de banco, sob frágeis
asas de seda, sustentadas por bambus...

185

-- Minha família está completa... O balão, o dirigível, o


biplano e o aeroplano... Sou o único aeronauta que, não
somente sabe conduzir, mas que construiu todos os tipos de
aparelhos aéreos possíveis – locupletava o amigo, orgulhoso
de seus exóticos filhos.

-- Máquinas! Apenas máquinas! Veja só, Adelaide! Nosso


irmão cavou um poço de solidão ao seu redor, por isso
sentimos sua alma tão faminta de afetividade – sussurrei-
lhe aos ouvidos, a fim de não despertá-lo do transe
revivencial.
-- Olhem! Voei de Saint-Cyr até o Buc... oito quilômetros em
linha reta... apenas cinco minutos!... Noventa e seis
quilômetros por hora!... Incrível! Um record imbatível! O
potente monoplano de Blériot, , considerado muito veloz,
não ultrapassa sessenta quilômetros horários... Minha
“Demoiselle” é o mais perfeito dos aeroplanos!... Foi o mais
elogiado na exposição do Grand Palais...

Silenciosos, Adelaide e eu ouvíamos o amigo exaltando


orgulhosamente a sua criação, notando o rompante de
jactância vertendo-lhe perigosamente da alma. Embora
guardasse méritos em sua composição, o feito
seguramente, não era fruto único de sua genialidade.
Sabemos que equipes de operosos espíritos assediam os
homens em tarefas como essas, apoiando-lhes a
instabilidade da ideia criativa em prol do progresso humano.

Alberto seguramente mostrava estar apenas executando o


que lhe ditavam essas magnas entidades que o apoiavam,
mas convinha deter nossas observações, permitindo-lhe
revigorar-se nos sucessos que acreditava seus, sem lhe
roubar os merecidos lauréis,

possibilitando-lhe

embevecer-se,

ainda

que

momentaneamente, nas parcas alegrias que suas


lembranças ainda lhe podiam ofertar.
-- Muitos vêm de longe para observar a minha “Libellule” –

continuou, presunçoso, relatando suas peripécias. – Querem


conhecer o pequeno aeroplano que voa tão bem. Todos o
elogiam e muitos se oferecem para comprar o projeto, mas
por que venderia? Nunca quis comercializar nenhum de
meus inventos; sempre cedi meus planos, sem nada
receber, mesmo que insistissem em pagar-me... Nunca fiz
questão de haurir lucros com eles. Tudo fiz e faço aos olhos
de todos...

-- É verdade, Adelaide, ele cedia suas criações sem nenhum


impedimento, sentindo-se feliz em ser copiado. Precisamos
compreender esse aparente ímpeto de desprendimento de
nosso amigo, descobrindo as reais motivações de tão
inédita conduta.

De qualquer modo, ele está se gabando diante de seus


rivais, os

186

norte-americanos, que ocultaram suas descobertas a fim de


explorar benefícios financeiros com elas.

Contudo, novamente seu panorama mental se enegrecia de


inopino e nosso amigo prosseguiu, denotando a decadência
do panorama íntimo, estendendo as mãos que fremiam:
-- Sinto-me um velho e acabo de completar 36 anos de
idade... Vejam como estou trêmulo! Que vergonha! Um
aeronauta! A insegurança está tomando conta de minha
alma, devo confessar. Em meu último voo, atacou-me um
medo terrível de perder o controle... Não posso mais voar...
o pânico me invade.

Triste realidade! Não tenho forças para vencer isso... Passei


pelos piores acidentes, saindo deles sem temer novos
insucessos e atirando-me novamente nos mesmos riscos.
Quando o meu nº 5

explodiu nos telhados do Trocadero, na mesma noite estava


rabiscando os projetos do nº 6... Todos admiram meu
grande sangue frio, minha coragem, meu perfeito
autocontrole... agora não tenho mais como ocultar minha
covardia... um simples passeio em minha Demoiselle, que
antes me deleitava, agora me dá fortes palpitações,
tremores, suores frios, um grande abafamento que não me
deixa respirar... um enorme medo me domina, sinto que vou
morrer... Já avisei meus amigos, vou deixar a carreira... um
profundo pesar, mas não tenho outro caminho... se
continuar, tenho certeza de que morrerei... Dia 18 de
setembro de 1909, meu último voo... estou tremendo, não
sei se vou conseguir...

Interrompia-lhe a vivencia que se consumia sob forte


emoção, reconduzindo-o às estradas felizes do pretérito.
Suas forças psíquicas denotavam de fato precoce desgaste,
denunciando o estabelecimento de grave neurastenia. Sua
curiosa conduta entretanto, fazendo questão de avisar aos
amigos que não mais voaria, suscitava-me a ideia de
alguém que, devendo obrigações à sociedade, pedia-lhe
permissão para encerrar seu compromisso. Fato que nos
induzia a ver naquela arrojada e intrépida existência o
cumprimento de uma missão.

Outras cenas seguiam-se em sua tela mental, aflorando em


profusão os nítidos quadros do passado ainda vivo. Novas
viagens, novas invenções, recepções calorosas permeadas
contudo, por uma grande solidão e uma crescente angústia.
Um homem solitário, introspectivo, de poucos amigos. E, ao
pé de um morro, atrás de soberbo bambuzal, vimo-lo
conduzindo a construção de uma casa, dando ordens para
os pedreiros, conferindo projetos, transparecendo afinal,
grande entusiasmo. Cena interrompida de imediato por uma
nova aclamação, onde o vimos sob aplausos, ao lado de um
monumento que mostrava uma majestosa figura

187

em bronze de um homem alado. Ele lia o discurso com


visível nervosismo.

-- Conte-nos, Alberto, o que se passa agora? Que


monumento é este?

-- A mais linda das estátuas! O escultor Colin a fez


representando Ícaro com suas asas abertas, preparando-se
para o voo. Uma homenagem do Aeroclube francês à minha
humilde pessoa pelo pioneirismo da navegação aérea. Um
preito que não poderei esquecer... Ter uma estátua ainda
em vida é uma honra que poucos mereceram, sei disso...
Mas posso compreender.

Deveria estar feliz, porém não consigo... Sinto-me abatido,


sem forças... tenho os nervos muito abalados, não sei o que
se passa comigo... Meu Deus, ler este discurso está sendo
um grande esforço!...

Todos

podem

ver

como

estou

tremendo

exageradamente... Não consigo segurar o papel... que


vergonha!

Se pudesse, me escondia da vista de todos... Que aflição!


Um homem que controlou todas as emoções, que enfrentou
os piores acidentes com admirável sangue frio, sucumbe
diante de um discurso... Não consigo ler mais... Falta-me a
voz...

Alberto chorava e, com a voz embargada, mal conseguia


falar, fremido por enorme ansiedade. Acalmamo-lo com
energias apaziguadoras e ele continuou:
-- Um aeronauta tem a obrigação de mostrar o mais perfeito
autodomínio... que vexame... Estão encerrando a
solenidade, vendo o meu precário estado nervoso que
julgam motivado por excessiva emoção diante da
homenagem, mas não é isso, sinto-me sem controle, estou
realmente muito doente...

-- Embora se sentisse vexado pelo episódio, esta foi uma


das últimas alegrias de sua vida, Adelaide. Um grave quadro
depressivo se instala insidiosamente, e não mais o
abandonou até a morte. Vamos detê-lo, pois doravante, irá
reviver somente dores, solidão, amarguras. Uma sensação
de fracasso o acompanhou de modo inexplicável, apesar de
todos os surpreendentes êxitos. Os acidentes aéreos, e
sobretudo a utilização do avião na guerra, culminaram por
minar-lhe as forças psíquicas remanescentes do imenso
esforço despendido na execução de tarefas tão arriscadas.

Alberto, porém, como víamos em nossos relatos, não mais


se esqueceu desse monumento e se gabava apresentando
fotografias de seu imponente Ícaro, venerando com orgulho
a imagem fortemente fixada na memória. Encomendou
inclusive uma cópia em tamanho real, fazendo dela um
panteão para o próprio túmulo.

188

Era preciso encerrar o proveitoso dia. Sua memória fora


abastecida com os fatos mais marcantes e felizes de sua
vida e aguardaríamos uma franca melhoria do seu estado.
Tornei a induzi-lo ao sono reparador, completando minhas
elucubrações com Adelaide:

-- Agora compreendemos por que ele caiu em tamanha


desventura. – Nosso amigo galgou elevado patamar de
projeção no mundo dos homens, de onde se precipitou em
profundo fosso de amarguras. Somente as almas
santificadas podem voar alto sem que o fogo da fatuidade
lhes abrase as asas, atirando-as nos abismos das quedas
humanas. Por isso nossos heróis, na verdade, são movidos
pelo sabor das glórias mundanas, e aqueles que realmente
atuam motivados por santificados interesses passam
despercebidos, sem deixar nomes no rol da notoriedade.
189
19
capítulo
VALIOSA AJUDA
“Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal.”

Paulo – Romanos, 12:10

Alberto, alimentado com as mais agradáveis reminiscências


do seu passado, dava ares de franca recuperação. Não
recobrara a lembrança plena de si mesmo, mas dando-se
conta inconscientemente de que participara de fatos
relevantes na vida e se projetara acima dos homens
comuns, fez-se altivo e, como um demente, reconhecia-se
alguém de importância.

Passou a pedir-me com insistência que lhe trouxesse os seus


ternos listrados com a camisa de colarinho alto, pois não
achava conveniente que o vissem com aqueles uniformes
brancos e singelos de nossa colônia. E confiava-me ainda a
tarefa de lhe buscar as botas com saltos altos, dizendo que
se não as encontrasse poderia encomendar novas na rua
“Turbigo”, onde havia um artesão que sempre as
confeccionava muito bem feitas para ele. Com o uso de tais
artifícios que o faziam parecer mais alto, denotava
claramente que a pequenez física lhe era intolerável castigo
ao espírito altaneiro.
O costume que conservou, de se ver notado com ares de
respeito e admiração pelas pessoas, manifestava-se,
imprimindo-lhe certa arrogância oculta em máscara de
reserva e timidez.

Continuava a conversar muito pouco e em nossos pequenos


passeios se dizia receoso, temendo que alguém o
reconhecesse e o chamasse para alguma homenagem.
Sentia-se cansado e, em definitivo, não iria atender a
qualquer pedido de cerimônia, adiantava-se preocupado.
Frequentemente pedia para dizer que não estava, se
alguém o procurasse, alegando que desejava ser esquecido,
pois tinha os nervos em frangalhos e carecia sobretudo de
paz. Voltou a perguntar pelo sobrinho, inquietando-se pela
sua demora e questionava frequentemente se o conflito
constitucionalista já havia terminado.

190

-- Já soltaram o pobre do Antônio Prado? É preciso pedir a


intervenção do presidente, ele é um bom homem e não
tomou parte na revolução, tenho certeza – dizia, dando ares
de que sua memória, paulatinamente retornava.

Passou a atender quando o chamávamos de Alberto, sem


demonstrar a evasiva atitude de quem não se dá conta do
próprio nome. Permanecia, no entanto, profundamente
amargurado e solitário. Chorava, por vezes, sem que
atentasse para os motivos de sua penúria, e não
demonstrava disposição de compartilhar comigo os seus
sentimentos, talvez por não saber compreendê-los.
Frequentemente saía do quarto, perscrutando o céu em
busca de aeroplanos que dizia ouvir distante, e preocupado,
questionava se de fato o porto de Santos havia sido
bombardeado.

Comparecia diante de estranhos como se todos já o


conhecessem, não se interessando em apresentar-se,
embora ele não soubesse explicar quem era. Por vezes
voltava a conversar em francês, para terminar fazendo
perguntas desconexas, sem se dar conta do que estava
falando. Uma vez me disse que precisava ir embora, pois
queria preparar o seu dirigível nº 10 para uma jornada que
faria ao Polo Norte. Seria a mais espetacular das viagens e
ele se tornaria o primeiro homem a pisar o local, explicava,
enchendo-se de vivo entusiasmo, dando mostra de uma
orgulhosa demência nas raias da megalomania, onde
buscava ainda, seguramente, forma de projetar sua
personalidade, frustrada em seus doentios anseios.

Em raros momentos de lucidez, perguntava-me sobre uma


carta que escrevera, pedindo para que terminassem a
absurda guerra entre patrícios, questionando-me se lera nos
jornais informações de que alguém tinha lhe dado crédito,
pois não acreditava que fosse ouvido. Pedia notícias sobre a
atuação da forma constitucionalista e se o coronel Euclides
mantivera a promessa de não usar os bombardeiros aéreos,
revelando as reais inquietações que o motivaram nos
últimos dias de vida.
Embora não soubesse onde se encontrava, identificava a
colônia como uma estação de repouso e elogiava o sossego
do lugar, admirando-se do fato de não ouvir os latidos
noturnos dos cães e o canto matinal do galo, que tanto o
incomodavam nas noites insones. E alegrava-se por estar
dormindo bem, sem ao menos a necessidade de vendar os
olhos para conseguir relaxar-se.

Ainda não restabelecera contudo, o acesso pleno à auto-


identidade. Necessitávamos projetá-lo em uma vivencia
mais

191

expressiva, recorrendo à psicometria ou propiciando-lhe


relações com pessoas com quem compartilhara
experiências sentimentais na vida, a fim de que as energias
da afetividade o trouxessem à realidade do presente.
Infelizmente os laços afetivos que ainda entretinha na Terra
eram insólitos. Seus pais, como já haviam informado nossos
técnicos, achavam-se encarnados. Seu irmão Henrique,
desencarnado há alguns anos, poderia ser convocado pois
compartilhavam grande afetividade, porém achava-se em
preparo reencarnatório urgente e não convinha desviar-lhe a
atenção no momento. Outros parentes, como a irmã
Virgínia, ainda não detinham equilíbrio emocional para uma
eficaz ajuda.

Os técnicos de nossa colônia, contudo, identificaram a


possibilidade de socorro em uma humilde e valorosa
pessoa, capaz de auxiliá-lo com proveito: Eulália, amorosa
criatura ainda encarnada. Servira-lhe na vida como caseira,
porém dedicara-lhe desvelado carinho maternal, sendo
ainda portadora de valiosos dotes mediúnicos que muito
nos poderiam servir.

Convidamos então nosso amigo para breve passeio,


rumando para a crosta, onde encontraríamos o socorro de
que, mais uma vez, ele necessitava. Os dois mundos, o
espiritual e o físico, estão peremptoriamente entrelaçados e
naturalmente se dependem para a condução do espírito em
evolução. Se as forças espirituais são imprescindíveis para a
construção dos destinos do mundo, as energias da
afetividade do encarnado são, por sua vez, recursos
indispensáveis ao soerguimento de almas em desespero no
Plano do Espírito. O amor permanece como o liame que
aproxima os dois mundos, sustentando o ser em qualquer
posição em que se encontre. Sem essa força,
verdadeiramente o cimento da vida, a evolução não se
consolidaria, por mais que a inteligência nos confira
conhecimentos que nos façam compreender as razões de
nossos males. “Amai-vos uns aos outros como vos amei”,
redunda a palavra do Mestre com a sapiência que atravessa
os séculos e a certeza de que este é o suporte seguro para
a alma que trafega nos caminhos da evolução. E

Eulália era capaz de amar. E isso bastava.

Partimos, acompanhados de Adelaide, rumo à sua antiga


residência no mundo físico. Tínhamos informações de que
ali, ele vivera anos de muita paz, impregnando o ambiente
de suas melhores irradiações mentais, o que nos facilitaria
os benefícios da psicometria. Sua alma se deixaria
alimentar com as próprias energias carnais retidas nos
objetos de uso pessoal, despertando-o para o exercício
pleno da consciência. Uma pequena e bela residência,
construída em estilo suíço, surgia, incrustada num

192

morro, em uma cidade serrana do interior. A madrugada era


fria e silenciosa, favorecendo-nos o trabalho. Deparamo-nos
no entanto, ao adentrar a casa, com um ambiente fora dos
padrões que conhecíamos. Um único salão compunha todo
o seu interior, dividido em ambientes abertos, adaptados às
diferentes finalidades de uma residência. Móveis singelos,
moldados aos cantos, uma lareira ao fundo, um tablado
superior onde se adivinhava o dormitório e escrivaninhas de
trabalho tornavam a casa muito mais parecida com um
refinado estúdio do que com um lar propriamente. E
sabíamos que se tratara ade um projeto próprio de Alberto,
visando atender às necessidades de um homem solitário e
pensador. Alguns objetos de adorno, livros e um retrato de
mulher ainda descansavam em seus lugares. A casa havia
sido doada pelos familiares à municipalidade com a
finalidade de se construir uma escola, porém conservaram-
na fechada com o propósito de estabelecer ali um museu
em sua homenagem.

Alberto, ao se ver em contato com o antigo ambiente em


que vivera, sofreu leve choque vibratório que o fez
desfalecer.

Acomodamo-lo no pavimento superior, onde um móvel em


forma de cômoda ainda retinha suas energias pessoais,
denotando ter-lhe servido de cama, embora nos
estranhasse o fato. Envolvendo-o em um nicho fluídico
entretecido com suas próprias emanações, remanescentes
da vida carnal que ali ainda se demoravam, demandei à
procura de Eulália, enquanto Adelaide velava pelo seu sono.

Identifiquei-a em singelo casebre, num ambiente de penúria


material. Eulália, uma senhora de idade, semidesprendida
do corpo físico que repousava, não mostrou dificuldades em
minha presença, reconhecendo prontamente minhas
intenções e recebendo-me com amabilidade. Expus-lhe os
motivos de minha visita e a necessidade de sua ajuda para
o socorro do amigo. Ao pronunciar-lhe o nome, disse
espantada:

-- O sr. Santos Dumont! Sempre o trago na lembrança, bom


homem. Eu trabalhava em sua casa e o tinha por verdadeiro
filho, vendo-o tão só na vida apesar de pessoa muito
famosa. Ele sempre teve muita paciência com meus
meninos, e apesar de bastante calado, tratava-nos com
muito carinho. Ouvi dizer que o pobre se matou, mas isso
parece ser um segredo por aqui, cochichado apenas nos
ouvidos, e eu mesma não sei os motivos.

É verdade?

193

-- É verdade, Eulália, e ele não se encontra muito bem.


Precisamos de sua ajuda para que se recupere. Queremos
que você ore com ele.

-- Mas já faz muitos anos que ele se foi e não está bem até
hoje?

-- Sim, minha amiga, ele vem lutando com dificuldades para


se recuperar e até o momento não se reequilibrou, depois
de sua morte traumática.

A modesta senhora, dando mostras de grande desenvoltura


e lucidez no desprendimento propiciado pelo sono físico,
mostrava-se bastante consciente de sua situação e da
realidade do Mundo Espiritual, denotando possuir nobres
conquistas no campo do espírito e valoroso equilíbrio moral
a despeito da penuriosa situação material em que se
encontrava.

Adentramos a antiga residência de nosso amigo, onde ele


ainda se demorava em estado de sono profundo em
companhia de Adelaide. Despertamo-lo a fim de que
pudesse confabular com Eulália, e de forma proveitosa,
haurisse benefícios no contato com sua afetividade.
Acordando com dificuldade e denotando certo assombro ao
mirar pela primeira vez uma figura familiar, Alberto dava
ares de que a conhecia. Enquanto procurava organizar os
próprios pensamentos a fim de situar sua mente no devido
lugar, aguardava que ela lhe dirigisse a palavra.
-- Sr. Dumont, que alegria revê-lo, há muito tempo não o
vejo em sua casa. E como o Sr. está remoçado! Que boa
aparência!...

Sentimos sua falta, eu e meus filhos.

Alberto, olhando em derredor, parecia identificar a


residência, pois dava mostra de achar-se à vontade. A
penumbra do salão não lhe permitia notar os seus detalhes,
porém os objetos irradiavam sobre ele as próprias energias
acumuladas ao longo dos anos em que ali vivera, nutrindo-o
de confortável sensação.

Sentia-se familiarizado com a senhora que lhe dirigia a


atenção de forma tão afável. Com os olhos ainda fugidios e
denotando certa confusão no pensamento, perguntou-lhe:

-- Eu sei que a conheço, minha senhora, mas não me lembro


bem de onde e, desculpe-me, não consigo recordar o seu
nome.

-- Sou Eulália, Sr. Dumont, como pôde esquecer-se de mim?

Estes amigos me pedem para que eu ore pelo Sr. Recordo-


me de que sempre me pedia que rezasse a Mãe Maria pela
sua recuperação e eu nunca me esqueci de suplicar a ela
pelo seu bem.
-- Penso que não sei rezar... já tentei, mas não consigo,
faltam-me as palavras... gostaria mesmo de poder...

194

-- Vamos rezar juntos, Sr. Dumont, tenho certeza de que o


Sr.

sabe, pois sua boa mãe deve ter-lhe ensinado.

Eulália, dando-lhe as mãos, proferiu singela, porém sentida


prece. Seu amoroso coração se iluminou de intensa luz que
caía sobre Alberto, balsamizando-lhe a alma exaurida. O
ambiente em penumbra

invadiu-se

de

reconfortante

suave

luz.

Acompanhávamos-lhe a rogativa, enlevados pelo desejo


sincero de algo realizar em prol de nosso desventurado
amigo. E, para nossa surpresa, Alberto, abrindo
desmesuradamente os olhos, dirigiu-se à amiga:
-- Eulália! O que você está fazendo aqui?

-- Vim visita-lo, Sr. Dumont. O Sr. Está bem?

-- Sinto-me meio confuso, mas estou bem, Eulália. E estes


amigos? Parece-me que os conheço também.

-- Sim, claro que os conhece, são médicos do espaço que


estão tratando do Sr.

-- Espaço?...

A um sinal nosso, Eulália se deteve, compreendendo que


não devia explicar-lhe ainda o que se passara com ele e sua
condição atual.

-- Não se preocupe Sr. Dumont, o Sr. está em muito boas


mãos. Confie neles.

-- Tenho fome, Eulália, você pode preparar-me um café?

-- Vou fazer um café como o Sr. sempre gosta, Sr. Dumont. E


já sei, sem broa e sem pamonha, não se preocupe, não me
esqueci de que não lhe agradam...

-- Acredito que estava em uma clínica de tratamento, mas


não me recordo muito bem, Eulália... E, Biarritz, creio, onde
o Antônio foi buscar-me. Eu lhe havia mandado uma carta
pedindo ajuda, sentia que ia morrer, tinha desejos de matar-
me... graças a Deus meu desespero passou... mas não sei
como voltei... Muitas pessoas me procuraram enquanto
estive fora? Há cartas para mim? Você tem notícias do
Antônio? Ele continua exilado em Paris? E a revolução? Há
muito não leio jornais. Recordo-me de que as notícias me
colocavam em estado de angústia intolerável e proibiram-
me de receber qualquer informação.

-- Alberto, acalme-se. Você precisa descansar. – afiancei-lhe,


induzindo-o a voltar a deitar-se. – Guarde suas perguntas e
procure não se preocupar com estas coisas por ora.
Acredite, tudo está bem no momento. A revolução já
terminou e a ordem impera no país. Seu amigo está bem.
Você precisa dormir para se recuperar.

195

Sem dar-se conta ainda da realidade espiritual em que se


projetara, Alberto reconhecia-se em sua casa e enfim
vencera a barreira do bloqueio mnemônico, recuperando a
própria identidade. A lesão mais grave que portava até o
momento iniciava seu fim. Doravante, com facilidade, sua
memória se recuperaria completamente. Aplicamos-lhe
passes de reconforto e, agradecidos, oramos a Deus pelos
resultados alcançados, pedindo por Eulália e sua vida de
dificuldades. Nosso companheiro prontamente adormecia,
sentindo-se reconfortado pela presença da amiga e o
reconhecimento de estar no próprio lar.

-- Não há obstáculos para o amor em qualquer de suas


expressões verdadeiras, Adelaide. Eis a força mais poderosa
que sustenta o universo! – considerei, admirado, à minha
companheira.

– É verdade que as vivencias lhe soergueram as energias


combalidas e lhe faltava pouco para tornar à
autoconsciência, mas esse pouco não lhe poderíamos
proporcionar em tão curto tempo. Somente Eulália, com sua
inusitada capacidade de amar, irradiando verdadeiro ensejo
do bem, pôde conseguir, com a eficiência do sentimento
purificado, o que demandaríamos maior esforço para atingir.

Conduzi Eulália à sua residência, reconhecido pela sua


valiosa ajuda, prometendo solicitar providencias para as
necessidades materiais que lhe vergastavam a alma,
esperando contar com sua colaboração, caso ainda fosse
necessário.

O dia chegou com sua luz baça, trazendo uma cerração


gelada, e Alberto despertou, incomodado com o frio que
adentrava. Procurou por uma campainha que chamava por
Eulália, sem encontra-la, pois havia sido retirada.
Inconformado, afirmava que ele mesmo a havia instalado e
não admitia que mexessem em sua casa na sua ausência,
dando mostras de que se reintegrara em seu consciente
presente, embora ainda não se desse conta da própria
morte. Desejava acender a lareira e tomar um bom café,
porém desviando sua atenção, suscitamos-lhe nos mostrar
os pertences e enfeites pessoais que adornavam a sua
residência, a fim de abastecê-lo com as vibrações ali
depositadas.

Com pouco entusiasmo e sem compreender muito bem a


necessidade do pedido, tecia comentários em torno de
algumas fotos e medalhas, estranhando o fato de não
conseguir pegá-las.

Ao tocar os objetos, no entanto, notávamos que sua


psicosfera se nutria das energias pessoais neles retidas,
reconfortando-o. Com alegria observávamos que se
recordava com precisão de tudo, referindo-se a detalhes, de
forma natural, sem encontrar-se em

196

transe hipnótico. Estava de fato curado da amnésia. O


retrato de uma mulher nos chamava a atenção e o
questionamos para que nos informasse de quem se tratava.

-- Luzia, uma jovem que conheci em minha visita ao Chile e


que se dizia minha admiradora. A princípio sentime
entusiasmado pela sua beleza e trocamos algumas cartas,
mas confesso que com o passar dos dias esquecime dela.
Mantenho o seu retrato aqui, desde que queimei a
fotografia de Ainda, para que as pessoas não se incomodem
tanto pelo fato de me encontrar solteiro até hoje. Assim
desistem dessas inoportunas perguntas que me irritam.
Sinto que não nasci para o casamento... Tive algumas
paixões, é verdade, mas sem nenhum entusiasmo suficiente
para manter-me no matrimônio.

-- Não vamos então importuná-lo com essas perguntas,


Alberto. Devemos partir. Você precisa continuar seu
tratamento em nossa colônia, pois não se encontra ainda
curado dos nervos e se ficar aqui, poderá ter recaídas, meu
amigo.

-- Não quero voltar para Biarritz. Sinto-me perseguido e


muito infeliz lá!

-- Não vamos voltar para a França, Alberto. Não se lembra


de que você está hospedado comigo?

-- Sim, é verdade, recordo-me vagamente que estava em


sua companhia. Mas sinto a mente confusa, não consigo me
lembrar com exatidão dos últimos dias...

Devíamos retornar prontamente a nossa colônia, antes que


ele se colocasse mais aparvalhado quando se visse na
impossibilidade de executar várias de suas tarefas
rotineiras. A fim de não assustá-lo com a volitação que
empreendíamos, desequilibrando seu delicado estado
íntimo, adormecemo-lo por indução hipnótica,
transportando-o inconsciente.
197
20
capítulo

FISIOPATOLOGIA DA ARROGÂNCIA

“Qualquer, pois, que a si mesmo se exaltar, será


humilhado.”

Jesus – Mateus, 23:12

Finalmente Alberto recuperara a lembrança de sua


individualidade, reintegrando-se ao autoconhecimento,
embora não detivesse ainda ciência da própria
desencarnação, acreditando-se vivo na matéria, em uma
clínica de repouso. O

risco do estabelecimento de uma grave psicose estava


definitivamente afastado e iniciava-se o soerguimento do
processo depressivo em que ainda se encontrava.
Adentrávamos diferente fase de abordagem no auxílio
terapêutico, mediante as necessidades prementes que seu
reequilíbrio exigia. Doravante deveríamos ajuda-lo a entrar
em contato com sua nova realidade, a vencer as frustrações
hauridas no exercício da vida, superando em definitivo as
marcas deletérias do passado e a inibir os perigosos
patamares altanados com que ainda nutria doentiamente o
personalismo.
Seu psiquismo fixava-se agora nos últimos anos de sua vida
na carne, embora seu perispírito continuasse a revelar a
aparência física de um jovem. Entretanto, à medida que os
dias se passavam, acelerado processo de envelhecimento
lhe dominava a forma, fenômeno conhecido em nosso
mundo, propiciado pela maior plasticidade das linhas
morfossomáticas perispirituais que se apressam a refletir o
perfil psíquico predominante no ser.

O desvalimento ainda se imiscuía em seu caráter e a


insegurança semeava incertezas em seu íntimo, conquanto
o personalismo, doente de contida empáfia, o projetasse por
instantes, em limiar de perigosas arrogâncias. A revivência
dos dias gloriosos o ajudou a restaurar a memória, porém
não lhe trouxe equilíbrio ao dinamismo psíquico que passou
a alternar momentos de euforia com períodos de
melancolia, caracterizando conhecido quadro da psiquiatria
terrena, onde a exaltação do entusiasmo e a apatia oscilam,
intercalando-se em rápidas

198

sucessões (Atualmente denominado transtorno bipolar do


humor.). Em todos os instantes porém, insidiosa timidez
insistia em mascarar-lhe o caráter de aparente
subserviência.

Nos momentos de enlevo, apresentava-se como “o


inventor”, gabando-se de seus grandes feitos e se mostrava
contrafeito ao perceber que as pessoas não o conheciam,
por não saberem quem era “Santos Dumont”. Nos instantes
de constrição, revelando a contrafação da humildade, dizia-
se esquecido do povo e que de nada adiantara ter feito o
que fez.

Mostrando decepção e denotando que mágoas importantes


ainda enodoavam sua alma, comentava que depois que o
presidente da República dispensou seus conselhos, com
respeito aos avanços da aeronáutica no país, sentiu que sua
opinião não mais importava e a relevância que a nação dera
ao seu nome havia terminado. Paris, apesar de ter erguido
monumentos em sua homenagem, também já não o
reconhecia mais. Era agora um esquecido. Sai vida não
tinha mais a menor importância e já não o ouviam. A carta
que enviara ao embaixador brasileiro na Liga das Nações,
sugerindo a interdição do avião como arma de guerra, fora
completamente ignorada. Caçoavam dele quando dizia que
não havia feito o avião para a guerra. O sobrinho
desaparecera e nem mesmo os amigos o procuravam mais.
“Até o Antônio sumiu!” – exclamava. E a tudo isso reputava
o fato de ter sido roubado da glória do primeiro voo mais-
pesado-que-o-ar.

Arriscara a vida inutilmente, lamentava, pois seu nome


havia sido preterido pelos irmãos Wright. “Isso não era
justo” – considerava, profundamente aborrecido e
inconformado com suas desditas e com o mundo que
parecia rejeitá-lo. Não havia mais lugar para ele na vida.
Nos momentos de intensos espasmos depressivos,
chamava-me em prantos, confessando que tinha desejos de
matar-se, pois não valia mais a pena viver.
-- Se não continuarmos nosso exercício terapêutico, em
breve assistiremos ao estabelecimento de nova e profunda
contração psíquica semelhante à que o levou ao suicídio,
seguida de precoce e completo envelhecimento,
perturbando-lhe a saúde e a felicidade no plano espiritual,
Adelaide – explicava à estudante. – As doenças do
psiquismo humano, como a depressão, apresentam-se no
Mundo Espiritual com muito mais pungência , pois aqui as
forças psíquicas desequilibradas não se encontram
acomodadas ao abafamento que a carne lhes impõe, nem
atenuadas pelo olvido que normalmente oculta ao espírito a
realidade de sua indigência. Por isso podemos identificar
perfeitamente em Alberto a continuidade da mesma grave

199

depressão que o motivou nos últimos nove anos de vida na


carne, levando-o

inclusive,

ao

auto-aniquilamento.

As

forças

remanescentes da autocatálise ainda se reverberam em sua


intimidade,

minando-lhe

a
resistência

psíquica,

momentaneamente melhorada pela revivência das


vanglórias de seu pretérito e pela reconquista da auto-
identidade.

-- Os valores do orgulho se misturaram então com a


identificação das próprias penúrias?

-- Isso mesmo, Adelaide. O restabelecimento da memória,


embora salutar e necessário, trouxe também como
consequência a conscientização da inópia íntima,
assomando suas dores e aprofundando assim suas
angústias. Uma chaga de fatuidade se mantém aberta em
sua alma e ainda precisa de nosso auxílio.

Ulceração alimentada por perigoso orgulho ferido e marcada


intolerância às frustrações vividas, sentimentos que lhe
mantêm a instabilidade das forças psíquicas. Temos que
ajuda-lo a reencontrar o equilíbrio na moderação destas
energias e a cicatrizar as feridas do amor próprio que traz
do passado, para que o bem estar espiritual se incorpore
em definitivo ao seu panorama mental. Nossa tática de
trabalho doravante, consiste em despertá-lo para a
realidade do mundo após a morte e depois propiciar-lhe
uma confabulação consigo mesmo, diante dos sucessos e
fracassos da experiência carnal, permitindo-lhe a colheita
das preciosas lições que a vida lhe ofertou para a conquista
da saúde espiritual. Se necessário, empreenderemos novos
mergulhos em passado ainda mais remoto, procurando
entreter as reais justificativas para as dores que a existência
carnal lhe impôs e as verdadeiras motivações das tarefas
que cumprira na Terra.

-- Como é delicado o processo de reestruturação de uma


alma em desequilíbrio! Ainda temos muito trabalho pela
frente, quero crer...

-- Sim, Adelaide, ainda estamos em meio à cirurgia psíquica


de nosso amigo. Cortamos-lhe os tecidos da alma e vemos
agora a necessidade de aprofundar mais as incisões, a fim
de fazer drenar os ofensivos fleimões que lhe injuriam a
alma, amontoados em regiões mais recônditas. Depois nos
competirá ainda costurar as malhas abertas e ajuda-lo na
cicatrização das feridas emocionais. Eis delineado nosso
roteiro de serviço. Mas não se desalente, não fazemos mais
do que nossa obrigação. Se hoje possuímos o psiquismo
aparentemente em paz e desfrutamos certo equilíbrio
interno, devemos isso ao esforço ingente de amigos
espirituais que trabalham constantemente em nosso

200

benefício, sem que atentemos para o fato. Por isso,


empenharmo-nos com afinco no socorro a Alberto ou a
quantos vierem necessitar de nossa modesta ajuda é
apenas pagar à vida o que lhe devemos. E, ainda como você
sabe, todos estamos propícios a cair em perturbações quais
as que motivaram a infelicidade de nosso companheiro e
poderemos necessitar, por nossa vez, de iguais cuidados no
futuro.
-- Vimos que ele se empenhou em tarefas bastante
arrojadas quando na carne, e alimentou uma depressão de
sérias consequências ao longo de extenso período de vida,
depois de viver tamanhas glórias. Podemos compreender,
nesse caso, que tal enfermidade e os desgastes dos
constantes riscos a que se expunha na vida são os
responsáveis pelos seus sofrimentos atuais?

E assim não seria de se admitir que foi a depressão que o


levou ao suicídio?

-- Convém estudarmos com mais detalhes a delicada


questão, Adelaide. Adentremos um pouco na inquirição
dessa intrigante patologia da alma, a depressão,
considerada como a causa de muitos padecimentos
humanos. Nosso Alberto de fato é tido na Terra como
alguém que sofreu as consequências de uma grave e
inexplicável depressão nervosa que o teria mesmo levado
ao autoextermínio, responsabilizando-se por todo o seu
drama.

Outros imputaram à doença da degeneração mielínica


(Conhecida como esclerose múltipla) a causa de todos os
seus transtornos. Como vemos, a medicina materialista
ainda teima em considerar o homem vítima de indômitas
perturbações biológicas que o subjugariam, impondo-lhes
imerecidas e injustificáveis dores por mera obra do acaso.

A fim de compreendermos a verdadeira etiologia da doença


depressiva, situando-a no cortejo das forças endógenas que
movem o espírito e aplicar tal conhecimento para entender
os enfermiços movimentos emocionais que abalaram a vida
de nosso amigo, convém demorar um pouco no estudo da
dinâmica das pulsões que fomentam o nosso psiquismo.

Como sabemos, todo dinamismo que impera no ser, seja o


conjunto das energias que modelam o perispírito ou os
impulsos que estruturam e sustentam o mundo orgânico,
emana da força mental, potência suprema a serviço do
espírito em evolução.

Força que é um composto de oscilações energéticas


projetadas pelo “eu” espiritual, qual vórtice de irradiações
tecidas ao seu redor, configurando-se como um fulcro
essencialmente dinâmico, adensando-se no meio em que se
projeta. Detendo em si todo o poder da criação sua máxima
pujança não pode ainda ser

201

estimada, cientes de que utilizamos no momento, uma


ínfima parte de seu inapreciável potencial divino. A própria
matéria que nos sustenta, seja a do corpo físico ou a do
corpo perispiritual, é expressão diferenciada de
adensamento desse poderoso fluxo dinâmico, motor do
universo.

Tal força magna da vida, sendo uma expressão energética, é


regida pelos mesmos princípios que orientam todos os
impulsos dinâmicos que movem e sustentam o mundo
físico, pois a Vontade Divina se exprime com leis unitárias
que igualam em qualidade todos os seus fenômenos,
diferenciando-os apenas em níveis quantitativos de
manifestação. E toda energia, por propriedade intrínseca de
sua natureza,, é um composto de oscilações

ondulatórias

de

potencialidades

inversas

complementares a que chamamos de fases, atributo


indispensável do seu existir. Se em uma onde há a
predominância da fase dita positiva, ela tem caráter
expansivo, irrompendo-se em irradiações. Ao contrário, se a
domina a fase oposta, a negativa, ela se contrai, gerando
trabalho de intenções exatamente opostas ao primeiro
movimento. Da harmonia entre estes dois impulsos em
oposição, nasce toda a fenomenologia da criação.

Uma galáxia gera matéria em seu cerne por condensação


energética, para depois expeli-la por expansão
compensatória em seu primeiro movimento. Uma estrela,
filha das mesmas leis, repete o mesmo movimento,
contraindo-se para fundir matéria que então se expande,
por força de reação, em irradiações luminosas e caloríficas,
sustentando mundos. Na intimidade atômica, da mesma
forma, a matéria adensa energia até o seu máximo de
condensação, para depois irradiá-la como radioatividade,
desintegrando-se para morrer.
Assim se revelam os fenômenos da criação que, em
qualquer de suas expressões, oscilam entre duas
potencialidades de intenções opostas e complementares.
Aspecto que faz de toda substancia uma unidade dividida
em partes opostas, compondo o dualismo universal.
facilmente identificado em todo o cosmo. A ciência, em
todos os tempos, reconheceu esta dualidade nas
manifestações da natureza. Na íntima composição da
matéria ela a enxergou na unidade atômica, vendo-a um
composto bipolarizado em uma eletrosfera negativa e um
núcleo positivo. Na energia, entreviu o movimento ondulado
dividido em duas fases distintas e alternantes. O
pensamento filosófico, perdido nos tempos milenares do
conhecimento chinês, identificava a existência de duas
forças em oposição, yin e yang, atuando nos seres vivos. O
decréscimo de uma, pressupondo o acréscimo da

202

outra, dentro de uma unidade complementar e polarizada,


pensamento esse que consubstanciou a filosofia do
Taoísmo, do Confucionismo e da Acupuntura até os tempos
modernos. No mundo ocidental, Anaximandro de Mileto
identificou que a separação dos contrários, em eterno
movimento cíclico, gera tudo que existe. A fisiologia, assim
que nasceu, enxergou também no metabolismo orgânico,
uma alternância de dois movimentos opostos, o anabolismo
e o catabolismo, responsabilizando-se no mundo biológico,
pelo crescimento e pela degeneração, pela vida e pela
morte, respectivamente. A psicologia, em uma de suas
visões, divisou também duas pulsões operando na
intimidade do inconsciente, as tendências do instinto erótico
e as do instinto tanático, o primeiro caracterizando o amor
construtivo, o segundo a imposição da destruição e da
morte. Seguramente essas forças concebidas por todos eles
são o reflexo do dualismo universal a se expressar na
existência de qualquer fenômeno, seja físico, energético ou
psíquico.

Esse dualismo, fruto da unidade bipartida, embala todas as


substancias do universo em um ritmo próprio de
crescimentos e destruições. Dois movimentos que se
abraçam, sustentam-se e se complementam no divino
dinamismo da criação, fazendo de todo fenômeno um ato
polarizado em duas fases opostas, a expressar-se como uma
dança de impulsos contraditórios. No mundo moral, o bem
se alterna com o mal e a alegria com a dor.

No reino biológico, a vida com a morte, a saúde com a


doença, a vigília com o repouso, o crescimento com a
decrepitude, o anabolismo com o catabolismo. No plano
físico, o caos com a ordem, a sombra com a luz, o positivo
com o negativo, o dia com a noite. A razão da existência do
fracionamento da potência criadora neste dualismo de
oposições é estudada no plano em que vivemos, porém não
é motivo de nossas inquirições no momento, extrapolando
os limites destes modestos relatos.

Portanto, a força mental, em última análise, não poderia


deixar de ser também uma pulsão de igual comportamento.
Ela se contrai e se expande em obediência à sua própria
essência, impondo seus ritmos a todas as manifestações
que se lhe subjugam, ou seja, ao corpo psicossomático e ao
corpo físico. Por isso, estes são também unidades pulsáteis,
constituídas de fluxos alternantes de expansão e contração,
de crescimento e degeneração. Dilatando ou contraindo-se,
o ser vivo repete assim, os mesmos movimentos que
embalam todo o universo, o bailado cósmico, caracterizado
na mitologia hindu pela dança de Shiva.

203

Na matéria orgânica, assistimos a esses dois movimentos


determinando ritmos periódicos e alternantes de construção
e destruição. A biomassa nasce, desenvolve-se , para depois
degenerar e morrer, formando e quebrando-se em seu
constante e desassossegado metabolismo, feito de fases
anabólicas e catabólica. Por isso o ser vivo alterna repouso
com atividade, crescimento com degeneração, vida com
morte, movimentos impostos pela força mental que o dirige.

O psicossoma, como veículo essencialmente energético, não


poderia deixar de ser o primeiro a responder a essas
oscilações impostas pela força mental, e por isso, como
vimos, ele se contrai e se expande. Isso faz do corpo
perispiritual uma unidade consubstanciada por um equilíbrio
de energias opostas de expansão e de contração, de cuja
troca de impulsos se origina o seu dinamismo vital. Assim é
que o vemos expandir-se após a morte física e contrair-se
nos instantes que antecedem a reencarnação, da mesma
forma que vemos o corpo físico crescer após o
renascimento, para degenerar e derruir-se na iminência da
velhice e do falecimento.

Dessa maneira, através da intermediação das energias


psicossomáticas, a força mental se manifesta no mundo
fenomênico da forma, tecendo para o espírito a sua
vestimenta energética e física, embalada pelos seus
mesmos ritmos, impondo-lhe o seu funcionamento cíclico de
crescimento e decrescimento.

Ritmos que criam o reciclar da vida em todas as suas


expressões e, se permitem em si mesmo a morte, é para
que o arcaico se renove na constante restauração de todos
os valores do ser. No mecanismo da evolução, o velho
precisa ser destruído para que o novo se construa,
promovendo-se o aperfeiçoamento constante do espírito.
Por isso o impulso de renovação está em permanente luta
com a tendência de conservação. Sem esse ritmo, a vida
não estaria sujeita ao progresso permanente e o existir não
seria possível no substrato da matéria, obstaculizando-se
em definitivo o evoluir. Em decorrência desse fato é que
admitimos a necessidade da destruição no seio de uma
criação permanentemente renovada.

O espírito em evolução é, portanto, uma unidade oscilante,


alimentado por forças bipartidas de contração e de
expansão, embalando-o qual onde de fases positivas e
negativas, o que lhe caracteriza a caminhada por ciclos. A
dinâmica da personalidade

– a consciência, o pensamento e a vontade – operando na


intimidade do ser, oscila igualmente na permanência entre
estes dois polos, em equilíbrio instável de ciclos
complementares e

204
opostos. Viver na alternância entre a positividade e a
negatividade, é a única possibilidade de existir no plano de
instabilidade em que nos projetamos.

Tais ritmos se manifestam também no Mundo Espiritual em


que nos situamos, pois as mesmas leis cósmicas que
sustentam a vida na matéria, entretecem e conduzem
igualmente a nossa existência. Por isso o psiquismo e o
perispírito, onde quer que se manifestem, na carne ou fora
dela, são embalados pelos mesmos impulsos de retraimento
e refazimento, submetidos ao mesmo metabolismo
evolutivo cíclico.

Para melhor compreender esta dinâmica do espírito e sua


reverberação no psiquismo e seus veículos, compararemos
o seu movimento ao de um pêndulo, que se agita em
oscilações constantes entre dois extremos. Em um polo, que
chamaremos positivo, domina o crescimento do ser,
arregimentando valores, em atividades de acréscimos e
expansão rumo à Divindade. No outro, o negativo,
prepondera a quietude, o repouso, recolhendo-se o “eu”
para o seu interior, permitindo-se assim a elaboração e o
amadurecimento das conquistas amealhadas. Na aventura
de construção de si mesma, a consciência dilata-se para
assenhorear bens, para depois se contrair e amadurecê-los
na aparente quietude, em desassossegado e recorrente
frêmito de mutações.

Eis a intimidade do funcionamento cíclico do espírito, na


carreira rumo à perfeição.
Assim segue a vida em ondas de ascensões e descidas
periódicas, mas com ganhos constantes na aquisição do
progresso, pois as retrações recorrentes nunca são
suficientes para fazer deteriorar e perder os valores
solidamente arregimentados pelo ser. Fases dinâmicas que
se alternam no exercício da vida, como norma do existir nas
dimensões atuais em que nos encontramos. Admitimos, na
atualidade e no plano em que nos manifestamos, que a
sujeição a estes ciclos é provisória e um dia findar-se-á,
quando nos libertarmos das sucessões de nascimentos e
mortes, abandonando definitivamente a existência na
matéria, ao adquirir a condição de espírito puro. Patamar
que, se vislumbramos como uma realidade, ainda é motivo
de conjecturas e suposições por se achar bastante
distanciado de nossa condição atual de discernimento.

Viver estes impulsos antagônicos faz parte do processo


natural da vida, e respeitar os seus limites é manter-se na
saúde e equilíbrio máximos que nos é permitido amealhar.
Contudo, no exercício do livre arbítrio, dado ao ser que
atingiu a maioridade, pode o mesmo ultrapassar, em certos
patamares, as zonas de

205

normalidade, estendendo pretensões expansivas para além


de suas naturais barreiras. Antecipando a glória a que faz
jus, o espírito em evolução anseia viver permanentemente
na máxima expressão de seus atributos natos, sem
aguardar que o paulatino crescimento e a meritória
aquisição de conquistas o projetem na plenitude da
potência para a qual foi criado. A busca da felicidade, maior
estímulo que justifica o existir e a herança genuína do
Criador, leva-o também a pretender a todo custo, a
plenipotência de suas faculdades, como se ultrapassar as
contingências naturais do crescimento fosse a única
possibilidade para o máximo prazer do “eu”. Por isso,
exceder todas as medidas que nos cerceiam, constitui a
motivação básica da rebeldia que caracteriza o espírito nos
baixos níveis evolutivos da consciência.

Exercer o egoísmo inadequadamente, enaltecer o próprio

“eu” sem barreiras, projetando-se como o maior dos seres


da criação; vangloriar-se e ser idolatrado como a máxima
realização da Divindade, para depois competir com o
próprio Criador; submeter os semelhantes aos seus próprios
interesses e fazer da existência motivação única para a sua
felicidade: eis a doentia utopia que move o espírito rebelde
nos patamares involuídos da vida, o egoístico sonho de toda
criatura ainda distanciada da realidade da Lei Divina.
Doença básica, identificada na raiz de todas as dores e
dramas humanos em todos os tempos do passado e do
presente. Eis porque impor limites ao egoísmo e estabelecer
o amor ao semelhante são os pilares sagrados do
ensinamento evangélico. Em nosso plano de estudo, tal
inadequada expansão da força mental é denominada
hiperegotismo, ou seja, o exagerado crescimento do ego. No
exercício do hiperegotismo o ser utiliza atitudes e
empreende hábitos que em seu conjunto são chamados
hiperpsiquia, caracterizada

por

grande

determinação,
exagerada

autoconfiança , exaltada busca de prazeres e desmedida


presunção, expressando-se a arrogância em toda a sua
pujança.

Como se pode entrever, o hiperegotismo é doença que nos


acompanha há tempos na jornada da vida, tendo-se
incorporado como um hábito em nossa personalidade.
Reflexo herdado da vida animal que nos entreteve por longo
período, o exercício pleno do egoísmo ainda nos abasta o
“eu” de falazes alegrias.

Superar os demais em todos os aspectos, ser maior por


simples deleite da vaidade, é sabor intensamente almejado
por todos os anseios humanos em todos os tempos, mesmo
que para isso seja preciso roubar a alegria alheia e semear
infortúnios, pois liquidar aqueles que nos obstaculizam a
cobiça sempre justificou os mais

206

bárbaros atos. Por isso a motivação excitante de todas as


maldades empreendidas pelo espírito na jornada dos
séculos sempre se baseou nos arroubos do egoísmo e do
orgulho. Ao examinar a grave questão e trazendo à baila
toda a história da humanidade, vemos que a hiperpsiquia
esteve sempre impulsionando todas as aventuras e
desventuras humanas, abandonando todos os seus ímpetos
destrutivos com o único propósito de elevar seus
protagonistas a patamares inadequados e enfermiços de
megalomanias.
Não fossem os naturais óbices que a Sabedoria Divina nos
impõe, não haveria fronteiras para a arrogância do espírito
involuído. Arrogância que continua sendo a motivação
básica de nossos interesses doentios, onde quer que nos
expressemos, na carne ou fora dela, alimentando-nos o
psiquismo hiperegótico com permanente desejo de projetar-
nos acima dos demais.

Sentimento que sustenta a competitividade, chaga da


sociedade que, qual erva daninha, corrói os valores da
bondade, semeando todos os males possíveis. Tal impulso
serviu ao ser numa época em que ele, ainda inconsciente,
necessitava da luta feroz, chamada seleção natural, para
despertar sua razão, porém passou a ser contraproducente
e indutora de sofrimentos quando ele cresceu, tornando-se
consciente de suas responsabilidades perante os irmãos de
jornada. A necessidade de sobrepor a própria personalidade
acima dos demais ainda supera a fraternidade genuína e
lustrar o brilho pessoal da vaidade justifica erroneamente
todos os males dos sentimentos. Se nos tempos modernos a
força bruta paulatinamente vem perdendo sua utilidade, as
armas sutis da astúcia permanecem ativas, sempre prontas
a solapar os valores alheios, a serviço ainda da mesma
exaltação enfermiça do “eu”.

Os males do hiperegotismo não se restringem à imposição


de dores ao outro, mas é capaz de trazer graves prejuízos
para o seu protagonista, que, acreditando amealhar
vantagens em suas vãs vitórias, na verdade colhe prejuízos
para si mesmo. Em um primeiro momento, depois de
aparvalhar o espírito de estouvada satisfação, a força
mental inadequadamente hiper-impulsionada irá
embalar

as

energias

perispirituais,

dinamizando-as

inadequadamente. Instala-se a hipertrofia, caracterizada


pela exaltação desmedida de todos os veículos da força
mental. Todo o organismo é acelerado por exasperados
estímulos que levam à imprópria e exagerada excitação do
sistema límbico e dos núcleos encefálicos, com consequente
superativação de todos os sistemas orgânicos a ele
subordinados.

207

No perispírito irá determinar hipertonias destoantes a se


refletirem

em

dismorfias

cumulativas

no

corpo

físico,
caracterizando os hiper-funcionamentos orgânicos e as
hiper-formações celulares de toda e qualquer natureza.
Crescimentos teciduais inadequados gerando tumores, os
mais diversos, insidiosamente

se

instalam.

Exagerados

funcionamentos

glandulares se apresentam como resposta adequada à


inadequada hipertonia perispiritual, doentiamente
sustentada e embalada pela arrogância. As patologias
hipertróficas catalogadas pela medicina terrena são
realidade inquestionável do corpo físico, refletindo a
natureza hipertônica das forças espirituais, doentes de
soberbia. Embora a ciência da Terra busque justifica-las em
aleatórias adulterações genéticas, não há outra etiologia
para o desequilíbrio da carne, mero espelho onde se reflete
a alma humana, senão as forças desequilibradas do próprio
espírito. Movimentos que no entanto, além de
representarem simples reflexo das incontidas forças
perispirituais hipertróficas, são vias de solução e
compensação das distonias mentais, uma vez que seus
potenciais desequilibrantes são desviados para as vestes
superficiais e provisórias do espírito.

Estampando no corpo físico a mesma errônea intenção que


enodoa a alma, devolve-se ao ególatra, em forma de dores,
seus equívocos de condutas e sentimentos, propiciando-lhe
a colheita das sábias lições da vida, a fim de que o mesmo
aprenda a viver no necessário equilíbrio de suas poderosas
forças psíquicas.
Uma vez, contudo, atingida sua máxima capacidade
hipertrófica, as forças espirituais dilatadas iniciarão a
inevitável retração compensatória. Dilatando-se o pêndulo
psíquico para um de seus lados, o movimento compensador
e de direção oposta surge como necessidade, imposta pela
lei de equilíbrio, que pede a toda ação uma reação de igual
intensidade e sentido oposto. O hiperegotismo se
compensará com o movimento oposto, ou seja, a inevitável
e acentuada contração da força mental. A retração psíquica
será também exacerbada, carreando consigo todas as
energias perispirituais e físicas, situando-as nas antípodas
das intenções inicialmente pretendidas pelo ser,
posicionando-o no hipoegotismo. A personalidade se
embalará de completa depleção de suas potencialidades. O

sabor das errôneas vitórias se torna pesar, configurando o


que denominamos hipopsiquia e na Terra se identifica como
os distúrbios depressivos. Todo o organismo se veste de
doentio hipodinamismo, respondendo o mundo celular com
a hipotrofia e a degeneração de toda sua potencialidade. O
funcionamento

208

orgânico torna-se deficiente e a perda de massa celular é


resposta condizente com o mesmo padrão hipotônico das
forças perispirituais.

A arrogância perde sua expressão e o ególatra, de sua


exaltada posição de valia, precipita-se, embora não o
desejasse, na deterioração dos bens roubados da vida,
configurando-se a derrocada da autoestima. O orgulho se
humilha na menosvalia e a alegria foge da alma. As
angústias que habitam os recessos profundos do involuído
despertam, convocadas para a sua educação, corroendo
todos os seus valores errôneos. O desânimo grassa terreno,
o crescimento desmedido, por ação reativa, é forjado ao
recolhimento e à contração.

Embalado aquém de seus limites naturais, o ser termina por


aviltar todos os patrimônios indevidamente amealhados.

Reconheceremos portanto, que as causas reais e profundas


da depressão se encontram nos abusos do poder, na
egolatria, na vaidade e na doentia exaltação do ego.
Partindo da arrogância e seus exaltados movimentos,
compreenderemos facilmente a fisiopatologia em vigência
na depressão. A depleção de todos os recursos orgânicos e
psíquicos que caracterizam essa patologia é consequência
natural dos abusos do amor próprio na aventura da vida. O
desvalimento é a colheita obrigatória dos excessos
empreendidos, vicejando a menosvalia onde existiu a
supervalia (Neologismo próprio do tema, inserido em seu
contexto.). Movimento de igual intensidade e sentido
contrário da altissonante expansão anterior. E toda a
maldade que o ser empreendeu para manter o enfermiço
patamar de arrogância o levará, em igual potencialidade,
para o polo oposto de suas intenções, forçando-o à colheita
das dores semeadas e à aparente perda dos valores
angariados no jogo da vida. A alegria feita de penúrias
alheias se tornará tristeza, caracterizando a depressão em
suas múltiplas manifestações na espécie humana. Eis em
última análise a causa dessa enfermidade, doença
responsabilizada pela inibição do potencial humano, mas
fruto de seus próprios desequilíbrios e imposta a ele por lei
de compensação. Não admitimos, na atualidade de nosso
conhecimento, outra possibilidade de compreensão para a
etiologia de tal doença, justificando a sua existência e
necessidade.

Aquele que se sente carente de valores pessoais e vive


premido por angústias depressivas inexplicáveis, encontrará
sempre, em prévia e aparatosa exaltação orgulhosa do seu
“eu”, a causa da inaparente contração de sua
personalidade, identificada comumente, em justaposta
existência anterior.

Compreendemos assim que o egoísmo e o orgulho são, de


fato, as verdadeiras chagas do espírito e os fatores
etiológicos da depressão e do suicídio. Não digamos,
portanto, que a depressão acomete o homem como se ele
fosse mera vítima de suas angustiosas e inexplicáveis
patologias. Uma lei dirige-nos a todos, conferindo alegrias e
dores conforme as semeemos no campo de nossas ações
psíquicas. A dor pertence sempre à colheita e nunca é por si
só a causa primeira de nossos males, pois não somos
imolados pelo acaso, mas por nossa

209

própria rebeldia diante das Leis Divinas. Aquele que já nasce


com a personalidade carente de valores pessoais,
necessários à vida, semeou ações e intenções opostas,
determinantes de tal condição, em existência anterior.
Quando, entretanto, o embalo hipertrófico é por demais
exaltado, a hipopsiquia reativa se encaminha
inevitavelmente para a Psicólise, ou seja, para a ativação
dos mecanismos autodestrutivos do ser. A exaltada força
vital se converterá em impulso antivital. O

potencial divinizante da vida será negado, embora o ser não


o queira.

O desejo de morte, de modo intrigante, instala-se no


espírito, de forma consciente ou não. De outra maneira não
se poderia explicar a existência de tão antagônico
sentimento, passível de se estabelecer em um ser que foi
criado sobretudo para a vida. Em desmedida contra reação,
as forças mentais mal conduzidas irão se impor contra o seu
próprio protagonista. E, no Plano Espiritual, quando é
sobremaneira intenso o primeiro movimento que motivou a
hiperpsiquia, o desvalimento da personalidade caminhará
para a catatonia, a catalepsia e a apsiquia, ou seja, a
completa inibição do metabolismo da consciência,
caracterizando no desencarnado, a morte ovoidal, fim da
malfadada aventura da arrogância humana.

Embora a fisiopatologia da arrogância se reverbere


naturalmente na continuidade da vida após a morte,
exaltando o impulso autodestrutivo, este jamais conduzirá à
completa derrocada do ser. A substancia da vida, patrimônio
do Criador, não pode ser anulada pela criatura, os embalos
da poderosa força mental não podem se deter jamais e o
espírito não consegue de fato destruir-se. Ele se erguerá,
mais dia ou menos dia, para prosseguir na aventura do
viver, reconduzindo-se ao soerguimento de si mesmo, no
refazimento evolutivo e na busca de novos equilíbrios que
lhe facultem alegrias genuínas. Admitimos apenas como
fato teórico a possibilidade de sua completa anulação, com
o retorno da substancia que o compõe ao Seio Divino, pois a
dor, recurso de salvação da Lei, será sempre exaltada
diante da intenção auto catalítica, impedindo a sua
completa realização.

Depois que vimos a fisiopatologia da autodestruição,


podemos compreender agora que a depressão, a psicólise e
a ovoidização são fenômenos desencadeados pelo próprio
ser e se baseiam no dinamismo mórbido da arrogância, a
supervalorização doentia do “eu”

que deseja ser mais do que é, ir além de seus limites,


crescer e projetar-se acima do outro, terminando no oposto
de suas errôneas intenções.

Toda felicidade roubada do bem estar alheio, que deprime e


menoscaba o próximo a quem deveríamos aprender a
exaltar, é-nos devolvida na mesma medida da
desvalorização imposta, sendo a motivação maior para a
nossa própria desdita, causa primária dos transtornos
depressivos. Não há etiologia possível na equilibrada Lei
Divina para dores que, de outra forma, não se justificariam.
Mesmo as diversas circunstancias que forjam o abatimento
na alma humana, como as grandes decepções, as perdas
afetivas e os insucessos

210

variados sempre possíveis no jogo da vida, se são capazes


de conduzirem-na à grave contração depressiva, estão
subordinadas às mesmas leis que ofertam destinos em
conformidade com as semeaduras e dores, segundo a
necessidade de correção dos abusos.

O que atesta que as causas da depressão estão nos


desacordos com a Lei é o fato de que o deprimido, sem uma
aparente causa que o justifique , sente, repentinamente,
como se todas as forças do universo estivessem contrárias a
ele, sem entender que, na verdade, ele é que se antepôs a
elas num primeiro momento. Depois de semear arrogâncias,
as florações da depressão vicejam nos terrenos da alma
como ervas daninhas, impondo a obrigatória colheita das
mesmas humilhações espargidas nos campos da vida. Eis
porque o egoísmo definha e o orgulho retrai na contração
reativa das energias que sustentam o ser. Eis porque a
mensagem da Codificação Espírita nos revelou que o
egoísmo e o orgulho são os maiores obstáculos ao
progresso, e as entidades superiores que nos instruem
jamais deixaram de nos alertar quanto aos perigos da
soberba. A sagrada doutrina é pródiga de mensagens nesse
sentido, especialmente o Evangelho Segundo o Espiritismo,
dentre as quais podemos citar as sábias palavras do espírito
Adolfo, sempre lembradas em nosso plano, alertando-nos de
que “quando o orgulho chega ao limite, tem-se o início da
queda. De tempos em tempos Deus nos envia golpes para
nos advertir, contudo, se ao invés de nos humilharmos,
revoltamo-nos, então, uma vez cheia a medida, Ele nos
abate completamente e tanto maior é nossa queda quanto
mais alto tenhamos subido” (Questão 785 do Livro dos
Espíritos e Cap. VII do Evangelho Segundo o Espiritismo).

Várias
consequências

da

arrogância

podem

ser

reconhecidas na psicopatologia humana. A perda da


autoestima advém sempre, como reação, da excessiva
valorização de si mesmo. A insegurança, a timidez, de
doentia autoconfiança. A carência é fruto da ambição
desmedida. O pesar, da alegria roubada de outrem. Toda
angústia é a reverberação de um sentimento de maldade. A
coerção vem da rebeldia irrestrita. O

martírio da culpa se origina do ato inconsequente. O

esgotamento, do abuso das forças. E, portanto, o que faz


demisso o homem é sua própria soberba. Estejamos certos,
não há sofrimentos injustificáveis na Lei Divina e ninguém
padece melancolias sem antes tê-las semeado nos corações
alheios.

Eis delineada, em rápidas considerações, a real causa da


depressão humana e suas graves consequências.
Sofrimento que

211

se impõe por força de lei compensatória e que


responsabiliza o próprio espírito como seu protagonista.
Esta a razão, enfim, por que o Mestre nos asseverou com
clareza que “todo aquele que se exaltar será humilhado.”
(Lucas, 14:11)
212
21
capítulo

DEPRESSÃO:
TEMPO DE COLHEITA NO
CAMPO DO ESPÍRITO

“E ele, sentando-se, chamou os doze e lhes disse: se


alguém quiser ser o primeiro, será o derradeiro e o servo de
todos.”

Jesus – Marcos, 9:35

Adelaide admirava-se da irretorquível lógica nascida das


reflexões que aventávamos, pois confessava que jamais
pensara em tais possibilidades nas abordagens que trazia
da Terra, a respeito da depressão e suas ignaras causas.

-- Convém esclarecer, minha amiga – disselhe com


sinceridade – que estas considerações não são frutos de
minhas modestas perquirições, porém conjecturas
entretecidas ao longo dos estudos empreendidos por
adiantados instrutores de nosso plano. Eu apenas lhe
transmito o que me ensinaram, e nada posso acrescentar
além do que me foi permitido apreender e observar como
correlato da realidade. Ensinamentos que na verdade, não
trazem novidades, pois Jesus, em sua sabedoria, já nos
enfatizava os perigos da arrogância. O Mestre não perdeu
oportunidades de nos ensinar que o egoísmo e o orgulho,
são as verdadeiras chagas da humanidade, responsáveis
por todas as nossas dores, apregoando o amor ao
semelhante não só como a maior das virtudes, mas como
indispensável recurso à saúde do espírito. Não somente o
bem nos cabe empreender ao máximo pelo próximo, mas a
própria projeção a que aspiramos para o nosso “eu”, deve
ser igualmente desejada para nossos companheiros de
jornada. O

brilho pessoal, sucesso e vitórias, são atributos que nos


agradam naturalmente conquistar, mas são alegrias que
necessitam ser igualmente compartilhadas com os nossos
semelhantes, e não podem se sustentar na coerção, nas
derrotas, e infelicidades alheias. Eis a extensão dos
preceitos evangélicos que não nos convém ignorar mais. As
disputas humanas precisam ser equilibradas por estes
sábios princípios, se queremos desfrutar

213

felicidades reais e justas e estabilizar nossa força mental na


saúde máxima possível. Não são meras motivações morais,
porém expressões de uma lei que se impõe por vontade
divina, e que visa sobretudo equilibrar o jogo das poderosas
energias que sustentam nossa personalidade. Tais
conclusões são bastante evidentes quando examinamos a
vida do lado de cá, Adelaide, mas para os espíritos na carne,
o óbvio é imperceptível e precisa ser salientado.

-- Compreendo. Não podemos conceber Deus como um pai


que tolere a desigualdade entre seus filhos. Numa criação
cuja lei é equânime, todos detém autêntica potencialidade
de realizações.
-- Fidalgos e vassalos em todos os tempos invertem os
lugares que ocupam na vida, exatamente por força dessa
lei. Fracos e forte, déspotas e dominados, verdugos e
vítimas, exploradores e injustiçados continuam alternando
posições de dores e ódios ao longo da estrada da vida, até
que aprendam verdadeiramente a se equilibrarem na lei do
amor. Todos são iguais aos olhos do Pai, e não pode haver
derrotados e vitoriosos na criação.

-- Crescer, porém em humildade e simplicidade. Renunciar


às glórias do personalismo ufano, exaltar o outro e não a si
mesmo, compreendo...

-- Não há dúvida de que Deus nos criou para esplendores


inimagináveis, e de que somos herdeiros de seus poderes.
Estamos porém, em um universo onde todos são irmãos, e
todos encontram iguais condições de se destacar, por isso
somos regidos por uma lei que não tolera que uns se
sobressaiam às custas do decesso de outros. Atingimos a
maioridade do espírito, e não podemos mais negar essa lei,
exigindo-nos novo regime de vida, felicidades e conquistas
que não se apoiam na desgraça alheia, e grandezas que não
menoscabem a realeza divina que cada um detém consigo.
“Não façais tocar trombetas diante de vós como fazem os
hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serdes glorificados
pelos homens”, ensinou-nos o Mestre. A sabedoria do
Evangelho é bastante incisiva neste aspecto, para que
duvidemos desses conceitos.

-- Inibir a arrogância! Eis enfim o segredo máximo do


equilíbrio espiritual. Parece tão simples...
-- Sim, minha amiga. Recordemos especialmente aquela
passagem em que os discípulos retornavam de Cafarnaum,
procurando pelo Mestre. O Senhor, havendo percebido que
no caminho vieram discutindo qual dentre eles era o maior,
chamou-lhes a atenção dizendo-lhes que “no reino de Deus
o maior é

214

aquele que se faz o menor de todos”. Essa importante lição


ainda se aplica perfeitamente aos nossos dias, Adelaide.
Nos caminhos da evolução continuamos discutindo quem é
o maior entre nós, por isso, as disputas de hegemonias
grassam em intermináveis jogos de supremacia, às vezes
sutis, porém sempre cruéis. Os regimes de permanentes
competições deterioram todas as nossas relações. Onde
quer que nos reunamos, as francas ou dissimuladas
disputas de superação de uns sobre os outros tomam lugar,
como se toda a felicidade possível residisse na capacidade
de nos sobrepor aos demais. Aquele que se destaca por
méritos, justificados ou não, é sempre alvo de nossas
antipatias gratuitas, determinadas pela nossa inveja, e
estamos sempre prontos a açambarcar, unicamente para o
próprio deleite, o brilho pessoal que o outro parece nos
roubar. Dominar e sobressair-se são as motivações
silenciosas que nos movem no exercício das relações
humanas, nas mais variadas expressões do comportamento,
origem permanente, não só de intermináveis altercações e
cisões, mas sobretudo de dissabores e dores. Tal é nossa
natureza ainda recalcitrante, Adelaide. Como não
aprendemos até hoje a praticar a justa medida do amor ao
semelhante, natural que diante da lei soframos as
consequências de nossas doentias pretensões, pois ainda
não somos capazes de desejar realmente para o próximo, a
mesma exaltação que almejamos para a própria
personalidade. E para isso torna-se imprescindível a inibição
de toda a arrogância que nos caracteriza os hábitos do
caráter, com todo o seu cortejo de egoísticos interesses, em
detrimento da instância alheia. Em síntese, nosso amor ao
semelhante deve ser tal, que nos permita desejar para o
outro, a mesma posição de glórias e exaltações que
buscamos para engrandecer-nos. Tornar superior o outro,
sem pretender diminuí-lo para que cresçamos. Esta é a Lei,
o desiderato que ainda não atingimos, mas que a evolução
nos convoca a conquistar o mais rápido possível. Somente
com a prática desse real amor ao semelhante, seremos
verdadeiramente grandes e felizes. Enquanto tal não se dá,
colheremos decepções e amarguras em forma de
enfermidades que oprimem o nosso “eu”, coagindo-nos à
diminuição das satisfações e dos valores erroneamente
acumulados.

-- Já somos capazes de inibir a maldade de nossas ações


contra os semelhantes, facilitar a vida daqueles que sofrem,
e compartilhar os bens que nos sobram, mas não atingimos
ainda a condição de ceder a importância que nos cabe em
favor do outro. Compreendo a extensão da lei...

215

-- Ambicionamos ainda ser maiores do que os outros, eis o


problema a ser superado, e Jesus cuidou de identificá-lo
com precisão. Entretecemos uma sociedade de
competições, baseada na ambição. Por herança do mundo
animal ainda fazemos do campo da vida, um palco de
permanentes rivalidades. E comumente, se não
conseguimos superar os outros, fazemo-los pequenos,
deprimindo-os pelo menosprezo, pela calúnia, ou pior ainda,
exterminando-os. Somente seremos verdadeiramente
grandes quando aprendermos a engrandecer o próximo,
sem deprimi-lo em prol da nossa própria vaidade.

Enquanto não assimilarmos esta lição que a lei nos pede


com insistência, estaremos predispostos à colheita de
nossas depressões, forjando-nos à humildade, ainda que
indesejada. Se menosprezamos os outros, somos coibidos
pelo sofrimento depressivo, a menoscabar a nós mesmos,
comprometendo a própria autoestima, na exata medida da
desvalorização imposta aos demais.

-- Recordo-me ainda de outra passagem do Evangelho, em


que a mulher de Zebedeu foi até Jesus, pedindo-lhe que
seus filhos Tiago e João, se assentassem ao seu lado quando
viesse o seu reino, pretendendo impor-lhes as melhores
posições, e fazendo-os maiores do que os demais...

-- E os outros discípulos, ouvindo-lhe o pedido de privilégios


e primazias, se indignaram, cientes de que estavam sendo
subestimados. Jesus então, identificando o perigo da
soberba, chamou-os em particular, transmitindo-lhes
novamente a mesma lição: “aquele que quiser ser o maior,
que seja o menor e último de todos”. Mais uma vez sua
sábia lição recomendando a inibição da arrogância, procura
precaver-nos dos sofrimentos que isso acarreta.
-- E nas bodas advertiu o Mestre dos perigos de se procurar
os primeiros lugares...- continuou a estudante, enchendo-se
de entusiasmo ao aprender o significado mais profundo da
sabedoria evangélica.

-- Sim, Adelaide, é inegável que Jesus conhecia


profundamente a natureza dos males humanos.
Infelizmente ainda não nos convencemos de que na vida de
relações, é maior aquele que se fez o menor, e sua lição
permanece inalcançável por não termos até então
reconhecido o seu valor. No exercício da humildade sincera
inibindo-nos os exaltados impulsos hipertróficos,
proporcionaremos equilíbrio à força mental, ajustando-nos
nos precisos limites que a lei nos comina. E nos faremos
grandes e realmente felizes pois nossa potência espiritual

216

equilibrada se dilatará adequadamente, tornando-nos


poderosos na criação. Eis o poder e a grandeza dos anjos,
Adelaide! Não os possuímos porque nos movemos ainda na
arrogância e no cerceamento que o egoísmo nos
constrange. O poder que a lei confere é proporcional a um
perfeito cálculo de bondade e responsabilidade, amealhadas
pela alma em crescimento. Se ainda não conseguimos
utilizar em plenitude os fabulosos poderes divinos que
detemos por herança paterna, deve-se ao fato de que ainda
não somos o bastante humildes e sábios para merecê-

los. Recordemos que Jesus, expressando a realidade dessa


assertiva, agradeceu ao Pai por ocultar o verdadeiro poder
aos grandes da Terra, revelando-o aos pequeninos. Assim é
que os sátrapas do mundo são forjados à parvidade, e os
módicos são enaltecidos sob o ensejo da lei tornando-se os
últimos, grandes em poder e alegria.

-- Então, a depressão em qualquer de suas variantes,


identificada pela medicina terrena, é sempre consequência
da posição de arrogância cultivada pelo ser, na aventura de
superar a si mesmo e aos semelhantes...

-- Exatamente. E nessa desvairada carreira de superações,


deprimimos a felicidade alheia, atitude comum a todos nós
que desejamos permanentemente ocupar posições acima
de nossas reais possibilidades. E quase sempre ainda,
exaltamo-nos diminuindo o outro, pois não podendo ser
mais do que ele, apressamo-nos a rebaixá-lo, ou até mesmo
a aniquilá-lo, caso se torne um obstáculo à almejada
posição de primazia. Justo que colhamos as dores do
desalento depois, pois guardemos a absoluta certeza, toda
felicidade sustentada pelo infortúnio alheio, é falaz
conquista do espírito, roubo indevido na lei de Deus, pronto
a se converter em meritórias melancolias e privações na
primeira oportunidade.

-- Compreendo a lógica desses raciocínios na etiologia da


enfermidade depressiva, mas não se pode negar a
influência das perdas diversas nesses transtornos.
Certamente os traumas psicológicos e suas frustrações, se
responsabilizam também pela gênese da enfermidade
depressiva. Quantos não adoecem por não suportarem o
peso de acerbas dores vergastando-lhes a alma frágil,
diante de danos afetivos ou prejuízos de qualquer natureza?
E não há espíritos que renascem já carentes de todos os
valores necessários para o sustento saudável da
personalidade? A insegurança, o temor, os sentimentos de
culpa, não são também indutores de transtornos
depressivos? Alberto não adoeceu em

217

decorrência de sua minguada compleição física, carente de


auto sustento?

-- Vejo que minha estudante está se tornando perspicaz na


arte de inquirir, deixando seu orientador em dificuldades.
Sei que são sinceros desejos de aprendizagem e são bem
vindos, pois muitas vezes o aprendiz, procurando apenas
menoscabar aquele que lhe ensina, deseja somente
defender o próprio orgulho, relutante diante da
incontestável posição de ignorância. Intenção que impõe
obstáculo à permuta do conhecimento, pois a humildade
sincera é a vestidura de todo aquele que deseja aprender, e
o que ensina deve sacrificar sua posição de mestre, no
desejo sincero de que o discípulo o supere na sapiência.
Sem que tais sentimentos embasem suas relações, a tarefa
de ambos estará fadada ao fracasso. Naturalmente que um
e outro caso, não são as motivações que nos entretecem a
relação neste momento, pois não me coloco no lugar
daquele que instrui, porém de mero veículo de transmissão
de tudo quanto me foi ensinado. Mas vamos ao que nos
interessa. Por força da lei, sempre justa e adequada às
necessidades de cada um de nós, não se pode jamais
imputar uma carência, como a causadora de nossos
sofrimentos. Toda privação foi precedida de excessos de
mesma natureza, e os constrangimentos que trazem, são
corretivos. A personalidade que não encontra em si mesma
os meios para se firmar como necessário na vida, perdeu-os
por abusar deles. Os tímidos e inseguros de hoje, são os
arrojados do passado. E a menosvalia identificada em nós, é
sempre a exata medida da desvalorização imposta ao outro.
Não guardemos a menor dúvida, todos os valores roubados
à felicidade alheia e frutos da arrogância, nos são
forçosamente tirados, a fim de suscitar em nós a correta
maneira de se praticar o viver.

Recordemos a lição do pêndulo. O desequilíbrio que se


instala na alma depois que a hiperpsiquia a remove de sua
estabilidade, exalta-lhe a suscetibilidade, deixando-a
passível de sofrimentos desmedidos diante das perdas e
danos da vida. Assim é que a intolerância às frustrações e
aos fracassos aumenta de forma indevida no espírito
hiperegótico, permitindo-lhe ferir-se por situações que de
outra forma, lhe seriam inócuas ou facilmente suportadas.
De modo que não há outra causa para a depressão, senão a
arrogância. Posição inclusive, que é a própria motivação
para que o indivíduo se exponha aos fatores que a suscitam.
Eis porque os mais suscetíveis às frustrações de toda
natureza, são exatamente os mais orgulhosos. Os mais
egoístas, mais apegados aos bens de toda sorte, são os que
menos toleram suas perdas. Os

218

mais altaneiros, são os mais sensíveis ao menosprezo e às


ofensas.
As grandes almas não se deixam ofender e nem se abater
por essas aparentes injúrias e quiméricas privações, por se
acharem em posição de superior compreensão e equilíbrio.
Portanto, se alguém sofre um transtorno depressivo,
induzido aparentemente por uma grande decepção, ofensa
ou perda, deve-se ao fato dele já trazer na personalidade, a
predisposição exaltada pela sua posição hiperegótica,
amealhada anteriormente. A dor é sempre consequência
das intenções e ações errôneas, e nunca dos males
humanos, estejamos absolutamente convencidos disso.

-- E a obsessão, considerada uma das causas dos


transtornos depressivos, não é evidência de que ela pode se
instalar por motivações externas?

-- Novamente devemos aplicar a mesma lógica que nos


dirige, Adelaide, admitindo que são as atitudes de agressão
do outro, na defesa de nossos interesses ególatras, que nos
fazem vulneráveis ao ataque de nossas mesmas vítimas,
transformadas em algozes, em nítida inversão de posições,
por força de reação diante da lei. E mais uma vez, é a
instabilidade gerada pelas intenções hiperegóticas, que
destrói as naturais barreiras defensivas de nosso mundo
mental, subsidiando-nos o assédio obsessivo, expondo-nos
ao subsequente e merecido esgotamento das forças
psíquicas.

