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Teresa escreve para homens e mulheres de todas as épocas e


também de todas as religiões, comenta Luce López-Baralt. A
santa de Ávila não tem receio em fundir ensinamentos cristãos
com imagens islâmicas como a dos sete castelos, reelaborando
em detalhe essa metáfora islâmica
Um embate entre linguagem e razão: a experiência mística –
como no caso de Teresa de Jesus – “ultrapassa os limites da
consciência e dos sentidos”. E Teresa “explicita sua impotência
perante a linguagem, pois sabe muito bem que apenas pode dar
uma ideia imprecisa do que, na realidade, lhe aconteceu além
do espaço-tempo”, afirma Luce López-Baralt, professora
emérita de literatura espanhola e comparada da Universidade
de Porto Rico. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-
Line, Luce afirma que a simbologia de Teresa traz traços
marcantes da tradição islâmica e sufi. “A santa reelabora em
detalhe a metáfora islâmica dos castelos, que costuma ser muito
simples. Trata-se, pois, de uma amplificatio da antiga metáfora
islâmica”, defende. E mais: “Como muitos autores místicos,
Teresa não tem problemas para tentar expressar a sua relação
com o mundo transcendente em termos eróticos”. Portanto, se a
experiência mística “é um estado alterado de consciência em
que o ser humano experimenta, para além da linguagem e dos
sentidos, uma união sem intermediários com Deus”, também há
místicos agnósticos, como Jorge Luis Borges, afirma.
Luce López-Baralt é porto-riquenha e professora emérita de
literatura espanhola e comparada da Universidade de Porto
Rico. É bacharel em Estudos Hispânicos pela mesma
instituição. Obteve seu mestrado em literaturas românicas pela
New York University in Madrid e o doutorado em literaturas
românicas pela Universidade de Harvard. Fez estudos
adicionais de pós-graduação na Universidade Complutense de
Madri, na Universidade Internacional Menéndez Pelayo, de
Santander, e na Universidade Americana de Beirut, no Líbano.
É membro e vice-diretora da Academia Porto-Riquenha da
Língua Espanhola. Filmou, junto com Carlos Fuentes, José
Saramago e Arturo Péres Reverte, um documentário especial
sobre Cervantes (Las Rutas de Quijote, Sevilha, 2007). Dentre
seus mais de 200 artigos e 23 livros, destacamos San Juan de la
Cruz y el Islam (Colégio do México, 1985; Hiperión de Madri,
1990); El sol a medianoche. La experiencia mística: Tradición y
actualidad (em colaboração com Lorenzo Piera, Madri: Trotta,
1996); Vida en el amor/vida perdida en el amor: el cántico
místico de Ernesto Cardenal (no prelo) e El Cántico Místico de
Ernesto Cardenal (também no prelo).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em linhas gerais, que Mistério nos


revelam as experiências místicas de Teresa de Jesus?
Quais são os pontos centrais de sua mística em sua
opinião?
Luce López-Baralt – As experiências místicas de Santa
Teresa – pensemos, sobretudo, em suas Moradas – revelam-nos
o Mistério eterno da união com Deus, que os místicos de todas
as persuasões religiosas dizem ter experimentado. Mas os
místicos autênticos sabem bem que nunca poderão articular
com a linguagem e a razão humana essa experiência, que
ultrapassa os limites da consciência e dos sentidos. Teresa
explicita sua impotência perante a linguagem, pois sabe muito
bem que apenas pode dar uma ideia imprecisa do que, na
realidade, lhe aconteceu além do espaço-tempo.
Apesar de sua afasia, a santa detalha distintos pontos da
experiência mística: o caminho hipotético da alma ao longo de
sete moradas espirituais (representadas por castelos
concêntricos): nas primeiras etapas ainda purifica-se a alma
(isto é, concentra-se em Deus) e nas últimas duas etapas já une-
se com Deus. A autora também diferencia entre uma “visão
imaginativa” e uma “visão intelectual”: com esses nomes
técnicos, a santa alude aos estados alterados de consciência em
que a alma interior acede a imagens (visões de Cristo, os anjos
etc.) e aos outros estados em que a união é tão alta que não há
possibilidade de registrar imagens ou palavras.

IHU On-Line – Em sua opinião, que novidades traz


Teresa para a compreensão do feminino em sua
mística e literatura?
Luce López-Baralt – Teresa escreve, sobretudo, para suas
monjas e leva em consideração a sua situação particular na
clausura, quando lhes explica a alta vida da alma. Usa imagens
cotidianas, com alusões à vida doméstica e cuida da vida dura e
encerrada que suas irmãs de hábito levam: para elas, passear
pelos castelos da alma será uma libertação gozosa. A santa
também leva em consideração que suas leitoras não são pessoas
letradas nem cultas, e adapta seu estilo a essa condição.
Contudo, Teresa escreve para todos, homens e mulheres de
todas as épocas e também de todas as religiões: o que dirime
não é assunto nem masculino nem feminino, nem antigo nem
moderno, mas universal.

