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FR. GABRIEL DE s. MARIA MADALENA, o.e.o.

S. TERESA DE JESUS
mestra de vida espiritual
Titulo original
Sainte 'l1lérise de Jésus, ......,.._ de Yie splrltuelle
Tradução
Convellto Santa ,_ (São Paulo)
Revisão
Rubens Man:hloni

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PREFACIO DO AUTOR

Os cursos cujo texto a-presentamos ao público foram


dados em Roma, na sala de S. Teresa, em Corso d'Italia
n. 38; depois em Milão, na Universidade Católica do Sa­
grado Coração. Seu fim principal é servir de introdução
a uma leitura mais compreensiva das obras de. S. Te­
resa de Avila.
Numerosas são as almas que se nutrem da "celeste
doutrina" da reformadora do Carmelo, inas nem todas
conseguem formar uma idéia completa de seu ensina­
mento. Realmente, os livros de S. Teresa, escritos ao cor­
rer da pena e, às vezes, sem um plano bem estabelecido
revelam, só a quem se familiariza com eles, a íntima es­
trutura das concepções geniais de sua autora. Desde que
neles se descubram as idéias mestras, a síntese doutrinal
se depreende sem grande custo. Mas este trabalho de
fundo requer um tempo, do qual nem todos dispõe. Qui­
semos - na medida de nossos fracos meios - ajudar os
leitores a melhor aproveitar de seu contato com a Santa.
Pondo em relevo o ideal que ela pretende alcançar com
uma indefectível constância ( através de todos os seus li­
vros) e mostrando como os meios que ela nos propõe
e as graças maravilhosas que nos descreve tendem à rea­
lização do mesmo ideal, acreditamos poder oferecer aos
amigos da Santa este fjo condutor que os guiará com
mais segurança e mais gosto, no dédalo do seu "castelo
místico". Nosso e�tudo permitirá penetrar melhor a uni­
dade profunda do seu pensamento e compreender, num
olhar, as :riquezas espalhadas como pérolas preciosas,
em seus diversos escritos:

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Se o conseguirmos, ainda que um pouco, a devoção
filial que inspira este trabalho achar-se-á abundantemen­
te recompensada de suas fadigas. Além disso, a alegria
íntima que ele nos deu fez esquecer o esforço que nos
impunha. Viver em contato com a grande alma de nos­
sa Mãe espiritual é tal reconforto que quisemos dele
beneficiar todos aqueles que se deleitam em seus escritos.
Todavia, esta intenção de ordem mais prontamente
prática não afasta de nosso horizonte o fim doutrinal
que nos fez empreender, no ano passado, uma série de
estudos sobre "a escola mística teresiana". Examinando,
à luz da doutrina tradicional do Carmelo, as diferentes
questões - as mais controvertidas da teologia espiritual
moderna - constatamos como o caráter "prático" da
mística teresiana conduz a soluções "equilibdadas", que
permitem entrever uma conciliação possível entre po­
sições, à primeira ·vista, categoricamente opostas. O es­
tudo mais direto da doutrina de S. Teresa - fonte verda­
deira da "escola" do Carmelo reformado - nos ajudou a
dar um passo a mais nesta via de conciliação e aproximar
doutrinas que, na nossa opinião, são destinadas a se
completarem, em vez de serem postas em formal opo­
sição.
Nutrida de uma tradição tomista várias vezes secu­
lar, não parece possível que a mística teresiana esteja
em conflito com o ensinamento do Doutor Angélico; po­
rém, a direção mais prática que a caracteriza pode dar
à sua síntese um aspecto bastante diferente daquele, o
qual conduz um ponto de vista mais especificamente es:.
peculativo dos problemas místicos.
Pensam.os fazer obra útil pondo em relevo um acor­
do que cremos ser fundamental.
Terminando, nosso pensamento se volta para a que­
rida família espiritual que vive dos ensinamentos da San­
ta. Nós a tínhamos sempre presente ao espírito durante
nosso trabalho, e nosso desejo de ajudá-la a penetrar
mais profundamente na doutrina da nossa Mãe comum
não foi menor que o de aplainar o caminho aos "amigos"
de fora.

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Possam estas humildes páginas ser também, para
qualquer alma teresiana, ocasião de um aprofundam�nto
de sua própria vida. Então nosso íntimo desejo estará
satisfeito: teremos colaborado, em certa medida, para a
educação da família muito amada de S. Teresa de Jesus.

Fr. Gabriel de S. Maria Madalena, O.C.D.

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INTRODUÇÃO

A doutrina de S. Teresa dispensa apresentação. Cha­


mada "doutrina celeste" pela mesma santa Igreja, t vai
impondo sempre mais suas orientações às almas espiri­
tuais, especialmente àquelas que consagram sua vida à
prática da oração mental. Atualmente não existe livro· de
teologia mística que deixe de citar abundantemente as
obras de S. Teresa. Traduzidas em quase todas as línguas
européias, elas são o patrimônio comum da espirituali­
dade católica.
Aqui não falaremos do interesse que elas têm susci­
tado fora da Igreja, entre os psicólogos, que nelas ad­
miram as minuciosas descrições da experiência mística,
como entre os literatos, que se encantam com as exores­
sões delicadas de um pensamento variado, vivo e claro.
Limitando ao campo da espiritualidade cristã, que entu­
siasmo os escritos da grande mestra da vida de oração
não têm comunicado às almas piedosas?! Seria difícil,
com efeito, encontrar outro escritor que una ao mes­
mo tempo, a profundeza doutrinal à extensão da expe­
riência. E isto numa linguagem sempre maternal. Teresa
tem a arte de ser simples e familiar com suas filhas.
Ela sabe tomá-las pela mão, a fim de lhes mostrar "co­
mo devem fazer". Abrindo-nos horizontes sublimes e nos
propondo um ideal heróico, ela nos mantém sempre con­
fiantes e humildes em nosso impulso para os cumes.
Teresa de Jesus é também um encanto para aqueles que
se familiarizaram com suas obras.
1 Oração litúrgica da nfesta de S. Teresa. "Coelestis ejus doc­
trinae pabulo nutriamur ("Nutridos com o alimento de sua
celestial doutrinan).

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Entretanto, uma primeira leitura delas nos dá sem­
pre uma impressão de desordem. Admirando a profunde­
za das concepções e a beleza dos pensamentos lançados
a mancheias nestas páginas, muitas vezes inflamadas e
sempre ardentes ( onde a mesma riqueza do pensamento
leva a Santa a abundantes digressões), mais de um per­
derá facilmente o fio do discurso e ficará desejoso de
uma exposição mais ordenada e mais estritamente lógi­
ca. Esta, porém, aí está e muito profunda. � a lógica
da própria vida de Teresa, revelando-se àqueles que sa­
bem voltar com assiduidade ao estudo de seus escritos.
Esta mulher genial une as intuições profundas de uma
inteligência viva e sobrenaturalmente iluminada aos ar­
dores de um coração humano que pode amar imensa­
mente e cujas forças foram empregadas em amar total­
mente o princípio mesmo e o fim da vida humana: Deus!
Admirável é a lógica de tal vida!
De outra parte, quem estuda S. Teresa percebe bem
depressa que suas freqüentes digressões ( semeadas de
tantas pérolas preciosas) não impedem o desenvolvimen­
to de seu pensamento. Os parênteses se fecham e a Santa
retoma com destreza o fio das idéias que parecia perdi­
do. Após uma longa interrupção, não tendo muitas vezes
o tempo de se reler, aproveitando os curtos momentos
dos quais dispõe, ela retoma perfeitamente o assunto
antes tratado e o escruta em profundeza, com um reno­
vado vigor. Acrescentamos que, através da variedade dos
seus escritos, escalados no espaço de uns vinte anos,
aparece uma profunda unidade doutrinal. Os mesmos
pensamentos que alimentavam sua vida espiritual aos
quarenta anos se reencontram mais tarde, enriquecidos,
desenvolvidos e revestidos de expressões sempre mais
vivas e encantadoras. Estabelece-se uma síntese sempre
mais profunda em suas intuições, em linhas cada vez
mais claras. A Santa tende a um fim único: o encontro
da alma com Deus - e não conhece melhor caminho
que o da generosidade.
Uma só coisa explica adequadamente esta maravi­
lhosa unidade em tanta variedade: a vida de Teresa. Ela

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fala como sente e vibra. Seus livros não são fruto de
uma simples especulação. Eles são o fruto de uma vida,
o retrato de sua alma; suas páginas fremem às pulsações
de um grande coração, todo orientado para um fim úni­
co : amar a Deus com todas as suas forças. Os escritos
de Teresa são, pois, de uma lógica profunda, porque eles
refletem a lógica de sua vida. Tentar extrair dos livros da
Santa uma verdadeira síntese doutrinal não nos parece,
portanto, um esforço inútil.
Para tratar de maneira metódica o estudo da dou­
trina espiritual da escola mística teresiana convém con­
siderar, antes de tudo, os ensinamentos da Mãe espiri­
tual do Carmelo reformado. S. Teresa, com efeito, me­
rece o nome de Mãe, não somente como fundadora de
tantos mosteiros e conventos, 2 mas também e antes de
tudo, coqio criadora de um espírito que ela soube in­
fundir em toda uma família religiosa. Este espírito de
vida devia atrair para nossos claustros carmelitanos tan­
tas almas privilegiadas cujo perfume embalsamaria a
Igreja de Cristo; suscitar, além disso, uma linhagem: de
mestres da vida ·espiritual que, com mão segura, guia­
riam as almas generosas para os cimos da intimidade
divina. Uma escola de espiritualidade nasceu dos ensi­
namentos de -Teresa de Jesus. Verdadeiramente, a seu
lado a Providência quis pôr outro gênio - uma águia
-, cuja penetração profunda e poderoso vigor sintético
revestiram sua doutrina desta estrutura científica que
devia realçar-lhe o grande valor. S. João da Cruz tam­
bém é filho .espiritual de Teresa de Jesus. No edifício
doutrinal levantado pelo Doutor Místico, reencontramos,
em grande parte, as idéias expostas e ensinadas pela fun.
dadora a suas filhas, ávidas da doutrina materna e de­
sejosas de se fazer instruir por esta mestra que �las
viam caminhar na luz; Estudando S. Teresa nós tira­
mos água � fonte mesma da escola mística do Carmelo
reformado.
2· S. Teresa foi fundadora de 18 mosteiros. A reforma dos
religiosos é igua!mente devida à sua iniciativa; a Santa lhes
conseguiu a casa do primeiro convento de Duruelo.

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Nossa intenção é considerar a Santa como mestra
da vida espiritual e determinar qual foi seu pensamento
sobre os problemas mais centrais da espiritualidade.
Procuraremos, antes de tudo, fixar sua concepção da
perfeição, a qual ela nos propõe como fim ao qual deve­
mos tender. Deste primeiro tema derivará outro que,
em nossos dias, dele é inseparável: qual é o lu�ar do
ideal místico nesta concepção da vida espiritual ?
Este será o tema do segundo capítulo.
Analisando o Camirr.ho de perfeição no capítulo ter­
ceiro, apresentaremos o concurso ativo que a alma deve
prestar à obra de sua santificação. Depois, guiados pela
Santa, visitaremos as diferentes moradas do " castelo
interior" e, ai, admiraremos as maravilhas operadas pelo
amor divino na alma que se dá inteiramente a Deus.
Enfim , para não omitir uma das características mais sa­
lientes da doutrina teresiana, mostraremos como a San­
ta, ao longo da subida espiritual, não quer separar-se
de Jesus Cristo. Isto quer dizer que ela é verdadeira­
mente Teresa de Jesus.

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A PERFEIÇÃO MORAL

" Dedit ei Dominus ... latitudinem cordis quasi arena


quae est in littore maris". 3 Um grande coração, largo co­
mo as praias do mar, que se estendem a perder de vista ...
Tal é a fisionomia que de S. Teresa esboça a liturgia
sagrada, na antífona de entrada de sua missa. Não po­
deria dizer melhor! Teresa é o tipo de uma grande alma!
Ela tem horror às meias medidas; o que ela faz, fá-lo in­
teiramente - sobretudo quando se trata de amar. Ela
não pode deter-se em miudezas; sua alma não calcula: é
generosa e magnânima. Seu caráter é a totalidade!
Nas páginas em que ela descreve seu ideal de per­
feição, a palavra " tudo " é semeada a mancheias; sinal
evidente de um ardor que não conhece limites; revelação
do único desejo do seu coração: dar-se totalmente, sem
reserva alguma. Isto é, tudo, para Teresa.
Parece, com efeito, que ela jamais pensou de outro
modo. Brevemente o demonstraremos percorrendo seus
diversos escritos, segundo sua ordem cronológica.
Seu ideal é invariável, mas com o tempo ele se re­
vela mais claro, mais concreto e se exprime mais ma­
ravilhosamente. O que a princípio traz a linguagem do
coração reveste, pouco a pouco, uma expressão doutrinal
de uma grande clarividência, sem diminuir o ardente
calor primitivo. As vezes, - sobretudo em suas primei­
ras obras, - a Santa propõe esta doação total de si mes­
ma como condição necessária à realização de outro

3 Da antífona de entrada da missa votiva da Santa, no pró­


prio da Ordem do Carmelo. ("Deu-lhe o Senhor sumo grau de
sabedoria e prudência, largueza de oração como se fosse areia
na praia do mar".}

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grande desejo de seu coração: entrar na intimidade de
seu bem-amado Senhor. Mais tarde ela mostra lumino­
samente como nesta doação consiste a verdadeira per­
feição da alma e como, para este fim, são ordenadas as
consolações celestes da oração, pois que elas devem tor­
nar-se ca1,azes de nos darmos sempre mais. Sob o ardor
da caridade divina, a Santa compreende que o amor
consiste mais em dar que em receber.

O livro da Vida

Teresa de Jesus tem 47 anos quando, para obedecer


a seus confessores, escreve o livro de sua Vida. *
Desde alguns anos entrega-se, sem reserva, à prática
da vida interior. Presentemente vive só para Jesus. Ce­
lestes delícias inundam sua alma e a inebriam de amor:
é a recompensa de Jesus.
Temos visto que Teresa tem um coração largo e
generoso; desejava que esta felicidade não fosse reser­
vida só para si, mas que todas as almas interiores dela
participassem. Parece, com efeito, que ela não pode ima­
ginar a vida de amor perfeito sem a intimidade com Deus
e, num impulso de caridade fraterna, suplica ao seu Bem­
-amado : " Senhor de minha alma, ó meu único Bem, por
que não quisestes que a alma, desde que se determina a
vos amar, experimente logo a alegria de chegar a este
amor perfeito? "
Mas, recordando bem depressa sua pouca genero­
sidade, continua: " Eu me exprimo mal. Deveria dizer ge­
mendo: Por que não queremos nós mesmos ? Toda a
falta está em nós se não chegarmos prontamente a
tão alta dignidade. Nunca acabamos de fazer a Deus o
dom absoluto de nós mesmos. Não nos dá também ele,

* ve;a Livro _da vida, S: Teresa de Jesus, publicado por


Edições Paulinas.
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de repente, tal tesouro". 4 Teresa vê, pois, claramen·
te, que quando se a_uer chegar à intimidade divina é pre.
ciso dar·se, não pela metade, mas inteiramente. Outrora
ela não fez sempre assim. Conheceu anos de infidelidade,
quando a afeição da criatura a encadeava; finalmente,
vencida pela graça, põe.se à obra com todo seu coração.
Jesus vem em sua ajuda: após os anos de luta e esforços,
ele a favorece com um arrebatamento que a transporta
do nada ao tudo.
· Em traços vigorosos a Santa descreve esta vitória
libertadora da graça divina. " Ela j á perdeu sua primeira
penugem, suas asas cresceram, pode levantar seu vôo.
A alma desfralda o estandarte pela causa de Cristo. Pa·
rece verdadeiramente que o governador desta fortaleza
subiu, ou antes, foi levado à torre mais alta, para aí ar.
varar a bandeira de Deus ... " - Que profusão de imagens!
" Desta altura, a alma descobre muitas coisas. Vê
mui claramente a pouca estima que merecem as coi­
sas da terra e o seu nada. Não quer mais ter von­
tade própria; quereria mesmo não ter mais livre ar­
bítrio. Entrega-lhe as chaves de sua vontade... Esta
alma já não tem outra ambição que a de realizar a
vontade c;le Deus. Não quer mais ser senhora de si,
nem de nada, nem mesmo de um fruto do seu po­
mar". s
Daqui em diante, sim! Teresa se dá totalmente! Ten·
do entregue a Deus as chaves de sua vontade, não tem
mais outra liberdade, senão a de cumprir a vontade de
seu Senhor.

4 Vida, cap. 2, nn. 1-3. As citações são traduzidas s��o


a edição crítica do frei Silvério, O.C.D., Burgos, Ed. BreVIário,
1932. A edição crítica de frei Silvério de Santa Teresa, O.C.D.,
foi traduzida para o português pelas carmelitas descalças do
Convento Santa Teresa, RJ, e publicada por Edições Paulinas
com o título LIVRO DA VIDA.
S ld., lbid., cap. 20, n. 22.

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O Caminho de perfeição

Entretanto, aspirando a uma vida mais sacrificada


e querendo, além disso, dar a Jesus outras almas que
fossem "totalmente dele ", Teresa fundou seu primeiro
mosteiro, "este cantinho do céu" 6 onde Deus acha suas
complacências. Um grupo de almas ardentes e generosas
se retirou com ela no convento de S. José de Avila, es­
te "paraíso de delícias para Jesus", 7 segundo a mesma
expressão de nosso Senhor falando à S�ta. Estas al­
mas, presas de um ideal, querem se fazer instruir por
sua mãe e, às suas súplicas, ela escreve o Caminho de
perfeição.
Com que avidez suas magnânimas filhas devoraram
os cadernos onde Teresa, com sua grande e enérgica le­
tra, lhes traça e lhes propõe o ideal da carmelita ! " Já
sabeis, minhas filhas, que a primeira pedra deve ser sem­
pre uma boa consciência ... desembaraçar-vos com todas
as vossas forças dos pecados veniais e procurar com cui­
dado o mais perfeito " 8 Como primeira pedra "o mais
perfeito" ! ... Verdadeiramente, Teresa quer que suas filhas
nutram altíssimas aspirações. Nas Constituições, escri­
tas de próprio punho, no capítulo em que trata da "re­
cepção das noviças ", ela não teme pôr entre as condições
exigidas das postulantes "que elas aspirem à perfeição
total ". 9
Desde o princípio, respiramos uma atmosfera de ge­
nerosidade. A tais almas poder-se-á pedir muito. Chegada
ao capítulo do desapego, Teresa afirmará:

"Praticado com perfeição, é tudo para nós... Acredi­


tais, minhas irmãs, que seja um pequeno favor obter
um tal bem, dando-nos completamente e sem reser-

6 Id., Ibid., cap. 35, n. 12.


7 ld., lbid.
8 Caminho de perfeiçiio, . cap. 5, n. 3.
9 Constituições. Da recepção das noviças.