-- Depois de tantas considerações, minha pergunta inicial


não mais se sustenta. Compreendo perfeitamente que não
foi a depressão que motivou o suicídio de Alberto...
-- Isso mesmo. As doenças não podem justificar os nossos
atos, simplesmente porque são nossos próprios atos
equivocados, que nos levam a adoecer. Compreendamos a
depressão de nosso amigo, como consequência de seus
excessos em todos os campos de expressão de sua
personalidade: vaidade desmedida, arroubos inadequados
de coragem, exibicionismo, orgulhosa intolerância aos
fracassos, excessiva confiança em si mesmo, e a busca
afanosa de glórias e conquistas, visando apenas ao
enaltecimento da personalidade. Eis a causa de sua
sensibilidade aos insucessos, e da guarida aos doentios
sentimentos de derrota que o martirizaram por longos anos
na vida, após a colheita das meritórias glórias, porém
inadequadamente vivenciadas. Eis em síntese, as razões de
seu transtorno depressivo. As forças mentais exaltadas se
contraíram, embalando-o na hipopsiquia que terminou na
catálise do próprio “eu”: o suicídio. As demais motivações
de seus pesares, como o descontentamento pelo uso do
avião na guerra, a sensibilidade à desconsideração de sua

219

pessoa, e finalmente a sua grande dor perante a perda da


primazia do pretenso invento, são cenários secundários que
o feriram em decorrência da exaltação da suscetibilidade, e
não podem ser, seguramente, imputados como causas
primárias de seu processo enfermiço. O quadro neurológico
aventado como neurastenia, se depreende como natural
desgaste das energias nervosas, submetidas a excessivo
autocontrole em suas arriscadas aventuras aéreas,
empreendidas sobretudo, no esforço de sobrelevar-se acima
do homem comum. Após sua morte, com a identificação de
alguns focos de desmielinização na intimidade do sistema
nervoso central, historiadores encontraram enfim, a que
imputar as desditas do mito nacional, resguardando-o
assim, da ignomínia do ato suicida. A esclerose múltipla,
reconhecida patologia do sistema nervoso central descrita
nos compêndios médicos, embora de natureza ignorada,
justificaria suas descabidas condutas, indignas de um herói.
Aqui no entanto, perante a inquestionável realidade do
espírito, não podemos deixar de concluir que, mesmo a
degeneração neurológica ensejada como justificativa para
seus males, é consequência e não causa de suas
fatalidades. A hipopsiquia, quando levada à maior
magnitude, incidindo na intimidade da própria organização
neurológica, é capaz de induzir a processos degenerativos
importantes, que facilmente podem ser encontrados em
quadros depressivos graves de longa duração. Entretanto,
agrada ao homem e faz bem ao seu orgulho, inverter seus
papéis na vida, situando-se

como

vítima

das

doenças,

negando-se

terminantemente a reconhecer que a causa de seus males


reside nos próprios sentimentos e condutas adulteradas, e
distanciadas das leis de equilíbrio que vigora no universo.

-- Contudo, não poderíamos aduzir que Alberto necessitava


reagir diante da pequenez física, empreendendo atos e
atitudes que lhe soerguessem o abatimento moral? A
arrogância não se fazia necessária em defesa do ego
apoucado? Não foi exatamente essa menosvalia a indutora
de sua altivez?

-- Assim deduzindo, ele teria sido vitimado pelas


circunstâncias biológicas que lhe imputaram a deficiência
orgânica, e seu drama justificaria sua altanaria, eximindo-o
de culpas. Seu perspicaz raciocínio pode nos levar a
errôneas conclusões que facultarão ilibar todos os erros
humanos.

Convenhamos que, se a ação desencadeia a reação, esta


por sua vez, pode induzir a novas reações, que no entanto
continuam a se justificar na primeira ação. A lógica da lei
em que estamos inseridos nos leva a entender que a dor
somente pode pertencer

220

ao reino das consequências, e não ao das causas. O espírito


em toda ocasião, é sempre vítima de si mesmo, e não mero
produto da deficiência de seus veículos, que é sempre o
reflexo de seus próprios excessos. Devemos compreender
sua reduzida estatura portanto, como consequência de
outro passado, embasado também na prática da mesma
arrogância.

-- Quer dizer então que foi a mesma soberba, alimentada


em existência anterior que o conduziu ao renascimento na
minguada compleição física atual! Compreendo...
-- E o Plano Espiritual, prevendo que ele recalcitraria diante
da imposição de humildade, aproveitou-lhe o potencial de
forte reação, para atiçá-lo no desempenho da missão em
benefício da humanidade. Nas leis divinas, Adelaide, mesmo
o mal e a dor devem trabalhar para o bem. Se penetrarmos
ainda mais em sua história pregressa, seguramente
encontraremos as motivações de tais deficiências que, de
outra forma não se justificariam. A depressão não é a causa
de seus sofrimentos, como erroneamente podemos
pressupor, se analisarmos apenas o limitado espaço de sua
última encarnação; ela é consequência do rebote das forças
exaltadas da arrogância, que o conduziu ao suicídio e não a
doença em si. Tudo se enquadra em lógicos raciocínios na
perfeição da lei de Deus, onde não há lugar para acasos ou
sofrimentos injustos.

-- Impossível não compreender, Adamastor. A depressão


nasce da exaltação doentia do “eu”, a menosvalia da
supervalia, a reação da ação. Onde hoje há uma carência,
ontem houve um excesso...

-- Minha dileta estudante enfim se deixou convencer da


coerência insofismável que move a Criação. Estamos
imersos em um oceano de leis lógicas e perfeitas,
orientadoras de todos os fenômenos que se sucedem no
seio do cosmos, oriundas da mente divina. Temos um pai
que se expressa por lei de amor e justiça, e nos subordina a
uma ordem irretorquível, ordem que dita a felicidade de
cada um, em conformidade com as suas obras e que não se
deixa enganar jamais. É possível a desordem, porém em
espaços adstritos e contidos por uma lei de compensação,
que deixa toda ação restrita ao seu próprio âmbito de
reações.

-- Recordo-me de que a psiquiatria terrena em sua proposta


de classificação dos transtornos mentais, vê depressões que
se comportam como distúrbios de natureza unipolar, e
outras como bipolares...(A depressão bipolar é aquela em
que os momentos depressivos se alternam com instantes de
euforias impróprias. Na unipolar há um permanente
estacionamento na posição de melancolia.)

221

-- Atentemos para o fato de que a ciência terrena, tem para


sua observação somente o reduzido intervalo de uma
existência, Adelaide. Suas conclusões são errôneas por não
poder açambarcar a preexistência e a continuidade da vida,
onde os movimentos opostos e complementares
forçosamente se apresentam ou se apresentarão. É
necessário compreender que todas as depressões são
bipolares, pois todas são configuradas na dinâmica das
forças mentais bipartidas. A exacerbação da contração será
sempre consequência da exaltação da expansão,
configurando os dois movimentos complementares, como
vimos.

A alegria e o entusiasmo da face maníaca, filhos da


arrogância, se alternarão sempre com a apatia da queda do
humor, em qualquer situação. Na maioria das vezes
contudo, a primeira fase, a da exaltação, não pode ser
apreciada pelo observador terreno, por se encontrar em
existência pregressa, onde realizou seu movimento inicial,
deflagrador do quadro que se apresenta ao longo de toda
uma encarnação, sem uma causa que a justifique
aparentemente.

comprimento

da

onda

mental,

excessivamente dinâmica e mutável, pode exceder nossa


capacidade de observação, por se projetar em outro
momento da vida, fora da limitada dimensão temporal do
homem encarnado. Qual onda onde somente se vê uma de
suas faces, pode-se facilmente deduzir que sempre uma
oposta lhe antecedeu, ou sucederá. Naqueles momentos em
que a onda mental reduz sua frequência, passamos a ver
suas faces se alternarem com rapidez, identificando
facilmente a bipolaridade dos transtornos mentais, sempre
em obediência à mesma oscilação. Se não podemos no
entanto, vislumbrar o movimento completo nos distúrbios
unipolares, isso não pressupõe que ele não esteve ou não
estará presente, e não podemos negá-lo pelo simples fato
de não tê-lo ao alcance de nossa análise.

-- Nunca havia atinado para o fato de que a vida é uma


imensa onda...
-- Precisamente, Adelaide, porque a existência é produto da
força mental que se expressa como onda. E aqui podemos
vê-la em amplitude, abrangendo em sua trajetória muitas
vidas, e então notar com clareza suas oscilações de
ascensões e quedas.

O estudioso terreno não pôde ainda antever os seus


completos movimentos, carreando a personalidade com
seus transtornos aparentemente sem causas. Acreditando
que o homem é produto de uma única experiência de vida,
não lhe foi possível compreender que o deprimido de hoje,
semeou sua condição na inadequada vivência da arrogância
em existência anterior. No

222

futuro, Adelaide, a ciência da Terra será forçada a essas


conclusões, por força da evolução, pois o homem não
tardará a atestar a existência do espírito, demonstrando
esta incontestável realidade, pelos meios ditos científicos,
trazendo solução para todas as intrigantes contradições dos
conhecimentos atuais.

Ante o assombro da amiga, cada vez mais deslumbrada


diante da coerência do tema abordado sob a ótica
abrangente que a ciência do espírito nos permite, continuei,
completando minhas reflexões:

-- E atentemos para o fato de que o movimento predecessor


e indutor do desequilíbrio, não é identificado como uma
doença entre os homens, que não reconhecem o potencial
enfermiço da arrogância, se ela não atinge as raias da
megalomania. Não se considera como enfermo, o espírito
hiperegótico em livre exercício da jactância, pois este se
apresenta como um vitorioso em seu meio, exibindo não
somente dotes de conquistas fáceis, mas também exultante
satisfação e aparente bem estar. Embora seu corpo denote
muitas vezes a presença de patologias hipertróficas, filhas
da hiperpsiquia em vigência, a ciência médica terrena não
correlaciona essas alterações, com o palco
hipertroficamente desalinhado do psiquismo. O organismo
físico é, contudo, fiel indicador da real situação da
desarmonia que impera no panorama mental, reflexo seguro
do doentio gradiente hiperdinâmico. Somente quando se
instala a hipopsiquia, reverberando a contração das forças
mentais, com todo o seu exuberante cortejo de dores e
angústias, acorre a ciência médica afoita, à procura de
vilões que justifiquem o distúrbio, buscando-os no campo
das consequências. Sem conseguir identificar a hiperpsiquia
como a verdadeira etiologia de tais transtornos, não
encontra ela outra alternativa, do que imputá-los às
depleções neuroquímicas, ou aos traumas psicológicos,
como se nada justificasse a suscetibilidade a esses males.

-- Compreendo, contudo ainda não abrangi todo o


conhecimento de que necessito para acalmar minha
ansiedade.

Como o indivíduo, muitas vezes, colhe os reflexos de suas


exaltações em outra existência, e não pode recordar mais
dos excessos que motivaram suas carências, qual o valor
em sofrer efeitos tão distanciados de suas causas? Não se
perdem as lições para o espírito?
-- A limitada noção de tempo que flui de nossa razão, não é
a mesma que determina o ritmo dos fluxos energéticos que
vertem do espírito. A função letiva da dor, embora
aparentemente distante das causas que a determinaram,
pode não ser

223

compreendida pela nossa limitada razão, circunscrita ao


presente, mas é seguramente apreendida e arquivada pelo
inconsciente espiritual, que na verdade nos move na vida.
Nossa memória extracerebral abrange toda a aventura do
existir, e sabe arquivar experiências, e corrigir seus
impulsos pelos caminhos seguros da intuição. Por isso,
nenhuma lição se faz sem proveito, pois tudo percebemos e
tudo registramos, ainda que não guardemos a nítida
consciência disso. A experiência é arquivada devidamente,
e exercerá a sua ação corretiva de forma inconsciente no
momento adequado, retornando sempre em benefício de
nosso aprendizado. Quando a evolução nos permitir dilatar a
própria visão, abrangendo maior extensão de nosso mundo
íntimo, poderemos compreender com clareza todos os
nossos movimentos na jornada da vida, entendendo a
necessidade de todas as dores sofridas, por mais duras que
nos tenham sido.

É verdade que muitas vezes assistimos a espíritos


renitentes no mal, exercendo livremente a rebeldia,
despertando-nos a noção de que não há lei na criação para
detê-los. Desejamos muitas vezes em nossa ignorância, que
a dor os visitasse de imediato, suscitando-lhes a reforma
necessária. Entretanto, a sabedoria divina sabe que não
detém condições de aproveitamento na escola da dor, e o
ensinamento em hora imprópria seria baldado recurso. Por
isso, eles são entregues aos próprios desatinos, até a
evolução lhes proporcionem condições de receber suas
preciosas preleções com proveito, como uma colheita que
precisa ser amadurecida para se prestar ao consumo. Assim
é que muitas vezes vemos espíritos já renovados, que
aparentemente não necessitariam de corrigendas, colhendo
grandes sofrimentos, oriundos de causas muito distantes no
tempo, exatamente porque este é o momento mais propício
para lhes tornar útil, o necessário aprendizado.

-- Ocorre-me ainda, Adamastor, que muitas vezes


observamos indivíduos situados em evidente instante
depressivo, denotando entretanto, a presença de patologias
hipertróficas no corpo físico. Como entender essa correlação
que deveria ser exata em toda situação?

-- Lembremos, Adelaide, que o dinamismo da força mental é


suscetível de se movimentar em diversas frequências,
podendo passar de um momento para outro, da exaltação à
completa depleção da emotividade, enquanto que o corpo
perispiritual, e muito mais o físico, necessitam de tempo
maior para se acomodarem a esses doentios impulsos. Por
isso poderemos apreciar uma patologia hipertrófica em
campo emocional

224

hipopsíquico, pelo fato de o psiquismo caminhar na


dianteira dos movimentos orgânicos. Atentemos ainda para
o fato de que nossas forças psicossomáticas obedecerão
sempre ao gradiente de plenitude predominante no
dinamismo mental, que pode em um momento, carreado
pelas circunstâncias a que se expõe, denotar movimento
em direção oposta. É assim que um indivíduo em franca
hiperpsiquia, subitamente pode conduzir sua
psicoenergética para a hipodinamia, motivado por falências
ou frustrações súbitas em suas pretensões, enquanto seus
veículos psicofísicos continuam obedecendo à resultante
dos impulsos hipertônicos ainda predominantes. Assim
vemos que o quadro mental, muito mais dinâmico, estará se
adaptando às condições do presente, enquanto que o corpo
físico continuará refletindo o passado até que, uma vez
esgotado o primeiro impulso que o guiava, possa atender
aos últimos impositivos das forças psíquicas.

-- E não se pode negar que vemos muitos enfermos


apresentando patologias hipotróficas no corpo físico, sem
denotarem aparentemente, um correspondente campo
mental depressivo. A hipopsiquia nestes casos, encontra-se
inaparente?

-- É pertinente atentarmos para um outro fato importante.


Os princípios divinos que regem nossa organização, atuam
de forma a facilitar a transferência de toda desarmonia da
força mental para os corpos periféricos que nos compõem
os veículos de manifestação. Devido a isso, quanto mais
saúde tem um indivíduo, mais na periferia irá ele manifestar
os desequilíbrios de sua vida mental. Desta forma, os
potenciais distônicos, tanto na hiperpsiquia

quanto
na

hipopsiquia,

serão

desviados

preferencialmente, para departamentos orgânicos


superficiais, drenando-se a desarmonia interna, e
resguardando-se a mente dos sofrimentos engendrados
para si mesmo. Destruindo o corpo, reduz-se o potencial
lesivo da força mental desequilibrada, inibindo-a de voltar-
se contra si mesmo. Quando entretanto, todos os intentos
orgânicos são insuficientes para a completa exoneração do
mal, ou sua drenagem física é obstaculizada de forma
insuperável, o distúrbio se concentra então, em seu próprio
cerne, desestruturando-se o psiquismo nas mais diversas
formas de enfermidades mentais. Desta maneira, desafogar
a pulsão depressiva nas degenerações físicas, é reação
defensiva da mente, minorando em si mesma os efeitos de
suas próprias distonias.

-- Por isso então, adoecer o corpo é curar a alma, como


temos aprendido...

225

-- Isso mesmo, Adelaide, enfermar o corpo é defender o


intricado funcionamento psíquico, e obstaculizar a
enfermidade no corpo pode fazê-la reverberar-se para o
interior, de onde partiu.
-- Tais princípios, bastante lógicos, levam-nos a graves
conjecturas, ao denotar a atitude do homem terreno,
sempre pronto a reprimir o desenvolvimento de seus males
físicos.

Podemos concluir que se as doenças físicas não tivessem o


seu curso obstaculizado, permitir-se-ia uma maior acalmia
dos transtornos mentais? Reprimi-las neste caso, será impor
maiores dificuldades ao próprio reequilíbrio?

-- A questão é realmente relevante, conduzindo-nos a sérias


inquirições com respeito à atuação da medicina praticada
atualmente na Terra, que se esmera na nobilitante tarefa de
curar as enfermidades do homem terreno, porém sem
questionar a função biológica da patologia, muitas vezes
necessidade premente para o equilíbrio do espírito.
Distanciada da realidade espiritual da vida, e sem identificar
as necessidades da dor, empreende a nobre ciência, a
busca afanosa da supressão dos distúrbios orgânicos,
visando apenas o conforto imediato daquele que padece,
sem compreender que a doença física é esforço curativo da
mente, mera drenagem mórbida, visando à solução para
suas desordens, e impedindo quase sempre o
estabelecimento de males maiores. Reconhecemos na
atualidade, que a simples repressão das patologias
orgânicas, embora proporcione imediato bem estar ao que
sofre, nem sempre é prática segura de saúde para o
espírito, podendo agravar-lhe as desordens internas. As
energias deletérias do perispírito permanecem contidas, e
deverão ser evacuadas através de patologias ainda mais
graves, pois a premência de se manter os mecanismos
mentais em funcionamento adequado, supera o valor da
integridade do corpo físico, sacrificado em prol da
integridade do espírito. A questão é grave, pois implica uma
reformulação dos conceitos médicos vigentes, para os quais
o homem terreno ainda não está preparado. Aguardemos o
futuro, minha amiga.

226
22
capítulo

EM BUSCA DE SOLUÇÕES

“Não peques mais, para que não te suceda coisa pior.”

Jesus – João, 5:14

Adelaide, admitindo estes novos conceitos que nunca havia


vislumbrado, reconhecia que a ciência no mundo ainda tem
muito a aprender no campo do espírito. O assunto exigia
uma abordagem mais aprofundada e, interessada em
encontrar reais soluções para o drama da doença
depressiva, continuou a interrogar-me:

-- Estas considerações, facilmente compreensíveis por nós,


não poderiam contudo, atormentar aqueles que lutam com
sinceridade para curar as doenças que acometem o espírito
na carne? E como podemos orientar aqueles que tratam, e
os que padecem os transtornos depressivos na atualidade?
-- Sabemos que a questão extrapola o momento atual da
ciência materialista, mas aquele que já conquistou um
patamar de conhecimentos espirituais, detém condições de
compreensão, Adelaide. Os que sofrem depressão ou
mesmo outras perturbações mentais, deveriam tolerar ao
máximo, as pequenas e suportáveis doenças superficiais
que lhe apareçam, sem se arvorar em estancá-las com
excessiva carga de medicamentos supressores, pois
seguramente são correntes de drenagens de seus males
principais, e lhes trarão benefícios para a alma enferma. A
extração de patologias hipertróficas do corpo, como os
tumores benignos, simplesmente porque estão presentes,
deveria deixar também de ser um hábito tão frequente na
medicina humana.

Essas patologias produzidas pelos desvios das energias


hiperegóticas, deveriam ser toleradas ao máximo, pois
representam um esforço curativo da mente que expurga de
sua intimidade sua própria morbidez, fazendo-a consumir-se
na carne.

Se reprimidas apressadamente, poderão induzir novas


construções hipertróficas, ainda mais graves, ou farão
refluir o desequilíbrio para o interior, intensificando a
hiperpsiquia com o consequente

227

aprofundamento de seu potencial lesivo, aumentando


posteriormente o rebote hipopsíquico, ou seja, o distúrbio
depressivo, que no futuro se instalará por força da lei de
compensação energética, será agravado. Por tudo isso,
podemos então perceber com clareza, que como regra
geral, quanto mais o homem encarnado tolerar seus males
físicos, menos irá padecer os transtornos de sua mente.

Nosso consolo baseia-se entrementes, no fato de que


muitos pensadores estão reencarnados na atualidade com
essa finalidade, e várias escolas médicas na Terra,
consideradas ainda alternativas, já caminham a passos
largos para estas conclusões.

Em breve elas serão reconhecidas pelo pesquisador terreno


imbuído dos melhores propósitos em solver os males
humanos.

-- Diante de tantos esclarecimentos, compreendo que seria


uma parvoíce imputar ao mundo fisiológico e suas
deficiências, os transtornos depressivos que assediam nossa
alma. No entanto, recordo-me de que a medicina terrena
demonstra com evidência, que a deficiência de substâncias
neuroquímicas e doenças orgânicas, as mais diversas,
produzem as alterações psicopatológicas sob nossa análise,
parecendo demonstrar que elas se assentam em uma base
puramente material, embora não se negue a importância
dos traumas psicológicos em sua etiologia. Como
compreender estas deduções, fato inegável, principalmente
diante da evidência dos efeitos benéficos dos
psicofármacos?

-- As deficiências orgânicas, em qualquer nível que se


manifestem, são sempre meros reflexos da queda de
potencial das energias espirituais, verdade para nós
incontestável diante da realidade em que vivemos. É de
fácil compreensão que a depleção dos neurotransmissores,
as cerebrinas, imputadas como causa primária da
enfermidade depressiva, comparece como consequência
natural da hipopsiquia que atinge todos os departamentos
da vida mental e física. Hipopsiquia, que já compreendemos
ser a resultante da hiperpsiquia, a malfadada aventura da
arrogância humana, na verdade o fator etiológico de todos
esses transtornos. Como é da lógica, todo esgotamento
orgânico ou psíquico, de qualquer natureza, é precedido
sempre por inadequado e excessivo uso destes mesmos
recursos. Tal conclusão é irrefutável compreensão que a lei
de equilíbrio nos faculta deduzir e que não pode ser
contestada, pois a vemos funcionar no mundo das causas e
dos efeitos. Não há efeito sem causa, tal é o axioma
insofismável da lei. Não se pode admitir a depleção dos
neurotransmissores sem uma causa que a justifique.

228

Não se pode compreender a alma subjugada às aleatórias


deficiências da matéria. Somente um raciocínio puramente
materialista pode vindicar tais improcedentes e pueris
hipóteses, conclusões precipitadas, próprias daqueles que
não são capazes de admitir a vida como um produto do
espírito. A incompreensão de que o homem, ao renascer na
Terra, traz consigo os reflexos dos abusos do passado,
impossibilita ao estudioso sincero, a visão das reais causas
das enfermidades em qualquer nível em que se manifestem.

Como já vimos, a doença é sempre um efeito, nunca causa


de nossas dores. Costumamos raciocinar como alguém que
corre até a exaustão e depois imputa às dores do cansaço a
sua impossibilidade de continuar correndo. A falha é
anterior, e está no abuso que levou ao esgotamento das
forças, evidentemente.

Devemos sempre buscar o erro nos excessos de toda


natureza, que empreendemos na aventura da vida, e não
em nossas carências, sempre as consequências. O excesso
leva ao dano, que depois passa a exercer um impedimento
natural ao prosseguimento dos exageros, por imperiosa
necessidade de reequilíbrio, e não mero obstáculo ao nosso
desenvolvimento. O

orgulho nos leva a acreditar contudo, que a doença é o


obstáculo injustificável à continuidade de nossas loucas
aventuras, pois encontrar explicações fora do âmbito de
nossos próprios erros, agrada-nos sobremaneira e abona
nossas deficiências, perante os companheiros de jornada,
eximindo-nos da responsabilidade pelos fracassos.

-- Erroneamente, o dano passa a ser visto como o agente


causador de nossos males. Compreendo. Não conseguimos
ver que o abuso está na raiz de todas as nossas carências,
fruto de nossos egoísticos anseios...

-- Somos o exato produto de nossa própria corruptela, e


toda dor é corretiva, disso não podemos abrir mão, pois
somos filhos de um pai que é amor e habitamos uma lei
perfeita. Evidentemente, é preciso reconhecer que o espírito
e o corpo compõem uma unidade, e interferências físicas de
diversas naturezas em qualquer departamento orgânico,
induzem alterações que podem obstaculizar o seu perfeito
funcionamento. Este fato leva o pesquisador materialista, a
interpretar equivocadamente que a função é produzida pelo
órgão, enquanto que na realidade, a função é ato do
espírito, e a perda do órgão não implica seu dano, mas
apenas a inutilização dos meios para a sua realização.
Evidentemente o espírito, destituído da integridade de seu
ferramental orgânico, não pode se manifestar
adequadamente,

229

assim como um músico não consegue executar sua arte


com instrumentos danificados. Se interferirmos no
metabolismo dos neurotransmissores, impondo meios
químicos que atenuem ou acentuem suas ações,
importantes efeitos se farão refletir na mente, mas isso não
pressupõe que determinadas funções mentais sejam
desempenhadas por tais substâncias, o que fere a lógica da
vida. O espírito, no exercício das funções psíquicas, serve-se
destas delicadas substâncias para se manifestar, e sem que
atuem corretamente não pode se expressar como deseja.
Portanto, a interferência na neuroquímica não pode curar a
mente, assim como não se endireita um músico agindo em
seu instrumento. São capazes apenas de interferência fugaz
nos mecanismos bioquímicos que sustentam a tela mental,
e não na fonte do desequilíbrio que reside no espírito. O
homem contudo, se deixa embalar pelo sonho vão de que
basta ingerir pílulas para que milagrosamente se cure. Doce
ilusão, a vida com sua sabedoria continuará incidindo com
suas dores até que o ser conquiste o próprio equilíbrio. Não
nos iludamos, Adelaide, a depleção das cerebrinas se segue
ao seu uso exagerado, assim como a degeneração da
personalidade é sempre consequência de sua doentia
supervalorização.

-- Como entender a necessidade do emprego dos


psicofármacos neste caso, Adamastor? Justifica-se a
interferência química no intricado metabolismo das células
neuronais, tão em moda na Terra?
Depreende-se que o homem, no momento atual, ainda não
tem diferente forma de agir diante dos transtornos mentais
ou doenças de outras naturezas que lhe acompanham a
jornada terrena, a não ser introduzindo substâncias
químicas inibidoras ou estimulantes, suprindo necessidades
imediatas, porém de ação irrisória, e às vezes até infeliz.
Fugazes meios de reparação que não podem se sustentar
indefinidamente, sem que redundem em graves
consequências para a saúde. A economia orgânica, em
qualquer departamento físico, funciona segundo equilíbrios
seculares e mantém a vida, graças à sua capacidade reativa
diante dos obstáculos e imperativos naturais da jornada
terrena. A excessiva interferência da farmoquímica artificial
dos tempos modernos, se consegue simular uma vitória
momentânea contra as doenças do homem, a longo prazo
induz ao enfraquecimento da constituição biológica, mesmo
no campo psíquico. Diante dos mínimos sintomas de
ansiedades ou de angústias momentâneas, prefere o
homem ingerir pílulas que lhe inibam as salutares reações
psíquicas do reequilíbrio, tornando-se consequentemente
cada

230

vez mais vulnerável aos agentes emocionais que suscitam


tais sintomas. Se podem impor momentâneos bloqueios às
perturbações do psiquismo, não podem evidentemente
curar o espírito que segue carreando seus distúrbios,
exigindo reparos. Por isso, em que pese o nobre esforço do
homem encarnado em frenar suas enfermidades com o
emprego dos dardos químicos, seus males continuarão
multiplicando-se, até que a necessidade de corrigendas
cesse mediante a semeadura de novos equilíbrios para suas
recônditas forças orgânicas e psíquicas adulteradas. A
seguir o curso em voga no planeta, o excessivo bombardeio
químico, sustentado por impróprias explorações
econômicas, poderá degenerar a reatividade do espírito
perante às exigências imperativas da evolução, retardando-
lhe os passos do progresso.

As situações estressantes que sempre existiram e eram


muito mais intensas, impondo ao homem a necessidade de
conquistar novas potencialidades para o espírito, serão
paulatinamente menos toleradas, se não houver uma
urgente mudança de hábitos diante do abusivo emprego
dos psicofármacos. Produzir-se-á uma raça de psiquismos
frágeis, insuficientes para se sustentarem diante dos
percalços naturais da aventura humana. Cada vez mais os
doentes, em número crescente, dependerão de novas
drogas do quimismo artificial que lhes suscitem um mínimo
de bem estar necessário à vida. A situação é preocupante,
Adelaide.

Ante o assombro da irmã, prossegui:

-- Esquece-se o homem de que os recursos curativos mais


preciosos estão dentro de si mesmo, olvidando que se a
mente pode adoecer, é capaz igualmente, e com muito mais
propriedade, de curar-se. Portanto, os medicamentos, se
proporcionam aparente e momentâneo conforto ao que
sofre, não podem verdadeiramente sanar o espírito, este
sim, o verdadeiro enfermo e artífice da saúde. Por isso,
impor bloqueios à neuroquímica cerebral é apenas
obstaculizar o curso dos desequilíbrios, simulando uma
acalmia para os transtornos que se mantêm, exigindo cada
vez mais o próprio reparo. Estejamos certos, o homem não é
mero produto de seu universo celular, não está subjugado à
sua massa de neurônios, e tampouco é uma secreção
cerebral, não podendo ser corrigido mediante simples ações
de natureza bioquímica. Não nos enganemos, os transtornos
depressivos não se curam com os psicofármacos, capazes
de irrisória exaltação do ânimo abatido, propiciando
passageiro lenitivo que, não sendo real aquisição do
espírito, não pode se manter.

231

O homem está sempre disposto a violar toda lei de


equilíbrio, e depois de ilude com o fato de que basta ingerir
pílulas para acalmar as reações livremente semeadas.
Dissemina dissabores, fazendo-se jus às angústias
corretivas, mas prefere ignorá-las entregando-se ao sabor
do engodo, acreditando que algumas pastilhas de
felicidade, feitas da mais factícia química, estranha à
natureza da vida, irão lhe restituir as alegrias legitimamente
desfeitas. Quimérico artifício, seus padecimentos retornarão
ainda mais aumentados, se não se apressar a restabelecer
os equilíbrios perdidos, e conquistar méritos para o bem
estar. A sabedoria da lei não se deixa ludibriar pela
insciência dos homens, e cobrará de cada um a sua lição
em forma de dor, até que aprendam a atuar nos limites do
amor. Lei que os quer perfeitos, e por isso faz reverberar na
intimidade de cada um, toda desarmonia imposta aos
outros. Como o espírito é feito de substância divina, e
habitante de um universo onde somente a ordem pode
subsistir, não é capaz de tolerar em si o mínimo
desequilíbrio, estacionando-se na provação até que se
corrija.

E assim, com pesar, o Mundo Maior assiste ao homem


moderno drogar-se sem fundamentos, alguns enxurdando-
se naquelas consideradas lícitas, enquanto outros se
inebriam nas proscritas, sem que saibamos exatamente
onde está o limiar entre umas e outras, entre a necessidade
sincera e o abuso, entre o desejo de solver males e o anseio
de fugir da própria penúria espiritual, enquanto terceiros
tratam de auferir lucros fáceis, na desvairada
inconsequência humana, onde todos são chamados a
participar. Lamentáveis enganos, pois toda droga de ação
psicotrópica, induz ao empobrecimento da vida mental,
queiramos ou não admitir o fato. A entrega abusiva a elas
degenera o delicado metabolismo cerebral, carreando
consigo a inópia para o espírito. Em nosso plano, a cada dia
se constata mais a relevância dessa realidade, pois
verificamos com assombro o crescente número de almas
inquietas e indigentes da alegria que aqui aportam,
transportando desequilíbrios muito maiores do que aqueles
que os conduziram à carne, pois agregam às carências da
alma os vícios de um quimismo aviltante, desagregador do
bem estar psíquico, exigindo reparos através de soluções
ainda mais dolorosas e demoradas do que os agravos
iniciais.

Sempre que possível, deveríamos evitar o abuso desse


artificialismo completamente estranho à alquimia da mente
que, se pode redundar em proveitos imediatos, pode
igualmente induzir a vícios, erros metabólicos, e
intoxicações inadequadas,

232

seviciando o espírito e adiando soluções verdadeiras para os


seus males, uma vez que apenas os camufla.

Não desejamos com isso destituir o valor nobilitante da


medicina terrena que, com sinceridade de propósitos, luta
para aplacar as enfermidades humanas, e nem desestimular
os que sofrem, eximindo-os de buscar na nobre ciência a
devida ajuda de que precisam. Justifica-se o uso dos
medicamentos portanto, se não tem o homem ainda outra
atitude a tomar, desde que os utilize dentro dos limites do
bom senso, usando-os no mínimo possível, e não se
acercando deles como se fossem os únicos e indispensáveis
recursos, menosprezando as reais necessidades do espírito.
São muletas que um doente deve deixar logo que se veja
em condições de andar sozinho, para não correr o risco de
ter suas pernas atrofiadas pelo seu uso inadequadamente
excessivo.

Sua situação depois se tornará muito mais penosa,


transformando-se em um mal o que era apenas um meio.
Os remédios não podem servir como desestímulo à
reconquista do equilíbrio perdido, inibindo no enfermo o
empenho na correção das errôneas atitudes que mantém a
sua enfermidade, iludindo-o de que alcançará a cura com o
uso do agente externo.

Sem a urgente reforma dos atos e sentimentos, não se deve


esperar benefício algum de drogas induzidas em nosso
delicado metabolismo psíquico. Nosso remédio mais urgente
é a evangelização das condutas moralmente impróprias,
responsáveis pela semeadura de todos os nossos males.

-- Entretanto, assistimos a muitos médicos sinceros,


trabalhadores do bem, induzindo seus pacientes, ao uso
continuado de drogas que lhes realcem o ânimo abatido, e
imbuídos dos melhores propósitos possíveis...

-- E não temos o direito de condená-los, Adelaide. Não


detém ainda as alavancas que podem mover a força mental.
Por isso minha palavra é somente de alerta, e não um
ditame de conduta ou uma repreensão. E apenas repito o
que abnegados instrutores espirituais, que intentam auxiliar
o homem que sofre na Terra, insistentemente nos tem
advertido. Se até o momento não há outro meio senão a
indução de artificial conforto químico, saibamos contudo,
que tal recurso deve se restringir ao mínimo possível, e que
não nos faça perder de vista a necessidade de se estimular
no deprimido, o correto direcionamento de sua poderosa
força mental, corrigindo seus descabidos sentimentos.

Que não cruzemos os braços, cientes de que tudo está


resolvido com a baqueta mágica da farmácia, como se fosse
tudo o que

233

pode ser feito. A felicidade é uma conquista à qual se deve


fazer jus e incorporada de dentro para fora, jamais ao
contrário.

-- Não há como alertar os estudiosos sinceros, em esforço


evolutivo na Terra, sobre a grave questão?

-- Não queremos menosprezar o valor do trabalho médico


da atualidade, apenas salientar que a ciência ainda atua de
forma equivocada, porém no rumo certo da boa vontade de
acertar. Quando olhamos para trás na História, podemos
observar os grandes erros da medicina, sem que isso
condene sua trajetória, sempre imbuída dos melhores
propósitos em solver os males humanos. Na atualidade no
entanto, o homem com seus olhos fixos na matéria e
incapaz de perscrutar no campo do espírito, ainda atua
fundamentado em muitos enganos que somente o
desenvolvimento futuro lhe permitirá reconhecer. Não
somente o abuso do quimismo artificial no tratamento das
doenças mentais pode ser até agora, grande óbice à
aquisição do equilíbrio espiritual do homem enfermo, mas a
terapia proposta para boa parte das doenças físicas ainda é
equivocada, pois se baseia em pressuposto materialista que
não sabe reconhecer nelas um papel a cumprir, acorrendo a
suprimi-las o mais rápido possível. Atuando no imediatismo,
colhe soluções de cunho eminentemente provisório,
eximindo-se de prognosticar o futuro e sem compreender
que a alma necessita de urgentes dores corretivas para os
males que continua semeando. Não podemos deixar no
entanto, de admitir que o espírito carece de sustentar-se na
carne o máximo de tempo possível, e para isso é preciso
muitas vezes, que tanto a enfermidade mental quanto os
transtornos físicos, tenham seus cursos obstaculizados.
Admitimos sem sombras de dúvidas, que a carne ainda
requer cuidados médicos, e necessita de reparos,
permitindo-se ao encarnado a continuidade de sua
caminhada. Por isso, diante dos males infligidos a si mesmo,
a medicina do corpo ainda é campo sagrado de
necessidades do homem, na exigência dos cuidados que o
Pai dispensa.

Quando a ciência descobrir o espírito, contudo, muitos de


seus equívocos serão sanados e a medicina, curada do
materialismo renitente, será poderosa alavanca para o
soerguimento da alma, no rumo acertado da evolução.

-- Quanto ainda temos a aprender! – exclamou Adelaide,


assustada diante de meu vivo entusiasmo na consideração
dos erros humanos, como se detivesse de fato o direito de
condenar.

E com o firme propósito de encontrar reais soluções,


perguntou a amiga ansiosa:

234
-- Qual deve ser então nossa correta conduta, uma vez
identificados os males dos transtornos depressivos?

-- Se compreendemos a fisiopatologia da arrogância, fácil é


entender que a humildade é de fato o recurso mais
importante para o seu tratamento. Não a submissão
imposta por força dos impositivos reacionais que os
transtornos depressivos carreiam, vergando-nos a soberba
ante a exacerbação das fraquezas que transportamos na
alma, porém aquela que é sincera expressão da
personalidade. Faz-se necessário o exercício da humildade
genuína e evangélica, fruto da abnegação dos perniciosos
interesses do eu ególatra. Jesus já nos havia recomendado o
precioso remédio, Adelaide, porém pensávamos tratar-se de
parvoíce, ou apenas uma bela virtude para adornar o
espírito, menosprezando o mais valioso recurso para a
profilaxia e a cura de nossos males. Projetar o outro acima
de nossa pretensa grandeza, fazendo-nos pequenos e
servos de todos. Abdicar dos primeiros lugares que nos
enaltecem, dirigindo as luzes do destaque para o outro,
desviando-as de nossa enfermiça vaidade. Embargar a
ambição desmedida na conquista de arroubos pessoais que
visam somente nossa jactância e nos projetar acima dos
outros. Eis os sábios conselhos que nos asseverou o Mestre,
indispensável ao nosso bem estar, como já vimos, mas
precisamos reiterar para que não caia no olvido.

Receber a dor como corrigenda e procurar pelas suas sábias


lições. Sujeitar-se com humildade à imposição da angústia
que a depressão suscita, na certeza de que exaltando-nos
às muitas carências e fraquezas, ela nos obriga a
reconhecer as genuínas necessidades da alma, que devem
ser prontamente atendidas.

Acatar com sabedoria os males inevitáveis que a vida nos


impõe em forma de danos, cientes de que nada se perde
em definitivo, pois não há na lei divina prejuízos que não
possam ser reparados.

Compreender que a abstenção, ainda que danosa, seja do


afeto ou dos bens aquinhoados, é-nos preciosa preleção de
abnegação, corrigindo-nos a morbidez da ganância, e a
sordidez do caráter adoecido de renitente cobiça.

Afastar-se da atitude de vítima e da revolta é também


imperioso recurso terapêutico. Chafurdar-se em queixumes
e lamúrias, atitude comum ao que sofre na Terra, apenas
multiplica os males que nos acossam a alma. Cultivar a
paciência e a resignação, permitindo-se o esgotamento dos
destrutivos impulsos da força mental. Para isso é bom
tolerar, na medida do possível, as desordens físicas
consequentes à energética psíquica alterada,

235

cientes de que quando o organismo pode dirigir para a


superfície os seus próprios males, minora-se o seu potencial
mórbido.

Impor reorientação segura para a conduta, os pensamentos


e os sentimentos em base aos preceitos evangélicos, a fim
de semear novos e saudáveis equilíbrios às potências do
espírito. O

exercício da brandura não deve ser olvidado como de uso


contínuo, imposto ao caráter, reduzindo-se o manancial de
rudeza. A bondade deve brotar espontaneamente da alma,
recordando que o efeito curativo do bem não é mero
sofisma, mas preceito inserido na sabedoria da lei e que
deve ser realizado da forma mais sincera possível, pois a lei
sabe medir a lhaneza de um ato, a intenção de um
pensamento, ou o escopo ainda que exíguo, de um
sentimento, não se prestando aos ludíbrios tão comuns à
psicologia de astúcia que ainda mora em nossas intenções e
permeia nossas atitudes. Sem olvidar que é sempre possível
agir no bem, pois nada nos impede de exercitar a caridade
da afabilidade e da paciência, mesmo em meio à mais
grave tempestade íntima.

Inibir a qualquer custo as atitudes expansionistas próprias


da egolatria, bloqueando com segurança a retroalimentação
do mal. Depor as armas da arrogância e da defesa dos
interesses imediatos de nosso egoísmo, é convite para que
as forças do universo se precipitem em socorro às nossas
necessidades, conferindo-nos alegrias verdadeiras.
Recordemos que as potências divinas que nos sustentam na
vida se cerram diante do egoísmo e do orgulho, doando-se
àquele que, com sinceridade de propósitos, sabe renunciar
a si mesmo em favor do bem estar alheio. E não há na
criação, poder curativo maior do que o poder divino
operando em nosso favor.

Alimentar a alegria genuína e a esperança no futuro é de


bom alvitre, guardando a certeza de que brotarão no fértil
campo da alma, se as semearmos devidamente. Acovilhar o
psiquismo nas leituras nobilitantes, e não olvidar que o
apoio dos amigos nas horas de íntimo desgosto, pode nos
soerguer o ânimo abatido. O

valor da prece não deve ser subestimado, pois é recurso


seguro para o enlevo, espiritual e sublime farol a iluminar as
trevas interiores que nos ensombreiam a felicidade. O
trabalho quando possível, não pode ser menosprezado
como elemento terapêutico valioso, pois a mente
subordinada ao ócio, é terreno favorável à proliferação de
ervas daninhas, deteriorando as energias reconstrutivas do
espírito.
Eis os segredos do equilíbrio, medidas sempre ao alcance de
nossas mãos, na profilaxia e tratamento dos transtornos

236

depressivos, os quais representam genuíno efeito curativo


por atuarem na raiz do mal. Recomendações que são de
fácil dedução, embora consideradas simplórias e de valor
secundário diante da possibilidade efetiva de ação
medicamentosa, na qual, erroneamente, confia-se muito
mais.

As terapias energéticas como o passe empreendido nos


templos espíritas, representam na atualidade, recurso
terapêutico inigualável de apoio à alma enferma. As
psicoterapias, se bem orientadas, são também sadios meios
suscitantes de equilíbrios, uma vez que podem proporcionar
ao doente, o reconhecimento das próprias fraquezas e
necessidades de melhorias. Terão inestimável valor se
souberem ajudá-lo na reconstrução do panorama íntimo
desfeito, fundamentando-se na humildade e no
aprimoramento moral. Contudo, se atuarem nutrindo o ego
menosválido com o cipoal da arrogância, embora se
obtenha aparente êxito em primeiro instante, persistirão
suscitando os mesmos males que sustêm a enfermidade,
que seguramente retornará agravada no futuro.

A interferência na delicada química neuronal deve ser o


último elemento terapêutico a se aventar, diante da falha
dos demais recursos e da imperiosa necessidade de se
obstaculizar o malfadado mergulho na autodestruição. E
não se deve olvidar que seu emprego seja o mais breve
possível, evitando-se danosas consequências no
inextrincável quimismo espiritual que nos sustenta na
jornada evolutiva.

-- E em nosso mundo, Adamastor, o que se faz para o


tratamento destes males?

-- Como sabemos, a morte não nos faz sábios e pode


apenas abastecer-nos a visão, com uma mais dilatada
percepção da realidade. Por isso, os desequilíbrios que
trazemos da aventura na carne, costumeiramente se
avultam aqui, deixando-nos entrever com mais clareza a
própria penúria íntima.

A consciência, sensibilizada pela percepção da nova vida,


ressente-se muito mais dos erros cometidos, exigindo
reparos. A alma, deixando pender suas máscaras, faz-se
nua diante de suas fraquezas e enormes necessidades. A
pequenez do espírito se exalta diante da grandeza divina,
revelada em mais expressiva amplidão e excelsitude. O
sossego é assenhoreado pelo reconhecimento da extensão
das faltas e maldades engendradas na satisfação de
egoísticos propósitos. A paz é perturbada pela lembrança do
tempo irreversivelmente consumido em inutilidades.

Natural assim que a maioria, deparando-se com a


inquestionável realidade e suas novas exigências, deixe-se
chafurdar em penosas

237

agruras, fazendo engrandecer no espírito as carências de


toda sorte. O número de aflitos portanto, transportando
transtornos depressivos no plano em que estamos, aumenta
sobremaneira demandando de nossos orientadores,
recursos assistenciais muito mais expressivos.
Muitos contudo, atravessando a existência em luta pela
aquisição de títulos que lhe enobreçam o personalismo, aqui
aportam enlouquecidos, reclamando privilégios, como se os
valores arquivados com base no menosprezo alheio,
compusessem

genuínas

aquisições

da

alma.

Sem

compreenderem a premente necessidade do


aprimoramento espiritual rumo ao bem, para a aquisição da
própria felicidade, prosseguem reverberando a mesma
arrogância, convertida em hábito personalístico, em
lamentáveis exibições de orgulho, ódio e revolta.
Ensandecidos, sem se darem conta da própria indigência,
continuam disseminando maldades, impondo interesses
egóticos para colher depois os produtos mórbidos da
semeadura, em forma de atrozes e profundas quedas
depressivas, nas futuras reencarnações. Poucos são aqueles
que realmente detêm o beneplácito da humildade,
encontrando a felicidade e o equilíbrio nos refolhos da alma,
aqui chegando.

Eis delineado o lamentável panorama da alma humana


depois do túmulo, revelando o quanto ainda temos a
percorrer, para o encontro com a saúde mental verdadeira.
Compreensível que nos preocupemos com o tratamento,
sobretudo preventivo, dos transtornos mentais que se
avolumam em nosso plano.
Como médicos do espírito, Adelaide, estamos empenhados
na ciência de orientação ao homem, urgente medida
terapêutica e profilática da saúde mental. Entretanto, como
todos nos achamos submetidos aos mesmos imperativos
dos seculares vícios do orgulho que nos adoecem, toda
medida aplicável ao doente, deve começar por nós mesmos.

Embora cientes de que a saúde verdadeira somente se


conquista de dentro para fora, contamos com diversificados
meios de suporte terapêutico, mas não temos fórmulas
mágicas ou remédios miraculosos no plano em que
estamos, capazes de suprimir todos os males que o espírito
transporta. Embora habitemos uma realidade sustentada
em um substrato que ainda não se pode considerar
material, aqui não utilizamos compostos químicos
artificializados, tão ao gosto do homem terreno. Em raras
ocasiões usamos essências medicamentosas dinamizadas,
destituídas de qualquer substância física que interfira no
sagrado quimismo da vida, à semelhança da homeopatia
terrena, e

238

segundo os seus mesmos postulados. Os recursos mais


empregados são essencialmente de natureza energética,
como os passes magnéticos, a musicoterapia e a
hidroterapia. O uso de essências florais aspiradas
diretamente de florações vivas, é recurso capaz de fornecer
eflúvios benéficos ao perispírito desvitalizado, e utilizado
em nosso plano em jardins terapêuticos preparados para
este fim. Casos mais graves como o de Alberto, necessitam
de terapia regressiva, sendo este o mais eficaz tratamento
para os transtornos da mente na atualidade. A terapia do
amor, efetivada por almas possuídas de grande capacidade
de irradiar bondade, é recurso bastante eficaz, mas que
guarda méritos pessoais. Diante de patologias ainda mais
sérias e quando tudo falha, a reencarnação comparece
como única solução terapêutica possível para os males da
alma, permitindo-se a transferência para o corpo físico, dos
mananciais mórbidos acumulados nas reentrâncias
psíquicas do ser.

Estejamos cientes no entanto, de que a base terapêutica


mais elevada com que devemos contar, é a inibição da
arrogância, primeira imposição no tratamento de toda e
qualquer patologia que o espírito transporte. Por isso
assistimos às leis da vida com sabedoria, impondo
carências, sejam emocionais, orgânicas ou circunstanciais,
onde trazemos o hábito do abuso, confeccionando-nos
destinos que nos forjam a acomodação dos excessos de
toda natureza condicionados na personalidade. Assim é que
partimos para a vilegiatura terrena, muitas vezes
enfrentando dificuldades e privações acerbas, com a única e
precípua finalidade de refazer o equilíbrio perdido.

-- Um longo e doloroso caminho para a retomada do bem


estar...

Sem dúvida, lutar permanentemente para nos mantermos


no máximo equilíbrio possível, é o melhor e mais seguro
roteiro para a felicidade...

-- Antes prevenir do que remediar, ensina-nos a sábia


exigência do brocardo popular. Sem sombra de dúvida,
nosso maior escopo é manter a estabilidade do espírito a
todo custo, ainda que com o sacrifício dos prazeres irrisórios
do egoísmo, e a abdicação das conquistas efêmeras do
orgulho. Estamos vendo como nos custa refazer a felicidade,
depois de barganhá-la pela arrogância. Afastar-nos da
estabilidade, onde quer que estejamos, é grande transtorno
para a nossa saúde, por isso o esforço em permanecer
dentro das linhas de ação do bem, é dever constante de
todo aquele que atingiu certa compreensão das leis da vida.
Viver na retidão do dever e na abdicação que o amor nos
exige, é preservar a saúde da consciência, Adelaide, o que
nos favorece sempre com alegrias e equilíbrios genuínos,
bens imperecíveis de inquestionável valor para a alma, os
quais costumamos valorizar somente quando nos vemos
desprovidos deles.

239
23
capítulo

NAS PENUMBRAS DA
MORTE
“Em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha
palavra, jamais verá a morte.”

Jesus – João, 8:51

Os dias avançavam céleres enquanto nosso amigo,


recolhido em nossa colônia, seguia seu roteiro de
reequilíbrio agora consciente, porém ainda ignorante de sua
condição e da nova realidade que o envolvia. Aparentava
nítidos sinais de melhoras, embora sua conduta continuasse
denotando rebuçado e contido orgulho. Comprazia-se em
longas caminhadas pelos arredores e, intrigado,
questionava as razões da existência das nuvens de chumbo
obumbrando permanentemente o horizonte vizinho.
Dizendo-lhe que as almas aflitas que ali se reuniam o
ensombreavam, ele não alcançava a sua plena
compreensão, e não podia esclarecê-lo como convinha.

Em nossas vias públicas encontra-se sempre número


expressivo de enfermos estropiados, muitos enfaixados,
lembrando uma tropilha de mutilados de guerras, em
decorrência das sequelas perispirituais dos suicídios.
Alberto, assustado diante do fato, questionava se
porventura não estaríamos enganando-o com respeito à
revolução constitucionalista, pois suspeitava que aqueles
infelizes eram feridos oriundos do absurdo enfrentamento
entre os patrícios.

Embora sempre introvertido, iniciava contatos mais intensos


com os habitantes de nossa cidade, trocando com eles
impressões sobre o lugar onde agora se achavam. Com
quantos se encontrava e podia entreter um diálogo, voltava
sempre ao tema perguntando se teria havido de fato
bombardeios, pois estava certo de que estávamos
ocultando-lhe a verdade em decorrência dos nervos
abalados. E, para sua decepção, a maioria entretanto, dizia
não se recordar da revolução a que ele tanto aludia. No
jardim terapêutico que frequentava diariamente,

240

confabulava com companheiros que revelavam condições


idênticas às suas, e algumas vezes retornava trazendo
inquietantes indagações que ouvia dos circunstantes.
Conquanto a maioria deles ainda não detivesse uma clara
percepção de onde estava, alguns asseveravam
peremptoriamente, que todos haviam morrido e que isso
justificava a intrigante ausência da parentela ainda
encarnada, fato comum a todos ali reunidos. Outros
relatavam perplexos, que estavam recebendo visitas e
cuidados de antigos parentes que se achavam mortos há
muito tempo.

Algo confuso, sem encontrar respostas seguras para tais


estranhas considerações, e premido por confusos
raciocínios, não conseguia mais acomodar a mente diante
das inusitadas questões. Que lugar era aquele que então
habitava? Onde estaria de fato? O

que era feito doa amigos e parentes que sumiram? Antes


que ele se entregasse ao desespero e a fim de lhe imprimir
maior conscientização de suas prementes necessidades,
convocamo-lo para o prosseguimento de nossas sessões de
tratamento. Fazia-se urgente agora, invocá-lo à revivência
traumática da morte, para situá-lo no novo ambiente em
que se projetara, permitindo-lhe completa recomposição de
si mesmo.

É fato comum que o recém desencarnado ainda ignaro da


ciência do espírito, demande certo tempo para perceber a
realidade da própria morte. Somos projetados em um
mundo em tudo semelhante ao que deixamos, e
comumente despertamos portando o mesmo aspecto físico,
e inclusive as mesmas queixas e sinais da patologia que nos
consumiu a carne. O corpo perispiritual após o túmulo,
nutre-nos com sensações idênticas às que nos mobilizavam
no périplo terreno. Movemo-nos, percebemos o ambiente ao
redor, comunicamo-nos e desempenhamos as mesmas
funções fisiológicas do organismo físico, sem que nos
deparemos com um mundo feito somente de energias
livres. Não somos seres diáfanos envolvidos por lençóis
fluídicos e não caminhamos no ar, como muitos poderiam
supor.

Nossa esfera, embora entretecida em matéria sutil, tem as


mesmas bases atômicas dos compostos físicos, e guarda as
suas mesmas propriedades, de tal modo que aqui nos
encontramos como se estivéssemos na crosta do planeta.
Envolvidos por um meio em tudo semelhante ao que
habitávamos, não nos surpreendemos com a nova
existência, o que não deixa de ser um conforto, pois uma
mudança radical em nosso plano de manifestação, seria um
grande óbice à continuidade do processo evolutivo que
prossegue sem interrupção.

241

O entorpecimento que nos acomete habitualmente no


instante do traspasse, inibe nossos mecanismos
proprioceptivos e sensoriais, obstaculizando-nos o nítido
registro das sensações do momento. Embora tal deficiência
perceptiva se apresente como um empecilho para a exata
compreensão do fenômeno, nas desencarnações
traumáticas é bênção divina, impedindo a reverberação do
pânico, que poderia privar o recém desencarnado do
sossego necessário ao seu refazimento. Como a maioria dos
desenlaces se realiza ainda em ambiente consciencial
inseguro e ínscio da sublimidade do processo, natural que a
obnubilação do momento funcione como uma defesa contra
as agruras que poderiam ser inadequadamente vivenciadas.

Destarte, é forçoso reconhecer que ainda não sabemos


morrer como convém. Duvidamos da sobrevivência e não
nos confiamos nos cuidados que o Senhor nos assegura. Um
dia contudo, o homem encarnado compreenderá a
excelsitude do fenômeno, e a ele se entregará com
naturalidade e fidúcia, vivenciando-o sem traumas, dores ou
temores. Enquanto isso não se dá, as doenças prolongadas
e consumptivas, permitindo um falecimento lento e
progressivo, ainda são recursos benéficos e necessários
para propiciar um conveniente desligamento do espírito,
preparando-o para a nova jornada, permitindo-lhe maior
bem estar e melhor conscientização de seu futuro estado.

Reunidos novamente em nossa sala de trabalho,


convocamos Alberto para a revivência da morte, pois seu
pleno contato com a nova realidade não podia ser mais
adiado.

Embora excessivamente traumática, fazia-se necessário


enfrentá-

la, absorvendo-lhe o impacto, liberando sua consciência,


facilitando assim a mais completa reconquista de seu
reequilíbrio.
Induzindo ao transe hipnótico, invocamo-lo à lembrança dos
últimos momentos de vida na Terra.

-- Tenho me preocupado com esse conflito. Dizem que


haverá bombardeios. Que absurdo!... – comentou, uma vez
situado nos derradeiros dias que vivera no mundo,
reverberando a sua presente ideia fixa, com riscos de
progressão para uma verdadeira monomania.

-- Não se preocupe com isso, a revolução constitucionalista


já acabou e o país está em paz agora. Não houve
bombardeios, você esteve fora por muito tempo e não
soube das notícias.

Queremos conversar sobre a morte, vemos que você anda


pensando muito em pôr um fim na vida...

-- A morte... é verdade, tenho pensado muito nela, não


posso negar. Várias vezes estive perto de morrer, mas
nunca tive

242

medo...Tenho a vida marcada pelos mais terríveis


acidentes...fui arremessado contra árvores, enfrentei
tempestades em pleno ar, o horror da queda livre, fogo no
motor do dirigível... Caí nos telhados do Trocadero... Afrontei
a morte diversas vezes, expus-me às situações mais
perigosas que um ser humano pode enfrentar...por isso hoje
tenho os nervos em frangalhos. Mas não bastou ter feito
tudo isso, hoje sou um esquecido, ridicularizado, até dizem
que dou azar... Meu nome não consta mais no rol dos
pioneiros do ar, fui preterido por outros. Não tenho mais
motivações para viver. O
passado já se foi e não pode mais voltar. Não me importo,
se morrer, já vivi o bastante. Hoje a amargura tomou conta
de minha alma.

-- Não deixe que sua mente se fixe nos dissabores, para não
aumentá-los ainda mais. A morte o perseguiu, mas você
sempre se saiu bem ao enfrentá-la com sangue frio e
sobreviveu a todos os acidentes. É preciso reconhecer a
sorte de haver superado as dificuldades e agradecer a Deus
por isso, olhando para o passado com mais otimismo.
Sabemos que você anda muito doente e queremos ajudá-lo,
mas é necessário que você comece por ajudar-se a si
mesmo, esforçando-se para soerguer o ânimo. Você tem
desejado a morte como solução definitiva para os seus
males, mas não lhe ocorre q1ue o túmulo seja apenas uma
porta de entrada para outra realidade, onde seus dissabores
poderão se exacerbar? O homem perante o acaso da vida
encontra-se diante de um mistério, jamais de uma certeza,
e aí ele deve depositar sua soberba e entregar-se aos
desígnios divinos, pois nada lhe atesta que realmente se
defrontará com o seu fim. A sua intuição em todos os
tempos, afirmou-lhe ser um espírito imortal, e todas as
religiões teceram elucubrações sobre a vida no além,
suscitando-lhe a veracidade. Rendamo-nos por isso às
evidências, e convençamo-nos de que o sepulcro não é o
fim. Se a própria matéria é indestrutível e as energias
apenas se transformam, que se dirá da consciência, o fruto
mais precioso da vida?

Ante o silêncio do irmão e com o propósito de alimentar-lhe


a mente com a crença na imortalidade, preparando-o para
enfrentar sua nova e inquestionável realidade, prossegui:

-- Não creia portanto, que o túmulo poderá libertá-lo de seus


dissabores. Entregue-se confiante a Deus, para que Ele
cumpra com seu destino, pois somente Ele sabe o que
melhor nos convém.

Receba as dores que a vida lhe presenteia como


necessidade de correção do orgulho, e não pense que
refugiando-se no féretro, encontrará o olvido definitivo dos
fracassos, ou a paz almejada.

Seu medo da morte parece superado, porém não por tê-la

243

sobrepujado com a crença na imortalidade, mas por já não


se encontrar em si, valor para continuar vivendo. Se é um
erro temê-

la, maior equívoco é desejá-la. Este sentimento não lhe


convém à alma doente, que continuará enferma enquanto
não se libertar de tais errôneas intenções, agravando-se
sobremaneira sua situação. Situemos sua mente na
realidade que você vive hoje, para que possa compreender
o que estamos lhe dizendo. Vamos vivenciar juntos o que
lhe ocorreu e você sentirá a verdade, dispensando as vias
da razão para se convencer dela. Comece por retroceder
sua lembrança aos últimos dias em que você esteve com
alguém de sua família ou em sua casa, antes de vir a ter
conosco. Recorda-se de onde estava?

-- Não me lembro... Sei que estou muito esgotado...não


quero ir a lugar algum. As longas conversas me cansam.
Meu sobrinho Jorge convidou-me para passar uns dias
longe. Ele agora não me deixa sozinho, pois andei pensando
de fato em matar-me... eles temem que eu concretize o
ato... Devo confessar, a vida já não tem mais nada a me
oferecer, não vale a pena continuar vivendo... nada me
prende a ela. Colhi somente decepções...

estou só... tanto esforço, para nada...

Aos poucos sua tela mental, sob indução hipnótica esboçava


a quietude de uma manhã de inverno. O horizonte distante
desenhava a linha do oceano e podíamos ouvir o chocalhar
do mar, próximo ao qual caminhava. Um céu límpido
irradiava claridade, sua mente porém se empalidecia.
Indizíveis angústias enevoavam de lúgubres presságios a
cristalina atmosfera marinha que o envolvia.

-- Onde você se encontra, Alberto?

-- Estou em Guarujá... Hotel de La Plage... quarto 152... A


praia está fria, deserta... Pelo menos assim é melhor, tenho
mais sossego... longe dos conflitos. Estão falando que a
Federação vai bombardear o porto de Santos. Será possível?
O coronel Euclides comprometeu-se a não usar a aviação,
mas já não podemos acreditar mais nisso. Escute! Não é o
barulho de um aeroplano?

Estão vindo para cá. Já me descobriram aqui... Não aguento


mais, não posso viver assim... Se eu morrer talvez desistam
disso... é o único jeito de ficar livre dessa agonia sem fim...
Minha cabeça!

Não consigo pensar mais...

Tomado de enorme aflição, mal conseguia respirar, e com


dificuldade continuou:

-- Não quero mais a vida, que Deus me perdoe... É melhor


colocar já um fim nisso tudo...

244
Um ronronar distante atestava realmente a presença de
algum avião voando nas imediações.

Cabisbaixo, recolhia-se ao quarto onde a figura de um


jovem se desenhava, espreguiçando-se na cama ainda meio
adormecido, embora o sol a meio caminho do zênite
denotasse já o fim da manhã. Certamente tratava-se de seu
sobrinho, convocado pela família para vigiar-lhe os passos,
diante de suas constantes ameaças de pôr fim à existência.
Ressumando tédio e certo mau humor, retirava-se o rapaz
em busca de cigarros, sem perceber que o tio, com a alma
em frangalhos, chafurdava-se em um fosso de amarguras,
movendo-se rumo à derrocada final da vida e, esgueirando-
se silente como sempre, fingia preparar-se para o banho.

Acrisolando o âmago vencido, subjugado nas raias da


derrota, encerrava-se em si mesmo. Não mais ouvia ou via o
que lhe passava ao redor. Não conseguia mais acomodar os
pensamentos em torvelinho na mente. O desiderato da
morte, com sofreguidão, ocupava-lhe por completo no
drástico instante.

Pesadas e aflitivas lágrimas lhe banhavam a face lívida e


sem expressão. A mente se aprisionava definitivamente na
ideia fixa: morrer. Evadir-se enfim das agruras de uma vida
de intoleráveis fracassos. Impossível ser, querer ou sentir,
anestesiado pela dor que lhe assenhoreava todas as
emoções. Somente a morte podia lhe concretizar a fuga em
desespero. Aflito, vasculhava as malas em busca das
gravatas. Os pulmões arfavam na impossibilidade de sorver
o ar. Suas mãos tremiam enquanto todo o corpo fremia na
ânsia de executar o insano propósito. O coração batia forte
e descompassado, e uma onda de pavor lhe tomava de
sobressalto a alma, porém a fuga em iminência lhe
sobrepunha coragem para o ato. Uma vertigem tomava
conta da consciência, afastando-lhe qualquer associação
lógica. Tudo estava irremediavelmente perdido. Não havia o
que pensar, nem mesmo o que sentir. Com determinação,
amarrou duas gravatas ao cano do chuveiro. Atou-as ao
pescoço. Atirou-se no vazio...

Sua face agora modelava o instante doloroso. Os estertores


da respiração sufocante assumiam ruídos pavorosos. Suas
mãos se levavam instintivamente ao pescoço em um
esforço inútil de deter o infame ato. Os olhos estáticos
pareciam saltar das órbitas, espargindo imenso assombro.
Enquanto seu corpo se retesava nos últimos suspiros,
deixando a língua pendente cianótica, sua consciência
sensória se apagava completamente. O alento da vida se
esvaía e a alma se debatia álgida, quebrada por imensa
agonia e indescritível dor. Dor que reverberava a revolta do

245

espírito contra a bênção da vida. Um torvelinho de energias


degradantes e caóticas, arrebatava-lhe o eu para as
profundezas do subconsciente em indescritível sensação de
queda num abismo sem fim. Sua tela mental se enegrecia,
apagando-se para a realidade.

-- É triste acompanhar o drama de um suicida de forma tão


viva e tão próxima a nós, Adelaide, porém este é o nosso
trabalho

– dizia constrito, observando que a amiga se deixava vestir


pela amargura do momento. – Busquemos em Deus forças
para não sucumbir ao pesar, perdendo assim a condição
mental de sustento que o enfermo nos suscita.
A fim de impedir a reverberação das reações
psicopatológicas desagregando-lhe a mente, despertamo-lo
do sono hipnótico, permitindo-lhe ainda uma mais exata
percepção da lembrança revivenciada. Semidesperto e
sentindo-se ainda vivo, ele se debatia em completo
desespero, diante da impossibilidade de respirar,
balbuciando flébil pedido de socorro, com os olhos
esgazeados, tomado de completo pavor.

-- Estou morrendo... socorram-me, por Deus... não consigo


respirar... não posso ver nada... que terrível escuridão... que
frio pavoroso! Por caridade, aqueçam-me... sinto o corpo
rígido, gelado, não posso mover-me. Meu peito... que dor
enorme...

tenho o peito aberto... Ajudem-me, por Maria Santíssima.


Não vejo ninguém... ninguém me ouve, ninguém pode me
socorrer... quero gritar, mas a voz não me sai... Onde estou?
Que enorme silêncio...

só vejo trevas ao meu redor. Até quando, meu Deus? O que


se passa? Por favor, acudam-me...

-- Acalme-se amigo, tudo isso já acabou, você está apenas


se lembrando do que ficou para trás. Não é mais realidade,
respire fundo. Estamos ao seu lado. Retorne ao presente, e
verá que já terminou.

Aplicamos-lhe passes de alívio, enquanto Adelaide proferia


sentida prece em seu favor. Entorpecido, procurava
desvencilhar o psicossoma das impregnações deletérias do
instante revivido, retornando aos poucos à sua condição
atual e, despertando em seguida ainda bastante assustado,
exclamou:

-- Tive um pesadelo terrível, vi-me enforcado. Que coisa


pavorosa! O que é isso, meus amigos:
-- Não se trata de um pesadelo. Procure recordar com mais
clareza. Sinta a realidade da lembrança...

Alberto, proferindo horripilante grito, assumia a lembrança


clara da vivência. Lágrimas abundantes lhe abrolhavam da
alma

246

opressa, diante do incontestável realismo do acontecimento


ainda vivo na memória.

-- Meu Deus! Será verdade? Como? Vejo a realidade, eu me


enforquei! Mas como pode ser isso, se continuo vivo?

-- Você está se lembrando de sua desencarnação. Ela de


fato aconteceu. Seu infeliz ato se concretizou. Você se
suicidou, meu amigo. A morte contudo, não é o fim e você
continua vivo na dimensão maior do espírito. Eis enfim, a
verdade. Você desencarnou e está agora no Mundo dos
Espíritos. Doravante você poderá compreender melhor tudo
que se passa ao seu derredor. Somos todos mortos, porém
vivos em outra realidade, na dimensão que se segue ao
túmulo.

-- Eu suicidei! É verdade, não posso negar o ocorrido. Eu


desejei a morte e me recordo agora que a busquei. As
gravatas...

o cano do chuveiro...posso recordar com clareza...Que Deus


me perdoe...Agora compreendo, posso ver a verdade. Cavei
um poço de infelicidades para mim mesmo...

-- O espírito sobrevive, Alberto, pois Deus não iria permitir a


destruição de sua mais nobre criação. Eis a realidade para
nós e é4 imenso consolo.

-- Mas se morri, não devia estar diante de Deus? Onde está


Ele? Devo estar no Purgatório, pois não vejo demônios. E
por que tudo ao meu redor é tão concreto, não estamos no
mundo das almas?

-- Você alimentou ideias falsas com respeito ao panorama


da vida no Além e não se preparou convenientemente para
esta nova dimensão, por isso tardou tanto a se desvencilhar
da inconsciência e a cientificar-se da atual situação. Nossa
esfera é em tudo semelhante ao plano que deixamos, não
se espante com isso e nem a negue, a fim de vivê-la com
intensidade. Você esteve por muitos anos retido em
prolongado sono, mas agora já pode perceber a nova
existência e suas diferentes necessidades.

-- Mas como pode ser isso?

-- Acalme-se, pois em breve tudo se acomodará em sua


mente de forma natural. No momento você precisa repousar
para recuperar-se do transe vivido. Depois você se inteirará
da evidência dos fatos.

Alberto, ainda em prantos, acalmava-se plenamente ciente


dos acontecimentos que vivenciara e que agora trazia vivos
na memória. Adormecia enfim, exaurido pelas intensas
energias vertidas nas emoções afloradas.

-- Quanta dor em uma alma! Não teria sido melhor deixá-lo


ignorando o ocorrido?

247
-- É fato comum depararmo-nos aqui com suicidas
ocultando de si mesmos o árduo drama vivido. O espírito
entretanto, não pode evadir-se da própria realidade
indefinidamente, sepultando suas faltas amargas como se
não as tivesse praticado. Ignorar a própria inópia por tempo
prolongado, é correr risco de cavar para si mesmo os graves
transtornos dissociativos descritos pela psiquiatria terrena,
pois os traumas do passado continuam ativos, embora
momentaneamente afastados do palco do consciente.
Reconhecê-los, é ir ao encontro de soluções seguras que os
acalmem definitivamente. Acrescido ao choque
reencarnatório, Alberto apresenta também um desses
quadros, a amnésia dissociativa, recurso defensivo e
impróprio, engendrado inconscientemente pelo “eu” para
afastar da lembrança um trauma excessivamente doloroso,
a fim de proteger-se do sofrimento que julga insuportável e
insuperável. No entanto, tal equivocada defesa, verdadeira
fuga do eu, é um primeiro passo como vimos, para a morte
ovoidal. Evadir-se é solução impossível, pois o trauma
permanece como fonte atuante de impulsos deletérios,
desorganizando os delicados tecidos da alma. Precisam vir à
tona para restituição do equilíbrio, o que somente pode ser
feito mediante a sua plena recordação, enfrentando a
realidade com galhardia, diante da própria consciência e de
Deus. Não há outro caminho possível, Adelaide.

-- Porém, o reconhecimento do ato danoso, com a imensa


culpa que ele comumente acarreta não lhe aprofundará o
quadro depressivo?

-- É uma ilusão pretender que a dor seja sempre um dano,


minha amiga. Reconheçamo-la como recurso divino a nosso
favor. Pode soerguer-nos o ânimo abatido, se soubermos
aproveitar-lhe o imenso potencial de regeneração da alma.
Se a vivemos com desespero e revolta, é que pode
aparentemente, aumentar-nos o peso das aflições, não por
intenção precípua da lei, mas porque somos nós mesmos
que nos colocamos em atrito com o seu sentido regenerador
e corretivo.

Reconhecemos que o trauma espiritual experimentado pelo


nosso amigo foi muito mais grave, injuriando-lhe extensos
territórios da alma. Sabemos que seus padecimentos não se
restringiram ao martírio do suicídio, um dos maiores
tormentos que o espírito humano pode experimentar, mas
foram acrescidos de uma distanásia imposta pela ignorância
dos homens. Embora pouco conhecido, o termo no mundo é
usado para indicar a morte lenta, embasada por grandes
sofrimentos: aqui contudo, utilizamo-lo para designar as
desencarnações obstaculizadas por diversos

248

motivos, prolongando-se indevidamente o desligamento do


espírito. O excessivo apego à matéria, a crença no vazio
absoluto após a morte, as aflições de parentes revoltados
agarrados à figura do morto , são fatores etiológicos
comuns deste quadro de dores, detendo na carne por tempo
excessivo, o espírito em processo de libertação. Estes não
foram entretanto, as motivações da distanásia em nosso
amigo. Seu corpo foi embalsamado, hábito completamente
indevido e especialmente contra indicado nos casos de
suicídio. Além da possibilidade de facultar ao inditoso
desencarnante as sensações desagradáveis das incisões de
suas carnes, o procedimento o retém preso por tempo
indeterminado, à roupagem orgânica em inadequado
processo de conservação. Temos notícias de que os obreiros
da desencarnação, aqui chamados obiatras, foram bem
sucedidos no bloqueio de suas percepções sensórias, ainda
íntegras depois da morte física, devido à persistência dos
liames que o prendiam à veste corpórea, impedindo-o de
sofrer as atrozes dores do ato necrópsico. Porém, não
obtiveram êxito no seu pronto desligamento, em
decorrência da isenção dos fenômenos da decomposição. O
estranho hábito humano de render tributo póstumo ao
corpo perecível, muito contribuiu assim para dificultar sua
partida da crosta, imantando-o ao ambiente de veneração a
que se habituara na vida. Em consequência disso, ele ficou
atado ao féretro por cerca de um ano, quando então os
obiatras o alijaram do pesado e inútil fardo orgânico,
livrando-o do encargo de aflitivas sensações. De nada
valeram as honrarias de chefe de estado com que foi
sepultado, o infeliz esteve retido no ambiente inóspito do
cemitério como um demente, vivenciando pesadelos
inenarráveis, até refugiar-se na inconsciência profunda,
quando então foi recolhido às Cavernas do Sono no Vale dos
Suicidas, de onde o resgatamos. Compreendamos contudo,
que infelizmente ele semeou este amargo destino para si
mesmo em demérito de sua condição.

-- Não imaginava que o embalsamento pudesse afetar desta


forma a desencarnação...

-- Para a maioria dos homens de mediana evolução,


Adelaide, a preservação do corpo físico por tempo
indeterminado, é obstáculo aos seus primeiros passos no
além, a não ser que se trate de alguém de elevada
envergadura moral. A indumentária carnal permanece como
poderoso atrativo do espírito após o desenlace, e por isso
sua dissolução é fenômeno favorável à sua libertação.
Povos, como os egípcios, que imortalizaram seus faraós
embalsamados em sarcófagos,

249
promoveram dificuldades para os espíritos, pois alguns
deles permaneceram atados aos seus restos mortais por
dezenas de anos. As famosas lendas de maldições
envolvendo as múmias, isentando-se os exageros das
fantasias humanas, guardam por isso certa veracidade do
ponto de vista espiritual, pois elas realmente retêm
reminiscências vibratórias das entidades que as habitaram.

Quanto à autópsia, sabemos perfeitamente que os espíritos


muito materializados e imbuídos de grandes maldades,
podem sofrer a interferência em seus despojos mortais logo
após a desencarnação, Poe permanecerem fortemente
jungidos aos mesmos, por período indeterminado. A grande
maioria entretanto, não se ressente destes procedimentos,
devido a intermediação ativa dos obiatras. Contudo, os
suicidas deveriam receber tratamento diferenciado por
parte dos encarnados logo após a morte, pois normalmente
guardam dificuldades e demandam muito maior tempo para
se desligarem de seus restos orgânicos.

Sempre que possível, dever-se-ia evitar autópsias,


cremações, e sobretudo, impedir formalmente a
embalsamação, em obediência à caridade e ao respeito às
dificuldades que podem acarretar para estes espíritos na
continuidade da vida. Se não estamos autorizados à prática
da eutanásia, por muito maior razão não nos convém ser os
protagonistas da distanásia.

A tarde chegara ao fim. Aguardaríamos as reações do amigo


diante do novo panorama da vida que se estendia diante de
seus atônitos olhos. Finalmente ele poderia realmente
assumir a completa conscientização de seu estado atual, e
de suas urgentes e novas necessidades. Reconhecidos a
Deus pelos resultados

alcançados,
proferimos

nossa

prece

de

agradecimento, aplicando passes de alívio em nosso amigo


que ainda dormia, encerrando nosso proveitoso dia.

250
24
capítulo

CONFISSÕES DA INTIMIDADE

“Há eunucos que pelos homens foram feitos tais, e outros


há que a si mesmos se fizeram por causa do reino dos céus.
Quem pode aceitar isso, aceite-o.”

Jesus – Mateus, 19:12

Apesar de açoitado por enorme decepção e supliciado pela


mais expressiva culpa que pode opugnar um homem ao se
reconhecer vivo após o ignominioso ato suicida, Alberto
reagira muito bem. Ao contrário dos receios de Adelaide,
sua recuperação fora mais rápida do que poderíamos supor.
A verdade chegara em hora devida, ensinando-nos que esta
tem sempre o seu momento propício para se revela, a fim
de não imputar ao espírito, dores que não possa suportar.
Por isso, o longo período de inconsciência que domina o
autocida após a sua desencarnação, é na realidade, bênção
divina em seu favor, resguardando-o de sofrimentos que
ainda não está preparado para assumir.
Como esperávamos, por muitos dias esteve ele recolhido
em si mesmo, profundamente envergonhado, e respeitamos
o seu silêncio, sustentando-o com nossa tácita compreensão
e as preces em seu favor, aguardando pacientemente que
ele se refizesse e retornasse à nossa relação. Confiantes na
lei, cabia-nos deixá-lo entregue às próprias confabulações. E
não tardou muito para que ele assumisse completamente
sua nova situação, assenhoreando pleno e consciente
contato com a irrefutável realidade com a qual se deparara,
encontrando no próprio imo as forças regeneradoras para
soerguer-se. Estampando serenidade no olhar, embora
ainda cabisbaixo e intimidado, voltava aos poucos a
dialogar conosco, retomando sua vida. Em breve o víamos
regressar aos jardins terapêuticos, trocando impressões
agora mais seguras, com os companheiros de igual desdita,
e já cientes de suas condições, momento de expressiva
importância para o suicida, funcionando em nossa colônia
qual verdadeira

251

terapia de grupo. De longe o assistíamos, observando que a


cada dia ele rapidamente se recompunha e superava o
amargo transe.

E logo, a conscientização da realidade tornou-se para ele o


mais salutar estímulo à plena recuperação. Um novo
horizonte descortinou-se aos seus olhos, estimulando-lhe
inquietantes e profícuas questões pertinentes à
sobrevivência do espírito. O

panorama infinito da vida, trazendo a ideia segura da


paternidade divina, reacendeu-lhe na alma desvalida um
viço de religiosidade, nascido em sincero anelo de
reencontro com o Sagrado. Genuflexo diante da grandeza
de Deus, incendiado por renovada fé, finalmente o víamos
orar com lisura.

Novo brilho Luzia em seus olhos, denotando o seu completo


retorno à razão e a conscientização plena de sua situação.

Reconhecendo suas muitas carências diante dos reais


valores do espírito, ansiava agora por solver os
ensinamentos que lhe facultassem um transcurso seguro e
feliz na nova existência que de fato assumia.

Sua face, embora ainda vestida de melancolia, contristada


pelos acerbos sofrimentos acumulados em prolongada
agonia, coloria-se enfim, revigorado pela esperança de um
futuro promissor, diante da certeza da imortalidade da
alma. Inovadas motivações passaram a ocupar-lhe a mente,
e os assuntos pertinentes à existência que ficou para trás,
foram substituídos paulatinamente por benfazejos
interesses referentes à vida maior do espírito.

Acoimando o renitente orgulho, apressava-se a obtemperar


os hábitos, higienizando a alma com salutar recato.
Acelerado ritmo de recuperação imprimia-lhe agora rápido
refazimento, de modo que tínhamos motivos para felicitar-
nos diante do esforço desprendido em sua melhoria. O
envelhecimento perispiritual detinha-se, frente ao inopinado
dinamismo, revigorando a força mental.
Nossos diálogos passaram a ser mais frequentes e mais
coerentes, atendendo sempre a sua inusitada curiosidade
na constituição do novo mundo e as novas questões que se
delineavam em sua mente, diante da insciência do espírito.

Assuntos como a organização da vida no além, as muitas


vidas da alma, a jornada evolutiva, Deus, céu e inferno,
passaram a ocupar intensamente suas inquirições,
aguçando sua sede de saber, perante a qual o matriculamos
sem demora, no curso de preparação espiritual
desenvolvido em nossa colônia, que passou a frequentar
com grande interesse. Logo se integrou também com
entusiasmo às reuniões no Templo de Oração de nossa
colônia. E

252

não tardou para que, reverberando os antigos interesses


que o motivaram na Terra, inquirisse sobre a existência de
veículos em nosso plano. Sobretudo mostrava-se ansioso
por conhecer nossas aeronaves, porém aconselhamos-lhe a
se dedicar ao espírito, sua máxima e urgente necessidade.
Posteriormente poderia satisfazer sua velha curiosidade,
examinando com detalhes nossos aparelhos de voo e o
maquinário que também nos serve às necessidades da vida.