IHU On-Line – Os estudos feitos pela senhora


mostram que os símbolos místicos mais importantes
ou “originais” utilizados por Teresa, como os “castelos
interiores”, são de origem islâmica ou uma adaptação
do sufismo. Como ocorreu essa mescla de linguagens
religiosas?
Luce López-Baralt – Miguel Asín Palacios, o primeiro a
propor uma filiação islâmica para os castelos teresianos,
ignorava a maneira em que ocorrera essa possível transmissão
histórica, já que Teresa, que não sabia latim, também não sabia
árabe. O mestre suspeitava, no entanto, que uma imagem
mnemotécnica tão bonita e tão simples como a dos castelos
podia ter-se convertido em anônima e podia ter sido
transmitida por via oral. No meu próprio caso, pude encontrar
muito mais exemplos de castelos místicos islâmicos, dando
razão a Asín. Concordo com o mestre sobre o fato de que os
castelos devem ter começado a fazer parte do folclore
tradicional cristão de maneira anônima e oral – a santa
ignoraria onde ou quando ouvira falar pela primeira vez da
metáfora. Mais ainda, ignoraria a sua origem islâmica, para
mim, já sem sombra de dúvida, à luz dos inúmeros casos que
pude documentar na espiritualidade sufi.
Cabe pensar que essa transmissão cultural, oral e espontânea,
era algo muito natural depois do diálogo que o cristianismo e o
islã tiveram na Península Ibérica ao longo de oito séculos. Aí
está a célebre “olé”, que vem etimologicamente de wa-Allah (Por
Deus!), que os árabes ainda exclamam perante um artista ou
quando se sentem tomados por uma grande emoção. É
impossível determinar quando ou como o primeiro cristão
espanhol disse a frase celebrativa árabe, mas ela ainda é
empregada, constituindo um testemunho silencioso da
importância dos rastros do islã na cultura espanhola.

IHU On-Line – Que outros elementos e símbolos do


sufismo e do cristianismo dialogam no imaginário de
Teresa?
Luce López-Baralt – Há muitos mais: a metáfora do bicho-
da-seda; a imagem da meditação vista em termos de um jardim
que deve ser regado com aquedutos e canais; a estreiteza e a
largura místicas; a árvore espiritual que cresce no interior da
alma nas águas da nossa contemplação profunda; o conceito de
morada ou etapa mística, que vem da maqam ou morada
islâmica; a noite escura da alma, dentre outros.

IHU On-Line – Reconhecendo essa possível filiação de


Teresa à tradição mística islâmica, como se dá a
releitura desses elementos por parte da mística de
Ávila? Qual é a “novidade” de Teresa?
Luce López-Baralt – A santa reelabora em detalhe a
metáfora islâmica dos castelos, que costuma ser muito simples:
o caminho da alma até si mesma é em forma de sete
moradas/castelos concêntricos, e, em cada um deles, avança a
nossa vida mística até alcançar a união com Deus no sétimo
castelo. Teresa se detém muito mais do que os mulçumanos em
cada um dos castelos e aproveita para nos dar lições de oração e
para elaborar suas teorias místicas, na medida em que descreve
o que ocorre em cada castelo. Trata-se, pois, de uma
amplificatio da antiga metáfora islâmica. Por outro lado, cada
um dos castelos islâmicos costuma ter uma cor diferente,
enquanto os de Teresa são de fino diamante ou claro cristal.
Contudo, é preciso dizer que Tirmidhi al-Hakim se antecipa por
séculos à santa com seus castelos ou cidadelas de luz
resplandecente.
É importante ter em mente que falo dos castelos islâmicos que
temos documentados até agora – aproximadamente sete ou oito
–, mas é possível pensar que, se continuarmos investigando,
surgirão novos casos, já que se trata de um verdadeiro lugar-
comum da mística islâmica.

IHU On-Line – Como analisa a simbologia e a


semântica utilizadas por Teresa de Jesus em seus
escritos místicos em geral? Como Teresa responde ao
desafio de converter em palavras a sua experiência
mística?
Luce López-Baralt – Teresa, em primeiro lugar, aceita sua
derrota frente à linguagem mais de uma vez e se queixa do
pouco que, na verdade, consegue comunicar sobre suas
experiências mais elevadas. Pois bem, quando tenta explicá-las,
faz-se eco da terminologia técnica mística que os grandes
mestres espirituais urdiram muito antes dela, desde São Paulo,
a quem ela cita indiretamente ao descrever o “rapto místico”,
até São João da Cruz, cuja noite escura e termos técnicos ela
repete de perto.

IHU On-Line – A partir do ponto de vista da literatura


histórica, quais foram as contribuições e o diferencial
das obras de Teresa de Jesus?
Luce López-Baralt – Santa Teresa é uma mestra consumada
da vida espiritual, declarada inclusive Doutora da Igreja, apesar
da cultura relativamente modesta que possuía. Ela tem o mérito
de reescrever os antigos ensinamentos espirituais de autores tão
diversos como São Paulo, São Pedro de Alcântara e São João da
Cruz, e não tem receio em fundir esses ensinamentos cristãos
com imagens islâmicas como a dos sete castelos, de grande
beleza plástica. Essa riquíssima fusão cultural, unida à
inovadora simplicidade com que a santa escreve, dota sua obra
de uma originalidade e de um frescor muito grandes.

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