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va àquele que é ·tudo ? ... Demos-lhe as mais vivas
ações de graças por nos ter reunido neste asilo on­
de não temos que pensar em outra coisa". 10
Em verdade, nesta casa não se pensa verdadeiramen­
te em " outra coisa" ; impossível é aí viver sem uma gran­
de generosidade:
" Pelo amor de Deus temos renunciado à nossa li­
berdade... submetendo-pos, além disso, a toda espé­
cie de penitências: jejum, silêncio, clausura, ássis­
tênci� ao coro. Sim, a vida d� um bom religioso,
daquele que quer ser contado entre os amigos ínti­
mos de Deus, é um longo martírio". 11
"Deus ", com efeito-; " não se dá totalmente, senão
àqueles que se dão totalmente a ele" . 12
Não penseis, entretanto, que a doação total seja uni­
camente ativa! Certamente é preciso se sacrificar " dan­
do ", mas também "aceitando " . C_omentando o " Pater
noster", Teresa nos revela a profundeza da oferta que
fazemos de nós mesmos a Deus, dizendo-lhe com todo
nosso coração:
" Fiat voluntas tua"! ª Quero vos expor ou vos re­
cordar o· que é sua vontade. Não temais que ele vos
queira dar riquezas, prazeres... Não vos ama tão
pouco. Vede o que o Pai deu àquele que amava
acima de tudo: sofrimentos, a cruz ... e compreen­
dereis qual é sua vontade. São estes, os seus dons
neste mundo. Ele os mede conforme seu amor por
nós. Dá mais àqueles que mais ama e menos àque­
les que menos ama. Regula também conforme a co­
ragem que descobre em cada um de nós. Vê que
é capaz de sofrer muito por ele aquele que muito
o ama, e sofrer pouco, quando o ama pouco. Estou
convencida que a medida da capacidade para supor-

10 Caminho de perfeição, cap. 8, n. 1.


11 Id., ibid., cap. 12, nn. 1-2.
12 ld., ibid., cap. . 28, n. 12.

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tar uma grande ou pequena cruz é a mesma do
amor". 13
Dar-se totalmente significa, pois, " querer sofrer". E
querer sofrer é dar a Deus uma prova convincente de
nosso amor por ele. Toda possuída pelo amor, Teresa
repete ao seu Senhor: " Sofrer ou morrer" . 14 A alma
amante de Jesus o procura sobre a cruz. Sabemos ago­
ra até que ponto se estende o dom de nós mesmos: até
ao sofrimento abraçado por amor.
Reparemos, contudo, que nestas mesmas páginas em
que a magnânima Teresa convida suas filhas ao heroís­
mo, recorda-lhes que o dom absoluto de si .dispõe a al­
ma à mais doce intimidade com Deus : " Por este meio,
nos dispomos a atingir prontamente o termo do nosso
caminho e beber a água viva da fonte, da qual temos
falado". 15 Esta fonte de água viva simboliza, para Tere­
sa, a união mística. Eis-nos, assim, diante do problema
da conexão entre a vida perfeita e as graças místicas.
A este tema, dada sua grande imoortância, consa­
graremos inteiramente o capítulo seguinte.

Pensamentos sobre o amor de Deus

Passam os anos. Teresa de Jesus, cuja vida interior


ganha cada dia em profundeza, apesar das mil preocu­
pações de suas fundações, medita com uma alegria espi­
ritual intensa as misteriosas palavras do " Cântico dos
Cânticos ". Ela quer repartir com suas irmãs os tesouros
descobertos e, com a permissão de seu diretor, escreve
os " Pensamentos sobre o Amor de Deus". O livro teve
uma triste sorte. Certamente, para provar sua obediên­
cia (não havia outro meio ? l ) , Pe. Yangas, um dos confes-

13 lei., ibid., cap. 32, nn. 5-7.


14 Vida, cap. 40, n. · 20.
15 Caminho de perfeição, cap. 32, n. 9.

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sores da Santa. lhe ordenou queimá-lo; ela assim fez
imediatamente. 16 O pobre padre ficou, com isto, todo
pesaroso ... e nós. privados de um manuscrito de S. Te­
resa. Felizmente suas filhas já haviam dele copiado al­
gumas páginas e assim a obra foi parcialmente salva.
"Que ele me beije com um beijo de sua boca . .. " ó
santa Esposa! Chegamos ao objeto de vossa súpli­
ca, Ela consiste em unir nossa alma, de maneira
tão íntima à vontade de Deus. que não haja divisão
entre ele e ela. Não há mais que uma só e mesma
vontade. manifestada. não só por palavras ou dese­
jos. mas por obras. Também. desde que ela compre­
ende servir melhor o Esposo em qualquer coisa. ex­
perimenta tal desejo de o contentar que não
escuta as razões que o entendimento lhe fornece pa­
ra dissuadi-la. nem os temores que lhe sugere; dei­
xa agir somente a fé, sem considerar seu interesse.
nem seu repouso .. . 11
Quem é esta esposa abrasada senão Teresa? Que de­
seja ela? Não ter mais outra vontade senão a de seu
Senhor; que não haja mais entre eles "nenhuma divi­
são". mas "uma só vontade" . Assim quer Teresa prová­
-lo por obras. ·Percebe uma coisa mais agradável a Deus ?
:e.preciso que a realize. Arrebatada pelo amor. "não es­
..
cuta mais nada . Não se contam mais as dificuldades:
o amor é forte como a morte.
Dar tudo, é dar-se sem limites! Como se admirar,
então. que Teresa tenha feito o voto do mais perfeito?
Não era este uma exigência de seu coração abrasado ? 18

16 Ler o prefácio do Pe. Egídio de Jesus na edição italiana.


17 Opúsculo Pensamentos, cap. 3, p. 56.
18 Cf. Franc. de S. Maria, Re,orma de los descalzos. L. I,
cap. 30, n. 10. Os teólogos místicos do Carmelo reformado con­
sagraram longas dissertações ao estudo desse voto de S. Teresa.
Ver José do Es-oírito Santo, Cursos theol. mystico-scolasticae,
tomo IV, Disp. 27-28.

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O livro das Fundações

Eis-nos chegados ao livro das Fundações, o mais


pitoresco dos escritos de Teresa. Aqui e acolá, páginas
de doutrina magnífica interrompem a narrativa encan­
tadora da ereção dos mosteiros. O ideal da Santa ai se
exprime ainda mais eloqüentemente, atingindo, por ou­
tra parte, uma grande precisão doutrinal.
" J;: evidente que a absoluta perfeição não consiste
nas alegrias interiores, nem nos grandes êxtases, vi­
sões, nem no esoírito de profecia. Consiste em tor­
nar nossa vontade de tal modo conforme a de Deus,
que abracemos de todo o coração o que cremos que­
rido por ele e que aceitemos com a mesma alegria
o que é amargo e o que é <:1-oce, desde. que compreen­
damos que Sua Majestade o quer". 19
O modelo é de uma clareza perfeita. A grande místi­
ca faz consistir nossa perfeição na plena conformidade
de nossa vontade com a de Deus. Mas, até onde vai esta
conformidade da qual fala a Santa? Basta que Deus
queira algo, por amargo que nos seja (humanamente),
para estar a ponto de abraçar com alegria, precisamen­
te porque é a vontade de nosso Bem-amado. Teresa se
detém desenvolvendo este pensamento e indicando-nos
a fonte de uma grande generosidade:
" Parece muito difícil, não apen� fazer uma coisa
extremamente contrária à nossa natureza, mas ter
alegria com isto; e é verdadeiramente assim. Toda­
vi� o amor, quando é perfeito, possui bastante for­
ça para esquecer seu próprio contentamento em vis­
ta de ser agradável àquele que nos ama". 20
A fonte de nossa generosidade é, portanto. o amor.
Também, praticamente não há diferença entre "dar nos-

19 Fundações, cap. 5, n. . 10.


20 Id., ibid.

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sa vontade• e " amar· . Teresa mostrá-lo-á claramente
em sua última obra onde, completando seu pensamento,
sintetiza os diversos aspectos da pezfeição moral.

O Castelo interior

Teresa tem 62 anos auando escreve sua obra-prima:


o Castelo interior. Ei-la chegada à completa maturidade.
A graça do matriiilômio espiritual, de que goza daqui
em diante, lhe tem revelado os últimos segredos da
vida mística, enauanto suas intuições dos mistérios da
vida sobrenatural se acham enriquecidas de uma vasta
experiência. As moradas do "castelo interior", que ela
edifica com mão de mestre. nos são descritas com uma
arte incomparável. Mas, embora nos conduzindo através
dos vários aposentos para as moradas mais íntiµlas onde
se goza das graças místicas mais sublimes, semeando
em profusão conselhos. maternais e engrandecendo as
misericórdias do Senhor, ela jamais · esquece o ideal de
pezfeição que arrebatou seu coração. Permanece sem­
pre a Teresa �ue quer " se dar totalmente", e quer per­
der sua vontade na de seu único Bem-amado.
A meditação, o recolhimento e a oração de quie­
tação conduziram a alma ao limiar da vida unitiva. Eis­
-nos nas "Quintas Moradas ", aquelas em que a alma ex­
perimenta a união fruitiva, goza da presença divina
" real ", sente-se unida a Deus, " toca a Deus • : graças pró­
prias dos pezfeitos. Teresa sabe, porém, que todas as
almas não são conduzidas por esta via dos mais subli­
mes favores sobrenaturais; em conseqüência, não che­
garão elas à pezfeição? Escutemos a Santa:

"Aqueles que nosso Senhor não enriquece de graças


de uma ordem sobrenatural, não deveID. perder toda
a esperança de chegar às moradas dos pezfeitos. A
verdadeira união pode-se obter muito bem com a

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ajuda de nosso Senhor, quando nos esforçamos por
não ter mais vontade própria e por nos prende.r a
tudo o que é exigido pela vontade de Deus... Ele,
que é todo-poderoso, tem muitos meios para enri­
quecer as almas e as introduzir nestas "Moradas ",
sem fazê-las passar pelo caminho abreviado ( da
união mística ) do qual se trata ". 21
E Teresa conclui: " ]! tal união que eu tenho deseja­
do em toda minha vida, e que 11ão deixo de pedir ao
Senhor; além de tudo é a mais fácil de reconhecer e à
mais segura". 22
Por conseJruinte, mais que à união mística, não obs­
tante tão desejável, Teresa tende à união de conformi­
dade à vontade divina. Qual é esta vontade ? "A nós, o
Senhor só pede duas coisas: que o amemos e que ame­
mos nosso próximo; este é o fim de nossos· esforcos.
Se a isto nos conformarmos de uma maneira nerfeita,
realizaremos sua vontade e lhe estaremos unidos. De
resto. isto está em nosso poder; basta que o aueira­
mos " .23 1!,. portanto, a mesll\a perfeição da caridade que
nos toma perfeitamente conformes à vontade divina.
Teresa alcança aqui a opinião comum dos teóloP.:os: "a
p�rfeição cristã consiste na perfeicão da caridade". To­
davia, como no-lo faz notar S. Tomás, esta perfeição
comporta dois graus : no primeiro, a alma goza da tr�­
qüila posse dos bens comuns da gra�. atingindo ·cer­
ta segurança, após ter lutado vitoriosamente na v� pur-.
gativa e iluminativa. No segundo, "ad quaelfbet diffi­
cilia manum mittit ", 24 ela põe a mão em coisas· niais
difíceis. Basta-lhe saber que uma coisa agrada a Deus
para que a queira e logo a ame. "Isto ", diz Tomás, "é a
caridade consumada". 25 E Teresa, não podemos duvidar
depois do que temos lido, tende a esta perfeição mais alta

21 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas", cap. 3,


n. 4.
22 Id., ibid., cap. 3, n. 5.
23 ld., ibid., cap. 3, n. 7.
24. III Sent., D. 29, q. 8, a. 8, sol. 1.
25 ld., ibid.
23
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da caridade. Ela também se regozija ao pensar que toda
sua vida monástica a conduz a tal amor:

"Convencamo-nos, filhas minhas, de aue a verda­


deira perfeição consiste no amor de Deus e do pró­
ximo e quanto mais formos fiéis em guardar este
duplo preceito, mais seremos perfeitas. Nossa Regra
e nossas Constituições são apenas meios para o cum­
prir mais perfeitamente" . 16

Sim, certamente! Toda a vida do Carmelo, com suas


numerosas ocasiões de se- sacrificar, é realmente uma vi­
da de amor, tendendo à plenitude do amor.

O ideal moral de S. Teresa, considerado nestas fór­


mulas sucessivas, - dar-se totalmente - abraçar o so­
frimento - procurar a todo o custo o bel-prazer de Deus
- pôr sua alegria na vontade divina - mesmo se re­
pugna à nátureza, se expande finalmente no conceito
de "amor perfeito ".
Estas diversas fases do pensamento da Santa dão,
precisamente, uma forma majs concreta e determinada
à sua concepção do amor perfeito. Trata-se de um amor
que se exprime pelo jubiloso sacrifício de si mesmo. Te­
resa não concebe a perfeição da caridade unicamente
como um grau de amor muito intenso, mas como uma
caridade ativa, operosa e radiante. Para Teresa, o amor
e o sacrifício se compenetram. Todo o valor do sacrifí­
cio vem do amor, mas o sacrifício é o sinal mais evi­
dente do amor. A caridade tal qual ela a entende, " ad
quaelibet difficilia manum mittit".
Uma filha da Santa, em nossos dias tão célebre
quanto sua mãe, nos deu do amor uma definição se­
melhante : "Amar", diz S. Teresa de Lisieux, "é dar tudo,
é dar-se". n

26 Castelo interior ou moradas, "Primeiras Moradas", cap.


2, n. 17.
21 Poesias, "Aimer c'est tout donner, et se donner soi-même".

24
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O amor do próximo

Amar a Deus é dar-se totalmente a Deus; amar o


próximo é dar-se totalmente a seu próximo.
Durante sua vida, S. Teresa sentiu uma intensa ne­
cessidade de segurança. Ela quer ser generosa, certa­
mente, mas não quer trabalhar e sofrer em vão. Quem
poderia lho censurar ? Conduzida pelo caminho das vi­
sões e revelações extraordinárias, ela consultou inúme­
ros teólogos e escreveu muitas relações a fim de se asse­
gurar se realmente o espírito de Deus era que operava
nela. Sobretudo quando se trata de amar, quer es!ar
absolutamente segura. Em amar, com efeito, resume-se
toda sua vida. Sabendo que não podemos estar absolu­
tamente certos de possuir a graça de Deus, 28 ela procura
por todos os modos tranqüilizar-se sobre este ponto. "O
sinal mais seguro, a meu ver, para saber se temos este
duplo amor, consiste em amar verdadeiramente o pró­
ximo, visto que não podemos ter a certeza de que ama­
mos a Deus, ainda que tenhamos indícios; mas pode­
mos saber se amamos o próximo" . 29
Um teólogo contentar-se-ia em dizer que podemos
sabê-lo ou vê-lo mais claramente; todavia é certo que
a caridade fraterna se verifica praticamente mais tan­
gível; como não pode estar separada do amor de Deus,
esta caridade fraterna nos dá maior certeza de amar
a Deus verdadeiramente. Com toda a paixão que
a transporta para o Senhor, Teresa, ávida de certeza,
amou a Deus em seu próximo. O amor de Deus escava,
em seu grande coração, abismos insondáveis; e o amor
do próximo o dilata até lhe fazer abraçar o mundo in­
teiro.

28 Sumrna theologica, Prim. Sec. q. 1 12, a. 5. Cone. Tr. Ses.,


VI, e. 9. Denz., n. 802.
29 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas ", cap. 3,
n. 8.

25
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O ideal apostólico

Jamais esqueçamos que a Reforma de S. Teresa é


fruto de seu espírito apostólico. Os deliciosos capítulos
de sua Vida, onde ela conta a fundação de S. José de
Avila, começam pela descrição da terrível visão do in­
ferno, a qual impressionou a Santa a tal ponto aue só
à sua lembrança ª o sangue gelava-lhe nas veias". 30 Esta
visão não teve por único efeito fortificar em sua alma
o horror ao pecado; ela experimentou ainda ª uma dor
imensa pela perda de tantas almas e em particular dos
luteranos que pelo batismo, já eram membros da Igreja.
Proporcionou-me assim", diz ela, "os mais ardentes de­
sejos de trabalhar para a salvação dos mesmos. Par�
ce-me, verdadeiramente, que para livrar uma só alma
de tão horríveis tormentos, eu sofreria volun+ ariamente
mil vezes a morte ". 31 Foi precisamente para este fim
que Teresa introduziu uma JZraDde austeridade em seus
mosteiros: ela quer se sacrificar totalmente com suas
filhas pelas almas. Quando se trata da Igreja de seu
divino Esposo, seu ardor não conhece mais limi�es. Pou­
cos anos após a fundação do seu primeiro convento ela
recebeu a visita de um missionário que voltava das
tndias; ele lhe ª contou quantos milhões de almas lá se
perdiam por falta de instrução religiosa".

ª A perda de tantas almas", nos diz a Santa, ªme


àfligiu de tal modo que eu não sabia que fazer de
mim. Retirei-me nuin eremitério, onde derramei
aQudantes lágrimas, suplicando em brados a nosso
Senhor que me mostrasse o meio de trabalhar um
pouco para lhe ganhar algumas almas ... Eu invei ava
muito aqueles que, animados de seu amor, tinham
a liberdade de se consagrar a esta obra, mesmo ao

30 Vida, cap. 32, n. 4.


31 Id., ibid., cap. 32, n. 6.

26
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preço de mil vidas ... Este é o atrativo que o Senhor
pôs em mim". 32

Para consolá-la, nosso Senhor lhe diz: " Espe� um


pouco, minha filha, e verás grandes coisas". 33 Estas gran­
des coisas não tardaram a chegar. O padre geral . da Or­
dem visitou Teresa em seu convento e não só lhe per­
mitiu, mas lhe ordenou que estendesse sua Reforma. 34
Então, viu-se erguer por toda a Espanha, em pouco tem­
po, mosteiros cheios de almas generosas, e conventos
de religiosos que logo empreenderam a obra das mis­
sões. A alma da Santa certamente exultou de alegria
quando soube que Pe. Graciano enviava ao Congo um
grupo de religiosos. 35
Rezando, um dia, na igreja dos descalços de Pastra­
na, a Santa ficou arrebatada com a amrélica pureza de
um jovem noviço ajudando à missa. " Com seu direito
de Mãe", nos diz uma· velha crônica, ela se aproximou
furtivamente e lhe deu um beijo. Espantado, o novici­
nho, "de olhos baixos ", retirou-se à sacristia. 36 Teresa
tinha um amor maternal por todos os seus virtuosos

32 Esse missionário foi o Pe. Afonso Maldonado, comissário


geral das lndias Orientais (América) e zeloso pregador apostólico.
Fundações, cap. 1, n. 7.
33 Fundações, cap. 1, n. 8.
34 Id., ibid., c-.ap. 2.
35 Pe. Florêncio dei Niiio Jesus, La orden de Santa Teresa,
la fundllción de la propaganda fide y las missiones carmelitanas,
Madri, 1923, cap. 1, p. 6.
36 Réforme · des Déchaussés, L. IX, cap. 21 , n. 3. " Sendo no­
viço (o venerável) Pe. Agostinho dos Reis aconteceu-lhe com nos­
sa santa Madre algo que se tomou célebre. Foi ela a Pastrana
visitar o mosteiro das monjas, que havia fundado, mas primei­
ro foi ouvir missa no convento dos frades. Entrando na igreja
viu Fr. Agostinho ajudando a missa com tanta modéstia que lhe
pareceu um anio baixado do céu. A santa, com liberdade de
mãe, vendo-o tão modesto e devoto, aproximou-se dissimulada­
mente e o abraçou. Era tanta sua compostura que não levantou
os olhos para ver quem o abraçava; compreendendo, porém,
pelo hábito, que era mulher. deixou no altar o sacerdote e en­
trou na sacristia, tão perturbado e pálido que nem falava, nem
se re"azia de seu esoanto. Saindo o sacristão, dis�lhe a Santa
o que havia acontecido e ambos o comentaram, ficando ela mui­
to bem paga de sua ação n.