-- Estejamos contudo, cientes do fato de que ainda é


necessário acompanhar-lhe o desenvolvimento espiritual,
ajudando-o a reconstruir o caráter em bases genuinamente
evangélicas – dizia à Adelaide, em momento oportuno. – É
forçoso admitir que ele ainda pode recalcitrar no antigo
orgulho, uma vez superado o trauma das plangentes
lembranças. Ainda devemos orientar-lhe os passos
vacilantes na nova vida, minha amiga. Se aceitamos a
tarefa com boa vontade, é imperioso concluí-la da melhor
forma possível.

-- Continuaremos nossas regressões terapêuticas, então...

-- Agora não temos mais necessidade de um estado


ampliado de consciência, sob indução hipnótica, pois seu
acesso à memória está completamente restituído.
Doravante podemos confabular com ele plenamente
intermediado no presente.

Devemos ajudá-lo a haurir o máximo de benefício possível


de suas frustrações, retirando delas as lições que a vida lhe
proporcionou, nossa mais segura orientação para o
refazimento espiritual. Vamos refletir juntos sobre seus erros
e suas necessidades, respeitando contudo, os limites de sua
intimidade. E, se nos primeiros passos de nosso
procedimento terapêutico, sua posição francamente
depressiva e autocatalítica exigia que os momentos
traumáticos do seu passado fossem evitados, agora ele
deve enfrentá-los, assumindo a responsabilidade pelos seus
erros, sob a ótica da nova realidade. Objetivaremos
portanto, a leitura de verdadeiras motivações que
realmente o conduzam no périplo terreno, induzindo-o a
identificar na posição de arrogância, a causa de todos os
seus males. Assumir os equívocos, é o primeiro passo para
se conquistar o equilíbrio da consciência, Adelaide.
Naturalmente que as leis divinas favorecem ao espírito esta
auto análise, especialmente após a desencarnação, quando
o novo panorama da vida o excita a reflexões profundas
sobre suas desventuras terrenas, exaltando-lhe a premência
das reformas.

Porém, se podemos apressar-lhe os passos nesta


caminhada, e temos a devida orientação para isso, nossos
lucros são evidentes.

Eis nosso roteiro de trabalho, lembrando sempre que se


ajudamos,

253

seremos ajudados, pois nossas necessidades ainda são


igualmente muito extensas, como você bem sabe.

-- Reconheço que temos uma função sobretudo de


orientação moral na reestruturação dos hábitos que o
espírito traz da experiência terrena, interferindo ativamente
em seus sentimentos e condutas. Contudo, não seria isso
contrário ao que nos recomendam muitos estudiosos da
psicologia, na atualidade?

-- Aqui estamos no cenário real da vida, e não no palco das


experimentações da carne; por isso nossa técnica difere da
usada nas psicoterapias terrenas, essencialmente no que
diz respeito à interferência dos hábitos morais de nosso
assistido.

Atuando ativamente nas considerações dos fatos


vivenciados, achamos por bem não aguardar pelas próprias
conclusões do paciente, por diversas razões. Sua urgente
necessidade de reequilíbrio não pode ser adiada, pois é
grande o risco de que se refugie nos porões da loucura,
acreditando-se impossibilitado de se recuperar, diante da
intolerância às dores íntimas, característica daquele que
ainda não se comprometeu com a Providência Divina. Os
veículos de percepção do espírito estão aguçados ao
máximo possível, e se ele não pôde até então alcançar a
compreensão de suas necessidades, é preciso que lhe
sejam mostradas com clareza. Direcionando e apressando-o
rumo às considerações de ordem coerciva, certamente
aceleramos sua disposição à reforma, dinamizando-lhe o
potencial evolutivo no plano espiritual, evitando-se assim o
desperdício de importantes oportunidades de crescimento,
proporcionadas pela nova vida.

Nosso contumaz orgulho, sobretudo, enceguecendo-nos a


razão, induz-nos a errôneas conclusões ao fixar-nos a
posição de vítima como justificativa para todos os nossos
males, eximindo-nos de assumir diante da lei, o cabedal de
culpas necessário ao aproveitamento das lições corretivas
que a vida nos oferece. Um observador externo detém
melhores condições para identificar esses erros, pois como
nos asseverou o Evangelho, somos capazes de notar um
argueiro no olho do irmão, sem perceber a trave no próprio.
Por tudo isso, em nosso plano, o aconselhamento
terapêutico de ordem moral é o mais indicado para o
espírito ainda pouco amadurecido. Ajudando-o a
desvencilhar-se dos empecilhos ao juízo de si mesmo,
contribuímos para que seu sofrimento seja o menor
possível.
O terapeuta no mundo terreno não assumiu ainda esta
posição moralizante diante do paciente, porque a ciência
psíquica, ainda em desenvolvimento na Terra, e insciente
das realidades do espírito, não se predispôs a ver na
desobediência à

254

lei, a causa de todos os males do ser. Prefere inquirir


complexos mecanismos da consciência, identificando em
traumas ou erros ignotos de formação da personalidade, as
causas de seus reajustes, justificando interferências de
ordem duvidosa no campo emocional, sem resultados
eficazes no seu crescimento rumo à divindade. Toda terapia
para ser proveitosa, deveria ser antes de tudo,
essencialmente um apostolado moral orientado para o bem.

E o psicólogo, por premente exigência de sua área de


atuação, precisa ser o primeiro a aplicar a si próprio uma
ética elevada de vida, a fim de tornar-se um agente
terapêutico eficaz a serviço da lei. No futuro, as terapias
irão evoluir para um aconselhamento de implicações
sobretudo morais. Se a nobre ciência não investir em uma
solução dessa ordem para os problemas humanos, diante da
lei inserida na consciência de cada um, todos os seus
intentos serão falazes provisórios, ou mesmo
contraproducentes. Reajustar-se com a lei é o único
caminho possível para a felicidade, e para isso justifica-se
aguçar todos os instrumentos cognitivos, volitivos e
emocionais do espírito, na prática do amor e da renúncia ao
doentio personalismo.
Na atualidade, praticamos em nosso plano o que chamamos
de orientação espiritual, processo terapêutico que visa não
apenas a sobraçar amorosamente o assistido, mas
sobretudo distender o seu horizonte consciencial, fazendo-o
ver os erros e os imperativos de reforma íntima, ampliando
seu conhecimento da lei e desenvolvendo-o ativamente
rumo à maturação moral, o que é exatamente o escopo
maior da evolução, e processo no qual todos, queiramos ou
não, estamos empenhados. Qualquer terapia que não
atenda a esses propósitos tem resultados irrisórios e está
fadada a inevitável fracasso, não nos iludamos. A vida, não
somente no plano do espírito mas onde quer que se
manifeste, trabalha ativamente para atingir esses mesmos
objetivos, pois como sabemos, renascer no corpo físico é
expor-se a situações, dificuldades e dores, que visam
sempre à correção dos vícios do personalismo. Isso faz da
jornada terrena muito mais do que uma simples escola que
educa, mas sobretudo, verdadeira psicoterapia para a alma,
satisfazendo na justa medida a todas as suas necessidades
de ajustes e crescimento, Naturalmente que, continuar
pesquisando nos remanescentes do passado os indutores de
traumas, e conduzindo o paciente a reencontrar-se com os
próprios erros propiciando-lhe soluções adequadas, é de
proveito para qualquer assistência de auxílio à ordem
emocional, procedimento intensamente utilizado em nosso
plano. Sem olvidar que a orientação espiritual não pode
dispensar a premente

255

necessidade de se transformar o assistido em assistente,


induzindo-o a ser agente terapêutico de si mesmo,
tornando-o senhor de suas ações, e ciente das
consequências de seus atos.
Condizentes com estes promissores auspícios,
programamos novas sessões terapêuticas, e na data
aprazada reunimo-nos novamente, em nosso ambiente de
trabalho. Alberto agora, sob novas motivações e desejoso
de refletir sobre suas façanhas terrenas, abria sua alma
para nossa análise, sem intimidar-se.

-- Hoje sei que trago um passado de muitos erros, cometi o


maior deles que foi o ato covarde de abandonar a vida,
negando suas lições e minhas necessidades de aprendizado.
Por isto, devo agradecer aos amigos e peço a Deus
recompensá-los pelo muito que me têm proporcionado –
dizia Alberto, em plena consciência de si mesmo, e da
tarefa que desempenhávamos junto a ele.

-- Estamos reunidos para ajudá-lo e sermos ajudados


também, amigo, pois certamente suas experiências de vida
nos serão preciosas lições. Todos somos necessitados diante
da grandeza divina e da pequenez que nos reveste a alma,
e sem distinção, gostaríamos de alimentar-nos apenas das
glórias e dos sucessos do passado. Por isso nos agrada
ocultar a humilhação dos fracassos e os traumas dos
grandes erros, evadindo-nos das intoleráveis lembranças
que nos suscitam. Nossa posição de inferiorizado orgulho no
entanto, requer que essas dores forjem nossas almas a fim
de que a enfermiça arrogância não continue incitando-nos a
futuras aflições. Sejamos portanto, corajosos o bastante
para enfrentar a própria penúria que nos macula o espírito.
Deixemos que nos esfacele a contumaz petulância, diante
das lições de humildade que a vida nos suscita.
-- Estou pronto a desnudar-me da melhor maneira possível.

Sou um homem renovado, e sei que trago um fosso de


dores e desacertos na alma.

-- Retroceda então aos seus momentos mais amargos na


vida, e nos fale sobre as dificuldades que se contrapuseram
à sua felicidade na experiência carnal.

Surpreendido diante da clareza das lembranças que


evocava, Alberto se admirava da facilidade com que podia
agora recordar-se, ciente das dificuldades que até então lhe
obscureciam a mente. A evacuação das emoções mórbidas,
retidas em seu psiquismo, permitia-lhe agora maior nitidez
da visão mental, embora ainda não detivesse toda a
potencialidade mental comum ao desencarnado em
equilíbrio, em nosso nível evolutivo. O espírito despojado de
suas grandes dores e liberto do

256

abafamento que a carne lhe impõe, pode experimentar


grande amplitude psíquica, sabor maior de nossa vida na
erraticidade.

-- Minha primeira grande frustração na vida foi reconhecer


minha pequenez física, sentindo-me franzino, sem
condições de enfrentar as mínimas disputas infantis.
Inseguro, preferia desistir delas a ver-me derrotado. Todos
me olhavam com desdém, como se pelo pouco tamanho, eu
nada valesse. Além do mais, as horríveis orelhas de abano,
e a cabeça desproporcionada me deixavam consternado...

-- Isso o fez recolher-se em si mesmo. Temos aqui uma


primeira lição. Seguramente você reencarnou com
importante cerceamento físico limitando sua atuação na
vida, por ter-se habituado a extrapolá-la em outras
experiências reencarnatórias, meu amigo. Os espíritos que
se agigantam de soberba, são levados comumente a
renascimento em organismos frágeis, inibindo-se-lhes a
falsa grandeza. Induzido à insegurança e à timidez, você
apenas recolhia os reflexos de arrojos inadequadamente
alimentados no personalismo, exageros perigosos para o
seu equilíbrio evolutivo e sua saúde psíquica.

Você engendrou para si mesmo em outro momento essa


necessidade, e mais tarde poderá compreender isso. Sua
mais importante lição na escola terrena foi, seguramente,
aprender a respeitar os próprios limites, inibindo antigos
vícios de arrogância com que alimentou a alma. Tenha a
certeza ainda de que a frustração física serviu-lhe como
poderoso estímulo para a conquista de outros valores na
vida, na medida que deixou sua alma vazia de satisfações
primárias, excitando-o a preenchê-la com a exaltação da
criatividade, conduzindo-o ao melhor cumprimento de sua
missão, meu amigo.

-- Compreendo...Tímido, acabrunhado, precisava sempre da


proteção de meus irmãos, especialmente do Henrique, da
Virgínia e do meu pai, em favor de minha pequenez, e
acomodei-me no âmbito seguro da família. Mais tarde,
quando meu genitor mandou-me para a Escola de Minas de
Ouro Preto, a fim de fazer-me um engenheiro como todos
em casa, sentime extremamente inseguro e não suportei a
ausência da proteção do lar. Minha timidez me impedia de
conversar com qualquer um que gentilmente se
aproximasse, procurando ajudar-me. Tomado pela covardia,
abandonei a escola, enfrentando a discriminação dos meus
pais e as críticas de meus irmãos. Confesso que não dei
conta de ficar longe principalmente de meu pai, meu refúgio
seguro diante da extremada insegurança. Meu genitor,
sempre bondoso, compreendeu-me. Meus irmãos
entretanto, humilharam-

257

me ainda mais diante do primeiro fracasso na vida. Depois


desse dia, vi que meu pai não acreditava mais que eu
viesse a me tornar um homem de verdade, sentia isso em
seu coração, o que se tornou motivo de grande sofrimento
para mim.

-- Sabemos que seu genitor, notando-lhe a personalidade


frágil e temendo que você não se realizasse na vida,
intuitivamente resolveu investir na confiança em você,
dando-lhe logo carta de emancipação, mandando-o sozinho
para estudar em Paris.

-- Sempre reconheci que sem o seu incentivo nada teria


realizado na vida. Sou-lhe imensamente grato, e gostaria de
reencontrá-lo e agradecer tamanha generosidade para
comigo.

Sua carta de emancipação foi para mim, um verdadeiro


atestado de confiança em minha pessoa, e sem este
estímulo não teria de fato me tornado alguém, embora hoje
julgue que me fiz mais um fantoche de glórias mundanas do
que um homem de fato.

-- Temos notícia de que seu pai se encontra reencarnado, o


que não o impede de revê-lo. Certamente esse reencontro
se dará quando você estiver mais bem preparado para isso.

Aguarde com paciência. Seu recolhimento entre pessoas


alheias ao seu antigo convívio familiar, lhe é no momento
necessidade de refazimento dos panoramas desfeitos da
alma.

-- Reconheço que fiz da vida depois disso, um constante


teste para provar a mim mesmo, e mostrar ao meu pai que
podia me tornar um grande homem...

-- Em sua primeira vitória na vida, ao ganhar o primeiro


prêmio Deustch, recordamos que você lamentava a sua
ausência...

-- E nos momentos de fracassos também, via-me diante


dele, como a lhe dever obrigação de acertar sempre, pois
passei a viver na intenção de corresponder à confiança que
ele havia depositado em mim.

-- Embora assim justifique tal sentimento, nesse


compromisso de acertar sempre, você atendia na verdade,
ao desejo de superar a frustração do orgulho, tentando
sobretudo, suplantar as deficiências identificadas e mal
toleradas na personalidade. Na verdade você recalcitrava
diante da necessidade de impor limites à egolatria, sedento
de projeções na vida, recapitulando velhos hábitos do
personalismo doentio.

-- Um castigo então, por algo ainda anterior que eu tenha


feito?

-- A vida na carne, Alberto, não consiste em um mero rol de


punições para o nosso passado delituoso. Seguramente
todos

258

comparecemos nela, para o desempenho de tarefas visando


sempre ao nosso engrandecimento e melhoria, e para isso
cumprimos sempre, com um plano previamente traçado de
tarefas. As dificuldades são planejadas não para nos inibir o
potencial de progresso, mas para a correção dos rumos,
coibindo antigos abusos. Isso faz de toda vida uma missão,
ainda que objetive unicamente a própria regeneração. Você
renasceu com a tarefa de reformar os errôneos valores
arquivados no passado, mas devia também dar sua
colaboração em prol do progresso humano. Haverá motivos
para isso em seu pretérito, e os conheceremos se possível.

Após breve silêncio, Alberto umedecia os olhos, trazendo à


lembrança novos pesares que o moveram na romagem
terrena.

Vencendo a barreira da natural inibição, e confiando


plenamente em nosso apoio, deixava verter dos recessos
mais profundos da alma, o seu mais acerbo drama, oculto
nos disfarces de dissimulado personalismo. Denotando
sinceridade na intenção de reequilibrar-se, e deixando-nos
antever a grande frustração que de fato o movera na vida,
espargia sua dor dizendo-nos:

-- Sempre me senti muito mal comigo mesmo, não é fácil


ser um baixinho...mas...devo confessar...meu maior
desapontamento foi verificar que meus genitais não
cresciam...Uma grande preocupação tomou conta de mim,
mas nunca tive a coragem de contar o fato para ninguém,
sequer para o meu pai. Escondi de todos, não pode haver
vexame maior para um homem...

Alberto chorava, estampando a vergonhosa realidade que


impregnava de opróbrios a alma sensível. Além da
compleição apoucada que a vida lhe presenteara, a
estrutura física, uma criptorquia (Ausência de testículo no
escroto, normalmente unilateral) somada a um irreversível
hipogonadismo (Baixo desenvolvimento das gônadas e dos
órgãos genitais) congênito, impusera-lhe um precário
desenvolvimento aos órgãos sexuais. Uma prova
seguramente necessária que lhe inibira definitivamente a
vida sexual, nutrindo-o de permanente frustração, e cujas
causas se enraizavam, seguramente em passado ainda
mais remoto. Teríamos que buscar a compreensão dos
motivos de tão importante deficiência, imposta por um
destino que somente pode nos pretender o bem, a fim de
lhe mostrar a necessidade da dura lição. Entendíamos
naquele momento que estávamos diante de um espírito
dono de importantes conquistas no campo da inteligência,
portando aguçada criatividade, mas que envergara na vida
grave inibição sexual. Servira-lhe no entanto, como
preponderante fator excitante das funções criativas da
alma, colocando-o a serviço do

259

progresso humano. Sabemos que das dores mais acerbas, a


sabedoria de Deus tira os maiores proventos, não somente
para o seu protagonista, mas para o bem comum. Sua
personalidade, inibida nos mais genuínos anseios humanos,
viu-se desta forma compelida a arrojar-se em aventuras
incomuns, numa afanosa busca de realizações pessoais que
lhe compensassem o insolúvel malogro.

-- Entendemos seu desgosto, Alberto. É realmente


lastimável assistir a um jovem tecendo a vida com lídimos
sonhos, frustrar-se em seus mais legítimos desejos.
Devemos porém, aceitar que nada nos acomete por acaso,
meu amigo. Nascemos com o peso de muitas necessidades
de aprimoramento, e sem dúvida, esta foi uma imposição
que visava a inibir-lhe antigos vícios, e protegê-lo de
sofrimentos ainda maiores, tenha a certeza disso. As
grandes dores que nos assediam a alma, trazem sempre
importantes lições para o nosso crescimento. Se a vida lhe
impôs este aprendizado no campo de expressão da
sexualidade, o irmão deve agora aproveitar, sedimentando
o ensinamento para que no futuro não venha recair em
erros do passado. O Mestre nos recomendou não tornar a
pecar para que não nos suceda sofrimentos ainda maiores
do que daqueles que sanamos.

-- Não me era possível compreender a necessidade de


tamanha dor, como ainda não a entendo muito bem, mas
fui obrigado a vivê-la. O que podia fazer? Nascera assim e
sabia que ninguém poderia me ajudar... Isso me fez um
homem infeliz, arredio dos contatos femininos,
transportando o fardo do opróbrio que me vergava a alma,
plena de secretos desejos, jamais satisfeitos. A solidão
passou a ser a companheira de minha desdita. Vivia
rodeado das mulheres mais belas do planeta, muitas delas
se insinuavam com interesses pela minha humilde pessoa,
mas não podia enamorar-me... Nascera para o celibato
compulsório, podia apenas sonhar...

-- Embora lhe pareça uma aparente crueldade da vida, isso


representava uma vantagem e uma proteção contra novos
Eros, que certamente lhe habitaram os hábitos do pretérito.

Capitulando diante dos alvitres de uma vida de prazeres,


você era incitado a desenvolver outras potencialidades de
sua alma. Era rico, mas isso não bastava para projetá-lo
com destaque na refinada sociedade parisiense onde
desejava sobressair-se. Fez-se portanto, um desportista de
arrojos, na necessidade de sobrelevar a apoucada
personalidade no cenário das projeções humanas.

Voar! Eis a solução para assoberbar a pequenez! Fazer algo


que somente os grandes corajosos podiam fazer. Crescer na
ousadia

260

de enfrentar os fortes ventos. Desafiar a morte nas alturas.


Arrojar-se nas nuvens, e fazer imensa a pequenez humana
diante da vastidão dos céus. Depois empreender o
inusitado, projetando-se na fileira dos homens ilustres e
inscrevendo o seu nome na História...

-- Nunca havia pensado nisso... é possível, é possível... --

respondia o amigo, sem conseguir ocultar a decepção de si


mesmo, encobrindo-se porém, de salutar humildade.

Estavam assoalhadas naquele momento, as profundas dores


de um espírito em trânsito na História dos homens, e
completado o panorama íntimo que o projetara no heroísmo
compulsório.

Frustrações e dores que o excitaram a galgar patamares de


superação além das fronteiras humanas, sobrelevando-se
doentiamente de si mesmo e da vida. Eis o nosso Ícaro
despido diante de sua dura realidade. Embalou dessa forma
as forças psíquicas de sua personalidade na inadequada
expansão que, em seu rebote compensatório, o arremeteu à
contração de si mesmo, no completo desvalimento do
espírito. Eis por que o impulso contrativo foi tão grave. O
reconhecimento e a compreensão dos mecanismos
vicariantes e defensivos, que engendrara para proteger o
ego doente, ajudá-lo-iam na busca do reequilíbrio,
sedimentando-lhe no imo da consciência a dura lição,
protegendo-o com segurança de novas quedas, e
estimulando-o a viver doravante na moderação necessária à
felicidade.

Era conveniente encerrarmos o proveitoso trabalho e deixá-

lo a sós, permitindo-lhe salutar reflexão em torno das


importantes questões amealhadas nas rememorações do
dia.

Adelaide, condoída diante da dura realidade vivida por


Alberto, interrogou-me posteriormente:

-- Estive pensando, Adamastor, não aprendemos que a


carência sempre se segue à hipertrofia? Neste caso, não foi
a deficiência sexual que o induziu à exaltação
compensatória das energias psíquicas? Certamente que se
ele não tivesse vivenciado tão importante frustração, não
teria se expandido além dos limites, acomodando a
personalidade ao cerceamento natural de suas
potencialidades. Confesso que estou confusa diante da lição
aprendida.
-- De fato, Adelaide, ação e reação se interligam em efeitos
e contra efeitos, confundindo-nos às vezes na identificação
do que é primário e secundário. Por isso, muitas vezes
somos levados à interpretar a carência como a indutora das
errôneas hipertrofias da psique. O raciocínio é por demais
pertinaz e pode nos conduzir

261

a falsas conclusões, principalmente porque agrada ao


espírito humano, ver-se imolado sem justificativas pelas
pretensas falhas da vida. Somente entenderemos o
aparente paradoxo, analisando o fenômeno da
personalidade humana ao longo de muitas existências, e
enxergando com clareza os seus impulsores fundamentais.
Mas não nos enganemos, o erro e o abuso sempre
antecedem a deficiência, é da lei. Deficiência que, por não
ser devidamente tolerada, irá gerar novas reações
defensivas de natureza compensatória, incorporadas na
personalidade em forma de outras inadequadas
hiperpsiquias. No caso de nosso amigo, encontraremos
seguramente os excessos que legitimaram sua deficiência
sexual, em um passado mais remoto, interpondo assim a
dor em seu devido lugar, ou seja, no campo dos efeitos e
nunca no das causas. Aguardemos a evolução dos fatos, e
compreenderemos melhor, não se impaciente.
262
25
capítulo

LIÇÕES PARA A ETERNIDADE

“A Soberba precede a ruína, e a altivez

do espírito precede a queda.”

Provérbios, 16:18

A história dos homens, sem que eles o saibam, é um


processo na verdade, conduzido pelo mundo espiritual, e os
grandes vultos que desempenham os papéis principais em
seus cenários, são apenas executores dos planos de nobres
entidades que nos governam os destinos. Os saltos
evolutivos são sempre movimentos previstos e
desempenhados por missionários devidamente preparados
para este fim. Entretanto, os protagonistas da história nem
sempre são espíritos superiores, oriundos de esferas
elevadas, porém personagens do próprio roteiro planetário,
chamados a contribuir muitas vezes, sem se darem conta
do fato, por se acharem em situação inadequada ao
desempenho da tarefa. É

que os orientadores dos destinos humanos, cientes das


necessidades do progresso e carentes de elementos que
executem

arriscadas

tarefas

desbravadoras,

utilizam-se

comumente de espíritos submetidos a estas imposições,


aproveitando-lhes os impulsos ocultos, a fim de fazer valer
seus objetivos. Assim nascem heróis, resgatados entre
figurantes do palco da vida, forjados muitas vezes por
secretos deméritos, vergastando-lhes a soberba e movendo-
os do patamar de comodidades em que gostariam de
repousar.

Alberto fora destes próceres, nascido da necessidade de


ressarcimentos pessoais. Por compromissos assumidos em
passado que até então não vislumbráramos, investiu-se de
tal mandato corretivo que o situou no cerne da importante
questão da conquista aérea. Motivado ainda por acerbas
dores, diante da pequenez física e da sexualidade inibida,
viu-se estimulado à máxima exaltação do já extremado
ímpeto inventivo. Não queremos com isso destituir o mérito
de seus avançados empreendimentos, mas apenas revelar
que o espírito humano em

263

nosso nível, é ainda premente de necessidades evolutivas, e


não se deixa conduzir somente por sentimentos nobres em
seus atos épicos, coisa possível de encontrar-se somente
dentre aqueles que atingiram a santidade. Isso nos mostra
ainda a beleza da lei divina, que faz com que todo
sofrimento e até mesmo o mal, cumpram funções precisas
na evolução contribuindo para o progresso de todos.

Sabemos que todos os escolhidos para o desempenho de


tarefas importantes no rol das necessidades humanas, tem
suas encarnações cuidadosamente planejadas pelo plano
espiritual, que designa espíritos para lhe seguirem os
passos. Por isso Alberto teve seus riscos calculados e suas
possibilidades previamente medidas para que tudo se
realizasse conforme um programa a seguir. Porém, não é
somente o curso daqueles considerados indispensáveis ao
progresso que são devidamente preparados, pois toda
encarnação é uma missão, mesmo que objetive a própria
melhoria. Todos, dessa forma, recebem a ajuda necessária
visando ao máximo aproveitamento da experiência terrena.
É um erro conceber-se a vida, em qualquer nível que se
desenvolva, como uma sucessão aleatória de fatos ao sabor
do acaso, pois todos somos assistidos e acompanhados por
auxiliares do bem comum que nos incentivam ao progresso,
influindo decisivamente em todos os momentos de nossa
história individual e coletiva.

Importa considerar destarte, que se nos consorciarmos aos


comparsas da maldade, movendo-nos nas cadeias do ódio,
ou nos sujeitamos ao assédio contumaz de inimigos atrozes
do passado, estamos apenas usando a liberdade de ação
que a lei nos faculta, fatos que podem ser previstos, mas
jamais programados pelo mundo maior, que visa sempre à
nossa reintegração nas fráguas do amor.
Nosso amigo agora se refazia rapidamente. A exposição de
suas frustrações no campo da sexualidade, e o
reconhecimento de sua profunda insegurança, assumindo-
os como exercício necessário à inibição do orgulho
desmedido, fora-lhe novo alento para a recuperação. As
energias emocionais desfeitas iniciavam sua regeneração,
incitando-o à eficaz cicatrização dos tecidos da alma,
lesionados pelas farpas da arrogância. Entretanto, cabia-nos
continuar ajudando-o na reestruturação dos panoramas
íntimos, a fim de consolidar os ensinamentos que a escola
carnal sabiamente lhe ofertara.

Ciente dos novos fatores que interferiram em sua


personalidade, e conhecendo melhor agora sua psicologia
de ação, continuamos nosso diálogo:

264

-- Entendemos seus intensos dissabores vividos na Terra,


Alberto, mas não se sinta constrangido diante dos fatos
revelados.

Não detemos motivos para considerá-lo em posição


inferiorizada pelas inibições que o conduziram no
educandário terrestre. Todos, sem exceção, somos
igualmente necessitados de duras lições na vida, a fim de
corrigir a rebeldia secular que nos move.

-- Sinto que pesado fardo me foi alijado da alma, depois que


lhes relatei minha dor. Agradeço-lhes a carinhosa ajuda. E
tenho me esforçado para compreender a necessidade de
tamanho sofrimento...

-- Reputemos a Deus a sua melhora, pois somos apenas


instrumentos da assistência divina, sempre presente em
nós.

Continuemos contudo, nossas considerações em busca de


sua recuperação, cientes de que nossas dores nunca são
superiores à nossa capacidade de tolerá-las, e se adaptam
sempre às necessidades. Entretanto, convém esclarecer-lhe
alguns fatos que lhe farão bem em conhecer. Embora
eivada de dissabores, sua vida foi uma missão. Nobres
entidades do nosso plano, interessadas na melhoria da vida
humana, planejaram-na cuidadosamente, prepararam-no
devidamente antes do nascimento, e acompanharam seus
passos orientando-o para o cumprimento dos fins propostos.
Por isso, ainda que sempre tenha se sentido um homem só,
você não esteve em momento algum, entregue a si mesmo
e foi amparado em toda situação de dificuldade. Entretanto,
não se admire disso, pois não há vida que não seja um
apostolado do espírito, guardando toda existência, a sua
importância diante dos propósitos do Criador e se executa
sempre dentro de objetivos nobres a serem atingidos.

-- Reconheço que me via sempre atiçado ao trabalho, e não


encontrava sossego íntimo no repouso. Percebia mesmo que
algo me impelia. Não fosse isso, teria desistido em diversas
ocasiões, mas não me sentia cumprindo um mandato...

-- Sua alma era compelida à tarefa, um impulso íntimo que


não se silenciava, impedia-lhe a inação e a incúria não
encontrava lugar em sua consciência. A verdade, amigo, é
que a equipe espiritual que o assistia, estava sempre
atenta, orientando-o devidamente nos caminhos da vida,
pronta a atender às suas necessidades. Atiçavam-lhe a
alma, ocupando-lhe a mente com a profusão de ideias que
não lhe davam sossego enquanto não as concretizasse.
Situaram-no no rico ambiente de Paris, por aí se
encontrarem os meios adequados aos seus
empreendimentos.
Conheciam no entanto, os riscos da devassidão a que você
se expunha, e trataram de afastá-lo da frívola sociedade de
então,

265

daí seu fácil fastio perante a desregrada vida social


parisiense, o lugar mais arriscado para um jovem
endinheirado como você.

Para isso, ainda contaram com a inibição imposta à sua


sexualidade, e portanto, o que lhe parecia um dano, fora na
verdade um precioso auxílio.

Diante do assombro de nosso amigo, continuei:

-- Analisemos seus passos na vilegiatura terrena.


Comecemos pelo malogro na Escola de Ouro Preto. Esta foi
de fato a primeira e séria objeção ao cumprimento do
programa traçado. Seu grande sofrimento, diante da
sujeição à insegurança, era o indício seguro de que seu
caminho na vida estava ameaçado. Nossos desejos
antecedem nossos passos e nossos atos na vida, Alberto,
pois o coração fornece sempre a orientação segura para a
jornada, fomentando-nos de angústias quando ameaçamos
mudanças de rumos, e comprazendo-nos ao acertá-los. A
formação em Mecânica devia facultar-lhe maior segurança
profissional para o melhor desempenho do trabalho que lhe
competia realizar, e seu pai estava certo ao desejar lhe
fazer um engenheiro. Diante da capitulação, seus
prestimosos amigos espirituais cuidaram de suplantar a
dificuldade inicial, encaminhando-lhe mais tarde o professor
Garcia, homem culto e de sólida formação moral,
terminando igualmente por proporcionar-lhe a mesma
orientação de que você necessitava para o desempenho da
tarefa.

Sua relevante insegurança, contração de antiga e orgulhosa


confiança em si mesmo, era na verdade, um dos maiores
óbices à efetivação de sua tarefa. Nesse sentido, a carta de
emancipação de seu pai desempenhou importante papel,
conferindo-lhe adequado desenvolvimento à autoconfiança.
Tratou-se no entanto, de incisiva sugestão da espiritualidade
que o assistia, prontamente atendida pela generosidade de
seu genitor. A perigosa quantia de dinheiro que ele
depositou em suas mãos, intuindo que logo desencarnaria,
e pensando ser esta a única forma de recrudescer-lhe a
apoucada personalidade, atendia ao mesmo objetivo.
Facultando-lhe viver por toda a vida sem o esforço do
trabalho, ele se arriscou a transformá-lo em um títere de
luxúrias, porém, não é de se admirar o fato de que você
nunca se entregou ao ócio? Não o surpreende ter sido esta a
exata quantia de dinheiro de que você necessitou para a
construção de suas dispendiosas máquinas aéreas? Isso
demonstra que essa fabulosa reserva monetária, não visava
proporcionar meios para inúteis aventuras de um jovem
tresloucado, mas ao cumprimento de uma missão.

266

-- Devo confessar que ainda não compreendo bem estas


alegações do amigo, mas não posso duvidar delas, pois aqui
estou, diante da realidade surpreendente desta nova vida, e
me admiro do conhecimento que vocês detêm de
acontecimentos que pertencem unicamente à minha
intimidade, e jamais os revelei a ninguém. Realmente,
depois do fracasso de Ouro Preto, pensei que não me
realizaria na vida, e conduzir locomotivas ou reparar
máquinas de beneficiamento de café, seriam as únicas
atividades que daria conta de desempenhar. E, de fato, a
carta de emancipação de meu pai impressionou-me
sobremaneira, e reconheço que sem ela teria sucumbido à
insegurança. Nada posso negar.

-- Saiba ainda que seus amigos invisíveis permaneceram ao


seu lado durante toda a sua vida, cuidando de detalhes de
que você nunca se deu conta, e sem os quais sua
empreitada não teria sido possível. Por exemplo: na
meninice, quando você se refugiava na casa de
beneficiamento de café, por não se ver valorizado nas
brincadeiras com outras crianças, estava na verdade sendo
por eles adestrado, preparando-se para o futuro,
desenvolvendo um precoce interesse pelas máquinas. Seu
pai o incitava ao estudo da Mecânica, obediente às
sugestões que eles lhe ditavam à intuição. Foram eles que
lhe entregaram em mãos os preciosos livros de Júlio Verne,
a fim de enriquecer sua criatividade no campo das ciências.
E você não se encontrou com os baloeiros Lachambre e
Machuron por mero acaso, acredite, pois também lhe foram
conduzidos. Os mecânicos que lhe serviram, mereceram
cuidadoso adestramento no plano espiritual, pois sem suas
inigualáveis perícias, você estaria correndo sérios riscos em
suas máquinas aéreas. Especialmente o exímio Anzani, o
mais habilidoso deles, fora treinado no desenvolvimento de
motores com a potência e a leveza que suas aeronaves
requeriam. Antônio Prado era orientado para lhe dar suporte
na administração financeira, escolhido pela irretorquível
honestidade, pois se lhe faltasse o indispensável sustento
monetário, sua missão estaria seriamente ameaçada. A
bondosa Eulália, sua caseira, havia se comprometido a
ampará-lo na velhice desvalida, que no entanto, não
chegou. Todos atendiam ao convite da espiritualidade que,
com inestimável solicitude, zelava por você, meu amigo.
Rendamos graças a esses tutores desconhecidos que não
medem esforços para disponibilizar-nos os recursos
imprescindíveis ao cumprimento de nossos papéis na vida.

Alberto, ao se convencer dos cuidados de que fora objeto,


silenciava-se atônito, diante da realidade da vida na carne,
um

267

processo muito mais conduzido e orientado do que


podemos imaginar, quando imersos nela. Continuando,
convidava-o a novas reflexões:

-- Prossigamos contudo, ouvindo-lhe um pouco mais a


história viva, estampada em sua alma. Abra-nos o coração e
prossiga relatando-nos os seus momentos mais difíceis
vividos na carne.

Agora, sem denotar intolerável desespero, e demonstrando


maior equilíbrio nas emoções que afloravam nas
lembranças ainda vivas, seguiu o relato de suas maiores
dores:

-- Minha primeira grande dificuldade aconteceu em Péronne.

Depois dela cheguei a pensar em abandonar a aerostação.

-- Você a mencionou em uma de suas regressões, porém


não entrou em considerações pormenorizadas. Conte-nos o
que lhe aconteceu.

-- Cheguei nesta cidade, ao norte da França, já era quase


fim de tarde, para fazer uma demonstração em balão livre,
num espetáculo público, cumprindo com minha
determinação de trabalhar de graça para o Sr. Lachambre.
Uma pequena multidão logo se aglomerou ao meu redor,
admirando não só o balão que se inflava, mas sobretudo a
minha coragem, pois nuvens ameaçadoras se acumulavam
no horizonte próximo, prometendo forte tempestade. Muitos
se colocaram receosos por mim, tentando dissuadir-me da
aventura, dizendo que se eu era obrigado a ir, que levasse
comigo o dono da festa. Estava de fato pensando se valia a
pena tal arrojo, quando ouvi alguém considerar que “não
acreditava ser aquele pequeno homenzinho capaz de
tamanha audácia”. Podia ser pequeno, mas não admitia que
duvidassem de minha coragem pelo simples fato de ser
miúdo. Não disse nada, mas não podia tolerar um desafio
sem enfrentá-lo, e sem vacilar, pulei para dentro da
barquilha, ordenando que largassem tudo. Estava certo de
que bastaria deixar-me levar pelo vento, até encontrar um
local seguro para pousar.

-- Apressando-se a atender ao amor próprio ameaçado, meu


amigo, você colocou-se refratário aos espíritos que o
assistiam, e não pôde mais ouvir seus sábios conselhos. A
verdadeira coragem consiste em reconhecer as próprias
limitações. Você deveria ter tido a ousadia de humilhar-se,
mostrando seu temor.

-- Pensava que um verdadeiro aeronauta não podia revelar


medo. E em breve, estava no seio de terrível tormenta,
açoitado por ventos fortíssimos, agitando-me de frenético
pesadelo.

Agarrado desesperadamente ao pequeno e frágil cesto de


vime, nada podia fazer a não ser entregar-me ao pavor. Não
havia

268
como descer, apenas deixar-me conduzir pela fúria dos
elementos atmosféricos, até que a noite envolveu-me em
assustadora escuridão, cortada por relâmpagos estridentes.
Suspenso na imensidão negra, sem noção do tempo e do
espaço e nem mesmo da altitude, molhado e enrijecido pelo
frio, esbaforido e tomado pelo terror, esperei pela morte até
que desfaleci, vergado pelo esgotamento das intensas
descargas de pânico. No outro dia pousei entre assustadiços
camponeses. Estava na Bélgica.

-- Eis que você se acovardou diante do orgulho, optando por


enfrentar a tormenta, exibindo uma bravura que não
detinha.

Preferiu desafiar a morte a expor-se à vergonha. A vida


costuma devolver ao imprevidente do orgulho, a
humilhação do dano físico ou do malfadado trauma do
extermínio do corpo, meu amigo. Mas o que importa agora é
reconhecer o seu erro e assumi-lo com lealdade.

-- Sim, reconheço que errei, não precisava ter enfrentado


tamanho perigo, e se o fiz foi realmente em defesa do amor
próprio. Arrependime logo no primeiro minuto ao me ver
tomado pela fúria do temporal, quando já era tarde.
Machuron chegou a julgar-me morto, e minha tia muito
aborrecida, depois de passar a noite em vigília esperando
por mim, alegou que não tinha nervos para tolerar minhas
loucas aventuras aéreas, e não me quis mais sob sua
custódia. Sem ambiente em casa, tive que apressar minha
mudança.

-- Depois disso, a morte passou a ser uma ameaça


constante em sua vida...

-- Meus amigos sempre admiraram minha valentia, mas


devo confessar que valorizava muito pouco a minha vida e
não importava em exporme ao perigo. Sei que na verdade
isso não representava coragem alguma, mas fazia-me bem
que pensassem assim...

-- A inibição sexual lhe roubava todo valor pessoal


imputando-lhe soturna e significativa perda da autoestima.
Os espíritos sabiam que isso o levaria a arrostar a morte e,
embora tal sentimento fosse uma desconsideração pela
dádiva da existência, em seu caso foi um mal bem
aproveitado, pois as primeiras experiências aéreas
precisavam de alguém que as enfrentasse.

Você no entanto, foi bafejado por invejável autocontrole,


suficiente para não lhe permitir a entrega ao pânico, o que
muito o ajudou para sair incólume dos muitos riscos a que
se expunha.

Contudo, você não pode olvidar a equipe de espíritos que


esteve sempre ao seu lado, ajudando-o nesses momentos e
deve muito a eles, não só pelos sucessos, mas por ter se
saído sempre bem nas

269

horas de risco. Seu autocontrole apenas lhe permitia estar


atento às suas sugestões que tantas vezes lhe salvaram a
vida.

-- Devo agradecer então, aos seres invisíveis que estiveram


ao meu lado. Poderei encontrá-los, ou são como os anjos,
habitantes de um céu inacessível?

-- A intuição nos diz que estivemos com um deles, e


possivelmente você não tardará a conhecê-lo. Na
desastrosa experiência de Nice, quando você foi
arremessado para fora de sua barquilha, guarde a certeza
de que foram eles que o impediram de encontrar a morte,
retalhado nos galhos das árvores contra as quais a fúria dos
ventos o atirou. Em Bagatelle eles se apressaram a lhe
sugerir o socorro com os meninos que brincavam...

-- Recordo-me perfeitamente. Meu balão fusiforme dobrou-


se em dois, por falha da bomba de ar que deveria sustentar
o balonete de compensação. Comecei a perder altitude
rapidamente, e pressenti a morte, quando me ocorreu a
ideia de pedir aos garotos que me puxassem como a um
papagaio, amortecendo minha queda.

-- Aqui temos um ponto relevante a considerar: a sua pressa


em se justificar diante dos fracassos. Sua alma reluta em
aceitar o fato de sermos todos falíveis, meu amigo. Eis uma
importante motivação para o orgulho que deve ser
combatido veementemente. É erro pretender acertar
sempre, alimentando-se permanentemente de sucessos,
sobretudo visando nos vangloriar diante dos demais. A
aceitação da condição de falibilidade, deve se incorporar
sem demora em sua personalidade, pois não estamos mais
nos ensaios da experiência carnal, e nova realidade do
espírito nos concita a diferente postura para as condutas e
pensamentos. Analise os fatos com sinceridade e julgue
você mesmo suas falhas, aceitando-as.

-- Realmente reconheço que foi uma temeridade ter subido


a quatrocentos metros, como o fiz naquela ocasião.. Minha
intuição me dizia que eu não poderia ir além dos cem, a fim
de evitar a contração do gás na descida. Foi uma
imprudência da qual tive perfeita consciência, pois sabia
que não conhecia muito bem o comportamento de um balão
fusiforme. Não dominava ainda o uso do balonete de
compensação, e não estava usando a quilha triangular para
sustentar a instável forma de meu balão. A falha foi minha,
não da bomba de ar.

-- E ao se chocar contra as árvores no primeiro voo, você


imputou o erro aos aeronautas presentes que lhe
recomendaram subir a favor do vento...

270

-- Devo confessar que ao ceder aos seus conselhos, pus-me


de acordo com eles e errei também. Não acreditei em minha
intuição que recomendava subir contra o vento. Não assumi
esse equívoco, é verdade...

-- Você aproveitou-se do fato para exaltar sua inteligência e


sagacidade, em detrimento da ignorância deles. É grave
erro do orgulho, avultar nossa personalidade desvalorizando
os demais. E

o malfadado nº 2, que nem chegou a subir?

-- O gás contraiu-se logo na subida, dobrando-o ao meio.


Um vexame. Sei que me precipitei em não aguardar um
tempo bom para subir. O balão já estava a meio de inflar-se
completamente, quando começou a chover, mas eu devia
ter ouvido minha intuição e desperdiçado o gás, teria sido
melhor do que perder o balão, quase a vida, e a confiança
em meu sucesso. Além do mais, devo dizer, era o dia da
Ascensão e queria ser bem sucedido em minha experiência
justo nesta data, uma grande bobagem, reconheço...Depois
desse segundo fracasso, por pouco não desisti do intento,
ouvindo os amigos que reafirmavam ser impossível manter
um balão fusiforme sempre rígido, devido às constantes
variações da pressão do gás...
-- Os orientadores espirituais entretanto, continuavam ao
seu lado e não lhe permitiram desistir. Incitavam-no ao
trabalho, aproveitando seu afã de aplausos. E, quando na
exposição de Parir de 1900, você passou a voar de fato com
o nº 4, ostentando seu sucesso diante das personalidades
mais eminentes do mundo, embevecidas frente à sua
enorme audácia, o Mundo Espiritual o assistia também,
preocupado, não com uma possível queda com danos
físicos, mas com a sobrelevação do orgulho que poderia lhe
danificar a alma de mofo muito mais grave, meu amigo.

-- Reconheço que exagerei, não precisava exibir-me assim.

Devo confessar que me fazia muito bem arrancar admiração


das pessoas, principalmente ao verem minha ousadia,
apoiando-me em um pequeno selim de bicicleta, suspenso
por finas cordas de piano. Admito que o propósito de
chamar a atenção me estimulava, e ter nos pedais o
controle do arranque do motor não era o único motivo para
usar aquele modelo. Ele era inconveniente e perigoso, e
minha intuição logo me fez abandoná-lo. Reconhecer o
quanto fiz visando somente enaltecer a minha pessoa, é
hoje amarga lembrança que me fere, e gostaria de apagar
da memória!

-- Você começa aperceber como é essencial para o equilíbrio


do espírito, sobretudo na erraticidade, acomodar nos limites
da modéstia a altivez que nos habita o personalismo. E está

271

sentindo ainda como aqui nos incomoda notar que na


jornada terrena nos deixamos ludibriar por errôneos valores,
tornando-nos meros fantoches a serviço da arrogância.
Observemos a sua indisposição inicial com o recém fundado
Aeroclube de Paris. No episódio do prêmio Deustch, o amor
próprio ferido quase o levou a um sério rompimento com
essa entidade, pois você se sentia doentiamente
prejudicado por ela. Indignado, você escreveu ofensiva
carta dirigida aos seus diretores, mas seus amigos
espirituais sempre atentos, obrigaram-no a reescrevê-la em
termos mais amenos, pois o apoio da nova sociedade era
indispensável ao êxito de sua missão.

-- Senti que o Aeroclube me menosprezava como se não


quisesse que um estrangeiro vencesse a prova. Munido de
melindres infelizes, pedi o meu afastamento da associação
e cheguei a escrever de fato, petulante e agressiva missiva
aos amigos, procurando defender a honra ameaçada.
Reveses da vaidade! Hoje vejo que estava cego de orgulho.
Não poderia realmente prosseguir sem o apoio dos leais
companheiros do Aeroclube. Os dois monumentos erigidos
em Paris em homenagem à minha humilde pessoa, foram
iniciativas deles, que na verdade, nunca me
desconsideraram...

-- Apesar das polêmicas, você terminou por ganhar o prêmio


que lhe proporcionou os primeiros sabores das glórias do
mundo. E

recebeu uma fortuna, cento e vinte e nove mil francos, que


tratou rapidamente de distribuir entre os pobres de Paris e
seus mecânicos, conforme foi amplamente divulgado na
imprensa do mundo na época. Um gesto nobre de sua
parte...

Nada posso ocultar perante minha própria consciência e


devo revelar-lhes que não guardo mérito algum neste feito.
Na verdade, não foi generosidade o que me levou a doar tal
fabulosa quantia aos desempregados, e embora saiba que
os amigos estejam perfeitamente cientes disso, exponho-
me ao julgamento neste momento...

Julgue-se a você mesmo. Não nos fala juízes de sua vida,


não estamos aqui para condená-lo, mas somente para
ajudá-lo a enxergar os próprios erros a fim de que você
refaça seu equilíbrio.

-- Mais uma vez o orgulho me movia, eis o fato, embora


preferisse não admiti-lo. Devo superar a imensa vergonha
que me veste a alma, para revelar que o tamanho de meu
amor próprio era tal, que não me permitiu desfrutar o
prêmio. Não queria que pensassem que eu estava
competindo e brigando pelos meus direitos unicamente pelo
dinheiro, e por isso, em defesa de minha doentia dignidade,
é que doei a importância. Não me movia

272

qualquer sentimento de bondade. (Rever o capítulo 17,


onde há referência ao prêmio Deustch, para maiores
detalhes do fato aqui narrado.)

-- Na verdade, seu maior interesse era saborear os louros


das vitórias humanas, que lhe valiam muito mais do que
dinheiro...

-- Eu não era humilde o bastante para admitir qualquer


necessidade material, sei disso. E ademais, Antônio Prado
havia me adiantado que o governo brasileiro estava
disposto a enviar-me igual valor, não somente visando a
auxiliar-me nos dispendiosos experimentos, mas como um
consolo diante do malogro da difícil prova, tendo em vista a
inicial recusa dos juízes em favorecer-me com a vitória. E
afinal, com a mesma importância em mãos, podia me dar
ao luxo de menosprezar o dinheiro deles. E ainda seria sem
dúvida, mais um nobre feito para engrandecer meu nome...

-- Jesus nos recomendou não dar esmolas somente para


vangloriar o próprio personalismo, por tratar-se de ato que
nos impulsiona a grave enfermidade da alma. Efetivamente
você agiu em defesa do próprio orgulho, e por isso, além de
não deter méritos diante da lei de Deus, terminou por
avultar mais os encargos doentios do psiquismo, o que
contribuiu para aumentar sua derrocada emocional.
Contudo, o Mestre nos aconselhou ainda que praticássemos
o bem, mesmo que com os recursos da iniquidade, e pelo
menos você proporcionou benefícios para muitos que
realmente precisavam, cujas preces e sentimentos de
gratidão em seu favor, muito contribuíram para minorar
seus padecimentos após a morte. Trate entretanto, de não
repetir a falta, tendo em mente que é grave erro fazer do
bem, mero lustre para nossa vaidade, ainda que praticá-lo
sob quaisquer condições, sempre se justifique.

-- O orgulho mais uma vez...Como me dói a lembrança dos


erros cometidos apenas para satisfazê-lo...

-- Somos ludibriados pelos doentios impulsos, dominando-


nos completamente a alma, maculando-nos de insanos
desejos.

Reconhecer isso, é para nós imensa dor. Tratemos de


assimilar a lição mesmo que tardiamente, colocando-a em
prática desde já, preservando nosso futuro. E o grave
acidente do hotel Trocadero, a que você se referiu em uma
de suas regressões? O que o amigo nos conta do ocorrido?

-- Meu pior desastre, por pouco não morri. Caí com o


dirigível nº 5 nos telhados do Trocadero, quando tentava
mais uma vez, ganhar o prêmio Deustch.
273

-- Sabemos que os espíritos que o assistiam, notando que


uma das válvulas do balão perdia gás, avisaram-no
prontamente.

Você, atento às sugestões que lhe veiculavam pelas vias da


intuição, pôde notar o problema a tempo de descer antes
que o pior acontecesse. Mas você não atendeu ao forte
apelo do bom senso, o que se passou?

É verdade, vi que o balão perdia gás, porém não ficava bem


decepcionar o povo e os juízes do Aeroclube novamente.
Seria vergonhoso, pois em três ocasiões seguidas não
consegui retornar, deixando-os à minha espera, e mais uma
vez isso seria muito deselegante. Resolvi arriscar, tentando
chegar antes que a pressão insuficiente do gás terminasse
por dobrar o meu balão.

Mas as cordas começaram a se romper por diferença de


tensão, tive que desligar o motor, e comecei a perder altura
rapidamente.

Pensei que seria o meu fim...Os telhados de Paris, com suas


chaminés ameaçadoras...sabia que um dia teria que
enfrentá-los!

Nunca pude mirá-los quando sobrevoava a cidade, preferia


a segurança dos campos e dos bosques, onde se pode
descer em qualquer lugar. De repente ali estava,
precipitando-me velozmente sobre eles, o pior lugar para se
cair. Não tive tempo para nada...Sentime envolvido por uma
estranha sensação que não sei definir, o pavor parecia
paralisar-me não somente o raciocínio, mas também os
sentidos...quando dei por mim, estava sendo içado pelos
bombeiros. Todos os jornais noticiaram o acidente, virei uma
espécie de escândalo...Até hoje me envergonho do fato. E
por tanto querer olvidá-lo, eliminei o número oito de minha
vida, pois ele aconteceu no dia 8 de agosto. Não era
superstição, era vergonha. Tomaram porém essa minha
estranha atitude como um sinal de crendice...Como nos dói
aqui a lembrança das inutilidades que nos ocuparam a vida!
Hoje vejo que na verdade, foi meu dia de sorte por não ter
morrido.

Não soube valorizar esse fato na época. E ainda tive a


fraqueza de imputar o acidente à péssima qualidade da
válvula de gás enquanto que o erro foi meu, reconheço. Se
tivesse descido imediatamente, nada teria acontecido.
Porém não tive um arranhão, devo agradecer a Deus e aos
amigos espirituais então...

-- Muito mais do que à medalha de São Benedito que você


trazia presa ao punho. Mas deve reconhecimento também à
sua intuição, por ter empregado as resistentes cordas de
piano e sua quilha triangular na confecção de seus dirigíveis
fusiformes.

-- Sem dúvida, se minha barquilha ainda fosse sustentada


por cordas comuns, teria me precipitado contra o telhado, e
morrido certamente. A quilha me reteve contra a parede e
as telhas,

274

resistindo fortemente ao impacto. Mas não bastou ter


sobrevivido ao grave acidente e me exposto às críticas
sensacionalistas da imprensa. Madame Danicau, a
proprietária do hotel, moveu sem demora um processo
judicial contra mim. Errei por não tê-la procurado a fim de
ressarcir os danos causados em seu telhado.

Não fui antes, por acanhamento, admito. Claro que iria


pagar pelos estragos, que não foram tantos assim, cento e
cinquenta francos somente...Mas devo confessar, o acidente
daquela demanda constrangeu-me ainda mais, aumentando
o dissabor do vexame...

-- Vemos que você temia mais a vergonha dos fracassos do


que a própria morte, pois arriscando para se safar deles,
expunha-se aos piores desastres. E não admitindo a
possibilidade de falhar, justo que tenha sofrido decepções
muito superiores ao seu real significado. Por isso você se
indignava diante dos jornais que sempre noticiavam em
primeira página, com estardalhaço, seus acidentes. Você os
via como falhas suas, maculando de erros imperdoáveis a
vaidade enaltecida, diante da inadmissível falibilidade. Daí
ainda a obstinação cega em vencer todos os obstáculos, a
qual lhe caracterizava a personalidade. Esta é outra obra do
orgulho que nos move a alma, meu amigo, e que o
envenenava aos poucos, vergastando-lhe o ânimo. Somente
os espíritos altaneiros se envergonham de se expor ao
insucesso.

Eis por que procurar pela humildade, aceitando os próprios


equívocos, é preciosa lição que nos livra de muitos
dissabores. E

acolher o engano é ainda a melhor maneira de não repeti-lo.

-- Devo reconhecer, não admitia o erro. Meus amigos


consideravam-me de fato um obstinado, devido a isso. A
vergonha do fracasso tomou conta de mim em várias
ocasiões.
Em Mônaco, por exemplo, vivi um dos meus maiores
vexames, cuja lembrança sempre me maltratou. Saí do
hangar com o balão vazio e afundei na baía...Envergonhado,
desisti de minhas experiências por lá, e passei a carregar
uma mágoa de Aimé por isso, é verdade. Ele não podia ter
deixado de pesar o balão antes de liberá-lo para o voo, não
viu que ele tinha perdido gás de um dia para o outro. Penso
que neste episódio a culpa realmente tenha sido dele, mas
os jornais não contaram nada disso, e o fiasco ficou por
minha conta.

-- Naturalmente você não queria fazer um papelão, logo em


Mônaco! Mas é preciso que saiba que não foi Aimé o
responsável por isso, mas sim os seus amigos espirituais.
Eles resolveram colocar um fim em suas fúteis aventuras
em Monte Carlo, onde você se exibia para príncipes e
potentados, flutuando sobre a baía de

275

Cote d’Azur, unicamente para lhe servir de cartão postal. E


havia um outro grave motivo para dissuadi-lo disso. Você,
na verdade, estava se preparando para realizar a travessia
do Mediterrâneo, voando até Córsega, inédita façanha que
lhe seria um equívoco fatal.

-- De fato, desejava ardentemente essa primazia para o


meu nome. Ela me cobriria de glórias, faria com que todos
esquecessem o acidente do Trocadero, e reconhecessem o
poder e a segurança de meus dirigíveis.

-- Por isso a azáfama que o fez retirar-se de Mônaco, lhe foi


auspiciosa ajuda, meu amigo. Sua frágil aeronave não
poderia resistir aos fortes ventos do mar aberto, e sua
altivez não lhe permitia ver o óbvio. Mesmo que os barcos o
acompanhassem, o risco era grande e desnecessário. Os
espíritos cuidaram então de distrair Aimé, impedindo-o de
perceber que o balão não estava completamente cheio.
Nesse caso, você muito deve à sua distração. Sem
olvidarmos que alguns dias antes, por pouco você não
explodiu sobre a charrua do príncipe, ao sobrevoar tão
próximo às suas chaminés que expeliam fagulhas invisíveis
e perigosas para seu balão de hidrogênio. Se o príncipe não
tivesse caído ao tentar reter a sua corda-guia, você teria ido
pelos ares, meu caro. Vemos que em suas peripécias, você
deu muito trabalho aos espíritos que o assistiam na Terra.

-- Vi o perigo a que me expus, porém muito depois. Sei que


foi uma grande imprudência querer mostrar-me para a corte
de nobres que acompanhava meus voos na baía. E
reconheço que minha intenção era realmente cruzar o
Mediterrâneo até a Córsega. Recordo-me de que não desisti
fácil de semelhante empreitada, pois por muito tempo
depois do acidente de Mônaco, acalentei a ideia de efetuar
a travessia do canal da Mancha, apenas para vangloriar-me
o nome. Com minha Demoisel e só não intentei a façanha
porque meus amigos, sobretudo Aimé, persuadiram-me do
grande perigo da jornada. Como a vaidade nos coloca em
risco, é verdade...

-- Risco muito maior para o espírito do que para o corpo,


Alberto.

Este pode se lesar, impondo-nos danos físicos, ou mesmo a


morte, porém passageiros. As abrasões carreadas pelo
orgulho contudo, são capazes de nos lacerar profundamente
a alma, coagindo-nos ao encargo de árdegos sofrimentos
para a restituição da saúde. Guarde a certeza de que todos
os seus pesares, inclusive o maior deles, a fuga da vida,
advêm dos hábitos inadequados do personalismo e não das
circunstâncias a que você se expôs na vida. Porém, veja
neste fato novamente a atuação dos amigos invisíveis,
através ainda de Aimé, alterando significativamente o rumo
de suas aventuras. Mas, certamente outras decepções lhe
habitaram a alma, continue a recordá-las.

-- Aída foi uma grande decepção. Realmente deixei-me


entusiasmar pela sua beleza e pelo seu enorme interesse
pelas minhas máquinas aéreas...

276

-- Consta-nos que foi a única pessoa que você permitiu voar


em um de seus dirigíveis, coisa que não consentiu nem
mesmo aos seus mecânicos. Entretanto, mais uma vez este
não era o seu caminho e você sabia disso. O afastamento
dela foi providencial, suas dores seriam ainda maiores,
porém a própria vida encarregou-se de separá-los, não
culpe os espíritos neste caso. Você detinha direitos de
entretecer relações afetivas com quem desejasse, porém a
inibição da sexualidade o constrangia sobremaneira,
impedindo-o de aprofundar as relações amorosas, sabemos
disso.

-- Os pais dela não viam com bons olhos nosso


relacionamento, mas minha decepção foi grande ao
perceber que se tratava apenas de uma jovem desvairada
em busca de aventuras inéditas. Não detinha nenhum amor
verdadeiro pela minha pessoa, e somente brincava com
meus sentimentos...

-- As pessoas que se fixam em nossos corações com


facilidade, exaltando-nos as afeições sem que saibamos
devidamente a razão disso, são de fato, construções
afetivas remanescentes de outras experiências de vida, e
constituem verdadeiros reencontros. Mas Aída não era um
reencontro e não havia em sua programação de vida, planos
para um enlace amoroso estável. Como você bem sentia,
não nascera para o casamento, pois deveria dedicar-se com
exclusividade à tarefa com a qual se comprometera. Sua
alma contudo, ressentia-se de uma afetividade genuína que
lhe sustentasse o coração amargurado, afugentando-lhe as
angústias da solidão. Isto era uma necessidade, meu amigo,
mais tarde poderemos compreendê-la melhor.

-- Minha família terminou por ser minhas máquinas, bem


sei...Prezava de fato meus balões e meus aeroplanos,
sobretudo a Demoisel e, mas reconheço que não podiam
preencher-me a sede de afeto, e a solidão era um vazio
insustentável para minha alma desvalida. Num espasmo de
agonia certa vez, cometi o descalabro de pedir a filha de
Voisin, cujos encantos me fascinavam, em casamento, mas
me movia pelo desespero e não sabia o que estava falando.

Janine era trinta anos mais nova do que eu, sinto que
cometi um grande vexame, deixando o amigo embaraçado,
e envergonho-me até hoje do episódio.

Alberto silenciava por um momento refletindo nas lições que


a vida lhe exigira, haurindo delas inegáveis e valiosos
aprendizados.

Apreciando-as do lado de cá, vemos como são fugazes, por


maiores que nos pareçam quando estamos na carne. Um
sentimento de covardia e pesar nos assalta a alma, ao
lançar os olhos para a retaguarda, e reconhecer-nos fracos
diante de provas que se desvanecem tão rapidamente como
castelos esculpidos nas areias do movediço destino,
conduzindo-nos na incansável esteira do tempo, em ondas
de ascensões e quedas.
277
26
capítulo
SOMBRAS DE UM HOMEM
“Se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-
nos a nós mesmos e a verdade não está em nós.”

I João, 1:18

Prosseguindo na compilação das lembranças mais


contumazes de sua vida, reformulando-as como preciosas
lições para a eternidade, Alberto continuou relatando suas
maiores fraquezas amealhadas no exercício da altivez entre
os homens:

-- Sinto a culpa do orgulho que me conduziu em tantas


ocasiões no desejo incontido de glórias, nas vaidades nunca
satisfeitas... Sou um homem torturado pelo arrependimento,
e não há nada capaz de me restituir a paz perdida...Tenho
medo de que a angústia volte a tomar conta de minha alma,
ajudem-me por Deus...

-- Em qualquer momento é sempre possível alijar a opressão


da auto recriminação, mediante o desejo sincero e o
empenho efetivo na reforma das condutas e sentimentos,
impondo coercivos limites à vaidade e ao orgulho, as
verdadeiras motivações que nos movem às contravenções,
e reais causas de nossos tormentos íntimos. E não olvide, se
a lei nos constrange às culpas é porque nos pede, com
insistência, solução para os enganos. Basta enfrentá-las
com a mesma bravura com que você desafiava as alturas,
porém munido da humildade que a consciência lhe suscita,
e a paz lhe será companheira definitiva, meu amigo. Relate-
nos os motivos de seus maiores tormentos, e juntos
buscaremos o lenimento definitivo para acalmá-los.

-- No ano de 1904 transportei meu dirigível de corrida, o nº


7, para a Exposição Universal de Saint Louis, nos EUA, a fim
de concorrer num torneio aéreo, mas lá chegando,
intimidado diante da grandiosidade daquela nação, achei
por bem não participar.

Temia uma derrota, e hoje reconheço que meu orgulho não


a podia tolerar. Como não tinha motivos que abonassem
minha covarde capitulação em tão última hora,
vergonhosamente aleguei que um pequeno rasgo no
invólucro do balão,

278

provavelmente decorrente de mero acidente de transporte,


teria sido fruto de uma sabotagem. Embora perfeitamente
recuperável, justifiquei assim minha desistência e meu
rápido retorno à Europa.

Hoje vejo que utilizei um subterfúgio apenas para defender


o meu amor próprio eximindo-me de impor qualquer
diminuição à personalidade. Não admitia demonstrar
sentimentos negativos, como medo e insegurança, para não
macular o meu nome diante do mundo que ainda me
ovacionava pela conquista da dirigibilidade aérea. E como
me pesa também ter empregado tempo e tanto dinheiro em
um dirigível dispendioso somente para embalar-me em
sonhos de vitórias, em competições sem fundamentos, com
o fito exclusivo de enaltecer-me a vaidade.

Fúteis ilusões! Quantas nulidades empreendemos na vida!


Quanto esforço sem proveito e quantos recursos
desperdiçados!...

-- Podemos ocultar nossas fraquezas aos companheiros de


jornada, no equivocado exercício de exaltação do
personalismo, mas não conseguimos escondê-las de nós
mesmos perante a lei, sem dilacerar a propria consciência,
feita de substância divina.

Entretanto, pelo menos o irmão não prejudicou ninguém


além de si mesmo neste episódio. Seu erro, mais uma vez,
foi do orgulho que o levou a apresentar-se como um falso
herói entre seus compatriotas, mostrando-se como um
homem valoroso, portador de invejável coragem, sem
máculas ou fraquezas. Os filhos das nações ainda apreciam
exemplos assim, para simbolizar seus anseios de
hegemonia e fazer valer seu orgulho no concerto dos povos.
Contudo, os tempos mudarão rapidamente e dia virá em
que nossos maiores próceres serão santos, pois estamos a
caminho da angelitude e carecemos muito mais do exemplo
de bondade e do heroísmo da renúncia, do que da bravura
dos audaciosos onde nos espelhar.

-- Sim, reconheço que me fiz um herói sem fazer jus a tal


título, e minha pátria venera o meu humilde nome sem que
eu o mereça. Desejaram fazer-me inclusive general
honorário, coisa absurda, e que apressadamente tratei de
renegar. Recuei assustado diante do convite, ao perceber
que realmente construí na opinião pública uma falsa
imagem, sem o mínimo respaldo em minha realidade
íntima, e penso que essa mesma figura continua a ser
venerada em meu país, e seguirão enaltecendo meus feitos
como se fossem frutos de um heroísmo verdadeiro. Quando
na carne, isso me era motivo de orgulhosa satisfação
alimentando doentia vaidade, mas agora ao ver-me coberto
de mentiras, vestido de falsidades e delitos diante da
imensa penúria espiritual, vergo-me abatido pelo opróbrio,
pela vergonha, pela culpa.

279

Ferido por essa imensa dor, não encontro paz em meu


íntimo.

Desejaria trocar tal sentimento pela maior das dores físicas


possível a um homem.

-- As dores morais são os mais expressivos martírios para


um espírito em vias de atingir a maioridade, Alberto. E
transformá-las em padecimentos físicos, realmente é
possível, e às vezes única possibilidade para solucioná-las, o
que se faz transferindo-as para a carne. Eis porque renascer
com doenças atrozes é necessidade para a cura da alma,
meu amigo. Entretanto é possível apaziguá-

las ainda agora, assimilando as lições no exercício da


sincera humildade, precavendo-se de males futuros.

Alberto agora deixava que lágrimas lhe marejassem os


olhos, premido pelo conteúdo das faltas que ainda lhe
espicaçavam a alma, diante da violação da conduta não
condizente das exigências de sua consciência sensibilizada
pela evolução. E, imbuído da coragem suficiente para
enfrentar seu mais acerbo remorso, expressava-o enfim:

Por pouco não me deram o título de general... Que


absurdo!... Recordo-me que, pávido, escrevi sem demora ao
Antônio, pedindo-lhe que interferisse junto ao presidente,
evitando o que seria um erro injustificável, e mais um
grande dissabor para mim. Esse título não somente era uma
imerecida homenagem ao herói mentiroso que me fiz, mas
sobretudo associaria meu nome à associação de guerra.
Isso se tornou o meu maior pesadelo, martirizando-me a
consciência de dores insuportáveis. O emprego do avião nas
guerras, se antes me era motivo de pesar, converteu-se
dessa data em diante em um verdadeiro suplício,
dilacerando-me as fibras da alma. Devo confessar a
enormidade de minha falta. Devo pedir perdão a Deus e aos
homens...

Nosso amigo abandonava-se ao pranto como uma criança


arrependida diante das peraltices, ao perceber a gravidade
dos atos inconsequentes e prosseguiu, após breve intervalo:

-- Minha dor não foi somente por ver o aeroplano sendo


empregado como a mais formidável arma de destruição já
pretendida pelo homem do nosso século, mas justamente
porque eu fui o responsável por isso. Quando me dei conta
do grave erro e passei a combater com todas as minhas
forças tal absurdo, não compreenderam minha atitude. Uns
pensavam que eu não estava cônscio de minhas faculdades
mentais. Outros ainda me outorgaram mais um imerecido
título: o de pacifista. Os mais achegados debochavam de
mim, dizendo ser grande bobagem sofrer por uma questão
que não me dizia respeito. Eu não detinha o direito do uso
daquilo que não era meu, pois sequer era mais

280

considerado o seu inventor... Entretanto, ignoram o que eu


realmente fiz no passado... Não podiam ver os fundamentos
de minha enorme culpa...

-- Temos notícias dos fatos, mas gostaríamos que os


relatasse para avaliarmos o real peso de sua
responsabilidade nesse grave acontecimento...

-- A verdade, amigos, é que eu sugeri pela primeira vez o


uso militar para o dirigível. Queria exaltar sua utilidade e
achava que assim despertaria o interesse do mundo por
aquilo que considerava meu invento... Em 1902, quando fui
à América do Norte a convite dos organizadores da
Exposição de Saint Louis a fim de verificar os seus
preparativos, dei longa entrevista em importante jornal de
Nova Iorque, evidenciando o uso das máquinas aéreas em
operações bélicas. E, o que foi mais grave nessa ocasião,
em decorrência disso fui chamado para uma reunião secreta
com o presidente Roosevelt, onde discutimos, juntamente
com altas patentes do Exército, da Marinha e o presidente
da Liga Aérea das Américas, as enormes possibilidades das
máquinas voadoras na guerra. Envaidecido pela inusitada
posição em que me encontrava, deixei que o orgulho
conduzisse minha disposição íntima e enalteci, com o mais
vivo entusiasmo, as indiscutíveis vantagens das aeronaves
nos conflitos armados, alegando ser elas que decidiriam
doravante, o resultado final dos embates. Cego diante da
descabida presunção, não percebi a enormidade do erro que
estava cometendo...

Movendo-nos a condolência diante de tão exacerbada dor,


compreendíamos

naquele

instante

que

seu

potencial

autodestrutivo fora incrementado pela intenção de


autopunição, contribuindo para agravar-lhe a reverberação
das forças hipopsíquicas. Ele se impusera de fato, o maior
dos castigos por acreditar sinceramente ter causado grande
malefício à humanidade. E prosseguia o amigo em
verdadeiro ato confessional:

-- Daí em diante fui dominado por essa errônea ideia. Em


1904 tive a pretensão de escrever um livro, só para exaltar
meus feitos e nele cometi o erro de dedicar um capítulo
inteiro às vantagens dos dirigíveis nas guerras. Convencido
da excelência das minhas concepções, sugeria inclusive que
seriam as únicas defesas contra os submarinos, pois não
somente poderiam divisá-

los do alto, como facilmente destruí-los com cargas


explosivas.

Felizmente o livro terminou por ser um fiasco de vendas,


mas estava dito e não podia mais voltar atrás. Anos mais
tarde quando já havia dado conta da gravidade do fato,
convidaram-me para

281

assumir uma cadeira na Academia de Letras de meu país,


mas não podia dar-me ao luxo de aceitar, não somente por
não me admitir com dotes de literato, mas sobretudo por
renegar veementemente o que escrevera, não sendo
merecedor de honra alguma por tal feito.

Ressumando na face extremada consternação, prosseguiu


após breve intervalo

-- Mas não é tudo, meus amigos. Não posso esquecer a


parada militar de 14 de julho de 1903, em Longchamps.
Outra imensa infelicidade! Garbosamente exibi meu
dirigível como a mais avançada arma de guerra do mundo,
perante chefes de estados e representantes das mais
importantes nações da Europa.

E ainda executei uma salva de vinte e um tiros... Depois do


meu desfile, os jornais da Europa passaram a discutir essa
nova possibilidade, admirados diante da realidade que
todos agora podiam antever. O General André enviou
oficiais do exército à minha oficina em Neuil y, visando à
construção de um poderoso dirigível para uso
exclusivamente bélico, o “Patrie”, e infelizmente, eu
participei ativamente dos planos dessa primeira aeronave
de guerra, que se manteve sob sigilo militar. Foi justamente
isso que levou o governo francês a condecorar-me com o
grau de Cavaleiro da Legião de Honra em 1904, embora tal
motivo não tenha sido divulgado, e o projeto não tenha
encontrado aplicações práticas (Veja maiores detalhes do
episódio no capítulo 18).

Em 1905, ainda movido por esses mesmos graves


equívocos, escrevi longo artigo para os jornais, exaltando a
utilidade dos dirigíveis no porvir. Previa que poderiam viajar
por mais de mil quilômetros, levando explosivos para
despejar sobre inimigos, ou mesmo canhões lança-torpedos
a ar comprimido, e tornar-se-iam as mais terríveis armas de
guerra do futuro. E foi exatamente o que aconteceu em tão
curto espaço de tempo. Penso que se eu não os fiz assim,
pelo menos lancei as ideias pelas quais me sinto
inteiramente responsável hoje...

Alberto soçobrava, movido pelos intensos remorsos.

Sustentávamos-lhe a fronte, procurando acalmá-lo diante


das faltas que lhe afloravam da consciência ferida, mas era
preciso continuar ouvindo-o:
-- Não guardo a menor dúvida, contribuí decisivamente para
que a guerra aérea se tornasse uma realidade... Devo ainda
considerar que, mesmo sem a precípua intenção, exerci
influência na construção das máquinas aéreas alemãs,
largamente empregadas na grande guerra, pois certa feita,
oficiais germânicos vieram visitar minha oficina em Saint
Cloud em busca

282

de observações, e eu ingenuamente mostrei-lhes o


progresso de minhas ideias. Voltaram mais tarde em Neuil y
quando minha Demoiselle fazia sucesso, a fim de conhecê-
la e examiná-la.

Diziam-se interessados na compra de minhas patentes,


tiraram fotos... Motivado pelos eloquentes elogios ao meu
pequeno aeroplano e com o desejo de agradar, presenteei-
os com os meus projetos, visto que nunca pretendi auferir
lucros com meus inventos. Um inocente ato de grande
infelicidade, pois sem dúvida foram úteis na construção de
seus aviões de combate. Sempre muito discretos, pouco
falavam, mas foram notados por muitos circundantes, o que
motivou no início da ofensiva alemã, os parisienses a
suspeitarem que eu contribuía com os beligerantes
inimigos, e injustamente, acusaram-me de espionagem. Foi
quando, muito aborrecido, coloquei fogo em todos os meus
projetos, para que não mais se prestassem a nenhuma
guerra, porém já era muito tarde.

Com a intenção de apaziguar-lhe o ânimo exaltado na


autocondenação, aduzi segundo as informações que havia
verificado:
-- Temos notícias de que pelo menos o mundo espiritual vê
algo de positivo em sua participação neste doloso episódio.
É

bem possível que seu nome ainda seja evocado para


homenagear as forças aéreas de combate, o que lhe seria
um grande pesar, mas sua veemência em negar tal
associação, e seu empenho em obstaculizar o uso do avião
na guerra, certamente serão lembrados como um estímulo
para que a concórdia se estabeleça entre os povos. Através
dessa atitude, você conquistou importantes méritos
espirituais, guarde esta certeza...

Caminhando contudo para o desespero, o inditoso


companheiro não mais me ouvia, prosseguindo:

-- A verdade dos fatos é que eu colaborei para o morticínio


favorecido pela aviação, eis a dura realidade, meus amigos,
peso enorme para uma alma frágil e doente como a minha.
Quanta destruição, quantas mortes não se deveram aos
tristes bombardeios! Em uma tentativa de apaziguar minha
consciência, cheguei a enviar carta à Liga das Nações,
pedindo a interdição do avião como arma de guerra, e
sugeri um concurso de redação entre os jovens, premiando
o melhor trabalho sobre o assunto.

Foram providências tardias e inúteis a que ninguém deu


ouvidos, e que não me aliviaram a consciência oprimidas
pelos equívocos.
Não há dor maior para um homem, pobre de mim que
mereço os mais terríveis castigos de Deus...

283

-- Acalme-se amigo, Deus não nos aniquila pelos erros, mas


nos dá sempre oportunidades para corrigi-los. Refugie-se
nas orações, e juntos iremos buscar soluções para
apaziguar-lhe a consciência ferida...

Nosso amigo entretanto, não detinha mais condições de


confabulação, o pranto incoercível tomava conta de seus
sentimentos, restando-nos o silêncio da prece diante das
pungentes comoções vertidas de suas lembranças. Cientes
de que o choro esvazia a alma de seus pesares, era
conveniente deixá-lo entregue a si mesmo, aguardando que
as feridas emocionais abertas, entrassem em processo de
cicatrização a fim de prosseguir nosso auxílio terapêutico.

Adelaide, novamente compadecida diante das cruciantes


dores conscienciais expostas pelo companheiro, questionou-
me na primeira oportunidade:

-- Se a Direção Espiritual pode nos proporcionar todas as


informações da vida de nosso amigo para análise, faz-se
realmente necessário expô-lo a rememoração de tamanhas
aflições, na condição de restabelecimento em que ainda se
encontra?
-- É certo que podemos nos dar por satisfeitos, consultando
apontamentos históricos das experiências vividas pelo
nosso irmão, ou mesmo lê-los sob indução hipnótica em
seus próprios registros mnemônicos; no entanto, nosso
objetivo não é a satisfação de nossa curiosidade, porém
compreender para ajudar, e permitir-lhe haurir benefícios
das revivências emersas. Fazendo-nos uma referência
através da qual ele possa ajuizar-se dos erros cometidos e
enfrentar os dissabores arquivados do pretérito, estaremos
proporcionando-lhe uma verdadeira catarse espiritual, e
ajudando-o na busca de soluções verdadeiras para os seus
dramas, tenha a certeza disso. Ciente de suas
necessidades, e cerceado por uma moral estruturada no
âmbito de seu patamar evolutivo as emoções doentiamente
vivenciadas se acomodarão nos limites do juízo crítico,
deixando de exercer efeitos desagregantes em sua
consciência, permitindo-lhe assim a conquista da
indispensável saúde da mente.

-- Porém, o peso do remorso aflorado com intensidade, não


irá agora lhe obstaculizar o soerguimento? Seu quadro
depressivo não se agravará com essa conscientização?

-- A lei divina permite que o remordimento nos puna


consciência, sempre que transgredimos os preceitos de
conduta já incorporados à bagagem moral, por isso se
ajusta sempre ao grau de responsabilidade que nos cabe
diante da vida. Embora

284
nos oprima com as acrimoniosas dores conscienciais, o
arrependimento vivido com o sincero desejo de reforma, é
força segura, orientando-nos no ressarcimento das dívidas.
A culpa martiriza somente quando não se fundamenta em
mudanças de atitudes, ou é produto das exigências do
orgulho, frustrado em suas realizações de soberba,
bloqueando-nos o sossego íntimo. E à medida que a
consciência se vê satisfeita na aquisição dessas reformas,
minora-se-lhe o remorso adequando-o ao necessário, pois
as cobranças do “eu” superior, são sempre uma resposta
aos impositivos da lei que nos concita constantemente a
seguir na rota segura da perfeição.
285
27
capítulo

CONTENDA INÚTIL

“E suscitou-se entre eles uma discussão

sobre qual deles seria o maior.”

Lucas, 9:46

Os grandes erros que comumente enxovalham nossa


consciência, se nos fixam na memória espiritual de modo
indelével, e passam a habitar nosso interior quais fantasmas
de agonias, exigindo-nos todos os esforços para o seu
reparo. Dessa forma, o remorso se avoluma no espírito em
vias de atingir a maioridade, assomando-se-lhe como os
mais pungentes acúleos do constrangimento, diante de si
mesmo e da lei. Embora o espírito, sensibilizado pela
evolução, sofra muito mais pelos seus erros do que aquele
que ainda age nas sombras da ignorância e da rebeldia, tal
dor lhe é salutar recurso de recuperação, permitindo-lhe
ascender na escalada evolutiva, conquistando novos
limiares de felicidade e equilíbrio.
A culpa, se bem aproveitada, é defesa segura contra o
continuísmo de antigos vícios e hábitos que alimentamos ao
longo dos séculos, perpetuando-nos a condição de doentes
da alma. E

como toda emoção, sua simples elisão dos planos


conscientes é ilusório recurso de alívio, adiando a
imprescindível arbitragem da lei. Inteirar-se plenamente
dela, conquanto aparentemente nos açoite com a pungência
do arrependimento, é o primeiro caminho para configurar-
lhe solução definitiva, favorecendo-nos o ressarcimento das
dívidas. Por isso, a confissão, sacerdotal ou não, realizada
com a sinceridade de propósitos, sempre foi ato de
beneméritos auspícios para o infrator em todos os tempos,
servindo-lhe como o mais salutar estímulo para o
apaziguamento da consciência.