27
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filhos, mas é certo que se ela tivesse assistido à partida
dos nossos primeiros missionários lhes teria beijado os
pés!
Entretanto, as filhas de Teresa não serão privadas
da vida apostólica. Em seu Caminho de perfeição ela
lhes explica como toda sua vida deve ser ordenada ao
bem da Igrej a e à salvação das almas. Ela une o ideal
contemplativo, que procura a intipndade divina, com o
desejo ardente de salvar as almas que se perdem.
" Todo meu desejo era - e ainda. é - que, uma vez
que o Senhor tem tantos inimigos e tão poucos ami­
gos, estes ao menos lhe fossem devotados. Eu me
determinei, então, a fazer o pouco que deoendia de
mim, isto é, seguir os conselhos evangélicos com
toda a perfeição possível e levar ao mesmo p;ênero
de vida as poucas religiosas deste mosteiro. Entre­
gando-nos à oração pelos defensores da Igreja, pelos
pregadores e sábios que a sustentam, aiudaremos,
na medida de nossas forças, o Senhor de nossa al­
ma, tão perseguido por aqueles mesmos que ele
cumulou de tantos benefícios! Estes traidores que­
rerão, parece, crucificá-lo de novo. não lhe deixando
um só �ugar onde reclinar sua cabeça". 37
Certamente, se Teresa quer salvar as almas, é por
Deus e para fazer amar seu Jesus! Interessar-se tanto
pelos padres e letrados é visar aos interesses de Jesus
que eles defendem neste mundo. Trabalhar por eles, sa­
crificar-se por eles, não é sacrificar-se por seu Deus? Te­
resa indica também este fim apostólico à vida de suas
filhas: " ô minhas irmãs, em Jesus Cristo, aj udai-me a
dirigir esta súplica ao Senhor; para este fim vos reuniu
ele aqui. Esta é a vossa vocação; estes são os vossos ne­
gócios; tal deve ser o objeto de nossos desejos, o mo­
tivo de nossas lágrimas, o fim de nossas orações". 38
Especificando, então, os detalhes de sua vida religiosa,
acrescenta: "Quando nossas orações, desejos, disciplinas

37 Caminho de perfeição, cap. 1 , n. 2.


38 Id., ibid, cap. 1, n. 5.

28
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e jejuns não tenderem mais aó fim do qual acabo de
falar, sabei que não realizais e não cumoris o fim para
o qual nosso Senhor vos reuniu aqui". 39

Caráter prático da doutrina teresiana

S. Teresa é uma mulher muito prática. Emhora


nutrindo um ideal sublime, que tr�sporta seu espírito
e seu coracão às mais altas esferas. ela tem os pés
, apoiados solidamente sobre a terra. Teresa é realista:
não se contenta com belos pensamentos. Sabe que se
poderia muito bem acariciar belos sonhos de apostol a­
do e, encerrando-se em uma rigorosa clausura, conten­
tar-se com bons desejos e sentimentos, e depois aí ador­
mecer numa bem-aventurada auietação. Inimiga como
era de toda ilusão, não deixou de alertar contra uma ca­
ridade tão pouco "real". Teresa crê que a verdadeira ca­
ridade para com as almas aue vivem longe de nós, de­
ve-se provar pela generosidade para com aquelas que
vivem perto de nós. Eis-nos prontamente no terreno prá­
tico.
"Não façamos caso de certos pensamentos elevados
que nos chegam em multidão à hora da oração", diz
ela, " quando imaginamos o que fanamos ou pode­
riamos empreender pelo próximo e pela salvação
de uma só alma; porque, se em seguida as obras a
isto não correspondem, não há motivo para crer
que delas seriamos capazes". 40
Com uma ponta de ironia, fala-nos de certas almas
"encapotadas" em sua oração e que temem movimen­
tar-se, com receio de perder uma gota de devoção.
"Não, minha irmã, não! O Senhor g_uer obras. Ele
quer que não tenhas receio de perder tua devoção a
39 Id., ibid., cap. 3, n. 1 0.
40 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas", cap. 3,
n. 9.

29
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fim de consolar uma doente, fazendo teu o seu so­
frimento, jejuando para que ela tenha o que comer,
e isto, não tanto por ela mas porque teu Deus o
quer. Nisto consiste a verdadeira união à vontade
de Deus". 41"
S. Teresa ' jamais esquece a prática da virtude: " Se
vós não procurardes adquirir as virtudes e não vos exer­
citardes nelas, permanecereis sempre como anãs", 42 diz
ela no último capítulo das "Sétimas Moradas", isto é,
nas moradas mais elevadas do castelo interior. Com efei­
to, é lá que se acham, entre as maravilhosas descrições
da vida mística mais sublimes, intercaladas as mais be­
las · páginas sobre a prática concreta da caridade frater­
na. "Assim sendo, minhas irmãs, para que este edifício
tenha fundamentos sólidos, cada uma dentre vós deve
se aplicar a ser a menor de todas e a escrava da casa.
Examinai, pois, como e por que meios podereis ser agra­
dáveis e prestar serviço aos outros" . 43 E não digais à
Santa: este é o ofício de Marta e nosso Senhor disse
que Maria tinha escolhido a melhor parte; neste caso
ela vos responderá: "Ela já tinha feito o ofício de Mar­
ta, quando tinha prestado a nosso Senhor o serviço de
lhe lavar os . pés e os enxugar com seus cabelos". 44 Te­
resa quer obras. Aliás, é fazendo o bem no ambiente
próximo em que elas vivem que suas filhas poderão
ajudar àqueles que estão separados delas: "Não queirais
fazer bem ( diretamente ) a todo mundo, mas fazei o bem
às pessoas em meio das quais viveis; para com elas,
aliás, é que tendes mais obrigação". 45
Trabalhando para tornar suas co-irmãs mais felizes,
ajudando-as na sua santificação, elas ajudarão, por este
meio, também as almas mais afastadas: "Pensai, pois,
qu� quanto mais vossas irmãs forem virtuosas, mais
também seus louvores serão agradáveis a Deus e mais
41 Id., ibid., cap. 3, n. 1 1 .
42 ld., ibid., "Sétimas Moradas n , cap. 4 , n . 9.
43 ld., ibid., cap. 4, n. 8.
44 Id., ibid., cap. 4, n. 13.
45 Id., ibid., cap. 4, n. 14.

30
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sua oração será proveitosa ao próximo ". 46 Verdadeira­
mente, o amor de Deus se manifesta pelo amor do pró­
ximo. O amor do próximo, porém, se prova por nossa
generosidade para com aqueles com quem vivemos. Te­
resa, como mulher de bom senso, edifica seu castelo in­
terior sobre o fundamento sólido de uma prática palpá­
vel das mais iminentes virtudes.

O ideal carmelitano

Com um olhar sintético, encerramos o caminho per­


corrido.
A perfeição proposta por Teresa é interior e apos­
tólica: plenitude de amor de Deus e de amor do próxi­
mo. Para a filha de S. Teresa, Deus é o único Bein-ama­
do; ela deseja sua amizade muito íntima, vivendo só
com ele. "As aspirações constantes daquelas que habi­
tam esta morada devem ser de se acharem sempre só a
sós com ele". 47 Mas é uma exigência do amor o exterio­
rizar-se. Para provar a Deus que ela é " toda sua" a
carmelita precisa se despojar de si mesma e fazer intei­
ramente a vontade de Deus : "o amor perfeito, realmen­
te, tem a força de nos fazer esquecer nossa própria sa­
tisfação para agradar ao Amado " 48 As numerosas aus­
teridades e privações da Regra são para a carmelita tan­
tas ocasiões de provar a Deus que ela o ama mais que
a si mesma, fazendo-lhe a vontade, ainda que à custa
da sua própria. Tal é o grande meio de entrar na inti­
midade de amor com Deus. Falando da observância car­
melitana, Teresa escreve: " Aquelas que procuram a so­
lidão para gozar de Cristo, seu esposo, acham aqui toda
a felicidade para viver constantemente em sua compa-

46 Id., ibid., cap. 4, n. 15.


47 Vida, cap . 36, n. 29.
48 Fundações, cap. 5, n. 10.

31
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n�a". 49 A perfeição visada por Teresa é, pois, muito
ativa, operante. Deste modo, totalmente devotada ao Se­
nhor, a carmelita não porá limites à sua generosidade.
Ela se entregará completamente a ele, por uma vida to­
da inteira de serviço dedicado e amoroso sacrifício.
O amor consiste mais em dar que em receber: "Não,
o amor de Deus não consiste em derramar lágrimas ...
nem tão pouco nestas doçuras e ternuras tão desejadas
ordinariamente para aí achar consolação. Consiste em
servir a Deus na justiça, na força de alma e na humil­
dade". 50 "O amor de Deus não consiste em experimen­
tar muitas consolaçõe,s, mas em estar firmemente resol­
vido a contentá-lo em todas as coisas ". 51
Ora, é a -caridade fraterna, o trabalho da salvação
das almas, uma das coisas que nós devemos, sobretudo,
procurar para contentar a Deus, pois que ele mesmo a
recomenda. A carmelita que deve viver unicamente para
Deus poderá, portanto, oferecer toda sua vida de gene­
rosos sacrifícios pelos interesses da santa Igre.ia; em tu­
do o que ela faz, será sempre animada de ardor apos­
tólico. Todavia, esta caridade não pode permanecer em
estado vago e geral; deve se concretizar em humildes
serviços cheios de amor para com suas irmãs. Repetindo,
a perfeição da caridade fraterna é muito trabalhosa e
muito ativa: é um contínuo dom de si mesma.
A carmelità modelada em S. Teresa é, pois, uma al­
ma que, por um amor ativo e generQso, vive totalmente
na intimidade divina e aoroveita do seu poder sobre o
coração de Deus para salvar as almas e as fazer _ amar
a Deus. S. Teresinha do Menino Jesus, digna filha da
grande Teresa, não sintetizou maravilhosamente este pen­
samento, dizendo: "Há somente uma coisa que fazer aqui
�a terra: amar a Jesus e salvar-lhe almas para que ele
seja amado". 52

49 Vida, cap. 36, n. 29.


50 Vida, cap. 1 1, n. 13.
51 Castelo interior ou moradas, "Quartas Moradas", cap.
1, n. 7.
52 História de uma. alma.

32
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A alegria teresiana

Agora, seria preciso narrar a epopéia teresiana; se­


guir esta mulher de grande coração em suas viagens
através da Espanha, vendo-a semear por toda parte o
amor generoso, magnânimo e ainda mais a alegria pro­
funda, a exultação espiritual. Medina dei Campo, Mala­
gon, Valladolid, Toledo, Pastrana, Salamanca ... 53 são
umas tantas páginas heróicas da história das filhas de
Teresa... E muitas outras seguirão narrando as funda­
ções da Santa e as de suas filhas, a difusão do Carmelo
Reformado na Europa e, em nossos dias, nas missões
mais longínquas. Delas, não podemos falar aqui, mesmo
brevemente. Mas, a este respeito,. não quereriamas en­
cerrar este capítulo, sem evocar esta alegria teresiana,
tão caracteristica, este entusiasmo que o magnífico ideal
de Teresa suscita nas almas que o têm abraçado de to­
do seu coração. Isto dissipará o preconceito corrente
que acredita ser uma vida de generosos sacrifícios, ne­
cessariamente consumida de tristeza. Vede ao contrá­
rio, com que fervor as jovens vêm se encerrar em S.
José de Avila.
" Elas deixaram tudo por amor daquele do qual se
sabem amadas; não querem mais ter vontade pró­
pria; não lhes vem ao pensamento a idéia que pos­
sam experimentar descontentamento numa clausura
tão estreita e, todas juntas, se oferecem em sacrifí­
cio a Deus. Mas também ele sabe recompensá-las
vantajosamente e, verdadeiramente, elas não têm
nenhum arrependimento do que fizeram por ele". 54
Teresa se sente feliz no meio delas:
" Eu experimento sempre uma muito viva consola­
ção quando estou no coro e considero estas almas
tão puras, todas ocupadas no louvor de Deus. Sua

53 Fundações.
54 Vida. cap. 39, nn. 10.11.

33
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virtude brilha de várias maneiras: em sua obediên­
cia, na alegria que experimentam por se acharem
em uma tão austera clausura e solidão tão profunda,
no júbilo que sentem, quando se apresenta qual­
quer ocasião de praticar a mortificação". ss
E a Mãe se regozija com suas filhas quando sente
que transbordam de alegria espiritual.

"Muitas vezes é para mim, minhas irmãs, uma ale­


gria particular ver, quando estamos reunidas, o jll­
bilo interior que possuís e os louvores que vós vos
estimulais a dar a nosso Senhor, pela felicidade que
tendes de habitar este mosteiro. Vê-se claramente
que vossa ação de graças jorra do mais íntimo da
vossa alma. Quisera eu, minhas irmãs, que assim
vos estimulásseis freqüentemente, pois quando uma
dentre vós começa, logo as outras a seguem. Em
que podereis melhor empregar vossa língua, quan­
do estais reunidas, se não for em celebrar os louvo­
res de Deus, pois que temos tantos motivos d� o
fazer? " 56

Maravilhoso concerto o destas almas generosas,


glorificando· o Senhor, em harmonia perfeita, no júbilo
exultante de seu coração!

Conclusão

O ideal de perfeição proposto por S. Teresa não é


unicamente reservado a suas filhas. Na verdade, ele é a
mesma perfeição cristã, encarada, todavia, de maneira
integral, isto é, total.mente. l=. o ideal moral cristão, con-

55 Fundações, cap. 1 8, n. 5.
56 Castelo interior cu muradas, "Sextas Moradas", cap. 6,
n. 12.

34
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cebido por um grande coração que ignora as meias me­
didas; é a plenitude da caridade que leva ao sacrifício
inteiro de si mesmo, à doação total, às grandes obras,
sempre mais perfeitas, abraçadas para dar prazer ao
Amado. Não somos nós todos chamados a esta perfei­
ção? A doutrina teresiana se dirige, pois, a todas as
almas, ainda que mais diretamente às generosas. Eis
por que estas saboreiam geralmente as obras da Santa,
cuja doutrina não é exclusivamente reservada às suas
monjas; pelo contrário, é um ensinamento que vai lan­
çando sua semente de magnanimidade em todos aqueles
que se dispõem a recebê-la. Mesmo a santa Igreja pede,
na oração da festa de S. Teresa, em nome de todos:
"Para que sejamos nutridos com o alimento de sua ce­
leste doutrina". sr A plenitude do amor de Deus e do
próximo é o fim para o qual tende a vida cristã. Teresa
conseguiu apresentar este duplo amor com um encanto
particular. O amor de Deus é para ela uma intimidade
amorosa, a intimidade do coração que pertence total­
mente ao Bem-amado, porque se entregou todo a ele;
uma intimidade que só tem em vista dar-lhe prazer a
todo custo, e que se abisma numa conformidade total
de vontade com a sua. Teresa nos assegura que " isto
está em nosso poder, contanto que o queiramos". 58
Todas as almas cheias de boa vontade podem, pois,
atingir uma íntima união com Deus, mas na medida da
perfeição de sua generosidade. Generosidade divinamente
fecunda, toda orientada ao bem da santa Igreja e das
almas! O verdadeiro amor de Deus não se concebe sem
o das almas; ele reauer uma grande generosidade. Em
suma, o amor das almas é o mesmo amor de Deus que
se difunde nos filhos de Deus. Querendo Teresa que nos
demos todo a Deus, quer também que nossa vida seja
toda ordenada ao bem das almas; se amar a Deus é ser­
vi-lo, amar as almas será servi-las, esquecendo-se e sa­
crificando-se por elas. Cativa da intimidade divina, Te-
57 Oração da festa.
58 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas.", cap. 3,
n. 7.

35
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resa o é também dõ apostolado: sua alma se entrega.­
totalmente a este duplo atrativo.
Em meio a um mundo moderno insaciável de pra­
zeres sensuais, arrastado pelos gozos fugitivos, procu­
rando em sua mediocridade criar um ideal que não exi­
ja muito esforço - um compromisso entre o espírito
do século e o Espírito de Deus - felizmente encontram­
-se por toda parte almas que têm horror a esta superfi­
cialidade. Elas não querem viver assim repartidas e têm
razão. Uma tal existência não vale a pena ser vivida.
A doutrina teresiana se dirige diretamente a essas al­
mas. Desejosas de uma · vida perfeita, elas olham, com
tristeza a dança frívola dos prazeres fugazes da terra,
os quais inebriam e enlaçam as almas mesquinhas. Elas
não se podem desalterar em semelhantes fontes, pois
que são feitas para maiores coisas. Experimentam no
mais profundo de si mesmas, a nostalgia do divino, uma
aspiração obscura, porém, profunda à união com Deus.
Estas almas compreenderão a linguagem de Teresa
de Jesus; se a traduzem em atos, dando-se totalmente ao
Senhor, como o quer a grande Mestra da vida espiritual,
sentirão logo nascer no íntimo de seus corações, gene­
rosamente sacrificados, a doce alegria teresiana.

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O -IDEAL CONTEMPLATIVO

Ardente e jubilosa, Teresa galgou o rude caminho


da abnegação total e da doação completa de si mesma
a seu Salvador Bem-amado. Cativa do amor divino, quer
se sacrificar sem reserva por seu Deus. O manifesto
amor, com efeito, consiste mais em dar que em receber.
O amor, porém, tem suas tendências naturais experimen­
tadas por toda alma que ama : ele aspira à união com o
objeto amado e procura sua presença. A Santa também
experimenta um crescente desejo de amorosa intimidade
com Deus. E como esta - aqui na terra - só se encon­
tra plenamente saboreada na contemplação, Teresa -
que não faz nada pela metade - não limitará seus ar­
dentes desejos: seu ideal será a contemplação. Aprouve
a Deus cumular suas aspirações; Teresa torna-se uma
das maiores contemplativas que ilustraram a santa Igreja.
Ela foi, entretanto, ainda mais. Foi uma grande
mestra da vida contemplativa. Se em seus livros nos
convida com insistência ao amor generoso, jamais per­
de de vista a contemplação. Quer trate diretamente dela
ou estude o caminho que a ela conduz, quer descreva
a vida de suas filhas . ( abundantemente enriquecidas de
dons divinos ) ou a fundação de seus mosteiros ( verda­
deiros jardins místjcos ) : em tudo e sempre, ela exalta
as misericói::dias do Senhor que se digna comunicar in­
timamente a pobres mortais.
Para edificar uma síntese completa dos ensinamen­
tos da Santa convém, pois, pesquisar qual foi, ne.la, o
lugar dado ao ideal contemplativo no conjunto da vida
espiritual.

37 ·
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Esta questão da conexão entre a contemplação e a
perfeição é, aliás, uma das grandes preocupações da
teologia espiritual moderna. s9

Portanto, tudo convida a estudar com atenção o


pensamento da Santa sobre este problema delicado.

Certo de que ele suscitaria o interesse, nada pou­


pamos para o elucidar. Após ter respigado nos escritos
da Santa tudo .o que podia esclarecê-lo um pouco, deles
meditando longamente os aspectos mais delicados, cre­
mos poder apresentar a solução que se desprende deste

59 Pode-se afirmar que não há questão mais controvertida


entre os teólogos modernos do que esta da "normalidade" da
contemplação infusa. Em que consiste ela, exatamente? Pergun­
ta-se : existe uma lei que 1me a aparição regular da contem­
plação mística ao progresso espiritual? Pode a alma chegar à
santidade sem gozar ao mesmo tempo da oração mística? As
diversas respostas dadas �em ser reduzidas (consideradas es­
quematicamente) a duas soluções ou modelos fundamentais :
uma afirmativa e outra negativa. A resposta afirmativa; cujos
partidários dependem sobretudo da escola tomista moderna, se
apóia sobre a consideração do desenvolvimento normal da vida
sobrenatural na alma. A contemplação mística consiste para essa
escola em uma atuação dos dons do Espírito Santo. Uma vez
que esses dons são parte integrante de nosso "organismo so­
brenatural", eles crescem em nós com a caridade. Como eles,
certamente, não nos são dados para ficar inativos, não é admis­
sível que a alma perfeita na caridade não goze de freqüentes
moções desses dons. Segue-se que toda alma santa é uma mís­
tica e que o ascetismo se acha essencialmente ordenado à mís­
tica; daí a necessidade de reconhecer a unidade da vida es­
piritual.
Os protagonistas da opinião negativa insistem, ao contrário,
sobre esse fato demonstrado, dizem eles, pela experiência : todas
as almas não são contemplativas. A contemplação mística seria,
pois, uma graça extraordinária, à qual todo o mundo não é cha­
mado. Para o explicar não basta, segundo eles, recorrer à ope­
ração dos dons do Espírito Santo, comum a todas as almas
espirituais; é preciso uma operação muito particular, de caráter
carismático. Uma alma pode, conseqüentemente, santificar-se,
sem tornar-se mística. E é preciso reconhecer a existência de
duas vias que levam à santidade : uma ascética e a outra mística.
Muitas vezes os partidários de uma e da outra opinião têm
procurado apoio nos escritos da grande mestra espiritual do
Carmelo reformado. Como, porém. parece inadmissível que a
Santa tenha professado ao mesmo tempo duas opiniões con­
traditórias, a pergunta se apresenta : quem tem razão?

38
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estudo, apoiando todos os seus elementos nas mesmas
palavras de S. Teresa.
Antes de nós, outros tentaram este trabalho. Em sua
História da espi.ritualidade, M. Pourrat tratou o argumen­
to brevemente, há alguns anos, mas concluiu " que o
pensamento da Santa permanece flutuante sem que pos­
samos deduzir dele uma solução certa". 60 Nós não par­
tilhamos de nenhum modo do pessimismo do autor. O
pensamento de S. Teresa, sempre rico e variado, nos
parece poder ser coligido em uma síntese harmoniosa,
lógica· e clara. Em todo o caso, vale a pena tentar a
empresa. A fim de proceder a este estudo com a clareza
necessária determinaremos, antes de tudo, o que a San­
ta entende por contemplação, para examinar, em segui­
da, a resposta que os seus escritos nos dão quanto ao
problema da conexão. entre a contemplação mística e a
perfeição cristã.

Diversas acepções do vocábulo "contemplação"

Nas discussões científicas nascem muitos equívocos


do fato que o vocabulário adotado permanece impreciso.
Antes de empreender nosso exame parece-nos, pois, útil
determinar o sentido que S. Teresa dá ao termo " con­
templação". Isto, para evitar que sejam admitidas di­
vergências doutrinais onde não existem, ainda mesmo
quando as diferentes concepções, utilizando um mesmo
vocabulário possam, à primeira vista, sugerir tal idéia.
Quando S. Teresa fala de " contemplação" ela tem
diretamente ·em· vista estes graus ou estados de oração
descritos em seus livros sob o nome de oração de reco­
lhimento, -de Quietação, de união etc. Os diferentes graus
de oração mística _que ela distingue formam, a seu pa­
recer, uma espécie de cadeia cujos anéis marcam um
progresso contínuo e constituem as etapas sucessivas
60 Pe. Pourrat, La Spi.ritualité chrétienne, Paris, 1925, tomo
II, "Les Temps Modernes", Ch. 6, p. 214.

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da via percorrida pela alma propriamente contemplati­
va. O caráter comum de todas estas orações é, de certa
maneira, fazer perceber a ação de Deus em nós, porém,
com mais ou menos clareza. Bem mais consciente disto
está a alma, por exemplo, na oração de união, do que
na de recolhimento infuso que é a primeira das orações
místicas descritas pela Santa. 6 1 Em toda contemplação,
entretanto, a alma se sente passiva; sente que outro
opera nela. Esta experiência da passividade da alma é,
para S. Teresa, a característica da contemplação. Para
limitar o campo da mística a Santa se serve, portanto,
de um critério psiçológico, experimental: a contempla­
ção é um estado de oração onde a alma experimenta,
em si, a ação de Deus.
Os aut�res não empregam q mesmo critério para
caracterizar a contemplação mística. A escola tomista
moderna, por exemplo, considera a contemplação místi­
ca sob um ponto de vista antes ontológico do que psi­
cológico. Para ela, a contemplação infusa não requer
esta experiência de passividade assinalada por S. Teresa.
Basta-lhe que haja elevação de nossa alma para Deus, na
qual os dons contemplativos do Espírito Santo prestem
seu concurso, mesmo se estas moções sobrenaturais per­
manecem escondidas e são antes transitórias. Esta é uma
concepção mais larga da contemplação infusa, certamente,
que a expressa por S. Teresa. Algumas irradiações dos
dons contemplativos, que dirigem as almas santas, são
ainda designadas sob o nome de contemplação infusa. 62
Concluamos: a terminologia de S. Teresa ( e pode­
mos dizer o mesmo da de sua escola ) é um pouco dife­
rente da que nos apresenta a escola tomista moderna.
Ela foi escolhida de um ponto de vista diferente; psico­
lógico, antes que ontológico. Aquele que quer estudar
comparativamente as diversas opiniões espirituais dos
61 Castelo interior ou moradas, "Quartas Moradas", cap. 3,
n. 3. "Ela sente distintamente no íntimo da alma um recolhi­
mento suave".
C.2 Pe. Ganigou Làgrange, Perfection et contemplation, Saint­
Maximin, 1923, p. 407ss.

40
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teólogos místicos não podem negligenciar estas diver­
gências, sob pena de confundir linguagens diferentes e
embaraçar as questões em vez de as elucidar.
Tendo, portanto, determinado o que S. Teresa en­
tende por ª contemplação" , examinaremos o lugar que
ela lhe dá em nossa vida espiritual.

Contemplação e perfeição

Um livro da Santa parece bem a propósito para sa­


tisfazer a nossa curiosidade: o Caminho de perfeição.
Com efeito, ele é a resposta da Mãe à pergunta de suas
filhas : " Qual é a via que conduz à contemplação ?" Te­
resa entende, de outra parte, cercar esta resposta de
uma exposição mais ou menos completa de toda a vida
carmelitana; propõe, ao mesmo tempo, às suas filhas, a
alta perfeição moral, precedentemente exposta. Importa
notá-lo, porque daí se segue que a contemplação será
considerada em correlação à perfeição mais elevada.
Teresa é uma grande ·educadora. Une a arte de man­
ter o ideal elevado à de aplainar a via que a ele conduz
e de fazer evitar os obstáculos que impedem o cami­
nho. O ideal contemplativo, a esperança de gozar ainda
nesta vida da doce intimidade do Senhor será, sem ne­
nhuma dúvida, um excelente estimulante à generosidade
de suas filhas, empenhadas na via do amor. Entretanto,
muitas razões determinam a prudente e experimentada
mestra a não propor de maneira muito absoluta um ideal
tão elevado: trata-se, com efeito, de não expor seu dis­
cípulo ao desengano que abate a alma, ou a ilusões que
o afastem do bom caminho.
S. Teresa adota, pois, uma atitude, antes, delicada,
quando trata da contemplação.
Dese.iando antes de tudo, edificar sobre um funda­
mento sólido, ela não quei;- abordar esta questão da con­
templação antes de ter devidamente recordado a suas

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filhas que elas são votadas a uma vida de abnegação
total e humildade profunda. Porque Teresa jamais terá
confiança em uma via de alta oração que não esteja fun­
dada sobre uma virtude sólida. Mas, após ter satisfeito
a esta exigência de seli bom senso sobrenatural, no mo­
mento de atacar a questão candente do caminho que leva
à contemplação, eis que a Santa sente ainda a necessi­
dade de tratar primeiramente de "uma coisa de grandís­
sima importância nesta ocorrência ... " "um ponto que diz
respeito à humildade e é muito necessário a todos aque­
les que se dão à oração". 63 Qual é, pois, este famoso
ponto?
Detalhadamente, ao longo do Caminho de perfeição,
S. Teresa falará da contemplação: ao termo deste cami­
nho ela mostrará a fonte de água viva, que simboliza as
graças místicas. A atenção de seus leitores será, pois,
naturalmente atraída para este fim que a Mãe propõe e
os desejos de seus corações se orientarão neste sentido.
As almas aspirarão a estas graças fascinantes e serão
sedentas desta "água viva " que Teresa não hesita em
chamar um "fim " , 64 para o qual tende a vida de suas
filhas. Ora, enquanto, de uma parte, ela as põe em
face destas riquezas divinas, de outra, experimenta a ne­
cessidade de lhes inculcar em dois longos capítulos, "que
o Senhor não conduz todas as almas pela mesma via e
que, podemos atingir a santidade, sem a contemplação" .65
Suas palavras são muito claras:

"Ainda que todas as irmãs deste mosteiro sejam da­


das à oração, não se segue que todas devam ser con­
templativas. :E impossível. Caso não compreendesse
esta verdade, seria um grande desalento para aquela
q ue não o fosse. A contemplação é um puro dom
de Deus e não é necessário para a salvação. Deus
não lho pedirá como condição da recompensa futu­
ra. Ninguém pense que se lho exigirá. Sem este dom

63 Caminho de perfeição, cap. 17, n. 1.


64 ld., ibid., cap. 19, n. 14.
65 Id., ibid., cap. 17 e 18.

42
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poderá uma religiosa ser muito perfeita se realiza
o que tenho dito. Poderá mesmo ter mais mérito,
pois que trabalha mais à sua custa" . 66
Em resumo, a Santa não parece crer que a condição
desta alma seja grandemente inferior às das outras: " Não
temais, pois que podeis chegar à perfeição, como os maio­
res contemplativos". 67 Não se trata, portanto, de uma
perfeição qualquer; S. Teresa fala da santidade. "Santa
Marta não deixava de ser uma santa, embora não se
diga que ela fosse contemplativa ". 68 Parece bem claro
que para nossa Santa a contemplação não está propria­
mente ligada à santidade.
Aliás, esta não é uma afirmação isolada. Não! � um
pensamento amadurecido em Teresa e que reaparece em
seus outros escritos, principalmente em sua mística obra­
-prima, o Castelo interior, onde o expõe com a maior
clareza possível. Por outra parte, afirmações ainda nume­
rosas a completam e desenvolvem.
Nas "Quintas Moradas " do "castelo interior " ( as
"Quintas Moradas " são as primeiras que pertencem à
via unitiva, ou via dos perfeitos ), tratando da alma que
aspira à união, S. Teresa nota o seguinte: "Será bom
mostrar que, aqueles a quem o Senhor não enriqueceu
de graças tão sobrenaturais ( isto é, da união mística ),
não devem perder toda a esperança de atingir estas 'Mo­
radas'. Porque a verdadeira união sempre se pode obter
com a ajuda de nosso Senhor, quando nos esforçamos
por adquiri-la, submetendo em tudo nossa vontade à
vontade de Deus ". 69 Já vimos que para Teresa a ver­
dadeira perfeição espiritual consiste nesta união total da
vontade humana com a vontade divina. Insiste a Santa:
"Nesta espécie de união, a suspensão das faculdades...
não é necessária. Deus é todo-poderoso; tem muitos
meios de enriquecer as almas e as introduzir nestas

66 Id., ibid., cap . 17, n. 2.


67 Id., ibid., cap . 17, n. 4.
68 Id., ibid., cap . 17, n. 5.
69 Castelo interior ou moradas, ªQuintas Moradas", cap . 3,
n. 3.

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'Moradas', sem as fazer passar pelo caminho de atalho
do qual tenho tratado". 70
Evidentemente, várias vias conduzem à união; uma
dentre elas é a "vereda", isto é, a via da união mística.
Veremos mais adiante porque ela merece o nome de
" vereda" ou "atalho". E S. Teresa conclui :_
"Que nós possamos chegar à perfeição, não pode­
mos de nenhum modo duvidar, mas é preciso que
nossa união com a vontade de Deus seja real. Essa
é a união que eu desejei toda a minha vida e que
não cesso de pedir a nosso Senhor; é, além disso, a
mais fácil . de reconhecer e a mais segura... tanto
mais que está em nossas mãos, se nós o quiser­
mos" . 71
A via da união mística não é, pois, parece claro, a
única via! Repetidas vezes, Teresa fala da alma que não
vai por " este caminho" ou que segue por " uma outra
via". 72 Ela sustenta " que Deus não está obrigado a nos
dar estas graças, como o está de nos conceder a glória
em recompensa da observância dos seus mandamen­
tos" .73 " Estas graças", diz ela, " são um dom de Deus,
que as distribui quando quer e como quer, sem ter de
considerar o · tempo e os serviços... Com efeito: a uma
alma, Deus não concede a contemplação nem mesmo
após vinte anos, enquanto a outra ele a concede ao
fim de um ano apenas; sua Majestade sabe o porquê". 74
Em outro lugar: " Como se trata de favores que perten­
cem a Deus, ele os concede quando quer, como quer e
a quem quer ... sem fazer agravo a ninguém". 1s
Portanto, se Deus não no-los concede, não é preciso
se atormentar, mas abandonar-se simplesmente ao Se-

70 Jd., ibid., "Quintas Moradas", cap. 3, n. 4.


71 Id., ibid., "Quintas Moradas", cap. 3, nn. 5 e 7.
72 Caminho de perfeição, cap. 18, n. 1 .
73 Castelo interior ou mortulas, "Quartas Moradas", cap.
2, n. 9.
74 Vida, ca1>. 34, n. 1 1 .
75 Castelo interior ou moradas, " Quartas Moradas", cap. l ,
n . 2.

44
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nbor. " Somos suas, minhas irmãs, que ele faça de nós
o que qu�r e nos conduza por oi;ide aprouver". 76
E ainda: " O que há de melhor para nós, minhas
irmãs, é pôr-nos sob o olhar de Deus, para consi­
derar de uma parte sua misericórdia e magnificênda
e, de outra, nossa própria baixeza. Uma vez que ele
sabe melhor o que nos convém, dê-nos o que lhe
aprouver: água ou secura... seguiremos então nosso
caminho na paz e o demónio não terá tantas oca­
siQeS de nos enredar em seus enganos". 77
Te�sa recomenda, portanto, a plena submissão ao
bel-prazet · de Deus. Bem mais; ela nos fala de certas al­
mas que fazem ainda mais que se abandonar: "Eu co­
nheço pessoas que seguem a via do amor como se deve
nela andar, com a única ambição de servir a seu Deus
crucificado e que, não só não lhe pedem consolações,
nem as desejam, mas, antes, lhe suplicam que não lhas
conceda nesta vida". 78 O contexto mostra claramente que
se trata das consolações experimentadas na oração in­
fusa.
:e, pois, bem certo que a perfeição não está ligada
às graças místicas, às orações infusas. Podemos atingi­
-la por outra via: " Que se possa aí chegar", diz S.
Teresa, "não é permitido duvidar". 79

O "atalho"

Teresa sabe, todavia, que se é possível atingir a san­


tidade desta maneira, não é entretanto, coisa fácil.
"Eu não digo que com a ajuda de Deus, seguindo
os princípios e os meios indicados por aqueles que
76 Id., ibid., "Quartas Mo.radas", cap. 2, n. 10.
77 ld., ibid., "Sextas Moradas", cap. 6, n. 9.
78 ld., ibid., "Quartas Moradas", cap. 2, n. 9.
79 Id., ibid., '"Quintas Moradas", cap. 3, n. S.

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têm escrito sobre a oração, não se possa chegar, às
custas de grandes trabalhos, à perfeição e a um pro­
fundo desprendimento, ao fim de longos anos; por­
tanto, não será depressa. Enquanto em um mo­
mento ó Senhor opera sua obra em nós, sem que
nos custe muito. Ele arranca a alma, definitivamen­
te, das coisas daqui da terra e lhe dá um império
sobre todos os bens deste mundo". 80
Teresa fala por experiência. Um arrebatamento a
curou para sempre das imperfeições que anos de esfor­
ços não tinham podido desarraigar. Recordando-se, ao
mesmo tempo, o ideal elevado de perfeição moral, a
doação total que ela deseja de todo seu coração e nossa
humana fraqueza, ela confessa humildemente:
"Ao meu parecer, é impossível, vista a fraqueza de
nossa natureza, sentir-se levado às grandes coisas,
quando não se está convicto de que se goza do favor
de Deus. Somos tão miseráveis, tão inclinados para
as coisas da terra, que é muito difícil desprezar real­
mente todos os bens daqui da terra e viver em um
despreendimento absoluto, se não se reconhece em
si algum penhor dos bens do alto. Com efeito, por
estes dons o Senhor nos dá a força que tínhamos
perdido por nossos pecados. Mas se ainda não se
tem sinais do amor divino e uma fé muito viva, será
bem difícil aspirar a tomar-se um objeto de des­
prezo e de horror para todas as criaturas, como tam­
bém, aplicar-se a todas estas outras virtudes subli­
mes que os perfeitos possuem. Nossa natureza é tão
inerte, que não nos inclinamos senão ao que vemos
presente". 81
O texto citado revela daramente o ideal sublime de
S. Teresa tendendo à virtude mais heróica; mostra, ao
mesmo tempo, quanto é poderosa a ajuda das graças
místicas para realizar em nós a santidade. " Estes favo-
80 Vida, cap. 21. n. 8.
81 Id., ibid., cap. 10, n. 6.

46
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res... são acompanhados de tanto amor e força que a
alma c.aminha com menos fadiga e avança mais na prá­
tica das boas obras e das virtudes". 82
Estas graças são, portanto, verdadeiramente um
" atalho"; de tal modo facilitam o trabalho da vida es­
piritual que, sem elas, é duro morrer a si mesmo; entre­
tanto, iste é necessário.
"Prestai atenção, minhas filhas, que este verme (nos­
sa natureza) deve absolutamente morrer e que de­
vemos fazê-lo morrer às nossas custas. Na outra
união (mística) a alma experimenta tanta alegria
na vida nova à qual passou, que nela se acha pode­
rosamente apoiada: aqui, porém, é preciso que nós
lhe demos a morte. Eu confesso que isto só é pos­
sível a custo de grandes lutas". 83
Teresa continua sustentando: "Que se possa a isto
chegar é indubitável, contanto que a união à vontade de
Deus seja real". 84 Perfeitamente. Mas se custa de tal
modo, sem a ajuda da contemplação, enquanto as graças
místicas aí conduzem por atalho, são pois favores bem
desejáveis! ... Importa também saber se podemos espe­
rar obtê-los e como promover a realização de tal es­
perança.
A esta dupla questão, Teresa dá uma resposta que,
embora nos mantendo na maior humildade, não deixa
de ser muito animadora.