Alberto agravou-se muito com o emergir de suas recônditas


culpas depois da última incursão em suas memórias.
Retirado em seus aposentos, não se dispunha aos passeios
diários pelos jardins terapêuticos que vinha frequentando, e
lacrimoso, desviava seu olhar de todos que lhe dirigiam a
palavra amiga, entibiado e

286

adstrito aos próprios pensamentos. Poucos dias se


passaram, e Adelaide, movida por preocupações, buscou
ouvir-me com respeito ao recrudescimento de seu estado.
-- Nosso irmão piorou muito. Há muitos dias não o víamos
tão abatido – dizia a amiga, algo pesarosa. – O que eu temia
aconteceu, o quadro se agravou...

-- Os pontos fracos, integrantes de sua personalidade,


assoalhados em nossa análise, doravante se encaminharão
para o seu fortalecimento, porém apoiados em novos e
salutares propósitos que dispensem as defesas equivocadas
da arrogância, na imposição do bem estar íntimo. Fizemos
até o momento, o que nos era possível. Aguardemos agora
a atuação da lei, na certeza de que a cura real não nos
compete. Precisamos compreender, Adelaide, que a
Providência Divina atua permanentemente em nós, a
despeito da nossa incerteza, tomando todas as medidas de
que necessitamos. Jesus nos alertou sobre isso ao se referir
aos cuidados que o Pai nos dispensa, da mesma forma como
alimenta os pássaros e veste os lírios. Ante qualquer
agravamento da saúde, acorre o homem ignorante e aflito a
suplicar pela intercessão de recursos miraculosos de Deus,
insciente de que Ele conhece de antemão todas as nossas
necessidades e sabe acudir-nos com todas as diligências
urgentes e cabíveis, antes que formulemos nossos
petitórios. Por isso, preocupar-se excessivamente com os
males que nos acometem, como se não nos fossem cabíveis
ou estivéssemos entregues ao abandono, não é atitude
condizente com aquele que já conquistou a crença na
amorosa assistência divina. Nosso amigo precisa destes
momentos de reflexões e ajustes consigo mesmo até que
suas energias emocionais, ainda desalinhadas, acomodem-
se em novo patamar de equilíbrio. Não se desespere, ele
agora está perfeitamente ciente da nova realidade que o
envolve, e conta com forças suficientes para suportar o
difícil transe das dores conscienciais em que se detém.
Nossa melhor ajuda no momento é a compreensão do
silêncio, e o aprazimento da prece.

Adelaide contudo, não se deixava persuadir pela minha


argumentação, desejosa de que interviéssemos o mais
rápido possível, levando-me a prosseguir:

-- Convém ainda, entender que o amor de Deus age em


nosso favor diferentemente da pieguice que nos caracteriza
a atuação no auxílio ao que sofre. Ele nos ampara muitas
vezes, em um primeiro momento, recrudescendo-nos a dor,
a fim de extingui-la depois de forma definitiva. A
exacerbação inicial, parecendo abater-nos a possibilidade
de soerguimento, remete-nos muitas

287

vezes ao desespero, quando não à revolta, por não


compreendermos a atitude coerciva e corretiva de sua
providência. Esta sabe que precisamos da agitação das
forças íntimas, para fazer emergir as energias deletérias
que enlameiam as profundezas de nossa alma, assim como
para se extraírem as impurezas do fundo de um poço é
necessário revolver-lhe as águas. Turvando sua aparente
limpeza, e da mesma forma, a atmosfera deve se inquietar
no tumulto da tempestade a fim de se ver alijada de seus
perigosos acúmulos magnéticos. O alívio que o final do
processo proporciona é demonstrativo de que a comoção
inicial se faz necessária, e visa sempre a soluções, e não a
danos. Assim funciona a lei, e por isso quase sempre nos
sofrimentos humanos, também é preciso experimentar a
piora para se banirem definitivamente os seus males. Eis
porque o agudizar de toda enfermidade é prenúncio de sua
resolução, e as doenças crônicas que não se agravam,
caminham para a incurabilidade, exatamente por perderem
essa capacidade. Na esfera moral se aplicam estas mesmas
leis e os tormentos dos grandes remordimentos prenunciam
o apaziguamento da consciência, encaminhando soluções
definitivas, pois é da lei que à tempestade suceda sempre a
bonança.

Adelaide se convencia enfim, da necessidade de


esperarmos que o temporal das emoções incônditas se
aplacasse na alma de nosso amigo, e o deixamos
momentaneamente entregue a si mesmo, para que o
penoso exercício confessional diante de si próprio e da lei, o
refizesse. Aguardamos pacientemente a ingerência do
tempo, confiantes na ação das forças curativas que nos
assistem o espírito, na certeza de que na tarefa de tratar,
nos compete apenas o papel de instrumentos e não de
artífices da cura.

Sabíamos contudo, que não vasculháramos a totalidade das


penúrias que lhe obstaculizavam a saúde plena, e ainda nos
cabia prosseguir em busca de outros erros e suas lições.
Ante seus primeiros sinais de melhora, sem denotar contudo
completa recuperação, tornamos à nossa conversação, a
fim de apressar-lhe a conquista do equilíbrio e consolá-lo
como nos era possível.

-- Guarde a certeza de que o fardo que lhe oprime a


consciência será alijado à medida que você se esforçar com
sinceridade para modificar-se, Alberto – dizia, procurando
retornar ao tema de nossa última conversa.

-- Aceite com humildade suas faltas, procurando sedimentar


na alma as lições que a dor lhe induz, corrigindo suas
atitudes para colher alegrias no futuro.

288

Dando mostras de que a procela se apaziguava em seu


íntimo, nosso paciente enfim continuava suas confissões,
como se o recolhimento de muitos dias não tivesse
interrompido nosso diálogo:

-- Sei que trago a alma inundada por clamorosos erros.

Alimentei vaidades sem limites e tudo fiz para enaltecer


meu nome entre os homens, sem que detivesse valor para
isso.

Contribuí com a guerra aérea e o bombardeio de inocentes.


E

depois, cometi o maior dos pecados contra Deus, tirando-


me o seu mais precioso dom, a vida. Não sou digno dos
cuidados e da acolhida carinhosa que me dispensam...
Deveria estar sendo consumido pelo fogo do inferno que, no
entanto, não encontrei em nenhum lugar...

-- Trazemos o céu ou o inferno na própria consciência, meu


amigo, e nesse momento você se encontra nele, embora
não visualize os próprios demônios, representados pela
força da autopunição, que lhe infligem as penas que se acha
no demérito de sofrer. Deus não nos castiga, se sua lei nos
constrange com dores, é porque o seu amor nos deseja
reconduzir aos caminhos corretos do devenir. Afaste de sua
alma a autocondenação que destrói, e erga-se para a vida.
Construa em si mesmo novos valores que o tornem
merecedor da felicidade para a qual ele nos criou.

-- Tentarei, porém sinto as forças combalidas, e sem ajuda


não poderei soerguê-las. Devo confessar-lhes que meu
orgulho ainda teima em admitir a realidade das enormes
faltas que povoam minha alma. Preciso contrariar meus
propósitos íntimos para trazê-las à baila, e principalmente
para expô-las à consideração dos amigos. Mas sei que se
trata de uma necessidade para o meu reequilíbrio, e estou
me esforçando para ser o mais sincero possível comigo
mesmo.

Superando sua natural timidez, desnudava-se diante de si


mesmo, continuando:

-- Depois do reconhecimento de meus graves erros com


respeito à guerra, senti que minha existência não tinha mais
sentido, e o viver tornou-se uma constante punição. E
parecia que Deus de fato me castigava nas mínimas
ingerências da vida. Em 1928, o povo de minha nação
sabendo-me doente, preparou-me outra calorosa recepção,
quando desembarcava no Rio de Janeiro. Um hidroavião
batizado com meu humilde nome deveria sobrevoar o navio
que me trazia, entretanto precipitou-se às nossas vistas na
Baía de Guanabara, matando todos os seus ocupantes,
homens ilustres que me homenageavam. Foi um golpe

289

brutal para minha pobre alma, que não podia tolerar mais
decepções... Só podia ser mais um látego do destino
repreendendo-me as ousadias e as clamorosas faltas...
Mas não é tudo, amigos, diante do altar da consciência devo
confessar que estas decepções não compunham o meu
principal tormento. Há outro ainda maior do qual me
envergonho a ponto de escondê-lo até onde pude. Logo
depois que meu Canard (termo que em francês significa
ganso, e que foi usado para denominar o bizarro 14-Bis, que
voava com o leme para frente, assemelhando-se com esta
ave com seu longo pescoço.) elevou o seu primeiro voo,
quando os jornais noticiaram o memorável feito em todo o
mundo , vieram dizer-me que eu não fora de fato o primeiro
no mundo a empreender a façanha. Que outros, três anos
antes, já realizavam às ocultas, experiências bem sucedidas
com aeroplanos motorizados, cabendo-lhes a primazia do
invento.

Denotando sinceridade de atitude diante da revelação mais


pungente de sua vida, sem dúvida o ápice de suas agruras,
e sentindo que a barreira inicial do enfrentamento da
importante questão havia sido rompida, relatou:

-- No início acreditava que ninguém daria ouvidos àqueles


que me requisitavam o título, os irmãos Wright, pois por
mais de cinco anos não se teve a menor notícia deles, os
jornais do mundo não o noticiaram, não haveria então
motivos para tal absurdo, e sequer existiam provas que
atestassem os acontecimentos. Como afirmavam voar
desde 1903, se na Exposição de Aeronáutica de Saint Louis
em 1904, bem próximo de onde se realizavam suas
pretensas experiências, ninguém os mencionava? Não se
fazia a mínima referência aos seus nomes. Diziam ter uma
fotografia, porém que prova se obtém de um retrato? Era
um absurdo aquilo!

Entretanto, pouco depois a dúvida foi se dissipando em


favor dos embusteiros. Um golpe desleal dava-lhes o aval
de que careciam.
Em 1909, François Peyrey, um jornalista que se dispôs a
escrever a história da conquista aérea desde os seus
primórdios, requisitou-me o prefácio de seu livro. Mal sabia
entretanto, que estava caindo em ardilosa cilada contra
mim mesmo. Sua obra atestava a primazia do invento aos
americanos, e prefaciando-a, colocava-me de acordo com a
revelação. Somente me dei conta da armadilha em que
caíra, depois que o livro já estava impresso e distribuído. Foi
um ato desleal e intolerável, e segundo os boatos, ele havia
recebido dos irmãos Wright vultosa quantia de dinheiro para
o difamatório trabalho. Profunda mágoa ocupou meu
coração, da qual não pude mais me liberar, e sequer tive a
coragem de revelar a alguém. Pensava em processar o
traiçoeiro, porém não havia provas de que ele me ocultara o
verdadeiro

290

propósito do livro, e os amigos convenceram-me da


inutilidade da empreitada. Como consequência disso, os
almanaques franceses depois de 1913, passaram a ignorar
o meu nome dentre os pioneiros da conquista aérea. Estava
concretizado o fato. Minha glória havia sido roubada, fui
impiedosamente varrido dos anais da história em completo
descaso para com meus esforços. Foi um golpe mortal para
minha pobre alma...

Hoje eu sei que o ocorrido molestou-me sobremaneira por


açoitar a vaidade da qual doentiamente me alimentava. Eis
a dor maior que não pude tolerar, a mais amarga e
insuportável lembrança da qual não consegui mais me
evadir. O invencioneiro era eu, o blefe estava revelado e
atestado. O falso herói estava finalmente desmitificado,
intimidando-me sobremaneira perante o povo de minha
nação que contudo, prosseguia idolatrando meu humilde
nome, relutante em aceitar a infâmia sem que eu
merecesse tal prova de lealdade. Minha vida tornou-se um
suplício, somando-se a isso a participação na guerra e os
vexaminosos fracassos do passado. Envergonhado, passei a
desejar a morte como solução para os meus enormes
tormentos...E acabei cometendo o maior dos pecados
contra Deus...

Lágrimas de inconformismo abundavam em sua face,


deixando-nos entrever o enorme orgulho ferido, e a
gravidade da mágoa estampada na memória de forma
indelével. Observando a ingente chaga que se avultava em
sua alma, disselhe condoído:

-- Acalme-se, Alberto. Não permita que o desespero tome


conta de seu coração. Enfrente com galhardia a pungente
lembrança e aproveite a sábia lição que a vida lhe ofertou.
Sem dúvida, nos encontramos aqui com o ponto central de
seu adestramento espiritual, porém há razões que justificam
o incompassível revés em sua carreira de glórias,
inigualáveis nos cânones da História, ferindo gravemente
sua sensibilidade.

Analisemos os fatos com mais cuidado, retirando deles o


que nos é necessário ao aprendizado, e enriquecendo-o com
algumas revelações oportunas.

Temos notícias de que tal contingência abateu não somente


você, mas a soberania de uma nação que se engrandecia
com seus surpreendentes feitos. Admitamos contudo, que
existem razões mais profundas para que você tenha se
exposto a essa decepção, e cabia-lhe receber a notícia com
humildade, compreendendo-a como precioso medicamento
para a arrogância que lhe minava a alma, haurindo do
episódio
291

benefícios para o seu crescimento, e não angústias que lhe


destruíssem o ânimo. A lei de Deus conhece nossos méritos
e sabe medir nossos esforços, e apenas diante dela
devemos esperar a recompensa pelos nossos trabalhos, e
não perante os irmãos de jornada. Não se pode negar que
você fez jus aos seus títulos, porém alimentava com eles
errôneos valores da altivez, utilizando-os para sobrelevar-se
acima dos demais. Eis o equívoco que a lei não tolera em
nós, pois deveríamos desejar para os companheiros de
jornada, a mesma distinção que pretendemos para nós.
Todos somos feitos da idêntica substância divina, e
igualmente meritórios da máxima importância. E a vida
realmente nos quer grandes, porém não na grandeza
confeccionada em fatuidades, mas na realeza divina que
equilibra poder e simplicidade, dispensando a doentia
necessidade de se posicionar o espírito acima dos valores
alheios. Eis o erro que gerou a necessidade da lição, recurso
divino a seu favor.

Suscitando alguns curiosos fatos de seu passado, a que os


homens deram pouca relevância na história de nosso amigo
e que então se tornavam mais claros, continuei:

-- Diante de sua imensa frustração, podemos agora


entender perfeitamente porque você, quando internado em
Glion, dando mostras de uma leve demência, investiu
improfícuo esforço na construção de um exótico e descabido
par de asas mecânicas, feitas de penas de ganso, visando
empreender o voo individual.

Na verdade, você desejava ardentemente reconquistar a


primazia perdida, verdade que o seu orgulho relutava em
aceitar.

E o mesmo sentimento o movia, quando nos seus últimos


anos de vida, sentindo-se já esquecido de todos, você
maquinava um impossível voo até o Polo Norte com seu
dirigível nº 10, objetivando ser o primeiro homem a realizar
o grande feito. Você necessitava urgentemente de novas
proezas que tornassem a lhe engrandecer o nome.

E também se nos esclarece a motivação oculta que


alimenta os seus respectivos sonhos de achar-se despido
em público, molestando-o com arraigados sentimentos
vexatórios. São reflexos dessas emoções adversas que você
angariou indevidamente por longo tempo, e que ainda lhe
perturbam o inconsciente, exigindo reparo. Você careia na
verdade, imensa vergonha diante de si mesmo, por se ver
desmascarado perante aqueles a quem desejaria continuar
nutrindo a falaz imagem do herói sem máculas. Vergue-se
diante da sabedoria divina que lhe suscita a renúncia ao
orgulho vil, e aceite sem relutância a necessária lição de
humildade, embora intolerável ao espírito

292

ainda altivo. Somente assim suas aflições encontrarão


alívio, meu amigo.

Ante o seu silêncio, e na tentativa de persuadi-lo da


realidade

dos

fatos,

prossegui
enriquecendo

minha

argumentação:

-- Sabemos que a disputa pela primazia, gerou calorosas


polêmicas na tentativa de demonstrar quem realmente fora
o inventor do extraordinário aparelho voador. Discussões
que certamente ainda não terminaram e bem cedo findarão,
pois quando a supremacia de um povo está em jogo, todos
os meios justificam sua defesa. Há contudo, uma realidade
maior que permeia as páginas de sua história, e que lhe
fará bem em conhecer. Como já lhe afirmamos, a vida em
qualquer nível que se manifeste, é um processo que se
realiza em dois mundos. Existe uma ativa e permanente
corrente de pensamentos entrelaçando seus dois planos e,
abem da verdade, o real condutor das descobertas que
entretém o progresso humano é a Esfera Espiritual,
enquanto que o domínio da carne é apenas o campo de sua
aplicação. Por isso é forçoso reconhecer que as grandes
invenções que beneficiaram a humanidade em todos os
tempos, não são meras descobertas ou criações realizadas
ao acaso pelos encarnados, porém obras programadas por
aqueles que nos dirigem. Assim é que não há inventores de
fato no plano da carne, mas apenas homens que se colocam
em condições de captarem as ideias que trafegam entre as
duas esferas. A concepção do avião foi desenvolvida no
mundo espiritual, e em prol da verdade, não tem
idealizadores no plano físico. Eis a surpreendente realidade.

Não é de se admirar o fato de que, em diferentes lugares, o


início do século XX tenha se agitado de frenético
entusiasmo pela conquista da navegação aérea?
Exatamente porque os espíritos que nos conduzem
movimentavam as ideias, semeando-as em todos os lugares
e entre todos os povos, à espera de que frutificassem, em
contato com aqueles que se achavam em condições de dar-
lhes guarida e o devido desenvolvimento. Victor Hugo
reconheceu isso ao nos afirmar que uma ideia chegada no
seu tempo é mais poderosa do que todos os exércitos. Você
e os irmãos norte-americanos Orvil e e Wilbur Wright foram
os mais receptivos e aptos a recolher essas sugestões e
concretizá-las no mundo físico, apenas isso. Não somente
vocês, mas todos aqueles que compuseram o rol de
pioneiros, e se arriscaram ou mesmo perderam a vida nas
arrojadas empreitadas iniciais, obedeciam ao comando dos
espíritos. Portanto não há motivos para se

293

digladiarem em busca de privilégios e hegemonias que não


se justificam, pois todos apenas cumpriam com o que lhes
determinava a influente voz da intuição, que a ninguém
pertence.

Se uns chegaram primeiro do que os outros, isso pouco


importa e interessa apenas à nossa vaidade, meu amigo. A
contribuição de cada um perante a lei de Deus é idêntica e
eivada dos mesmos valores.

Alberto emudecia-se pasmo, diante da revelação. A fim de


alijá-lo das infundadas frustrações que ainda vicejavam em
sua alma, agreguei:

-- Naturalmente você detinha valores para o desempenho


da tarefa, conquistados em existências anteriores, porém,
sem a orientação do Plano Espiritual, nada teria realizado,
guarde esta certeza. O trabalho já estava determinado e
você apenas se colocou por mérito próprio, em condições de
executá-lo. Não nos convém portanto, pleitear, unicamente
para deleite da vaidade, o direito dos inventos como se
fôssemos os únicos detentores do processo criativo. Como
não temos a exclusividade da primazia de nada que
criamos, essa reputação não nos pertence e não nos pode
ser roubada. E, se convém a outros a utilizarem para o
próprio engrandecimento, sejamos humildes o bastante
para ceder-lhes o mesmo bem que queremos para nós.

Sentíamos que Alberto, embora ainda silente, assimilava a


lição, acalmando-se diante de uma compreensão maior da
vida e sua real participação no processo inventivo a que se
achava no direito de posse. Continuei, acrescentando
informações que lhe fariam bem conhecer:

-- É preciso considerar ainda que seu trabalho, na verdade,


foi um empreendimento desenvolvido pelo esforço de uma
equipe de encarnados e desencarnados, sem a qual nada
teria sido possível. Os benfeitores ocultos que o orientavam
fizeram-lhe companhia constante aos pensamentos e
habitaram seus sonhos, desempenhando papel importante
em sua missão, fazendo da genialidade do amigo, obra de
esforço conjunto. Eles o instruíam e lhe apresentavam
projetos durante o seu sono físico, quando é possível ao
espírito encarnado entrar em contato com a nossa
realidade, embora você não tenha guardado nítida
lembrança disso. Desta forma, podemos considerar suas
invenções como fruto de inspirada intuição, oriunda do
esforço de dois mundos que se abraçavam em auxílio ao
progresso humano. Analise com sinceridade os seus passos
no processo criativo que você se incumbiu, e retire suas
próprias conclusões, atestando a verdade que lhe
revelamos.

294
Embora denotasse espanto, o amigo não se animava a
retrucar-me, irradiando ansiedade pela continuação do meu
relato. Cuidando de ser o mais sincero em minhas palavras,
ante seu olhar curioso, segui perfilando os dados fiéis que
recebera do Departamento de Informações de nossa
colônia, facilitando-me a argumentação:

-- Não se pode olvidar ainda, que os planadores já existiam,


quando você desenvolveu o seu avião. Eles aguardavam
somente alguém que lhes adaptasse um poderoso propulsor
e tivesse coragem para elevar-se no ar. Você apenas
detinha esta condição, conhecia os princípios da
aeronáutica que já estavam muito bem estabelecidos, e
arquivara a rica experiência dos voos aerostáticos. E ainda
convém ressaltar que, como vemos em nossos registros,
você não estava muito interessado em despender esforços
no mais-pesado-do-que-o-ar, por não acreditar em seu
sucesso. Como você mesmo afirmara certa época, não cabia
ao homem copiar as construções da natureza,
desenvolvendo máquinas que imitassem os pássaros.
Assim, continuava empregando tempo desnecessário na
construção de balões, que já haviam atingido o máximo
possível de aprimoramento para a época atrasando seus
passos na empreitada do avião. Os espíritos que precisavam
do seu trabalho estimulavam-no ao caminho correto, porém
você, obstinadamente, recalcitrava acreditando ainda na
superioridade dos dirigíveis, investido na realização de um
aparelho híbrido, uma espécie de balão alado que não seria
em nada conveniente. Foi então preciso que seus amigos
espirituais o demovessem da renitente obstinação,
servindo-se da sugestão de Léon Lavavasseur a fim de
atiçá-lo à tarefa. Sem este estímulo você nunca teria se
empenhado nesta conquista, nesse momento, como não o
fizera em oportunidades anteriores. Sem considerarmos
ainda que você nunca revelou devidamente a prestimosa
ajuda de seus colaboradores encarnados, sem os quais nada
lhe teria sido possível.

Denotando enfim laivos de humildade, Alberto redarguiu:

-- É forçoso reconhecer que tive importantes contribuições


na construção de meu aeroplano, e pouco as mencionei
para não obscurecer a minha participação exclusiva. E devo
confessar que não confiava no sucesso do mais-pesado-do-
que-o-ar, concentrando ainda meus esforços nos dirigíveis,
quando ao assistir uma corrida de lanchas, surpreendi-me
com o potente motor Antoniette. Interessado em sua
aquisição e explicando a finalidade para a qual o queria,
Lavavasseur, seu criador, de fato sugeriu-me utilizá-lo em
um aeroplano ao invés de num balão,

295

certo de que ele detinha potência suficiente para isso.


Acreditei na possibilidade a animei-me a testá-la. Foi nesse
exato momento que senti minha mente invadida pela ideia
do veículo voador, que passou a dominar-me
completamente o interesse e, vislumbrando um grande
feito, passe a estudar a concretização das ideias que
realmente já existiam. Assim surgiu a concepção do avião, é
verdade, não fosse isso não teria me empenhado em sua
realização.

-- E não se pode também negar a relevante colaboração de


Voisin, disponibilizado pelos seus amigos espirituais,
imprescindível ao seu sucesso. Seus conselhos lhe foram
realmente valiosos e você pouco considerou isso em sua
história de vida, pois seus compatriotas desconhecem o
fato. E sem as habilidades de Anzani, montando os cilindros
do novo motor em “V”, dobrando-lhe assim a potência, você
não teria saído do chão. Não olvidando que, contrariando a
decisiva orientação espiritual que o assistia, seu bizarro
aparelho voava com o leme na dianteira, ameaçando
gravemente a sua estabilidade.

-- A verdade me faz muito bem à alma e lhe agradeço por


ressaltá-la aos meus olhos que nunca puderam admiti-la,
temeroso de que viesse roubar a grandeza que pretendia
impor ao meu nome. Não posso negar a imprescindível
ajuda de Voisin e devo confessar que ele muito insistiu
desde o começo, para que eu invertesse a orientação de
meu aparelho, colocando o leme atrás. Entretanto, minha
obstinação não me permitia ouvi-lo, acreditando que na
frente suas aletas me ergueriam com mais facilidade e
precisei experimentar o equívoco para atestar sua
inviabilidade.

-- Apesar dos contratempos, seu 14-Bis voara e você se


embeveceu dos aplausos e pompas do mundo, os quais
merecia, porém não convinham à desmedida elação da
personalidade. E

você desconsiderou a participação importante dos


companheiros por imposição de exclusivista sede de glórias.
Natural que a corrigenda destes abusos se fizesse
necessária e somente o sofrimento e a decepção poderiam
lhe demover do patamar de altivez em que se projetara.
Agradeça portanto, as dores que lhe vergaram a alma
doente, encaminhando-o à correta posição diante da vida,
meu amigo, embora você, recalcitrante, não as tenha
aproveitado devidamente. Não culpe portanto, os reveses
da vida por um roubo daquilo que você não detinha o direito
pleno de possuir, reconhecendo que seus sofrimentos não
se justificam.

296
Alberto,

acabrunhado,

recolhia-se

aos

próprios

pensamentos, absorvendo as importantes lições que a vida


lhe propiciara. Era preciso deixá-lo, mais uma vez, entregue
a si mesmo, a fim de que a meditação lhe favorecesse a
acalmia das desalinhadas forças emocionais. Nova
tempestade se fazia indispensável, porém a bonança logo
lhe seria precioso beneplácito ao espírito aflito. Forçado a
admitir a inquestionável realidade dos fatos, consideraria
sua participação muito mais passiva do que ativa, no
processo inventivo em que se empenhara, acalmando suas
infundadas frustrações e pesares.

Alaíde concluiu nossa reunião com sentida prece, pedindo a


Deus para aplacar em todos nós os terríveis males do
milenar orgulho, corroendo-nos as possibilidades de
crescimento rumo ao Pai. Sedenta de esclarecimentos, a
irmã, findo o dia de trabalho, ainda me questionou ao deixar
o companheiro entregue aos refolhos da alma:

-- Surpreende-me o fato da conquista aérea ter sido


empreendida por uma equipe de espíritos atuando
ativamente ao lado dos encarnados. Recordo-me de ter lido
informes sobre o assunto, mas não presumia atuação tão
direta...
-- Sim, Adelaide, conhecemos aqui a verdadeira história da
aviação e quem de fato inventou o avião, porém
aguardemos o desenrolar dos fatos para agregar ao nosso
amigo novas revelações. Deixemos que ele acate a
realidade em doses paulatinas, abandonando
progressivamente a sua defectível visão dos eventos
vivenciados.

-- Todas as grandes conquistas da história terrena se dão


exatamente desta maneira, com a decisiva participação do
Plano Espiritual?

-- Não há dúvida, minha amiga, todos os acontecimentos da


vida planetária são assistidos e orientados de perto pelo
mundo maior. Nunca lhe ocorreu os motivos que levam a
história na Terra a caminhar em nítida e lógica sequência de
fatos? Será por um acaso que as criações humanas sempre
ocorreram de modo simultâneo em diferentes pontos do
planeta? Povos diversos, em distantes

locais,

sempre

desenvolveram

ferramentas

extremamente idênticas. Analisemos alguns simples


exemplos: o machado de pedra, o primeiro invento do
homem, foi criado em uma mesma época e era
confeccionado de forma idêntica, com o mesmo material,
uma lâmina de sílex amarrada a um cabo de madeira, em
todos os continentes. Os artefatos de cerâmica, de ferro ou
de bronze, onde quer que se surgissem, na Europa, na
África ou no Oriente, seguiam a mesma inexplicável
297

verossimilhança. Sumérios e chineses, astecas e etruscos,


maias e assírios, todos fabricavam utensílios e artefatos e
construíam monumentos de maneira incrivelmente
semelhante. E não somente na moldagem de objetos, mas
também no âmbito cultural e artístico, se observa roteiro
idêntico para todos os povos.

Filósofos e artistas compuseram, numa mesma época, mas


em locais remotos e sem que se conhecessem, modelos
ideológicos incrivelmente coincidentes. Os astecas
construíam suas pirâmides como se as copiassem dos
egípcios. Os profetas hebraicos ensinavam os mesmos
princípios filosóficos propalados pelos pensadores gregos,
enquanto Sidarta compunha-os para os hindus, e Confúcio
os professava na China.

Essa inverossímil coincidência que permeia o roteiro da


vida, nunca pode ser explicada pelos historiadores. A
verdade entretanto, é que desde a pré-história, todos os
inventos e todos os avanços que se realizaram na dimensão
física foram sugestões do mundo maior. O itinerário terreno,
minha amiga, é processo inquestionavelmente conduzido e
não se dá ao acaso. Por isso não se pode contar a história
da humanidade sem considerar a participação ativa e
efetiva do mundo dos espíritos. E os grandes gênios, em
todos os tempos, nada inventaram, foram apenas aqueles
que se capacitaram para a leitura das correntes de
pensamentos emanadas do plano espiritual, concretizando-
as no mundo das formas. Rendamos, humildemente, graças
à direção suprema da vida que, atenta às nossas
necessidades, esteve sempre presente, protagonizando o
progresso na superfície do orbe. Sem sua ajuda, e entregues
a nós mesmos, pouco teríamos avançado e seguramente
ainda estaríamos intentando a invenção da roda até hoje.

Isso faz ainda da vida um processo único e dirigido, não


somente em nosso limitado orbe, porém em toda a criação,
de modo que, em qualquer lugar do universo, deparar-nos-
emos sempre com os mesmos modelos, idênticas invenções
e ensinamentos semelhantes, pois uma mesma fonte, o
influxo da Mente Divina, se irradia de forma igualitária em
todos os seus infinitos rincões.

Atenta como sempre, ao desenvolvimento lógico das ideias


e interessada no real esclarecimento das questões
abordadas, Adelaide, com muita propriedade, perguntou
ainda:

-- Parece-me compreender, pelas suas explicações, que


nada é possível criar no reino da matéria, e na verdade, não
existiriam inventores entre os encarnados, obedientes
sempre às sugestões do mundo espiritual. Isso não retira
todo o valor dos

298

grandes gênios da humanidade, colocando-os como meros


receptores de ideias que na verdade nunca lhes
pertenceram? E

as invenções que objetivam unicamente a destruição e a


maldade, são também produtos dos espíritos?

-- Suas questões tem real fundamento, Adelaide.

Compreendamos que a vida é ação permanente de uma


vontade criadora única que se desenvolve em dois mundos,
evoluindo em permanente intercâmbio de ideias que fluem
e refluem entre os dois planos, em verdadeiro
entrelaçamento e interdependência de valores. Contudo,
desde que o espírito dominou o pensamento contínuo, e
passou a desenvolvê-lo com maior potencialidade após a
morte, a escola da carne transformou-se no terreno de
aplicações práticas e adestramento das ideias, originadas
sempre no reino do espírito. Portanto, a bem da verdade, a
esfera física raramente detém originalidade de concepções
e descobertas, pelo simples fato de que o espírito liberto do
subjugo da carne encontra-se com seu potencial criativo
muito mais aguçado, nutrindo-se de maior criatividade
inventiva e inigualável percepção intuitiva da realidade.
Desta forma, o mundo espiritual assumiu o comando da
vida planetária, passando a ser verdadeira fonte
mantenedora dos campos de ideias que entretecem a vida
humana. Daqui partindo todo o conhecimento, o nosso
plano passou a preparar, antes do nascimento, aqueles que
se mostravam mais aptos ao desempenho da função
inventiva, a se expressar em todas as áreas do pensamento
humano, enviando-os periodicamente à carne como
missionários, a fim de apressar e orientar o progresso da
humanidade. Portanto, em tempo algum, os gênios foram
meros produtos do meio físico e aparições casuais nos
cenários da vida planetária. Embora muitas vezes sejamos
forjados na premência de superação dos limites que
obstaculizam a expressão de suas personalidades, trazem
sempre de suas experiências passadas, o mérito na
aquisição das habilidades a que se prestam, não sendo
detentores de excepcionais e injustificáveis dons divinos.

Convém esclarecer contudo, que a criatividade humana se


realiza nos mesmos moldes da mecânica mediúnica, pois a
ideias irradiadas da esfera extrafísica somente são
percebidas e manipuladas pelas mentes que se encontram
aptas a trabalhá-las, dando-lhes tão perfeita guarida no
campo psíquico, que as confundem com os próprios
pensamentos. Este fenômeno, funcionando segundo as
mesmas leis físicas da ressonância, coloca o receptor
participando da elaboração criativa com

299

idêntico juízo de responsabilidade, e igual mérito no seu


desenvolvimento. Exatamente por isso, aquele que cria ou
inventa, como todo médium, não pode acomodar sugestões
e concepções que não detenha potencial de gerar, tornando
assim o processo intuitivo um conúbio de mentes que se
entrelaçam em propósitos comuns, onde todos participam
com seus inquestionáveis valores e contribuições pessoais.
Isso faz de todo cientista, pensador ou gênio, um
intermediador de ideias, portanto um medianeiro, na
acepção espírita da palavra.

Os espíritos superiores que nos transmitem correntes de


sugestões, por sua vez as captam de níveis ainda mais
superiores, de modo a considerarmos que, no sentido
absoluto, somente a Deus compete o ato criador em seu
processo genuinamente primário, e a Mente Divina já
concebeu tudo o que se pode realizar no mundo das formas
que habitamos. Entretanto, quis o Senhor que fôssemos
partícipes ativos de sua obra, e não meros executores de
sua vontade, por isso, em qualquer nível, desde que
atinjamos as condições indispensáveis, qualquer um pode
dar perfeita guarida às ideias criativas que inundam o
cosmo, fazendo-se também co-criador no plano menor.

Os gênios do mal no reino humano, em todos os tempos,


são igualmente inteligências consorciadas aos sicários das
trevas, em serviço de destruição e maldades, em idêntico
processo de funcionamento. Admitimos entretanto, que a lei
de Deus estabelece limites naturais ao desenvolvimento do
conhecimento, permitindo que os seus segredos somente se
revelem àqueles que conquistam a nobreza da bondade
pois a sabedoria só se adquire com dotes do amor
verdadeiro. Assim o Altíssimo protege a criação e os
protagonistas do mal são cerceados pela própria ignorância,
restringindo-se-lhes o desenvolvimento pleno das
potencialidades.

-- Estou convencida de tudo isso, contudo não fomos muito


incisivos com nosso amigo, destituindo-o do valor próprio
nas conquistas sobre as quais detém de fato méritos
pessoais?

-- Compreendemos que Alberto trazia importante


genialidade e sua contribuição ao progresso é inegável,
entretanto temos que reconhecer que ele, com sua grande
habilidade mental, apenas tornou prático o avião, e não o
inventou. Suas proezas são realmente consideráveis e sua
participação meritória de destaque na história humana,
contudo, ele fez disso motivo para engrandecer a vaidade, e
errou ao desejar ardentemente a exaltação do próprio
nome, desconsiderando todos quantos o ajudaram. Esse foi
o seu

300

equívoco e o motivo de sua desdita. Possivelmente você


interprete como dura a palavra de orientação que lhe
dirigimos, destituindo-o do real valor de seu trabalho, porém
nesse momento tudo indica ser esta a sua necessidade. É
preciso que ele se recolha na humildade e promova o
crescimento espiritual em nova direção. Eis nossa função
neste instante junto ao seu desvalimento. O passado é força
poderosa a se refletir no presente em forma de continuísmo,
se não interpusermos nossa vontade no redirecionamento
das tendências que o cerceiam.

Assim, antes que o orgulho contumaz se instale novamente,


reverberando-se como atitude automatizada em aviltantes
hábitos personalísticos, trazendo riscos de novas quedas e
dores, tratemos de impor-lhe a moderação e a modéstia,
como normas indispensáveis ao equilíbrio. Este é o objetivo
mais nobre no serviço de orientação espiritual que
empreendemos, exigindo-nos a superação do pieguismo
que sempre nos caracterizou a errônea maneira de prestar
auxílio. Daí a necessidade de mostrar-lhe os deméritos,
salientar suas faltas e erros, a fim de permitir-lhe o
reajustamento consigo mesmo e com a lei, conformando-o
nos limites imprescindíveis à saúde do espírito.

Adelaide dava-se por satisfeita e partimos para a execução


de outras atividades que nos concitavam ao esforço
comum, igualmente urgentes, pois a vida seguia seu
séquito de necessidades sempre prementes, em muitos
campos de expressão de nossas atuações, na profícua
realidade do espírito.
301
28
capítulo

O SENHOR DOS CANHÕES

“A noite é passada e o dia é chegado, rejeitemos pois as


obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz.”

Paulo – Romanos, 13:12

A tempestade dos grandes dramas humanos, quando


favorecida pela colheita de seus valores edificantes, cede
lugar à bonança e à quietude do espírito, redirecionando-o
para novas aquisições nos infinitos panoramas da vida. As
confissões de Alberto foram as mais sinceras possíveis,
entregando-se ao nosso juízo e ao julgamento da lei de
Deus, gravada no imo da própria consciência. Novamente
andou por muitos dias sorumbático e taciturno, intimidado
em nossa presença, mas não tardou a retornar à vida social,
buscando-nos para o beneplácito do diálogo. Voltava agora
a estampar serenidade no olhar, assegurando-nos que o
Senhor, por misericórdia, opera milagres em nós,
cicatrizando-nos as feridas por mais acerbas que sejam,
pedindo-nos apenas o exercício do bem verdadeiro como
único medicamento para todos os nossos males. Retornava
aos jardins terapêuticos, porém denotando finalmente,
decisiva mudança de atitude íntima.
Não o víamos mais com a máscara da angústia, nem
envergando a túnica do orgulho, a envenenar a alma de
perigosa ufania. Deixando pender os trajes que o
enfeitavam de fatuidades, suscitavam o respeito e a
admiração humana, sentia-se desnudar diante de si mesmo
e da vida, e reconhecia a necessidade de cobrir agora a
nudez da alma, com o comedimento e abrigar-se com as
vestes da simplicidade.

Após alguns dias em que o deixamos meditar nas preciosas


lições rememoradas, e quando novas interrogações
brotaram em sua alma suscitando-lhe esclarecimentos mais
profundos acerca de si mesmo, convidamo-lo para o
prosseguimento de nossas tertúlias, amadurecendo o
aprendizado recebido.

Preparávamos para a continuidade de nossa tarefa, quando


agradável surpresa nos interrompeu a rotina de trabalhos:
Heitor, o

302

estimado amigo, deu entrada em nosso gabinete de serviço


para grande satisfação nossa.

-- Salve, amigos, Deus seja conosco – saudou-nos o


prestimoso companheiro. – Apraz-me enorme alegria tornar
ao encontro de vocês e desta vez com motivações de
contentamento e gratidão. Venho agradecer-lhes pelo
ingente tratamento realizado em favor de nosso querido
Alberto, agora uma alma desperta para a realidade. Vejo
que nosso Ícaro finalmente se ergueu das cinzas,
transformado em verdadeiro Fênix (Figura mitológica da
tradição egípcia, em forma de um pássaro que, queimado,
renascia das próprias cinzas).
Alberto deparava-se pela primeira vez com seu
desconhecido benfeitor. Sem dar-se conta de que estava em
presença do benemérito protetor, recolhia-se em admiração
e mutismo, porém inundando a alma de indizível felicidade
que não sabia de onde emanava. Sem entender o que se
passava, deixava-se fascinar diante da portentosa figura do
seareiro iluminado que sempre nos suscitou a impressão de
ter ante os olhos, alguma lendária figura apostólica.

-- Sou Heitor e você pode considerar-se seu tutor espiritual,


Alberto, pois sou muito mais do que um simples amigo e
não guardo qualificações suficientes para ser seu benfeitor.
Alegro-me por vê-lo já refeito, depois de tantos anos de
dores na colheita dos atos inconsequentes, e agradeço a
Jesus reencontrá-lo no caminho de franca recuperação.

Embevecido pela aura de simpatia do magno espírito,


Alberto o acomodava no coração como a um verdadeiro pai,
nutrindo-lhe imediato apreço, jamais experienciado de
forma tão pura, não conseguindo expressar em palavras os
seus sentimentos.

Sua alma sorria, exultante de indizível alegria vertida das


profundezas do espírito, ainda sedento dos encantos
expressivos do amor sincero, por se ver tanto tempo
carente dos afetos, na penosa jornada de dores e solidão.
Heitor, notando-lhe o embaraço, continuou:

-- Não desejo substituir a segura orientação terapêutica que


nossos amigos empreendem a seu favor, Alberto, porém
apenas compartilhar com você desse precioso ágape
espiritual, se me permite, como paciente também, pois boa
parte de seus dramas igualmente me pertence. Julgo que
poderei, de uma melhor forma, ajudar na restituição do
verdadeiro roteiro transcorrido em sua história, pois
participei ativamente de alguns de seus momentos aqueles
normalmente ignorados pelos homens e por você mesmo,
pertinentes ao lado de cá.

303

-- Então o senhor é aquele a quem os amigos se referiram


como tendo sido o meu guardião na vida? Esperava
conhecê-lo com muito anseio, para lhe agradecer...

-- Por favor, não me trate por senhor, não deixemos que as


irrisórias reverências humanas apartem o sentimento de
verdadeira fraternidade que nos une – respondeu Heitor
com sincera modéstia. -- É possível que eles se referissem a
mim, pois me viram muito interessado em seu caso em
particular, mas se algo fiz em seu favor, não foi mais do que
minha obrigação e não venho em busca de reconhecimento,
pois apenas cumpri com uma tarefa que me foi confiada.

Adelaide, espargindo inquietações silenciosas, denotava


compartilhar comigo enorme curiosidade por saber notícias
de Catherine, porém guardamos respeito pela reserva de
nosso amigo.

Certamente

havia

ela

retornado

França,
aconchegando-se ao seio familiar, a fim de prosseguir sua
evolução junto aos seus, encerrando sua participação no
drama a que assistíamos.

-- Seus pensamentos buscam por Catherine, é verdade, pois


a associaram à minha pessoa, bem sei – dissenos o amigo,
completamente ciente das impressões mentais que
irradiávamos.

– Nossa irmã ainda se recupera do doloroso transe, e


repousa em outros campos do espírito. Não se preocupem,
pois a temos sob cuidados. Embora sua trajetória na vida
tenha se caracterizado pela iniquidade e abjeção, trata-se
de uma alma nobre, merecedora de nossas mais puras
afeições. Tratemos contudo, de nosso Alberto e em outro
momento tornaremos à nossa boa companheira, dando-lhes
a conhecer as tramas que compartilhamos nas teias do
destino.

Depois de trocarmos ligeiras impressões sobre os trabalhos


gerais que nos requisitavam a atenção, Heitor, dando
mostras de estar plenamente ciente de todos os passos até
então trilhados, inseria-se naturalmente em seu curso, sem
nada perturbar seu andamento. Sem maiores delongas e
dando prosseguimento ao mesmo trabalho que vínhamos
realizando, tornava à consideração das aventuras terrenas
de Alberto, aduzindo:

-- Está na hora de conversarmos como convém a um pai


diante do filho que cresceu, e precisa reconhecer as
peraltices praticadas na inconsequência da adolescência,
preparando-se para a madurez do espírito. Isso o ajudará a
se recompor diante de si mesmo e da vida. Para isso estou
aqui. Você sente que já me conhece, e é verdade, somos
velhos companheiros e comungamos larga experiência de
vida no passado. Gostaria de
304

abraçá-lo, agradecendo a Deus pela oportunidade de nosso


reencontro, mas antes é necessário externar nossa gratidão
aos amigos a quem devemos a sua recuperação. Que o
Senhor da vida lhes recompense pelo inapreciável esforço
de trazê-lo à consciência de si mesmo. Sem essa
colaboração não estaríamos dialogando neste momento, e
um dia você poderá compreender melhor isso, pois esteve à
beira de aflitiva e grave queda na inconsciência. Temos
muito que conversar e devemos consentir que nossos
amigos participem conosco deste precioso momento de
confabulações, necessário ao nosso equilíbrio, mesmo
sabendo que iremos tratar assuntos de nossa intimidade, e
falar das mazelas que ainda nos habitam. E, certamente,
ainda não podemos dispensar suas orientações terapêuticas
em favor de nossas fraquezas.

Embora sua alusão à nossa atuação me suscitasse uma


correção quanto ao seu real valor, não me dispus a interferir
em suas abalizadas e notórias considerações.
Reconhecendo que tais evasivas, muitas vezes cumprem
apenas mero papel de polimento social em nossas relações,
o que realmente importa é nossa verdadeira modéstia
diante de Deus, cabendo-nos aceitar que somos simples
auxiliares, jamais artífices da cura de quem quer que seja.
Destarte, sua magnitude nos inibia qualquer altercação e
continuamos a sorver-lhe a irradiação de simpatia, e a
verdadeira humildade nas singelas, porém sábias palavras,
condenatórias de sua elevada condição espiritual. Sem
tergiversar, prosseguiu o nobre companheiro:

-- Ao envergar a roupagem terrena, todos sem exceção,


somos acompanhados por equipe de amigos espirituais, no
desempenho das diversas tarefas que nos cumprem
realizar, ainda que objetivem nossa própria reforma. E você
teve também o seu programa de vida pré estabelecido. E
eu, por ter amealhado pesados débitos, obstaculizando o
progresso humano em passado delituoso, assumi a
participação em equipe espiritual de trabalho em prol da
melhoria da vida terrena. Em decorrência de circunstâncias
outras que em breve veremos, fiquei incumbido
especialmente, de acompanhar-lhe os passos de perto, a
fim de auxiliá-lo. Estive assim, presente em todos os seus
percalços e aventuras na Terra, Alberto. Sofri junto com
você seus fracassos, seus desgostos, alegrei-me com suas
vitórias, e tudo fiz para ampará-lo como convinha. Conheço
portanto sua vida como ninguém, pois ela se confunde com
a minha própria. Isto me autoriza a esclarecer-lhe muitos
fatos ainda nebulosos para você e para os observadores da
história dos homens.

305

Ante o assombro de Alberto, emudecido diante das


realidades ocultas da vida, continuamos a ouvir Heitor,
providos de imensa curiosidade:

-- De fato o amigo, em que pesem seus desmandos, sua


grave intolerância aos fracassos e sua lamentável queda
nos abismos do autocídio, desempenhou com proveito sua
missão na Terra, pela qual lhe devemos nosso
enaltecimento. Mas não nos convém entender que
realizamos verdadeiros atos heroicos ou surpreendentes
feitos de genialidade entre os homens, por magnitude de
sabedoria ou elevada condição de missionário, pois na
maioria das vezes, somos todos ainda mendigos da luz
divina, em busca da solvência de pesados débitos do
pretérito e do abono de acerbas culpas, apanágios daqueles
que muito mal fizeram à humanidade. Por isso, estejamos
certos, se algo realizamos é porque somos verdadeiros
devedores do bem comum, e nada fizemos além de nossa
obrigação.

Vejo que você já expôs com sinceridade as fraquezas da


alma, deixando entrever com humildade os martírios
íntimos da intolerável pequenez física, e sobretudo os
opróbrios indizíveis da deficiência genital. São sem dúvida,
os mais importantes açoites que lhe vergastaram o espírito
ao longo da jornada terrena, nublando-o

de

inclementes

desgostos.

Nossos

amigos

acertadamente deduziram que foram entretanto, nada mais


do que reações reverberadas do passado, no qual, se você
nos permite, gostaríamos de penetrar, a fim de fazê-lo
compreender as reais causas que fomentaram tais
desvalimentos.

Alberto, completamente entregue às sugestões do amigo,


anuiu ao convite na certeza de que sua atuação visava
apenas ao seu bem, acelerando-lhe a aquisição no
necessário equilíbrio.

Heitor, ciente de sua função naquele instante, com


expressão carregada de amabilidade e modéstia, suscitou-
nos a apoiá-lo na tarefa que se iniciava, e dirigindo o olhar
para o alto, evocou:

-- Oremos ante ao Senhor do Universo para que nos


abençoe o propósito de acelerarmos os passos rumo ao seu
amplexo de amor.

Proferindo sentida prece, elevando-nos a sensibilidade e


favorecendo-nos a percepção da presença do Divino em
nós, iniciamos os trabalhos do dia, agora dinamizados por
novo alento, deixando-nos conduzir pela palavra amiga e
abalizada do providente seareiro da luz. Com sua incomum
sabedoria, prosseguiu:

-- Como sabemos, para se compreender a vida de um


homem, e a direção de suas intenções, é preciso retroceder
na

306

linha do tempo, em busca das causas que deflagraram e


ainda fazem mover as poderosas forças do destino. Por isso
é bom que comecemos sua história em um dia perdido em
priscas eras, porém ainda vivo e estuante em sua memória,
pois o espírito jamais olvida. Naquele tempo em que as
ferocidades de nossas disputas se resolviam pela força da
espada, e as cruentas lutas nos maculavam de opróbrios.
Ódios estupendos se acumulavam, imensos, indissolúveis
como a rocha em nossos corações, e a bênção da vida se
enodoava do sangue de nossos irmãos a quem deveríamos
amar sem restrições. Tristes dias aqueles, cujas
rememorações nos suscitam as mais amargas lembranças,
e tudo daríamos para varrer definitivamente dos
peremptórios escaninhos da memória.
Tocando de leve a fronte de nosso companheiro,
manipulando o magnetismo hipnotizador com maestria,
Heitor o conduzia ao pretérito. Paulatinamente sua imagem
corporal, projetada na tela mental sob nossa análise,
modificava-se, deixando-nos entrever a figura de um
homem rude e corpulento, assustando-nos pelo contraste
com a roupagem física que envergava no presente.
Notando-nos o assombro, Heitor esclareceu:

-- Aqui vemos nosso amigo em uma de suas transatas


encarnações em que se vestia com a personalidade de
Zennon Du Mont, homem cuja influência estabeleceu uma
linhagem de artesões e escultores famosos na época, pela
realização de importantes trabalhos artísticos na França, no
final da idade média e início da era moderna. Iniciava ele
nesse então a árvore genealógica da família Dumont, a
mesma que o recebera mais tarde, obedecendo às
afinidades que vencem o tempo. Zennon era, destarte, um
artesão de armas, o mais famoso armeiro da região, cuja
habilidade e perícia moldando o ferro bruto, produzia as
mais formosas e perfeitas armas em uso na época.

Um pictórico vilarejo, emoldurado por tosca vegetação


despida pelo inverno, desenhou-se nas linhas ideoplásticas
do telecinético, compondo um bucólico quadro, pincelado
pelas perfeitas reminiscências de seus registros
mnemônicos profundos, vencendo os séculos enquanto
nosso benfeitor continuava a nos explicar:

-- Estamos no século quinze, em uma pequena aldeia nos


arredores de Valenciennes, ao norte da França. Transcorria a
Guerra dos Cem Anos que se aproximava do seu fim,
quando franceses e ingleses se engalfinhavam em
sangrentos e despropositados combates. Zennon, com seu
porte agigantado e
307

seus músculos proeminentes, trabalhados pela força do


martelo golpeando a bigorna, era muito conhecido pelos
guerreiros da época. Muitos vinham de longe para adquirir
suas famosas espadas, cujo corte afiado jamais se perdia, e
armaduras que reuniam leveza e resistência. Já utilizava na
época o aço de cadinho, misturando carvão vegetal ao ferro,
conferindo-lhe a dureza próxima dos aços modernos, três
séculos antes de Benjamin Huntsman redescobri-lo.
Alabardas, floretes, lanças, punhais, adagas, clavas,
escudos, enfim todo o requintado arsenal de armas brancas
usadas naqueles tempos de contendas cruentas, ele
materializava em seus fornos de fundição com a habilidade
escultural das formas precisas. Com seus poucos ajudantes
podia, em curto tempo, armar todo um exército de
cavaleiros com as mais perfeitas ferramentas de ferir e
matar.

Uma fulva cruz flamejando chamas vivas subitamente


emergiu de suas reminiscências, adendo no alto de uma
pequena e grotesca igreja, e podíamos ouvir nas minúcias
de sua projeção telemental, o crepitar do fogo que se
apressava em consumir o símbolo do Crucificado na Terra. A
imagem parecia poderosa o bastante para impressioná-lo,
pois de imediato converteu os olhos em poços de lágrimas
candentes.

Como o quadro demorasse em sua tela mental, Heitor nos


esclarecia:

-- A cruz do Cristo arde, infamante em sua memória até os


dias de hoje, como a lhe exigir o reparo das ações
escabrosas do passado, e que desperte enfim para as luzes
do Evangelho, abandonando os hediondos e lutuosos
caminhos do ódio.

Retrocedamos contudo, um instante mais para compreender


o que se passa.

Um céu desbotado de cinzas paulatinamente se afigurava


agora em sua tela mental, nimbado de presságios sombrios,
como se feito para encenar horripilante espetáculo. Ele
conduzia uma carroça de lenha, sem dúvida para alimentar
suas vorazes fornalhas, quando subitamente divisou ao
longe, copioso novelo de fumaça, alarmando o constrito
horizonte de inesperado assombro. Seu semblante se tingiu
de sobressalto, sofreando seu animal de inopino, para em
seguida chicoteá-lo, atiçando-o na caminhada. A estrada,
enlameada pela neve que se derretia, prenunciando o final
do inverno, exigia esforço do animal, fazendo-o avançar
com vagar, apesar das chibatadas que estalavam forte em
seu dorso. Impaciente, deixava enfim o veículo, para correr
ao encontro da vila, tomado por imenso desespero.
Podíamos ouvi-lo trêfego e ofegante, ansiando atingir

308

o seu destino. Alguns poucos amigos, ocultos pelos arbustos


ressequidos nas imediações, acorriam assustados ao seu
encontro.

Não havia a menor dúvida do ocorrido. A aldeia, em sua


ausência, havia sido atacada.

-- Os malditos ingleses! – proferiu Alberto entre dentes,


oprimido pelo ódio que emergia dos recessos infecundos de
seu coração.
A cena que agora se delineava em sua mente, era
estarrecedora. Corpos estraçalhados, atirados por todos os
cantos, em meio ao fogo que consumia os casebres,
completavam o triste cenário. Gritando desesperadamente
por Constança, debruçava-se enfim sobre uma mulher com
o crânio esfacelado, que adivinhávamos a esposa, trazendo
ainda jungido ao colo, o corpo dilacerado de uma criança
com os cabelos de ouro, encaracolados de sangue vivo.
Seus ajudantes, espetados em lanças, agonizavam nos
últimos suspiros de vida. O filho morto, trazia o tórax
retalhado, e de seus lábios abertos parecia ainda ouvir o
grito de socorro, enquanto os olhos esbugalhados se
afiguravam afixados em imenso pavor. Gritando
desesperado pela filha que não via, procurava por todos os
lados, para em seguida ouvir de um jovem ferido, que os
facínoras a haviam levado.

-- Os bárbaros a sequestraram para seviciá-la – concluía


entre gritos e grunhidos, em frêmito de execrável fúria e
monstruosa indignação, domando-lhe todas as fibras da
alma.

Ainda desfeito no furor das paixões mais vis que um homem


pode nutrir, de joelhos, apertando ao peito a esposa
dilacerada, seus olhos fixaram a cruz do cimo da pequena
igreja que tremulava em fogo vivo, irradiando mágico
convite ao Evangelho Divino. Em meio às caóticas forças do
ódio que atiravam sua alma em verdadeiro inferno, parecia
ouvir no imo da consciência o brado divino, convidando-o
para o Bem, único caminho para que aqueles tétricos
espetáculos fossem banidos do planeta. Um anseio de paz
lhe tomava de assalto a alma, porém a veemência da ira,
assenhoreando-se de toda a sua capacidade de
discernimento, aniquilava a mágica atmosfera que o
nimbava, provinha de entidades elevadas, condoídas
daquele homem macerado pelas barbáries das mais
frementes paixões que assolavam a Terra de incontidas
maldades.

Agora a fulgente sanha dava lugar à consternação, e as


lágrimas abundavam em seus olhos, desfeitos em imenso
burel de desolação.

309

Aquele homem rude era capaz de chorar e lamuriava um


vagido ruidoso, feito animal ferido, entre grunhidos e urros.
E logo o víamos, regado por fina chuva que caía espargindo
terrível frio, abrindo as covas para enterrar o que lhe restara
da família.

Sensibilizados pela chocante cena, podíamos sentir o algor


intenso que lhe assolava as costas molhadas, envergado no
afã de terminar a penosa tarefa, enrijando-lhe os
sentimentos na promessa de cruel vindita. Realmente era
um quadro por demais comovente para nossos olhos,
compungindo-nos às lágrimas, fazendo-nos recordar que
todos, sem exceção, na rota dos séculos, protagonizamos
dramas como aquele. Inundava-me o ser do mais sincero
desejo de ocultar das lembranças, arquivadas para sempre
na memória espiritual, as máculas do passado assombroso
que nos constrita, e ainda nos encerra nos círculos da
selvageria, obstaculizando-nos a entrada definitiva nas
elísias esferas da paz. Agradecia intimamente a Deus por
hoje já possuir a bênção de pressentir as dores que ainda
somos capazes de infligir a outrem, inibindo-nos o potencial
de maldades que detemos por automatismos de arraigados
hábitos.

Emudecidos diante do cenário vivo desfraldado para nossa


análise, ouvimos Heitor continuar com serenidade, a
descrição do momento evocado:

-- Eis apenas um dos isolados dramas que todos trazemos


das tragédias humanas. Se agora o situamos na posição de
vítima, não podemos esquecer contudo, que no palco da
vida, invertemos constantemente nossos papéis, pois
seguramente, é a permanente atitude de algoz que nos faz
meritórios das mesmas maldades que seríamos igualmente
capazes de praticar, se ocupássemos naquele momento, o
lugar de nossos verdugos.

Agrada-nos entretanto, registrar com intensidade o instante


do mal que nos é imposto, e não de nossos erros,
justificando assim todos os nossos equivocados atos de
vingança, retendo-nos por tempo indeterminado nos
círculos das ações e reações. Eis por que perdoar aos
inimigos é o único meio de evadir-se deste conúbio de ódio
e dor. E não podemos olvidar que Zennon disseminava com
suas armas o propósito de ferir e matar, esquecido de que o
Mestre nos asseverou “que aquele que com espada fere,
com espada será ferido.”

Nosso amigo, como era de se esperar, não atendeu naquele


momento ao apelo sutil das forças superiores da vida que,
sensibilizadas pela sua amarga experiência, convidavam-
nos aos caminhos do Bem. Envenenado pelo fel da própria
cólera, enceguecido pelo ódio, passou a alimentar
impetuoso desejo de

310

vingança. Reergueria sua oficina e construiria as mais


terríveis armas afim de liquidar com seus atrozes inimigos.
Atraiu com isso a atenção de formidandos acólitos das
sombras, mercenários do mal, movidos pela mesma ira de
retaliação. Espíritos inditosos que, encampando a vingança
em monoideísmo e advogando a própria causa, faziam-se
piores do que seus próprios algozes, protagonizando a
destruição em massa. Consorciando-se-lhes por identidade
de intenções, colocou sua inteligência e habilidade a serviço
de seus nefandos propósitos sem compreender que a
parceria lhe traria graves danos ao destino,
comprometendo-lhe a felicidade por longos anos.
Empenhado ativamente na ideia fixa, guiado pelos
cicerones das trevas, terminou por desenvolver realmente o
mais admirável e funesto instrumento de guerra daqueles
febricitantes dias, e que dominaria os campos de batalha
pelos próximos séculos. Zennon, queridos irmãos, inventou
nesta época o canhão.

Realmente podíamos vê-lo agora em sua tela mental,


empenhado na confecção de uma grande peça de ferro
fundido, à semelhança de um longo cilindro.

Um leve gesto da destra de Heitor, Alberto, sem conseguir


ainda deter o fluxo das emoções afloradas em profusão,
tornou parcialmente à superfície da consciência, emerso do
sono hipnótico. Perfeitamente ciente do que vivenciara, e
emudecido pelo êxtase das insofreáveis recordações,
colocava-se atento às palavras magnetizantes de Heitor,
que continuou a ler nas páginas vivas do passado:

-- Embora a História não tenha registrado seu nome, Zennon


pode ser considerado de fato, o criador do canhão. No
século em que se desenrolavam as cenas vivas sob os
nossos olhos, já se conhecia a pólvora trazida da China, que
então era utilizada em um instrumento rudimentar, a
bombarda, construída com tiras de ferro, presas por aros, da
mesma forma como se fazem os tonéis.
Através de pequeno furo, o ouvido, se introduzia um bastão
de metal ao rubro, inflamando a pólvora depositada no seu
fundo que, explodindo, arremetia pedras nos seus inimigos.
Zennon transformou esse primitivo instrumento em uma
única e resistente peça cilíndrica fundida em ferro.
Substituiu a haste em brasa pelo prático e rápido
mecanismo do pavio, e as pedras por esferas de ferro,
perfeitamente ajustadas ao calibre da boca do canhão.

Acomodou ainda a pólvora em pacotes de panos já prontos


a fim de agilizar a recarga, e instalou a peça sobre grandes
rodas de carroça, facilitando o seu rápido transporte. Como
podemos deduzir, nosso amigo aumentou a eficiência da
rudimentar

311

bombarda, transformando-a no canhão, de prático uso em


assaltos rápidos, popularizando-o como a mais formidável
arma de guerra de seu tempo. E com exaltado orgulho,
passou a se gabar como sendo o criador deste fantástico
instrumento de destruição. Tornando-se famoso em sua
época, dedicou o resto de sua vida à fabricação exclusiva de
canhões, armando incontáveis exércitos e navios de
combate. E de fato, os franceses venceram os ingleses na
decisiva Batalha de Castil on, pondo fim à Guerra dos Cem
Anos, graças aos seus poderosos canhões, consolidando sua
vingança. Estava inaugurada a guerra moderna, meus
amigos, e os enfrentamentos humanos nunca mais seriam
os mesmos. Eis onde se posicionou nosso estimado Alberto!

Transformou-se no pai das armas de fogo, e comprometeu-


se com as guerras algemando-se ao peso de grandes
responsabilidades, e associando-se aos maiores dramas que
o homem de nossa era pôde engendrar para si mesmo.

Compreendíamos naquele instante, com a lucidez que a


lógica da vida nos ensina, os fundamentos das culpas de
Alberto, relacionadas ao uso do avião na guerra, mas não
era ainda a hora de entretecermos considerações a este
respeito, pois o benfeitor, consternado diante das amargas
recordações, prosseguiu:

-- Conquistando significativa fortuna com o comércio de


seus admiráveis canhões, Zennon estabeleceu-se em um
pequeno castelo, em Valenciennes, onde constituiu outra
família, fundamentando de fato, a genealogia dos Dumont.
Sempre em contendas com aqueles que lhe invejavam as
regalias conquistadas junto à corte dos nobres, terminou
por morrer em luta contra salteadores que lhe invadiram a
residência, atraídos pela grande riqueza acumulada. No
Plano Espiritual, como era de se esperar, precipitou-se nas
regiões excruciantes que retêm aqueles que, após a morte,
encontram-se com o próprio ódio que transportam na alma.
Enlameado com o equívoco escopo das vítimas que
empreendem a maldade para fazer valer a própria justiça,
ainda insaciável no desejo de honrar os familiares
barbaramente assassinados, juntou-se de fato à plêiade de
justiceiros das trevas, com os quais já se achava unido,
transformando-se naquilo que realmente pretendeu durante
toda a vida, o “Grande Vingador”, em grave rebeldia contra
as leis divinas do amor. Ovacionado pelas hordas de
espíritos guerreiros, que desde as regiões infernais do
mundo espiritual inferior já o admiravam, foi condecorado
com o ignominioso título de “Senhor dos Canhões”.
Consorciando-se com suas execráveis intenções, se

312
fez presença altaneira nas plagas dantescas, respeitado e
disputado pelos asseclas das sombras, e conselheiro de
guerra dos déspotas dos exércitos umbralinos. Um nome
desconhecido dos homens, mas que se fundamentou como
um fanal das batalhas no mundo dos espíritos, promovido a
General das Trevas, e que se mantém na memória dos
protagonistas da destruição, grafados nos proscênios
sinistros que o tempo teima em não olvidar, eivando de
ódios e dores o escoar dos séculos, até que transformemos
nossa residência planetária em estância de paz e reduto dos
mansos.

Por anos perambulou o infeliz pelos escabrosos caminhos da


guerra, espargindo devastação e lamentos em torno de seus
passos. Continuou no plano espiritual, movendo atroz
perseguição aos detestados ingleses até o dia em que,
extenuado, enfastiou-se de tanta vindita, atordoando-se
com o tédio das maldades sem objetivo. Desejou com
sinceridade evadir-se dos sangrentos campos de lutas
infindas, librando-se dos pungentes dramas que pareciam
não ter fim, quando então se fez permeável aos convites de
Constança, a antiga esposa, que jamais o abandonara, e
mesmo habitando plano superior, tudo fazia para resgatá-lo
dos báratros sombrios. Respondendo aos apelos femininos,
e aflito por reencontrar-se com a amada que o incitava com
promessas de uma vida feliz, o Senhor dos Canhões dignou-
se então a se curvar diante das forças superiores da vida,
suplicando por caminhos outros de paz, por onde palmilhar
sua alma extenuada de dores. A cruz do Cordeiro finalmente
reluzia em sua memória, e um longo passado de batalhas se
findava.

Entregou-se enfim, aos propósitos do Cristo, terminando por


convencer-se de que a intercessão divina é possível, ainda
que para os sequazes da impiedade.

Ao desfazer contudo, os véus do ódio que lhe conspurcavam


o coração, sua consciência foi assaltada por culpa imensa,
um remorso indizível, reconhecendo-se o responsável pelas
atrocidades das guerras que devastavam a casa planetária.
Aflitivo pesar lhe sobrepujava toda a capacidade de acalmar
a alma onde ainda fervilhava a vileza das imensas
crueldades disseminadas e reverberava a dor dos inimigos,
semeada nos campos das paixões insofreáveis das sevícias.
Tinha imensa sede das blandícias de uma prece, ainda
impossível de verter do coração insensibilizado na rudeza
das mais vis atrocidades subumanas de que se habituara a
alimentar. Suas mais santas aspirações espirituais,
suscitadas pela esposa, estavam sepultadas sob o guante
de abjetas adversidades. Um único

313

caminho se lhe estendia aos pés: entregar-se ao sacerdócio,


renegando tudo que a vida podia lhe brindar de prazeres,
dos quais não se julgava mais merecedor.

A paz almejada não tinha preço, e cercear a consciência


denegrida nos limites da renúncia monástica, refinando a
alma empedernida nas sacrossantas libações da Teologia,
era a única forma de aplacar as imensas chagas abertas no
espírito.

Implorou assim à direção da vida, o ingresso nas lides


sacerdotais, e a vida, complacente, respondeu
proporcionando-lhe a experiência requisitada, acomodando-
o nos infinitos ensejos que sobejam na lei, para a redenção
do espírito caído.
Ainda que anelando o retorno à família, Constança,
abdicando-se por amor, e ciente de que não poderia
desfrutar das felicidades celestes sem compartilhá-las com
o companheiro, segui-lo-ia no ministério religioso, a fim de
fazer-lhe companhia à desdita, na esperança de
conquistarem juntos, os paramos luminescentes

que

vislumbrava.

Reencontrar-se-iam

em

reencarnação posterior, a fim de reconstruírem o lar


desfeito quando a paz tornasse a visitar-lhes o coração
depois de reedificada a alma.

Em meados do século dezessete, ambos partiram para nova


aventura terrena, sob o beneplácito dos condutores
espirituais, e sob os olhos misericordiosos do Cristo,
balsamizados por sacrossantas esperanças, e agradecidos à
Providência Divina, que jamais nega oportunidades de
regeneração às ovelhas perdidas.
314
29
capítulo
O PADRE DOS INVENTOS
“Ah! se tu conhecesses, ao menos neste dia, o que te
poderia trazer a paz! Mas agora isto está encoberto aos
teus olhos.”

Jesus – Lucas, 19:42

A incursão nos périplos terrenos para o espírito que estagia


na evolução é a mais abençoada escola da vida,
entesourando-lhe valores eternos para a perfeição, e
sobretudo, proporcionando-lhe os recursos seguros para a
correção de seus grandes erros. Analisando as desventuras
de nosso amigo, agora enriquecidas pelos novos fatos
resgatados do seu pretérito, podíamos sentir a enormidade
da Providência Divina a seu favor, compreendendo que sem
as oportunidades da reencarnação, permitindo-nos corrigir o
passado e refazer o futuro, reconduzindo o feixe de forças
poderosas que nos veste a personalidade para novos rumos,
ainda estaríamos perambulando pelas Trevas, algemados à
ignorância, chafurdados nas maldades e vergastados por
dores infindas.

Renascia Alberto, servindo-se agora do beneplácito do


sacerdócio, a fim de insculpir na consciência denegrida a
rota da redenção, sob o signo do cordeiro. Novamente
acompanhado de Constança, a personagem que agora
encontrava lugar na trama viva a que assistíamos.
Reconhecendo o valor de sua intercessão amorosa, e seu
belo gesto de renúncia em favor do esposo dileto,
completamente tresloucado pelo ódio e extraviado nos
sombrios caminhos da vingança, concitava-nos ao respeito
despertando-nos simpatia e interesse pela sua história.

Heitor, ainda mantendo nosso amigo sob dirigido sono


hipnótico, em complexa operação energética, continuou a
manipular suas reminiscências transreencarnatórias,
fazendo-as verterem novos conteúdos do passado, na
sequência sob nossa análise.

Agora nosso amigo aparecia nas feições de um sacerdote,


de pé em um púlpito, diante de enorme público que, em
atitude

315

de respeitoso silêncio, denotava ansiedade para ouvir-lhe o


sermão do dia.Com o olhar percuciente podia identificar que
as primeiras
fileiras
acomodavam
pessoas
galhardamente

paramentadas, ostentando a riqueza dos ornamentos


régios. As fileiras seguintes guardavam numerosos nababos,
enfeitados de espampanantes vestuários, adornados por
bastas cabeleiras postiças, cacheadas de branco. Não havia
dúvidas: estávamos perante uma fina aristocracia de
potentados da era barroca, esquecida de que o Mestre nos
recomendou a simplicidade para que as portas do Reino de
Deus se nos abram.

Sua aparência nos afigurava as feições de um rapaz de


singular formosura. Os cabelos longos e negros, partidos ao
meio, emprestavam-lhe a mágica mistura da beleza
helênica adornada pela masculinidade dos traços latinos. O
queixo proeminente, denotando força de expressão,
sustentava lábios estreitos e bem traçados, deixando
entrever muito pouco do que fora o rude e barbado Zennon.
Estávamos seguramente, diante de uma bem proporcionada
figura masculina, de porte altivo e belo, aparentando pouco
mais de vinte anos. A larga destra apoiada no parapeito do
púlpito, nos fazia entretanto, recordar as agigantadas mãos
do antigo armeiro. O conjunto contudo, surpreendia-nos
pela metamorfose a que fora submetido o portentoso
Senhor dos Canhões, convertido agora em um preletor
ciceroniano de expressão fina e inteligente, moldado sem
dúvida, no recolhimento dos longos estudos catedráticos.
Notando-nos o assombro, Heitor nos esclarecia:

-- Apresento-lhes o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão,


ontem Zennon e hoje Alberto. Três encarnações de um
mesmo espírito em trânsito na romagem humana. Estamos
em Lisboa, no início do século dezoito. Nos primeiros bancos
da igreja, como os amigos podem notar, identificamos D.
João V, o rei de Portugal, a rainha, a esguia arquiduquesa D.
Maria Ana de Habsburgo e sua corte de nobres. O jovem
sacerdote, recém chegado do Novo Mundo, comparecia pela
primeira vez diante da distinta plateia, o que lhe exigia
perfeito controle da ansiedade. Já trazia contudo, a fama de
ser um noviço de inigualáveis recursos de inteligência e
memória surpreendente, servido por invulgar erudição sacra
e profana. A insegurança diante do primeiro sermão no
Velho Mundo, para onde se dirigiu a fim de completar sua
formação monástica, o excitava, porém era facilmente
suplantada pela enormidade de sua autoconfiança,
afugentando todo e qualquer temor, embora a distinção do
público pudesse apavorar o mais hábil orador. Entretanto,
deixemos que sua mente vagueie com

316

liberdade pelos campos das reminiscências suscitadas,


situando-se onde melhor lhe aprouver.

De imediato, vimo-lo num aposento às escuras, despertado


por golpes pesados na porta cerrada. Denotando assombro
e medo, levantava-se apavorado, permanecendo silente,
até que ouviu de uma voz roufenha, alguém que proferia:

-- Nossa Senhora Virgem Maria nos salve.

Tratava-se sem dúvida, de uma senha, pois imediatamente


ele abriu a porta, identificando um emissário de confiança
do rei, que lhe trazia urgente mensagem:

-- Sua Majestade El Rei, que Deus o guarde, manda avisar a


Vossa Senhoria ser preciso que parta imediatamente, pois o
Cardeal da Cunha já expediu ordem para prendê-lo logo
pela manhã, levando-o sem demora ao tribunal do Santo
Ofício.
Assustado, despedia o discreto mensageiro, despejando
algumas moedas em sua mão. Embora imerso na escuridão
quase completa, apanhou apuradamente como podia,
alguns pertences, preparando-se para imediata retirada. Em
uma pira ateou fogo a vários papéis e livros, saindo em
seguida, ocultando-se sob o véu da noite que já avançava
pela madrugada. E logo o víamos esgueirando-se por
licenciosa e sombria rua de antiga cidade, acompanhado de
outro homem, envolvidos em longas túnicas escuras.

Heitor, compreendendo perfeitamente a cena evocada,


esclarecia-nos:

-- Nosso amigo está em precipitada fuga, pois se acha


ameaçado de morte, diante de graves acusações. Vemos
aqui como o espírito se fixa com maior ênfase nos instantes
em que se vê vitimado pelos outros, tentando evadir-se da
recordação dos próprios erros que lhe justificam a posição.
Retornemos mais uma vez em nossa história, a fim de
compreendermos o que se passa.

Deixemos porém, que ele nos acompanhe com a mente


semidesperta no presente, pois num relance já se deu conta
de todo esse seu pretérito.

Alberto, mostrando estar completamente ciente das cenas


que lhe abundavam na memória, deixava-se arrebatar pela
surpreendente rememoração que não lhe permitia a mínima
dúvida de estar diante de inquestionável realidade vivida, e
não mero sonho. No mundo dos encarnados, tais
recordações arremetidas de passado tão distante,
comparecem como imprecisas visões mentais, sugerindo
tratar-se de meras fantasias, diferentemente do nosso
plano, onde são vivas e reais.

317
O nobre benfeitor, ainda sustentando-lhe a fronte com a
destra, prosseguiu:

-- Nosso irmão nasceu em terras brasileiras, na Vila de


Santos, no século dezessete, albergado em uma família que
trazia a missão de formar grande número de sacerdotes.
Embora seu pendor não partisse de sincera devoção às
coisas santas, deixou-se conduzir pela destinação da
maioria dos irmãos, dos doze filhos do casal, oito foram
encaminhados à ordem sacra. Sem o saber contudo, dava
cumprimento à determinação a que se impusera, desde o
Plano do Espírito.

Logo foi enviado para o seminário de Belém, na Bahia, para


efetuar seus estudos eclesiais, apadrinhado pelo amigo da
família, o padre Alexandre de Gusmão, de quem tomara
emprestado o sobrenome, como era costume na época.
Destacando-se entre os estudantes por demonstrar
inusitado dote de memória, acurada inteligência e grande
habilidade manual, logo chamou para si a atenção dos
clérigos que o dirigiam.

O Seminário de Belém sofria com a falta de água, exigindo


dos párocos e seminaristas penosa caminhada até a
distante fonte, em vertente de difícil acesso. O jovem
Bartolomeu, inspirando-se na ciência de Arquimedes com a
qual se encantara desde cedo, desenvolveu engenhoso
mecanismo hidráulico, em que a própria força da queda
d’água fazia subir parte dela por um encanamento, até a
instituição, ganhando com isso imediata admiração dos
cônegos.

Revelava singular pendor pelas ciências físicas e mecânicas,


muito mais do que pelos estudos teológicos, mostrando de
fato um espírito ainda pouco amadurecido para a vocação
monástica. Favorecido entretanto, pelo seu protetor, tendo
em vista a exemplar dedicação aos estudos e os prodígios
de memória, recebeu permissão para completar sua
formação em Lisboa, coadunando o forte desejo que lhe
movia os interesses.

Na longa viagem rumo ao Velho Mundo, admirando-se do


improfícuo esforço dos marujos em recolher a água que
permanentemente alagava os porões do navio, imaginou de
imediato um eficaz instrumento para aspirá-la
automaticamente. E

logo desenhou com esmero o seu projeto, intitulado “Modo


de esgotar sem gente as naus que fazem água”, utilizando-
se de um parafuso de Arquimedes que, girando pelo
movimento da própria embarcação, evacuava a água
liberando os pobres homens de tão árdua tarefa. Em
Portugal tratou de pedir privilégios para o invento,
conseguindo do rei o subsídio para suas experiências,

318

contudo não despertou interesse naqueles que detinham


condições de executá-lo.

Embora seus sermões fossem famosos e muito apreciados


na época, vivia muito mais interessado nos estudos eruditos
e em suas experiências, do que nas práticas religiosas e
jamais deteve sua carreira de invencionices. Rememorando
precocemente o lídimo gênio inventivo do Senhor dos
Canhões, que ainda brandia infrene na intimidade
consciencial, dava vazão à voz do espírito que lhe pedia
realizar benefícios em prol do progresso humano com o qual
se sentia compromissado. E encontrou na ciência de
Arquimedes as inspirações para suas criações. Criou uma
embarcação dotada de rodas de pás movidas por pedais,
através de eficiente mecanismo de polias e roldanas, coisa
que somente mais tarde seria novamente reinventada.
Contudo, muitas de suas invenções eram realmente
estapafúrdias, típicas dos excêntricos, sem olvidarmos que
é preciso sair do comum para fazer brotar os laivos da
genialidade no processo de maturação do pensamento. Com
um estranho conjunto de lentes e espelhos, dizia assar
carne com a luz solar, aparelho sem utilidade e muito
ridicularizado por aqueles que não podiam compreender o
alcance das suas criações. Trabalhou por muito tempo na
tentativa de fabricar carvão mineral artificial, tentando
resolver o problema de sua carência, levando ao forno
mistura de barro com capim, projeto que jamais deu certo.
Intentando desenvolver medicamentos para os males
humanos, misturava ervas ao acaso, em completo
desconhecimento de suas ações, sem conseguir resultado
algum. Devido a este prolífero e inexplicável empenho em
criar utilidades, algumas exóticas e improfícuas, recebeu
apropriadamente do povo o título de “Padre dos Inventos”.

Fascinado sobretudo, diante das propriedades da pólvora,


despendeu largo tempo procurando afanosamente descobrir
algum uso benéfico para ela. Nada conseguiu com o
explosivo, porém desenvolveu com sua habilidade alguns
tipos de fogos de artifício, ainda em uso nos dias de hoje, e
que lhe valeram outras alcunhas, como o “Cônego da ordem
dos artilheiros” e “Pároco dos foguetórios”, dentre as muitas
que lhe outorgaram.