A contemplação ordinária nas almas generosas

Após ter certificado com constância e clareza .que


as graças místicas não estão propriamente ligadas à
82 Castelo interior ou moradas, "Terceiras Moradas", cap.
2, n. 1 1.
83 Id., ibid., uOuintas Moradas", cap. 3, n. 5.
84 ld., ibid.

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santidade, Teresa repetirá com a mesma firmeza que as
orações infusas são habitualmente concedidas às almas
que tendem a uma santidade integral e perfeita, fazendo
tudo o que podem para a ela se dispor.
Notemos primeiramente um fato: as primeiras filhas
de Teresa, aquelas das quais ela sempre tem recordado
a grande generosidade, atingiram em grande número a
oração mística. A Santa deixou disto um duplo testemu­
nho. O primeiro se lê no livro das Fundações, escrito em
1573. Oito mosteiros são fundados até esta época. Teresa
não pode calar as maravilhas que neles opera o Senhor:

"Quando estes pombaizinhos da Virgem começaram


a se povoar, comprazeu-se sua Majestade em mos­
trar os milagres de sua graça . Lá, simples mulheres,
fracas por natureza, se mostravam heróicas por seus
desejos e por seu desprendimento de todas as coisas
criadas. Elas possuíam esta liberdade interior, tão
própria para unir a alma com seu Criador, quando
se junta à pureza de consciência... Estas almas não
falam e não se ocupam senão dele. O divino esposo
parece também não poder afastar-se delas. Eis o
que tenho visto até este dia, podendo afirmá-lo com
toda ver-dade ... As graças, com as quais o Senhor
inunda estas casas, são tão grandes, que apenas ai
se acha uma ou duas religiosas que Deus conduz
pela meditação ; todas as outras são elevadas à con­
templação". 85

Quatro anos mais tarde, em 1577, Teresa escreve seu


Castelo interior e, de novo, falando nas " Quintas Mora­
das " da oração de união fruitiva, constata: "São bem
poucas as que não entram nesta morada". 86
Onde acha Teresa a razão profunda deste fato? Uni­
camente na misericórdia divina, nesta propensão que
tem o Senhor de se comunicar por toda parte em que

85 Fundações, cap. 4, nn . . 5-8.


86 Castelo interior ou moradas, ªQuintas Moradas", cap .
l, n. 2.

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encontra lugar suficientemente preparado. Sim, a Santa
parece ter penetrado os segredos da generosidade divipa:
"Quem mais do que vós, Senhor, tem prazer em dar,
quando encontrais alguém pronto a receber vossas lar­
guezas?" 1r1
Teresa regozija-se ao pensamento da onipotência de
um Deus tão bom: "O Senhor pode fazer o que quer e
quer fazer muito por nós". 88 Recordando-se dos favores
concedidos a certos santos, ela acrescenta: "Ah! minhas
filhas, Deus está disposto a nos dar estas graças, hoje
como outrora; de certa maneira, ele tem mesmo maior
necessidade de almas que queiram recebê-las... mas te­
mos demasiado amor a nós · mesmos". 89 Em outro lu­
gar: "Quando Deus encontra almas dispostas, deseja
enriquecê-las". 90 Verdadeiramente, parece que Deus só
espera nossas disposições para nos distribuir seus fa­
vores. Já conhecemos o adágio, muitas vezes repetido
por Teresa: " São graças, estas, que Deus dá a quem ele
quer, quando quer e como o quer"; a Santa não exclui,
portanto, a influência de nossas disposições de alma: " O
Senhor dá seus favores a quem ele quer e a quem me­
lhor para isto se dispõe". 91 Falando da união fruitiva,
afirma ainda: "Sem dúvida, favores são estes, que o
Senhor concede a quem ele quer, mas se o amássemos
como ele nos ama, a todas nós os concederia. Ele só
tem um desejo; achar almas a quem possa dar". 92 As
disposições da alma são, pois, de grande importância
na obtenção dos favores divinos. Indubitavelmente, nós
também podemos. fazer q�quer coisa; se não é tudo,
será, não obstante, muito: "Ainda que não possamos por
nós obter esta obra que Deus realiza em nós, podemos,
entretanto, fazer muito, pondo-nos nas disposições re-

87 Fundações, cap. 2, n. 7.
88 Castelo interior ou moradas, ª Sextas Moradas•, cap. 11,
n. 1.
89 Id., lbid., "Quintas Moradas", cap. 4, n . 6.
90 Pensamentos, cap. 6, n. l.
91 Vida, cap. 39, n. 10.
92 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas•, cap. 4,
n. 12.

49
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queridas para que Sua Majestade no-la conceda". 93 Por­
que apraz a Deus recompensar-nos às vezes desde esta
terra: " Pelo amor de Deus, minhas filhas, despertai-vos
de vosso torpor e pensai que Deus não espera sempre a
outra vida para nos recompensar o amor: Ele o faz des­
de esta terra ... ". 94
Teresa, entretanto, está convencida de que não pode­
mos propriamente merecer estes favores divinos: " Po­
nhamos bem em mente que estes dons nos são dados
por Deus, sem nenhum mérito de nossa parte" . 9s "As
pessoas espirituais que, depois de terem passado anos
no exercício da oração, se imaginam ter adquirido algum
direito aos favores divinos, jamais chegarão ao cume · da
perfeição, segundo minha convicção". 96 Estes favores,
pois, permanecem sempre um dom gratuito, raramente
recusado, entretanto, à alma verdadeiramente generosa:
" Quando Deus dá a urna alma esta delicadeza de cons­
ciência que lhe faz evitar a mais leve imperfeição, pre­
para nela como um leito de rosas e flores, vindo cedo
ou tarde aí repousar com delícias". '17 Certas expressões
são mesmo muito absolutas: " 1=. absolutamente certo,
com efeito, que se expulsamos de nós tudo o que é
criado e nos desprendemos de tudo pelo amor de Deus,
este divino Mestre deve então nos encher dele mesmo.
Com efeito, Jesus Cristo, rezando pelos seus apóstolos,
pedia " que eles fossem um com ele e com .o Pai, como
ele está no Pai e o Pai nele". Estamos nós também aí
compreendidos, porque Sua Majestade acrescentou: " Eu
não rogo somente por eles, mas também por todos aque­
les que devem crer em mim". E ainda_:
"Eu estou neles". " Oh! valha-me Deus! como estas
palavras são verdadeiras e como as compreende
bem a alma que, elevada a esta oração de união
mística, as vê realizadas em si! Que inteligência

93 Id., ibid., ,;Quintas Moradas ", cap. 2, n. 1.


94 Pensamentos, cap. 4, n. 7.
95 Vida, cap. 10, n. 4.
96 Vida, cap. 39, n. 15.
97 Pensamentos, cap. 2, n. S.

50
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.clara teríamos todas disto, se não puséssemos obs­
táculos por nossa culpai' Porque as palavras de. Je­
sus Cristo, nosso rei e senhor, não podem deixar de
se realizar". 98
A Santa parece, pois, convencida de que nossa pre­
paração deve de qualquer modo ser seguida de favores
divinos. Diante de ideal tão sublime, ela se comove e
palavras abrasadas brotam de seu coração:
"O minhas irmãs ! Tudo o que deixamos é nada.
Nada, o que fazemos ou poderíamos fazer por um
Deus que se dá tão intimamente a vermes da terra,
como nós. E se t�mos a esperança de gozar mesmo
desde esta vida de tal favor, que fazemos nós ?
Em que nos detemos ? Que coisa poderá nos impe­
dir um só instante de procurar este Senhor, como
o fazia a esposa dos Cânticos, pelas ruas e pelas
praças públicas? Oh! que loucura deter-se em to­
dos os bens deste mundo, se eles não conduzem a
esse fim e não nos ajudam a atingi-lo ". 99
Feliz, pois, a carmelita chamada por Deus a dirigir
sua vida na procura de tal tesouro.

" Nós todas que trazemos este santo hábito do Car­


melo, somos chamadas à oração e à contemplação.
Com efeito, tal foi nossa primeira instituição. Des­
cendemos desta casta de santos religiosos do Monte
Carmelo que se mergulhavam numa solidão tão pro­
funda e votavam ao inundo um desprezo tão abso­
luto, só para ir à procura desse tesouro, auero dizer,
desta pérola preciosa da qual falamos " . 1co

Mas não acrediteis que este convite de Deus seja


unicamente reservado às carmelitas. Jesus convida to­
das as almas. S. Teresa o repetirá com insistência:

98 Castelo interior ou moradas, "Sétimas Moradas", cap.


2, nn. 7-8.
99 Id., ibid., "Sextas Moradas", cap. 4. n. 10.
100 Caminho de perfeição, cap. 19, n. 15.

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"Vede que o Senhor convida a todos e, sendo ele a
mesma verdade, não se pode duvidar de sua palavra.
Se o banquete não fosse para todos, ele não chama­
ria todos ou então mesmo que chamasse, não diria:
'Eu vos darei de beber'. Ele teria podido dizer: 'Vin­
de todos, porque, enfim, nada perdereis, e eu daref ·
de beber àqueles que eu quiser'. Mas, repito-o, ele
não põe restrição; sim, chama a todos. Tenho, pois
como certo, que todos aqueles que não se deixarem
ficar no caminho beberão desta água viva. Praza ao
Senhor que no-la promete, dar-nos a graça de bus­
cá-la como deve ser buscada! " 101
Durante toda sua vida, · Teresa sentiu, obscura, mas
profundamente, o apelo divino.
Jovem ainda, se detinha sempre a contemplar na
sombra acolhedora do solar paterno, uma pintura -
sinal luminoso sobre fundo austero - que representava
Jesus no poço de Jacó . 102 Dos lábios da menina, sedenta
já do dom de Deus, brotava a súplica da samaritana:
" Senhor, dá-me desta água" Quanto amou esta mulher,
símbolo da alma em busca desta água viva que Jesus
oferece a todo o mundo! Desde sua juventude, Teresa
quis dela ter- sempre a imagem a seu alcance; 103 mais
tarde fez decorar com ela o poço dos mosteiros de Avila
e de Medina. 104 Então vendo-a, a Mãe e suas filhas, para

101 Id., ibid., cap. 19, n. 15.


102 Vida, cap. 30, n. 19. O quadro é ainda conservado no
mosteiro da Encarnação de Avila, para onde foi levado após
a morte de D. Alon;o, pai da Santa, em 1543.
103 Vida, can. 30, n. 19.
104 Ir. Isabel de S. Domingos, no processo de Avila nota,
falando da devoção da Santa : "Neste convento de S. José...
junto a um ooço, uma ointura da Samaritana n . n
Madre Maria de S. Francisco, nas "informações de Medina
dei Campo, nota : "Fez a Santa uma ermida muito graciosa,
que chamavam da Samaritana, e pintou em uma tela o mis­
tério; dentro da mesma ermida fez um noço de âgua viva. mui­
to boa e dela bel)iam a Santa e suas filhàs; a Santa costumava
dizer a Cristo : 'Senhor, dai-me da âgua viva que destes a esta
santa Samaritana' n. Cf. Pe. Silvério, Obras de S. Tere.sa, tomo I,
p. 247.

52
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sempre presas ao ideal contemplativo, suspiram: "Se­
nhor, dá-me desta água.».
Como poderia Jesus recusar esta água viva às almas
generosas que a procuram "como devem" ?

Aparente contradição

Apesar da fascinação que em nós fazem nascer as


afirmações repetidas da Santa, fortificando nossa espe­
rança de podermos, também nós, atingir um dia a fonte
de água viva, certas dúvidas subsistem: como se conci­
liam com as asserções, claras e reiteradas, citadas mais
acima? A Santa não dizia que podemos atingir a santida­
de plena e perfeita sem a contemplação infusa? Não nos
encontramos aqui diante de uma real contradição? Se
o Senhor convida todas as almas a beber à fonte de água
viva; se promete esta água a todas aquelas que se
disponham convenientemente, pode-se falar ainda de
uma via que atinge a perfeição sem que a alma goze da
oração mística? Graças a Deus, a mesma S. · Teresa per.­
cebeu a aparente contradição de suas posições· e quis .en­
tão elucidar a questão. "Parece haver contradição entre
o que acabo de dizer neste último capítulo e o qué tinha
dito precedentemente. Com efeito, a fim de consolar
aquelas que não chegam à contemplação, afirmei que
há diferentes vias para ir a Deus, assim como há muitas
moradas no céu n . ios Todavia, ela não se retrata, mas,
pelo contrário, prossegue: "Eu o repito mais uma vez". 106
O problema subsiste ainda integralmente; os seus dados
são determinados com precisão e incumbe à Santa es­
tabelecer nele a coerência.
Teresa nos apresenta, em suma, uma dupla solução.
Observa antes de tudo que, multiplicando as vias para ir
105 r.aminho de perfeiçãD. cap. 20, n. 1.
106 ld., ibid.

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a ele, Deus leva em consideração nossa fraqueza. Por que
falar aqui de fraqueza? O motivo parece claro: Teresa
insistiu muito sobre a necessidade da abnegação total
para obter a contemplação; ainda mais: ela tem caloro­
samente assegurado ( precursora nisto de S. João da
Cruz ), que os contemplativos devem sofrer muito. Deus
não impõe à força a todas as almas uma via tão dura
e tão elevada. Entretanto, ele não proíbe ninguém de a
ela aspirar, pelo contrário, convida a ela tender. Escute­
mos Teresa:
" Ele não obriga estes a seguir por um caminho,
nem aqueles por outro. Sua misericórdia é tão gran­
de, que não impede ninguém de ir beber à fonte
de vida... certissimamente, ele não afastará nin­
guém, pois é publicamente que ele clama e convida
as almas". 107
Deus convida, não excluindo ninguém; entretanto,
não nos força e considera nossa fraqueza. É o mistério
do apelo divino e da livre correspondência humana. Ou­
tras vias, menos elevadas que a da contemplação, com­
portando sempre grandes sofrimentos, podem conduzir
à perfeição. P�ece justo, entretanto, que Deus reserve
seu · caminho "abreviado " às almas que, por sua parte,
escolheram um trilho mais escarpado, pois que mais di­
reto. A contemplação se encontra neste atalho íngreme
levando à santidade; entretanto, nem todos o freqüen­
tam. Eis, então, o primeiro motivo da diferença entre as
almas. Mas há também outro que devemos atentamente
considerar.
Se é verdade que Deus quer desalterar todas as al­
mas parece, no entanto, não ser com igual liberalidade.
Escutemos ainda Teresa: "Ele dá a beber de mil manei­
ras aos que querem segui-lo, a fim de que ninguém seja
privado de consolação, nem morra de sede. Desta fonte
caudalosa jorram arroios, uns grandes e outros pequenos,

107 ld., ibid., cap. 20, nn. 1-2.


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às vezes até filetes de água destinados aos meninos, isto
é, aos principiantes". 1oa
e possível, pois, achegar-se à fonte sem receber mui­
ta água. A Santa está convencida disto: todas as almas
que se dispõe poderão beber. "Minhas irmãs, não deveis
temer vir a morrer de sede". 109 Mas isto não quer dizer,
de modo algum, que uma ou outra não possa sofrer um
pouco de sede. " Se Deus", diz ela, " nos deixa sedentas
nesta vida, saciar-nos-á com superabundância naquela
º
vida que não terá fim" . 11 Mais acima ela havia mesmo
falado de um caso em que toda a água parecia reservada
para a vida futura. " Se este favor não vos é concedido" ,
dizia ela, " é porque vos está reservado todo inteiro para
o céu". 1 11
Mas uma alma que recebe apenas um tênue filete
de água, ou só bebe pequenos goles à fonte de água viva,
goza da contemplação? Se chamamos contemplação à
irradiação, mesmo de preferência difusa, dos dons con­
templativos do Espírito Santo, àssim como o faz a escola
tomista moderna, não há dificuldade em conced�lo.
Mas, se é dado a este vocábulo a significação que ele
tem para S. Teresa e sua escola, como também, queren­
do falar das orações místicas descritas sob o nome de
oração de quietação, sono das faculdades e, sobretudo,
" união mística", não se pode razoavelmente pretender
que uma água tão rara e tão lliedi� possa .dar origem
a experiências místicas tão profundas.
e impossível, portanto, concluir que todas as almas
generosas devam chegar a semelhante forma de contem­
plação; e, menos ainda, serem introduzidas nesta " via
contemplativa" que conduz a alma ao matrimônio espi­
ritual através da série de orações infusas descritas por
S. Teresa e por S. Joã o da Cruz. De fato, uma alma fi.
cará privada das orações místicas, não somente por não
seguir o caminho mais elevado da perfeição, mas tam-

10� Id., ibid., cap. 20, n. 2.


109 ld., ibid.
1 10 ld., ibid.
1 11 ld., ibid., cap. 17, n. 7.

55
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bém porque apraz a Deus não lhe dar de beber de outro
modo, mas em pequenos goles. Pode-se, pois, falar de
uma via que conduz à santidade e mesmo à sua pleni­
tude, sem passar propriamente pelas orações místicas.
Isto acontecerá, sem dúvida, mais freqüentemente à al­
ma que Deus destina mais diretamente à vida ativa.
Os textos em que S. Teresa parece afirmar de ma­
neira mais ou menos absoluta a conexão entre nossas
disposições e a doação da contemplação são, portanto,
susceptíveis de uma interpretação bem ampla. A graça
contemplativa poderá ser concedida à alma em tão pe­
quena dose que não chegará a provocar nela esta cons­
ciência de ser passiva, o que, para Teresa, caracteriza
a oração mística.
Todavia, crer na freqüência de semelhantes casos
seria a nosso ver, ir manifestamente ao encontro de seu
pensamento. É que Teresa fala por experiência : vimos
como notara em suas filhas que a generosidade de sua
abnegação e a assiduidade de seu recolhimento eram
habitualmente recompensados pela oração mística.
Aliás, ·alguns textos, mostrando-nos a contemplação
bem próxima para as almas verdadeiramente dispostas,
fazem claramente alusão a uma experiência mística pro­
priamente dita. m Para interpretar fielmente o pensa­
mento da Santa convém, pois, dizer: na via da mais
alta santidade, seguida pelas almas plenamente gene­
rosas, as orações místicas, embora não sendo neces­
sárias são, entretanto, ordinárias. Esta é, aliás, a o osi­
ção tradicional da escola mística teresiana, partilhada
pelo recente congresso teresiano de Madri. 113

1 12 Esta é, por exemplo, a passagem, já citada, que diz :


"Se temos a esperança de gozar, mesmo desde esta vida, de um
tal favor, que fazemos ?" (Castelo interior ou moradas, "Sextas
Moradas", cap. 4, n. 10).
1 13 Tema V, s� : resulta que a contemplação é o caminho
ordin:uio da santidade e da virtude habitualmente heróica. Cf.
Pe. Chrysó11:0no de Jesus Sacramentado, La escuela mística car­
melitana., Madri-Avila, 1930, p. 289.

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A .disposição para a contemplação

Se Deus deseja comunicar-se às almas; se ele as


chama à fonte da água viva; se concede ordinariamen­
te as orações místicas àquelas que são verdadeiramente
generosas e se a todas dá de beber ao menos pequenos
goles... quem não vê quanto é proveitoso preparar-nos
e dispor-nos para receber este dom de Deus?
Teresa assim no-lo recomenda com insistência:
"Fazei o que está em vosso poder, disponde-vos à con­
templação com toda a perfeição da qual se tem falado
e ficai certas, a meu ver, Deus não deixará de vos con­
ceder este dom, se verdadeiramente tiverdes desprendi­
mento e humildade". 114 Em seguida, dirigindo-se àque­
las de suas filhas que parecem chamadas à vida ativa:
"Considerai bem o que digo. Devemos todas trabalhar
para este fim pelo qual unicamente estamos aqui". tis
� interessante saber agora quais são estas famosas
"disposições". Teresa repete freqüentemente que consis­
tem na doação perleita, total, de si mesmo a Deus, isto
é, na abnegação completa de todas as coisas da terra
e no serviço amoroso e generoso do Senhor. Sob diver­
sas formas reencontramos sempre expressa, nos escritos
da Santa, esta idéia de que só o amor generoso pode
vencer o coração de Deus e forçá-lo a se dar à alma:
"O Rei do qual falamos", diz ela, "não se entrega senão
àqueles que se entregam totalmente a ele". 116 Ainda em
outra parte: "Deus não se dá totalmente se a alma não
se dá toda a ele". 1 17 Fórmula negativa da qual é tirada a
correspondência positiva: "Tende por certo que Deus
se dá verdadeiramente àqueles que abandonam tudo por
ele". 1 18 Em outro lugar; "Quando Deus vê que uma alma
é toda sua e o serve sem nenhum f,nteresse ou motivo

114 Caminho de perfeiçã.o, cap. 17, n. 7.


1 15 ld., . ibid., cap. 18, n. 3.
116 ld., ibid., cap. 16, n. 4.
117 ld., ibid., cap. 28, n. 12.
118 Vida, �p. 27, n. 12.

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pessoal... ele logo se comunica a ela, por numerosas e
diversas maneiras ... " 1 19 Mais ainda: "Não é seu costume
recusar-se àquele que se dá todo a ele: não lhe é pos­
sível e não o pode sofrer". 120
A verdadeira disposição para a contemplação é, por
conseguinte, o dom absoluto de si mesmo. Esta verda­
de é bem consoladora e encorajante. Vimos no primei­
ro capítulo que este dom absoluto conduz a alma à mais
alta perfeição cristã; se não aprouver a Deus conceder
a união mística, o trabalho realizado a fim de se dispor
a ela terá conduzido a alma à união perfeita de confor­
midade, a qual é mais preciosa que a · mesma união mís­
tica. Não teremos então trabalhado em vão. Assim diz
S. Teresa: "Quando uma alma é verdadeiramente humil­
de, mesmo se Deus não lhe der consolações, dar-lhe-á
sempre, ficai persuadidas, uma paz e conformidade, que
-a tornam tão feliz quanto outras almas que gozam de
sua delícia ". m A contemplação, portanto, não é o fim
último. Teresa o diz e repete com insistência ao termi­
nar a última morada do castelo interior:
"Minhas irmãs, será bom dizer-vos o fim pelo qual
nosso Senhor concede tantos favores neste mundo...
Nenhum� de vós deve imaginar que ele quer apenas
cumular a alma de delícias... Tenho como certo que
estes favores têm por fim fortificar nossa fraqueza,
como já o disse, a fim de poder suportar, a seu
exemplo, muitos sofrimentos ". 122
Logo em seguida: "Sabeis, com que finalidade Deus
dá estas graças à alma? ... Será para convidá-la a dormir?
Não, não, não! Faz a alma uma guerra mais terrível às
faculdades, aos sentidos e a tudo o que é corporal, para
os impedir de estar na ociosidade, do que quando sofria
por causa deles". 123 As graças contemplativas têm, pois,
1 19 Pensamentos, cap. 5, o. 5.
120 ld., ibid., cap. 6, n. 9.
121 Castelo interior ou moradas, "Terceiras Moradas", cap.
1, o. 9.
122 Id., ibid., "Sétimas Moradas", cap. 4, o. 4.
123 ld., ibid., cap. 4, n. 10.

58
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o fim de nos estimular a uma doação mais total de
nós mesmos. Teresa não se pode impedir de compade­
cer-se um poucochinho da sorte do pobre corpo habita­
do por uma alma abrasada de amor: "O corpo", diz ela
com uma fina ironia, "tem, pois, uma sorte bem dura;
apesar de tudo o que ele pode fazer, a força da alma
aspira sempre a exigir dele maiores sacrifícios. Ela lhe
faz uma guerra encarniçada ... " 124 Nos santos, a alegria da
alma é ordinariamente paga pelos sofrimentos do pobre
corpo. Parece, todavia, que eles não se queixam disto.
Através destas diversas vias reencontramos, pois,
sempre a amante generosa de Jesus crucificado, a Teresa
que quer "dar-se totalmente". A contemplação lhe é de
um grande valor, porque nos toma mais generosos, mais
desejosos de doação, mais corajosos em face do s.ofri­
mento. O que Teresa deseja é fazer-nos apaixonar por
esta ajuda tão preciosa para a santidade, confessando
ingenuamente: "Escrevendo por obediência sobre a con­
templação, não tenho outra intenção, que a de atrair as
almas para um fim tão elevado ". 125
Entretanto, ela não quer que nos intrometamos por
nós mesmos na aquisição desta graça. Este ensinamento
da Santa não parece bastante notado. Mostramos mais
acima quanto ela condena todo esforço em vista de al­
cançar a contemplação. Vejamos agora com que delica­
deza a Santa regula até os desejos destes favores divinos.
Nas ª Terceiras Moradas" { as últimas antes das graças
místicas ), Teresa fala destas almas "que não podem pa­
cientemente suportar que se lhes conserve fechada .a
porta do aposento " { do Rei ) . Ela as ·desaprova:

"Entrai na intimidade de vós mesmas, filhas mi­


nhas; não vos detenhais em vossas pequenas obras ...
Não peçais o que não merecestes; quando se ofen­
deu a Deus, como nós, não nos deveria mesmo pas­
sar pelo pensamento que temos direito a qualquer

124 Id., ibid., cau. 4, n. 11.


125 Vida, cap. 18, n. 8.

59
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coisa ... Se perseverarmos na desnudez e neste aban­
dono de tudo, chegaremos ao termo dos nossos de­
sejos, mas será com a condição - peço-vos bem
considerar - de que nos olhemos como servos inú­
teis. Jamais se creia que, por algo que façamos, es­
teja Deus obrigado a nos conceder estes favores.
O Salvador não deixou de nos servir enquanto viveu
sobre a terra. Não vamos, pois, pedir-lhe de novo
delícias e regalos ". 126

Teresa repete ainda nas "Moradas" seguintes: " :e, fal­


ta de humi ldade crer que nossos pequenos serviços ·po­
dem merecer tal bem... A verdadeira disposição para nós
não é desejar os gostos espirituais, mas aspirar sincera­
mente a sofrer e vir a ser conformes a Jesus". 1?7 Após
ter recomendado a humildade como a melhor das dis­
posições para os favores divinos, acrescenta Teresa: "O
primeiro sinal pelo qual reconhecereis se a pQssuís é a
persuasão de que não mereceis de modo algum estes fa­
vores e estes gostos de Deus, e que jamais gozareis deles
nesta vida". 12&
Convém, então, preparar-se e se dispor à contempla­
ção. Certamente faremos bem ao dirigir toda nossa vida
para este fim; pois que há grande esperança de o obter,
se tivermos as disposições requeridas; e este " atalho"
nos ajudará a atingir muito mais depressa a santidade.
:e.
preciso, entretanto, não se "preocupar muito com isto".
Após ter feito o necessário, contentemo-nos humildemen­
te com as migalhas que caem da mesa do Senhor, sem
jamais ter outra pretensão. Recordemo-nos sempre de
que são graças concedidas gratuitamente: É um dom de
11

Deus e ele distribui como quer e quando o q uer, sem


consideração ao tempo e aos serviços". 129 " O Senhor dá
como quer, quando o quer e a quem ele quer, porque

126 Castelo interior ou moradas. ªTerceiras Moradas", cap.


1, nn. 6-8.
127 Id., i1'id., ªQuartas Moradas", cap. 2, n. 9.
128 ld.. ibid., cao. 2, n. 9.
129 Vida, cap. 34, n. 11.

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são bens que lhe pertence e, portanto, não faz agravo
a ninguém". 130
Podemos, de outra parte, atingir a santidade, a união
divina de conformidade sem a contemplação! Assegura­
nos S. Teresa: "Que se possa a ela chegar não há motivo
para se duvidar! " m

Conclusão

Considerando as relações que existem entre a con­


templação e a santidade, S. Teresa insistiu, com igual
firmeza, sobre dois pontos essenciais: - a contempla­
ção não é necessária à santidade; - a contemplação é
geralmente concedida à alma plenamente generosa.
A contemplação não é necessária à santidade, mas
é um poderoso meio de santificação. Gratificados pela
contemplação, temos mais que o estrito necessário para
atingir a perfeição e somos nutridos com uma munifi­
cência que nos faz caminhar mais depressa na via da
santidade. Eis por que a contemplação mística pode se
chamar um "atalho" e, pela mesma razão, permanece
um dom gratuito de Deus; um dom que não se pode
propriamente merecer. Fala-se de direito quando se trata
do estrito necessário, ao passo que a superabundância
ninguém a pode exigir. Mas Deus, que é a mesma miseri­
córdia, é muito inclinado a nos dar esta superabundân­
cia, contanto que nos disponhamos convenientemente
para a receber. E ele convida a nos preoararmos pela
abnegação perfeita de nós mesmos e recolhimento con­
tínuo. Se corresoondermos a seu apelo, Quem impedirá
a misericórdia divina de acabar sua obra?
Entretanto, Deus permanece livre na concessão de
dons que ele não prometeu estritamente. Sem fazer agra-
130 Castelo interior ou moradas, "Quartas Moradas", cap .
l, n. 2.
131 ld. ibid., "Quintas Moradas", · cap . 3, n. 5.

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vo a ninguém, "os distribui como ele quer, quando e a
quem ele quer". A Santa parece crer que a água viva
da contemplação jamais será recusada totalmente à al­
ma plenamente disposta; entretanto, alguma poderia be­
ber pequenos goles e mesmo passar um pouco de sede,
enquanto outras se desalterarão em profusão. Seria
uma pretensão inadmissível querer nos entrometer nes­
tas concessões dos favores divinos; abandonemos a coisa
ao Senhor, sobretudo quando se trata de tal ou qual
forma de contemplação, de tal ou qual modo de rece­
bê-la hoje ou amanhã. Tanto mais que a Deus jamais
faltam meios para promover nossa santificação; saberá
conduzir a alma generosa a uma grande santidade, mes­
mo sem fazê-la passar pelo caminho experimental das
orações místicas.
De outro lado, todas as aimas não são levadas pela
via mais elevada e também a mais difícil, eriçada de
espinhos e semeada de inumeráveis cruzes, que termina
nos cumes; há vocações mais humildes, ainda que to­
das sejam chamadas a este cimo que se chama santidade.
A escola mística teresiana sintetizou os ensinamen­
tos de sua grande Mestra de oração, distinguindo uma
dupla via de perfeição: a via comum e a via mística
ou da contemplação.
A via comum não conhece as orações infusas con­
forme o modo característico descrito por S. Teresa. To­
davia, não está inteiramente desprovida delas. A água
viva que Deus dá a toda alma, a iluminação do Espírito
Santo por meio dos dons contemplativos jamais é re­
cusada inteiramente a quem se dispõe com generosidade
para recebê-la. Não será sempre abundante e impetuosa
ao ponto de a alma ter consciência dela e gozar, um
espaço de tempo notável, de uma passividade experimen­
tal; mas sem lhe fazer alcançar a forma característica
das orações místicas descritas por S. Teresa, conseguirá
q�e a irradiação dos dons contemplativos lhe seja real
e freqüente, difundindo-se através de toda a vida es­
piritual.

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As orações místicas própriamente ditas, ao contrá­
rio, se desenvolvem em plenitude nesta via mística $1Ue
conduz ao matrimônio espiritual. Progressivamente, a
alma vai tomandó consciência da operação de Deus nela.
Nesta fonte de água viva, onde outros bebem apenas
aos golinhos, a alma contemplativa dessedenta-se farta­
mente, e a iluminação do Espírito Santo, intensa e su­
perabundante, se revela claramente nela. Através das di­
versas etapas do caminho, essa alma atinge o feliz estado
da união transformante, onde se sente verdadeira esposa
de Deus, unida a ele, em um contínuo abraço de amor.
A escola teresiana não nega que a graça da contem­
plação se encontre de algum modo em toda alma verda­
deiramente santa, mas reserva habitualmente a palavra
"contemplação infusa" às orações místicas nas quais a
alma é consciente da operação divina nela e se sente
passiva. Mesmo neste sentido mais preciso, a contem­
plação infusa não é uma graça extraordinária; todas as
almas são convidadas. Ela é uma plenitude singular de
vida sobrenatural, graça gratuita da ordem daquelas que
desenvolvem a santidade, e não "gratis data" ; é real­
mente uma atividade eminente da vida espiritual, a mais
plena. Os autores da escola vêem também ordinariamen­
te, na contemplação mais elevada da união fruitiva, a
beatitude sobrenatural aqui na terra. 132
Eles admitem, portanto, a profunda unidade da vida
sobrenatural: mesmo as contemplações místicas mais
sublimes pertencem à perfeição própria desta vida. Em
lugar, porém, de considerar sua evolução de um modo
abstrato, ou em uma alma ideal ( como o faz a escola
tomista moderna), a doutrina teresiana dá mais atenção
às modificações que encontra tal evoh,1.ção, confor­
me a diversidade de vocação das pessoas nas quais ela
se realiza. Nem todos são chamados a uma mesma ele­
vação, nem à mesma- forma de vida. A vocação pessoal

132 Philippus a SS. Trind., Summa Theol. Mvst., P. III, tr.


1, d. 1-5. Joseph a S. S., Cursus, Disp. XVI, nn. 342. e 364; Disp.
XX, o. 24.

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do sujeito influencia notavelmente o desenvolvimento de
sua vida sobrenatural.
Seria imprudente e antiscientífico edificar nossa sín­
tese doutrinal sem considerar estas diversas modalida­
des que a evolução da graça contemplativa pode apre­
sentar e que a experiência das almas confirma, sobretudo
n
quando se tem por fim imediato " dirigir na prática da
vida espiritual.
Tendo geralmente em vista, de maneira mais con­
creta, a direção das almas votadas à vida de oração, a
escola teresiana parece ter prestado uma atenção parti­
cular a este aspecto, talvez menos elevado, mas certa­
mente importante da vida espiritual. Evidentemente, es­
tas preocupações tiveram sua influência na organização
de sua doutrina.
Esta não é inconciliável com a síntese tomista mo­
derna da vida sobrenatural. A tese da normalidade da
contemplação infusa, ponto central da síntese tomista,
tende a pôr em relevo esta unidade profunda da vida
espiritual, admitida igualmente pela doutrina teresiana.
Mas semelhante tese, formulada de modo abstrato, cor­
re o risco de ser compreendida com muita rigidez e pa­
recer pouco conciliável com os fatos da experiência. A
distinção das vias, pelo contrário, atribuindo à via mís­
tica a plenitude e à via comum reais participações -
quer nas orações contemplativas, quer na união fruiti­
va - elucida melhor como a mesma iluminação do Es­
pírito Santo pode revestir formas muito variadas e per­
manecer, entretanto, fundamentalmente única.
Pensamos, pois, que a doutrina teresiana pode, não
só completar utilmente, mas também ilustrar a síntese
moderna tomista da vida espiritual. 133

133 A respeito do problema da conexão entre a contemplação


e a pedeição, a escola teresiana segue, portanto, uma via média
entre as duas tendências assinaladas no princípio desta confe­
rência. Ela sustenta, com S. Teresa, que a contemplação mística
não é propriamente necessária à santidade e reconhece a exis­
tência de uma outra via que conduz à pedeição. Afirma entre­
tanto, que a contemplação mística é uma forma elevada de vida

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Ela não propõe, ali.ás, com menor vigor, o magnífico
ideal contemplativo, uma vez que para ela a contempla­
çao infusa não é uma graça extraordinária que é preciso
afastar de nossa perspectiva ou relegar a um canto, co­
mo um regalo posto sob chave e reservado a algum
raro privilegiado; ao contrário, é o termo das mais legí­
timas aspirações de nossa alma, exatamente porque cons­
titui a atividade mais elevada da vida sobrenatural e a
ajuda mais eficaz para conduzir à perfeição moral e ao
dom total de nós mesmos a Deus. Porém, a alma é co­
locada diante deste ideal numa atitude mais humilde;
sendo a contemplação um dom gratuito, uma recompen­
sa que Deus não estâ obrigado a dar nesta vida - onde
as recompensas não são adequadamente proporcionadas
aos méritos - a alma não pretenderá a ela ter direito
e estará contente mesmo se Deus não lha concede. En­
tretanto, se os autores teresianos se opõe a toda pre­
tensão, proclamam altamente a legitimidade do desejo
humilde e ardente deste precioso tesouro divino; alguns
deles chegam a ensinar que devemos aspirar e tender à
contemplação infusa e à união fruitiva.
Idêntica é a doutrina da mestra de escola, S. Teresa
de Jesus:
" Coragem, minhas irmãs ! Uma vez que podemos, de
certa maneira, gozar do céu na terra, supliquemos
ao Senhor nos conceda seu socorro, a fim de que

sobrenatural, que não é uma graça extraordinária de caráter


carismático ou miraculoso, mas é o remate habitual de uma vida
plenamente generosa, à qual todas as almas são convidadas.
Admite, pois, com a escola tomista, a unidade profunda da vida
espiritual; é licito dizer que ela não contradiz a tese da "norma­
lidade" da contemplação infusa. que é considerada como ponto
central da doutrina espiritual tomista. Reconhece, com efeito,
que todas as almas santas recebem a iluminação do Espírito
Santo por meio de seus dons, mas considera mais diretamente
as formas muito variadas qu� esta iluminação reveste nas al­
mas : uma alma poderia ser freqüentemente iluminada por ·ins­
pirações ocultas e passageiras sem ser propriamente contempla­
tiva. Todas as almas santas são esclarecidas por Deus, mas nem
todas caminham pela vida da contemplação que é constituída
pela série das orações místicas.

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não sejamos privadas, por nossa culpa, do favor
do qual falamos. Peçamo-lhe se digne mostrar-nos
o caminho e pôr em nossa alma a força de cavar,
até que tenhamos encontrado este tesouro escon­
dido! Considerai, porém, que para o adquirir, Deus
não quer que vos reserveis o que quer que seja .
. Pouco ou muito, ele reclama tudo para si e, confor­
me o vosso dom seja mais ou menos absoluto, seus
favores serão mais ou menos elevados ". 134 Sim, Deus
é generoso para a alma generosa.

134 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas", cap. 1,


nn. 2-3.