Esses ingentes esforços nos incitam a admirar a força de


expressão de um espírito investido em suplantar o passado
culposo a qualquer custo, revelando-nos que os remorsos
não se calam facilmente, retidos nos recessos sempre ativos
do inconsciente, embora contidos pelo esquecimento
temporário.

319

Após breve e oportuno silêncio, permitindo-nos assimilar o


interessante desenovelar das aventuras de Alberto,
continuou o benfeitor:

-- Afável de gênio, douto em ciências, de imediato provocou


grande impressão no rei, ao ouvir seus belos sermões. E foi
logo convidado a frequentar o palácio real, convocado para
as homilias particulares e serviços sacerdotais da corte. Era
o início de uma amizade que se estenderia por alguns anos,
mas que lhe atraiu enormes dificuldades, pois despertava
de imediato grande inveja nos clérigos que ambicionavam
os privilégios régios e a abastança dos palácios
monárquicos.

Passou a frequentar a Universidade de Coimbra e doutorou-


se em Cânones, fazendo-se logo amigo das maiores
notoriedades intelectuais da monarquia. Por ordem do rei,
que lhe passou a devotar grande estima e admiração, foi
indicado para a Academia Real de História, e nomeado
Fidalgo Capelão da Casa Real, consolidando uma posição
invejável, praticamente impossível de ser alcançada por um
desconhecido filho de plebeus, oriundo de somenos colônia
de Portugal.

Gozando de todas as prerrogativas do soberano, foi


empregado no Ministério de Estrangeiros, encarregado de
tarefa da maior importância. Era comum nas cortes
europeias de então, a violação das correspondências
diplomáticas dirigidas aos seus representantes, a fim de que
os governos pudessem se ajuizar das reais intenções dos
outros Estados. O recurso para se evitar isso era o envio de
cartas cifradas, e para entendê-las era necessária grande
perícia. Fiando-se na inteligência de Gusmão, D. João V

confiou-lhe o espinhoso mister. E tão bem se saiu nele que


não havia código que não decifrasse, prevenindo a Coroa
portuguesa dos negócios com as outras nações.

O monarca lhe abriu as portas do palácio real, onde


encontrava sempre a mesa posta e passou a viver em
insolente fausto, andando em carruagens luxuosas, sendo
bem visto e cortejado também pelos principais da corte.
Não tardou desta forma, a despertar imediata atenção dos
potentados da Igreja, que não podiam admitir que um mero
e jovem pároco, de origem modesta, pudesse sobrepujá-los
com tamanha rapidez, subestimando o natural carreiro de
ascensão clerical. Estava armado o cenário para infundadas
perseguições, validadas pelos mais abjetos sentimentos de
inveja e despeito. E foi exatamente esta animosidade que
lhe obstaculizou o profícuo progresso dos valores natos do
intelecto, somados ao desejo de realizar algum benefício em
prol da humanidade.

320

Embevecidos, deixávamo-nos embalar pelo enredo, sem


animarmo-nos a interromper o benfeitor com as
considerações que nos assaltavam. Mostrando enorme
conhecimento dos fatos, prosseguiu o prestimoso amigo:

-- De suas estranhas invenções contudo, a mais famosa foi o


aeróstato de ar quente, como todos sabem. Conhecendo o
empuxo arquimediano, compreendeu que os vapores que
escapavam de uma chama eram mais rarefeitos do que o
ar, fazendo elevar na atmosfera objetos leves atirados sobre
ele.

Imaginou então um modo de contê-los em um recipiente


fechado a fim de que pudesse por si só ascender no ar.
Armou uma pira de fogo sob um balão de papel encerado e
o fez flutuar milagrosamente, concluindo acertadamente,
que bastaria aumentar o tamanho do artefato para que
conseguisse elevar a si próprio e navegar pelos ares.
Surpreendido diante do que poderia ser a mais espetacular
máquina do mundo, e depois de assegurar o seu sucesso
nas experiências preliminares, tratou de pedir privilégios à
Coroa pelo aparelho que iria revolucionar a vida no planeta.
Prevendo o futuro, dizia que tal instrumento de voar poderia
transportar trinta ou mais pessoas, avançar por mais de
duzentas léguas e levar recursos para os exércitos,
imaginando de início aplicação bélica para o seu invento.

E com efeito, na presença do monarca e sua corte, no pátio


da Casa da Índia em 8 de agosto de 1709, obteve êxito com
uma miniatura do balão que subindo, terminou por
incendiar as cortinas do salão, causando entretanto, enorme
impressão entre os presentes. D. João, entusiasmado com o
extraordinário aparelho, interessou-se em financiá-lo.
Dizendo que em breve voaria, Gusmão tornou-se verdadeira
celebridade na época, recebendo o título que de fato o
caracterizou na história dos homens: o “Padre Voador”.
Embora muitos historiadores afirmem que nosso amigo
tenha voado, não se trata de uma verdade. Ele não chegou
a se elevar como queria em seu aeróstato, mérito que
realmente coube aos irmãos Montgolfier, na França, cerca
de oitenta anos mais tarde, embora tal proeza tenha
erroneamente lhes imputado a primazia do invento. Um
triste motivo, meus amigos, induziria o fim de tão belo
sonho e o fracasso de seu arrojado projeto, e gostaria de
revelar-lhes.
Parecendo assediado por amargas lembranças que não
puderam sucumbir sob o peso dos séculos, Heitor,
suspirando mais fundo, continuou agora com forte tono de
emoção embargando-lhe as palavras:

321

-- Nesta época ainda ecoavam as grandes perseguições da


Inquisição, meus queridos, e dramas horríveis se
desenrolavam sob o guante da equivocada Santa Sé.
Portugal neste então contava com um rígido clérigo, leal
defensor dos interesses da Madre Igreja, o Cardeal da
Cunha. Homem implacável e sem piedade, com punho firme
e coração enrijecido, perseguiu a muitos e muitos já havia
levado à fogueira, em nome de infundados crimes contra a
fé católica.

O Cardeal da Cunha não podia tolerar tanta insolência por


parte de um mísero padreco, afrontando as regras clericais
às custas de um imerecido valimento real. Embora
respeitasse o poder político, a Igreja lhe estava acima e o
hierarquismo clerical não podia se sujeitar aos seus
caprichos. E passou a procurar artifícios que justificassem
roubar os prestígios do petulante jovem, e recolocá-lo em
seu devido lugar.

Ora, o Cardeal trazia títulos que o sobrepunham ao Voador,


pois era o Defensor Geral do Conselho do Rei e do Real
Despacho, e primeiro Capelão do Estado. E sobretudo, era o
Inquisidor Mor do Tribunal do Santo Ofício em Portugal,
detendo em mãos ilimitado poder, temido e respeitado
pelos meios políticos e religiosos de então. Diante das
estroinices do ousado estrangeiro que descabidamente
teimava em voar, o Cardeal, reunindo um concílio,
convocou-o para esclarecimentos e retaliações. Ele e a junta
de eminentes prelados estavam convencidos de que não
convinha a um representante da Santa Sé dedicar-se a
traquinagens tais, divertindo-se com pólvoras e estranhos
objetos voadores. Suas tropelias e desazadas ideias não se
coadunavam com os interesses da Madre Igreja, cuja
imagem iria macular, denegrindo-a junto ao povo. Julgando-
as inadequadas a um religioso que devia sobretudo servir a
Deus e cuidas das coisas santas, esqueciam-se de que
também se serve ao Altíssimo, auxiliando-se o progresso
dos homens e, enceguecidos pela inveja e ambições
insatisfeitas, não puderam compreender o alcance científico
da descoberta. Com a autoridade que o caracterizava e que
ninguém ousava desafiar, o Defensor Mor proibiu-o
terminantemente de continuar tais exóticas experiências,
ameaçando bani-lo da congregação fazendo-o tornar às
suas humildes origens. E sobretudo, advertiam-no de que
tais diabruras bem podiam ser interpretadas como
bruxarias, suficientes para sujeitá-lo a um grave processo
inquisitorial cujas consequências não poderiam ser
previstas. Diante de tamanha ameaça, não coube ao Voador
outra alternativa senão silenciar-se.

322

O rei contudo, achava-se entusiasmado com as suas


experiências e disposto a financiá-las, porém o Cardeal
tratou de convencê-lo da inutilidade de tal empreitada, que
somente faria cair no ridículo a nobre corte portuguesa.

Como o fato havia despertado enorme interesse na


comunidade local e de outros países, de onde pediam
notícias dos boatos que lhe chegavam, restava calar as
repercussões do inusitado feito. Decidiu então o
imprevidente Cardeal, em nome dos interesses da Madre
Igreja, que uma falsa e absurda estampa seria mostrada
para que todos se dessem conta da impropriedade de tal
contingência, encerrando definitivamente o episódio. Dessa
forma idealizaram o documento iconográfico estrambótico e
irreal, que ficou conhecido como a Passarola. Uma versão
inverossímil e vergonhosa do extraordinário invento,
divulgado rapidamente na Europa, como se fora a máquina
de voar do injustiçado padre, anulando seus direitos perante
a opinião dos pósteros. Qualquer um que a examinasse com
atenção veria que não podia ser levada a sério, ensejando
ridículas impressões sobre o infausto inventor. Alguns
historiadores julgaram ter sido isso obra do próprio
Bartolomeu que, com o fito de proteger os seus direitos
autorais, tratou de depredar sua originalidade, porém não
foi exatamente isso que ocorreu. Na realidade ele foi
coagido a aceitar o embuste e a ocultar a verdade.

Portanto não foi a queda de sue balão e o incêndio das


cortinas do salão do paço que o levaram a desistir de seus
acertados intentos. Tampouco era o temor de ser
considerado feiticeiro, mas de fato foi a inveja dos
potentados da Igreja, movidos pelo implacável Cardeal da
Cunha, que o inibira de prosseguir na genial carreira de
inventos. Desgostoso, não teve outra alternativa do que
encerrar o projeto. Não fosse isso, teria de fato se tornado o
primeiro argonauta da humanidade. Como sabemos, à
maneira de outros graves episódios da história, mais uma
vez o progresso humano teve seu curso obstaculizado pelos
equivocados interesses da fé.

Apesar de sua primeira vitória, o Cardeal não se dava por


satisfeito, e movido unicamente pelo despeito, buscava
meios que não se valessem de suas inofensivas estultices,
de eliminar o insolente sacerdote, dado a ridículo talhe de
inventor.
Alberto, assumindo a personalidade de Bartolomeu e
situando-se
com
clareza
nas
transatas

reminiscências,

perfeitamente ciente do enredo que Heitor perfilava,


retorquiu:

323

-- Acusava-me o déspota injustamente, de apóstata, leitor


do Alcorão e que eu era adepto do Molinismo ( Doutrina
criada por Luís de Molina, que pretendia conciliar a
liberdade humana com a graça divina, combatida na época
pelas principais ordens do Clero dominante), pregando-o
com o fito de atrair a concupiscência feminina, procurando
com isto infundados motivos para me levar ao Tribunal...

-- É verdade, amigos. Alberto incitado pelas indignidades


que o imolaram no passado, recorda-se com clareza da
perfídia que lhe movia o procaz Cardeal – considerou Heitor.
– Contudo, logo o inclemente inquisidor descobriu fatos
consistentes que justificavam processá-lo. Foi visto
aproximando-se dos judeus que haviam sido degredados do
Brasil, expulsos pelo bispo do Rio de Janeiro e que estavam
em Lisboa sob rigorosa vigilância, aguardando um veredicto.
Sua atitude amistosa para com estes semitas era o bastante
para acusá-lo de simpatia pelo judaísmo e de tolerância
com as práticas mosaicas, graves transgressões para um
sacerdote da época.

-- Não se tratava de verdade e tudo não passava de ardilosa


trama objetivando unicamente romper a proteção e a
amizade que o soberano me dedicava – rememorou Alberto
constrito. Porém tive que fugir, pois temia que sequer o rei
pudesse impedir minha condenação.

-- Ninguém era louco o bastante para enfrentar a autoridade


do Cardeal, no terrível tribunal da Inquisição, quando então,
investido do poder temporal, sobrepujava o domínio régio –

completava Heitor. -- Capitulando diante da força do


poderoso inimigo, refugiou-se Bartolomeu na Holanda, em
1713, a despeito da proteção real e do caráter infundado
das incriminações que lhe imputavam.

Expressando condolência nas palavras e convidando-nos à


análise das ações e reações que movem o espírito imortal
no campo da evolução, reverberando motivações para dores
e reajustes na escola da vida, prosseguiu Heitor:

-- Imaginamos o grande desgosto do jovem brasileiro,


tentando sobressair-se no Clero e na vida social de Portugal,
tendo que viver como adeleiro em outros países. Na
Holanda buscou negociar seu instrumento de assar carne ao
sol e seu aeróstato de ar quente, interessado em auferir
lucros com eles, sem conseguir convencer os arrogantes
protestantes de suas sinceras intenções e da praticidade de
seu balão, influenciados que se achavam pela esdrúxula e
mentirosa estampa, anteriormente divulgada. Em Paris
vendia suas imprudentes misturas de ervas curativas, que
não logravam benefício algum para seus usuários. Sempre
atento, o implacável Cardeal seguia-o em outros países,
requisitando

324

notícias aos cônegos locais, procurando saber se havia se


casado ou circuncidado, em busca de fatos que o
incriminassem de modo definitivo.

Admirados,

seguíamos
o
impressionante

relato,

perguntando-nos se porventura Heitor não faria parte


daqueles cenários, em decorrência da precisão de detalhes
com que os entretecia, totalizando-os de uma indubitável
veracidade. Alberto, o protagonista, silenciava-se, deixando
que as emoções lhe aflorassem em forma de lágrimas
ardentes. Os olhos vagantes denotavam que acompanhava
o enredo, vivenciando-o nas paisagens imorredouras da
alma, exumando inenarráveis sensações. Sem denotar
fastio pelo longo enredo, continuou Heitor, dedilhando as
páginas do livro da vida:

-- D. João V, inconformado, passou a maquinar ardilosas


negociações para trazer de volta o estimado sacerdote, cuja
companhia não podia dispensar. E não tardou para obter
êxito, subornando poderosos chefes da Igreja, capazes de
se imporem ao Defensor Mor, envenenando-o de profuso
ódio por ver sua autoridade sobrepujada por interesses
superiores. Afinal, pensava o monarca, todos já haviam
olvidado os malogros do Voador, cujas peraltices a maioria
julgava inofensivas.

-- Devo confessar, meus amigos, havia outros motivos para


que Sua Alteza me mantivesse em sua presença... –
declarou Alberto constrangido, aguilhoado pelas faltas do
passado.

-- De fato, você já se deu conta de tudo. Relate-os você


mesmo aos nossos amigos.

-- Infelizmente não posso negar a verdade. D. João não


podia dispensar-me, por ser eu o comparsa de suas
aventuras libidinosas. Sendo seu confessor particular e
ouvindo suas insistentes revelações de infidelidades,
reconheci sua insopitável volúpia sexual, terminando por
envolver-me com suas libertinagens. Queria angariar a todo
custo o seu apreço irrestrito e fazer valer a sua proteção, a
qual julgava necessária às minhas ambições e vaidades.
Desta forma barganhava com ele estima por prazeres da
sexualidade desenfreada, servindo-lhe às ocultas, amantes
arrebanhadas dos conventos. Tratava de convencê-las das
vantagens do conúbio real, recompensando-as com
prestígios e valias ilícitas.

-- Eram fatos graves e estes realmente justificavam sua


condenação à fogueira – completou Heitor, com o único
propósito de nos enriquecer os ensinamentos. – O impudico
monarca já tinha fama de obsceno e libertino, mas o clero
não sabia que um de seus membros estava mancomunado
com suas

325

abjetas orgias. Isso explicava por que Bartolomeu gozava de


tanta intimidade com o rei e este lhe conferia tantos e
injustificados benefícios. Deu-lhe foro de fidalgo e o
mantinha às expensas do palácio real, chegando mesmo a
conceder-lhe os incabíveis rendimentos vitalícios das minas
de Vila Rica, extremamente vultosos na época.

-- Reconheço que não tive a coragem de cercear-me ao


celibato, e diante das facilidades que se me apresentavam,
capitulei ainda aos prazeres do sexo desenfreado.

-- As religiosas, por serem mulheres proibidas, exerciam


sobre o devasso monarca especial atenção – explicava
Heitor. -
Servindo-se das portas sempre abertas no palácio, e
simulando sermões particulares ou longas penitências,
Bartolomeu conduzia freiras e noviças para participarem na
verdade, de nefandos banquetes carnais. E tamanho
opróbrio não poderia andar às ocultas por muito tempo, pois
os serviçais do palácio logo se deram conta do fato,
espalhando boataria que freqüentava os mexericos da
comunidade, chegando aos ouvidos das autoridades
eclesiais. O recato das esposas do Senhor não devia ser
desrespeitado e tal afronta não podia ser tolerada, numa
época em que se apregoava tão falso moralismo. Como
entretanto, o caso demandava os interesses de Sua
Majestade, era preciso agir com cautela para não se colocar
a própria cabeça em risco, pois sabia-se que outros
potentados da Igreja poderiam interferir em defesa do
monarca. O Cardeal da Cunha, interessado em desvendar a
verdade de tais bulícios e, sabendo que o móvel de suas
desavenças, o padre Bartolomeu, poderia de fato estar
implicado nas graves incriminações, expediu ordens para
que os cenóbios femininos fossem rigorosamente vigiados.
Ele contava com as artimanhas de um leal comparsa, o
Desembargador João Marques, fiel executor de seus
caprichos, cumprindo suas ordens com o mesmo implacável
rigor, ainda que muitas vezes raiassem ao absurdo. O
Desembargador terminou por descobrir que realmente o
Voador, com frequência deixava seus aposentos altas horas,
com a desculpa de fazer observações astronômicas, para
ser visto saltando as grades do Convento de Santana.

Inopinadamente, Alberto, tomado de assalto por súbita


lembrança, como se surpreendido por ter olvidado durante
tanto tempo um nome que jamais poderia ter esquecido, e
cingido por viva emoção, exclamou:

-- Irmã Paula! Onde está aquela que guarda minha alma no


altar da mais pura afeição?
326

Admirávamos tal vigor de sensações, embriagando-o de


recônditos sentimentos, enquanto se lhe estampava no
painel mental a imagem de uma delicada e alva face
feminina, emoldurada pelos alentos de um toucado freiral,
expressando afável encantamento.

-- Apresento-lhes a figura da Madre Paula de Souza, meus


amigos – falou Heitor. – Vocês devem reconhecê-la, pois aí
vemos Constança de quem não poderíamos nos esquecer.
Naturalmente que se reencontraram, e como haviam
programado na erraticidade, ela também se vestiu dos
hábitos freiráticos a fim de apoiar o amado esposo em sua
romagem de renovação.

Entretanto não puderam vencer os rogos da paixão que o


alimentava desde outros séculos, e se apressaram à trocas
da afetividade sexual, rompendo com seus votos de
castidade. E as frias e solitárias paredes do Convento de
Santana passaram a testemunhar suas ilícitas conjuras de
amor.

Como três das irmãs de sua amada eram também freiras,


Bartolomeu tratou de aproximá-las de D. João a fim de
facilitar os seus encontros. Felizmente Sua Majestade se
apaixonara de imediato por uma delas, a madre Antônia de
Souza, do Convento de Odivelas, selando-se o conúbio de
infandos prazeres carnais, regrado pelo interesse às
cobiçadas, porém incautas, vantagens régias.

-- Infeliz de mim, devia ter mantido fidelidade à minha


querida, mas os insofreáveis desejos sexuais me
dominavam... –
confessava Alberto, entre o pranto que se lhe misturava às
palavras.

-- Sim, meu amigo, faz-nos bem ser fiéis à própria


consciência. Você não somente mantinha encontros
amorosos nas penumbras das abadias, mas a lascívia
desregrada, exercida às ocultas nos luxuriosos aposentos
reais, assenhoreou-se de seus mais nobres ideais, e o fez
prisioneiro dos vícios do sexo, dissociando-o da salutar
vivência conventual que deveria nutrir-lhe a tão almejada
reforma espiritual. Adotando procedimentos indignos com
seu estado sacerdotal, maculava a alma de desregramentos
libidinosos, renovando as culposas lesões e semeando
novas reações coercivas. Motivado pelos insanos desejos
carnais, envolvia-se não somente com noviças e
dominicanas, mas com esposas probas, que diante de seus
assédios sexuais irresistíveis, desfaziam os votos de
lealdade matrimonial, cedendo aos seus apetites
insopitáveis, acobertados pelo manto sacerdotal.

327

E como o amigo veio se inteirar somente depois de sua


morte, mediante a prática do sexo irresponsável, terminou
por engravidar uma jovem desposada, pouco antes de seu
trágico falecimento. O marido traído, mais tarde deu-se
conta do triste incidente, terminando por desfechar grave
delito, numa época em que os escândalos deste tipo se
resolviam da forma mais inadequada possível.

Estes foram os novos dramas semeados no campo da vida


pelo nosso imprevidente Alberto, distante ainda da ciência
do espírito, não obstante as sacrossantas promessas de
renovação proferidas ao partir para a jornada terrena.
Diante de tanto abuso e tamanha irresponsabilidade,
aviltando as potências sagradas da alma e sem conhecer os
seus graves riscos, evidente que as forças da vida reagiram
com vigor na tentativa de coibir seus desmandos,
resguardando-o de males ainda maiores na semeadura dos
destinos futuros.

Um fato logo iria deter sua carreira de obscenidades e


irrisórios prazeres, para sorte do Cardeal que o espreitava,
aguardando o melhor momento para desferir-lhe golpe
certeiro.

-- Recordo-me perfeitamente – completava Alberto,


fortemente emocionado. – Sua Majestade, sentindo-se
vivamente atraído pelas criadas mouras que trabalhavam
no Convento de Odivelas, recomendou0me que lhas
trouxesse a fim de servir-lhe aos ocultos desejos. Como não
era conveniente levá-las às escondidas ao Palácio Real,
achei por bem utilizar a casa da Bica... Não poderia
imaginar que teria tão drásticas consequências...

-- Nosso amigo havia alugado uma pequena estância na


Bica do Sapato, onde às expensas da Coroa, fingia continuar
as experiências com seu malogrado carvão de lama.
Empreitada que despertava as piores impressões, pois na
verdade, como muitos desconfiavam, ele fazia do lugar um
infame latíbulo de fornicações. A visita de Sua Alteza ao
distante sítio, embora feita na maior discrição possível, com
a desculpa de andar vistoriando os progressos do inventor,
fez levantar suspeitas nas irmãs Souza, pois por ordem real,
as serviçais foram convocadas para tarefas domésticas no
local. Perspicazes, elas já haviam notado que a volúpia
manava dos olhos do rei, admirando as atraentes trigueiras.
E foram até lá para se inteirarem do que ocorria. Estava
armado o escândalo que não pôde se conter nos limites dos
conventos. Ultrapassando suas grades, foi ter aos ouvidos
do Desembargador João Marques, e daí ao austero Cardeal
da Cunha.

328

Enciumadas e extremamente ofendidas por se verem


suplantadas pelas indignas criadas, e mesmo temendo as
graves consequências do fato, as irmãs Souza terminaram
por confessar a violação dos votos de castidade, delatando
ao Cardeal toda a artimanha do padre, e sua parceria de
concupiscência com o lúbrico monarca, mesmo porque o
inquisidor possuía a arte de fazer falar qualquer um que
quisesse.

A fim de resguardar a imagem e os interesses da Santa


Igreja, o caso deveria ser resolvido no âmbito da própria
congregação, ocultando-se do povo os verdadeiros motivos
do processo. O envolvimento de Sua Majestade não poderia
tampouco ser ressaltado, pois o choque de interesses entre
o Estado e a Igreja não era de modo algum conveniente à
Santa Sé. Ardilosamente, o Defensor Mor engendrou outras
razões para encobertar a verdade: o Voador iria à fogueira
sob acusação de práticas demoníacas e embruxamento do
rei, induzindo-o à degradação dos valores morais com o fito
de lhe explorar valimento indevido, e luxuriantes privilégios.
Para as transgressões de Sua Alteza não havia mandato
nem magistrado para o juízo, e este seria apenas informado
do caso, recorrendo-se à autoridade papal se porventura ele
viesse a se opor às decisões. Como D.

João se encontrasse bastante envergonhado do ocorrido


diante do imenso escândalo das irmãs Souza, deixou-se
silenciar, tratando apenas de avisar o fiel comparsa sem
demora.
No dia seguinte todos os envolvidos foram levados ao
cárcere do Santo Ofício, exceto o transviado padre. Altas
horas da noite anterior, um mensageiro de confiança do rei
batia às portas de seus aposentos, como os amigos
certamente se recordam. Eis enfim, o que motivou a sua
precipitada fuga, na companhia de seu irmão mais novo, o
frade carmelita João Álvares, pois quando o réu escapava,
era uma prerrogativa lícita da Inquisição, aplicar a mesma
pena ao seu parente mais próximo. Os soldados
encontraram numa pira de cinzas os restos de todos os seus
papéis queimados, desenhos e projetos valiosos que
poderiam ter servido ao progresso humano, convencendo a
História da genialidade de seus inventos. Ali soçobraram os
ricos esboços, muito bem feitos, de seu curioso balão
voador, tal qual teve que ser reinventado mais tarde, na
França. E ali um dos homens de confiança do Cardeal,
colocara sorrateiramente, seguindo suas ordens, um Alcorão
aberto e anotado, a fim de servir como mais uma prova de
heresia contra o malfadado pároco.

329

Nosso Ícaro, alçado a tamanha altura, graças ao fulgor de


onímodo talento, infelizmente desacompanhado da
elevação moral, sofria a queda do seu pretensioso voo pela
primeira vez, pelas tramas do sexo e em decorrência da
inveja daqueles que não toleraram seus privilégios e sua
pujança na sociedade de então.

Alberto, estampando na face a vergonha, chorava como


uma criança arrependida, novamente surpreendido por
outros graves delitos do passado. A vexação se lhe
sobrepunha à indignação, pois certamente, sua dor era
acrescida do remorso por haver imposto tão grandes
dissabores à sua fiel companheira, que lhe acompanhara na
renúncia sacerdotal apenas para auxiliá-lo na reforma dos
aguerridos instintos.

-- Mais uma vez o apóstata se lhe escapara das férreas


mãos

– prosseguiu Heitor, -- porém, o Cardeal, enceguecido pelo


ódio e incontido desejo de vingança, mantinha a irmã Paula
na clausura, pois temia que ela fugisse para se encontrar
com o amado. À

madre Antônia impôs pesadas penitências em três anos de


clausura, e as mouras foram expedidas para serviços em
outras comarcas. Novamente contudo, a sorte parecia
bafejar suas errôneas intenções. Decorridos dois meses, o
fugitivo enviou sentida missiva à sua amada, através de
mensageiros de confiança do rei. O intrépido inquisidor
porém, tinha meios de interceptá-la, inteirando-se dos fatos.

-- Recordo-me – explicava Alberto, admirado de suas nítidas


e amargas lembranças. – Eu lhe reafirmava meu amor e lhe
rogava perdão, pedindo-lhe que aguardasse com paciência
até que os eventos se acalmassem e D. João pudesse
interditar em nosso favor, afastando o indesejado Cardeal
que tão duramente nos castigava.

-- Para grande irritação do Defensor, o infeliz entretanto,


não deixava traços de seu paradeiro e a carta lhe chegava
por uma serva, a mando do palácio real, que seguramente
desconhecia a sua direção. Seria inútil impor a sua arte de
torturas à inocente criatura – continuou Heitor, ressumando
pesar nos olhos. – Então o incansável perseguidor,
utilizando-se de astuciosa insídia, propôs à sóror
encarcerada que escrevesse ao seu amado, dizendo que o
Santo Ofício iria libertá-la dentro de poucos dias e partiria
imediatamente ao seu encontro, acompanhando-o na fuga.
Ela iria de fato, contudo, deveria se comprometer a colocar
em sua comida, um pó que o faria dormir, a fim de que
fosse facilmente preso pelos seus soldados. Feito isso,
ambos seriam julgados e banidos da congregação, mas
somente lhes seria imposta a pena

330

do degredo em terras brasileiras e não a fogueira. Distantes


dos tumultos que ambos semearam, esta seria a única
forma de encontrarem a almejada felicidade. Empenhando
sua palavra, em nome do Sagrado, comprometia-se a
cumprir a promessa, custasse o que fosse. A pobre irmã,
temendo a masmorra ou coisa pior, e motivada ainda pela
intensa mágoa que lhe constrangia a alma ferida, aceitou a
proposta, tratando de enviar o mentiroso alvitre.

Sabia ela ainda que Sua Alteza caíra enfermo de grave


melancolia, recolhendo-se aos seus aposentos, de onde não
desejava mais sair. Certamente, que por se ver cerceado
nas libertinagens, uma vez que lhe tomaram o ministro de
prazeres fáceis e, humilhado, teve a sua autoridade
sobrepujada pelos interesses do Santo Ofício, sem que
pudesse contestar. Temendo que o monarca não se
recuperasse a tempo de salvá-los, não lhe cabia de fato
outra alternativa diante da gravidade da situação.

E guardava ainda a intenção de que seu petulante amante


fosse de alguma forma castigado pela infidelidade, pois
extremamente magoada, não se sentia merecedora de
tamanho desgosto diante do dedicado amor que lhe votava.

Dentro em breve, fria e silente madrugada assistia à partida


de uma diligência levando a freira, agasalhada de
esperanças, conduzida secretamente pelos serviçais do
Cardeal e acompanhada à distância por alguns soldados do
Santo Ofício.

Seguiam pela estrada do Arronches até Aviz, onde em um


albergue, nas margens do rio Caia, aguardava-a o acossado
padre. Obedecendo às rigorosas ordens do Cardeal, colocou
ela um estranho e esbranquiçado pó na sopa do amado.
Antes do alvorecer do dia seguinte, deixava-o, misturando-
se ao manto da noite, prestes a se dissipar na aurora
outoniça, aproveitando-se do pesado sono do companheiro.
Os soldados tratariam de pegá-lo pouco depois, e mais
tarde ela lhe explicaria toda a artimanha que objetivava
libertá-los, embora lutasse ainda por dissimular o viço do
rancor que lhe conspurcava o coração.

Para grande constrangimento da irmã, o desfecho dos


planos não era bem o que lhe fora prometido, e em breve
descobriu que caíra em grave engodo. O veneno que
administrara ao amado, era intencionalmente, uma dose
letal de arsênico, ao qual ele não sobreviveria. Mal teve
tempo o infeliz de chegar aos portões de Toledo conduzido
pelo irmão, em grave estado, onde veio a encontrar a sua
trágica morte. Estava deflagrado o funesto conluio, e sem o
saber, havia assassinado aquele a quem tanto amava. O
Inquisidor por fim, estampava na

331

face o sorriso dos vencedores que se deleitam com a


destruição daqueles que odeiam. A injustiçada madre,
recolhida à clausura, foi condenada à prisão perpétua.
Inconformada, remoída pelo ódio, condoída pelo desconsolo
e pelas dores do remorso, terminou por enlouquecer na
masmorra.

O desditoso Bartolomeu, desencarnado, compreendeu pelos


sentimentos o que se lhe passou, reconheceu seu
verdadeiro assassino, e se uniu àquela que lhe atraía pela
sinceridade do afeto, buscando refúgio em seu coração,
única porta de alívio que encontrou no Plano do Espírito.
Após breves anos a desventurada sóror veio também a
falecer, motivada por tísica galopante (Tuberculose
pulmonar de desenlace rápido), em meio a pungente
quadro de loucura e jungida ao amado que lhe abraçava à
alma.

De súbito, Alberto, aprofundando-se nas tristes


reminiscências, proferiu, em aflitiva inflexão:

-- Paula! Paula! Onde estás, minha querida?

Com o semblante contrito, porém transpirando


tranquilidade, Heitor aduziu:

-- Acalme-se amigo, retorne ao presente e não evoque o


nome daquela cuja presença você ainda não detém
condições de desfrutar.

Deixe que as lembranças lhe sirvam de proveitosa lição


para o espírito imortal, porém não faça delas motivação
para destruir-lhe o bem estar.

Certamente que o destino cuidará de lhe cingir ao coração a


amada esposa de outras eras, porém não é ainda o
momento propício. Saiba esperar com paciência e crie
méritos para que esse instante não tarde a lhe bafejar a
alma, sedenta de afetos.
Alberto contudo, estampando profundo espanto na face,
como se terrível imagem lhe saltasse de inopino dos
recessos do espírito, e denotando aparente e repentina
perda da razão, proferiu dirigindo-se a Heitor:

-- Crápula, o que fizeste de minha amada? Facínora! Minha


querida haverá de habitar o céu, se a mataste, mas nós
iremos juntos para o fogo do inferno!

-- Não se desespere – apressou-se Heitor a acalmá-lo. – Tudo


isso já passou e não é mais realidade. Guarde a certeza de
que somos seus companheiros leais e estamos aqui para
ajudá-lo. Rejeite, em nome do Altíssimo, o ignominioso
manto do ódio que lhe abate, e perdoe o inimigo de longas
eras, hoje transformado e arrependido... Não malsine mais
nossos amargos destinos. Transmutemos o rancor em amor
verdadeiro...

Assustado, porém, agarrou-se às minhas mãos, e


contorcendo-se em desespero, o azoinado amigo, diante de
inusitada crise alucinatória emersa do passado, suplicou-me
em prantos:

-- O assassino me ameaça e irá matar-me


também...Socorre-me, por Deus...

-- Nosso companheiro, com justa razão, sente-se intimidado


nesta hora de recordações amargas – continuou Heitor,
suspirando

332

profundamente. – Tratemos de tirá-lo do transe doloroso,


antes que desorganize ainda mais o seu mundo emocional.
Enquanto manipulávamos as energias psicomagnéticas, a
fim de deter suas vivências acerbas, fazendo-o adormecer,
o insigne benfeitor, deixando que pesadas lágrimas lhe
vertessem dos olhos, com o semblante submisso e
consternado, enfim revelou-nos:

-- Irmãos, sinto decepcioná-los, mas é forçoso que vocês


saibam.

Sou eu a quem ele teme neste momento, pois vocês estão


diante do antigo Inquisidor Mor do Santo Ofício de Portugal,
o Cardeal Nuno da Cunha...

Perante a inesperada revelação, admirávamos a expressão


de humildade do digno seareiro, deixando-nos entrever
fatos, sobremodo dolosos, de seu passado, não se
intimidando diante do nosso juízo que poderia denegrir-lhe a
imagem. As grandes almas não mascaram a verdade e
detêm a coragem suficiente para se diminuírem perante a
opinião alheia, quando assim a realidade se lhes apresenta.
Os altaneiros distorcem fatos e se escondem em hipocrisias
apenas para se afigurarem mais do que representam aos
olhos dos outros.

Alberto finalmente entrava em sono profundo. Pelo que


antevimos, ele ainda trazia significativos resquícios de ódios
delonga data, a serem enxotados da intimidade
consciencial, daí a necessidade de revivenciar o transe
doloroso, a fim de superá-lo definitivamente, pois a alma
para assumir o domínio da angelitude rumo à perfeição, não
deve conter a mínima nódoa de inferioridade. Deixamo-lo
recolhido aos refolhos dos próprios sonhos, para se refazer
diante das intensas paixões afloradas em desalinho,
ameaçando desestabilizar-lhe o íntimo.
Era preciso encerrar o proveitoso dia. Heitor, em respeitoso
silêncio que não ousávamos interromper, dirigia o olhar
para o alto, estacionando-se ante surpreendente visão que
não lográvamos alcançar. Viva emoção se lhe aflorava da
sensibilidade exaltada.

Emanando do coração dúlcidas vibrações, desfazia a alma


em prece de extremado fervor:

-- Senhor, no transcurso dos evos, empreendemos maldades


injustificáveis, conspurcando-nos a pureza com que nos
criaste. Hoje refeitos, depois de palmilhar a dor,
compreendemos que são a infâmia do egoísmo e a vileza do
orgulho, vestindo-nos de desonradez e opróbrios, que nos
fazem paupérrimos em meio a vasta abundância que
prolifera em todos os rincões de Tua Criação.

Caminhantes da vida, filhos do tempo, algemados às


correntes do relativismo, progredimos na trajetória evoluta
da vida para descobrir que, assincrônicos com a Tua Lei,
somos trânsfugas do Teu Amor, exigindo-nos urgente
correção de rumos. Hoje compreendemos que a nossa
jornada é de redenção, e por isso, não Te rogamos por
iméritas comodidades. Não Te pedimos o perdão sem que o
esforço ingente de reforma dos sentimentos nos
consubstancie a atitude de renovação.

Não Te suplicamos que nos afaste os inimigos, mas que nos


ajudes a transformá-los em irmãos diletos do coração. Não
te imploramos por

333

felicidades que ainda não merecemos, porém pela bênção


do trabalho, capaz de transmudar nossos errôneos valores
em bens para a Eternidade. Não obsecramos a libertação
das dores necessárias e meritórias, mas que nos auxilies a
abraçá-las como um convite para a corrigenda dos
equivocados rumos da insensatez. Não queremos que o
desterro nos abandone o ser, cientes de que somos aqueles
que nos banimos do Teu Lar pela corruptela da própria
vontade. E ousamos pedir-Te que nos inundes com a
nostalgia de Tua afeição, a fim de apressarmos o passo
rumo ao Teu coração magnânimo.

Não pedimos a sabedoria sem antes aprender a torná-la


proveitosa para a ignorância que prolifera ao nosso redor,
nem a alegria sem que saibamos primeiro distribuí-la aos
demais. E não nos dê a benesse do conforto antes que nos
apressemos a reconfortar aqueles que ao nosso lado,
desarvoram-se no desespero.

Não queremos mais o engodo das estradas largas das


vacuidades humanas, mas a trilha estreita do sacrifício e da
renúncia, enfrentando as grandes tempestades das paixões
vis que ainda assolam nosso mundo íntimo. Ansiamos por
banir os desertos da insensibilidade que teimam em nos
enrijecer as afeições, solapando-nos as melhores intenções.
Almas sedentas de paz, anelamos por drenar, pelo esforço
próprio, os charcos da inferioridade que ainda enlameiam
nossas paisagens interiores. Onde semeaste apenas luzes,
por desleixo próprio e desmedido apego ao egoísmo,
cultivamos as ervas daninhas do orgulho e da vaidade.

Sentimo-nos apartados de Ti, Senhor, como se fosse


possível ao Pai o abandono do rebento, sem compreender
que vivemos a ilusão do Filho Pródigo, pois os distanciados
somos nós, pela veleidade inconsequente, e hoje sabemos
que jamais divorciaste do nosso degredo. Não incorremos
mais no erro de buscar-Te alhures, nas alturas do
incomensurável, pois sabemos que, qual Pai amoroso, estás
ao nosso lado, no plano da vida comum, ombreando com a
miséria que ainda viceja em nossos passos. Cientes de que
não podemos fugir da própria penúria, onde seguramente Te
encontras, deixa-nos sangrar os pés nos pedregulhos da
maldade que ainda somos capazes de empreender, e
enfrentar com boa vontade os acúleos da incompreensão e
da adversidade alheias, a que nos fazemos jus.

Como gotas de orvalho que anseiam por reencontrar o


oceano, queremos abraçar todo o Universo, ser uno Contigo,
sendo uno com a Criação e todos os seres. Queremos
desfazer o labéu de ignomínias que nos distancia de Ti e
acolher o Teu chamado de Amor. Queremos despedaçar a
rudeza da improbidade, que enodoa a pureza com que nos
fizeste, apossando-nos do poder ilimitado que nos reservas.

Queremos fazer morrer o “eu” ególatra, eivado de erros


milenares, para renascer como fagulhas de fulgurante amor
em Teu seio imaculado.

Deixa-nos embriagar nas paixões desse enleio com que nos


acalenta as dores, nulificando a inferioridade que ainda
teima em dominar-nos

todas

as

emoções.

Ajuda-nos

abandonar

334
definitivamente as barreiras do egoísmo que nos separa uns
dos outros, e depois, somente depois, consente-nos
consumir nas chamas do Teu puro Amor.

Descortina-nos os olhos enceguecidos pelos ódios seculares,


sintonizando-nos com as verdades que nos ressoam do
Infinito, a fim de que nos embale um sadio e apressado
estímulo de ascensão. Somente conhecendo a enormidade
de nossa indigência espiritual, convencer-nos-emos de que
apenas um gigantesco esforço de superação dos hábitos da
inferioridade, e um imenso amor pelo bem, podem nos fazer
alçar aos altissonantes patamares de Tua Eterna Glória.

Sê para nós o alento de esperança que faz brotar nova


aurora depois de toda noite, que sopra a bonança depois da
tempestade, e faz renascer a vida após cada inverno. Sê
nosso refúgio de paz e nosso recanto de refazimento. Sê o
farol nas trevas que ainda nos assolam os inóspitos campos
do espírito. Sê o sustento para nossa frágil fé, ignorantes de
que depositaste em nosso âmago, todo o poder da Criação.

Cientes de que Tua Providência supre-nos de todas as


necessidades mesmo antes que as denotemos, ousamos
ainda suplicar-Te, Senhor: que não nos faltem as bênçãos
das oportunidades, a fim de desfazer em nós as execráveis
tramas das nefandas paixões que nos divorciam de Teu
Amor.

Heitor aquietou-se, pleno de luzes a irradiar-se do peito.


Miríade de cintilações caíam do Infinito quais estrelas
fulgurantes, espargindo gotas iridescentes, inundando-nos
de inefável plenitude espiritual.

Extasiados diante das emanações que nos abrilhantavam a


alma, despedimo-nos para reencontro em breve, sem que
as últimas ocorrências desfizessem em nós os sentimentos
sublimes que nos irmanavam.

Adelaide e eu, respeitosamente, recorremos ao silêncio pois


não nos cabia qualquer altercação, e muito menos
condenação ao luminar tutor que nos brindava com um
gesto de significativa hombridade. Já era noite, e as
estrelas, como escrínios de diamantes incrustados em
veludo negro, faiscavam melodias sublimes, adornando-nos
de paz e convidando-nos ao recolhimento. Devíamos
encerrar o proveitoso trabalho do dia, continuando-o em
outra oportunidade.

335
30
capítulo

SANANDO AS CHAGAS
DO PASSADO
“Não ambicioneis coisas altivas, mas acomodai-vos à
humildade.”

Paulo – Romanos, 12:16

Sincera curiosidade nos motivava a continuar ouvindo o


enredo das transatas aventuras de nossos amigos, mas
deveríamos aguardar agora pacientemente, que Heitor nos
convocasse para novo encontro.

Não tardou para que Adelaide me concitasse a visitar


Alberto a fim de nos ajuizarmos de seu novo estado, após a
imensa crise revivencial. Enquanto nos dirigíamos ao seu
encontro, suscitava-lhe algumas considerações:

-- Estamos presenciando momentos decisivos na história de


nosso irmão e podemos antever que a sua cirurgia psíquica
está por terminar. Chaga de profundo e arraigado ódio se
lhe estampa agora, drenando fel de sórdido rancor dos
recessos da alma, revelando-nos que ainda estava ativo e
necessita de ser tratado a fim de lhe proporcionar
verdadeiro alívio. É fato comum na medicina terrena que
auxiliares preparem o enfermo, abrindo-lhe os tecidos até o
local mais delicado do procedimento operatório, quando
então o médico principal comparece para atuar com sua
insubstituível habilidade. Somos os assistentes desta
cirurgia mental, Adelaide. Clivamos os planos teciduais de
sua alma até o ponto mais profundo. Agora devemos
entregá-lo a Heitor, o cirurgião mestre, a fim de que execute
o ato decisivo, que irá de fato propiciar-lhe a cura. Depois,
como fazem os ajudantes, iremos proceder à sutura dos
tecidos abertos. Nossa tarefa está chegando ao fim, minha
amiga.

-- Deparamo-nos enfim, com a explicação para a deficiência


sexual de sua última encarnação, e visualizamos os reais
motivos de sua missão – deferiu a irmã, compreendendo
que razões mais profundas justificam todas as nossas
carências e dores.

– Surpreendeu-me igualmente a revelação de Heitor...

336

-- Todos, sem exceção, trazemos do passado iguais


desventuras e atos condenatórios, pois somos espíritos
falidos, Adelaide, em busca da reconquista dos valores
divinos depositados nos arcanos do ser e não detemos o
direito de julgar quem quer que seja. O orgulho, o egoísmo
e o instinto nato de rebeldia nos motivam doentiamente nos
enredos da vida, dilapidando-nos a pureza de origem,
fazendo de nossas experiências reencarnatórias uma via de
redenção para o espírito imortal. Aceitemos ou não, esta é a
realidade incontestável da existência, o que justifica o seu
rol de exigências para conosco. O

passado nos macula a todos, entretanto não podemos


vivenciá-lo como um atavismo, retendo-nos nas fileiras
primevas da jornada evolutiva. Como traste inútil, deve ser
deixado à beira da estrada, depois de sublimarmos as forças
que o geraram, transformando-as em virtudes divinas para
a eternidade...

Alberto contudo, divisando-nos de longe, apressava-se ao


nosso encontro, interrompendo-nos o colóquio. Irradiando
tranquilidade, entregou-se ao nosso abraço, reconfortado,
para grande alívio nosso. Embora ainda constrito pelas
soturnas delações, estava plenamente cônscio do presente,
e ciente do caráter revivencial das emoções que lhe
dominaram o cenário íntimo do dia anterior. Perguntando-
nos por Heitor, ansiava pela presença do distinto amigo,
pois queria entabular com ele novos entendimentos com
respeito às experiências do passado, que tão vivamente
também o impressionaram. A despeito do funesto pretérito
que juntos compartilharam nas teias do destino, o nobre
mentor lhe suscitara os mais sinceros sentimentos de
verdadeira afetividade.

Para nossa alegria, no mesmo dia recebíamos uma


mensagem de Heitor convidando-nos para nova reunião ao
entardecer. E no momento aprazado encontramo-nos,
dispostos à continuidade de nossas ricas confabulações.

-- Salve, amigos – cumprimentou-nos efusivamente o


preletor, abastecendo-nos de auspiciosos alvitres, sem
denotar as canhestras atitudes daqueles que, ao desvendar-
se-lhes as fraquezas, sofrem por se verem submetidos ao
julgamento alheio.

– Espero que se tenham refeito das soturnas emoções que


lhes tresmalharam o coração no último dia, inundando-os de
pesarosas sensações. Sinto envolvê-los neste funesto
drama, porém um único fim nos leva a chamar de volta tão
amargas lembranças: sanear nossas paisagens
conscienciais, e fazer calar sombrias angústias que ainda
nos premem a alma, a fim de que a luz divina que em nós
mareja, brilhe com todo o seu fulgor. E para

337
isso contamos com a compreensão e o prestimoso apoio dos
irmãos.

Abraçando fervorosamente Alberto, e sem maiores


preâmbulos, passou a relatar-nos a continuidade dos fatos:

-- Os amigos, perfeitamente cientes do vilão de nossa


história, haverão de perdoar-me as mazelas do passado, o
qual não posso ocultar sem ferir minha própria dignidade.
Faz-me bem que me vejam como realmente sou, alguém
necessitado de equilíbrio moral e que luta para superar
grandes erros, cuja extensão vocês não podem ainda
aquilatar. Continuemos este sórdido enredo em busca de
minha indispensável resipiscência, única via capaz de nos
proporcionar a elísia paz que almejamos.

Ante nossa silenciosa atenção, seguiu o mentor:

-- Somente a desencarnação dolorosa foi capaz de deter-me


nos graves delitos praticados em nome de uma fé
equivocada, mesmo sabendo que o Evangelho nos pede o
perdão e o amor irrestrito aos inimigos, como solução para
todos os males das relações humanas. A verdade diluía-se-
me ante os olhos fixos no orgulho vil e na crueldade
contumaz. Aguardava com a morte minha entrada
triunfante nos paramos celestes, como representante que
era do poder divino na Terra, e esperava que o próprio Deus
viesse receber-me com pompas, agradecido pelos serviços
que Lhe prestara. Grave equívoco que somente alimentou-
me de novas revoltas. Projetado na inquestionável realidade
do além, onde cada qual encontra a vida que semeou nas
paisagens interiores, atraído fui de fato, como se referiu
Alberto, às furnas abissais a fim de consumir as imensas
maldades acumuladas na consciência. Porém, o injustiçado
amigo não me acompanhou na jornada de trevas e dores,
resguardado que se achava pelas forças operosas do Bem,
em decorrência de sua posição de vítima, facultando-lhe
méritos para o socorro. Após permanência em regiões
umbralinas purgatoriais, desvairado pelas energias sexuais
em desalinho, e ainda sob os olhos atentos de sua amada,
terminou por ser recolhido pelos obreiros do Senhor e
cuidado como enfermo em planos de refazimento.

Quanto a mim, surpreendido pela imensa penúria espiritual,


fui envolvido por satânicas entidades e açoitado pelos
numerosos desafetos que buscavam vingança, pois um
inimigo jamais se destrói. Era joguete em suas mãos,
recebendo de volta, merecidamente, todos os golpes de
crueldade e insensatez que os alvejara em vida. Tanta dor
me supliciava a alma que exorei, desfeito em sincero
arrependimento, piedade aos Céus, implorando por
imediato refúgio na carne. Todo sacrifício seria

338

pouco para evadir-me das ardentes chamas, que me


abrasavam no altar da consciência. Sedento de luz e paz,
requisitei reencarnação em dolorosa condição de escravo. E
dentro em breve, renasci em terras brasileiras, em humílima
senzala, envergando destarte, a mesma petulância da qual
me investira no passado. Entretanto, não fui capaz de me
subordinar à autoridade imposta pelos senhorios, e não me
adaptei à rotina de trabalhos forçados, recebendo por isso
atrozes castigos. O

pelourinho reteve-me por diversas vezes, as chibatas


frequentemente me abriam feridas no dorso, e as algemas
me acorrentavam permanentemente, mediante as repetidas
tentativas de evasão. Diante da renitente incorreção,
restou-me como uma última punição ser enterrado vivo,
com a cabeça para fora, a fim de que a morte lenta me
abrandasse o irredutível caráter. Perante tamanho suplício,
vergastado pelo desespero e acossado ainda pelas enormes
culpas do passado, ao retornar novamente ao Plano
Espiritual, fui constrangido a lembrar-me do Amor Divino,
que a ninguém abandona, clamando por misericórdia e
oportunidades de regeneração. E o Divino respondeu-me
com a bênção do trabalho dignificante.

Profundamente renovado pelos imanes sofrimentos, pude


reassumir o domínio de minhas conquistas anteriores, e
sensibilizado pelo drama da escravidão, passei a trabalhar
ativamente em prol do ideal abolicionista. Identificando-me
com os deserdados da sorte por ter sido um deles,
empenhei-me com fervor na defesa de seus direitos,
iniciando-me verdadeiramente na escola do Evangelho.
Após anos de dedicação à digna tarefa, consegui refazer o
espírito e retornar às meditações e estudos teológicos que
tanto me apraziam, auxiliado por benfeitores que sabem
tolerar a ignorância e o orgulho daqueles que caminham na
retaguarda dos impositivos morais.

Com a alma transmudada para o Bem e sedenta da Luz


Divina, inteiramente ciente dos grandes malefícios
praticados na encarnações anteriores, desejei ardentemente
o perdão dos inimigos do passado, a fim de angariar novos
valores para o espírito. Identificando no casal Bartolomeu e
Paula as maiores vítimas de minha improbidade, supliquei à
direção espiritual da vida, oportunidade para empenhar-me
em favor de suas felicidades a fim de poder transformá-los
em verdadeiros irmãos e filhos do coração. Este foi o início
de uma tarefa à qual passei a dedicar minha vida na
erraticidade, e que se unia à intenção de algo realizar em
prol da humanidade, a cujo progresso impusera
injustificados obstáculos. Motivado por estes sinceros
propósitos
339

pude então me aproximar dos queridos companheiros, que


se achavam socorridos em esferas espirituais de
refazimento.

Alberto, admirando-se dos relatos, rememorava o seu


interlúdio reencarnatório, dando-se conta do cenário ainda
efusivo que se lhe aclarava na memória espiritual. Heitor,
agora mais aliviado por penetrar fase mais auspiciosa de
seu pretérito, desanuviava o pesar que se lhe descoloria a
face, e prosseguiu:

-- Nesta época, meus queridos, áulicos prepostos do luminar


espírito Leonardo da Vinci, arrebanhavam colaboradores
para o desempenho de uma importante tarefa: a conquista
da navegação aérea, indispensável ao futuro da civilização.
E

Bartolomeu, em decorrência do aquilatado gênio inventivo e


suas bem sucedidas experiências com o balão voador,
chamou-lhes a atenção. Ele perfazia todas as exigências
necessárias para o empreendimento, além de se achar
comprometido com a humanidade, em decorrência da
investidura nas guerras, quando se conduzia como o
armeiro Zennon, como já vimos. Desta forma ele foi
convidado a trabalhar nas linhas de frente, integrando-se ao
corpo de pioneiros da nova era que se iniciava.

Consubstanciando esses interesses, havia o fato de que


Bartolomeu, como vimos, desde cedo se encantara com os
ensinamentos de Arquimedes, cuja ciência se esmerou em
aplicar em seus inventos, como vocês devem se recordar,
consorciando-se desde aquela época com os adidos deste
magno espírito. E, recordemos, como certamente não é
novidade para vocês, que o ilustre grego e Leonardo da
Vinci são reencarnações do mesmo espírito que retornou ao
proscênio terreno, juntando-se à plêiade de missionários
que compuseram a profícua desenvoltura renascentista,
programada para libertar-nos do subjugo das trevas
medievais.

Como todos sabemos, foi Arquimedes, então Leonardo da


Vinci, quem fundou na Terra a ciência do voo mecanizado. A
possibilidade do homem alçar-se às alturas já o fascinava
desde épocas remotas, e chegou em vida a idealizar várias
máquinas voadoras, das quais a mais famosa é o
Ornitóptero. Inspirado nos pássaros, nunca chegou a ser
construído, porém com ele o cientista estabeleceu
verdadeiramente os princípios básicos da aviação. Desta
forma, ele foi o verdadeiro precursor dos estudos
aeronáuticos e na Esfera Espiritual continuou a trabalhar
pela implantação de suas ideias, então amadurecidas o
suficiente para o êxito do intento. Reunindo diversos
espíritos auxiliares, e seguindo a direção espiritual de nosso
orbe, passou então à execução de seus planos, porém desta
feita sem que participasse

340

diretamente, permanecendo como o foco central de


inspiração dos trabalhos. Por isso, no Mundo dos Espíritos,
como nossos queridos amigos não ignoram, consideramo-lo
mentor da aeronavegação na Terra, pois dele partiu a
orientação de todas as ideias que sustentaram o seu
surpreendente desenvolvimento em todos os tempos.

Bartolomeu se engajara na tarefa com afinco e vivo


entusiasmo, coadunando sua necessidade de ressarcimento
com os interesses de sua aguçada inteligência. Quanto a
mim, por bênção divina, renovado e cônscio dos graves
compromissos, tive minha solicitação atendida, passando a
trabalhar na tarefa regeneradora em prol do antigo inimigo
e do progresso humano.

Aproximei-me assim do companheiro, com sincero anseio de


redimir minhas pesadas culpas, convencendo-o de minhas
boas intenções. do pretérito. E eis como me envolvi na
empreitada que competia a Alberto e para a qual não
detinha condições intelectivas.

Unidos nestes propósitos, passamos a frequentar os cursos


de adestramento desenvolvidos pela equipe de Da Vinci,
iniciando laço de amizade que nos encobriria os laivos do
passado. Guardo como feliz recordação as vezes que
pudemos juntos, assistir às preleções do iluminado espírito
que, desde os planos elevados, nos comandava, visitando-
nos diretamente e dirigindo-nos a palavra a fim de orientar
e incitar-nos ao trabalho. Em meio a grande número de
outros prestimosos companheiros, igualmente convocados
para a tarefa, fomos todos bafejados por relicários de luzes,
arregimentando-nos os mais nobres sentimentos de
dedicação e sacrifício em prol do desenvolvimento da
ciência.

A irmã Paula desta feita, não se integrara diretamente a


estes planos, pois não se envolvera em compromissos tais.
Não o acompanharia, pois Bartolomeu, incorrido em grave
perturbação da sexualidade, deveria impor aos
desregramentos, renovados hábitos coercivos. Ela
renasceria de volta na França, palco de novos
empreendimentos de Alberto, porém cerca de trinta anos
depois, evitando-se assim que se consorciassem,
desenvolvendo sua experiência carnal a distância segura do
companheiro. Não se reservando contudo, vida matrimonial,
aguardaria mais uma vez para a reconstituição do almejado
ninho doméstico, renunciando aos seus anseios em favor
das prementes necessidades do amado esposo.

Como todos permanecíamos emudecidos, aguardando a


continuidade da estuante narração, Heitor ainda pleno de
entusiasmo, prosseguiu:

341

-- Ele seria investido de uma grave inibição da sexualidade,


que inclusive o auxiliaria decisivamente no sucesso de sua
missão.

Em decorrência da premente necessidade de corrigenda


neste campo, teria obstaculizada a vazão das forças sexuais
pelas suas vias naturais, desviando todo o seu potencial
para a criatividade intelectiva. Sim, queridos, como era de
se esperar, Bartolomeu renasceria, por sugestão dos
prepostos que nos assistiam, incapacitado para as trocas
genésicas, medida providencial imediatamente acatada por
ele, ciente que se achava dos infrenes desvios
arregimentados nesta área. A deficiência sexual que o
acompanhou, torna-se assim naturalmente compreensível,
depois de desveladas suas irresponsáveis peripécias no
mercantilismo dos prazeres carnais, pois recordemos que
Jesus nos recomendou entrar na vida sem os órgãos que nos
facilitam a perdição moral. Sem olvidarmos que, por força
da lei de compensação, os excessos de toda natureza que
impomos a um seguimento orgânico terminam por
determinar-lhe natural hipotrofia, uma vez esgotado o
estímulo hipertrófico inicial.

Adelaide,
titubeante,

porém

acenando

com

contentamento do aluno que se depara com a confirmação


do ensinamento recebido bafejando-lhe a razão,
acrescentou:

-- Aprendi de fato, que o excesso leva à carência, lei que se


expressa em qualquer campo fenomênico, seja no universo
físico ou no âmbito de manifestações do comportamento
moral. Acabo de receber esta lição e não posso olvidá-la.

Heitor, denotando satisfação, na certeza de que


coadunávamos inteiramente com seus preceitos, seguiu seu
interessante relato:

-- Ciente de que os grandes erros requerem grandes


renúncias, o próprio Bartolomeu solicitou do plano espiritual
providências seguras, temeroso que se achava de incorrer
em males ainda maiores, diante dos insopitáveis convites
da sensualidade carnal, semeando novas dificuldades.

Ele ansiava por impor correção às desalinhadas energias


sexuais que ainda lhe causavam inconvenientes
perturbações perispirituais, impedindo-lhe o equilíbrio e a
felicidade. Estejamos definitivamente convencidos de que
toda atividade, em qualquer expressão do comportamento,
realizada com o propósito de satisfações egóicas, baseada
porém na infelicidade alheia, embora nos proporcione
irrisórios e fugazes prazeres, é lesiva para o nosso próprio
bem estar. Por isso, no delicado campo da sexualidade, se
gerimos danos à moral e à probidade alheia, ferindo os
sentimentos daqueles que nos dedicam a sinceridade

342

do afeto, estamos lastimando de modo grave a nós


mesmos. E

para os males acentuados, fazem-se necessários remédios


amargos. Por isso Bartolomeu aceitou o árduo alvitre da
castidade, imposta por impedimentos biológicos, diante do
qual não poderia evadir-se. Assim compreendemos também
porque Jesus nos disse que há eunucos que a si mesmos se
fazem, a fim de ingressarem mais depressa no domínio das
virtudes divinas que nos consubstanciam a alma.

-- Que seria do mármore bruto se rejeitasse o martelo que


lhe esculpe a beleza das formas? – disse como que para
mim mesmo.

-- Sem dúvida! De igual forma, como arrancar o brilho da


gema tosca, sem o atrito do buril? Por isso a carne não
atende nunca a aleatórios impulsos, como se o acaso lhe
dominasse as manifestações. Ao alcançarmos uma
compreensão mais dilatada, entendemos que ela é
orientada a cumprir sempre com as necessidades do
espírito eterno. Ao renascer contudo, olvidamos os fatos e o
impropério da revolta passa a dominar-nos, insubordinados
como sempre, diante das aparentemente incompreensíveis
limitações, obstaculizando-nos o exaltado anseio por
prazeres – agregou Heitor, visando a repassar ensinamentos
especialmente para Alberto.
Nosso amigo permanecia extasiado, admirando a sábia
arquitetura da vida, plenamente ciente de todo o enredo
com que Heitor nos brindava. Nutrindo-se com as
pertinentes informações, remia-se diante da lei divina,
precavendo-se de seu indevido juízo, e sanando a revolta
suscitada pela ignorância, haurindo surpreendentes
benefícios para sua estabilidade emocional. Tínhamos que
admitir que os seus elevados méritos por se fazer jus a
tamanha dádiva, pois a grande maioria dos desencarnados
passa pelo interstício reencarnatório sem se darem conta de
suas experiências em vidas passadas. Heitor, contudo,
continuava:

-- Além da inibição sexual, Bartolomeu precisava desvestir o


caráter dos excessos a que se habituara. Receberia um
corpo de reduzida expressão física, a fim de fazer vergar a
renitente altivez.

A robustez que vimos em Zennon, alimentada por excessiva


confiança em si mesmo, contraiu-se na pequenez corpórea
e a beleza helênica das formas de Bartolomeu, exploradas
de forma inadequada para a sedução do sexo oposto,
investiu-se das desproporções fisionômicas de Alberto,
conformado em cabeça avolumada em relação ao pequeno
corpo e nas orelhas de abano que tanto o incomodavam.

343

-- E entendemos que até mesmo o seu cabelo,


insistentemente partido ao meio, era um costume anterior,
habituado que se achava em assim pentear a longa
cabeleira –

adiu Adelaide, investida das minúcias que as observações


femininas lhe facultavam.
Heitor, esboçando discreto sorriso e perfeitamente ciente
das necessidades de esclarecimentos de nosso amigo,
prosseguiu:

-- Sua personalidade, desestabilizada por exagerada


autoconfiança, alimentada em outras existências, filha de
engrandecida valia de si mesmo, utilizada em prol da
opressão e da maldade, contraiu-se na insegurança e no
acanhamento que o caracterizavam, apesar de ter
amealhado grande capacidade intelectual na vivência
monastérica. Compreendemos desta forma como o
habilidoso e seguro orador sacro de então, se fez intimidado
e temeroso de qualquer apresentação pública,
caracterizando Alberto exatamente no oposto de onde se
habituara ao exagero. A despeito das inibições, ele contaria
com meios para sobrepujar as dificuldades e empreender
sua tarefa com sucesso. Recursos extraordinários seriam
movidos e disponibilizados a seu favor para que pudesse
superar com êxito essas deficiências e encontrar o equilíbrio
das pulsões psicodinâmicas, convidando-o a acomodar o
espírito nos limites da humildade. Investido destes
impositivos de reforma, nosso amigo ingressou na vida,
ciente do seu papel a cumprir na História, falando-lhe alto
no âmago da consciência intuitiva.

-- As energias psíquicas também se contraem quando,


atingindo os limites de seus excessos, se desgastam. A
retração neste caso comparece como correção necessária à
contenção de novos e intoleráveis desregramentos – ousei
agregar, procurando aliviar Alberto ainda constrangido pelas
suas limitações. – Vemos assim como as forças
psicossomáticas se reverberam, por rebote reacionário,
estacionando-se nas antípodas de seus exageros. Na lei
divina, tudo se concatena em princípios irretorquíveis,
Alberto. As carências nos servem de coerção aos abusos,
ensinando-nos a viver na equanimidade e temperança
necessárias à saúde do espírito.

-- Nossos amigos, devidamente formados na ciência do


psiquismo, entendem muito bem que a personalidade de
nosso amigo se constringiu na exata proporção de seus
excessos – anuiu Heitor com a intenção de fixar
ensinamentos valiosos para todos nós. – Compreendemos
que os espíritos capazes, destituídos porém da correta
orientação que a modéstia nos impõe, necessitam dessas
inibições, sem as quais prosseguiriam pelos

344

incautos caminhos da jactância em que se comprazem. Por


isso são recursos da misericórdia divina a nosso favor, e não
mandatos de castigo. E não podemos olvidar que essas
importantes limitações físicas, na verdade, auxiliaram-no na
condução da missão, pois gerando frustrações, franquearam
mecanismos de compensações, levando-o a preenchê-las
com o inusitado. Ainda que, diante da revolta do orgulho
insatisfeito e da contingência de suas poderosas forças
mentais, ele tenha terminado por induzir-se a novas e
errôneas defesas hipertróficas do psiquismo, sucumbindo
depois pela intolerável frustração da vaidade, vergastando-
lhe os valores, malbaratados pela insana fuga da vida.

Admirávamos a riqueza do relato de Heitor, em cujos


enredos íamos encontrando as explicações para todos os
entraves e aptidões que havíamos verificado em Alberto.
Adelaide, em respeitoso silêncio, frequentemente buscava-
me com o olhar percuciente, dando-me a entender que
enfim, compreendia as motivações ainda inexplicáveis para
as desventuras que o amigo narrara em suas digressões.
Todo o roteiro de sua experiência terrena ia se coadunando
em perfeita lógica, na egrégia arquitetura da vida,
demonstrando-nos que a lei divina nos entretece a
existência com base nos enganos e méritos do passado,
favorecendo-nos com a bênção da oportunidade para o
refazimento dos erros, e a conquista de valores genuínos
para a eternidade. Não há dores injustificáveis e inúteis,
como não há dons gratuitos, dentro da notável ingerência
da lei, dirigindo com perfeição, nos recônditos do complexo
e amplo conjunto da criação, cada caso em particular, na
exata posição e dimensão de suas necessidades.

Voltando-se agora particularmente para Alberto, Heitor


reiterava informes que lhe valeriam como valiosos recursos
curativos, indispensáveis para a cicatrização das chagas
ainda abertas na alma:

-- Agora você pode compreender muito bem todo o contexto


de sua vida, Alberto. Nas imprudências vividas no campo da
sexualidade, como Bartolomeu, estão as razões mais
profundas para o cerceamento de sua sexualidade, e no
ódio destrutivo de Zennon encontraremos seu impulso de
abdicação em prol do bem comum. E você pode também
entender que suas limitações eram recursos em favor de
seu equilíbrio, urgentes e indispensáveis necessidades para
o seu completo soerguimento. Eis em síntese, a revelação
dos planos que antecederam a sua reencarnação.

Premências e danos que foram cuidadosamente


programados, e

345

eu me investi da tarefa de ajudar a efetivá-los em sua vida.


Participei ativamente junto de você, em todas as suas
peripécias, e por isso conheço sua história como você
mesmo. Fiz-lhe companhia aos arriscados e solitários voos,
embarcando em suas frágeis máquinas voadoras, torcendo
pelo seu sucesso. Se não lhe pude evitar os acidentes, tudo
fiz para minorar seus efeitos. Chorei com seus fracassos
como se fossem meus. E habitei seus sonhos, nutrindo-o
com os projetos que aprendíamos da equipe que nos
assistia e que você depois executava com fidelidade, graças
aos dotes de preciosa inteligência e perspicaz intuição. Não
havia recursos para se testar a estabilidade e eficácia dos
incipientes aparelhos voadores, e este era o meio de que
dispúnhamos para empreender-lhe ajuda efetiva a fim de se
evitar malogros perigosos, dificultando o progresso da
conquista aérea. Contudo, como lhe disse, não venho em
busca de reconhecimento, pois nada de mais fiz que não
estivesse computado nos meus imensos débitos para com
você e com o progresso humano.

Após silêncio oportuno, permitindo-nos assimilar as sábias


ponderações, admirando a perfeita lógica do roteiro de
redenção que a sabedoria da vida nos propõe visando
unicamente ao nosso bem, prosseguiu o preletor,
repassando as lições ante o crescente interesse de Alberto:

-- Destarte, é preciso que você reconheça que a ajuda


emanada do Mundo Espiritual Superior, não é exclusivista e
não participa de nossas afanadas disputas e contendas, que
objetivam unicamente doentia hegemonia. Como você, toda
uma equipe de espíritos igualmente capazes era objeto de
cuidadoso acompanhamento no desenrolar dos planos, cuja
finalidade era dar asas aos homens. Todos se reuniam
durante o sono físico, em memoráveis encontros onde
discutiam e recebiam instruções dos espíritos responsáveis
pela condução das ideias, que posteriormente funcionavam
como acertadas intuições, solucionando adequadamente os
naturais empecilhos. Os mais habilitados na arte da
mediunidade onírica iam à frente, sem que tirassem os
méritos daqueles que tardavam um pouco mais a perceber
o caminho correto. Dentre estes pioneiros nos recordamos
de George Cayley, o verdadeiro precursor, quem fez de fato
o primeiro aeroplano bem sucedido; Otto Lilienthal que,
perseguindo obstinadamente o que antevia em seus
sonhos, perdeu a vida nos seus experimentos; Otavio
Chanut, que efetuou centenas de vôos planados não
tripulados; Samuel Langley, que postulou todos os
indispensáveis princípios físicos da aeronáutica, orientando
todos os demais operários do vôo humano, e dos

346

famosos irmãos Wright, aqueles que empreenderam de fato


o primeiro vôo motorizado. A contribuição de todos esses
valorosos companheiros foi indispensável ao sucesso da
empreitada, verdadeiro esforço de equipe em que os
espíritos se consorciavam aos encarnados no objetivo
comum, interessados em angariar benefícios para a
humanidade, e não ressaltar egóicas ufanias.

Alberto, ao ouvir a referência aos irmãos Wright, emitia


destoante onda mental que a contragosto tentava sofrear,
imediatamente percebida por todos nós, revelando que
desajustado sentimento ainda estava ativo e continuava a
lhe ferir a alma. Diante de tamanha dissonância emocional,
Heitor se detinha qual médico meticuloso que, percebendo
o exato local que acomoda uma patologia, ali concentra sua
acendrada atuação. Fazendo ligeira pausa, como a
arrebanhar elementos de persuasão e irradiando certo
pesar, continuou a lhe dirigir a palavra, qual pai diante do
filho imaturo:
-- Alberto, debele com sofreguidão esses impulsos
insopitáveis do orgulho ferido, antes que o lesem ainda
mais. Sei que lhe foi duro golpe ter que ceder as glórias da
primazia aos irmãos norte-americanos, quando o mundo
ainda o ovacionava pela inusitada conquista. Reconheça
contudo, que tal providência lhe foi valioso medicamento
para a exaltada e perigosa vaidade. A altivez é chaga
funesta para a alma e deve ser combatida a qualquer custo,
meu amigo. Os irmãos que o assistem vêm lutando no afã
de debelá-la em você desde longa data, e é chegada a hora
de fazer a sua parte.

É inquestionável, os Wright voaram primeiro e lhes cabe a


prioridade do invento na ingerência do tempo, mas não na
valorização eterna dos préstimos da lei, os quais
compartilham em igualdade de condições com você. Isto em
nada lhe tira os proventos espirituais, pois ser o primeiro é
efêmero valor que interessa apenas às vaidades humanas e
seus doentios nacionalismos separatistas. Aos olhos da vida,
o curto espaço na escala do tempo que lhes separa, não é
suficiente para roubar méritos a nenhum de vocês, visto
que seus resultados não foram copiados uns dos outros, e
todos cumpriram suas missões a contento, respondendo
adequadamente ao apelo do mundo espiritual. O que
realmente importa é o enorme bem que vocês
proporcionaram à humanidade. E você colaborou
decisivamente para tornar a aviação uma realidade prática,
saldando antigo débito para com o progresso terreno. Eis
sua surpreendente conquista e o que realmente lhe diz
respeito! O restante interessa

347
apenas à nossa falaz vaidade, a qual devemos combater
com todas as forças da alma.

Nossos irmãos americanos, embasados por ambições


desmedidas, na mesma errônea satisfação da jactância,
moveram-lhe silenciosa e injustificável guerra de
supremacia, na qual todos na verdade, foram derrotados.
Vendo-se ameaçados pelo seu inconteste sucesso na
Europa, cuja primazia ninguém ousava discutir, pagaram de
fato ao Peyrey para destituí-lo da merecida glória,
ocupando-lhe o lugar. Isso contudo, não lhe deve ser motivo
de mágoas, porém problemática que a eles compete.
Convém pôr-se de acordo com a lei, meu amigo, admitindo
a lição como necessária ao seu crescimento espiritual.

Deixe que o mundo idolatre os heróis do mundo, pois Jesus


nos recomendou dar a César o que é de César, e nos disse
que os glorificados pelos errôneos valores terrenos não o
são na apreciação da lei divina. As honrarias da Terra, nela
devem permanecer e nos interessa apenas ser aureolados
por Deus no altar da própria consciência.

Como Alberto emudecia-se, envergonhado diante da


realidade, Heitor agregou:

-- Ante o espírito ainda imaturo, você se deixou conduzir


pelas dores da mágoa. Refratário aos insistentes convites à
modéstia, ver seu nome destituído do rol de heróis da
aviação foi-lhe duro golpe, bem sei. Também me doeu, pois
eu estava empenhado em sua felicidade, mas não podia
mancomunar-me com o erro de ensoberbecer-se de maneira
tão desmedida. Sei que você merecia o destaque pelo
imenso esforço empreendido e pela inquestionável
genialidade, porém a lição de humildade lhe era urgente
medicamento para a alma. Nossos prepostos orientaram-me
para dissuadi-lo do injustificável processo judicial que você
intencionava mover contra os irmãos americanos e o
comparsa francês, e tratei de fazê-lo logo, pois eles
detinham de fato o direito à primazia e, ademais, estas
armas não convêm ao espírito cristão. Jesus não nos indicou
como grave erro pretender sobrepujar os irmãos de jornada,
recomendando-nos como justa a posição de servo e menor
de todos? Sua insistência em sobrepor-se-lhes fê-lo
acometer-se de séria lesão emocional, arremetendo-o à
dolorosa depressão, como muito bem já identificaram os
companheiros que o assistem.

Adentremos novamente um pouco nos desconhecidos


bastidores da questão, a fim de esclarecer os fatos sob os
olhos da realidade espiritual, embora muito já lhe tenha sido
revelado. Os irmãos Orvil e e Wilbur Wright são os mesmos
Joseph e Étienne

348

Montgolfier, os franceses pioneiros da aerostação, porém


não os inventores do balão, como já vimos. Renasceram na
América empenhados na continuidade de suas tarefas e
participaram juntos com você do mesmo esforço de equipe.
Como todos que compunham

quadro

de

trabalhos,

compreendiam
perfeitamente que o intento inventivo, na verdade,, não
lhes pertencia e, vendo ainda que os espíritos nobres
trabalhavam pelo bem comum, renunciando às perigosas
vaidades do destaque pessoal, não se importavam com
quem de fato iria merecer a glória da primazia. Isso não
interessava a ninguém, embevecidos que se achavam pelos
enlevos espirituais que os moviam. Leonardo da Vinci é
quem detinha os verdadeiros méritos. Seus servidores
semeavam as ideias à espera de que florescessem em
campo fértil, não importasse quem as germinasse primeiro.
Não nos é surpreendente o fato de que vocês, em locais
distantes e em tempo aproximado, tenham desenvolvido
trabalho em tudo semelhante? Isto prova que estas ideias
não se restringiam aos seus próprios domínios mentais, elas
se irradiavam da Esfera Espiritual, portanto ninguém as
detinha; não há direitos à supremacias entre os encarnados
e suas honrarias são irrisórias e fictícias. Eis a realidade,
meu amigo.

-- É verdade, Alberto, aqui no mundo espiritual, quem de


fato consideramos o criador do avião, e é venerado como o
pai da aeronavegação com justa razão, é Leonardo da Vinci.
Como muito bem nos esclareceu Heitor, ele abdicou do
próprio nome, cedendo as glórias aos inventores da Terra,
fato meritório de nossa admiração e que caracteriza os
grandes espíritos – apressei-me a reforçar as alegações do
mentor, convencendo-o da realidade dos novos fatos que
entreteciam sua história.

Com a intenção de convencer o amigo de seus equívocos,


persuadindo-o a abandonar definitivamente a contenda,
Heitor revelou ainda:

-- Ademais, convém ainda relembrar-lhe que, ao envergar a


personalidade de Zennon, você se gabou em demasia do
título de inventor do canhão, desfrutando doentia
arrogância do afamado epíteto que lhe conferiu destacada
posição no mundo espiritual inferior, permitindo-lhe decisiva
atuação na manutenção das guerras. Nutrindo-se por tanto
tempo de tão perigosa elação, explorando o malfadado
atributo no exercício da crueldade, você terminou por
compreender os males que ele lhe causara ao despertar
para as realidades do espírito. Diante do fracasso da
renúncia sacerdotal, e temendo novos danos à consciência
eterna, antes de reencarnar você solicitou com instância,
dos

349

prepostos que o orientavam, a destituição das glórias do


invento do avião, resguardando-o de novas quedas pelo
orgulho. No esquecimento da carne contudo, você não
tolerou a experiência letiva, resvalando-se para o
despenhadeiro da revolta e do amor próprio ferido, sem que
os valores da simplicidade pudessem amparar-lhe a
fragorosa derrota no autocídio.

Como Alberto se recolhia, demisso, diante da lembrança


que finalmente tomava-lhe de assalto a memória, Heitor,
comovido, seguiu desfiando agora palavras de consolo:

-- Renegue de vez a irrelevante questão, filho. A visão


abrangente da realidade que a morte nos proporciona,
capacita-nos a entender as aberrações que praticamos na
vida em defesa de nosso orgulho. Nosso personalismo
exclusivista nos estimula a inúteis contendas e nossos
países na crosta, despendem esforços improfícuos na
imposição de hegemonias, excitantes de perigosos
chauvinismos que tantos males tem causado a humanidade.
Abandonemos definitivamente tais errôneos propósitos.
Deixemos os homens da Terra entregues às suas
intermináveis e indignas discussões em torno de questões
de somenos importância, que não dizem respeito aos
valores genuínos do espírito.

Santos Dumont é um nome que ficará na idolatria de sua


nação terrena, porém você não o deterá por muito tempo.
Uma vez que partir para nova aventura na carne,
envergando uma personalidade renovada, sepultará no
passado o inventor do 14-Bis, o ganhador do prêmio
Deustch, fatos que não mais lhe interessarão, e você não
continuará pleiteando para si tais conquistas. Coisas que o
tempo procumbe, meu amigo. Tratemos nós, pois, de cuidar
do amanhã, semeando no presente nossa felicidade futura,
entregando ao pretérito seus males e suas falácias.

Estejamos convencidos, as glórias que mais nos


engrandecem não são as do intelecto, e muito menos
aquelas que se embasam na superação dos valores alheios,
mas sim as do amor, consubstanciadas nas doações de nós
mesmos em favor dos demais, entretecidas pela renúncia à
nossa hegemonia.

Recordemos que a exaltação do individualismo egóico pode


nos proporcionar alegrias fugazes na Terra, porém é capaz
de nos impor lesivos impulsos hipertróficos ao psiquismo. A
satisfação dos vencedores, quando fundamentada na
humilhação dos vencidos, é semente perniciosa que fará
germinar fruto nocivo para quem a granjeou. Os vitoriosos
do mundo, embora sejam ovacionados pelas massas,
comumente são envenenados pelas invejas daqueles que se
sentem usurpados em suas pretensões,

350
perpetrando soezes obstáculos às suas venturas. E além do
mais, estaremos cumprindo com os preceitos evangélicos,
se nos empenharmos com sinceridade, para que os valores
da supremacia beneficiem nossos irmãos americanos,
meritórios de nossas melhores considerações. Jesus nos
recomendou, como recurso indispensável à bem-
aventurança, desejar aos outros todo o bem que queremos
para nós mesmos. Portanto, as honrarias e a importância
que pensamos nos ser indispensáveis à felicidade,
aprendamos a cedê-las aos demais, abdicando-nos do
milenar egoísmo.

-- Não tolerei o roubo da glória, é verdade. Deixei-me


resvalar para o despenhadeiro do desespero por ato de
extremada covardia diante da vergonha que se me impunha

confessava Alberto entre lágrimas de sincero


arrependimento.

-- Sim, meu filho, admitir a verdade nos faz bem – redarguiu


Heitor. – Você desafiou as alturas e resistiu aos fortes ventos
sem esmorecer, arriscou-se às mais intrépidas aventuras
sem titubear, mas sucumbiu ao orgulho ferido. A destituição
da primazia lhe foi mais grave do que a queda nos telhados
do Trocadero, onde quase morreu. Lembro-me de que, ao
lhe fazer companhia nos solitários vôos, sentia com você,
como a vastidão do céu nos fazia insignificantes,
suscitando-nos sentimentos de providencial humildade.
Permutávamos impressões mudas, porém clamorosas,
embevecidos diante do majestoso palco de suas aventuras.
Não havia como renegar os sentimentos de lealdade aos
imperativos do espírito que nos irmanavam. Naqueles
paramos solitários era fácil dialogar com você, pois você
julgava estar confabulando consigo mesmo. As promessas
de renúncia ao personalismo eram as mais sinceras
possíveis. Você se comprometia a não haurir benefícios com
aquelas surpreendentes máquinas, na certeza absoluta de
que não lhe pertenciam. E de fato, um grande
desprendimento dos valores monetários lhe embasou a
carreira de inventos, mas você não pôde ceder aos convites
da idolatria que as pompas humanas lhe ofertavam. E
nossas digressões não foram o bastante para demovê-lo dos
engodos da jactância. Ao experimentar as glórias do mundo,
não mais quis se desvencilhar delas. Olvidava que os
inusitados feitos já conquistados, imorredouros na memória
dos povos, eram por demais surpreendentes e impossíveis a
um homem comum realizar, suficientes o bastante para
imortalizá-lo na galeria dos grandes heróis da humanidade e
satisfazer-lhe as vaidades. Porém você não se deu por
contente, lastimavelmente. A conquista da dirigibilidade,
que selou de modo convincente a possibilidade do

351

vôo motorizado, e a primazia do aeroplano auto propelido


foram conquistas suas de inquestionável mérito. E que
imenso sucesso foi o “Demoiselle”! Nele você realmente se
esmerou, copiando com perfeição o modelo que os amigos
espirituais lhe ditavam durante o sono físico, com reduzidas
necessidades de reajustes posteriores.

Todas as futuras construções da aviação se basearam em


suas linhas mestras. Mas não lhe bastaram à alma sedenta
de eloquentes notoriedades, que o convencessem dos
valores divinos de que não se julgava possuidor.
O espírito, feito de substância sagrada e herdeiro da
ventura eterna, desejaria viver na felicidade plena das
realizações gloriosas, imune a toda e qualquer frustração ou
fracasso. Por isso, aqueles que experimentam os louros das
vitórias, não se conformam em descer do pedestal de
ilusões em que se comprazem, sofrendo de modo
desmedido qualquer imposição de nivelar-se ao plano
comum dos homens. Qual Ícaro, com as asas abrasadas
pelas luzes da altivez, você se precipitou nos abismos da
ignomínia. Frustrado, sentindo-se de maneira descabida um
falido, você preferiu refugiar-se na depredação dos tesouros
mais nobres que trazia no espírito, impondo-se o auto
extermínio. Sinto não ter podido evitar o drama maior que
pôs fim à sua aventura terrena, meu amigo, porém lhe
asseguro que tudo fiz para persuadi-lo a mudar o panorama
íntimo. Unido ao seu coração, sentia seus sofrimentos como
se fossem meus. Sua decepção diante dos fracassos,
naturais percalços do caminho, era imensa e despropositada
porque seu orgulho não admitia que as falhas pudessem lhe
macular o soberbo espírito. Em síntese, o que o levou ao
suicídio, Alberto. Os companheiros que o assistem já
caracterizaram muito bem essas ocultas causas de seus
sofrimentos e não precisamos mais ressaltá-las aos seus
olhos.

Recordo-me das muitas vezes que, rogando fervorosamente


aos céus recursos suplementares, conseguia persuadi-lo a
evadir-se do intento de pôr fim à vida, mas não alcançava
retirá-lo do imenso fosso de infundadas decepções e dores
que você mesmo impunha à alma. Por vezes meu esforço
diante de sua sensibilidade exaltada era tanto, que o levava
a denotar-me a presença na visão espiritual. Contudo, você
me identificava como o antigo algoz do passado, o
assassino cruel, suscitando-lhe infundados temores, e a
ilusão de estar sendo perseguido por inimigo invisível,
deixando-o à mercê de julgamentos errôneos por parte dos
encarnados que passaram a considerá-lo com a razão
comprometida.

352

-- Pobre de mim, não conseguia sentir suas boas intenções


em minhas desalinhadas percepções. – considerou Alberto
ainda constrito. – Hoje sei que somente podia divisar o ódio,
e o temor tomava conta de minhas emoções. Reconheço
que não pude suportar a perda da primazia, e a vivi como
enorme decepção.

Foi uma dor intolerável, porém hoje ainda sofro por ter
capitulado diante de um fato que deveria ter aceitado com
hombridade, e vivenciado como preciosa lição de
humildade. Vejo que dei guarida a um sofrimento indigno e
injustificável, o que agora me abate ainda mais com a
amargura do arrependimento. Ajude-me, benfeitor, quero
soerguer as forças combalidas de minha alma...

-- Não se intimide diante da queda – prosseguiu Heitor com


invulgar sabedoria, - todos nós, sem exceção, subimos e
descemos ao longo da linha da evolução, pois na verdade,
somos almas em reconstrução na jornada evolutiva em
busca dos valores divinos que desbaratamos. Neste encalce,
a cada incursão na carne, conseguimos uma ínfima parcela
de sucesso, pois a ignorância ainda viceja soberana,
menoscabando nossas melhores intenções. Por isso nossa
romagem terrena se compõe de pequenos êxitos e grandes
fracassos, até que os recursos empreitados pelo socorro
divino nos permitam a inversão de tal realidade. Isso faz de
nossa caminhada, não uma escalada contínua e retilínea de
ascensão, mas circunvoluções progressivas, periodicamente
entrecortadas por quedas, quando nos precipitamos nas
contrações das dores corretivas, e na necessária derrocada
dos errôneos valores acumulados. Em seu conjunto contudo,
o ganho ascensional termina por predominar sobre os
declínios, e conseguimos progredir sempre.

Como Zennon, você caiu pelo ódio, apesar das conquistas


da habilidade e da arte. Na pessoa de Bartolomeu, pelo
sexo desvirtuado, a despeito dos ganhos no campo da
erudição e do conhecimento, e como Alberto, sucumbiu pela
vaidade excessiva, embora tenha adquirido patrimônio
excedente de inteligência. Em nosso plano costumamos
chamar estas quedas, de Mal de Hybris, em referência ao
nosso herói, que na tragédia grega, cai pelo orgulho e
arrogância excessivos, mal a que todos estamos ainda
sujeitos na vida, e que se cura facilmente com a imposição
da modéstia, da aceitação de nossas limitações, e
sobretudo, da valorização do outro em detrimento de
nossas vaidades.

Destarte é forçoso ainda considerarmos que todos os


artífices do vôo humano, na realidade, fracassaram no
campo moral, a

353

despeito do grande sucesso tecnológico. Você pela


intolerância à primazia subtraída, e os Wright pela ganância
excessiva. Estes, interessados em auferir proventos com o
inverno, esconderam-no, aguardando que o aparelho se
tornasse viável e aparecessem interessados em comprar-
lhes a patente. Enquanto isso, você fazia questão de tudo
revelar aos interesses do mundo, pois tinha pressa em
saldar seus débitos com o progresso. Você já era rico o
bastante e buscava somente a exaltação de seu
personalismo, a fim de compensar as ocultas deficiências no
campo da sexualidade frustrada. Por isso nada vendia e
tudo cedia com aparente desinteresse. Você pecou pela
vaidade, aqueles erraram pela cobiça.

Não seja contudo, imprudente consigo mesmo, impondo-se


sofrimentos inúteis e destruidores dos recursos que a
divindade mobiliza a seu favor. Soerga o ânimo abatido e
permita-se o paulatino crescimento rumo às lídimas
conquistas do espírito. Não aumente sua dor, que ainda irá
reverberar-se como eco dos erros do passado, até que,
convertida em força renovadora para o bem, esgotar-se-á
nos abscônditos recessos do inconsciente. Sua paz será
fruto de esforço próprio na aquisição dos valores
evangélicos, única porta de acesso à cura definitiva dos
males do orgulho. Humildade, bondade irrestrita e
aprendizado constante, são seus mais preciosos
medicamentos neste momento. Não aguarde por recursos
milagrosos que não podemos ministrar-lhe, mas faça sua
parte, espargindo sementes de esperança e renovado
otimismo.

354
31
capítulo

A FORÇA DO PERDÃO

“Perdoai não sete vezes, mas setenta vezes sete.”

Jesus – Mateus, 18:22

Alberto acomodava-se, refazendo o seu panorama íntimo


diante das sábias lições da vida. Menos acabrunhado e
interessado em verter da alma todas as suas dores, animou-
se a considerar, após breve intervalo:

-- Agradeço imensamente as recomendações do amigo que


tanto me consolam e o esforço de todos, pois sei que hoje
aqui estão reunidos com o único fim de propiciar-me alívio e
equilíbrio.

Guardarei suas sábias palavras, utilizando-as para o meu


soerguimento. As verdades que os irmãos me estampam à
razão, são inquestionáveis e saberei usá-las para reconforto
íntimo, pedindo a Deus que os tesouros da humildade se
incorporem em minha alma. Preciso porém, superar outras
imensas culpas que me pesam a consciência, pois como o
benfeitor já sabe, e certamente contrariando suas
orientações, incentivei o uso do avião nas guerras. Hoje
reconheço que não podia ter empreendido tão grave
equívoco, revendo o passado que vocês me ajudaram a
reencontrar. As imorredouras lembranças da época em que
investi no aprimoramento do canhão, ainda premiam minha
consciência à correção de rumos, e sei que o amigo muito
deve ter feito para dissuadir-me da empreitada, porém não
fui forte o bastante para resistir ao destaque que queria
imprimir à própria personalidade. Percebo que meu infeliz
invento de destruição investe-se até hoje contra mim...

-- A guerra o martirizou sobremaneira, bem sei. Era o


rompimento de um voto sagrado que hoje podemos
compreender melhor pela visão de sua história pregressa.

Recordo-me ainda que, reunidos sob a égide do iluminado


Da Vinci, comprometíamo-nos a trabalhar em prol da paz,
envidando todos os esforços possíveis para que o
extraordinário invento não servisse tão cedo como arma de
combate. Vã esperança!

355

Imbuímo-nos do nobre intento, porém sabiam nossos


orientadores que isso seria impossível.

Apenas nascia, e o aeroplano, dadivoso bem do mundo


espiritual, ainda frágil e mal iniciando seus primeiros
passos, já era armado para a luta pelo milenar instinto
guerreiro do homem terreno – sombria realidade que a
todos nos diz respeito, e não a um ou outro dentre aqueles
que conduzem os destinos da humanidade na Terra. Com
todo respeito aos nossos irmãos pioneiros, dos quais não
queremos denegrir a imagem e nem menoscabar os
preciosos feitos, todos fracassaram no intento de resguardar
a invenção das disposições belicosas do homem. Em 1909 o
Mundo Espiritual assistia com pesar os Wright venderem a
patente do extraordinário veículo para o Exército norte-
americano para a construção do primeiro avião militar da
história, traindo a consciência de modo muito mais grave do
que você, que ainda teve fôlego para investir contra tal
intenção, atendendo aos insistentes apelos das culpas já
assoberbadas. Blériot, Voisin e Farman igualmente
enriqueceram-se produzindo aviões para a guerra, enquanto
o conde Zepellin cuidava de aperfeiçoar rapidamente seus
dirigíveis para o bombardeio em massa das cidades
inimigas. E todos os governos apressaram-se a armar seus
aeroplanos, subvertendo as nobres finalidades para que
foram criados. Suas asas incorporaram canhões mortíferos e
metralhadoras assassinas, e passaram a transportar
criminosas bombas de destruição, ante o olhar pesaroso do
Plano Espiritual Superior e para grande desgosto de
Leonardo Da Vinci e sua equipe de trabalhadores. Todos
assistiam contritos, às injustificáveis devastações,
multiplicadas pelo potencial da aviação, embora o fato fosse
perfeitamente previsível Este é apenas um retrato do
homem da Terra e não consequência de suas imprudentes
ideias, Alberto, que não fizeram falta para ressaltar o que
sobressaía aos olhos de qualquer um.

-- Mas não deixei de contribuir para o equívoco, pobre de


mim. Fui o primeiro a participar de uma parada militar com
a máquina voadora, em nítida alusão ao seu emprego como
arma de combate. Longchamps ainda me dói como fino
punhal penetrando-me o coração! Não precisava ter dado
tanta ênfase ao fato, associando meu nome à indigna
sugestão.

-- Reconhecemos contudo, seu justificado desespero ao


perceber um pouco tarde, que havia deflagrado a
associação do dirigível com o militarismo. Você, relendo as
tristes reminiscências que trazia indeléveis na memória
espiritual, não queria mais se consorciar ao esforço bélico
do homem. Era o passado que

356

voltava e você não podia mais tolerá-lo, ciente das atrozes


dores vivenciadas nos horrores das guerras nas zonas
umbralinas.

Recordo-me de sua comovente carta à Liga das Nações,


inútil apelo à empedernida aptidão marcial do homem
inferiorizado, interpretado como fragorosa ingenuidade,
porém com imensa repercussão

no

mundo

espiritual,

onde

surtiu

efeitos

surpreendentes, suscitando simpatias a seu favor, apesar


de seus equívocos anteriores.

A despeito de tudo e de todos, o avião terminaria de


qualquer modo, sendo empregado nos enfrentamentos
fratricidas, o Plano Superior sabia disso; era inevitável. Você
porém, acalentado pelos mais sublimes ideais aprendidos
das elevadas entidades que nos assistiam na tarefa, nutriu
no coração sedento da paz verdadeira, a ilusão de que
poderia evitar este seu danoso uso. O propósito se lhe
firmou com tal magnitude, que seu sofrimento foi
desmedido e inevitável diante do fracasso do intento.
Assomado à outras frustrações, terminou por contribuir para
precipitá-lo na soez queda do auto extermínio.

-- Meus amigos muito já me fizeram ver a respeito destes


funestos insucessos. Como aqui nos crescem as culpas,
constrangendo-nos a intolerável remorso! Gostaria de
libertar-me de tamanhas aflições...O arrependimento do
suicídio me é ainda insuportável...Gostaria de ocultar-me no
sono permanente, iludindo-me de que não dei guarida a
tantos erros...Dizem que na carne esquecemos todos os
males, apagando-os da memória.

Retornar ao plano dos homens não seria a única solução


para meus sofrimentos, digno mentor?

-- É grave engano pensar que refugiando a consciência na


amnésia, você está assegurado contra os malefícios que
reverberam do passado. O pretérito não pode ser
simplesmente olvidado, pois não é mera coletânea de
inconsistentes imagens amealhadas na retina espiritual, é
força poderosa a se refletir no presente, em forma de
alegria ou dor, conforme o arremesso efetuado. Não
podemos deter-lhe o impulso, atirado qual bólido veloz,
porém reorientar sua trajetória, minorando-lhe os efeitos e
cuidando de granjear renovados bens para o futuro.

Exerça a complacência consigo mesmo, admitindo que sua


tarefa foi executada a contento, em que pesem as
dificuldades íntimas e o fim dramático que impôs à vida.
Embora nada justificasse seu ato danoso contra si mesmo,
esteja ciente de que o Senhor nos permite as oportunidades
de refazimento e de regeneração, bastando que você siga
com boa vontade os caminhos que os nossos irmãos lhe
indicam, agradecendo a Deus
357

pela valiosa ajuda que eles lhe trazem, pois reafirmamos,


far-lhe-á muito bem à alma o recolhimento na humildade.

Eu também não fracassei no intento de ajudá-lo? Não pude


impedi-lo da derrocada final e sentime também um falido.

Desesperado, recorri ao socorro das esferas mais altas,


porém as nobres entidades que nos assistiam o
cumprimento do ideal, também tiveram que deixá-lo
entregue às reverberações dos próprios equívocos, pois
eram furtos de inadequados sentimentos de orgulho ferido.
A lição se faria por caminhos mais longos e infaustos,
infelizmente. Depois de vê-lo estirado na morte infame,
junto com os obreiros do nosso plano, ainda tentamos
desvencilhá-lo dos restos mortais, sem sucesso. Você
esteve, meu amigo, por largo período atado às vestes
orgânicas em inadequado processo de conservação,
nutrindo-o de agonias indescritíveis cujas lembranças,
graças à misericórdia divina, você recolheu nas camadas
mais profundas do inconsciente.

Desesperançado, ingressei-me nas caravanas de socorro


que operam no vale dos suicidas, certo de que esta seria a
sua direção, aguardando que o tempo o bafejasse com o
desprendimento do espírito. Precisava cumprir a contento a
tarefa da qual me incumbira e ansiava por conquistar o seu
perdão para os meus clamorosos e remotos erros. Sua
condição contudo, fazia-se muito mais grave do que quando
entrara na carne, e o alvissareiro futuro de paz que juntos
almejáramos, se desfazia mediante seu desastre íntimo.

Sejamos contudo, fortes o bastante para enfrentar as


próprias fraquezas, reconhecendo-nos carentes da
misericórdia divina, o que nos fará muito bem à consciência.
E sobretudo, trabalhemos pela paz e pela vitória do bem,
angariando medicamentos seguros para a superação de
todas as nossas dores, meu amigo. Igualmente não as
tenho, e muito maiores?

-- Vejo agora o quanto lhe devo...Não detenho méritos para


receber tamanha dedicação e amizade. Reconheço que se
algo realizei na vida, foi graças à sua sabedoria suplantando
minhas incapacidades. A memória se me aclara e posso ver
o passado, identificando-o como conselheiro fiel e
ponderado, o amigo de todas as horas. Sinto tê-lo guardado
tanto tempo como terrível inimigo a quem devia temer ou
liquidar. Mas hoje sei que minhas pacas conquistas lhe
pertencem, e não encontro palavras para agradecer-lhe...

-- Nada mais fiz do que minha obrigação, Alberto. E não me


impute virtudes que ainda luto por conquistar – respondeu
Heitor, com humildade. – Não mereço a sua gratidão, pois
como lhe falei,

358

visava ao saneamento de meu nefasto passado, e tampouco


vim em busca de reconhecimentos que não posso suscitar,
mas sim recolher o seu precioso afeto, pois preciso do
aprazimento do seu amor para cicatrizar as profundas
feridas que ainda trago na consciência. O pretérito ainda
nos macula, distanciando-nos dos sentimentos verdadeiros
de fraternidade...

Neste ponto do desenvolvimento das confabulações, como


Heitor silenciasse, ousei interferir com as informações que
detinha, colaborando como convinha:
-- É bom que você saiba, Alberto, um pouco mais do que lhe
ocorreu após sua morte, embora muito já lhe tenhamos
revelado.

Após largos períodos de indescritíveis agonias, jungido ao


corpo embalsamado para inadequada veneração dos
homens da Terra, você finalmente foi recolhido às Cavernas
do Vale do Suicídio pelas mãos valorosas de Heitor. Ali você
dormiu o sono dos aflitos por alguns anos, até que seu
prestimoso amigo efetuou o seu resgate para a nossa
colônia, há pouco tempo, quando iniciamos a tarefa de
soerguê-lo para a vida espiritual. Convém inteirar-se de que
neste intervalo, você passou por rápida e frustrada
investida na carne, a fim de alijar morbíficas emanações
que lhe envenenavam a intimidade psicossomática. Sem
condições de permanência no útero materno, foi abortado
na primeira oportunidade, contudo o processo lhe foi
benéfico recurso para a pronta recuperação e sem essa
providência divina, você ainda estaria preso nas malhas da
inconsciência, meu amigo.

-- Sinto pelo dissabor que causei a todos e peço a Deus que


os recompense. Não sou merecedor de tamanha dedicação
e amizade – respondeu Alberto, com submissa inflexão na
voz, profundamente sensibilizado diante dos novos informes
que lhe clarificavam a penosa, porém lídima situação. –
Esforçar-me-ei para corresponder a tamanha dádiva com a
reforma sincera dos equivocados sentimentos...

Alberto se calava em atitude de profícua reflexão. Profundo


silêncio reinava no cenário de nossas altercações. Todos os
fatos estavam finalmente esclarecidos e todas as chagas do
passado, estampadas e expostas com clareza no campo
cirúrgico de nosso enfermo. Heitor, o cirurgião principal,
auxiliando-nos no delicado ato operatório da alma, com
humildade se imiscuía em seu próprio processo, fazendo-se
ao mesmo tempo alvo de sua operosa ação.

Envolvido em sacrossantas emoções que não ousávamos


interromper,

Heitor,

enovelando

poderosas

energias

ectoplasmáticas, transmudou-se vagarosamente no Cardeal


da

359

Cunha, mediante fantástica operação de metamorfose


psicossomática. Ajoelhando-se em uma das pernas, curvou-
se diante de Alberto, proferindo em sensibilizadas palavras:

-- Filho, rogo-te o perdão sincero pelos intensos males que


causei à tua felicidade e daquela que te devota inexcedível
amor, em passado ignominioso, o qual desejo soterrar
definitivamente sob o beneplácito da misericórdia divina.
Com a alma assoberbada pelos insumos do ódio, semeados
em tantos séculos de ignorâncias e crueldades, desejo
renovar-me diante daqueles a quem tanto ofendi. Anseio o
valioso prêmio de tua complacência, embora não o mereça
de fato, a fim de alijar da alma o pretérito escabroso,
permitindo-me continuar a jornada do espírito na
retaguarda de teus passos.
Alberto, de inopino, domado pelas mesmas portentosas
forças que se irradiavam de Heitor, transformou-se
igualmente, vestindo-se do porte garboso de Bartolomeu.
Vertendo da alma sinceros sentimentos que o nimbavam de
suave paz, retorquiu:

-- Não posso perdoar-te, magno mentor, pois não encontro


mais a ofensa nas entranhas escuras de meu ser. Hoje sei
que foi ilusão senti-lo como o inimigo atroz, quando eras na
verdade, apenas o necessário instrumento da lei, investido
de força corretiva, pois em meus execráveis desmandos eu
não merecia melhor tratamento por parte daqueles a quem
ofendia pela indignidade das atitudes. Alimentado por
vaidades imensas, mercadejando ignóbeis sensações
carnais, e transportando ainda as mazelas das crueldades
cometidas no pretérito de guerras, que mais poderia
esperar da vida e dos companheiros de jornada?

Levanta e deixa-me chamá-lo de meu pai, meu irmão, meu


amigo. Deixa que eu me curve diante de ti, agradecendo-te
todo o bem que, de teu amoroso coração, emanaste a meu
favor, sem que eu o merecesse. Devo-te minha vida, minha
glória, meu nome...

Envolvidos por diáfana luz, ambos se abraçaram genuflexos,


debulhando copiosas lágrimas, com as almas desfeitas em
sublime amor. Sob o impacto de poderosas energias divinas,
transubstanciavam-se e vimos Alberto luzir pálida chama no
coração. Era o sinal de que finalmente, superando as
chagas do ódio que transportara por longos anos, redimia-
se diante de Deus e da própria consciência.

As preciosas tertúlias com Heitor chegavam ao fim,


redundando em valorosos proventos para ambos. Enfim, as
agruras do passado encontravam sua cura real na
intimidade consciencial de seus protagonistas, e as algemas
do ódio se

360

convertiam em sacrossantos laços de puro amor, fundindo-


os em verdadeira irmandade.

Se o homem comum conhecesse a força curativa do perdão,


apressar-se-ia a praticá-lo sem restrições, escusando com
sinceridade os inimigos, por maiores que lhes sejam as
faltas.

Prefere contudo, alimentar perigosas nódoas de mágoas,


permanecendo na senda da vindita, como se a destruição
do inimigo pudesse lhe reconfortar a sede de justiça.
Grande equívoco! Não é possível derruir um oponente, e a
infelicidade alheia jamais endossará nossa alegria, pois a lei
somente nos permite o júbilo na exata medida em que o
distribuímos.

Agradecidos ao Senhor, sublime médico de nossas almas,


em muda oração, suplicamos para que o fel do ódio
abandone definitivamente o coração humano, cientes de
seus imensos males, capazes de envenenarem os séculos,
exigindo-nos árduos esforços em sua superação.

Reservadamente demandamos o exterior, sem despedir-


nos, pois as emoções nos embargavam as palavras.
Devíamos deixá-

los para que os sagrados sentimentos que os envolviam,


operassem o divino milagre da cura do espírito, quando o
amor se desabrocha com seu ilimitado poder de
regeneração.
361
32
capítulo

ENFIM, O TRABALHO

“Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também.”

Jesus – João, 5:17

É admirável como a sabedoria divina transforma o ódio em


pura afetividade, unindo os maiores desafetos em laços de
genuína fraternidade, através do trabalho regenerador e do
perdão. Somos protagonistas de grandes erros e enormes
males, porém a lei é profícua em corrigi-los na paciente
esteira do tempo, convertendo-os em tesouros para a
eternidade. E torna-se compreensível como o amor é
benéfica força operante da alma, capaz não somente de
precaver-nos de enormes dores, como também de sanar
todos os prejuízos granjeados na semeadura de crueldades,
sem qualquer possibilidade de fracasso.

Entendíamos, observando nossos amigos e suas agruras nos


proscênios terrenos, como o espírito transporta consigo as
mágoas por tempo indeterminado, aguardando soluções
definitivas na senda do Bem. E como o ódio é força
perniciosa que se volta sempre sobre quem o alimenta,
lesando-o de forma muito mais grave do que o alvo de suas
intenções. Prolifera como erva daninha em nossa intimidade
psicossomática, roubando-nos o bem estar e a paz, não nos
abandonando até que as luzes das realizações espirituais a
extirpem verdadeiramente de nossos cenários interiores.
Como um pesado grilhão, dificulta-nos a caminhada
evolutiva, cerrando-nos as portas do progresso e
postergando nossa conquista dos lídimos tesouros divinos.
Somente a energia curativa do perdão ou a escola da dor
podem saná-lo verdadeiramente, consumindo-se para isso,
bastas vezes, largas porções de nosso destino. São
reflexões que nos conduzem a conclusões relevantes, e nos
fazem calar com sofreguidão todo impulso de crueldade que
ainda teima em dirigir-nos os atos e habitar-nos as
intenções, a fim de poupar precioso tempo e dores na
própria edificação rumo às supremas realizações do espírito.

Heitor se despedira com a promessa de futuro reencontro, e


não tivemos mais notícia do magno amigo, embora a
saudade

362

antecipadamente já nos acuasse o coração no desejo de


revê-lo em breve. Certamente outras prementes
necessidades o convocavam ao trabalho nos planos
superiores, e não nos competia retê-lo em nossa colônia,
local pouco aprazível para as entidades elevadas. Tampouco
nos proporcionou notícias mais concretas de Catherine,
certificando-nos de que não era ainda o momento, ou não
era mais pertinente retornar à sua história.

Alberto acomodava-se finalmente, no máximo equilíbrio


possível, e suas exasperadas forças psíquicas deixavam
paulatinamente seus inadequados extremos para oscilarem
em busca da normalidade, encontrando a acalmia
necessária ao seu bem estar. As lições de humildade
calaram-lhe fundo na alma, reverberando-se em sua
consciência em forma de ensinamentos imorredouros. A
bonança enfim, bafejava suas paisagens conscienciais,
aplacando-se as tempestades das imensas culpas e
silenciando em definitivo suas acerbas angústias. Sem
dúvida que ainda havia importantes teores vibratórios
remanescentes em seus tecidos perispirituais, entretanto
doravante não lhe perturbariam sobremaneira os passos na
erraticidade, e somente poderiam ser completamente
drenados através dos filtros da carne, em futura
reencarnação. A vida exige-nos perfeição nos moldes
estabelecidos pelo Criador, por isso a substância divina que
nos compõe, não pode subsistir retendo em suas malhas
resíduos de desamor e dissonâncias de fragorosas culpas,
compelindo-nos às provas e expiações na matéria até que
as virtudes se nos fixem como automatismos natos, na
precípua aventura de reconstrução de nós mesmos.

Detendo definitivamente o subjugo aos embalos enfermiços


da autodestrutividade ou da supercompensação do eu,
nosso amigo calou o menosprezo a si mesmo, frenando as
lamúrias diante dos sofrimentos a inibindo a afanosa busca
de inadequadas exaltações para compensação de sua
apoucada personalidade. Felicitava-o agora a certeza de
que suas dores se justificavam perante a precisa
identificação dos graves delitos do passado, e o
reconhecimento de que o orgulho lhe fora na vida o grande
vilão, responsável por todos os seus sofrimentos. Não
reclamava mais direitos imerecidos, assinalando-nos que
reingressara enfim, no caminho da temperança
indispensável à felicidade. Ciente de suas enormes
carências espirituais, perante a nova realidade que
vivenciava, desejava agora albergar a mensagem
evangélica como norma indispensável para a conquista dos
elevados patamares da evolução.
363

A alquimia do amor efetuara profundas transformações, não


somente em seu psiquismo, mas também em sua aparência
externa. Seu perispírito se restituía completamente,
moldando-se em perfeita mistura dos traços alimentados do
passado com os do presente, sanando-lhe a minguada
compleição. Uma nova vestidura exterior passou a lhe
enfeitar a alma de suaves contornos masculinos,
harmonizando-lhe as formas, demonstrando-nos que somos
potentes criadores de nós mesmos, e temos por herança
divina o direito à beleza, desde que a mereçamos,
abdicando-nos de usufruí-la unicamente para o deleite da
vaidade.

Imensamente agradecido à vida, Alberto afinal podia sorrir


aliviado, contagiando-nos com sua singela alegria. Os
antigos familiares e amigos continuavam ausentes, porém
novos companheiros se lhe compunham o séquito de
relações, enriquecendo-o com a benesse de fraternidade
sadia, estimulante de propósitos elevados. Envolvido por
sacrossantas motivações, prosseguia agora seus estudos na
escola de educação espiritual que frequentava, com
renovado entusiasmo, incrementando sobremodo seu
interesse nas questões pertinentes a Deus e à magnitude da
criação. Preciosos livros lhe chegavam às mãos,
alimentando-o com o Pão Divino que sacia para sempre.

Era-nos recompensador vê-lo engendrado na correta senda


da regeneração, distanciando-se a cada dia de suas
imensas angústias. Agradecíamos a Jesus pelo êxito de
nossa tarefa socorrista, sem pretender mérito algum no
processo, pois sabíamos estar apenas cumprindo com a
operosa vontade divina, da qual somos meros agentes.
Nosso objetivo fora alcançado depois de prolongado, porém
profícuo labor. No entanto, faltavam-lhe ainda conquistas
indispensáveis para concretizar de fato sua melhora,
encaminhando-o para a alta assistencial. Como auxiliares do
processo cirúrgico, competia-nos agora cerrar-lhe os tecidos
abertos na alma, propiciando-lhe o completo refazimento.

Na terapia orientacional que empreendemos, a interposição


de dois recursos é imperiosa para se efetivar a completa
assistência ao enfermo, depois de atender às suas primeiras
necessidades: o trabalho e a instrução. Esta última já era
objeto de seu desvelado interesse, faltando-lhe o primeiro,
indispensável ferramenta de auto aprimoramento. Com
estes dois estupendos lenimentos do arsenal terapêutico
divino, alcançamos a excelsitude das conquistas evolutivas.
O labor, quando realizado com desinteresse em favor do
próximo, converte-se em altruísmo.

A instrução aplicada em benefício da ignorância alheia,


torna-se sabedoria. Compõem assim as duas asas da
angelitude,

364

imprescindíveis em nosso vôo rumo ao infinito. Somente


mediante o franco exercício destas duas poderosas
alavancas da evolução, é que se finaliza a tarefa
assistencial, quando o assistido se converte em assistente.

O trabalho tornava-se agora para Alberto medicamento


imprescindível e era preciso sutilmente, incentivá-lo no seu
devido uso, permitindo-lhe porém, a liberdade na escolha
dos próprios caminhos, obedecendo aos seus pendores
íntimos. As sutis forças da vida tratariam de conduzi-lo ao
campo de expressão de suas necessidades, competindo-nos
apenas afinar a intuição para ouvi-las, e orientá-lo
devidamente no momento preciso.

A praxiterapia em nosso plano, segue molde semelhante à


empregada no mundo carnal, porém no nível em que
estamos, o labor mais importante não é o que
desempenhamos em prol do próprio interesse, porém
aquele que realizamos em benefício de outrem. A fim de
efetuarmos a correta tecelagem do panorama mental
distorcido do passado, dissolvendo concreções psíquicas
doentias, o serviço deve atender aos pendores e
necessidades de aprimoramentos individuais, mas não à
fome de ganhos pessoais e objetivos puramente egóicos.
Não deve servir à autopromoção da vaidade, ou ser veículo
de exibicionismo de competência, porém realização de
precípuo benefício humanitário. Deve inserir-se no contexto
das necessidades coletivas e para isso precisa ser
especializado em funções complementares, evitando-se os
contra produtivos entrechoques da competição. O salário
mais valioso para seu executor é a desagregação de ondas
mentais enfermiças, sanando chagas retidas do pretérito e
angariando forças curativas para o próprio equilíbrio.
Recurso indispensável em qualquer tratamento, a
laborterapia consolida ensinamentos e fixa lições,
habilitando o espírito para o exercício da vida no concerto
dos povos, junto aos quais caminha na evolução, pois como
determinou o Senhor, não se pode progredir isoladamente.
Aquele que segue à frente deve sempre se voltar,
trabalhando pelos que permanecem na retaguarda, pois não
há felicidade possível para o hedonista nos paramos
celestes.

Para a maioria dos encarnados, a faina ainda é uma


imposição da existência atendida como obrigação, e da qual
eles gostariam de evadir-se a qualquer custo, quando lhes é
móvel de ganâncias injustificáveis. Em nosso plano contudo,
o serviço é função social, o qual aprendemos a atender por
amor ao bem comum, fazendo-nos peças indispensáveis ao
organismo coletivo, e habilitando-nos para a conquista de
todas as qualidades necessárias ao crescimento espiritual.

365

Em decorrência de seus antigos pendores, Alberto


frequentemente nos dirigia insistentes pedidos para
conhecer nossos veículos voadores, desejoso de estudar-lhe
o mecanismo de funcionamento, convencido de que algo
poderia fazer para lhes impor reformas e melhorias. Ansiava
de fato pelo trabalho e julgava que deveria continuar
exercendo sua função no campo da mecânica arquimediana,
onde detinha sua vocação, empenhando-se em servir às
máquinas das quais sentia falta.

Minha intuição contudo, dizia-me fortemente que este não


era o seu caminho, pois podia sentir-lhe o coração vazio das
expressões do afeto, indispensáveis à vivência equilibrada
do espírito.

Recomendava-lhe que aguardasse pacientemente, pois o


destino lhe determinaria o roteiro de atividades, o qual não
tardaria a se manifestar desde que ele estivesse preparado
e disposto ao serviço. Competia-lhe por ora estudar, o que
devia fazer com empenho e boa vontade.

A vida fluía vicejando oportunidades, permitindo ao nosso


amigo

enriquecer-se

de
nobilitantes

valores

culturais,

sedimentando-lhe a sabedoria. Inúmeras vezes entretecia


comigo ricas considerações, inteirando-se de
conhecimentos preciosos referentes à dinâmica espiritual da
vida, o que lhe despertava antigos interesses na área da
Teologia. As grandes interrogações que nos premem o
existir acossavam-no, excitando-o a salutares perquirições e
pesquisas. E frequentemente, encontrava-o admirado diante
dos novos ensinamentos, bafejando-lhe o frio intelecto com
as calorosas luzes das verdades sublimes, que nos aquecem
a alma e reconfortam-nos na caminhada evolutiva.

Diluía assim paulatinamente, os antigos interesses que


trazia da aventura terrena, estendendo os horizontes da
mente para além das acanhadas instâncias de outrora.

Até um dia em que, mencionando-lhe estar atendendo os

“cianóides” mostrou-se muito curioso em conhecer esses


enfermos, pois ouvira falar que nossa colônia os albergava
em grande número. E não tardou para que, encontrando-o
desocupado, convidasse-o para nos acompanhar em uma de
nossas atividades corriqueiras, a fim de que pudesse se
inteirar mais de perto de nossa rotina de trabalhos.

Chamamos aqui de cianóides, os suicidas assistidos em


nossa colônia, motivados pelo vício do tabagismo. Em
decorrência da forte cianose (Termo comum de uso médico
que designa a coloração azulada da pele, principalmente
das extremidades, decorrente da presença de elevados
teores de gases carbônicos no sangue) que se lhes estampa
na configuração perispiritual, emprestando-lhes o
característico tom azulado, receberam essa denominação
pelos nossos enfermeiros,

366

frequentemente também chamados de “homens azuis”,


embora nossos superiores relutassem em adotar tais
alcunhas como de uso oficial, sendo de fato cognominados
suicidas tabagistas.

Os fumantes inveterados da Terra desencarnam de fato


como autocidas e são atendidos em nossa colônia, em
enfermarias especiais, pois frequentemente são resgatados
do Vale dos Suicidas, onde estagiam por tempo
indeterminado, porém normalmente prolongado. Não há
quem duvide de que o estranho hábito de aspirar
inadequados gases tóxicos do tabaco, promova graves
males ao organismo físico, impondo-lhe patologias
destrutivas e minando-lhe as forças vitais. As doenças
decorrentes do tabagismo são já muito bem descritas pela
medicina terrena, entretanto poucos se dão conta de que tal
condição é capaz de atravessar o túmulo, acarretando
sérios danos à vida do espírito na erraticidade.

Demandamos importante nosocômio de nossa cidade, como


sempre acompanhado de Adelaide e agora de Alberto, que
atendia à sua curiosidade em conhecer os estranhos
homens azuis. Adentrando a instituição, sempre repleta de
trabalhadores e enfermos, dirigimo-nos para o seu subsolo,
onde em local isolado e pouco aprazível, localiza-se a
Câmara dos Cianóides. Uma grande sala, hermeticamente
fechada, permitindo reduzida renovação do ar ambiente,
acomoda enorme número deles, trescalando forte e
intolerável emanação recendente a tabaco.
Necessita-se munir de suficiente autocontrole, pois aqueles
que não se habituaram ao estranho vício experimentam
fortes náuseas em contato com o ambiente. Adelaide já se
achava parcialmente adaptada e eu, como ex-fumante, não
encontrava grande dificuldade no local. Alberto contudo,
mesmo advertido do incômodo, exprimia sua natural
repugnância, ensaiando náuseas incoercíveis. Máscaras
especiais são usadas pelos que assistem esses doentes, a
fim de não se contaminarem com suas nocivas exalações,
porém não são capazes de completo isolamento, exigindo-
se força de vontade para a permanência no local.

A necessidade de se manter indivíduos enfermos em tão


inóspita atmosfera explica-se pelas exigências patológicas
que seus vícios, arregimentados ao longo da vida, impõem
às suas delicadas constituições psicossomáticas. Habituados
à inalação constante dos venenosos insumos do tabaco,
encontram como único e fugaz alívio a permanência em tão
insalubre salão, impregnado dos eflúvios pestilentos
emanados por eles mesmos, satisfazendo a doentia
dependência arquivada no perispírito. Aí

367

permanecem por tempo indeterminado, despendendo


valiosas oportunidades da rica vida espiritual, agastados na
vivência de aflitivas sensações, algemados às
consequências da própria imprevidência. É lamentável e
incompreensível a ignorância do homem moderno, deixar-se
dominar desta forma por tão ignóbil vício, mesmo ciente dos
grandes males que infringe à sua organização.

Dirigindo meu olhar para o passado, envergonhava-me


perante Deus e a própria consciência, por ter sido um deles,
entregando-me a tão aviltante a atoleimado prazer. A duras
penas suplantara a triste condição e sentia-me compelido a
colaborar com os inditosos irmãos da retaguarda,
relembrando os benefícios recebidos no passado. Adelaide,
por extremada abnegação, acompanhava-me diariamente
no penoso labor, dominando com boa vontade o intenso mal
estar que o contato com o repugnante lugar lhe suscitava.
Alberto titubeava, porém não declinou da intenção inicial,
dispondo-se a nos seguir.

Nossa tarefa consistia em aplicar aos enfermos ali reunidos,


passes de evacuação miasmática, fazendo-os drenar os
remanescentes vibratórios das toxinas do fumo ainda
impregnados no corpo perispiritual. Todos, desencarnados
por patologias próprias do tabagismo, mal conseguem
respirar e, hebetizados, não se dão conta da própria
condição em que se encontram.

Muitos suplicam por cigarros em franco desespero,


enquanto outros, em afligentes ataques de loucuras, exigem
por eles. Alguns logram, mediante automática e ingente
operação ideoplástica que lhes rouba preciosas energias
psíquicas, mentalizar cigarros, os quais imaginam tragar,
desfrutando enganoso deleite. Todos vivenciam a ideia fixa
de fumar, como única solução para as suas angústias, triste
obsessão da qual demandam longo período para se
desvencilhar, causando sérios prejuízos aos seus progressos
espirituais.

Possuídos de lastimável e imensa penúria orgânica,


demandam largo período de recuperação nestas
enfermarias especializadas. Os delicados tecidos
pulmonares perispirituais, seriamente lesados pela
intoxicação nicotínica, imprimem-lhes pesadas e aflitivas
angústias respiratórias, dignas de pena para quem os
assiste. Alguns mas conseguem conversar, dominados pela
dispneia e quando o fazem, é para suplicar por cigarros,
como se fosse tudo que precisam para se acalmar. Triste
condição que nos leva a meditar no imenso disparate de tão
nefasto vício ao qual o homem da Terra se atira com avidez,
sem dar-se conta do tamanho malefício que se está
infligindo. O perispírito é

368

sobremodo sensível às substâncias nocivas e inadequadas


que usamos em demasia quando na carne, fixando-as em
forma de aguilhões vibratórios, exigindo-se árduos e
prolongados tratamentos para bani-los. O corpo físico,
confeccionado em adequada robustez, é capaz de maior
resistência a esse dardejamento químico aviltante, porém
com a morte os males que nos ocasionam, agravam-se
devido à tenuidade da tessitura psicossomática,

ampliando-se

seus

assoberbados

efeitos

negativos, coagindo o incauto viciado a desequilíbrios e


sofrimentos ainda maiores. Após longos anos de
permanência em tais enfermarias, todos ainda continuam
registrando o dano nas malhas perispirituais, imprimindo-as
depois no futuro corpo físico ao reencarnarem,
estabelecendo enfermidades de difícil remissão, como a
asma brônquica, as fibroses idiopáticas, os tumores, as
pneumonias de repetição e outras patologias pulmonares
crônicas.
Decididamente, em sã consciência, não se pode
compreender tamanha estultice do homem em se
comprazer aspirando os nocivos dejetos químicos da
combustão do tabaco.

Nossos dirigentes nos informam que o inadequado costume,


aprendido dos indígenas americanos, somente se justifica
como hábil mecanismo utilizado em seus primórdios, pelos
espíritos obsessores dos encarnados, interessados em lhes
sugerirem hábitos nocivos com o firme propósito de lhes
imporem prejuízos.

Posteriormente, retornando à vida física, incorporaram o


mesmo mal que imputavam às suas imprevidentes vítimas,
perpetuando assim o desregramento que se transformou
em crônico vício social.

Embora a maioria dos tabagistas, após a morte física,


encaminhe-se para o Vale dos Suicidas, muitos permanecem
na crosta planetária, jungidos aos encarnados, aos quais se
consorciam em doentio conúbio obsessivo, a fim de
continuar o sórdido prazer induzindo a sua perpetuação,
compondo assim outro lamentável panorama das tristes
consequências de tão estranho costume.

Observando a infausta condição desses enfermos, não


podemos deixar de lançar um apelo àqueles que ainda
residem na carne e que detém a condição de abandonar
desde já o inadequado hábito, evadindo-se a tempo, dos
implacáveis sofrimentos pós-morte. Não há esforço que não
compense nosso bem estar no mundo espiritual,
permitindo-nos a aquisição de importantes acervos
evolutivos, habituando-nos a vivência no máximo equilíbrio
possível. Contudo, sabemos que muitos não responderão a
estes nossos ditames, e somente aqui os
369

compreenderão, pois a vida na matéria nos inunda por


vezes, da ilusão de que importa apenas o presente, e as
consequências de nossos atos no porvir não nos dizem
respeito. Seguramente seus padecimentos serão motivos de
imensos, porém tardios arrependimentos a se refletirem em
futuras reencarnações.

À medida que terminávamos os passes de drenagem, os


enfermos vertiam vômica repugnante, mal cheirosa, pela
boca e narinas, após acessos de tosse incoercíveis,
requerendo imediata limpeza a fim de não sufocarem com
as próprias secreções. Sem conseguir dar conta de atender
a todos, fazíamos o que nos era possível. Alberto, embora
constrangido e expressando aversão diante da triste
condição dos enfermos, presenciava nosso ingente esforço,
e timidamente, tomou nas mãos os apetrechos de limpeza,
e passou a nos ajudar na difícil empreitada.

Profundamente sensibilizado pelos padecimentos que


observava, finalmente o víamos decidido ao trabalho, pois
no dia seguinte me procurou oferecendo-se para a tarefa,
caso o julgássemos em condições para isso. Prontamente
recorremos à direção do hospital, requerendo sua inscrição
entre os trabalhadores da instituição, admirando sua íntima
disposição de dedicar-se ao árduo empreendimento. Assim é
que Alberto se fez um auxiliar da enfermaria de ex-
tabagistas, sua primeira tarefa no mundo espiritual.
Aceitando com boa vontade o singelo, porém difícil labor,
aos poucos foi superando a repugnância que lhe suscitava,
vencido pela consternação diante de tanto sofrimento. E em
breve solicitou-me orientação, demonstrando interesse em
estudar com mais detalhes a condição dos pacientes que
assistia.

Enfim víamos que o amigo encontrava seu lugar em nossa


comunidade de serviços aos semelhantes, e com humildade
anuía à imposição do destino, embora muito distanciado das
vocações que ainda estuavam de seus antigos pendores,
advindos de suas últimas experiências terrenas.

Felicitando-o pela iniciativa, dizia-lhe:

-- Acreditamos sinceramente que agora você está


atendendo realmente às suas mais prementes necessidades
espirituais, Alberto. Sentimos na verdade, que seu coração
está saturado das máquinas, e anseia pelos valores dos
sentimentos, por isso lhe convém fortemente dedicar-se
àqueles que precisam mais do que você, como roteiro
seguro de crescimento espiritual.

Temos urgência em desenvolver as asas do espírito, feitas


de amor e sabedoria, meu amigo, e somente o empenho em
tais atividades, desprendendo-nos do secular comodismo,
pode nos favorecer o aprimoramento dos instrumentos
espirituais

370

indispensáveis ao vôo para o infinito. O refinamento de seu


mundo emocional é no momento necessidade maior do que
o desenvolvimento de aparelhos que atendam ao conforto
humano, embora também estejam indiretamente, a serviço
do nosso bem estar espiritual. Por isso ficamos felizes por
vê-lo na senda que nos parece a mais acertada,
compreendendo a extensão dos ensinamento que lhe
chegam.
-- É verdade, devo confessar, Adamastor – respondeu algo
aliviado, por estar se engajando em nossas atividades,
devolvendo à colônia os benefícios recebidos. – Apesar das
imensas dificuldades, sinto uma alegria que nunca pude
experimentar na vida. Já estou me habituando ao serviço e
encontrando imenso conforto íntimo, não me permitindo a
mínima dúvida de que este é o meu caminho e minha
necessidade maior.

Adelaide congratulava-se comigo ao ver que nosso assistido


finalmente iniciava passos seguros rumo à concretização de
sua melhoria e à sua transformação final em assistente.

A tarefa ensinar-lhe-ia sobretudo, a valorizar a vida na carne


e o respeito pelo precioso bem que é o corpo físico, ao qual
devemos nossa evolução. Os suicidas necessitam desta
importante lição, prevenindo-se de futuras recaídas em
posteriores reencarnações; por isso o trabalho junto aos
companheiros de igual desdita, resgatados no mesmo
ergástulo de dores de onde proviemos, é nosso mais
sagrado recurso de recuperação, e depositário da gratidão
às bênçãos que a vida nos favorece.

As melhoras de Alberto se consolidavam rapidamente a


cada dia enquanto nos entregávamos às tarefas socorristas
nas intensas atividades de nossa colônia. Crescíamos todos,
arquivando tesouros para a eternidade, entretecendo
sempre diálogos proveitosos para nós, quando trocávamos
observações pertinentes ao nosso trabalho. Alberto se
esmerava na aquisição de conhecimentos que
estabilizassem sua reforma, e se empenhava no labor com
dedicação, adestrando-se no amor cristão.

Alimentando salutar entusiasmo, aos poucos se envolvia


com os homens azuis, nutrindo-lhes verdadeira afetividade,
e assistindo-os com desvelado interesse. Frequentemente
recorria ao nosso modesto conselho em busca de
providências para determinados companheiros que lhe
requisitavam recursos diversos, às vezes pedidos
impossíveis de serem atendidos em benefício de si mesmos.
Em breve o víamos estudando com afinco o assunto que lhe
motivara a atenção a fim de aprimorar-se na tarefa,
executando-a acima de suas obrigações. E frequentes vezes

371

pudemos presenciá-lo levando a passeio um ou outro


enfermo, com a devida permissão para isso, apoiando seus
hesitantes passos.

Atestando seu progresso, certa feita procurou-me a fim de


que o ajudasse em algumas questões suscitadas pela sua
tarefa.

Bastante modificado, com a mente ventilada por novos e


divergentes interesses, questionou-me:

-- Adamastor, sei que minha dúvida pode não ter


fundamento, porém tenho aprendido em meus novos
estudos, que as enfermidades são todas produtos de nós
mesmos, sendo criações mórbidas de nossos pensamentos
e sentimentos, inadequados à lei de Deus. Vejo extrema
lógica nisso, porém diante dos cianóides não há como negar
que eles adoeceram gravemente pela intoxicação de fator
externo, qual seja o fumo.

Como compreender o fato, diante das evidências


irretorquíveis de nossos ensinamentos?

-- Sua questão realmente procede, meu amigo, e nos faz ver


que você tem avançado em seus estudos, esmerando-se
para atender às necessidades da nova tarefa da melhor
maneira possível. Jesus nos afirmou, com efeito, que não é o
“que entra pela boca que adoece o homem, mas o que sai
dela, pois o que sai procede do coração” (Mateus, 15:11),
isto é, provêm dos nossos sentimentos e pensamentos os
verdadeiros agentes etiológicos de toda e qualquer
enfermidade. Contudo, não podemos deixar de entender
que existem duas vias para se imputar males a nós
mesmos: a via interna e a via externa. A interna responde
pelos danos que procedem de nossas intenções
equivocadas, distanciadas do amor, normalmente
interpostas pelo ódio. Esta via responde pela totalidade de
nossas doenças naturais. A externa é decorrente dos
malefícios que introduzimos no organismo, como aqueles
oriundos dos diversos vícios a que nos permitimos,
inoculando desequilíbrios no nosso delicado mundo
fisiológico. Esta via causa mazelas espúrias, verdadeiros
acidentes biológicos ou doenças artificiais. Na famosa
assertiva evangélica, Jesus se referia ao adoecimento
natural, pois o que ingerimos pode nos intoxicar e danificar
o corpo físico e perispiritual, mas é incapaz de nos adoecer
a alma. O que procede do espírito, em forma de
pensamentos, sentimentos e atos inadequados, é que nos
fere de dentro para fora, representando nossas verdadeiras
enfermidades. Portanto poderíamos completar o
ensinamento evangélico, considerando que o que sai da
boca nos adoece, e o que entra, desde que

372

impróprio à nossa natureza biológica, acidenta-nos o


organismo, perturbando-lhe o funcionamento.
Muitos fatores externos que nos prejudicam o equilíbrio
orgânico são oriundos de agentes planetários, ditos
naturais, como as irradiações nocivas a que estamos
sujeitos, ou mesmo aqueles produzidos pela ignorância do
homem, embora veiculados pelas suas boas intenções,
como por exemplo os pesticidas agrícolas, e as substâncias
tóxicas do quimismo moderno. Outros são produtos que
sabidamente nos danificam, mas nos permitimos usar por
equivocado deleite ou intenção de fuga da realidade, como
são o álcool, o fumo e outras drogas.

Estes, na verdade, refletindo o desleixo pelo nosso bem


maior que é o corpo físico, interagem com as intenções
doentias de nossa vontade e incorporam-se em nossa
intimidade perispiritual, transformando-se em patologias de
caráter misto. Assim tudo se explica dentro da lei de Deus,
pois se os prejuízos que imputamos aos outros se revertem
contra nós mesmos, os danos que infligimos à própria
organização biológica, comprometendo o seu delicado e
preciso metabolismo, se incorporam também na lei cármica,
refletindo-nos como perturbações orgânicas e dores. Não
poderia ser de outro modo, pois do contrário não
aprenderíamos a valorizar o divino santuário físico,
indispensável à aquisição dos bens imorredouros da
perfeição. Assim, continuamos colhendo o que semeamos
no campo de experiências da vida.

Alberto deu-se por satisfeito, prosseguindo feliz nas


atividades que o enriqueciam de preciosos recursos para a
plena recuperação. Finalmente ele compreendia que a
felicidade não consiste meramente na conquista de glórias
efêmeras, ou na construção de patamares onde projetar a
própria personalidade, porém nas atividades mais simples
da vida, desde que as realizemos embasados por verdadeiro
amor ao semelhante. Aí estabeleceu nosso Criador os reais
fundamentos da beatitude e a única possibilidade de
engrandecimento do espírito para a Vida Maior.

Vendo-o perfeitamente integrado à tarefa de enfermeiro,


perguntava-me o que pensariam os encarnados se
soubessem que o herói do passado, feito símbolo grandioso
de uma nação, convertera-se em modesto auxiliar de
enfermagem, prestando serviços humílimos de higiene.
Certamente negar-me-iam qualquer crédito à informação,
julgando-a absurda e inverídica, pois a veriam
completamente inadequada a um homem de gênio, a quem
imputariam tarefas da maior importância, e posição de
destaque no mundo do além. Pois saibam

373

definitivamente, que as vias do espírito não se fazem pelos


refulgentes caminhos humanos, e as portas do progresso se
fecham àquele que se veste de fatuidades com a intenção
de adentrar os elevados patamares da vida. A evolução
caminha para a santidade, e a verdadeira genialidade
somente se conquista com a perfeita comunhão com o
pensamento divino, exigindo do aprendiz de sabedoria, o
domínio da ciência do amor. Os atributos que nos glorificam
não são os do intelectualismo, dado à produção de
comodidades ou erudição, mas os da bondade,
conquistados com a prática do altruísmo, pois somente os
sentimentos moralmente elevados podem nos confeccionar
alegrias perenes, e proporcionar inexaurível potência de
ascensão para a alma.

Compreendam ainda que a morte muda a perspectiva com


a qual enxergamos a vida, e ansiando pela paz verdadeira,
abdicamo-nos facilmente dos transientes títulos que a Terra
nos confere, pois nada é capaz de suprimir em nós, o anelo
pela ventura espiritual. No serviço desinteressado ao
semelhante, Alberto encontrara o caminho para suplantar
suas carências e conquistar o pretendido bem estar íntimo.
E o seguia com enorme alegria. Eis a realidade.

O tempo escoava, proporcionando-nos valedouro roteiro de


ganhos espirituais, quando fato surpreendente interrompia
nossa rotina de trabalhos. A velha Europa, na crosta,
iniciava grave conflito

armado

entre

suas

nações,

prevendo-se

desencarnação em massa de grande número de pessoas


por espaço de alguns anos. O Plano Espiritual se preparava
para o devido socorro aos inditosos guerreiros, requisitando
trabalhadores em todas as instâncias possíveis. Não
sabíamos ainda que a contenda se tornaria o mais
desastroso embate a que o mundo já assistira, a Segunda
Grande Guerra, mas todos podíamos pressentir as mefíticas
vibrações que infectavam a atmosfera planetária, eivando-a
de funestos presságios.

Nossos

alto-falantes
proferiam

melancólicos

apelos,

convocando os homens de bem para o trabalho socorrista


em auxílio à nossa desvalida casa planetária, e os infelizes
irmãos de jornada. Como guardava ainda profundos liames
com o velho continente, onde se demoravam corações
queridos do passado, apressei-me a responder ao chamado.
Mantivera também extensa participação na medicina de
guerra no pretérito, e devia atender à minha consciência
ainda necessitada de ressarcimento de passado culposo.
Suspendia assim meus trabalhos em Portais do Vale e me
preparava para a partida imediatamente. Devia

374

despedir-me com pesar dos queridos amigos, especialmente


de Adelaide e Alberto, com quem ainda compartilhava o lar.

Afeiçoara-me a ambos de modo significativo, lamentando


sobremodo deixá-los, porém a gravidade do momento me
convocava a urgente atividade. A amiga de todas as horas,
sem titubear, manifestou o ardente desejo de acompanhar-
me, e satisfazendo todas as condições mínimas exigidas
para a tarefa, imediatamente se integrou à equipe que se
formava.

Alberto, recebendo a notícia, mostrou-se pesaroso, pois se


nos afeiçoara como verdadeiro irmão, e nos tinha como
únicos amigos com quem compartilhar sua vida íntima. Por
alguns dias andou sorumbático e taciturno, apesar de nossa
promessa de breve retorno e de que seria encaminhado
para compartilhar a moradia com outros companheiros, em
quem poderia igualmente confiar. Porém, dentro em pouco,
fui surpreendido pelo seu insistente pedido, desejando
ardentemente nos seguir na empreitada, ainda que
preocupado em encontrar outro serviçal para substituí-lo na
Câmara dos Cianóides. Argumentava veementemente que
por conhecer muito bem o francês e se servir com certa
facilidade do inglês, poderia contribuir como intérprete nas
enfermarias de socorro, além de ajudar nos cuidados
básicos aos recém desencarnados. Acorremos então a
solicitar a anuência de nossos dirigentes, pois Alberto,
embora já engajado no serviço, até então se encontrava sob
cuidados, e não albergava ainda o título de assistente.

Para nossa alegria, o seu pedido fora prontamente aceito,


fazendo-nos recordar que realmente sua participação mais
expressiva neste empreendimento lhe era bastante
conveniente, em decorrência de seu comprometimento com
as guerras no passado, sendo-lhe importante oportunidade
para o refazimento da consciência denegrida.

Enfim, a Misericórdia Divina o convocava ao ressarcimento


do pretérito, ainda no plano do espírito, com o concurso do
trabalho e da renúncia, convencendo-nos de que no
educandário da vida, a lei sabe dispensar o sufrágio da dor
e prescindir no guante da coerção, para a redenção do
espírito que desperta para a prática do bem verdadeiro, e se
entrega confiante às diretrizes do Evangelho.

375
33
capítulo

NOS BASTIDORES DA
GUERRA
“E ouvireis falar de guerras e rumores de guerras: não vos
perturbeis, porque forçoso é que

assim aconteça; mas ainda não é o fim.”

Jesus – Mateus, 24:6

Iniciamos prontamente os adestramentos necessários à


assistência espiritual na guerra, tendo em vista que Alberto
seria promovido a auxiliar da desencarnação, ajudando-me
diretamente na tarefa de recolher os espíritos nos campos
de batalhas, desde que se adaptasse ao penoso mister, que
exige perfeito controle das emoções diante da visão de
corpos estraçalhados e de espíritos impregnados de pavor.
Nosso amigo no entanto, subordinado à imensa boa vontade
de servir, submetia-se com entusiasmo aos treinamentos,
suplantando em pouco tempo, a completa falta de aptidão
para o inusitado empreendimento.

Nossa colônia reunia grande número de companheiros


dispostos à empreitada, pois habituamo-nos a atender
espíritos em pânico, vivenciando intensas agonias de
mortes traumáticas e portando corpos desfigurados,
tornando-nos especialmente indicados para o serviço
assistencial de guerra. Mentores dos planos superiores
compareciam frequentemente para nos instruir, reunindo-
nos em imensas assembleias, durante os poucos dias em
que nos preparávamos para a jornada. Traziam-nos os
princípios irrevogáveis que deveriam nortear nossa
atividade, afirmando-nos peremptoriamente em iluminadas
preleções, que não se precisava mais de louvor à pátria,
porém de amor ilimitado à humanidade, sendo
indispensável romper os restritos liames que ainda nos
prendiam à nação terrena de origem, transformando-nos em
verdadeiros filantropos. Não haveria amigos para defender

376

e inimigos para atacar, porém companheiros em desespero


para acudir, não nos convindo perder de vista que em
qualquer enfrentamento bélico, todos estão enganados e a
ninguém compete dar maior parcela de razão. Nossas
armas seriam as da bondade e da caridade cristã, e nosso
eficaz escudo, o pensamento constantemente em prece,
sob a intenção do bem, insígnias sublimes que nos fariam
soldados do Cristo e recursos indispensáveis ao bom êxito
da tarefa.

Qualquer vítima seria meritória de iguais cuidados, não


importando sua nacionalidade, pois do lado de cá da vida,
não há adversários ou aliados, sequer estrangeiros ou
compatriotas, porém apenas irmãos em contendas,
merecedores de iguais cuidados. Seria imperioso impedir
que a indignação se nos convertesse em raiva, diante das
barbáries presenciadas, pois se nos deixássemos
contaminar por estas baixas emoções, sintonizar-nos-íamos
com a hostilidade, expondo-nos aos intensos choques
vibracionais do ódio que domina em tais ambientes,
perturbando-nos a ponto de nos incapacitar para o serviço.
Competia-nos assim, como irmãos de uma realidade maior
da vida, compreender e aceitar o homem como um
ignorante dos princípios que regem a criação, infeliz pelo
próprio mal que é capaz de praticar, deixando à lei a tarefa
de julgá-lo pelos seus inconsequentes atos.
Seríamos vergados pelo clamor de muitas dores, agastados
pelos atritos de imensas rivalidades, e abatidos pelo
dardejar altissonante

da

fúria

do

desespero,

porém

que

permanecêssemos atentos e fiéis ao bem, pois invisíveis


entidades angelicais estariam ao nosso lado, sustentando-
nos a fragilidade da alma, trazendo-nos o beneplácito do
Amor Divino para suporte de nossas fadigas e consolo das
desditas humanas. Enfim, altruísmo sincero deveria nortear
nosso trabalho, acima de toda adversidade, combatendo-
nos a acídia que, peremptória, assolar-nos-ia o ânimo.
Trabalharíamos sobretudo para aplacar nos corações dos
homens o potencial de crueldade, semeando sentimentos
de paz, concórdia e fraternidade. Estes eram os lemas
indispensáveis à nossa missão que deveríamos seguir com
profundo e abnegado amor cristão.

A guerra já havia começado e assumia proporções nunca


vistas, assustando-nos a todos diante dos relatos daqueles
que a presenciavam de perto. Era-nos penoso ver o homem
terreno, qual criança rebelde e imprevidente, atear fogo ao
próprio lar, precioso bem que a misericórdia divina nos
concede, em nome de orgulhos injustificáveis e ambições
desmesuradas. A direção

377

espiritual do planeta se apressava para socorrê-lo,


convocando todos os trabalhadores disponíveis. Portais do
Vale, assim como outras colônias, desdobrava-se para
atender aos apelos do Alto e todo colaborador que satisfazia
às condições mínimas exigidas deveria ser aproveitado,
devido à grande extensão das necessidades, pois milhares
de espíritos recém desencarnados jaziam nos campos de
batalhas à espera de urgente socorro, e aguardava-se ainda
o desenlace da ordem de dezenas de milhões de pessoas,
entre civis e militares, até o fim do conflito.

Nossa missão, conforme os treinamentos recebidos,


consistiria no recolhimento desses desencarnados, pois a
maioria deles não podia estar entregue ao relento,
assistindo à decomposição do corpo físico, por não
guardarem deméritos para tais sofrimentos.

Grande curiosidade nos assaltava com respeito aos motivos


de tão descomunal conflagração, e embora se aventassem
causas imediatas para a sua irrupção, nossos superiores nos
advertiam que sua verdadeira origem residia nos orgulhos
nacionalistas, aviltados por intoleráveis interesses
chauvinistas. Os sentimentos humanos, ainda inferiorizados,
acumulam discórdias insopitáveis ao longo da caminhada
evolutiva, desabando em enormes tormentas de ódios,
gerando-se necessidade da deflagração de tais conflitos
expurgatórios. Por isso, esses grandes embates são
comumente, o resultado de hostilidades seculares, que
somente podem ser resolvidas pelo caminho mais afanoso,
ou seja, o enfrentamento fratricida. Embora seja a solução
mais difícil e dolorosa, na luta, os inimigos ainda que a
contragosto, conhecem-se, aproximam suas culturas e
acabam por se fundirem na dor que ambos disseminam,
terminando na compreensão e no apaziguamento de suas
rivalidades. Fato que nos atesta a excelsitude da lei divina,
capaz de retirar ainda que do Mal, realizações imorredouras
para o Bem.

Além dessas causas ocultas, todo conflito humano nunca se


limita à dimensão terrena, mas se estende ao outro lado da
vida, envolvendo ativamente o mundo espiritual, tanto as
esferas superiores quanto os domínios do mal. Enquanto os
planos iluminados, ainda que chorando a desgraça dos
irmãos encarnados, cuidam de lhes amparar a desdita
socorrendo-lhes as necessidades, as regiões tormentosas se
consorciam à maldade, tratando de auferir proventos da
crueldade e da vingança nas quais se comprazem.
Envolvem-se ativamente no conflito, assumindo partido nas
disputas humanas, como se integrassem nações da
dimensão terrena, obedecendo aos mesmos propósitos que
movem o homem na carne. E, muitas das

378

vezes, as querelas terrenas não são mais do que


prolongamentos de atritos que, na verdade, iniciam-se
nestas esferas. Embora não se possa eximir os encarnados
de sua parcela de culpa e de suas equivocadas intenções, a
participação nas trevas é decisiva em tais embates, seja
excitando-os ou servindo-se deles para a execução de
nefandos propósitos. Porém, de qualquer forma, são os
sentimentos ainda barbarizados dos homens que os afinam
com os Planos Umbralinos, mantendo-se-lhes o estreito
conúbio de ignóbeis escopos.

Não podemos olvidar ainda, como já consideramos, que


assim como na Terra os desencarnados se organizam em
grandes comunidades, onde matem os costumes e os
idiomas aprendidos na jornada da carne, configurando no
espaço espiritual os mesmo limites políticos dos países de
origem, em um nível dimensional denominado Espaço das
Nações. As rivalidades oriundas do Plano Carnal atravessam
a barreira da morte e prosseguem nestas regiões, pois os
homens, embora envergando nova roupagem, continuam
portando os mesmos sentimentos que os moviam na
romagem física. Somente em dimensões muito elevadas é
que são suplantados esses nacionalismos, unindo-se os
espíritos pelos imperativos do amor sublimado, aplacando-
se todas as desavenças, e onde os óbices da comunicação
falada são superados pelos intercâmbios puramente
mentais. O Mundo Espiritual inferior destarte, ainda é
dominado por grandes impérios regidos por precária ética
de relações, fixada na involuída moral dos tempos
medievais, na qual ainda se estacionam.

Comandados por poderosas entidades chamadas de


Dragões, compõem exércitos infernais, ávidos de conquistas
e práticas de atrocidades. E também deflagram guerras,
disputando territórios de influências e massas humanas
para exploração de seus baixos interesses. Dirigentes da
Terra, imprevidentes e gananciosos, pensando agir em
nome de suas próprias ambições, na verdade afinados com
esses Dragões das Sombras, respondem às suas
ignominiosas sugestões, excitando-se nos instintos
aguerridos, fazendo da casa planetária uma arena de lutas
sangrentas nos dois planos da vida.
Nossos orientadores informavam que a Segunda Grande
Guerra Mundial na verdade, era apenas uma continuação da
primeira, que prosseguia sem solução na Esfera Espiritual.
Grande número de espíritos, desencarnados no conflito
anterior, reverberava no além os ódios acumulados,
ansiando por revide, acicatando os compatriotas terrenos à
vingança. Menoscabados pelo incontido orgulho ferido e
distanciados da real compreensão

379

da vida, ainda que habitantes do Plano do Espírito, não se


conformavam com a humilhante derrota. Estimulavam
pretensões colonialistas nos companheiros da retaguarda, a
fim de satisfazerem seus propósitos de dominação e
crescimento desmedido. Assim, germânicos, franceses e
ingleses continuavam praticando hostilidades desde o
Mundo do Além, demonstrando-nos que a guerra na
verdade, era motivada pelos inadequados interesses de
hegemonia dos povos de ambos os lados da vida, refletindo
a natureza inferior e orgulhosa do homem onde quer que se
encontre. Embora possa ainda imputar nomes responsáveis
pela deflagração e condução do grande conflito, suas
atuações jamais teriam sido possíveis sem a correspondente
ganância de seus dirigidos, tanto na dimensão física quanto
na espiritual, em perfeita sintonia com seus nefandos
propósitos. Desta maneira, dever-se-ia atribuir tamanha
hecatombe à própria natureza inferior e rebelde do espírito
humano e sua belicosidade, oriunda da instintividade animal
que ainda o domina, no Mundo Carnal ou fora dele.

Os soviéticos, com seu descomunal império, bravateando


domínios para além de suas incontidas fronteiras, eram
outra ameaça que intimidava os gananciosos, na carne ou
fora dela, obstaculizando-lhes imoderadas ambições. A
supremacia da raça perfeita, a imposição de uma nova
ordem social no mundo, e o extermínio contumaz e cruel
das populações consideradas inferiores, eram apenas
motivações secundárias, atrativos engodos, alvitrados pelos
espíritos trevosos, sedentos de execrandas vinditas e ávidos
do exercício de infrenes crueldades.

O bolchevismo judaico, pretensamente consorciado às


aspirações comunistas, completava o errôneo pretexto,
tornando-se alvo das injustificáveis maldades que somente
as inimizades do passado e a própria natureza humana
podem explicar.

A situação havia se agravado sobremaneira desde o


aparente fim da Primeira Grande Guerra e o Plano Espiritual
inferior se agitava assustadoramente, irrompendo mórbidos
e febricitantes sentimentos que somente seriam
apaziguados mediante a disseminação de destruições em
massa. O momento era um dos mais graves já vivenciados
pela casa planetária, que ameaçava ruir sob o guante de
equivocados déspotas, apregoando falaciosas promessas.
Previa-se o envolvimento de cerca de trinta nações da Terra,
segundo as estimativas de nossos dirigentes. Os mais
pessimistas prenunciavam o fim do mundo, contudo
estávamos confiantes e esperançosos no seu
apaziguamento, pois o Plano Espiritual Superior envidava
imensos esforços para minorar

380

ao máximo a grande tragédia. E, seguros de que a Lei


conduz os nossos destinos, sabíamos que não seria
permitido ao homem ultrapassar os limites impostos por sua
própria maldade.

Encarnados e desencarnados, consorciados em interesses


comuns e alimentados por inimizades seculares,
deflagravam assim o conflito, motivado por disputa de
supremacia entre os potentados dos dois planos. Por isso, a
guerra estendeu seus embates para além dos horizontes
humanos, ampliando-se a crueldade, alçada às raias do
absurdo. Enquanto os encarnados, armados de todos os
modos possíveis, estraçalhavam seus corpos em imensa
loucura coletiva, hostes de espíritos barbarizados
digladiavam-se também nas regiões trevosas, juntando-se-
lhes aos horrendos enfrentamentos, utilizando armamentos
semelhantes e ferindo-se mutuamente como se ainda
participassem das mesmas sensações da carne. A Segunda
Grande Guerra tornou-se deste modo, um despautério
fratricida de dimensões inimagináveis pelo historiador
terreno, fazendo-nos ver que tanto no nível individual
quanto no coletivo, continua o homem a disputar quem é
maior, principal causa de todas as suas desditas, uma vez
que tais errôneas intenções levam à destruição do
semelhante, espargindo desgraças ao seu derredor e
semeando infortúnios em seu destino.

Túrbidas nuvens de vibrações negativas enovelavam-se na


atmosfera e nas regiões espirituais imediatas à crosta,
disseminando agruras e comprometendo todo o equilíbrio
do Orbe, contaminando desde os ambientes físicos até os
seus campos magnéticos e espirituais. Contudo, os serviços
assistenciais se intensificavam sobremaneira, coibindo a
extensão do mal.

Desde as esferas superiores que comandam a humanidade,


providenciavam-se
recursos

salvacionistas,

solvendo

as

necessidades imediatas de todos os envolvidos, em ambas


as dimensões, a fim de que a civilização não sofresse
graves danos e o planeta pudesse prosseguir cumprindo sua
missão no cortejo da evolução.

O trabalho urgia e nossos treinamentos não podiam se


estender por muito tempo. Os menos hábeis no socorro
espiritual deveriam seguir os mais experientes, fazendo do
serviço ativo a real prática do aprendizado. Alberto, apesar
da imensa boa vontade, ainda não demonstrava plena
capacidade para a tarefa, porém comprometia-me a vigiar o
seu desempenho, acompanhando-o de perto e
interrompendo sua atuação se a julgasse inadequada a si
mesmo ou aos nossos assistidos.

Em breve partíamos rumo ao Velho Mundo, embarcando em


um grande hospital itinerante. Alberto consumia-se em
imensa

381

curiosidade a respeito dos mecanismos de navegação da


inusitada casa voadora. Pouco podia esclarecer-lhe, porém
informava-lhe estarmos utilizando processo desconhecido
dos homens, pois não trafegamos na mesma dimensão
espacial do mundo físico e usamos propulsão de natureza
eletromagnética.
Viajaríamos por lugares de grande turbulência vibratória e
necessitávamos de proteção para atravessá-los. Como
nossos corações se achassem constritos e carregados de
infaustos presságios, éramos envolvidos por coral de
harmônicas vozes femininas, enovelando melodias sublimes
que nos enlevavam e nos resguardavam dos imensos
choques fluídicos que nos atingiam.

Chegando ao continente europeu, nosso hospital se


estabeleceu em região espiritual correspondente a Portugal,
a fim de nos afastar um pouco dos focos de conflitos
situados ao Norte.

A atmosfera contudo, era angustiante, refletindo as


ominosas emanações mentais dos encarnados, submetidos
ao doloroso transe expiatório. Os vários grupos de
tarefeiros, apoiados pelo hospital de Portais do Vale,
deveriam montar acampamentos móveis nas diversas
regiões onde se desenvolviam as frentes de batalha e
dirigimo-nos imediatamente para a capital francesa, onde
estabeleceríamos nosso posto socorrista.

Alberto pisava o solo francês depois de largos anos,


emocionando-se sobremodo ao contato com o palco de suas
antigas aventuras terrenas. A Torre Eiffel esboçava-se ao
longe, entre

brumas

entristecidas,

despertando-nos

nostálgicos

sentimentos. Espantado diante das profundas mudanças,


admirava-se dos novos modelos de automóveis e
perscrutava os céus em busca dos aeroplanos modernos,
tomado por imensa e incontida curiosidade, atendendo seus
antigos interesses. E como eu, ele desejava rever logo os
locais que lhe marcaram as últimas experiências de vida,
buscar pelos antigos amigos, porém as condições

eram

sobremaneira

adversas

não

mais

correspondiam à época em que ali vivêramos, e tampouco


havia tempo para breve deleite, pois a premência do serviço
nos concitava à atuação imediata.

A Igreja de Saint Philippe de Roule foi indicada para nos


sediar em seu ambiente vibracional. Em complexa
operação, técnicos de nossa colônia armaram uma rede de
proteção vibratória em torno do espaço ocupado pelo
alojamento, a fim de se resguardar o máximo possível de
paz e tranquilidade, necessárias ao desencarnado em
estado de intenso trauma, e que ali seriam recolhidos.

382

Segundo nos informavam, a guerra já assumia proporções


assustadoras, atingindo a península dos Bálcãs, a fronteira
da França, os Países Baixos, o Canal da Mancha e o Norte da
África onde se travavam sangrentos combates. E o conflito
não tardaria a se estender pela Ásia até a Oceania, pois
previa-se que logo os soviéticos e os japoneses se somariam
aos embates. Os homens então haviam feito evoluir as
armas de guerra, aumentando sobremaneira o seu poderio
destruidor. Os alemães estavam em vias de dominar toda a
Europa em quase um ano de guerra, e agora seus inimigos
começavam a se organizar para a reconquista dos
territórios perdidos. O momento era de fato penoso e grave.

Os campos de batalha espalhados por diversas regiões já


contavam com grande número de desencarnados, retidos
em seus restos mortais, aguardando a caridade cristã para
se desvencilharem de suas tristes condições. Os
trabalhadores de nosso plano não alcançavam atender a
todos, e exaustos, desdobravam-se no penoso mister,
requerendo ajuda sem demora. Formadas as equipes de
socorro, demandamos à região de Dunquerque, ao norte da
França, envolvida em horripilante luta. Milhares de soldados
ingleses e franceses estavam sendo acuados em direção à
costa, e cruelmente dizimados pelo poderoso exército
alemão. Informavam-nos que providências urgentes
estavam sendo adotadas para que o comando germânico
aplacasse a intenção de exterminar em massa os aliados,
permitindo a evacuação do que restara de suas tropas para
a Grã Bretanha, evitando que o conflito assumisse
proporções inadequadas e o domínio da Alemanha se
estabelecesse de forma irreversível e desastrosa no
panorama geopolítico dos encarnados.

Atiramo-nos à tarefa, somando nosso pequeno esforço aos


grupos que já atendiam ativamente no local. A
movimentação em nosso plano era intensa, e por todos os
lados víamos espíritos transportando desencarnados, a
maioria em grave estado, a fim de acomodá-los onde fosse
possível. À medida que nos aproximávamos da linha de
frente, as vibrações reverberavam-se em nosso íntimo como
ondas de choque, exigindo-nos grande controle das
emoções. Turba de trânsfugas, abatidos e estropiados,
cruzavam por nós em grande número, desfeitos em
desespero, configurando ainda os grandes traumas físicos
que os levaram à desencarnação, compondo verdadeiros
exércitos de flagelados, enquanto outros tomados por
loucuras coletivas, corriam esbaforidos sem rumos em meio
a grande algazarra de

383

espíritos inferiores. O céu brumoso, pejado de altos teores


de aflições, assustava-nos sobremaneira, como
prenunciando descomunal tormenta. Guardávamos a
sensação de estar em frágil embarcação em mar revolto,
agitado por terrível borrasca.

O horizonte distante se vestia de luto, ferido por violentos


relâmpagos magnéticos, refletindo o acúmulo do imenso
ódio humano. O teor das vibrações morbíficas no ambiente
era de tal monta, que as fazia precipitarem, caindo sobre
nós sob a forma de pequenas floculações gríseas, quais
cinzas vulcânicas, desfazendo-se ao nosso contato, sem
causar-nos, aparentemente, sensação tátil alguma.
Imperceptíveis aos olhos dos encarnados e das entidades
barbarizadas, são capazes porém, de veicular funestos
sentimentos nos espíritos que se lhes afinam, e podem se
acumular perigosamente na organização perispiritual dos
trabalhadores ainda incautos, envenenando-os
paulatinamente e incapacitando-os para o serviço.

Ao atingirmos o local dos renhidos entrechoques, o cenário


se tornava ainda mais aterrador. A soturna paisagem
desfeita em ruínas se locupletava com o ribombar dos
canhões, os estampidos dos fuzis e a matraca das
metralhadoras, compondo poética sinfonia de lágrimas,
furor e pânico, acompanhada pelo coro de alaridos
estridulosos dos espíritos inferiores que se compraziam com
a algazarra, ovacionando a morte e a destruição. Bandos de
sicários desencarnados, trajando truanescas vestimentas,
brandindo armas medievais e blasonando vitupérios,
lutavam ao lado dos combatentes humanos, estendendo
seus ferozes embates para o outro lado da vida. Matilhas de
ferozes cães adestrados, atiçados pelos guerreiros das
trevas contra os oponentes, compunham por vezes o
horripilante espetáculo.