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O CAMINHO DE PERFEIÇÃO

A fisionomia ideal da mestra espiritual do Carmelo


começa a se desenhar nitidamente aos nossos olhos. Te­
resa de Jesus é verdadeiramente a grande alma de dese­
jos ilimitados, de vida plena e generosa, que quer dotar
a santa Igreja de uma linhagem de corações magnâni­
mos, de uma corrente de vida profunda, de uma vasta
enchente de amor divino. Teresa quer amar muito e fa­
zer muito amar.
Amar, para a Santa, é dar-se inteiramente; ensinar
a amar será pôr os corações no caminho da doação total.
Às almas cristãs capazes de generosidade Teresa propõe
n
seu magnífico ideal de caridade "inteiramente perfeita :
abismar-se, perder-se na vontade do Bem-amado, sacrifi­
car-se totalmente pelos seus interesses e pelos da santa
Igreja.
· Mas, ao coração que muito ama é necessária a in­
timidade com o Amado. Aquele que ama quer ser amado.
O amor só se paga com amor. Teresa está convencida
disto: se Deus quer que o amemos de todo coração,
deve estar pronto a nos conceder sua intimidade. A San­
ta crê que Deus convida à contemplação. Sim, Jesus
chama todas as almas à fonte da água viva; dará de
beber àquelas que forem plenamente generosas, se não
sempre com abundância , pelo menos suficientemente
para as impedir de morrer de sede. A amorosa Teresa
repete: "Domine, da mihi aquam " , e nos lega sua con­
fortadora doutrina: no caminho da doação total, a alma
plenamente generosa é ordinariamente introduzida na
contemplação mística que restuara suas forças, estimula
sua coragem e suas energias, abrindo diante dela horizon-

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tes de amor ilimitado. A alma renasce para uma vida no­
va, plena, profunda e abundante. Ela se sente feliz, dila­
tada. Com que ardor a alma abrasada de amor reza pela
santa Igreja, pelos interesses de seu Bem-amado! Com
quanta generosidade a alma que goza de sua intimidade
se sacrifica por Jesus!
Amar - ser amado - fazer amar o Amor, é todo
o ideal teresiano. Cabe à Santa ensinar-nos a via que
conduz à realização deste ideal.
Todos os seus preciosos escritos pretendem este mes­
mo fim.
Um dentre eles encanta de maneira particular sua
família religiosa. :É um livro que se relê sempre com
prazer e proveito espiritual, sendo a obra mais humilde
de S. Teresa. Nele é antes de tudo a mãe, cuidadosa da
educação de suas filhas, que fala e não a escrutadora
genial das vias místicas. A Santa o escreveu a pedido de
suas carmelitas e o destinou à sua formação espiritual,
chamando-o por justo título: Caminho de perfeição.
Teresa condensou nele a quintessência do espírito
que queria infundir em suas filhas. Educadora incom­
parável, com arte e delicadeza, ela as inicia na prática
desta vida de amor muito perfeito, organizada para elas.
Documento precioso em verdade, não só para a família
. carmelitana, que nele encontra uma direção muito prá­
tica, concreta e adaptada às necessidades da vida claus-
· tral, mas ainda para todas as almas, pois que a vida do
. Carmelo, como mostramos nos primeiros capítulos, tem
. o mesmo fim que a vida cristã, considerando-a em sua
_ plenitude integral. As diretivas que a Santa nos oferece,
revestidas das particularidades do ambiente monástico
.poderão, pois, se adaptar sem grandes dificuldades a
·outras condições de vida. Os meios indicados por esta
grande educadora e recolhidos no patrimônio comum
da vida sobrenatural poderão - mediante ligeiras mo­
dificações - servir igualmente às almas que, em outros
institutos religiosos ou no mundo, procuram amar a
Deus de todo seu coração e dele se a-proximar o mais
intimamente possível. Cremos que a leitura mais assí-

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dua deste livro de ouro seria útil a muitos cristãos.
Com o fim de tomá-lo mais bem conhecido, a ele dedj.ca­
remos um capítulo inteiro. Ele preparará excelentemente
o terreno ao estudo da obra-prima da Santa: O castelo
interior, obra complementar ao nosso ver, ao C!l,1ninho
de perfeição. Enquanto o Caminho insiste muito espe­
cialmente sobre a cooperação pessoal em nossa santifi­
cação, o Castelo expõe de maneira mais imediata a obra
que Deus ope:r:a habitualmente na alma plenamente ge­
nerosa, para a elevar em pouco tempo a uma alta per­
feição.
Para melhor aproveitar dos ensinamentos da San­
ta, faz-se necessário, antes de transpor o limiar do cas­
telo interior, considerar atentamente o caminho que �
ele conduz. Presa do ideal contemplativo e convencida
da importância que tem nossa disposição na busca da
contemplação, Teresa pôs todos os seus cuidados em en­
sinar a suas filhas como, prática e concretamente, se
revestir destas disposições. Vendo com mais exatidão · que
espécie de generosidade a santa Madre exige das almas
que tendem à contemplação, acharemos talvez menos
estranho que Deus o queira dar a experimentar a quem
se entrega tão totalmente a ele.
Após ter apresentado o caráter particular do livro
e sua estrutura lógica, exporemos brevemente o que ele
ensina quanto ao trabalho ativo da alma que quer atin­
gir a intimidade divina.

Estrutura do livro

Às vezes se diz que o Caminho de perfeição é um


livro ascético. Caso se entenda por "ascese" o esforço
que a alma deve fazer para se despojar de todos os
obstáculos que impedem a união com Deus, e para se
aproximar dele pela elevação atiV'a de suas faculdades,
pensando no Senhor e , amando-o, estamos plenamente

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de acordo. Este é, em verdade, o caráter geral do livro,
consagrado, na maior parte, à exposição da prática da
abnegação e da oração mental comum e ativa. Notemos,
todavia - e necessariamente, sob pena de não apreen­
der o verdadeiro caráter da obra - que todo o trabalho
ascético descrito está ordenado à contemplação. E uma
ascese contemplativa, isto é, própria para a alma que
tende à contemplação.
Julgando esta afirmação muito importante, parece­
nos oportuno demonstrá-la com clareza. Procuraremos
as provas na estrutura do livro e, assim, poremos em
claro sua organização.
Advertimos mais acima como os escritos de S. Te­
resa, com suas freqüentes digressões e redigidos livre­
mente, sem plano bem concebido são, todavia, de uma
lógica profun4a. Esta lógica deriva da mesma vida desta
mulher geniai, cujas intuições penetrantes e aspirações
profundas dirigem toda a atividade, inspirando sua pe­
na e dando às diversas partes da obra - escritas às
vezes de tempos em tempos e sem revisão - uma coe­
rência e uma unidade harmoniosas, mas um tanto es­
condidas. Este é particularmente o caso de nosso Ca­
minho de perfeição, cuja estrutura não aparece clara­
mente ao leitor apressado, mas que se revela, após uma
paciente análise, como uma síntese magnífica da vida
espiritual contemplativa.
A obra, consagrada à formação da alma votada à
vida de oração, pode ser dividida em três partes. A pri­
meira desenha em traços vigorosos a fisionomia da car­
melita, verdadeira alma de oração; a segunda expõe os
fundamentos da vida de oração, isto é, a prática emi­
nente da virtude; a terceira estuda o exercício da oração.
Faremos corar a humilde Teresa ou sorrir a gran­
de amiga da verdadeira ciência ao dizer que, para com­
por seu Caminho de perfeição, ela se serve inconsciente
do mesmo princípio que rege toda a segunda parte da
Suma teológica? Antes, com isto estará contente, pois
que foi com alegria que ela recebeu o elogio dos teólogos

70
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que aprovaram-lhe o livro. Certo dia, diz ela ao padre
de Yepes, com um prazer evidente: "Homens graves
me asseguram que isto parece Sagrada Escritura ". 135
" Ex fine oportet accipere rationes eorum quae or­
dinantur ad finem", proclama o Doutor Angélico no
princípio da "Pars secunda ", onde ele nos expõe o fim
de nossa vida, antes de abordar o tratado dos atos hu­
manos. Assim Teresa fundamenta todo o edifício do Ca­
minho de perfeição na consideração do fim que suas
filhas devem atingir. Em páginas transbordantes de es­
pírito e vida ela delineia, nos primeiros capítulos do li­
vro, a fisionomia ideal da monja teresiana que quer ser
a amiga íntima de Deus : toda "dele", e consagrar sua
vida aos interesses de Deus e da santa Igreja. Ela será
o anjo que reza e a vítima que se imola por aqueles que
combatem, a fim de lhes obter a vitória. A fim de tor­
nar sua oração mais poderosa, pois que é este seu meio
de apostolado, a filha de S. Teresa procura agradar to­
talmente ao coração divino, àquele que tudo deve con­
ceder.
As pretensões da carmelita são elevadas: "Acabas­
tes de ver, minhas filhas ", escreve Teresa ao final de sua
exposição, "a grandeza do fim que deveis atingir. Como
deveremos ser, se não quisermos passar por muito atre­
r
vidas aos olhos de Deus e do mundo 136 Teresa res­
ponderá a esta pergunta fundamental indicando a suas
filhas a via que deverão seguir para vir a ser "verdadei­
ras almas de oração ". Veremos que ela tem a intenção

135 Na introdução escrita pelas carmelitas de Paris em sua


versão francesa do Caminho lemos (tomo V, p. 11) : "O Pe. Baiiez
não foi o único a revê-lo. S. Teresa, atestando autêntica uma
cópia da qual teremos que falar, nos diz que seu manuscrito foi
submetido a alguns outros teólogos ... Em seguida, ela o remeteu
ao Pe. Diego de Yepes, prior dos jerônimos da Sisla, perto de
Toledo, o qual tomou por confessor em 1576. Ele mesmo fala
assim : 'Um dia em que eu elogiava o livro intitulado Caminho
de perfeição ela me testemunhou uma alegria muito viva e ajun­
tou com satisfação : Homens graves me asseguram que isto
parece Sagrada Escritura' ".
136 Caminho de perfeição, cap. 4, n. 1.

71
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de conduzi-las ao cume mais elevado da vida de oração,
porque jamais se detém em meio-caminho.
Passemos à segunda parte da obra. Guiada por seu
firme bom senso, Teresa procura a rota a indicar, no
sulco traçado pelas leis de seu próprio instituto. " Eu
não vos peço nada de novo, minhas filhas: conformai-vos
à vossa profissão e ao que exige de vós, a vossa vo­
cação ". Todavia, acrescenta: " ...se bem que haja grande
diferença entre guardar e guardar ( suas leis ) ". 131 Com
efeito, uma lei pode ser observada com mais ou menos
generosiBade; pode-se fazer o· êstrito necessário para não
pecar, ou então ultrapassar, com um magnânimo im­
pulso, a letra desta lei, para dela penetrar o espírito.
Mas quem quer atingir um fim sublime deve trabalhar
seriamente: "Será preciso evidentemente trabalhar mUi­
to. Um socorro poderoso para nós, será ter muito alto
os nossos pensamentos, a fim de que nos esforcemos
para elevar também nossas obras ". 138 Eis-nos desde o
princípio em uma atmosfera de generosidade, de vida
plena e perfeita. Trata-se, aliás, de uma existência cuja
ocupação principal e central é a oração:
"A Regra Primitiva de nossa Ordem diz que deve­
mos rezar sem cessar. Nada negligenciemos para
cumprir este dever, o mais importante de todos, e
observaremos igualmente os jejuns, disciplinas e o
silêncio que a Ordem pede de nós; porque, já sabeis
que a oração, para ser verdadeira, deve ser ajudada
por todas estas práticas, uma vez que oração e vida
regalada não vão juntas ". 139
A oração sustentada pela mortificação, os atos de
penitência destinados a nutrir na alma o espírito de ge­
nerosidade; estas são as práticas fundamentais da vida
do Cannelo. 140 Portanto, é "sobre a oração ", principal-

137 ld., ibid., cap. 4, n. 1.


138 . _ld., ibid.
139 ld., ibid., cap . 4, n. 2.
140 ld., ibid., cap. 4, n. 3.

72
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mente, que as monjas de S. José de Avila querem se fa.
zer instruir por sua Madre. Mas as boas filhas nãQ se
contentavam com pouco ! Elas pediam a S. Teresa nada
menos que lhes mostrar " a via para chegar à contem­
plação ". 141
A Madre não recusou satisfazê-las. Tenciona corres­
ponder aos seus desejos, porque pretende fazer de suas
filhas " as amigas íntimas do Senhor", 142 " sem outra as­
piração senão a de permanecerem sempre sós com ele
só ". 143 Semelhante vida parece chamar a contemplação.
Mas, como mulher de bom senso, Teresa quer construir
sobre um terreno sólido.
"Antes de vos falar de oração... direi certas coisas
necessárias àquelas que querem empenhar-se neste
caminho; elas são mesmo de tal modo necessárias
que se pode estar com elas muito adiantado no ser­
viço de Deus, sem ser muito contemplativo, enquan­
to que, se não as possuís, não conseguiríeis sê-lo". 144
S. Teresa indicará às suas filhas a via que conduz
à contemplação, começando pelos fundamentos da vida
espiritual. Antes de falar da intimidade divina tratará de
três virtudes, das quais o exercício perfeito desprende a
aJma do mundo inteiro e de si mesma: uma delicada
caridade fraterna, um despojamento de todas as cria­
turas e a humildade profunda, abraçados por amor de
Deus, conduzirão a alma à verdadeira nudez do espírito.
Não é exagero exigir uma renúncia tão absoluta ?
Teresa não pensa assim quando diz: ""Não creiais que
seja muito tudo quanto falei até agora; ainda nada fiz,
a não ser arrumar no tabuleiro as peças do xadrez" . 145
O xadrez ! Que singular comparação para ensinar a
carmelitas! Teresa se dá conta disto; as monjas se admi-

141 Id., ibid., cap. 16, n. S.


142 Id., ibid., ca». l, n. 2.
143 Vida, cap. 36, n. 29.
144 Caminho de perfeição; cap. 4, n. 3.
14S ld., ibid., cap. 16, n. 1.

73
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rarão ao ouvir falar de jogo, "nestas casas onde o jogo
não é permitido e jamais o será. Vede que mãe Deus
vos deu, que até esta vaidade sabia". 146
Entretanto, ela ensinará a se servir da "tática" deste
jogo; falará de dar xeque-mate ao Rei do Amor. Dar
mate ( xeque-mate ) ao Senhor não é outra coisa senão,
de certa maneira, forçar-lhe a mão para que lhe seja
concedida a contemplação. Mas este fim não se atinge
por uma vida de virtude comum; ele exige uma virtude
mais elevada:
" Perguntareis talvez, minhas filhas, por que vos fa­
lo em virtudes... quando desejais que eu trate de
contemplação. Eu vos respondo que, se me fosse pe­
dido falar-vos da meditação, eu teria podido fazê-lo
imediatamente... quanto à contemplação, minhas
filhas, é outra coisa". 147
Para obter a contemplação ou, como o diz graciosa­
mente Teresa, para dar mate (xeque-mate ) ao Rei do
Amor é preciso se dar totalmente: "porque este Rei do
qual falamos não se entre�a senão àqueles que se en­
tregam totalmente a ele". 148
:S, pois, evidente que, mesmo nesta parte mais ascé­
tica da obra, Teresa não perde de vista a contemplação;
exige o despojamento tão completo, precisamente por­
que é esta à verdadeira disposição para a união mística.

Aqui começa a terceira parte do livro, consagrado


diretamente ao estudo da vida de oração. Ainda com
mais evidência, esta parte é inteiramente dominada pelo
pensamento de conduzir a alma à oração mística.
os primeiros capítulos 149 debatem a questão espi­
nhosa da relação entre a contemplação e a santidade.
:S precisamente nestas páginas que a Santa tratou mais

146 Id., ibid.


147 ld., ihid., cap. 16, nn. 3-4.
148 ld., ibid., cap. 16. n. 4.
149 Id., ibid., cap . 17-20.

74
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diretamente e propôs mais completamente sua delicada
solução: a contemplação não é, de fato, necessária à san­
tidade; esta pode também ser atingida por vias menos
altas, onde não há oração mística; mas Deus concede
ordinariamente a contemplação à alma plenamente gene­
rosa. O convite divino à fonte de água viva é geral; se
todas as almas convenientemente preparadas não rece­
bem a iluminação divina com esta abundância que delas
n
fará "verdadeiras contemplativas , nenhuma, entretan­
to, será totalmente privada dela. É, pois, oportuno dar
em nossa vida espiritual um lugar ao ideal contemplati­
vo. Teresa ensina também indistintamente a todas as
suas filhas a se disporem à contemplação: " Fazei tudo
o que está em vosso poder, para vos dispor à contem­
plação com toda a perfeição da qual tenho falado e ficai
certas de que, a meu ver, ele não deixará de vo-la con­
ceder desde que sejais verdadeiramente humildes e
desprendidas . 1so " Prestai atenção ... tal preparação de­
n

ve ser diligentemente realizada por todas indistinta­


mente e com todas nossas forças ". 15 1 Logicamente ela
acrescenta: "Vejamos o que devemos fazer para nos por­
mos no caminho " . 1S2
Embora se escusando por prolongar-se em preli­
minares, propõe às suas filhas duas novas condições: a
primeira é de estar firmemente decididas a trabalhar e
a não se deter no caminho, " enquanto não tenham che­
gado à fonte, isto é, a se desalterar da água da vida"; 153
a segunda é de se aplicar à oração mental., unida à o;ração
vocal, se não são capazes de mais; porque mesmo de
oracão vocal feita com recolhimento Deus, por vezes,
também eleva à mais alta contemplação. 154 Isto nos leva
ao célebre comentário do " Pater noster", 155 cujas páginas
permanecem entre as mais conhecidas da Santa. As pri-

150 Id., ibid., cap. 17, n. 7.


151 Id., ibid., cap. 18, n. 3.
152 Id., ibid., cap. 20, n. 3.
153 Id., ibid., cap. 21, n. 2.
154 Id., ibid., caps. 22, 24 e 25.
155 Id., ibid., caps. 27ss.
75
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meiras palavras da oração dominical lhe são ocasião de
falar dos diversos graus da oração ativa; 156 Teresa aí
nota novamente como seu estágio superior, o recolhi­
mento ativo, prepara à oração infusa. 157 O " reino de
Deus" que pedimos dizendo: " Adveniat regnum tuum"
é a oração de quietação, primeiro grau da oração infu­
sa, mística, onde Deus começa, em verdade, a se dar a
experimentar e a nos introduzir em seu reino. 158 O co­
mentário do "Fiat voluntas tua" 159 deve ser considerado
como o ponto central do livro; aí a alma atinge, com a .
ajuda da oração de quietação, esta doação perfeita de si
mesma, a qual constitui o ideal moral proposto por Te­
resa às suas filhas. Teresa diz com efeito: " Fizestes bem,
Senhor, apresentando a vosso Pai o pedido precedente
(Adveniat), para que tenhamos o meio de realizar, o que
nos dais, em vosso nome. Com efeito, a não ser assim,
seria impossível" . 160 Eis uma nova expressão de seu pen­
samento constante: atingir uma alta santidade sem con­
templação seria bem difícil!
Depois ela adverte de novo como nossa generosidade
em fazer a vontade de Deus é exigida para chegar à
prenitude da vida mística. 161 O pão cotidiano da euca­
ristia deve dar a força de viver com uma generosidade
total. A comunhão é verdadeiramente um momento pre­
cioso para ser introduzido na intimidade do Senhor. 162
" Podereis mesmo desejá-lo com tanto amor que ele se
manifestará completamente a vós". 163 Não há de que du­
vidar; continuamos sempre considerando a contempla­
ção. Também os últimos pedidos do " Pater" 164 levam a
Santa a expor como, pelos efeitos produzi4os na alma,
se reconhece a verdadeira contemplação.
156 ld., ibid., caps. 27, 28 e 29.
157 ld., ibid., cap. 28, n. 5.
158 Id., ibid., cap. 30 e 31 .
159 ld., ibid., cap. 32.
160 Id., ibid., cap. 32, n. 2.
161 Id., ibid., cap. 32, n. 9.
162 Id., ibid., caps . 33, 34 e 35.
163 Id., ibid., cap. 34, n. 12.
164. Id., ibid., caps. 36ss.