Cenas pavorosas de extensões jamais vistas fixavam-se em


nossas retinas espirituais de forma imorredoura. Em meio
ao assombro, elevávamos permanentemente nosso
pensamento em súplica ao Altíssimo para que viesse em
socorro da casa planetária, transformada em bárbaro
colossal.

Se os homens pudessem divisar esses tétricos quadros que


preenchem o invisível, acompanhando-os no gládio da
morte, aterrorizados evadir-se-iam apressadamente,
reconhecendo na sua extensão, o grande erro da guerra,
acorrendo a abraçar os inimigos, em busca dos tesouros
divinos da paz e da concórdia.

E logo, o longo e agudo silvo das bombas atiradas de aviões


chamava a atenção de Alberto, que dirigindo seus olhos
para o Alto, via pela primeira vez os modernos aeroplanos,
transmudados em aves de rapina, pondo ovos de fogo,
arrancando-lhe lágrimas

384
de estupenda comoção. Ali estavam suas máquinas diletas,
seus inocentes e frágeis aparelhos de deleite, convertidos
em águias de aço, feitas para derruir e assassinar. Atônito
diante do espetáculo, precisei deslocá-lo a fim de demovê-lo
da perplexidade em que se estacava.

Com o coração em pranto, atiramo-nos ao trabalho, em


meio à bátega de projéteis e explosões, a fim de cumprir
nossa missão. Assustado, Alberto seguia-me de perto,
enquanto Adelaide permanecia no alojamento de Saint
Philippe, cuidando dos desencarnados que não paravam de
chegar.

Deixávamos que o fragor dos prélios se esvaísse para


depois atendermos como possível aos que tombavam em
combate.

Muitas vezes fazíamos dormir os atormentados, a fim de


recolhê-los mais tarde, providenciando o desprendimento
espiritual daqueles que já guardavam condições para isso,
entregando-os aos padioleiros para serem atendidos nas
enfermarias. Muitos agonizavam gementes e aflitos, poucos
caíam na inconsciência, enquanto outros vivenciando
relutante desdobramento, em pleno desespero diante do
próprio corpo retalhado, procuravam reunir suas partes
estraçalhadas sem compreenderem o que realmente se
passava. Os mais afoitos e imbuídos de imenso ódio,
mesmo sem suas vestes orgânicas, prosseguiam
combatendo, como se ainda continuassem vivos na carne,
engalfinhados em luta corpo a corpo, sem se darem conta
de que estavam no outro lado da vida, e sem que
tombassem diante dos sucessivos e inúteis golpes
mutuamente desferidos. Por estes, nada podíamos fazer até
que seus furores se aplacassem na exaustão, e cessando a
emancipação transitória, caíssem na inconsciência,
terminando o inusitado transe.

Por muitos dias trabalhamos intensamente em meio à


tempestade de sangue, até que a fuga precipitada dos
sobreviventes para a Inglaterra, acalmou a situação em
Dunquerque. A espetacular e bem dirigida operação de
resgate contou com significativa ajuda do Plano Espiritual,
minorando os imediatos efeitos de uma atroz e
desproporcional devastação.

Então, os arredores de Paris passaram a sofrer intensos


bombardeios, e para lá dirigimos nossos esforços
socorristas. Não tardou porém, para que a França
capitulasse diante do poderio alemão, temerosa de se ver
cruelmente dizimada pelo inimigo.

Assistimos com pesar aos germânicos marcharem sobre


Paris, desmembrando o país, obrigados contudo, a olvidar
nossas origens e calar a todo custo, os inadequados
sentimentos nacionalistas que ainda teimavam viger em
nossas almas. Pesava-

385

nos presenciar o povo constrito, acomodado na


desesperança, abatido pelo orgulho ferido, porém era
forçoso adaptar o coração à nova realidade em que nos
encontrávamos, pois como tarefeiros espirituais não nos
convinha mais tomar partido nas disputas terrenas.

Sem demora, os exércitos precipitaram-se, em grande


azáfama, buscando novas direções, seguindo as incontidas
ambições de seus protagonistas. A saga sanguinária seguia
outros rumos, dizimando cidades e ignorando os valores da
comiseração, como se os povos que julgavam inferiores
fossem meros bandos de animais. Mediante volitação,
excursionávamos pelos campos, acompanhando os
movimentos dos embates à cata dos recém desencarnados,
o que nos fazia recordar a lenda das Valquírias, o mito que
numa época povoou a lenda nórdica, que apregoava que
mulheres, em corcéis alados, compareciam nos locais de
batalha recolhendo os guerreiros mortos, levando-os para o
Walhala, a morada dos deuses, fato que atesta que o
imaginário humano sempre refletiu as verdades do invisível.

Por longo tempo trabalhamos nas frentes de combate


recolhendo desencarnados. O penoso trabalho nos exigia o
desprendimento das comodidades, contudo, vibrações
sublimes advindas dos planos superiores nos sustentavam a
jornada, confeccionando-nos o bem estar indispensável ao
espírito. E não estávamos sós, pois no esforço comum,
fazíamos muitos amigos, e apoiando-nos uns aos outros,
superávamos as dificuldades da árdua, porém necessária
tarefa.

Alberto auxiliava-me como podia com boa vontade, sempre


ao meu lado, fortalecendo-se na penosa atividade. Muitas
vezes o via desalentado ou assustado, porém quando seus
olhos se cruzavam com os meus, aquietava-se e se
mantinha equilibrado, revelando que se prestava ao serviço,
superando sua acídia e sua completa falta de habilidade
para a tarefa. Por vezes ainda o via marejando lágrimas
ocultas, e lançava-lhe o apoio do meu pensamento, ciente
de suas fragilidades, pedindo a Deus para que ele não se
combalisse diante das imensas dificuldades.

Paulatinamente se adaptava ao hostil ambiente, auxiliando


os necessitados com denodo, expondo-se ao entrechoque
das energias aviltantes com disposição para servir, embora
muitas vezes alquebrado pelas exigências do penoso mister.
Distanciava-se a cada dia de seu imenso interesse pelas
máquinas, sobejando a alma vazia com genuínos anseios
cristãos. Adestrando-se na capacidade de amar, convertia
suas forças depressivas em renovadas energias para a
felicidade, refazendo o equilíbrio

386

desfeito pelo suicídio. Convertido em verdadeiro enfermeiro


de guerra, em quase nada nos fazia mais recordar o genial
“Inventor”

dos tempos passados. O poderoso “Senhor dos Canhões”, o


magno “General das Trevas” que fora no pretérito, jazia
prosternado, silenciado pelas lições de humildade que a
vida lhe conferira. E a dedicação ao sofrimento alheio
cuidava de lhe modelar agora a alma, matizando-a com os
adornos dos sentimentos nobres, necessários à confecção
da angelitude.

Por onde íamos, o panorama era o mesmo, multiplicando-se


a cada dia o infortúnio, a dor e o ódio. Prantos e lamúrias
imanes, reverberando nos míseros corações em apressado
trânsito entre os dois mundos, feria-nos profundamente a
sensibilidade, diante de tamanhas e inúteis barbáries.
Paisagens em escombros, povoadas por corpos
esquartejados e almas dementadas, esboçando-se quais
tétricos e esquálidos fantasmas em meio às brumas
vibracionais, turvavam-nos as retinas espirituais com
plangentes e dantescas imagens, arrancando-nos
indescritível melancolia, exigindo-nos imenso esforço para
não nos abater o ânimo, obstaculizando em definitivo nossa
capacidade de atuar em benefício da triste situação. Por
vezes, diante da enormidade da tragédia humana que se
nos estampava com toda sua dura realidade, nossos passos
fraquejavam, e aspirando por paz, ansiávamos por
evadirmo-nos rapidamente do hostil meio em que nos
encontrávamos, porém ao pensar nos inditosos espíritos
presos aos cadáveres desfeitos, e nos exaustos
companheiros de trabalho, convencíamo-nos da importância
de continuar na tarefa que precisava de alguém para ser
cumprida.

O que mais nos constrangia no serviço de guerra era


observar os tétricos quadros espirituais que se seguiam ao
furor das batalhas. Quando o terrível matraquear das
metralhadoras e o ribombar assustador dos canhões se
calavam, bramidos de dores prorrompiam o funesto silêncio
que se estampava, propalados pelo espírito em pânico. Em
meio às brumas carregadas do cheiro de sangue misturado
ao odor da pólvora queimada, figuras hediondas saiam das
sombras, completando a triste desolação dos escombros.
Eram hordas de vampiros, verdadeiros bandos de hienas,
que invadindo o palco de atrocidades em busca das presas
fáceis, refestelavam em macabros banquetes de sangue,
saqueando com avidez os restos fluídicos dos corpos
dilacerados, sem que nada pudéssemos fazer em defesa
das imprevidentes vítimas, devido ao alto teor de ódio
conspurcando-lhes a sacrossantas energias vitais. Passavam
como um vendaval destruidor, deixando uma tropilha de
esquálidos molambos

387

agonizantes, em meio às emanações de fúria e pesar


inenarráveis.
Mas não era tudo, logo que a algazarra desses cérberos
afoitos e ferinos se acalmava, uma segunda leva de
monstros latrinários, frequentemente isolados,
transportando exóticas e hórridas zoantropias que nos
faziam recordar diabólicas figuras mitológicas, percorriam
calmamente os campos de sangue, em busca do que
restara dos remanescentes cadavéricos. Enquanto churdas
aves negras, assemelhando-se a enormes abutres,
pousavam sobre os corpos abandonados à procura dos
eflúvios vitais das carnes em adiantado

processo

de

decomposição,

multiplicando

sobremaneira as aflições das chacinas humanas,


envolvendo-as em burel de extensões jamais presenciadas.

Uma agonia infinda invadia nossos corações, exigindo-nos


imenso esforço para manter o pensamento conectado às
Esferas Superiores, suplicando pelos beneplácitos do bem a
fim de apaziguar nossa sofrida humanidade, renitente no
ódio e na revolta, fazendo jus a tal desdita pelo
distanciamento da lei divina do amor. Compreendíamos o
imenso equívoco da guerra, inútil e descabida solução para
as contendas humanas, servindo apenas para multiplicar
suas aflições, e nutrir o futuro com dissabores muito
maiores do que aqueles que levam aos embates da morte.

Contudo, mesmo em meio às emanações da ira e das


aflições, sentíamos que invisíveis seres angelicais nos
sustentavam a jornada, amparando-nos os passos frágeis e
vacilantes, única alegria que podíamos nutrir no penoso
serviço.

Frequentemente penetrávamos as ruínas, em meio a


bombardeios, a fim de recolher os desencarnados ainda
presos aos escombros, quase sempre civis em desespero,
infelizes e aparentemente inocentes, no meio do grave
conflito. Construções seculares ruíam sob os bombardeios
assassinos, de ambos os lados da guerra, que não
poupavam hospitais, escolas, crianças, mulheres ou idosos,
matando apenas para produzir efeitos morais, disseminando
a revolta nas regiões inimigas, minguando-lhes a confiança
em suas forças, na esperança de que capitulassem ante o
poderio do atacante.

De outras feitas, vasculhávamos as ferragens retorcidas de


aeronaves abatidas, socorrendo pilotos sobressaltados nos
interlúdios da morte, sem compreenderem o que se passava
ou completamente inconscientes, fortemente presos aos
restos mortais carbonizados, ou intensamente desfeitos em
fragmentos irreconhecíveis, como único refúgio no transe
doloroso. Assustados diante do poderio armamentista do
homem, rogávamos constantemente a Deus para que o
sanguinário prélio encontrasse o seu fim, mas os dias se
seguiam longos e terríveis, agônicos e inditosos,

388

amontoando dores e amarguras, acumulando ruínas e


somando ódios, sem que muito pudéssemos fazer em prol
do imensurável drama terreno.

Convém esclarecer certas particularidades da tarefa que


desempenhávamos, a fim de que o estudioso da ciência do
espírito se inteire dos fenômenos que regem a criação em
seus variados planos de manifestação, ainda que no
vendaval desenfreado das grandes paixões humanas.
Diferentemente do óbito por enfermidades ou outros
acidentes, o espírito que desencarna submetido a condições
de violência, no intenso fragor da luta, desencadeia um
quadro aqui denominado cacotanásia. As pungentes
emoções do ódio, vivenciadas no trágico momento, o
elevado índice de catecolaminas circulantes no universo
orgânico, configurando as reações de pavor e fuga, o
entrechoque das funestas vibrações antagônicas do
ambiente, e a presença dos espíritos inferiores atuantes no
adverso cenário de hostilidades, projetam o recém
desencarnado em um nicho fluídico diferenciado,
configurando particularidades que interessam àqueles que o
assistem.

Como ocorre na maioria dos desenlaces dos homens de


mediana evolução moral, de modo geral eles não podem ser
removidos de imediato de seus restos mortais, requerendo
tempo variável para isso, em torno de dois a cinco dias.
Espíritos profundamente apegados à matéria e inseguros
nos primeiros passos no além, podem demandar semanas
até que se libertem das vestes carnais, e permanecem nos
campos de batalha em estado de completa inconsciência,
até que possam ser recolhidos pelos obreiros da
desencarnação, os obiatras.

Muitos que tombam em pleno combate, movidos por


intenso ódio, comumente não se dão conta da condição em
que se encontram, e prosseguem como mortos-vivos na
Dimensão do Espírito, sem ressentirem a morte física.
Continuam perseguindo o inimigo, e atracando-se com ele
em acirrado prélio. Estes participam na realidade, de
conhecido fenômeno de desdobramento e ainda não se
desvencilharam em definitivo, de seus restos mortais. Uma
vez que se lhes desvanece o ímpeto de agressão, caem em
imenso torpor, sendo reconduzidos imediatamente ao corpo
físico, e sem conseguir despertá-

lo para a continuidade da vida, e sem entender o que


sucede, entram em desesperante pesadelo. Assim
permanecem até que se lhes sobrevenha a inconsciência da
morte, quando então iniciam de fato, as etapas naturais da
desencarnação. Alguns, na impossibilidade de recorrerem à
defesa do sono profundo, candidatam-se à ovoidização, em
decorrência da adversa condição em que se encontram, se
não recebem socorro eficaz. Daí a importância do socorro
espiritual em auxílio a esses infelizes. A indução do estado
de inconsciência é permanente necessidade para estes
espíritos, resguardando-os destes graves quadros,
representando as maiores dificuldades para os obiatras, pois
as condições adversas de trabalho, e a intensa agitação que
os

389

domina, dificultam sobremodo a necessária concentração


de energias hipnóticas para o êxito do socorro.

Os aflitos que sucumbem abruptamente em meio a


descomunal susto, como aqueles surpreendidos por uma
explosão, também vivenciam idêntica condição de
emancipação transitória, e permanecem tentando recolher
o corpo esfacelado, sem compreender o que se passa, em
estado de completa demência, requerendo o mesmo tipo de
urgente assistência. O pavor, sobrepondo-se ao ódio no
entanto, faculta-lhes facilitado mergulho na inconsciência
da morte, demonstrando-nos que a crueldade é força
coerciva de ação caótica, desalinhando-nos o mundo íntimo
com muito maior intensidade.
Em muitas ocasiões, principalmente quando o
desencarnante detém méritos que lhe facultem um
desprendimento ameno, o óbito traumático requer túnel de
escape, fenômeno pouco conhecido que convém
descrevermos com detalhes. Trata-se de um verdadeiro
canal de transição, entretecido em matéria ideoplástica, que
envolve o espírito em processo de desprendimento, usado
para isolá-lo do ambiente dimensional terreno, e projetá-lo
de imediato, na realidade espiritual. Muitos daqueles que
experimentam o fenômeno de “quase-morte”, conseguindo
retornar ao corpo físico no último instante, quando ainda é
possível reassumir a vida, puderam visualizá-lo, descrito
como um longo e escuro tubo, quase sempre intensamente
iluminado em sua abertura final, para onde são atraídos,
favorecendo o traspasse com agradável sensação de
plenitude espiritual. Comumente, parentes e amigos de
nosso plano os aguardam do outro lado, projetando-os, em
decorrência da diferenciada arquitetura espacial que sustém
o mundo do além, em lugar aparentemente distante de
onde se encontram. Os obiatras são adestrados na
confecção deste adutor de emancipação, proporcionando
grande lenitivo aos traspasses excessivamente traumáticos.
Vítimas presas em meio aos escombros de bombardeios, às
vezes consumidas por chamas, atadas às ferragens de
aeronaves, ou sufocadas no interior de embarcações
levadas a pique, devido aos elevados cabedais morais,
conquistados no exercício da bondade, encontram neste
recurso eficiente meio para um desenlace confortável.
Infelizmente porém, poucos eram os que guardavam
condição para utilizá-lo com proveito.

Muitos combatentes, excessivamente arraigados ao ódio, ao


se desvencilharem de seus restos mortais, são arrebatados
para o contingente de desencarnados que servem aos
exércitos umbralinos, sem que se possa impedi-los.
Compõem exóticos batalhões de soldados esquálidos,
estropiados e dementados, comandados por hábeis
generais das trevas, que seguem guerreando nas regiões
infernais, aprazendo-se em assustar os incautos, excitar a
destruição e fazer prisioneiros aqueles que se lhes afinam
pelos traços da crueldade, escravizando-os para fins
indignos.

390

E outros há, que após o traspasse, buscam seus algozes


ainda encarnados, quando podem identificá-los, jungindo-
se-lhes ao plano mental, em mordaz e prolongado assédio
obsessivo. Transformados em verdugos, continuam, desde o
plano do espírito, a urdidura de vinditas perpetuando o
duelo, até que o amor os transforme em amigos, na
incansável esteira do destino.

Vemos assim, de forma inquestionável, que a guerra


continua no nosso mundo com idênticos requintes de
barbaridades, e fundamentada nos mesmos injustificáveis
interesses da Terra, perpetuando a destruição, espargindo
dores e prosseguindo a semeadura de infelicidades.

A guerra no além guarda portanto, íntima correspondência


com a praticada no plano carnal, comumente se lhe associa
aos propósitos, e inclusive utiliza armamento muito
semelhante. Os enfrentamentos são igualmente brutais a
ponto de produzirem danos aos organismos em luta.
Obviamente, no mundo espiritual a vida do inimigo não
pode ser aniquilada, contudo o psicossoma é passível de
sofrer lesões à semelhança do corpo físico. Tal lesão porém,
guarda íntima relação com o grau de densidade da tessitura
perispiritual. Quanto mais embrutecido é o espírito, mais
densa é sua matéria constitutiva, tornando-a suscetível de
sofrer danos em sua contextura, enquanto que entidades de
grande envergadura evolutiva, são completamente imunes
a qualquer agressão externa. Por isso os espíritos inferiores
são capazes de se ferir como se estivessem na carne, e
sofrendo traumas extensos que ultrapassem a elevada
capacidade regeneradora do perispírito, podem entrar em
estado de colapso da consciência, encaminhando-se para os
fenômenos da ovoidização. Naturalmente que não é
possível a completa anulação da individualidade, tampouco
a destruição do aparelho psicossomático que veste o ser em
evolução; este contudo, é passível de se retrair a patamares
inferiores de organização, acompanhando a degradação do
psiquismo, segundo os imperativos que determinam a
segunda morte.

Ademais, os projéteis e explosões dos artefatos humanos,


podem também

contundir

entidades

inferiorizadas,

excessivamente

materializadas e sintonizadas com o ambiente carnal,


promovendo-lhes iguais lacerações perispirituais. Devido a
este fenômeno, o lamentável resultado das guerras
comumente, não é somente a multiplicação da mutilações e
mortes físicas, mas também a proliferação de traumas
espirituais que podem evoluir para graves contrações da
consciência, resultando em elevado número de ovóides nos
ambientes de batalhas.

Não se surpreenda o estudioso diante desta revelação. O


instinto aguerrido acompanha o ser no além, onde as
rivalidades são tão expressivas quanto as praticadas no
palco terreno. Disputas de hegemonias, conflitos de
interesses divergentes, e práticas de vinganças, fazem do
submundo do além um reino de atritos e rixas constantes,
envolvendo todos os que se lhe subjugam ao domínio das
aviltantes emoções. Aos vencidos, como na Terra, impõe-se
o cárcere,

391

a escravidão, e a ignóbil exploração de recursos vitais, em


perpetuação de ódios que varrem os séculos e se estendem
ao plano físico, onde prosseguem disseminando seus
dramas até se desfazerem na dor e no amor.

Os conflitos terrenos, destarte, são ainda passíveis de


promoverem perturbações nas esferas extrafísicas. Guerras
de grandes proporções, podem contaminar o campo
vibratório do planeta, pela disseminação dos eflúvios do
ódio e dos sofrimentos, perturbando a vida do espírito em
qualquer nível em que se encontre. A intensa absorção das
energias mentais degradadas acomete os espíritos incautos
que se lhes sintonizam, ocasionando-lhes lesões fluídicas,
caracterizando patologia própria do psicossoma com
manifestações variadas. Os casos mais leves se expressam
com sintomas de náuseas e mal estar, evolui9ndo para o
aparecimento de máculas cutâneas arroxeadas, e os mais
graves caminham para um quadro onde está presente a
mesma fisiopatologia do choque, e dos quadros tóxico-
infecciosos da carne.

Tarefeiros inexperientes, imbuídos da intenção de servir,


porém ainda necessitados de aprimoramento moral, que
costumeiramente não conseguem manter postura de
imparcialidade nos conflitos, podem sofrer esse contato
fluido, requerendo afastamento de suas atividades e
tratamentos específicos. Muitos recém desencarnados,
impossibilitados de pronta remoção para planos de
refazimento e sem o isolamento vibracional de nossas
enfermarias, também se contaminam com estas
emanações, agravando-se-lhes a recuperação. Por isso os
trabalhadores de nosso plano, comumente os menos
habilitados como Alberto, periodicamente necessitam
afastar-se do ambiente de atividades para a
descontaminação fluídica, pois de forma bastante variável,
absorvem-nas a ponto de lhes comprometer a saúde
perispiritual. Recorrem à hidroterapia, recurso capaz de
eliminar com eficiência esses eflúvios negativos, impedindo
que se acumulem em níveis perigosos. Porém, é forçoso
confessar que em maior ou menor grau, todos nos
deixávamos contaminar pelas vibrações reinantes,
sofrendo-lhes as consequências, e somente os espíritos
muito superiores, podem servir incólumes no hostil
ambiente das batalhas humanas.

Esses altos teores de emanações psíquicas da guerra,


provenientes dos entrechoques das torpes emoções
humanas, aglomeram-se ainda perigosamente na atmosfera
planetária, e ao atingirem níveis inadequados, desabam em
espantosas tempestades vibracionais, imperceptíveis aos
olhos humanos. Rompendo o equilíbrio espiritual do orbe,
explodem em espetaculares relâmpagos de fogo,
reverberando nas regiões magnéticas do plano espiritual,
como reflexo dos imensos dramas humanos acumulados em
perigosos eflúvios de ódios. Fonte de imensos sofrimentos
para as entidades inferiores, são precisamente previstas
pelos nossos técnicos, que nos avisam a tempo de nos
recolhermos em abrigos seguros, a fim de não sermos
surpreendidos por elas, em meio aos espavoridos guerreiros
desencarnados que prorrompem em estridentes fugas.
Embora causem

392

danos ao ambiente espiritual inferior do planeta, são


recursos de reequilíbrio da lei divina, impedindo-se males
maiores e irreversíveis.

Muitas vezes, envolvidos em demasia com o fragor das


contendas, e assoberbados pelas intensas atividades
socorristas, podíamos sentir as vibrações dos explosivos
bélicos dos homens, e os estilhaços em movimento nos
atingiam, causando-nos estranhas e assustadoras
sensações, se nos encontrássemos muito próximos a eles,
devido a persistência no perispírito, de reflexos
condicionados oriundos da vida física. Os menos avisados,
como Alberto, por vezes precisavam ser apoiados, pois se
sentiam desfalecer. Com o tempo porém, adestrávamos as
emoções, dominando-as completamente, evadindo-nos da
sintonização com a balbúrdia que imperava na ribalta de
nossas atividades.

O terrível panorama da guerra visto do além, multiplicando-


lhe o penoso realismo, deveria coibir no encarnado a sua
prática, estimulando-lhe a apressada busca de soluções
pacíficas para suas contendas. Os recursos gastos e o
dispêndio de esforços seriam suficientes para fazer feliz
todo o planeta, suprindo todas as suas necessidades. Mas
prefere o homem deixar-se imolar pela aspiração de
domínio, e a ilusão de que o desenvolvimento de armas
poderosas, poderá lhe facultar a almejada paz e segurança
na Terra. E
acreditando que a morte é o fim de tudo, guarda ele fixado
em renitente materialismo, a estranha ilusão de que seja
possível eliminar os oponentes, simplesmente matando-os,
impondo no cenário terreno os seus interesses, livres de
toda e qualquer oposição. Triste engodo, jamais se liquida
quem quer que seja; e do plano do espírito a pendenga
segue seu mesmo rumo, muitas vezes agravada,
aguardando solução real na lei divina. Saibam os homens
que a destruição dos inimigos não é solução definitiva para
suas querelas, pois a vida continua carreando suas
desavenças para além da morte; por isso as guerras jamais
resolvem desentendimentos e animosidades entre os povos.
Nunca terminam com a capitulação do opositor, mas
somente quando vencidos e vencedores estabelecem a
fraternidade e o colaboracionismo por norma de relação.

Sem olvidarmos ainda que as crueldades praticadas na


guerra, onde o homem sente que lhe é lícito o exercício de
toda maldade, geram a necessidade em futuras
reencarnações, dos grandes desastres coletivos, quando a
dor comparece a fim de propiciar a colheita dos frutos
semeados, conferindo preciosas lições aos espíritos, e
fixando ensinamentos necessários ao equilíbrio dos povos.

Por tudo isso, estejamos absolutamente cientes de que não


há vitoriosos na guerra, onde todos são derrotados e
somente o amor é arma poderosa o bastante para
apaziguar todas as contendas, e vencer definitivamente os
inimigos, transformando-os em verdadeiros irmãos.

393
34
capítulo
UM PEDESTAL VAZIO
“Porque onde estiver o teu tesouro,

aí estará também o teu coração.”

Jesus – Mateus, 6:21

Transcorria ainda pouco tempo de nossa chegada, e Alberto


mantinha-se ansioso por rever os locais e os amigos de sua
convivência terrena. Sentia saudades dos seus mecânicos,
de Antônio Prado, o conselheiro das horas difíceis, de Sem,
o companheiro que o retratara tantas vezes nas caricaturas,
contribuindo para popularizá-lo nos meios parisienses, e
muitos outros que lhe entreteceram agradavelmente a
romagem física.

Contudo, a vida é uma onda em permanente renovação, e


somente as construções na eternidade permanecem
imutáveis.

Muitos dos amigos tomaram rumos diversos, e o panorama


lhe era agora muito distinto dos antigos tempos. As uniões
imorredouras são aquelas que transportamos no coração, e
que o trânsito pelas diferentes dimensões do existir, não
pode jamais apagar.

-- Não se preocupe em procurá-los, Alberto. Aqueles que se


fixaram ao seu destino de forma definitiva, tornarão sem
que se esforce por reencontrá-los – dizia-lhe, na tentativa de
consolá-lo. –
Todos, indistintamente, trazemos nossas nostálgicas
lembranças terrenas e gostaríamos de rever os antigos
ambientes com que nos comprazíamos quando encarnados,
porém muitos deles não podem ser refeitos, pois a ação
inesgotável do tempo a tudo modifica. Acalme-se, e
tratemos do serviço que nos compete, sem exigir da vida
outro pagamento que não a paz da consciência.

Destarte, nosso amigo dominado por fáusticos sentimentos,


insistia para que pelo menos revisse os locais de sua
preferência. A antiga residência na rua Washington, sua
oficina de Saint Cyr onde tinha seu hangar, deveriam estar
intactos, porém, sobretudo desejava estar novamente
diante de seu Ícaro alado, a estátua que tanto o
impressionara, e que permanecia indelevelmente delineada
em sua memória, como a mais alta homenagem que
recebera na Terra. Diante de sua insistência, anuí ao seu
pedido, pois de fato o amigo trazia o coração ainda fixado
nos falazes

394

dividendos terrenos. Adelaide, convidada a nos


acompanhar, não pôde seguir em decorrência de suas
atividades na enfermaria, e demandamos sem demora, a
praça de Saint Cloud, por onde iniciaríamos nossa pequena
excursão e onde se erigia sua majestosa escultura em
bronze, sobre um pedestal que lhe ostentava a esfinge e as
inscrições, exaltando suas pioneiras e surpreendentes
conquistas na aeronavegação.

Ao atingirmos o local, Alberto estancou de chofre. O olhar


extasiado fitava o inesperado, enquanto o assombro se
estampava em sua face. O pedestal estava vazio! Constrito
pesar lhe vestiu a alma de decepção. Lágrimas discretas lhe
rolaram de imediato pelo rosto, e cabisbaixo, não se
animava a tecer qualquer comentário.

Seu amado Ícaro sucumbira, possivelmente abrasado pelo


sol da vileza humana que varre de sua memória os valores
superados pelo tempo. Tácito, diante do monólito que
restara de seu monumento, a ideia que de imediato perfilou
em sua mente, era a de que ele não merecera mais o título
que lhe conferiram os homens, pois outros, de fato, haviam
se assenhoreado de seu lugar na História. A mais cara
recordação que deixara na Terra havia desaparecido, seu
nome e os registros de seus feitos estavam definitivamente
banidos da memória da humanidade.

Desconcertado, intentava disfarçar desairosamente sem


conseguir, o imenso desapontamento que lhe tomara de
assalto.

Concitando-o à ponderação e à superação de seu


injustificável desvalimento, disselhe:

-- Não se intimide desnecessariamente diante do malogro,


Alberto, como uma criança que acaba de perder um
precioso brinquedo. Compreendo que você o aguardava
como egrégia relíquia, lembrança definitiva entre os
homens de suas memoráveis façanhas, e jamais acreditou
pudesse ser derruído. Mas tudo é possível no transitório
reino das formas. Olvide seu esplendoroso passado e
retornemos ao serviço, único caminho que pode preencher a
inação que por vez nos abate a alma.

-- Acredito que pelo menos me restará a cópia, embora


imperfeita, que deixei no túmulo da família...

-- Não se esvaia diante da lição de desprendimento, Alberto.


Recorde que Jesus nos recomendou não estacionar o
coração nos bens perecíveis da Terra, onde os ladrões os
podem roubar e a traça roer, pois quem se fixa nessas
possessões perecedouras, está sujeito a recolher desilusões
e sofrimentos inadequados. Somente os tesouros espirituais
são eternos, por isso aceite a corrigenda e olvide
definitivamente as efêmeras referências humanas.

395

Entreguemos ao mundo decididamente, o que é do mundo,


como nos disse o Mestre, se não queremos fazer da
existência, um amontoado de desilusões. Esqueça os
epítetos que lhe deram e os triunfos que você conquistou,
inumando-os definitivamente na memória do tempo,
tratando de confeccionar novo futuro em base aos reais
bens do espírito. Eis a única maneira de desvencilhar-se
também das lembranças amargas que tanto o constrangem.
Recorde-se das sábias palavras que Heitor lhe deixou.

Procumbido, Alberto se deu por vencido, esforçando por se


desfazer das recordações dos esplendores vividos. Deixando
exaurir por completo o entusiasmo de rever o palco de suas
preciosas conquistas terrenas, parecia conformar-se.
Recolhime no silêncio, caminhando ao seu lado, de volta aos
nossos afazeres.

Após longo intervalo, o irmão enfim refeito de seu dissabor,


animou-se a considerar:

-- Obrigado irmão, por dividir comigo as dores de minha


alma. Infelizmente precisava desse choque para assimilar o
aprendizado no qual tanto os amigos insistem. Compreendo
que não posso mais me sustentar nas gloriosas conquistas
do passado, como alimento necessário à alegria do espírito,
nutrindo-me de continuada arrogância. Devo esquecer o
nome que enverguei e o que ele representou na Terra,
cientificando-me de que colaborei com o progresso humano,
apenas por lhe ser devedor e nada mais. Fixei-me na ilusão
de que fui um homem ilustre, portador de genialidade acima
dos comuns, porém hoje sei que nada inventei e nada fiz
demais.

Ante minha admiração por ver que enfim a lição surtia o seu
efeito de forma quase instantânea, continuei a ouvir suas
reflexões, amadurecidas nas peias da dor:

-- Sustentado por esta errônea convicção, desejava


prosseguir gabando-me dos mesmos doentios enganos do
pretérito, perpetuando os seus males. Meu pecado chama-
se, com efeito, orgulho, pois tudo que realizei foi mero
devaneio para lustrar-me a vaidosa personalidade, e não
posso vangloriar-me de alguma coisa ter inventado. Agora
vejo que as sábias palavras dos amigos, e suas abalizadas
orientações de pouco me valeram.

Foi preciso que eu me deparasse com a dura realidade dos


fatos para convencer-me da falácia de meus propósitos. Eu
careço olvidar decididamente, de uma vez por todas, as
máculas do passado, mesmo o galardão da fama, que me
lastima tanto quanto

as

lembranças

dos

fracassos.

E
hoje

pude

verdadeiramente alijar de meu coração o fascínio pelo


pretérito,

396

e de cabeça erguida para a luz do Cristo, quero percorrer


novas estradas de realização interior, evadindo-me das
perigosas rotas das quiméricas conquistas exteriores... Sinto
que libertei enorme peso da consciência. Não desejo mais
fazer-me vítima das minhas memórias, prisioneiro de meus
devaneios, cativo de meus pretensos inventos...fui um mero
inventor de ilusões e nada mais...Encerremos o assunto,
pois sei que já o cansei sobremaneira com minhas
inconvenientes rememorações, e os meus próprios
dissabores já me bastam...

-- Alegro-me por vê-lo finalmente cedendo às evidências, e


terminando por assimilar o bom senso indispensável ao seu
completo soerguimento. Deixemos de cuidar das
prerrogativas do ego se queremos ser felizes. Rumemos
para o porvir, entregando o que fizemos de bom para a
vida, agradecidos a Deus pelas oportunidades de algo
realizar em prol da humanidade.

Renunciando às notoriedades do pretérito certamente os


momentos de amarguras e os equívocos que lhe martirizam
a lembrança também evadir-se-ão de seu íntimo,
permitindo-lhe novas e felizes aquisições para o espírito,
meu amigo. Jesus sem dúvida, o abençoará neste propósito.
Sigamos para frente, decididos na trilha do Evangelho,
deixando ao passado seus próprios dissabores e suas
fugazes conquistas. Quem vive de ilusões, colhe decepções.

Alberto voltava a sorrir, denotando que o preceito fora


assimilado em plenitude. Entrementes, recordei-me de
curiosa notícia que ouvira de amigos, dias atrás,
compreendendo num átimo, o que se passara. Não pude
evitar de lhe chamar a atenção para a ocorrência, embora
duvidasse em breve relance, se isso era efetivamente o
melhor que lhe convinha. Algo aliviado, agreguei:

-- Alberto, você não se deu conta de que há outras estátuas


em falta nesta cidade? Nossos amigos alemães estão ávidos
por matéria prima para confeccionar munições, e andaram
recolhendo algumas daquelas que não lhes demonstram
significativo valor, para se prestar a esse fim. A sua foi uma
delas, simplesmente isso. Não se trata de mera aversão à
sua memória, seguramente. Seu belo Ícaro foi reduzido a
projéteis, para alimentar canhões, meu amigo, os mesmos a
que outrora dedicara tamanho empenho em construir, e
cuja

lembrança depois tanto o martirizou!

-- Meu Ícaro transformado em balas de canhão! Vejo que o


malfadado invento me persegue até hoje!...

397

-- Que estranha ironia do destino, seu mais precioso bem


terreno convertido em objeto de destruição! Podemos
entretanto, ver neste fato de aparente casualidade, um
insigne óbolo da sabedoria da vida, que não desperdiça
oportunidades para nos fazer crescer.
A lição, destarte, já havia sido assimilada e Alberto
denotava de fato, haver superado a sua decepção.
Aliviados, adentramos em nossa enfermaria, a fim de cuidar
daqueles que precisavam muito mais do que nós, deixando
ao mundo o que a ele pertence, e permitindo ao império do
mal satisfazer a sua ânsia na confecção de ruínas, até que a
lei o detenha no cadinho das inevitáveis reações.

Relatando o ocorrido à Adelaide, que embora lamentando a


perda de seu relicário, reconhecia que fora salutar
providência do destino, demonstrando-lhe a inconveniência
de percorrer as faustuosas rotas do passado, somente para
degustar novamente os trunfos da glória. Em breve Alberto
se olvidava do fato, retornando à sua habitual diligência,
demonstrando-nos que o esforço no serviço, era precioso
medicamento para lhe sanar a fixação no pretérito.

Tornando aos campos de combate, prosseguíamos na


charrua redentora, recolhendo os famigerados
desencarnados, preparados para lutar, porém não para
morrer. Devíamos dirigir toda nossa atenção para o socorro
aos aflitos, onde quer que estivessem e a que lado
pertencessem. Deixando que o mal destruísse a si mesmo,
cabia-nos edificar na eternidade, espargindo valores
imorredouros do bem, cujas recordações jamais nos
ferissem a alma.

Nossa enfermaria se apinhava de estropiados, muitas vezes


inimigos mortais, colocados lado a lado em meio à névoa
tênue flutuante acima dos leitos, impregnada de eflúvios
mefíticos, que poucos podiam denotar. Os cuidados que os
recém desencarnados requerem nestas condições, se
assemelham em tudo aos traumatizados humanos
necessitando de curativos, ataduras, ou até mesmo
verdadeiras cirurgias de recomposição de tecidos
esfacelados e ossos fraturados. Seus organismos
psicossomáticos se impregnam das mesmas lesões físicas
que os levaram à desencarnação, até que, assumindo a
consciência da nova condição em que vivem, conseguem
desvencilhar-se destas sequelas, demonstrando-nos que o
fato guarda íntima relação com os fenômenos da
mentalização, e que o corpo perispiritual, embora
entretecido em substrato celular, é na verdade uma
construção ideoplástica de espírito.

398

Muitos necessitavam de ser induzidos ao sono profundo


diante dos sofrimentos insuportáveis e a impossibilidade de
compreenderem a situação em que se encontravam,
enquanto outros careciam apenas de palavras de consolo.
As diversas nacionalidades de nossos assistidos,
transformavam nosso ambiente em verdadeira Babel,
exigindo-nos grande esforço na lida dos muitos idiomas
envolvidos. Neste aspecto é compreensível, como já nos
referimos, que a morte não situe o espírito de mediana
evolução, de imediato, em contato com as comunicações
puramente mentais dos planos elevados, e prosseguimos
usando os mesmos mecanismos da fala para nos
entendermos. Somente aqueles moralmente muito
adiantados, conseguem em curto prazo, adentrar a
linguagem dos sentidos em avançado processo de
percepção das correntes de pensamentos.

Com a prestimosa ajuda de Adelaide, Alberto adestrava-se


no trato com os feridos de guerra, desenvolvendo
paulatinamente novas aptidões, bastante distanciadas do
papel que desempenhara na jornada terrena. O novo
panorama que a vida na erraticidade abre para a dilatada
consciência espiritual do desencarnado em equilíbrio,
projeta-o quase sempre, muito além das acanhadas
perspectivas terrenas, levando o homem comum, muitas
vezes a duvidar de nossas diferenciadas prerrogativas. Não
nos surpreendia por isso, ver nosso amigo convertido em
autêntico enfermeiro de guerra, pensando os feridos,
dirigindo-lhes palavras de reconforto, distanciando-se a
cada dia mais do que fora na Terra, Santos Dumont.

Sem dívida, sentia ele que este era o único caminho que
podia preencher-lhe o vazio que trazia na alma, e
empreender o vôo do espírito era agora seu máximo anelo.
Um novo sonho de Ícaro lhe ocupava a mente, voar por
entre os espaços do amor e sobre as planícies do saber,
albergando o Divino na alma e saciando a fome de
sentimentos que uma vida assoberbada de máquinas e
mecanismos lhe impregnara. Enredando renovados valores
para a Vida Eterna, seguramente se preparava para outros
misteres no futuro, segundo as premências que a evolução
nos concita a fim de nos conduzir para a perfeição.

Vendo-o estampar um sorriso para cada ferido que


encontrava, consolando com palavras doces os
desesperados, admirava o verdadeiro milagre que se
operava em sua alma, rememorando a precária condição
em que o recebemos em nossa colônia. Agradecia a Deus
pela sua recuperação, caminhando a passos rápidos para o
completo restabelecimento

399

e alta da condição de assistido. E, recordando as palavras


do apóstolo Pedro, certificava-me de que servir aos que
sofrem é o mais precioso medicamento para sanar todas as
chagas de nosso pretérito.
A guerra prosseguia em sua saga sangrenta, em direção
agora às plagas soviéticas, pois os beligerantes germânicos,
rompendo seu pacto de interesses egoísticos com os russos,
intencionavam dilatar suas fronteiras por toda a Ásia,
demonstrando que suas ambições eram excessivamente
desmedidas e impróprias para a paz mundial. As forças do
destino atuam segundo os Planos Superiores que nos regem
a evolução, e os protagonistas da vida obedecem, muitas
vezes acreditando estar agindo segundo seus próprios
anseios. Por isso, achávamo-nos seguros de que tomando
essa nova direção, as potências do Eixo (Alemanha, Itália e
Japão formavam nesta ocasião, uma condição assim
denominada) estavam na verdade, seguindo sugestões do
Invisível, selando seu esboroamento, na medida que
dividindo seus exércitos em novas frentes de ataques se
enfraqueciam. Seguramente não poderiam vencer o gigante
russo pois as condições climáticas lhe eram adversas, e
apesar do sacrifício de milhões de vidas, esta era uma
solução para minar os recursos da guerra, fazendo com que
o mal fosse derrotado pela própria ganância.

Embora não nos fosse dado tomar partido no conflito,


sabíamos que nossos irmãos alemães excediam em suas
ambiciosas pretensões, baseadas em equivocadas e
orgulhosas utopias. Distanciados do bem comum e do
respeito aos irmãos em humanidade, pleiteavam de fato a
completa dominação do orbe, objetivando a exploração
econômica, a escravização dos vencidos, e a desapiedada
eliminação das raças consideradas inferiores, como os
humildes povos asiáticos, os ciganos e os judeus, reputados
como estirpes desprezíveis e indignas de participarem da
nova ordem social que imporiam ao mundo.

Aqueles que lhes disputavam as aspirações colonialistas,


como os bolchevistas russos e os impérios capitalistas
ocidentais, deveriam também ser destruídos e dominados.
Deliberações estas que correspondiam às malignas
sugestões das sombras, e que não se coadunavam em
absoluto, com os ideais superiores que nos dirigem a vida.

Nesta arena de disputas, o pacto nazi-soviético era de fato,


uma grave ameaça à ordem mundial, pouco avaliada pelos
observadores da História, pois a união dos dois grandes
gigantes em um esforço conjunto de conquistas os tornaria
imbatíveis, estendendo a Grande Guerra para limites
insuportáveis pelo

400

Planeta, impondo-se imensos sofrimentos à humanidade. Os


encarnados não se deram conta do risco que corriam, e dos
esforços envidados pelo plano espiritual superior para
desmantelar este desequilíbrio de forças, coibindo a
inadequada aliança.

Felizmente este desiderato foi facilmente atingido, pois as


desmesuradas ambições que os motivaram, impediam-lhes
de se consorciarem em um objetivo comum. A associação
entre russos e aliados era, neste momento, a melhor
maneira de se evitar um desproporcional conflito entre as
grandes potências bélicas, sedentas de conquistas,
entretanto os antagonismos existentes entre os ideais
comunistas e os interesses capitalistas, tornavam essa
união difícil e delicada. As constantes ameaças de ruptura
de suas relações aparentemente amistosas era sobrecarga
para a direção espiritual, interessada em manter-lhes a
coalizão, que somente se justificava mediante a
identificação de um inimigo comum.

Os imensos conflitos entre as Forças Aliadas, convivendo


com
objetivos

divergentes

disputas

de

domínio

contraproducentes, sofriam a todo instante, a interferências


dos espíritos elevados, que se esforçavam para manter a
situação no melhor equilíbrio possível, evitando-se danos
maiores para o progresso humano. A dificultosa situação
tornava-se grave em muitos momentos, quando ambas as
partes, capitalistas e comunistas, sentiam-se prejudicadas
em seus anseios de conquistas territoriais, e na doentia
valorização dos nacionalismos em jogo.

Não podemos contudo, deixar de considerar que não havia


uma facção do bem em luta contra uma do mal, pois todos,
indistintamente, achavam-se distanciados do amor
evangélico e intencionavam também a expansão de
domínios, almejando inadequadas explorações colonialistas,
em franco desrespeito aos direitos de que cada povo irmão
é meritório. Se o plano inferior tomava decisivo partido nas
contendas humanas, o mundo maior não se posicionava
contra quem quer que fosse, mas somente em oposição à
maldade descabida, onde estivesse, interferindo com
recursos apaziguadores, como um pai diante dos filhos em
altercação.

Iniciavam-se ainda os ataques no Pacífico, envolvendo


diretamente os povos americanos, estendendo-se o teatro
da guerra para uma amplitude mundial, em proporções
jamais vistas. O planeta de fato era incendiado pelo
despropósito humano, convertendo-se em imensa furna de
tormentos infernais.

Como os embates prosseguiam, avolumando-se nos


territórios em que atendíamos, não fomos convocados para
trabalhar nestas novas frentes orientais de combates, onde
sofrimentos inenarráveis eram-nos descritos como os mais
bárbaros da Grande Guerra. Em Stalingrado,

401

pereciam milhões de almas em triste urdidura assassina, e a


cidade sucumbia em meio às ruínas, onde a vida valia bem
pouco diante da imensa maldade humana. Enquanto isso a
fome, o frio e a crueldade sem limites solapavam as
amofinadas populações europeias, exauridas pelos extensos
bombardeios e sufocadas pelo ribombar incessante dos
canhões. Penava-nos ver tamanho morticínio em nome de
insofreáveis orgulhos nacionalistas, completamente
distanciados das realidades espirituais da vida.

Presenciamos cenas imorredouras, tecidas com requintes de


inenarráveis crueldades jamais vislumbradas na Terra.
Enquanto os germânicos cuidavam de derruir as cidades
inglesas com fantásticas e terríveis bombas voadoras,
disseminando o pânico e a dor, os aliados respondiam com
a operação cognominada “ataque exterminador”

empregando centenas de bombardeiros que enxameavam


os céus sobre as populações inimigas, despejando milhares
de bombas, muitas incendiárias, em centros urbanos e
indefesos, assassinando impiedosamente populações civis,
que aparentemente não se coadunavam com as disputas de
seus governos. Acorríamos, em equipes formadas por
espíritos de variadas nacionalidades, em socorro aos
pretensos inimigos, mortos aos milhares em chamas
pavorosas, em Hamburgo, Colônia, Dresden, Essen, Bremen
e outras localidades. Os brutais ataques porém, causavam
plena e incompreensível fruição de prazer naqueles que os
protagonizavam, atestando-nos que o distanciamento do
amor divino se responsabilizava por todas as descabidas
cruezas, praticadas em ambos os lados da guerra.

Populações inteiras eram dizimadas barbaramente, aos


milhares, sem uma razão que o justificasse, senão o
completo domínio do coração humano pelas trevas,
assenhoreando-lhe os sentimentos e aflorando-lhe o
potencial de agressividade, denotando-nos o quanto ainda
temos que palmilhar no caminho da dor para transformar a
casa planetária em um reduto de paz. Massacres se
constituíam em verdadeiros banquetes de sangue,
festejados com requintes diabólicos pelas entidades que os
suscitavam, fazendo da Terra um prolongamento dos
abismos avernais.

Lamentávamos a pobre humanidade, divorciada dos


propósitos do amor fraternal, digladiando-se por valores tão
efêmeros, pois a morte a todos surpreendia, solapando-lhes
os fúteis ideais de conquista e o soberbo patriotismo,
convocando-os à vivência da inanidade que a
insensibilidade e a clemência cavam no espírito.
Multiplicando-lhes abundantemente a miséria, o único
galardão de suas pretensões eram o desespero e a
inconsciência, até que a Providência Divina disponibilizasse
os recursos da dor para a correção dos graves equívocos a
que se entregavam.
402
35
capítulo

QUANDO O PASSADO
SOCORRE O PRESENTE
“Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos.”

Paulo – Gálatas, 6:10

Após um dia de intensas atividades, ao retornar ao nosso


posto em Saint Philippe, fomos surpreendidos pela visita de
Heitor.

Informado de nosso paradeiro, aguardava-nos junto à


Adelaide, enchendo-nos de satisfação, em meio às aflições
do momento.

Vinha não somente para revernos, mas para nos solicitar


humildemente, a colaboração em urgente tarefa que nos
explicaria no seu transcurso. Acompanhados por Adelaide e
Alberto, partimos sem demora, após o devido
encaminhamento de

nossas

inadiáveis

obrigações,

sem

imaginar

que

participaríamos de surpreendente feito. Estacionamos em


Bordeaux, demandando imediatamente nobre residência,
envolvida nas sombras soturnas da madrugada, onde nos
deparamos com um cavalheiro do plano físico, cabisbaixo,
assentado na cama, ao lado de uma dama de nossa esfera
envolvida em vestes de freira, que identificamos
imediatamente.

Para imensa surpresa nossa, ali estava dirigindo-nos


expressivo olhar, Catherine Lyot, a amiga de quem não
tivéramos mais notícias. Adelaide, tomada de admiração,
dirigia-me muda interrogação, enquanto Heitor sem se fazer
esperar, dissenos:

-- Nossa querida Catherine não os conhece, porém sente-se


em presença de amigos queridos, pois indubitavelmente os
identifica pelos liames do coração, como irmãos de longo
convívio de outros tempos e sabe que muito lhes deve.

E dirigindo-se à irmã, continuou:

-- Apresento-lhe os companheiros de quem muito lhe falei.

Estes são Adamastor e Adelaide, conhecidos que a


assistiram desde o Mundo do Invisível, no doloroso transe
que a arrebatou da carne.

E apontando para Alberto, a quem envolvia em paternal


abraço, completava:

403

-- Quanto a este outro amigo, falar-lhe-ei em breve.

Aguardemos nosso entendimento diante deste inusitado e


providencial encontro, pois nossas necessidades não são
prementes e podem muito bem esperar. Urgente tarefa nos
convoca à caridade cristã, para a qual solicitamos a todos a
concentração de nossas atenções.

Abraçamo-nos rapidamente, enquanto Catherine e Alberto


trocavam significativo olhar, interrogando-se intimamente
de onde se conheciam, atraídos por uma poderosa onda de
mútua simpatia. Entretanto não nos cabia qualquer
altercação que desviasse nosso precípuo objetivo e
continuamos atentos ao nosso estimado mentor, cujas
palavras ansiávamos ouvir novamente:

-- Amigos, devo informá-los de que também estamos em


tarefas nestas plagas de dores, atendendo ao apelo de
nosso passado, ainda bastante devedores do Velho
Continente, onde guardamos nossas origens e
entesouramos ricas aquisições evolutivas na carreira de
tantos séculos. Assumi compromisso junto a trabalhadores
de minha colônia, em socorro às especiais vítimas desta
injustificável guerra: os judeus. Estes nossos irmãos, como
certamente já sabem, estão sendo recolhidos e enviados
para campos de concentração na Polônia, onde começam a
ser brutalmente

assassinados.

Serão

alvos

de

atrocidades

inimagináveis, mortos aos milhões, e formidandos meios de


exterminação em massa já estão sendo providenciados, em
obediência a funestos planos, aventados pelos
desapiedados protagonistas deste conflito. Já pudemos
presenciar alguns destes massacres, assustando-nos
sobremaneira pelo fragor de desumanidade com que se
realizam, comovendo-nos às lágrimas.

De fato, ouvíramos notícias do ocorrido, mas não sabíamos


que o Mal atingira proporções tão assustadoras. Ante nosso
assombro, prosseguiu o benfeitor:

-- Em uma operação intitulada “solução final”, nossos


irmãos alemães intencionam aniquilar todos os semitas por
considerá-los raça desprezível e indigna de participar da
nova ordem que pretendem impor ao mundo. Denominados
“insetos infectantes”, com

requintes

draconianos,

estão

sendo

maltratados,

escravizados e entregues a experiências funestas, como se


fossem míseros animais. Estamos envidando esforços para
minorar-lhes os padecimentos e evitar o que for possível.

Atendendo às inquietantes interrogações, que tacitamente


percorriam nossas mentes, ousei perguntar-lhe:

-- Entendemos que o equívoco obedece à maldade dos


homens, consorciados às sugestões das trevas, mas haverá,

404
amigo, na Lei Maior, motivos que justifiquem tamanha
barbárie?

Alguma coisa fez este inditoso povo para merecer tão


execrável e aparentemente gratuita agressão?

-- Sem dúvida existirão razões mais profundas que nos


escapam à compreensão, pois a lei é perfeita, e não
podemos imputar acasos mesmo que o homem tenha
liberdade para agir, dentro de certos limites, em prol do
bem ou do mal. Os povos, assim como os indivíduos,
semeiam destinos coletivos, e no passado sempre
encontraremos as justificativas seguras que colocam cada
qual no seu justo lugar. As ações humanas por isso,
obedecem às invisíveis sugestões que permeiam seus
sentimentos e entretecem o concatenar de suas vidas. E
embora a maldade não se justifique jamais, dela se serve a
lei, como instrumento de coerção, uma vez que o ser é livre
para exercê-la nos patamares inferiores da evolução.
Portanto, é nossa inerente condição de inferioridade, aliada
ao nosso passado de crueldades, que nos coloca no lugar de
vítimas, entregues aos desmandos de uma sociedade ainda
involuída e afeita a atrocidades. No caso em questão,
vemos nos agressores o despropósito de um povo que,
considerando-se raça superior, pretende dominar o mundo,
expurgando-o de toda imperfeição, refletindo a natureza
extremamente rebelde do homem, que se coloca
egoisticamente como centro de referência para a vida. Por
outro lado, os semitas, desde eras remotas, nutrem doentio
orgulho, julgando-se também povo eleito e destinado à
supremacia, o que tem sido motivos de antipatias e
agressões por parte daqueles que não puderam lhes
suportar o inconsciente sentimento de elação. Percorreram
os tempos em busca de uma Terra Prometida e não se
acomodaram no seio de outras culturas, não se permitindo
com facilidade, a miscigenação com outros irmãos.
Reservados, cultivaram hábitos de se infiltrarem nas
organizações estrangeiras com intenção de exploração
econômica, mantendo-se presunçosamente recluídos em
núcleos separatistas. Isso estimulou, em todos os tempos, a
antipatia gratuita das demais etnias, que nunca lhes
toleraram o soberbo e insistente isolamento racial, em
decorrência de suas próprias e orgulhosas discriminações.
Entrementes, justificando-se ou não as dores imputadas,
como seareiros do Bem, somos compelidos a minorar ao
máximo o sofrimento alheio, empregando os meios
possíveis ao nosso alcance, para sufocar o clamor de
maldade que ainda vigora em nós.

Embora o assunto nos suscitasse um debate mais profundo,


satisfazíamos nossa indignação diante do imenso massacre
e não ousávamos intervir, delongando considerações, pois o
amigo tinha

405

premência em dar cumprimento à importante atividade.


Com a sensibilidade que o caracterizava, prosseguiu Heitor,
agora com a voz embargada de emoção:

-- Precisamos evocar o passado para agir com eficiência no


presente, e para isso necessito de que os amigos me
auxiliem na composição de painel ideoplástico a fim de
envolver nele o nosso caro amigo Aristides, aqui presente,
aproveitando-nos de sua proverbial aquiescência e
bonomia. Como vocês vivenciaram comigo parte de meu
pretérito, e detêm o conhecimento técnico para isso, muito
poderão ajudar-me. Como podem denotar, ele se acha
envolto em grave questão que o mobiliza por completo,
impedindo-lhe o sono.
De fato, o irmão encarnado, aturdido, sustentando a cabeça
entre as mãos, chafurdava-se em um nicho de impressões
que vivenciava no momento, dominado por acerbas
preocupações, completamente insone, apesar de exausto e
da adiantada hora que já adentrava a madrugada.
Convidando-nos a envolvê-lo em vibrações de simpatia,
após breve pausa, continuou a nos falar Heitor:

-- Expliquemos contudo, o nosso plano de ação e a


necessidade da tarefa. Como certamente observaram, a
cidade de Bordeaux vive instante de intensa agitação.
Verdadeira multidão de judeus aqui se aglomera, na
esperança de se evadir da atroz perseguição nazista. A
única saída no momento é para a Espanha ou Portugal,
onde estarão seguros, porém os dirigentes dessas nações
lhes negam sistematicamente vistos de entrada em seus
domínios, e os franceses impedem a evasão daqueles que
não possuem autorização de transferência, trazendo os
corações empedernidos, obedientes ao governo provisório
de Vichy, que infelizmente, denota também atitude
antissemita e certa complacência com os interesses
germânicos, para desgosto de muitos.

Aristides é cônsul de Portugal e pode homologar permissão


de entrada em seu país, salvando estes pobres refugiados
de inditoso destino. Já conseguimos fazer com que grande
número de petições chegasse até ele, porém a dúvida
domina-o e ele recalcitra diante da possibilidade de fazer o
bem, pois seu governo já lhe proibiu formalmente a
chancela de qualquer ato com este fim. Naturalmente que
ele teme por seu cargo e sua integridade política,
desobedecendo às ordens de seus superiores.

Precisamos urgentemente convencê-lo a superar as


ordenações humanas transitórias, abdicando-se das
prerrogativas pragmáticas
406

da vida na carne, em prol da vitória do bem, e da própria


felicidade. Eis nossa missão, irmãos.

Certamente os amigos se recordarão dele, pois estamos


diante do desembargador João Marques. Foi ele o
implacável juiz, na mesma época em que eu envergara a
trágica personalidade do Cardeal da Cunha. Era meu
cúmplice de prevaricações, e dele me servia no indigno
ofício do tribunal da Inquisição, como já lhes dei a conhecer,
na exposição de minhas transatas desventuras,
compartilhadas com o padre Bartolomeu e sóror Paula. Na
direção do alcácer, cumpria ele com enérgica determinação,
as minhas execráveis ordens, exorbitando muitas vezes em
sua execução, atendendo aos requintes da própria
crueldade. Juntos realizamos implacáveis perseguições a
incontáveis judeus e simpatizantes do semitismo,
condenando-os ao degredo, à reclusão, ou mesmo à
fogueira. Não posso olvidar os pobres inocentes, que sob
hedionda tortura, confessavam crimes e práticas
demoníacas que jamais haviam cometido, habituados que
nos achávamos a manobras espúrias, visando unicamente à
instância de estelionatos abjuratórios, acafelados por
mentirosa defesa da Santa Sé. Carregamos na lembrança
tamanho passado de opróbrios que precisamos escoimar da
consciência, a fim de trazer paz à alma. Somente a prática
sincera do bem pode nos permitir este desiderato,
justificando para isso a renúncia aos interesses falaciosos da
vida. Por isso, iniciemos sem demora, a tarefa que nos
compete.

Compondo sentida prece, Heitor evoca a ajuda divina para a


excelsitude do serviço. Sob sua orientação, entorpecemos a
mente do irmão encarnado, fazendo-o finalmente
adormecer.

Contudo, o cônsul não se dispunha à emancipação do corpo,


estando fortemente atado à mente física, assoberbada por
graves inquietações. Após grande esforço, operando
energias magnéticas de elevado teor, conseguimos
desprendê-lo da veste orgânica, porém o amigo não podia
perceber-nos, ainda entorpecido pelos eflúvios de baixo
quilate que o envolviam, e tivemos que ativar sua visão
espiritual, permitindo-lhe divisar-nos com clareza. Diante de
sua absoluta tranquilidade, identificando de imediato nossas
amistosas intenções, entretivemos com ele proveitosa
confabulação considerando a relevância dos últimos
acontecimentos que lhe ocupavam por completo o
pensamento.

Convidando-o ao recolhimento para que pudéssemos ajudá-


lo no delicado momento que vivia, iniciamos a mentalização
de um quadro da época, seguindo a tecelagem ideoplástica
emanada de Heitor, enquanto este se transmutava

407

no Cardeal da Cunha. Em breve achávamo-nos envolvidos


por um recinto cuja decoração adivinhávamos tratar-se do
Tribunal do Santo Ofício. Tocando-lhe a mente e subjugando-
a por poderosas energias hipnóticas, proferiu o mentor com
forte inflexão de voz:

-- Desembargador João Marques, desperta das profundezas


do tempo e recomponha a memória nas lembranças que
não morrem jamais. Sou o Cardeal da Cunha, e venho
convocá-lo do passado para mais uma de nossas missões.
Paulatinamente, Aristides se metamorfoseava na figura do
antigo desembargador, sem denotar assombro, pois sua
mente se acomodava passivamente ao influente
magnetismo de Heitor.

Enquanto fornecíamos energias ectoplasmáticas


necessárias à sustentação da tarefa, prosseguia o insigne
preletor:

-- Amigo, sei que como eu, pesa-te neste instante a


rememoração das tamanhas barbaridades que juntos
praticamos, quando envergávamos estas tristes
personalidades que ora nos vestem o ser. São tantos
aqueles que fizemos aflitos, e que ainda choram as desditas
que lhes imputamos! Trazemos até hoje a consciência
acoimada por suas dores, desejando ardentemente libertar
a alma do calabouço de improbidades que criamos para nós
mesmos, e somente um caminho nos é possível: a
realização de um grande bem com o sacrifício de nosso
conforto imediato e de nossos interesses mundanos. Neste
comenos de desabridas angústias que vivenciamos, exoro o
pretérito, não com o intento de acicatar-lhe a alma, já
reformada para o bem, mas porque, compungido, ouço o
apelo de muitos, batendo às portas do teu coração,
suplicando-te por socorro. Se não fizeres nada para salvá-
los, serão deportados para os campos de concentração da
Polônia, onde serão cruelmente assassinados, tu sabes
disso. Não deixemos o espírito sufocar-se no despautério da
insensatez, pois não renascemos na carne unicamente para
a satisfação do mundanismo, mas nela comparecemos a
soldo da União Divina, a fim de refazer todo o mal praticado,
e atender aos imperativos da reconstrução da angelitude
em nós.

-- Compreendo, magno Cardeal. Compadeço-me deste


pobre povo que me pede ajuda, vejo crianças chorosas e
famintas, mulheres aflitas, velhos tristes e lamento seus
destinos, mas meus superiores proíbem-me qualquer
atuação, e não me convém contrariá-los, pois lhes sou
subordinado.

-- Devemos nos subordinar apenas à vontade do Cristo, e


não temos outro compromisso senão atender aos apelos do
bem.

Os poderes temporais são irrisórios e passam como os


ventos fortes,

408

porém transitórios, causando apenas movimentos das


massas.

Somente o bem é força poderosa o bastante para construir


valores sempiternos, imprimindo-nos reformas imorredouras
ao espírito e modelando-nos para a perfeição. Por isso não
podemos deixar que a oportunidade de executá-lo se esvaia
nos despropósitos vãos de nosso orgulho, e de nossos
infundados receios. Transformemos cada átimo do tempo
em uma ação para a eternidade, fazendo de nossa vida uma
missão, e encontraremos a tão almejada paz.

-- Sinto de fato o coração pejado de aflições e o clamor das


minhas muitas vítimas suplicando piedade, ainda ecoa nos
ouvidos de minha alma, solapando-me o sossego espiritual.
Sei que devo fazer o bem, porém sou fraco para abdicar-me
das prerrogativas de minha posição no mundo. Ajuda-me,
honorável Cardeal! Tu conheces os caminhos do céu.

-- Sou teu comparsa de torpes desventuras e indigno do


sacrário cristão, amigo, pois se me fiz representante do
Cordeiro na Terra e preguei em seu santo nome, jamais lhe
segui os passos, e palmilhei na verdade, as tortuosas rotas
de Satanás. Não mereço as alcunhas das honrosas
referências humanas, e ser chamado simplesmente de
irmão me é, no momento, o maior título que posso pleitear.
E como tu, também ignoro os caminhos do paraíso, pois
acumpliciado com as sombras, perdi o contato com as
miríficas claridades do Evangelho, mas sei que Cristo já
nolos indicou. Para segui-los porém, é preciso renunciar às
credenciais que os homens nos emprestam, e sair de nosso
comodismo. Como demandar as estradas alvissareiras do
Divino, se o egoísmo permanece conspurcando-nos a
consciência, impedindo-nos a atuação em favor daqueles
que naufragam nas peias da ignomínia?

-- Mas sou o cônsul, homem de confiança de Salazar e lhe


devo irrestrita obediência. Como não cumprir com sua
determinação, se ele já me proibiu de qualquer interferência
nos assuntos dessa guerra? Poderei colocar em risco a
neutralidade de minha nação. Serei eximido de meu posto e
execrado pelos meus, pobre de mim...

-- Sabemos que sua atitude não será compreendida na


Terra, porém o Céu a acolherá com imenso júbilo,
preenchendo-te a alma de indizíveis alegrias. Confie em
minhas palavras, pois não há outra direção a seguir na
encruzilhada em que te encontras. Comprometo-me a
ajudar-te como possível, pois sou ainda um homem
endividado com a dor alheia e não podemos desbaratar a
oportunidade de ressarcimento de um débito

409
comum. Perseguimos incontáveis judeus, sem uma justa
razão senão a nossa perfídia, cometendo ainda o sacrilégio
de apregoar pelo exemplo, uma falsa moral cristã. Hoje
precisamos dar mostras de que estamos mudados, e o
Cristo verdadeiramente habita nossos corações,
recompondo o grave delito. Os primeiros cristãos não se
imolaram nos circos romanos por amor ao Mestre e para
que sua palavra sobrevivesse na eternidade dos tempos?

Preocupas-te com a posição que os títulos terrenos te


conferem, porém o cognome de Paladino de Jesus não te
parece ser o mais alto epíteto que podemos almejar na
Terra?

Aristides, um pouco combalido, vergado pelas indecisões do


grave instante que vivenciava, a custo conseguia manter-se
desperto, acompanhando o inusitado diálogo, misto de
remoto passado com o presente. Premido pela
impossibilidade de imediata decisão, desejoso de evadir-se
da freima de sofreguidão que lhe dominava o mundo íntimo,
mergulhando no torpor. Seus olhos se fechavam e não
podíamos mais sustentá-lo no transe, em decorrência das
tumultuadas vibrações do ambiente, as quais não
conseguíamos isolar de todo. Era prudente interromper a
vivência, despertando-o na carne, propiciando-lhe ainda
uma clara recordação do momento, alimentando-o com as
efusivas sensações de realismo do precioso sonho
vivenciado.

Ao acordar, o cônsul chorava abundantemente, sem


compreender a excelsitude do instante que presenciara.
Sentia o coração preenchido com os mais elevados
sentimentos já nutridos na vida. A inquestionável
autenticidade da lembrança, ainda esfuziante na memória,
e a nítida sensação de nossa presença arrancavam-lhe
lágrimas de insopitável emoção. Uma profunda alegria lhe
banhava a alma com inebriantes albores de paz, embora
compungido por uma imensa culpa de que não lograva
identificar a origem. O enorme salão do Tribunal do Santo
Ofício se lhe desenhava na mente com minúcias, e divisava
na tela mental, a figura excelsa de Heitor, compondo-lhe
palavras que julgava vir de Deus. Não podíamos no entanto,
deixá-lo entregue às próprias confabulações e
prosseguíamos apoiando-o nos propósitos que nos reunia,
envolvendo-o em um dúlcido clima de tranquilidade.

Trancafiamo-nos com ele, em seus aposentos, enquanto


Heitor seguia seu diálogo iluminando-lhe a consciência na
tentativa de persuadi-lo à tarefa. Vivenciando inefáveis
sensações espirituais, não se animava a sair para atender
aos compromissos rotineiros, receando privar-se do clima
que o envolvia, em meio ao vendaval das paixões
desenfreadas que o aguardava lá fora. Seus serviçais,
cansados de bater à porta, temendo que algo se lhe

410

havia passado, deixaram-no finalmente, depois de ouvirem


dele repetidas vezes, que tudo estava bem, mas que não
desejava ser molestado. Sequer comera algo, tamanho o
envolvimento espiritual que assenhoreava por completo
todos os seus sentidos.

Após o terceiro dia, saiu enfim, com a firme resolução de


fornecer autorização a todos os que o procurassem,
indistintamente. Sem atinar sobre as razões de sua arrojada
e incompreensível atitude, instalou seu gabinete de trabalho
em plena rua, e se pôs ativamente à emissão de vistos, e
providenciando inclusive, para que fossem todos levados à
fronteira. Salvou do holocausto milhares de judeus, e
embora não se tenha registrado com ênfase o fato, foi
aquele que individualmente, conseguiu ajudar o maior
número de pessoas de que se tem notícias na história dos
homens. Sua façanha ficou registrada nos anais do Mundo
Espiritual como um dos maiores atos heroicos da guerra, um
exemplo vivo e convincente de que o amor evangélico tudo
pode. Obedecendo aos nobres imperativos da consciência,
amadurecida por verdadeiro sentimento cristão, desacatou
as ordens de seus superiores, sacrificando sua posição
social e abdicando-se dos valores humanos. Retornando ao
seu país, foi condenado à prisão, arruinando-se-lhe a
carreira diplomática e a própria vida, vindo a morrer na
penúria em um mosteiro franciscano, nimbado contudo, por
benfazejos eflúvios espirituais, e enriquecido de inapreciável
relicário divino. Foi recebido como um prócer em nosso
plano, por milhares de espíritos reconhecidos pelo enorme
bem que praticara. Muitos daqueles a quem socorreu,
sensibilizados pelo exemplo de renúncia cristã,
converteram-se aos propósitos da Boa Nova, convencidos
da poderosa força do amor ao semelhante, e do exemplo do
Cristo. Refugiaram-se mais tarde no continente americano,
e imbuídos de tamanho entusiasmo pela fé renovada,
comprometeram-se entusiasticamente com a semeadura do
Evangelho redivivo nas terras do Novo Mundo, trabalhando
com entusiasmo nas fileiras desbravadoras do Espiritismo
Cristão, para a reconstrução de uma humanidade
verdadeiramente feliz.
411
36
capítulo

REENCONTRO MEMORÁVEL

“Tornaste o meu pranto um regozijo, tiraste o meu cilício, e


me cingiste de alegria.”

Salmo, 30:11

Heitor exultava de contentamento pela tarefa cumprida.

Sensibilizados pela excelsitude da empreitada, assistindo ao


passado socorrer eficazmente o presente, reconhecíamos a
força da misericórdia divina atuando em socorro de quantos
possuem méritos inseridos em sua magna lei de causa e
efeito. Gostaríamos de permanecer junto ao prestimoso
mentor, conduzindo aquele sofrido povo até aportar em
terras seguras, porém nossas obrigações nos chamavam de
volta às atividades habituais que necessitavam de nosso
modesto concurso. Ao nos prepararmos para a partida, o
dileto amigo ainda nos disse, movido pela modéstia que
caracteriza os espíritos superiores:

-- Somente Deus poderá recompensá-los pela prestimosa


ajuda, sem a qual nada me teria sido possível. A alegria da
consciência redimida não tem preço, e jamais olvidarei a
colaboração dos amigos. Certamente nos encontraremos
em breve, pois irei visitá-los quando possível. Por ora o
dever nos chama ao trabalho e não podemos adiar nossas
obrigações.

Antes que partam, preciso no entanto, pedir-lhes mais um


favor.

Catherine, que finalmente puderam rever depois do


interstício de nosso silêncio, necessita novamente do
precioso concurso de vocês. Ela fez questão de
acompanhar-me no atendimento às vítimas do holocausto,
porém sua sensibilidade a tem impedido de atuar como
convém, diante dos atrozes sofrimentos que vem
presenciando. Tenho que continuar assistindo esse sofrido
povo, junto à minha equipe de socorro, e gostaria que a
levassem para trabalhar junto à Adelaide nas enfermarias
de Saint Philippe, domiciliando-a em seus afetuosos
corações.

Ante nosso aceno de anuência ao afável pedido, prosseguiu


o amigo:

412

-- Nossa boa irmã sente-se profundamente constrangida na


presença de vocês, ciente de que lhe conheceram o
delituoso passado, o qual deseja encobrir. Logo que se deu
conta de sua atual condição, acoimada por imenso
sentimento de culpa, e cientificando-se por nosso
intermédio de sua vida transata e dos motivos que nos
unem, ocultou-se no hábito freiral que vestia no pretérito, a
fim de evadir-se de si mesma. Intentando retroceder à sua
anterior reencarnação, ensejava eliminar definitivamente da
lembrança, os opróbrios perpetrados em sua última
experiência carnal, e solicitou-nos que a tratássemos pelo
antigo nome. Porém, como não podemos fugir
indefinidamente de nós mesmos, aconselhamo-la a
enfrentar com galhardia a penúria íntima fixando
imorredouras lições para o futuro, reassumindo sua
personalidade atual.

Adelaide, comovida, envolveu-a em acolhedor abraço,


externando-lhe profunda compreensão e carinho,
desfazendo instantaneamente seu injustificável desconforto
em nossa presença. A amiga, entibiada, esboçava
acanhado, porém meigo sorriso, completamente distanciada
da expressão orgulhosa que antes deixava exalar de sua
altaneira personalidade, em meio às extravagantes
fragrâncias francesas de outrora. Heitor, registrando os
nossos pensamentos, sorria, continuando a nos dirigir a
palavra:

-- Contudo, não posso deixá-los, sem apresentá-la


devidamente à Alberto. Como vocês certamente já se
deram conta, há profundas razões nas teias do destino que
os reúnem neste momento. Não nos convinha antes esta
revelação, pois nossos amigos precisavam do recolhimento
a fim de se refazer dos dolorosos dramas que
confeccionaram para si mesmos. Destarte, a hora é
chegada.

E, diante do novo assombro que nos tomava o espírito,


achegando-se carinhosamente à sua pupila, abraçando-a
com desvelado amor e indicando Alberto, revelou enfim:

-- Catherine, minha querida, eis Alberto, aquele que você


colheu no seio materno para depois rechaçar do corpo por
ato impensado, indigno do seu coração, pouco antes de seu
retorno à pátria do espírito...Alberto, irmão dileto, esta é
aquela a quem você deve a recuperação integral da
consciência e a evasão das dores do suicídio doloso,
renegando a bênção da vida...Filha, este é ainda Bartolomeu
de Gusmão, de quem lhe falei, e com quem você
compartilhou juras de paixão em Portugal, no século
dezoito, embora envergassem hábitos sacerdotais...
Bartolomeu, esta é a irmã Paula, quem o acolheu no
coração e soube honrar o amor

413

que lhe devotava, e quem você procurou por tanto tempo,


ansiando saciar a imensa fome de amor que lhe devorava a
alma... Irmã Paula, este é ainda Zenon, aquele que inventou
a mais destrutiva das armas humanas e empreendeu a
guerra, somente para se vingar dos bárbaros que a
roubaram de seu coração... Zenon, esta é enfim, Constança,
que lhe ensinou as primeiras lições de afeto, domando-lhe o
espírito rude e guerreiro e aquela ainda que o libertou do
pesadelo de sombras que o retinha nos abismos do ódio...
Regozijemo-nos, irmãos, e agradeçamos ao Senhor a
oportunidade deste memorável reencontro.

Os dois amados se reviam afinal, após longas peripécias do


destino, emudecidos e extasiados ante a inesperada
revelação, justificando-se os sentimentos recíprocos que
inexplicavelmente os atraiam naqueles poucos dias de
agradável convivência. Com a voz embargada de emoção,
continuou Heitor:

-- Aprouve o Senhor reuni-los em minha presença, pois fui


eu quem os separei drasticamente, causando-lhes enormes
males dominado pela doentia personalidade do Cardeal da
Cunha, há tantos anos, cujas lembranças não podemos
olvidar. Duas almas comprometidas pelos laços de genuíno
amor, superando os séculos e a maldade alheia, hoje se
reencontram, ainda que em local tão impróprio, embora
irmanados pelo ideal cristão.

Imensamente agradecido a Jesus por patrocinar-me esta


oportunidade, ainda lhes suplico o perdão pelo passado de
inomináveis crueldades que equivocadamente lhes impus.

Acolho-os como verdadeiros filhos do coração e espero que


me considerem em seus sentimentos de piedade
dignificando-me perante suas consciências e ajudando-me
em minhas muitas necessidades.

Desfeitos em ardentes lágrimas, os três se abraçaram,


enleados por imenso júbilo e entretecidos por elevados
sentimentos, arrancando-nos profundas emoções de
gratidão a Deus, incansável reconstrutor de nossas almas.
Admirávamos a ação persistente das forças da vida, que se
utilizam de intricados caminhos para tecer os fios do
destino, enlaçando todos aqueles que se comprometem
com o desamor ou com a afetividade sincera, unindo-os em
indissolúveis cadeias sedimentadas pelo amor verdadeiro.
Era um instante memorável, e somente a prece silenciosa
podia ocupar nossos corações, que mesmo em meio ao
torvelinho das mais infrenes paixões humanas que o mundo
já presenciou, inundava-se de inefáveis eflúvios.

414

Estava revelada enfim, toda a trama que envolvia nossos


amigos e entrelaçava suas vidas, tudo se explicando em
lógica irretorquível.

-- Como veem, amigos – finalizava Heitor, profundamente


emocionado, -- grande ventura concede-me hoje o Senhor,
permitindo-me conjuntamente, o ressarcimento de duas
grandes dívidas de meu pretérito, num mesmo momento,
mesmo em meio às acerbas infelicidades que nos cercam.
Vemos a vitória do bem por intermédio de Aristides,
salvando milhares de irmãos de inditoso destino, e duas
almas se reencontrando nos descaminhos da vida. Quiçá
prossigam, agora refeitos de tantas dores e tamanhos erros,
nas pegadas do Cristo, reconstruindo futuro promissor de
alegrias. Agradeço-lhes imensamente por me haverem
auxiliado nesta hora de importantes conquistas, e desejo
que o bem continue a iluminar-nos no firme propósito de
prosseguir na trilha de nossa redenção.

Abraçamo-nos, despedimo-nos, reconhecidos à Providência


Divina, capaz de nos recompensar todo esforço despendido
no trabalho socorrista, com multiplicadas bênçãos de
reconforto, ainda que as tormentas das trevas nos
ameaçassem a paz do espírito. E com os corações
embriagados de pura afetividade, partimos em busca do
serviço que nos aguardava, convencidos de que o amor
vence os séculos, supera todas as distâncias, aplaca e
transforma o ódio por maior que seja, ultrapassa todas as
barreiras dimensionais para unir as almas em indissolúvel
conúbio divino.
415
37
capítulo
EM UM CAMPO DE LUZES
“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não
temeria mal algum, porque tu estás comigo, a tua vara e o
teu cajado me consolam.”

Salmos, 23:4

Tornando às nossas atividades em Saint Philippe, Catherine


e Alberto mal conseguiam dissimular a explosão de
sentimentos que lhes dominavam o coração, e seguiam
embevecidos, porém ao nosso lado, empenhados na tarefa
comum. Reassumimos nossas visitas diárias às frentes de
batalha, executando nossa tarefa como programado, e
sempre que retornávamos podíamos vê-los permutando
amistosos diálogos, sem contudo demonstrarem as paixões
comuns dos enamorados. O longo período que os apartara,
certamente rompera com a intimidade que antes
entreteciam, e necessitavam de novo convívio para refazê-
la.

Além disso, certamente Catherine inibia-se diante da


recordação de sua última experiência terrena, trazendo o
coração conspurcado pelas leviandades afetivas a que se
rendera e a consciência oprimida pelas culpas dos atos
impensados, devendo esforçar-se por cicatrizar as feridas
ainda abertas na alma.

Em nossas confabulações, revelava a amiga que se achava


imensamente reconfortada, sobretudo por estar diante
daquele contra quem, sabidamente, havia praticado um
irrefletido ato de maldade. Tinha plena consciência de que
assassinara Alberto cruelmente, no próprio seio, embora
trouxesse a nítida impressão de que se tratava de alguém a
quem muito queria, fazendo-me recordar da visão que
vertera de sua memória profunda, no instante de seu
desenlace (ver final do cap. 13). Por muito tempo ansiara
reencontrá-lo a fim de desculpar-se e algo fazer em seu
benefício, conquanto Heitor sempre disposto a consolá-la,
lhe solicitasse paciência e resignação, prometendo-lhe que
esse dia não tardaria a chegar. Em suas orações pedia a
Deus essa bendita oportunidade, embora a vergonha a
suscitasse ao recolhimento, ocultando de todos o terrível
passado.

416

Confessava assim seu alívio, afirmando entretanto, que sua


surpresa maior foi deparar-se com um homem já feito e não
uma criança, como esperava. Somava a isso o enorme
espanto de encontrar na mesma pessoa o amado de outros
tempos, levando-nos a refletir que, na iminência de se
praticar o aborto criminoso, deveriam os homens ao menos
pensar na possibilidade de estarem diante de alguém muito
querido contra quem jamais teriam a coragem de cometer a
inclemência de qualquer ato.

Alegrava-se por estar perante ele, porém não se sentia


imbuída de instintos maternais para acolhê-lo como um filho
rejeitado, encontrando-se decididamente com suas
emoções femininas bastante confusas, mediante as quais a
aconselhamos aguardar que o tempo lhe favorecesse a
acomodação dos sentimentos.

Arrependendo-se amargamente de todas as ações


impensadas de sua vida, ainda se sentia envergonhada
perante o companheiro de longas eras, por não lhe ter
mantido a fidelidade.

Alberto, com sua característica timidez, aproximava-se aos


poucos da amada de outros tempos, sem conseguir
esconder seu profundo contentamento por reencontrar
aquela a quem tanto buscara em prolongados e penosos
anos de solidão. Embora o imenso interregno sem vê-la, e
os choques transreencarnatórios tivessem lhe esvaído da
memória a sua nítida recordação, estes não foram
suficientes para apagar completamente os sentimentos que
nutria por ela. Contudo a afetividade, por tanto tempo
reprimida na última solitária incursão terrena, distanciara-
lhe também do exercício da afeição, exigindo-lhe que o
coração se acomodasse paulatinamente aos novos anelos
que agora voltavam a vicejar em sua alma. Destarte, as
circunstâncias no momento eram adversas, e ambos
deveriam se empenhar com afinco em prol dos sofredores
da guerra, aguardando que a paciente obra do tempo, que
opera milagres em nós, refizesse-lhes as relações de estima,
vigorosas, porém ainda adormecidas no coração.

O espírito desencarnado detém as mesmas expressões de


sentimentos da vida na carne, e permanece imbuído de
idênticas atrações amorosas que nos entretecem as
construções afetivas.

Podemos inclusive afirmar que a maioria das uniões


conjugais duradouras, se estabelece no Plano Espiritual,
onde se constroem verdadeiras afeições e se confeccionam
os sonhos de amor, os quais prosseguem na vilegiatura
terrena. Portanto, não é de se estranhar que as famílias se
formem no Mundo dos Espíritos, tal como se organizam na
Terra, e os casais que realmente se amam continuam
compartilhando objetivos, estabelecendo lares e
417

comungando a vida na Erraticidade, sem levarmos em conta


que o amor é sobretudo imorredoura e estrema expressão
da alma, transportada de uma existência para outra, sem
que o esquecimento temporário da carne desate os
poderosos laços que o sustêm.

Catherine servia com esmero aos desencarnados de guerra,


adaptando-se ao penoso serviço ao lado de Adelaide,
demonstrando

excelentes

qualidades

no

exercício

de

enfermagem. Alberto, à medida que vencia a barreira de


sua natural timidez, com vivo entusiasmo, interessava-se
em relatar à companheira suas últimas façanhas terrenas,
esmerando-se para não exibir presunção, enquanto a amiga
permanecia reticente em lhe abrir o coração, não lhe
expondo os motivos de suas penúrias que iam além do ato
criminoso do aborto, pois se revestiam das execrandas e
inditosas experiências de cortesã, como sabíamos.
Respeitávamos sua reserva, aguardando que ela se
superasse, retratando-se como lhe convinha. Entretanto,
ante os insistentes pedidos de Alberto, sobejamente
interessado em saber quem fora seu pretenso pai e se a
irmã havia constituído uma nova família, a amiga terminou
por relatar-lhe suas malfadadas peripécias, imbuída de
laudável humildade. Sem conseguir ocultar a decepção,
Alberto, demonstrando ainda a subjugação ao
condicionamento humano, andou novamente constrito e
arredio, esforçando-se para dissimular o desgosto que lhe
invadira a alma. Porém seguia entretendo relações
amistosas com aquela que paulatinamente voltava a lhe
habitar o coração, e sabíamos que superaria o cioso transe,
pois já albergava certo equilíbrio emocional, e suficiente
compreensão para isso.

Envidando esforços para superar o homem velho,


permanecia em sua companhia, porém sem desejar tornar
ao assunto, demonstrando o quanto a notícia lhe
admoestara a alma, conquanto Catherine prosseguisse
correspondendo-lhe com significativa candura, ainda que
mesclada de vergonha e pesar.

Compungia-nos vê-la tristonha, pois sabemos que para o


espírito desencarnado, a revelação dos grandes erros
praticados na romagem terrena é uma de suas maiores
dores, sobrepujando qualquer outro sofrimento. O
atendimento aos enfermos, destarte, valia-nos como
preciosa terapia para os males albergados na consciência, e
aguardando a sábia ação do tempo, não nos animávamos a
interferir na delicada questão pertinente aos seus corações.

Heitor porém, em sua primeira visita ao nosso


acampamento, interessado em acompanhar os progressos
de seus pupilos,

418

denotou de imediato, a distonia que se estabelecera entre


ambos, e convidou Alberto a refletir com sinceridade, na
embaraçosa dissensão que parecia dominar sua capacidade
de reação. Em nossa presença, asseverou-lhe como um
verdadeiro pai:

-- Filho, quando você irá abrigar-se definitivamente, nas


assertivas evangélicas? Ouço seu coração nublando-se de
indignação, assumindo a postura do atirador de pedras,
diante da sincera confissão de Catherine, que com
humildade expôs-se à sua compreensão. Na vivência
essencial que já desfrutamos e no patamar de
conhecimentos que já adquirimos, não nos convém
estacionar nos melindres humanos inferiores, vivenciando
ciúmes injustificáveis. Não olvide que sua parcela de
responsabilidade nas transatas desventuras de nossa irmã é
considerável, pois sua irrefletida infidelidade, ao envergar a
promíscua figura do padre Bartolomeu, eivada de
improbidades sexuais, maculou-lhe o digno coração de
mágoas e forneceu o exemplo para desmandos de igual
natureza. Como lhe exigir fidelidade em uma união que
você mesmo se apressou a desrespeitar? Você foi o primeiro
a se prostituir nas peias da libido infrene. E recorde ainda
que foi você quem dela se distanciou por imposição da
castidade compulsória, necessária ao seu reequilíbrio. Sob o
duro guante da solidão e alinhando na memória intuitiva a
lembrança da traição, a irmã se viu lidimada a arrostar as
tortuosas veredas do heterismo. Sabemos que a um mal
nunca se responde com outro e um erro não corrige o que o
motivou, porém, como não lhe perdoar os deslizes, se você
foi o primeiro a semear a devassidão em seu coração,
estimulando-lhe

reação?

Nossas
vidas,

filho,

estão

peremptoriamente entrelaçadas em conúbio mantido pelas


nossas ações e intenções, de forma que nossas atitudes
indevidas se voltam sempre contra nós mesmos,
impregnando-nos das mesmas dores que imputamos ao
outro. O fato ainda nos deixa entrever mais uma vez, a
sábia ação da Providência Divina que, pela lei do retorno, o
força a colher agora mais uma lição, embora advinda de tão
distante passado.

Ante o constrangimento do companheiro, o estimado


preletor, acolhendo-o em afetuoso olhar e abraçando-o,
continuou com a autoridade que lhe competia, coagindo-o a
realinhar os sentimentos de acordo com as recomendações
evangélicas:

-- Constrita-me sobremaneira vê-lo em atitude de


reprovação e injusta cobrança de infidelidade. Desfaça a
máscara de ignomínia que lhe veste a alma e acolha no
coração

419

aquela que lhe é verdadeira alma gêmea. Aprenda a amar


sem caprichos, a fim de que seu amor não se converta em
amargo fel, oprimindo a pessoa querida. Na escola
evangélica que frequentamos, é impossível pretender a
compreensão sem antes compreender, o respeito sem antes
respeitar, o perdão sem antes perdoar, como em prece nos
ensinou tão bem o santo de Assis.
Alberto corou-se acabrunhado, e dirigindo-nos o olhar
complacente, buscava o apoio de minhas palavras, que no
entanto não lhe pude dispor. Calando-se diante da
realidade, sem ter o que dizer em sua defesa, e
apercebendo-se perscrutado pelo pensamento do magno
espírito, tratou apressadamente de modificar os
sentimentos. E em breve, víamo-lo remindo os danos do
coração, retornando ao bom humor. Irradiando alegria
diante de sua amada, para alívio de todos nós, denotava
que rapidamente superara o desabrido transe emocional.

Nossa tarefa aumentava a cada dia, à medida que os


conflitos se assomavam, atingindo o seu ápice. As forças
aliadas invadiam o sul da Itália, iniciando a cruenta
reconquista dos territórios ocupados pelo Eixo, deixando-
nos entrever que os embates se intensificariam
assustadoramente por tempo prolongado. Os planos de uma
grande invasão na costa noroeste da França se
estabeleciam como inevitáveis, e compreendíamos que
somente um estupendo enfrentamento das forças em
conflito, poderia colocar fim ao mesmo. Todas as
possibilidades de um armistício, sugeridas pelo Plano
Espiritual Superior e que poderiam ser ouvidas por aqueles
que detinham o bom senso, encontraram-se com o fracasso.
Na frente oriental, o povo soviético apesar de sofrer imensa
devastação, reagira ao morticínio e avançava a passos
largos, adentrando-se nas regiões ocupadas pelos inimigos,
sofreando-lhes a inadequada sede de conquistas.

Os dias se escoavam amargos e tristes, lentamente, na


pasma ampulheta do tempo, parecendo não ter fim o
ciclópico pesadelo humano. O desalento por vezes parecia
nos abater, dominando-nos completamente a capacidade
de servir. Destarte, espíritos superiores, em atitude de
imenso esforço, se manifestavam por vezes, ainda que
debilmente ao nosso lado, em meio às emanações da
barbárie humana, cuidando-nos com imenso carinho e
sopesando-nos o ânimo combalido. Exortando-nos ao
trabalho, traziam-nos palavras de reconforto, acalentando
nossas tristes horas com o bálsamo da esperança, e
demonstrando-nos que a luz crística continuava a brilhar
por sobre a sombria furna humana, onde chafurdava a
maldade sem limites.

420

Os desencarnados se somavam aos milhões, e nossos


acampamentos e hospitais logo se tornaram insuficientes
para a acomodação do elevado número de necessitados.
Muitos sucumbiam de fome ou frio, em completa situação
de desamparo, sem que nada se pudesse fazer, enquanto
outros eram desapiedadamente maltratados até a morte
nos formidandos campos de concentração, em
injustificáveis exibições de crueldade. Lares de encarnados,
desde que possuíssem um mínimo de equilíbrio espiritual,
passaram a receber aqueles que não tinham onde ser
acomodados. Os óbitos em condições trágicas, em
proporções jamais presenciadas, exorbitavam nossa
capacidade de serviço, e infelizmente muitos tardavam em
encontrar o socorro, pois não alcançávamos em atender a
todos. Trabalhávamos incansavelmente, dia e noite, orando
com extremado fervor para não fraquejar ante o assédio das
poderosas forças do Mal em ação no Orbe.

Certos de que por cima do céu tempestuoso, resplendia


ainda, sereno e imperturbável, o sol de todos os dias,
cuidávamos de fazer o bem que nos competia sem
esmorecer, apesar da exaustão. E sob o caos da destruição,
a sabedoria da lei prosseguia confeccionando destinos em
conformidade com as semeaduras de cada um, onde quer
que se encontrasse. As forças mantenedoras da integridade
da vida continuavam a suster o planeta, e o plano espiritual
atento aos movimentos inadequados das massas
enfurecidas, tomava providências para que os danos se
limitassem ao menor possível, e paz tornasse a
resplandecer em seus benfazejos rincões. As turbas
humanas, desvairadas, comandadas pela loucura e
norteadas pelo ódio, seriam frenadas por suas próprias
inépcias e insopitáveis ânsias de conquistas.

Heitor, que de contínuo nos visitava, sempre nos trazia


notícias de seus assistidos, relatando-nos os ingentes
sofrimentos a que se submetiam os famígeros semitas.
Vítimas de inenarráveis maus-tratos, eram mortos aos
milhares em câmaras de gás ou simplesmente fuzilados aos
montões. Aqueles que denotassem saúde para trabalhar,
eram escravizados e submetidos a árduas tarefas, e poucos
sobreviviam por tempo considerável. Enquanto outros ainda
eram usados em exóticas e terríveis experiências médicas,
como se fossem meros animais de laboratório. Diante do
imenso pesar que nos invadia ao imaginar que havia
naquela guerra cruel infortúnios e dores ainda maiores do
que aquelas que presenciávamos, o estimado tutor, certa
feita convidou-nos a conhecer de perto o seu posto
assistencial, visitando um campo

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de refazimento dos imolados no holocausto. Foi assim que


demandamos a seara de trabalhos cristãos de nosso
querido preletor. Atingimos uma região situada em um vale
cercado por montes alpinos, encimados por delicados
capuzes de neve, onde se divisava um imenso pórtico
escalado por trepadeiras floridas, porém sem que nada mais
se denotasse ao redor. Contudo, ao entrarmos por ele, um
imenso adito se entreabria aos nossos atônitos olhos. Uma
bucólica paisagem se derramava a perder de vista, qual
diferenciado mundo dimensional além do espaço que
ocupávamos. Imediatamente fomos tomados por
acolhedora temperatura e envolvidos por inebriantes
essências florais. Uma mirífica planície se debruçava em um
horizonte longínquo, onde um rio serpenteava por entre
campos verdejantes. À medida que nos aproximávamos, o
cenário divino se enriquecia de belos detalhes. Rebanhos de
ovelhas pastavam em nostálgico campo pastoril sob cálido
sol, em meio a reconfortantes sombras. Um lago cristalino
espelhando infinito azul, beijava docemente a enseada,
onde barcos pesqueiros descansavam mansamente.
Oliveiras enfileiradas enfeitavam os montes próximos e
singelas casas bordejavam por entre jardins esplêndidos,
matizados de tons multifários e luzidios. Transeuntes
serenos percorriam as alamedas amplas, acolchoadas de
relvas macias e crianças corriam alegres e despreocupadas,
sob o olha cândido de mulheres afáveis. O

clima transpirava imensa calma, adornado por melodias de


pássaros, sobrepondo-se a fundo musical de cascatas,
preenchendo o silêncio da paz que de imediato nos invadia.

Heitor nos recomendou fixar o pensamento nas sugestivas


imagens que divisávamos, afastando firmemente qualquer
ideia desalinhada que nos assaltasse, a fim de não
perturbar a sustentação do ambiente. Ante nossa
perplexidade, informou-nos:

-- Encontramo-nos, amigos, em um verdadeiro “campo de


concentração” de forças do bem. Confeccionado em uma
fenda dimensional, este espaço inspirado nos dias pródigos
do mar da Galileia, é na realidade uma construção
ideoplástica edificada e sustentada por poderosas entidades
superiores, condoídas dos acerbos sofrimentos impostos aos
irmãos semitas. Como um autêntico limbo da teologia cristã,
este ambiente os acolhe, nutrindo-os com poderosos
recursos de refazimento, preparando-os convenientemente
para a vida no além.

Pasmos diante do inusitado campo de forças mentais, não


tínhamos palavras para expressar nosso assombro, e
continuamos a ouvi-lo:

422

-- Famílias são aqui reunidas e recebem a palavra


consoladora de preletores que se lhes apresentam como
antigos profetas bíblicos, despertando-lhes recônditas
emoções, em base à fé que professam. Vivem aqui um
verdadeiro interregno entre a vida física e a espiritual,
percebido como um sonho real, afigurando-se-lhes a
verdadeira Terra Prometida, que por tanto tempo lhes
acalentou os anseios.

Realmente estávamos em um genuíno oásis em meio ao


inferno em que todos vivíamos. Prosternados,
reconhecíamos o imenso poder do bem, que sob o broquel
divino e desde que haja mérito, é capaz de superar todos os
empecilhos do mal. Antes porém que perguntássemos,
Heitor nos esclareceu:

-- Não se iludam, não estamos o tempo todo em trabalho


neste páramo de inefável quietude, enquanto os amigos
servem em meio aos adidos infernais, sob o fogo acirrado
da ira. Nosso atendimento tem-se feito principalmente junto
ao sofredor ainda na carne ou prestes a desvencilhar-se
dela. Como certamente os irmãos haverão de se recordar,
habilitei-me na arte da tortura nos afligentes tempos da
Inquisição e agora estou me adestrando no ofício do
bálsamo, envolvendo os supliciados em fluidos
anestesiantes e assistindo-os em suas mortes, muitas vezes
lentas e penosas. Para este pórtico de paz são trazidos
aqueles que detêm condições de aqui permanecerem sem
perturbar excessivamente o ambiente. Como puderam
notar, a maioria dos que aqui se aloja é composta de
crianças, mulheres e idosos, pois boa parte dos flagelados
não guarda condições de se albergar neste cenáculo
sublime. Muitos jazem ainda adormecidos em câmaras de
regeneração, enquanto que os mais revoltosos compõem
exércitos de vingança e acorrem ao encalço de seus
algozes, arrastados pelo extremado furor, algemados ao
ódio.

Seguindo Heitor, ganhamos o interior de uma das casas,


construída de beleza rústica de pedras naturais.
Adentrando-a, aspiramos de imediato reconfortante
fragrância de sândalo, que segundo nos informava o tutor, é
capaz de arrefecer os eflúvios do ódio. Enfermeira de
aspecto angelical assistia um velho esquálido, recém
desencarnado, sem dúvida submetido a atroz e prolongada
fome, tendo ao lado uma senhora de cabelos alvos,
sustendo-o no colo, que o preletor nos indicava tratar-se de
sua esposa desencarnada e já recomposta do transe.

Em respeitoso silêncio deixamos o paradisíaco local,


reconhecidos ao estimado amigo por proporcionar-nos
momento de refazimento e consolo, assegurando-nos que
por maior nos pareçam a desdita e a maldade humana, o
Senhor provê recursos

423
suficientes para suplantá-las. Assoberbados pelas
excessivas crueldades que presenciávamos, respirávamos
enfim, em um campo de elísia paz. Extasiados diante do
imenso poder do bem, tornamos, refeitos, aos nossos
prementes afazeres.
424
38
capítulo
NAS TEIAS DO DESTINO
“Então retribuirá a cada um segundo suas obras.”

Jesus – Mateus, 16:27

Vivíamos naquele então, horas decisivas na Grande Guerra.

Enorme conjunção de forças alinhadas se alinhava na costa


inglesa, aguardando o momento para desferir crucial
desembarque nas praias da Normandia. O fragoso ímpeto
fratricida prometia atingir o seu ápice, apesar da
assombrosa destrutividade já demonstrada até então. O

Plano Espiritual Superior destarte, movia-se impávido,


diante do mal necessário, tratando de torná-lo o menor
possível. A inclemência do tempo, refletindo o perigoso
acúmulo das crueldades humanas, desabava em
incessantes tempestades, obstaculizando o deflagrar do
assalto final da guerra. Foi preciso que espíritos superiores
expedissem ordens, influenciando intuitivamente aqueles
que detinham a capacidade de deliberação. Stagg, o
meteorologista escocês que fazia previsões do tempo para
os aliados, de fato foi subjugado por estas operosas
correntes espirituais, no comando dos destinos humanos,
orientando-o a fim de apressar o fim do tormento
planetário, garantindo uma correta previsão de um dia
claro, adequado à decisiva invasão, impedindo-se desastres
maiores para todos os envolvidos.

Estivemos na praia de Omaha e presenciamos os


assombrosos embates corpo a corpo entre as forças em
choque, persuadidas a ganharem terreno à custa de
valorosas e inumeráveis existências humanas. Centenas de
corpos jaziam espalhados entre os formidáveis penhascos
da bela paisagem marinha, maculada pela dor e ultrajada
pelo menosprezo ao dom divino da vida.

Em meio às brumas do desterro e da desilusão que a todos


nos envolvia, notícias alvissareiras nos convocavam por
vezes ao otimismo, acariciando-nos a alma com o
beneplácito da esperança na vitória da concórdia. O exército
alemão, estabelecido na famosa Fortaleza Europa,
ameaçava derruir os diques de Zuider Zee, promovendo
imensa devastação nas terras holandesas, quando a Esfera
Superior, interferindo decisivamente na intimidade dos
envolvidos, abrandou os corações em luta, levando-os a
negociarem um armistício parcial, comprometendo-se os
aliados a não atacarem os inimigos sediados na Holanda em
troca da preservação dos diques, amenizando-se as

425

precárias condições de subsistência do povo daquela nação,


onde milhares morriam de terrível fome. Formidáveis
reuniões se realizavam no Plano do Espírito, convocando-se
generais e dirigentes dos países durante o sono físico, para
confabulações em presença de magnas entidades,
interessadas em apaziguar os absurdos enfrentamentos
fratricidas. Alguns se davam conta da magnitude espiritual
que vivenciavam nesses egrégios encontros e levavam para
a carne, as reminiscências das orientações recebidas,
assumindo condutas apaziguadoras que terminavam em
benefícios para todos, impedindo males maiores, enquanto
muitos, completamente dominados pelas entidades
malignas, não podiam sequer ser persuadidos a comparecer
nessas luminares assembleias.

Estarrecemo-nos quando as Trevas, reagindo à atuação do


Alto, respondiam incentivando o comando alemão à
descabida política da

“terra arrasada”, através da conhecida “Operação Nero”


que determinava às suas tropas a destruição de tudo que
pudesse ficar para os inimigos, e a execução imediata dos
timoratos que se negassem a lutar até a morte. Atitude que
nos revelava o imenso disparate da guerra, demonstrando-
nos que a ganância de seus dirigentes era o seu único e
verdadeiro móvel, pois uma vez que se viam impedidos de
alcançarem seus egoísticos propósitos, não mais se
interessavam pela sorte de seus comandados, preferindo
fazer ruir a própria vida e a deles, a se curvarem diante dos
vencedores. Fato que estampava ainda a imensa maldade
que permanece dominando o coração humano, eco de
clamorosa revolta que reside em nossos hábitos desde
tempos imemoriais, denegrindo a nobreza da substância
divina que nos compõe.

Contudo, o Mundo Maior, recorrendo à ajuda do Cristo,


conseguia demover de muitos que ainda guardavam o bom
senso, a cruel determinação de tudo destruir, impedindo
inúteis devastações e um número ainda mais elevado de
mortes, em diversos pontos do conflito. O Führer de fato
havia expedido a ordem explícita de reduzir a capital
francesa a um monte de escombros, assustando-nos diante
da terrível ameaça que reverberava das Trevas. Porém ele
não foi obedecido, graças à atuação preponderante do
Plano Superior, que mais uma vez se esforçou para comover
o que restava de hombridade nos corações de seus
empedernidos generais, macerados pela inevitável derrota.
Aliviados, assistimos à Cidade Luz retornar à normalidade,
após capitulação das forças germânicas, sem maior
derrame de sangue, denotando-nos que finalmente, o bom
senso prevalecia na alma humana e a paz vencia.

Apesar de algumas vitórias da luz sobre as trevas, os


combates se avultavam com o avanço dos aliados em
direção às terras alemãs. E

nosso trabalho também se redobrava, parecendo exceder


nossa capacidade de atuação, quando significativo fato
sucedia na vida de nossos amigos Alberto e Catherine,
convocando-nos novamente a voltar-lhes nossa atenção.
Vários irmãos desencarnados, provenientes

426

de tropas brasileiras em luta nos territórios europeus,


foram-nos encaminhados, tendo em vista nossa origem
comum. Dentre eles havia um soldado, que de imediato
chamou a atenção de Catherine, sem que ela soubesse o
motivo. O homem havia desencarnado em decorrência da
explosão de uma granada que lhe ferira profundamente a
face, destruindo-lhe os olhos, impedindo-o de enxergar e
desfigurando-o por completo. Sua voz contudo, trazia-lhe
recordações imprecisas de familiaridade. Ele, que ainda não
se dera conta da própria morte, parecia corresponder a
essas mesmas impressões, pois frequentemente lhe
solicitava cuidados, dizendo-se impressionado com seu
sotaque francês que muito lhe fazia recordar alguém de seu
passado, e que se não a soubesse morta, afirmaria tratar-se
da mesma pessoa.

Revelando-se invadida por estranhos sentimentos em sua


presença, a amiga nos convocou a lhe explicar o que se
passava.
Reunimo-nos assim, diante do companheiro que trazia o
rosto envolto por uma faixa. Interrogando-o, ele retorquiu:

-- Soldado Sampaio, 6º Regimento da 1ª Divisão de


Infantaria Expedicionária Brasileira, senhor. Acredito que fui
ferido pela explosão de uma granada, como me informaram,
pois nada vi na hora. O doutor acredita que voltarei a
enxergar? Estamos seguros aqui, senhor? Ainda ouço
canhões...

-- Acalme-se soldado, você ficará bom. Encontra-se em uma


enfermaria, entre amigos, e nada há a temer.

-- Não posso morrer agora, doutor, tenho uma esposa


grávida aguardando-me em meu país, e preciso ficar bom
para cuidar de meu filho que em breve irá nascer. Sob as
ordens do General Mascarenhas, estamos lutando no Vale
do Reno, em companhia do 5º Exército dos Estados Unidos,
onde os alemães nos surpreenderam. Desejo recuperar-me
prontamente para voltar ao combate, não podemos deixá-
los escapar, senhor, esses brutamontes miseráveis
precisam ser eliminados a qualquer custo...

Procurando afastá-lo do ódio resguardava-o com palavras de


consolo, e fixando-o atentamente, sentia também a nítida
impressão de já conhecê-lo. Tocando-lhe a fronte,
concentrei-me, procurando penetrar-lhe a intimidade e
estarreci-me ao identificá-lo prontamente.

Heitor precisava ser informado de sua presença entre nós, e


não me convinha qualquer comentário a respeito do
inusitado personagem, antes que nosso preclaro tutor
examinasse a situação. Atônito, solicitei paciência aos
irmãos, convocando imediatamente a sua presença para
que melhor nos esclarecesse sobre aquela arguta peça do
fadário que nos dirige.
Assim que lhe foi oportuno, Heitor novamente compareceu
junto a nós, abraçando-nos e cumprimentando-nos com o
efusivo carinho que lhe é peculiar. E bastou-lhe ligeiro olhar,
para que identificasse de imediato o espírito sob análise.
Com significativo brilho nos olhos, denotando que fora
subitamente invadido pela

427

luz de sublime compreensão, recomendou retirarmo-nos, a


fim de que o assustado irmão não acompanhasse o diálogo
para cujo entendimento ainda não se achava preparado.
Sorrindo, dirigiu-nos a palavra, eivada de benevolência:

-- O amigo fez bem em convocar-me para dar seguimento


às nossas demandas do passado, pois vejo que atingimos
outro delicado momento em nosso roteiro de redenção. Eis
que o destino nos traz um verdadeiro presente...

E suspirando profundamente, emanando complacência no


olhar, completou:

-- Estamos diante de Abelardo, meus queridos! (Ver capítulo


9 para maiores detalhes sobre este personagem, cuja
verdadeira identidade está oculta sob pseudônimo).

Catherine, ouvindo o nome do antigo amante, aquele que


lhe abandonara covardemente ao engravidar-se de Alberto,
estampou lívido assombro no rosto. Ali estava, perante o
mesmo homem que lhe ferira profundamente os
sentimentos femininos, e por quem nutrira imensa mágoa
por longo tempo, a qual demonstrava ainda não haver de
todo superado.
-- Vejam como o acaso também tem suas leis! – refletia
Heitor. – Convém tecermos considerações pormenorizadas a
respeito deste companheiro, que seguramente, não se
consorciou às tramas de nossos caminhos por mera
casualidade. Estamos diante de uma peça viva de nosso
passado, não somente da última encarnação de Catherine,
porém de personagem atinente à nossa transata história,
perpassada ainda no século dezoito.

Ante nossa surpresa, o preletor continuou a explicar-nos:

-- Como certamente os amigos se recordarão, Alberto, então


Bartolomeu, desencarnou sem saber que havia engravidado
uma de suas últimas amantes, Maria Coutinho, jovem
esposa de um de seus amigos, Miguel de Lara. Eram
cristãos novos, residentes em Lisboa, degredados do Brasil
e mantidos sob severa vigilância do Santo Ofício, em
decorrência das ideias revolucionárias que apregoavam.
Bartolomeu, procurando por notícias de seu saudoso país,
dele se aproximou e passou a freqüentar-lhes a residência.
Dados a inadequadas festividades noturnas, Bartolomeu
aproveitou-se da embriaguez do companheiro, para seduzir
em uma oportunidade, Maria Coutinho, atraído por sua
beleza juvenil. Após o sumiço do padre, a traição veio a ser
descoberta pelo marido, que movido por grande indignação,
roubou-lhe a vida, apesar de ainda se achar grávida,
passando a devotar ingente, porém ignóbil, ódio ao
infamante cônego, que então já havia deixado a Terra. Pois
estamos diante de Miguel, o

428

esposo traído de outros tempos, que por obra do destino,


uniu-se em oportuna urdidura carnal, a Catherine, com o
precípuo intento de se vingar do antigo pároco, favorecido
pelas rédeas que conduzem nossos destinos. Convocado
pelos enlaces do passado, seduziu-a também, aproveitando-
se de seu desterro, desfechando contra ela os episódios que
todos já conhecemos. Vemos como a vida, em sua
surpreendente arquitetura, prossegue o seu Dédalo de
coligações, sempre obediente aos liames do pretérito,
embora muitas vezes nos pareçam tão distanciados no
tempo. No âmbito da Lei, amigos, nossas faltas não são
jamais olvidadas, e somente o infatigável escoar dos
séculos, nada pode subtrair de nossos compromissos.

Por

isso,

credores

devedores

estão

inexoravelmente fixados nas teias do destino, até que


convertam em legítima fraternidade, as adversidades que
os unem.

Alberto mais uma vez se deixava dominar pelos torpes


sentimentos humanos, achando-se diante de um possível
rival a lhe competir a afetividade da amada, ferindo-o de
substancial ciúme, que mal conseguia dissimular. Além
disso, surpreendido por fato tão longínquo que acreditava
definitivamente esquecido, ainda reverberando no presente,
compreendia a extensão da lei divina, exigindo-nos em
qualquer tempo, a completa correção dos delitos, e
constrito, admitia a falta corando-se de genuína vergonha.
Heitor, acolhendo-o na ternura de sua compreensão,
instava-o ao equilíbrio:

-- Filho, de fato a dor do arrependimento, refletindo nossas


ações impensadas, acompanha-nos através das nossas
experiências transreencarnatórias, fazendo do opróbrio
nosso maior sofrimento, por mais que o esquecimento
temporário na carne nos alije do palco da consciência a sua
penosa recordação. Por isso não se pode ir adiante sem
encontrar soluções definitivas para o passado delituoso e a
lei nos conduz sempre de volta aos campos onde
semeamos, a fim de ceifar a indisponível colheita. Assim é
que, mais uma vez, o Senhor lhe pede a superação de suas
emoções humanas ainda imaturas, e que aceite com alegria
o convite para a completa renovação dos valores do
coração. Não aprendemos que quando o servo está pronto o
serviço lhe aparece? Pois com alegria podemos lhe afirmar,
que este será o primeiro assistido de vocês na faina
evangélica que iniciam, pois solicitamos a Catherine o
irrestrito apoio a esta empreitada, superando as antigas
mágoas que ainda dilaceram o seu nobre coração. Enquanto
que no mundo nossa alegria se esvai na busca de
conquistas efêmeras da matéria, no afã de galgar posições
de destaques sociais, ou na

429

aquisição de diplomas que nos lustre a vaidosa


personalidade, aqui o que nos apetece e de fato nos felicita,
é fazer todo o bem que podemos. Socorrer aquele que sofre
e está ao nosso alcance é por isso nossa prioridade máxima.
Assim determina o Senhor da vida, pois não se pode
desfrutar das venturas que Ele nos reservou, deixando na
retaguarda os desafetos que semeamos, e as infelicidades
que perpetramos. Compomos uma grande família espiritual
e um irmão detido em queda moral é um embaraço à nossa
própria ascensão; por isso voltar-se para socorrê-lo é
recurso indispensável ao próprio avanço e à verdadeira
alegria.

Agradeçamos portanto, a preciosa oportunidade de


redenção que a Providência Divina nos envia, a qual não
podemos menosprezar. Sem dúvida, podemos imputar o
regalo como uma resposta do Alto ao esforço de vocês na
superação de suas mazelas, e à dedicação ao serviço
cristão que vêm desenvolvendo em meio às crueldades
deste ingente conflito.

Admirávamos os sutis caminhos que a Lei nos invoca,


movendo-nos quais meras limalhas de ferro imantadas pela
inexorável teia magnética do destino. Ciente de que a
obediência e o labor compõem nossa vida de redenção, o
amigo locupletou:

-- Assim, ainda sob a orientação de nossos abalizados


companheiros, a quem solicitamos a continuidade da ajuda,
irão amparar Abelardo em sua nova realidade. Retribuindo à
vida o mesmo que receberam, deverão dirigir os seus
primeiros e inexperientes passos na jornada do espírito.
Contribuindo com o seu crescimento e albergando-o na
fraternidade genuína, torná-

lo-ão amigo leal do coração. Catherine lhe perdoará a infeliz


incúria por havê-la entregue à gravidez desvalida e Alberto
se desculpará, mediante o trabalho em seu favor, do
delituoso desrespeito à sua amizade e confiança, no
passado, quando ela o induziu ao hediondo crime, no qual
teve infeliz participação.
Ambos irão ainda amparar Maria Coutinho, a jovem viúva,
ainda encarnada, e seu futuro filho, aprendendo a amar sem
caprichos, e trabalhando para que seus destinos se
cumpram conforme a vontade da lei. Amparando-lhe o
infortúnio e auxiliando-a na inditosa gestação, Catherine
estará ainda reconstruindo os sentimentos maternais que
renegou. Lembrem-se filhos, vocês já armazenaram o
suficiente para poder distribuir, e como o servo zeloso,
convém agora multiplicar os tesouros divinos que
angariaram, sem olvidarmos que não há bem maior do que
poder saldar as dívidas com o trabalho, dispensando o
sufrágio da dor.

430

E, interessado em extrair o máximo de ensinamento do


encontro providencial, explicou, lendo a sabedoria da vida:

-- Vemos ainda, meus amigos, no episódio sob nossa


análise, como a Lei, refletindo a exata extensão de nossas
faltas, não perde oportunidade de fazer da experiência do
viver, em todos os planos, uma permanente escola de
sublimes aprendizados.

Abelardo, impregnado do erro da paternidade irresponsável,


quando abandonou Catherine no momento em que mais
necessitava dele, deixa-se agora apenar na impossibilidade
de estar junto ao filho que antecipadamente já ama. Pela
morte violenta, resgata ainda o crime passional, e Maria
Coutinho, sofrendo o desterro, reconhecerá o valor da
fidelidade. São males necessários para a correção do
espírito imortal, até que aprenda a acertada maneira de
agir, segundo os padrões ínsitos na própria consciência.
Ninguém se evade do dever sem arcar com as
consequências, pois estamos sob constante vigilância do
Senhor, que por nos amar e nos querer perfeitos, vigia e nos
educa, preparando-nos para o excelso destino que a todos
reservou.

Orando sentidamente, agradecemos a magnitude divina,


que mesmo diante de nossa imensa capacidade de
perpetrar o mal, não se cansa de nos presentear com as
insignes oportunidades de refazer os descaminhos do erro.
Exorando ainda o fim dos sofrimentos daquela ignara
guerra, despedimo-nos, tornando reconfortados, às nossas
labutas diárias.
431
39
capítulo

DE VOLTA À COLÔNIA

“Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de


boa vontade.”

Lucas, 2:14

Em meio aos esmolambados exércitos das sombras, já


exauridos de tanta crueldade, prosseguíamos recolhendo os
desencarnados, que pareciam não ter mais fim, seguindo a
trilha da descomunal ruína de todos os valores da vida.
Contudo, com o avanço dos aliados pelas terras germânicas,
a grande guerra prenunciava o seu ocaso, e um aceno de
esperança passou a inundar-nos a alma, ávida de paz.

Ainda que o morticínio excedesse todas as medidas, as


trevas insaciáveis, transpondo as fronteiras da loucura,
continuavam ditando normas aos incautos, pois os exércitos
enfurecidos, indiferentes à devastação que lhes seguia os
passos, e desalmados pela insensibilidade perante tanta
dor, agitavam-se ainda, movidos por recalcadas vinditas,
indignas do ser humano.

Desapiedadamente, o que restava dos inimigos era


eliminado com idênticos requintes de crueldade que os
mesmos praticavam, igualando-se-lhes à barbárie. O
massacre se multiplicava em injustificável afã, como se os
combatentes, ainda que exaustos, apressassem-se para
satisfazer seus incontidos instintos agressivos, antes que o
fim determinasse a sua suspensão, esboroando-se todas as
injunções morais, exigindo das esferas superiores,
redobrados esforços na contenção das infrenes maldades.
No estoico avanço, as Forças Aliadas ainda guardavam
fôlego para disputar entre si a quem caberia o golpe de
morte final nos comandos nazistas, pleiteando inútil
supremacia entre seus generais, ávidos das glórias
mundanas, demonstrando-nos que os louros da vitória eram
tudo que almejavam, enquanto comunistas e capitalistas,
em manobras espúrias, disputavam acirradamente os
territórios de ocupação, dificultando sobremaneira o
estabelecimento do equilíbrio necessário à paz do mundo,

432

prometendo perpetuar a incontida altercação entre as


garridas arrogâncias em busca da hegemonia em que se
compraziam.

Iniciava-se enfim, a Batalha de Berlim, derradeiro


entrechoque dos remanescentes em guerra, quando novo e
surpreendente fato nos chamou a atenção. Por entre os
densos cúmulos que permanentemente ocultavam o sol no
cenário espiritual da guerra, resultantes dos imensos
aglomerados de eflúvios mefíticos do ódio, divisamos certa
manhã, um esmaecido clarão no horizonte. Reunidos diante
do intrigante fenômeno, qual o luzir de um desconhecido
astro invadindo a estratosfera terrestre, perguntávamo-nos
do que se tratava, quando amigos acorreram a nos informar
que esferas celestiais se aproximavam da Terra, penetrando
nosso contrito cenário a fim de saneá-lo com suas
poderosas luzes. Era o “sol da paz” que se atirava às
sombras, ávido por acalentar o coração humano enrijecido
na luta e na dor, aplacando todo o fragor da maldade que
ainda teimava em vicejar nas paisagens do mundo. A cada
dia o inusitado luzeiro de engrandecia, até que, vencendo
as nuvens de chumbo, precipitou-se sobre nós, em cascatas
de floculações luminosas, neutralizando as cinzas que se
enevoavam permanentemente ao nosso derredor,
arrancando-nos lágrimas de incontida emoção.

Conquanto que os humanos e os espíritos inferiores,


envolvidos ainda nas fráguas dos embates nada
denotassem, os mais atentos podiam sentir leve sensação
de alívio e bem estar, desde que se aquietassem,
permitindo-se aspirar as supremas energias do bem que se
irradiavam em busca de corações sinceros, para enfim
fecundá-los de paz genuína.

Desde este dia, suave lenitivo passou a refrigerar-nos a


alma, inundando-nos de aprazível fulgor, e a certeza de que
o imenso pesadelo de morte estava prestes a encontrar o
seu fim. E não tardou para que o fenômeno atingisse o seu
auge, delineando deslumbrante panorama ante nossos
atônitos olhos, dominando-nos todas as emoções. De súbito,
sobre as ruínas da capital germânica, as densas trevas se
espargiram e as nuvens fugiram, desairosas, entreabrindo-
se para dar passagem a um imenso séquito de verdadeiros
anjos, formando um coral de milhares de vozes celestes,
entoando hosanas, qual jogral de luzes, anunciando que o
reino do bem voltava a predominar no coração humano.
Compreendíamos de imediato que a ignara guerra chegara
ao fim. Indizível alegria inundou-nos a alma, e inebriados
pela excelsa beatitude, ajoelhávamos à passagem do
séquito angelical, dizimando as trevas. Espetáculo sublime
que os enceguecidos pelo mal não deram conta de registrar,
entretidos

433

que se achavam ainda em seus baixos interesses. Muitos


encarnados imbuídos de boas intenções, ainda que
hebetados pelo caos, puderam sem dúvida, divisá-lo na tela
da imaginação e se exultaram com sua presença.

A grande guerra capitulava diante da arremetida das


operosas forças do bem. Os grandes dragões dos abismos
recolhiam-se às suas furnas, saciados de sangue e
crueldades. Os maltrapilhos exércitos de desencarnados se
acomodavam extenuados, e ainda em alarido, retornavam
às suas alcovas sombrias. Silenciavam-se a revolta e o ódio
secular dos insensatos, enquanto os belígeros mercenários
das trevas, exauridos de ânimo, ansiavam pelo repouso,
mas não pelo bem. A vingança ainda vicejava na alma dos
temerários, porém deviam arrefecer por ora, seus instintos
barbarizados, pois as luzes do Cristo lhes obstaculizavam
agora as belicosas intenções.

E logo, inexprimível júbilo assistia aos preparativos para o


encerramento de nossos trabalhos. Restava-nos terminar de
recolher os que remanesciam entre os escombros da morte,
e direcionar aqueles que não nos acompanhariam, para os
espaços espirituais de nosso convívio. Embora desejosos do
pronto retorno à nossa saudosa colônia, permanecemos no
teatro da guerra por certo tempo, desfazendo nódoas de
sombras, consolando corações amargurados, pensando
feridos e encaminhando os deserdados de toda sorte.

Convém esclarecer que espíritos de grande potencial


evolutivo conseguem emancipar-se do meio em que se
encontram, projetando-se pelos fenômenos do
desdobramento, em lugares de seu interesse, não importa a
que distância estejam, com relativa facilidade. Tal
fenômeno, embora ao alcance de muitos que serviam na
guerra, era imensamente dificultado pelas implacáveis
vibrações que nos assediavam, oprimindo-nos de forma a
impedi-lo. Desse modo, a grande maioria dos tarefeiros
permaneceu reclusa no ambiente de trabalho, concentrando
todos os esforços na indispensável assistência espiritual,
justificando-se assim a saudade que a todos nos tomava de
assalto.

Embora a guerra ainda prosseguisse no Pacífico, não nos


competia o atendimento naqueles rincões, e os espíritos
superiores nos prometiam que em pouco tempo ela
encontraria também o seu fim. Infelizmente, apesar dos
esforços do Alto para impedi-la, em breve assistíamos
estupefatos, ao desencadear da hecatombe nuclear com as
estupendas explosões atômicas nas terras nipônicas
ocasionando formidando e injustificável extermínio

434

com graves repercussões para o equilíbrio do orbe, tanto no


plano físico quanto no espiritual. Conquanto o fato tivesse
encontrado larga repercussão nas esferas espirituais,
disseminando incertezas e alarmando os mais incautos, o
desastre não nos atingia diretamente, exceto pelos
sentimentos de repulsa à insensibilidade humana e a
perplexidade diante do poderio destruidor que o encarnado
atingia, ainda pouco amadurecido moralmente para
penetrar nos insondáveis poderes da criação. Confiantes
contudo, na direção da vida planetária entregue às mãos do
Cristo e a quem pertence o nosso futuro, aquietávamo-nos,
cientes de que há percalços injustificáveis na lei e não havia
motivos para infundados temores.

Ante o mundo em escombros, saciado de revolta e


sensibilizado pela dor, os dirigentes espirituais da
humanidade encontravam agora um ambiente mais propício
para se aproximarem dos encarnados, e as esferas elevadas
se movimentavam ativamente, determinando providências
urgentes para que a ordem se restabelecesse o mais
depressa possível, evitando-se desastres ainda maiores no
porvir. Estejam seguros os homens, eles estiveram
presentes na Conferência de Yalta, alimentando-a com o
amistoso clima em que se desenvolveu, contribuindo para
as concessões que os ocidentais faziam de boa vontade
para os soviéticos e inspirando a criação de uma nova união
dos países, onde se pudessem resolver os futuros conflitos,
depois do fracasso da Liga das Nações. Entretanto, este
ambiente de promessas apaziguadoras não se manteve, e
uma vez que o Mundo Espiritual se afastou, o clima de
rivalidades de reacendeu, quando os marxistas substituíram
os inimigos nazistas pelas potências capitalistas do
Ocidente e estas os trocaram por aqueles, perpetuando-se
as graves disputas entre os irmãos que deveriam se amar
como um só povo. Dividiu-se o orbe novamente em dois
grandes blocos antagônicos, amontoando cada qual,
perigosamente, armas de grande poder destrutivo, em
permanente ameaça à paz mundial. Novos e ingentes
esforços seriam exigidos dos diretores espirituais do orbe
para que os propósitos do Cristo se cumprissem, ao longo se
nossa História, entretecida em conúbio de ambições e
dores.

Enfim, o hospital itinerante nos aguardava para o retorno


definitivo, e depois de acomodados devidamente os
enfermos sob nossa custódia, iniciamos a viagem de volta.
Nossa chegada em Portais do Vale foi marcada pela
discrição, embora muitos acreditassem que seríamos
recebidos como verdadeiros heróis de guerra. Amigos
diletos acorreram para nos dar as boas vindas,

435

irradiando vibrações de simpatia e consolo, dessedentando-


nos a imensa saudade. Finalmente podíamos respirar
aliviados a longos haustos, e repousar na paz do dever
cumprido.

No trabalho cristão, angariamos numerosos amigos de


outras terras, inigualável prêmio da divindade em
recompensa ao nosso singelo esforço. E para nossa alegria,
muitos deles, embevecidos pelos alvitres de Jesus,
decidiram nos seguir rumo às alvissareiras plagas do
Cruzeiro, onde poderiam concretizar almejadas conquistas
no campo do crescimento espiritual. Soterrando pesaroso
pretérito de ignomínias na velha Europa, formaram
expressivo contingente de seareiros, que se somou às
fileiras do Espiritismo Cristão, enriquecendo-o de novos
valores.

Heitor retornou à sua colônia deixando conosco Catherine


perfeitamente ambientada em nosso coração, e
principalmente no de seu amado, com quem restabelecera
completamente seus antigos laços afetivos. Abelardo,
assistido cuidadosamente por eles, fora recolhido em nossa
enfermaria, onde continuariam ministrando-lhe carinhosa
atenção. Não tardou para que a quietude nos acomodasse
na rotina que nos satisfaz as necessidades de realizações
espirituais, fazendo-nos retornar à normalidade. Somente a
prece poderia encetar nosso reingresso à colônia, e em
breve nosso governador nos convocou para uma grande
oração coletiva de graças, no Templo Central.

Reunidos sob a égide do Cordeiro e o beneplácito dos


dirigentes de nosso núcleo, fomos agraciados pela visita de
magnas entidades de luz, contando entre eles o nosso
amado Heitor. Nosso dirigente dirigiu-nos a palavra em
prece, elevando o pensamento a Deus, agradecendo a
bênção do serviço regenerador e a volta dos seareiros,
enriquecidos pelo trabalho e pela renúncia em prol dos
necessitados. Cintilações cristalinas nos bafejavam a face,
inundando-nos de dúlcidas emoções, condecorando-nos
com os eflúvios da alegria. Eminente mentor, provindo de
alta esfera, realizou preciosa preleção abordando a mais
titânica das lutas que ainda nos competia enfrentar: o
combate aos arraigados hábitos da própria personalidade
falida.

Em seguida, espalhados pelos aprazíveis jardins musicais de


nossa cidade, congratulamo-nos em imensa festa de
receptividade, encerrando nossa reunião de boas vindas sob
os encantos do zimbório estrelado cintilando luzes que,
quais estupendos fogos de artifícios, pareciam comemorar
conosco o término do imenso pesadelo terreno.

Por fim, recompostos, reassumimos nossa faina diária,


felizes, principalmente por assistir aos amigos Alberto e
Catherine,

436

encetando de fato, a condição de trabalhadores fiéis do


bem.
Era chegado o momento enfim, de conferir-lhes o alvará de
assistentes, determinando-lhes a alta da condição de
assistidos, e integrando-os definitivamente ao rol de
servidores de nossa colônia. Solicitamos então de nossa
direção a oficialização da medida, encerrando de fato o
serviço de tutoria que nos fora incumbido. Naturalmente,
continuaríamos ao lado deles dispostos a ajudá-los no que
fosse possível, cientes contudo, de que a cada dia eles se
tornavam suficientes às próprias injunções no desempenho
das tarefas que lhes competiam. A genuína recompensa
pelo nosso trabalho consiste em verificar que nossos
assistidos nos superam as possibilidades de auxílio, e
dispensando-nos a ajuda, se convertem em fiéis executores
da vontade divina.

Os planos para o futuro eram os mais promissores possíveis.

Alberto e Catherine, embora ainda não tocassem no


assunto, consorciar-se-iam em breve, iniciando a
reformulação de nova família terrena, fundamentada nos
imperativos do aprimoramento espiritual. Ambos
trabalhariam ativamente em favor do núcleo doméstico de
Abelardo, fragmentado pelo seu prematuro desenlace.
Catherine compreendia que devia socorrer urgentemente,
as irmãs de desventuras que deixara na carne,
especialmente sua querida Rosa a quem tinha por filha
amada e precisava instar novos caminhos. A jovem persistia
atada às tristes urdiduras da prostituição a que ela,
Catherine, induzira, trazendo-lhe o fato pesaroso remorso, a
usurpar-lhe a paz de consciência. O

serviço urgia e Alberto se comprometia em acompanhar-lhe


os passos na obre regeneradora, compreendendo feliz, que
seu novo roteiro se faria de entrega total aos genuínos
anseios de realizações espirituais, no campo das mais puras
expressões da fraternidade, olvidando em definitivo suas
idolatradas máquinas.

O atendimento aos sofredores do Vale dos Suicidas lhe era


ainda convite salutar, a fim de saldar seus compromissos
com a vida, aprendendo a valorizá-la devidamente.

437
40
capítulo

O CANHÃO DA PAZ

“Bem aventurados os mansos, porque eles herdarão a


Terra.”

Jesus – Mateus, 5:5

O tempo transcorria, recompondo-nos a paz, quando para


grande surpresa nossa, fomos convidados para uma das
mais desusadas solenidade já ocorrida em nossa colônia. O
governador decidira erguer um monumento em
homenagem a Alberto. O

fato, decididamente surpreendia-nos sobremaneira, porque


como de hábito, as esferas espirituais, já que se voltaram
para os ideais superiores da vida, não se dão a instrumentos
de culto à personalidade, tão qual ainda ocorre no mundo
físico. Não idolatramos heróis, muito menos aqueles
arrebanhados dentre os que se destacam pela supremacia
dos valores humanos, ou simplesmente pela execução de
tarefas programadas na senda do progresso. Comumente
fazemos nossos próceres entre os homens santos que
desempenham serviços nobilitantes no bem, e atravessam
a vida na carne sob o manto do anonimato e investidos de
sincera humildade. Por isso fomos tomados de imensa
curiosidade, diante do surpreendente acontecimento.

No dia aprazado, uma manhã domingueira enriquecida de


eflúvios divinos nos acolhia diante de uma edificação oculta
por um manto, como nos moldes terrenos, em um dos
nossos jardins terapêuticos. Éramos poucos amigos, e junto
com os dirigentes de nossa colônia, Heitor se fez presente,
irradiando contentamento, enquanto Alberto demonstrando
nítido acabrunhamento, relembrava os momentos em que
se via o alvo das atenções nas cerimônias da Terra.

Após um coral de vozes argênteas suscitar-nos a presença


do Divino, o diretor de nossa colônia tomando a palavra,
falou-nos com entusiasmo:

-- Amigos, reunidos sob a tutela de Jesus, convocamos a


alegria para estar em nosso meio, nesta pequena
solenidade que

438

haverá de nos renovar o ânimo para a continuidade de


nossas vidas.

Em seguida, convidando Catherine a descerrar o véu que o


encobria, surpreendemo-nos ainda mais, admirando o
incomum momento. Construído em mármores de matéria
branca, um largo e baixo pedestal, sustinha um belo homem
alado à feição de um anjo, ao lado de uma espécie de
canhão com suas grandes rodas, à moda das antigas peças
de artilharia. Três alvos pombos pousavam sobre a
estrutura, um deles com as asas ainda abertas e um quarto
alçava vôo das mãos entreabertas do áleo, e garboso ente
que adejava meigo sorriso na face, delineada em delicados
traços helênicos. Em sua retaguarda, as ruínas de uma
platibanda, bordada por trepadeira florida, lembrava-nos os
horrores da guerra, e abaixo, letras em relevo intitulavam a
bela obra: “Canhão da Paz”. Findo o nosso espanto inicial, o
diretor continuou:

-- Como veem, não os convidamos aqui para homenagear


um homem que se fez herói na Terra, mas para nos
alegrarmos com uma surpreendente proposta de paz,
nestes dias que ainda reverberam a agonia da imensa
guerra que devastou a Europa e os corações humanos.

Indicando com os olhos nosso intimidado amigo, prosseguiu:

-- Alberto, que todos aqui conhecem e aprenderam a


estimar, é um dos socorridos do Vale dos Suicidas, de quem
hoje nos orgulhamos em elevar à condição de assistente.
Poucos conheceram a sua história, porém podemos lhes
adiantar que este homem, em idos tempos, filiou-se à
disseminação da guerra, aperfeiçoando e incentivando o
uso do canhão como instrumento de destruição da Terra,
favorecendo a multiplicação da maldade. Depois de
peregrinar pelas veredas das sombras, estimulando
batalhas memoráveis entre os irmãos terrenos, iniciou o
caminho da regeneração, dedicando-se à missão de dar
asas aos homens, como todos sabem. Porém, o que muitos
não se deram conta, é que a sua mais surpreendente
invenção não foi propriamente o aeroplano, mas sim um
outro canhão. Este, porém, muito especial, pois se prestava
a salvar vidas e não a destruí-las. Sim, amigos, este
instrumento retratado fielmente nesta estátua que estamos
admirando, é um paradoxal canhão salva-vidas, a última de
suas engenhosas criações na jornada terrena.

Sua finalidade era atirar boias flutuantes no mar, à beira


das praias, em direção àqueles que lutavam para vencer as
águas, ameaçados de afogamento, e por isso foi
denominado Canhão Salvador. E temos notícias que o
aparelho chegou a salvar de

439

fato, duas vidas na França. O ser alado que o locupleta,


criação artística de nossos artesões, é ainda o mesmo Ícaro
da lenda antiga, porém redimido e recuperado de sua
estridulosa queda dos patamares da altivez. O mundo da
carne, fascinado ainda pelos rumores da guerra e
embriagado pelos anseios de ambição, não deu o devido
valor ao invento e seguiu adiante no seu afã de conquistar
instrumentos de demolição e não de auxílio.

Permaneceu

artefato

completamente

esquecido

menosprezado pelos homens. Não se deram conta de que,


embora vestida de ingenuidade, estavam diante de sua
mais significativa criação para regeneração de sua
consciência imortal. Contudo, espíritos iluminados, se
reuniram na praia de Biarritz, admirados do invento, pois
ainda que vertida de uma alma que se encaminhava para a
derrocada, simbolizava a redenção de seu passado,
comprometido com a destruição, e naquele momento, ele
convertia o seu malfadado canhão de outrora em arma de
salvação e suscitante da paz. Pudessem os homens,
espelhando-se neste exemplo, transformar seus poderosos
arsenais de guerra em veículos de socorro e o Reino de
Deus far-se-ia na Terra.

Desde aquele dia, entidades superiores identificaram em


Alberto o pendor apaziguador que o dominava e recolheram
seu sincero desejo de ressarcir o pretérito delituoso e
aguerrido, através da alquimia evolutiva do espírito. Sua
contribuição à paz foi arquivada como genuína lembrança
para os pósteros e passaram a incentivar a sua luta contra a
guerra. Embora eivados de bons propósitos, em decorrência
do ambiente de elevado teor espiritual em que passou a
respirar, o mensageiro da concórdia não foi ouvido com
seriedade. Sua carta à Liga das Nações foi ridicularizada, e
o prêmio que instituíra para coibir o uso do avião na guerra,
a ninguém interessou, parecendo advir de alguém que já
não estava no uso pleno de sua razão. Os dirigentes dos
povos, entorpecidos pelas injunções da inferioridade e
obedientes aos apelos das sombras, preferiram seguir na
soturna faina da acirrada luta de interesses egoísticos,
acumulando armas de terrível poder destruidor, redundando
no infeliz desfecho que abalou o mundo.

E, voltando-se particularmente para Alberto, perfilando


palavras sinceras de estímulo e não de evasivos elogios, tão
ao gosto humano, acresceu:

-- Nosso amigo merecia ter sido de fato condecorado pela


contribuição à paz, muito mais do que pelo desempenho em
sua missão de cunho eminentemente tecnológico junto à
humanidade. Eis então que decidimos homenagear a paz,
mesmo

440

cientes de que não nos convém a perpetuação do hábito de


lustrar personalismos com inadequadas idolatrias.

Estaríamos fazendo-lhe imenso mal e não um bem,


estampando seu nome ou sua efígie sob o monumento. Mas
deixaremos aqui a sua lembrança, com seu arpão
salvacionista orientado para o Vale dos sofredores, fazendo-
nos recordar que nossos esforços devem permanentemente
se voltar para o mar revolto do desespero humano, onde se
afogam os imprevidentes e em cuja direção temos que
atirar as boias de nossa boa vontade de servir.

A escultura possui áreas de sensibilidade psicométrica, e


caso o irmão nos permita, gravaremos em sítios de
irradiação a sua história em forma de ondas mentais
coaguladas. Todo espírito sensível e que guardar interesse
em conhecer a motivação desta edificação, tocando-a,
poderá ler o enredo de suas últimas encarnações. Não
queremos contudo, entronizar o homem velho, sem dúvida
ainda aspirante à suntuosidade que a todos nos compraz,
por isso não exaltaremos seus feitos heroicos na Terra, pois
se o fizéssemos, muitos outros nomes teriam que
igualmente ser lembrados no desempenho de sua missão.
Porém, evidenciaremos o relato de seus erros e suas
fragorosas quedas, para que espelhando-nos nelas,
possamos nos convencer decididamente, de que o orgulho é
fel venenoso, que vertendo de nossa arrogância desmedida,
é capaz de nos arremeter aos mais profundos abismos da
desdita e da dor. Compreenderemos que a vingança e a
guerra nos trazem imensos prejuízos evolutivos,
consumindo largas porções de nosso destino na correção de
seus inquestionáveis equívocos. E ainda que, finalmente,
por mais lesada se encontre nossa consciência, a Lei nos
favorece sempre ensanchas para a recuperação, mediante o
trabalho em prol do bem e a reforma sincera dos hábitos
segundo os preceitos evangélicos. O seu roteiro de
regeneração servirá, não somente para soerguer os caídos
de toda sorte , mas principalmente para nos precaver das
quedas pela arrogância, sem olvidarmos que o seu esforço
para a superação do instinto aguerrido será precioso
exemplo, exortando em nós a prática da concórdia, e quiçá,
instigando os homens de boa vontade a transformarem suas
armas em símbolos de mansuetude, fazendo da Terra o
reduto da paz celestial.

Convidando Catherine, escondida na simplicidade de meigo


olhar, a amparar-se sob o seu terno abraço, continuou,
arrulhando aprazimento:

441
-- O momento é propício ainda para darmos as boas vindas
a esta valorosa companheira que se integra ao nosso corpo
de servidores, e nos enriquecerá com sua jovialidade,
trabalhando pelo bem comum. E temos ainda a satisfação
de conferir-lhes, a Alberto e Catherine, nossa carta de
alforria que os autoriza a atuarem doravante, como
assistentes em nossa colônia concedendo-lhes definitiva
alta da condição de enfermos, embora todos continuemos
doentes diante da lei, assistidos permanentes da
paternidade divina, e carentes da redenção definitiva aos
valores da perfeição. Convocamos forças superiores para
lhes assegurar êxito nos novos e alvissareiros planos para o
futuro, em que as necessidades mais prementes do espírito
falarão mais alto.

E, dirigindo-nos com graça para Alberto, finalizou:

-- Não se preocupe, irmão, não exaspere sua ansiedade


diante da marcada timidez. Não lhe daremos a palavra para
que nos fale em defesa de sua imerecida posição de
homenageado, e exalte diante de nós, sua aspiração sincera
à humildade.

Estamos reunidos para homenagear a paz, e não em nome


de nossos arraigados personalismos. Por isso pedimos
apenas que Deus o abençoe, amparando sua nova vida.

Envolvidos por sentida prece que Heitor nos teceu,


convocando a concórdia na Terra e exorando as bênçãos do
Cristo para o sustento de nossos ideais, encerramos a
pequena festividade.
Exalando genuína alegria, congratulamo-nos, em meio às
flores exuberantes, que parecendo corresponder às nossas
emoções mais puras, trescalavam perfumes sublimes,
envolvendo-nos em atmosfera de doce encantamento.

Adelaide, sorridente, comentou:

-- Imagine o dia em que os canhões não terão outra


finalidade do que servir de poleiro para as aves!

-- Neste dia os mansos de fato herdarão a Terra! Oremos


para que este memorável momento não tarde a se
concretizar em nossa História – respondeu Heitor, irradiando
sublime contentamento.

-- Sinta-se recompensado, Alberto, pela perda de seu


idolatrado Ícaro. Que Colin (Artista que criou a estátua de
Ícaro erguida na praça de Saint Cloud, em Paris, e
posteriormente destruída pelos alemães) nos perdoe, mas
convenhamos, este é muito superior àquele que os alemães
lhe usurparam – completei, buscando ainda consolá-lo,
recordando-me das últimas ocorrências terrenas.

442
Sob o caricioso sol da manhã e os corações abastados pela
mais sincera amizade, desfrutamos do passeio pelo imenso
parque florido que nos acolhia com afabilidade,
balsamizando-nos com dúlcidas emoções. Em meio a
agradável tertúlia que nos regrava de viva afetividade,
Heitor, ornamentando o prazeroso encontro com suas
abalizadas considerações, proferiu:

-- Um longo caminho se fez necessário para chegarmos até


aqui, porém temos sobejos motivos para nos alegrar e
agradecer a Deus pelos resultados obtidos. Embora nossa
luta no afã do aprimoramento não cesse, podemos respirar
aliviados e mirar auspicioso futuro pela frente. Imbuídos dos
melhores propósitos, abandonaremos sem dúvida, as
equivocadas veredas da maldade e do orgulho, e tendo
solvido definitivamente parte do nosso doloso pretérito,
podemos doravante aplicar o nosso potencial evolutivo na
conquista de valores eternos, dedicando-nos com penhor ao
sofrimento alheio no encalce dos mais genuínos propósitos
cristãos que nos mobilizam todos os anseios e sonhos.

Elevando seu proficiente olhar para o alto, acrescentou


profetizando as rotas do porvir:

-- Alberto, que vemos entediado do passado, abandonará as


máquinas para que outros continuem seu esforço, e o
veremos avançar feliz, empenhando-se no aprimoramento
do espírito e no socorro àqueles que carecem mais do que
ele. Seus vôos não se farão mais nas débeis álulas de seda
e bambu, mas nas asas soberbas do Evangelho, abrigado
em alcovas alcandoradas de sólidos conhecimentos
espirituais que o protegerão de novas quedas. Estamos
seguros que ele e Catherine marcharão por esta trilha de
redenção, edificando um legado de venturas, acalentados
pelos sublimes propósitos de renovação e anelo que
atendam sobretudo, às novas necessidades de suas almas.
Juntos reconstruirão o lar desfeito há tanto tempo e os
veremos encaminharem-se para a concretização destes
elevados ideais.

Não tardarão retornar à carne em decorrência de premente


necessidade de fixarem no espírito as insignes lições
recebidas.

Porém ambos, assoberbados pelas faltas do pretérito,


indelevelmente marcadas na memória, distanciar-se-ão dos
falaciosos alvitres do mundanismo, e temos certeza de que
os imperativos de reforma moral, peremptórios, guiar-lhes-
ão de agora em diante os resolutos passos. Neste sentido,
os anos que serviram como enfermeiros de guerra, serão
decisivos na escolha de seus novos roteiros de vida e de
trabalho.

443

Acolhendo os irmãos em amoroso afago, expressou,


auspiciando-lhes:

-- Não se preocupem, vocês não se perderão nas veredas do


vindouro, pois já guardam o farol do Cristo no coração.

Ademais, estaremos de prontidão para alertá-los quanto a


possíveis tentativas de evasão de rumos. Sem dúvida, que
como todos, acossados pelos hábitos daninhos do passado,
terão que lutar contra os crivos da personalidade ainda
doente e viciosa no continuísmo dos equívocos egoísticos,
contudo, eles serão facilmente suplantados pela nova fé
que hoje lhes robustece o espírito. A dedicação ao homem,
à família, a redescoberta dos afetos e da ciência do espírito
lhes serão seguros beneplácitos para que sedimentem na
alma o almejado título que todos buscamos: o de seareiro
de Jesus.

E, dirigindo-nos particularmente cândido olhar, aduziu:

-- Nosso maior contributo a esta aventura de soerguimento


do passado delituoso foi ter angariado novos e leais amigos,
enriquecendo-nos a alma de inapreciável tesouro. Eis o
pagamento da Lei, relicário que ultrapassa todo meu mérito.

Selemos agora, irmãos, o compromisso de nos fazer uma só


família, jungidos pelos benfazejos desígnios que
comungamos.

Abraçamo-nos enternecidos, e comovidos diante da imensa


expressão de lídima fraternidade que nos abastecia o
coração de reconfortantes blandícias, ouvimos de Heitor,
finalizando o inesquecível encontro e para nossa imensa
satisfação:

-- Irmãos, trago assente autorização para que partamos


todos, em excursão de entretenimento e repouso em esfera
elevada, a fim de recompor a exaustão do trabalho. Os
amigos devem apressar diligências, transferindo suas
inadiáveis obrigações para outros servidores, pois devemos
seguir viagem imediatamente. Os colegas de labor saberão
tolerar suas ausências por breve período, sabendo que
retornarão com forças redobradas e renovado entusiasmo
para o prosseguimento das indispensáveis atividades.

O infinito azul do firmamento, o solfejo dos pinheiros


agitados por brisa amiga, expressavam nossa gratidão a
Deus pelo final feliz de mais uma jornada em prol do Bem.
Invocando Seu nome pra nos sustentar na estrada da
redenção rumo à Sua Casa de Amor, retiramo-nos para
jamais nos apartar.
FIM
444

GLOSSÁRIO

Esta pequena coletânea de termos e expressões contém


aqueles considerados mais difíceis ou mesmo inexistentes
nos dicionários habituais, preparada pelo medianeiro, a fim
de facilitar a revisão durante a leitura e a análise mais
aprofundada do estudioso. Foi utilizado o Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa para a definição da maioria das
palavras mais comuns e aquelas em itálico são neologismos
oriundos desta obra.

Amnésia transreencarnatória – esquecimento parcial ou


completo das experiências de vida da última encarnação
que acomete espíritos em trânsito no Mundo Espiritual por
suicídio ou desencarne durante a vida intra-uterina.

Apsiquia – a completa inibição da atividade da consciência,


caracterizando no desencarnado, a segunda morte.

Autocatálise – a morte que ocorre sob condições


extremamente traumáticas do corpo físico, em meio à
intensa exasperação do desencarnante, como aquela que
acontece durante uma batalha.

Catalepsia – estado de inanição, rigidez muscular e


contração da consciência simulando a morte física.

Catatonia – tipo de esquizofrenia caracterizada por intenso


negativismo e completa inanição da consciência.

Cianóides – também chamados homens-azuis, assim são


denominados em Portais do Vale, os suicidas do tabagismo,
por se apresentarem com o perispírito azulado, em
decorrência do elevado teor de gás carbônico aspirado em
vida, impregnando suas delicadas malhas fluídicas.

Desovoidização – ensaios biológicos reencarnatórios


promovidos para a cura dos ovóides, induzem comumente à
malformações embrionárias.

Distanásia – designa os tormentos das desencarnações


obstaculizadas por diversos motivos, prolongando-se
indevidamente o desligamento do espírito.

Efeito telessomático – ação do pensamento à distancia


sobre o organismo de outrem.
445

Embrióides – espíritos que desencarnam na fase de


desenvolvimento embrionário e fixam o molde espiritual na
forma carnal que abandonaram, por tempo indeterminado.

Embriomorfia – estágio delicado em que se apresentam


espíritos abordados, depois da morte, quando a histogênese
perispiritual se estaciona na fase do desenvolvimento
embrionário detido, impregnando-se suas malhas da
aparência de fetos dismorfos.

Feticídio – ato de assassinar o feto, aborto criminoso.

Hiperegóico – o indivíduo embalado pelo hiperegotismo,


expressando-se com os hábitos da arrogância, prepotência e
orgulho desmedidos.

Hiperegotismo – o exagerado crescimento do ego, o


egoísmo exacerbado extrapolando-se o “eu” para além de
seus limites de contenção evolutiva. Caracteriza-se por
todas as atitudes de exaltação da própria personalidade
como a arrogância e o orgulho. Nos casos extremos
configura a megalomania. No plano físico determina
crescimentos celulares exagerados, as hipertrofias, como os
tumores e os hiper-funcionamentos orgânicos diversos.

Hiperpsiquia – o conjunto de hábitos personalísticos que


distinguem o hiperegotismo, caracterizado por grande
determinação, exagerada autoconfiança, exaltada busca de
prazeres e desmedida presunção, expressando-se a
arrogância em toda a sua pujança.

Hipoegóico – o indivíduo dominado pelo hipoegotismo,


estado psíquico caracterizado pela diminuição da expressão
do ego, em todas as suas possibilidades.

Hipoegotismo – acentuada contração das forças que


sustêm o ego, situando o ser nas antípodas do
hiperegotismo, ou seja, a redução do ânimo, da alegria, da
autoestima, da autoconfiança e todo o conjunto de valores
cultivados pelo “eu” na jornada evolutiva. No plano físico
determina hipofuncionamentos e degenerações celulares e
no plano mental induz à hipopsiquia com seu cortejo de
sintomas.

Hipopsiquia – o conjunto de hábitos personalísticos que


caracterizam o hipoegótico, distinguido por falta de
determinação, perda da autoconfiança, negação dos
prazeres e baixa autoestima, expressando-se como o
distúrbio depressivo em todo o seu conjunto
sintomatológico. Em casos extremos evolui para a apsiquia,
a paralisação das atividades psíquicas conscientes, estado
que, no Mundo Espiritual antecede a ovoidização.

446

Histogênese perispiritual – fase final da desencarnação


caracterizada pela rápida recomposição dos tecidos
perispirituais desfeitos no processo inicial do desenlace.
Auto-reconstrução que se processa segundo o molde
previamente desfeito, obedecendo os registros morfológicos
retidos no campo estrutural da forma, recompondo um
corpo semelhante ao da vida física.

Histólise perispiritual – fase inicial da desencarnação, em


que o perispírito processa a destruição e contração de suas
malhas teciduais.

Ideoplastia - ação exercida pelo pensamento sobre a


matéria. Ato de se confeccionar formas visíveis com
substancias sutis do pensamento.

Impulso autocatalítico – ver autocatálise.

Impulso histogênico – ver histogênese perispiritual.


Impulso histolítico – ver histólise perispiritual.

Miniaturização ou restringimento – processo de redução


do perispírito, mormente antecedendo o início da
reencarnação. Quando ocorre fora do útero acarreta o
fenômeno da ovoidização.

Morte ovoidal – o mesmo que pseudomorte ovoidal ou


ovoidização – o encistamento ovoidal do espírito em fuga de
si mesmo e da vida (ver ovoidização).

Obiatras – espíritos obreiros da desencarnação,


especializados na assistência imediata à morte.

Ovo hipoativo – óvulo fecundado que tem a movimentação


e o desenvolvimento lentos, sem que a medicina da Terra
identifique os motivos disso. Decorre da encarnação de
espíritos imbuídos de baixa atividade energética
perispiritual, como os suicidas.

Ovoidização – o estabelecimento da forma ovóide em


espíritos desencarnados, regredidos na forma. A
conformação humana se perde, reduzindo-se o perispírito à
um cisto de dimensão de um crânio.

O processo se estabelece em decorrência de dois tipos de


impulsos: o autodestrutivo, no qual impera o desejo da não
continuidade da existência no Plano Espiritual; e o
monoideísmo, movido pela fixação em intensos sentimentos
de vingança. Transforma-se o desencarnado em um parasita
do psiquismo humano, fixando-se nas mentes dos incautos,
de onde retira os eflúvios vitais de que necessita para o seu
metabolismo. Esta grave patologia da alma somente é
curada através de reencarnações, restituindo-se a forma do
perispírito em dolorosos

447

processos que envolvem abortamentos e malformações


embrionárias importantes. É o mesmo que morte ou
pseudomorte ovoidal.

Projetor psicocinegráfico – ou projetor telecinético –


espécie de espelho que colhe as imagens mentais do
enfermo, configurado em matéria plástica altamente
sensível às projeções da mente.

Pseudomorte ovoidal – o mesmo que morte ovoidal – o


encistamento do espírito em fuga de si mesmo e da vida
(ver ovoidização).

Psicólise – termo de origem espiritual que significa


autodestruição do psiquismo, ou seja, do próprio eu inferior.
É empregado para designar o movimento autodestrutivo
que continua a embalar o suicida após o seu desenlace.
Psicolítico – indivíduo embalado por impulso
autodestrutivo, suicida.

Termo de origem espiritual oriundo de psicólise, já definido,


significando aquele que, no Mundo Espiritual, continua se
autodestruindo, negando a vida. O suicida do espírito.

Psicometria – embora o termo, em psicologia, designe a


mensuração possível dos processos mentais, na ciência
espírita é empregado no sentido que lhe confere André Luiz,
na obra Nos Domínios da Mediunidade: “nos trabalhos
mediúnicos, essa palavra designa a faculdade de ler
impressões e recordações ao contato de objetos comuns”.
Compreende-se, portanto, que a matéria é suscetível de
captar registros vibracionais emitidos pelas pessoas que a
manipulam, servindo-se como uma fonte de informações e
sensações para indivíduos sensíveis, capazes de lê-los,
através da mediunidade psicométrica. Nesse trabalho
vemos que os objetos de uso pessoal podem ser uma fonte
de energias restauradoras para o espírito que os utilizou,
prestando-se a auxílio terapêutico específico a certas
necessidades, como a amnésia transreencarnatória.

Psicosfera – a aura, a emanação de origem biomagnética


que se irradia em torno do perispírito, o mesmo que campo
bio-magnético.

Psicossoma – o mesmo que perispírito.


Restringimento – ver miniaturização.

Revisão mnemônica, revivência mnemônica ou


recapitulação panorâmica – recapitulação das etapas
vividas na última encarnação, logo após a morte. Tal
fenômeno é visto como uma projeção cinematográfica
tridimensional e se passa em fugazes minutos, embora seja
percebido em uma outra realidade, parecendo demandar
longo tempo. Este período corresponde à reconstrução da
consciência e do

448

perispírito (histogênese perispiritual) preparando o ser para


a nova vida que se inicia.

Segunda morte – estado de perda da consciência ativa do


espírito após a morte física. Utilizado como sinônimo de
ovoidização, pseudomorte ou morte ovoidal, na realidade é
estado ainda mais avançado de inconsciência caracterizado
pela estagnação perispiritual, como o resultado de
aprofundamento do psiquismo em estados primitivos do ser.
Gravíssima e rara patologia da alma desencarnada,
acomete os espíritos com alto quilate de rebeldia e
maldade, levando ao completo embotamento da
consciência, com a total paralização do metabolismo
orgânico e psíquico, conhecida também como petrificação
perispiritual. No entanto, tal fenômeno não pressupõe a
plena anulação do espírito, fato inadmissível diante da
indestrutibilidade divina da vida que o nutre. Paulo de Tarso
se referiu à segunda morte e suas modalidades, quando nos
afirmou que o “salário do pecado é a morte” (Romanos
6:23).

Suicida do espírito – o desencarnado em processo de fuga


de si mesmo, negando a continuidade da vida após o
túmulo. Embalando-se em um impulso autodestrutivo,
termina por se promover a ovoidização.

Naturalmente que o termo é apenas uma força de


expressão e não pressupõe o aniquilamento da
individualidade.

Teratogenia ou teratogênese – a produção de formas


monstruosas durante o desenvolvimento embrionário.
Segundo a medicina deve-se a defeitos genéticos graves de
natureza aleatória, mas segundo o conhecimento espírita,
sua causa reside nas aberrações perispirituais, engendradas
pelo próprio ser.
449

MENSAGEM DE
SANTOS DUMONT
Amigos, Deus vos recompense.

A lembrança da prece me comove as fibras mais íntimas. O

espírito liberto esquece o homem prisioneiro A alvorada não


entende a sombra.

Tenho hoje dificuldades para compreender a luta por que


passei e, não fosse a responsabilidade que me enlaça ainda
no campo humano, em vista das aflições que me povoaram
as últimas vigílias na carne, preferiria que as vossas
recordações, ainda mesmo carinhosas e doces, não me
envolvessem o nome de lutador insignificante.

Descobrir caminhos foi a obsessão do meu pensamento.

Reconheço hoje, porém, que outra deve ser a vocação da


altura.

Dominar continentes e subjugar povos, através dos ares,


será, talvez, extensão do domínio da inteligência perversa
que se distancia de Deus. Facilitar comunicações às
criaturas que não se entendem, possivelmente será
acentuar os processos de ataque de surpresa e morte. Nas
desventuras da guerra dolorosa é a situação do missionário
da ciência que se vê confundido nos ideais superiores.
Atormentada vive a cultura que não alcançou o cerne
sublime da vida.
Terei errado buscando rotas diferentes? Certamente não. O

mundo e os homens aprenderão sempre. A evolução é fatal.

Todavia, recolhido presentemente à humildade de mim


mesmo, procuro caminhos mais altos e estradas
desconhecidas, no aprendizado do roteiro para o Cristo,
Senhor de nossas vidas.

Não há voo mais divino do que o da alma. Não existe mundo


mais nobre a conquistar, além do que se localiza na própria
consciência, quando deliberamos converter-nos ao Bem
supremo.

Sejamos descobridores de nós mesmos. Alcemos corações e


pensamentos ao Cristo. Aprimoremo-nos para refletir a
vontade soberana e divina do Alto por onde passarmos.

Crescimento sem Deus é curso preparatório de queda


espetacular. Humilharmo-nos para servir em nome de Deus
é o caminho da verdadeira glória.

De qualquer modo, agradeço-vos. O trabalhador que repara


as possibilidades para ser mais útil, jamais se esquecerá de
endereçar seu reconhecimento às flores que desabrocham
na senda.

Crede! Não passo de servidor pequenino.


450

Que o Senhor nos enriqueça com Sua divina bênção.

A. Santos-Dumont

NOTA DO MEDIANEIRO:

Mensagem recebida por Francisco Cândido Xavier, em Pedro


Leopoldo, na noite de 20 de julho de 1948, em resposta à
carinhosa prece que o grupo ali reunido enviara ao grande
inventor, recordando o dia de seu aniversário.

Ela nos mostra que Santos Dumont já havia se recuperado,


embora tivessem decorrido apenas 16 anos de sua trágica
morte, tempo considerado curto, tendo em vista a
habitualmente longa recuperação dos suicidas. O teor de
suas palavras nos atesta que ele já se movia rumo à
aquisição de

nobilitantes

conquistas,

sobremodo
distanciadas dos antigos interesses que o motivaram na
vida física, comprovando-se as revelações aqui expostas.

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