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Concluindo, Teresa se maravilha de ver quanto esta
santa oração, ensinada por Jesus, u contém toda a vida
espiritual, desde o ponto de partida até aquele em que a
alma se abisma em Deus, e onde Deus a sacia, supera­
btmdantemente, com esta água viva que se acha ao tér­
mino do caminho". 165
Parece-nQs ter provado nossa afirmação. O Caminho
de perfeição é um livro de ascese, sim, mas de uma as­
cese totalmente ordenada à contemplação. Não pode­
mos, pois, duvidar de que, seguindo os ensinamentos da
Santa, seja oportuno e legítimo ordenar nossa vida es­
piritual em vista da contemplação. Após ter descrito as
propriedades da água viva, símbolo ela contemplação in­
fusa, acrescenta: " Por qual motivo, pensais, minhas fi­
lhas, quis eu vos propor o fim e vos mostrar a recom­
pensa, antes do combate?" Responde ela mesma: ":e.
para
que vos não aflijais com os trabalhos e as condições do
caminho e prossigais com coragem, sem vos deixardes
vencer pelo cansaço" . 166
O caminho de perfeição traçado por S. Teresa, con­
duzindo verdadeiramente à perfeição moral ( que con­
siste J;J.a doação total de nós mesmos a Deus e que per­
manece nosso fim fundamental ) tem sempre em vista a
contemplação mística, meio eminente e eficaz de santi­
dade, via mais curta e fácil, verdadeiro " atalho" para
chegar rapidamente a uma alta perfeição.
Convém agora expor mais especificamente os ele­
mentos de nossa preparação aos favores divinos.

A virtude generosa

Retomemos, então, mais atentamente, o estudo das


duas partes anunciadas do livro, explicando a estrutura
da obra.
165 Id., ibid., cap. 42, n. S:
166 Id., ibid., cap. 19, n. 14.

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Recordemos como S. Teresa põe como base da via
contemplativa o exercício de três virtudes.

" Eu não me quero deter, senão em três pontos ...


o primeiro é o amor que devemos ter umas para
com as outras; o segundo é o desprendimento de
toda criatura; o terceiro, a verdadeiI'.a humildade,
virtude que, embora nomeada em último lugar é,
entretanto, a principal e abraça todas " . 167

Façamos uma idéia concreta destas virtudes, tais c�


mo a Santa n�las propõe e veremos qual a elevação de
vida moral requerida das almas que aspiram à contem­
plação. É importante notá-lo. Com efeito, freqüentemen­
te, sem disto nos dar conta, tendemos a baixar ao nosso
nível os ensinamentos dos santos. Incapazes de tanta ge­
nerosidade, quereríamos que esta não fosse. necessária
para atingir os cumes sublimes que eles nos propõem,
e procuramos dar uma interpretação mais fácil a seu en­
sinamento ascético, e a conseqüência final é que a lógica
de sua doutrina nos escapa. Em verdade, temos assim,
involuntariamente, destruído o equilíbrio e a harmonia,
destruindo a base do edifício. Quem quer construir mui­
to alto para alingir a contemplação, deve cavar em pr�
fundeza. Insistiremos, por conseguinte, sobre o aspecto
absoluto e árduo da ascese teresiana.
A Santa não se contentou em levar as almas a uma
perfeição qualquer; quis para suas filhas a perfeição
total e exige, correlativamente, de suas postulantes que
elas tendam a " toda perfección", 168 como podemos ler
ainda em suas Constituições.
Escutemos agora a mestra, que nos põe na via desta
perfeição integral.

167 Id., ibid., cap. 4, n. 4.


168 Constituições, Da admissão das noviças.

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A caridade fraterna

Como Teresa ensina o amor do próximo? Ela o quer


livre de toda imperfeição. Eis o que diz: ª A primeira
vista, o excesso ( de afeição) não parece ser prejudicial
entre nós; entretanto, acarreta tantos males e imperfei­
ções que a meu ver, ninguém o crerá, se não tiver sido
testemunha ocular". 169 A Santa está convencida de que
semelhantes defeitos impedem a alma ª de se abismar in­
teiramente no amor de Deus" . 170 Em um pequeno quadro
de uma viva psicologia ela pinta as almas imperfeitas:

ª Creio que este defeito se encontra mais freqüente­


mente nas mulheres do que nos homens. Ele traz
prejuízos muito consideráveis a uma comunidade...
o desejar ter qualquer coisa para dar {a sua amiga),
o buscar ocasião para lhe falar e muitas vezes mais
para lhe dizer quanto lhe quer bem e semelhantes
trivialidades, do que para lhe falar do amor de Deus.
Com efeito, é raro que estas grandes amizades te­
nham por fim ajudar-nos mutuamente a crescer no
amor divino. Creio, ao contrário, que elas são susci­
tadas pelo demônio, para criar bandos nas comuni­
dades " . 171

Absolutamente não é assim que devemos amar nosso


próximo. Teresa não quer estas afeições particulares
e sensíveis; só nos permite o amor de caridade e o quer
muito puro.

ª O amor do qual trato é de duas espécies: um é


todo espiritual, porque parece não ter a mínima li­
gação com a sensibilidade ou ternura natural e nada
perde de sua pureza; o outro é espiritual também,

16? Caminhos de pe1jeição, cap. 4, n. 5.


170 Id., ibid., cap. 4, n. 5• .
171 ld., ibid., cap. 4, n. 6.

79
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mas nossa sensibilidade e fraqueza nele têm sua
parte". 172
Teresa só admite o primeiro. "Quero agora vos en­
treter" , diz ela, " deste amor espiritual onde a paixão
não tem nenhuma parte". 173
Ela descreve então as almas que amam com tal
amor: "Não encontram nenhuma satisfação em
amar coisa tão miserável quanto nossos corpos ...
deter-se em amá-los por causa de suas vantagens
exteriores, seria a seus olhos amar uma sombra...
elas não ousariam mais, sem· ficar cheias de confu­
são, dizer a Deus que o amam... Mas, me direis, vós,
se não amam o que vêem, a que se afeiçoam? Na
verdade, amam o que vêem... mas só vêem as coisas
estáveis... lançam seu olhar à alma e examinam se
há nela alguma coisa que mereça sua afeição ... ". 174
O objeto de tal amor é, pois, a alma. Vejamo-lo
agora na prática:
ªQuando estas almas amam uma pessoa, desejam
apaixonadamente que ame a Deus e que seja dele
amada... E ste amor lhes custa muito caro, porque
não há nada a seu _alcance que não estejam prontas
a empreender para a utilidade daqueles que amam.
Estão prontas a sacrificar mil vezes sua vida, para
lhes proporcionar mesmo o menor bem". 175
E Teresa nos mostra como tal amor aceita mes­
mo que Deus purifique, pelo sofrimento, aqueles que nós
amamos:
ª Sem dúvida, pode-se experimentar um primeiro
movimento de sensibilidade natural... mas logo a
razão examina se as provações em que se acha a

172 ld., il>id., cap. 4, D 12.


173 Id., ibid., cap. 4, n. 13.
174 ld., ibid., cap. 6, nn. 4-8.
175 ld., ibid., cap. 6, n. 9.

80
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pessoa amada são destinadas à sua perleição, se
ela cresce em virtude e como suporta seus sofri­
mentos; a alma suplica a Deus dar paciência a sua
amiga e ajudá-la a ganhar méritos. Vendo-a resigna­
da, não experimenta mais nenhuma pena, pelo con­
trário, se regozija e se consola n . 116
Espontaneamente se pensa no heroísmo de S. Teresa
do Menino Jesus, a qual não quis pedir a cura de seu
tão virtuoso pái. Teresa conclui: " Este amor parece ser
a imagem e a semelhança daquele que teve por nós,
Jesus, o verdadeiro amigo n . 177 :E. evidente; o amor fra­
terno que ela nos propõe está purificado de todo amor­
próprio, de toda busca de consolação pessoal; ele é in­
teiramente regido pelo desejo de dar a Deus mais amor.
Tal amor ama a Deus nas almas e ama as almas para
lhes fazer amar a Deus. :E. realmente o puro amor.
Certamente, S. Teresa não se contenta com pouca coisa;
ela quer levar suas filhas à perfeição mais elevada. Com
efeito, é unicamente na via desta perleição tão elevada
que se encontra a contemplação.

O desprendimento absoluto

"Falemos agora do desprendimento no qual deve­


mos viver n , prossegue a Santa: " Praticado com perleição,
n
ele é tudo para nós . Tudo? Não é dizer muito? Teresa
se explica:
"Digo que é tudo, porque, desde que nos prendamos
somente ao Criador e que nos elevemos acima de
todas as coisas criadas, Sua Majestade nos infunde
virtudes tais que, se de nosso lado trabalharmos por
adquirir pouco a pouco a perleição, na medida de
176 Id., ibid., cap. 7, n. 3.
177 Id., ibid., cap. 7, n. 4.

81
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nossas forças, não mais teremos muito a combater.
O Senhor estenderá sua mão para nos defender con­
tra os demônios e o mundo inteiro". 11s
Alusão evidente à ajuda do Espírito Santo, que a al­
ma inteiramente despoj ada pode esperar.
Capítulo por capítulo, a Santa nos descreve um tra­
balho de despojamento que começa nas coisas exterio­
res e termina na abnegação interior profunda, a qual
se prova na humildade perfeita. Teresa quer que suas
filhas tenham o coração completamente livre, capaz de
amar com todas as suas forças. Antes de tudo, portanto·,
elas não procurarão consolações sensíveis em suas re­
lações com os parentes: " Em outras partes ( noutros mos­
teiros ), será permitido consolar-se junto a seus paren­
tes; aqui, quando se admite algum parente para nos vi­
sitar, é com o fim de consolá-lo". 179 Em Teresa, sempre
a mesma preocupação de amar sem interesse próprio!
Entretanto, não se creia que as carmelitas devem ser in­
diferentes para com os seus parentes: " Neste mosteiro,
minhas filhas, deve-se ter muito cuidado de rezar, como é
justo, por todos os nossos parentes". 1 80 O que Teresa não
quer, é que se esteja inutilmente ocupado com · sua lem­
brança, o que, aliás, para nada serve. "Depois", diz ela,
ª devemos procurar afastá-los o mais possível de nosso
espírito". 181
Fazer de outro modo poderia prej udicar muito a
paz da alma: "Não podemos nem devemos tomar parte
em seus prazeres; resta-nos apenas partilhar de suas
provações pelas quais derramamos lágrimas mais abun­
dantes que eles mesmos". 1 82 Com efeito, a monj a en­
clausurada que não seguisse estes conselhos tão psico­
lógicos carregaria inutilmente, em sua solidão, todas as
penas de seus parentes e, não tendo as distrações que

178 ld., ibid., cap. 8, n. 1


179 Id., ibid., cap. 8, n. 3.
180 ld., ibid., cap. 9, n. 3.
181 ld., ibid.
182 Id., ibid., cap. 9, n. 1.

82
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eles gozam, estaria exposta a sofrer mais do que eles
e a perturbar sua alma indefinidamente e sem proveito.
Desprender-se dos outros não basta: é preciso nos
desprendermos de nós mesmos. Diz a Santa : " Procurai
não vos assemelhar àquele que se deita bem tranqüilo,
porque fechou cuidadosamente suas portas, por medo
dos ladrões, mas que os deixou dentro de sua casa. Vós
já o sabeis; não há piores ladrões do que estes e, somos
n
nós mesmos que ficamos dentro . 183
Daí, um novo conselho:

" Se, pois, não temos grande cuidado e se cada uma


não considera como o negócio mais importante de
todos a renúncia de sua própria vontade, uma mul­
tidão de obstáculos nos tirarão a santa liberdade de
espirito e impedirão a alma de voar a seu Criador,
desprendida do que é terra e chumbo ". 1!14

Neste trabalho de abnegação, a humildade virá em


ajuda ao desprendimento: " São duas irmãs que não se
deve separar. Não estão elas compreendidas entre os
parentes dos quais nos devemos desprender; pelo con­
trário, digo que as abraceis e ameis sem jamais vos pri­
vardes de sua companhia n . 1ss
Mas vejamo-las na prática: "A primeira coisa a fa­
zer é desarraigar em nós o amor de nosso corpo". 1 86 Te­
resa conhece as fraquezas de certas mulherzinhas : "Dir­
-se-ia que certas religiosas não entraram no claustro se­
não para tratar de não morrer... Coragem, portanto, mi­
nhas irmãs; viestes aqui para morrer por Cristo e não
para vos tratar regaladamente por ele ". 187 Por momen­
tos reaparece a castelhana graciosa, sempre pronta a
emitir alguma malícia: " Um dia, não vamos ao coro por·
que temos dor de cabeça; no dia seguinte, porque doeu

183 Id., ibid., cap. 10, n. 1 .


184 Id., ibid., cap. 10, n. 1 .
185 Id., ibid., cap. 10, n . 3.
186 Id., ibid., cap. 10, n. S,
187 Id., ibid.

83
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n
e, nos três dias seguintes, para que não tome a doer . 1as
Teresa dá outros princípios às suas filhas:
" Nosso corpo tem esta manha; quanto mais o rega­
lamos mais necessidades inventa ". 189 "Recordai-vos
de quantos pobres enfermos que não têm ninguém
a quem se queixar e vós quereis ser pobres e ao
mesmo tempo bem tratadas: isto não seria justo.
Lembrai-vos de nossos Padres, esses santos eremi­
tas dos tempos antigos, cuja vida pretendemos imi­
tar. Quanto sofrimento não suportaram em sua so­
lidão ? O frio, a fome, o sol e o calor, tudo eles
suportaram, sem ter ninguém que os pudesse ali­
viar, senão Deus só. Acreditais qué eram de ferro ? ...
Crede-me, minhas filhas, quando começarmos a ven­
cer este miserável corpo, ele nos atormentará muito
menos ... Que nos importa morrer ? Quantas vezes
tem o corpo zombado de nós : não é justo que zom­
bemos algunia vez dele ? ' 190
Certamente não! A Santa não é condescendente pa­
ra com nosso corpo. O tesouro da contemplação se paga!
Mas a mortificação corporal não basta; deve ser
reforçada e animada pela mortificação interior. Ainda
aqui, Teresa B.ão se detém em meias medidas :
" Trabalhemos pois em contradizer nossa vontade,
em tudo ... Não parece muito duro, entretanto, dizer
que não devemos procurar nossa satisfação em na­
da ? Por que não evocar ao mesmo tempo os gostos
e as delícias que resultam desta renúncia, tudo o
n
que aí se ganha desde esta vida ? 19 1
A vida de obediência total nos fará praticar profun­
damente este despojamentq de nossa vontade própria
mas, por sua vez, a humildade nos virá em ajuda, para
aperfeiçoá-la e conduzi-la ao termo.

188 Manuscrito do Escurial.


189 Caminho d� perfeição, cap. 11, n. 2.
190 ld., ibid., cap. 11, nn. 2-4.
191 Id., ibid., cap. 12, n. 3.

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A humildade profunda

Quão vasto é o papel da humildade! Ela liberta de


tantas mesquinharias e inúteis preocupações. Quantas
almas se perturbam no exercício de suas ocupações por
falta de humildade! Quantos malogram de medo de não
ter bom êxito! Contentemo-nos, pois, uma vez por todas,
com o que somos! "A humildade é a verdade", diz S.
Teresa. Ela, tão viva e- inteligente, não tem acertado em
tudo e jamais pôde habituar-se ao código dos costumes
mundanos. Falando às grandes senhoras, ela se atrapa­
lhava nos títulos de nobreza e lhes dizia "Vossa Graça n
quando deveria dizer "Vossa Excelência n . Entretanto,
ela o fazia com tanto encanto qué Suas Senhorias não
podiam ofender-se com isto. 192
Ela não era mais hábil nas cerimônias do coro - e· até
cantava mal. Na Encarnação, se perturbava de tal modó
quando era preciso entoar a antífona, que não conseguia
quase nada. Falta de humildade! dirá mais tarde; e acres­
centa que fez muito melhor, desde o dia em que se des­
prendeu do resultado. 193 Entretanto, quando fundou seus
mosteiros, julgou mais oportuno poupar esta preocupa­
ção às suas filhas e introduziu o "recto tono n ! 194
Mas a humildade deve enfrentar combates ina_is im­
portantes. Teresa sabe que as preeminências e os pontos
de honra encontram também acesso junto das religio­
sas. Não somente entre as monjas! A Santa recorda que
mesmo "os sábios têm seus graus de precedência, segun­
do sua erudição. :e um costume do qual nada entendo",
diz a Santa, "mas se um deles chegou à cadeira de Teo-

192 Vida, cap. 37, n. 10. Ver suas reflexões sobre as etique­
tas do mundo.
193 Id., ibid., cap. 31 , n. 23.
194 Constituições, Da ordem a obseivar quanto às coisas
espirituais : "O canto será sempre em tom uníssono e sem mo­
dulações". (.N. do T. : O papa S. Pio X, na reforma litúrgica,
incentivou os mosteiros a adotarem o canto gregoriano. Assim,
foi ele introduzido nos cannelos teresianos).

85
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logia, não deve mais baixar para ensinar Filosofia, por­
que o ponto de honra quer que suba e não desça " . 19s
Teresa ensina também às suas filhas reagirem com todas
as suas forças contra as tentações do orgulho.

" Se vos quereis vingar do demônio e vos livrar mais


prontamente da tentação, deveis não somente avan­
çar interiormente na humildade... mas, por vossos
atos exteriores, fa,zer de modo que vossa tentação
reverta em proveito das irmãs. Assim, quando esta
vos assaltar, pedi à priora que vos mande fazer al­
gum ofício baixo, qualquer ato de humildade... es­
tudai a maneira de dobrar vossa vontade nas coisas
que vos contrariam, e que o Senhor vos descobrirá;
deste modo, a tentação durará pouco". 196
Isto ainda não basta, pois que Teresa nos pede para
jamais defendermos nossos pretensos " dire�tos" :

" Todas as pessoas que querem tender à perfeição


devem fugir, mil léguas, de palavras como estas: 'Ti­
ve razão - Procederam mal comigo - Não havia
nenhum motivo para me tratarem assim ...' Era j us­
to, por acaso, que nosso bom Jesus sofresse tantas
afrontas e que se lhe fizessem tantas injúrias? ... Que
veio fazer no mosteiro a religiosa que não quer su­
portar senão as cruzes que tem merecido? Eu o ig­
noro! Que ela volte ao mundo; mas lá também to­
das as suas pretensões não a porão ao abrigo da
n
prova . 197
-2 preciso, pois, convencer-se disto: o Carmelo é uma
escola de ascetismo. Nele se exige da alma a prática das
mais altas virtudes! Teresa irá até ao ponto de pedir ex­
pressamente às suas filhas não se escusarem, quando
acusadas sem razão: "� uma grande humildade calar-se,
quando se é condenada sem motivo, porque· então se se-

195 Caminho de perfeição, cap. 36, n. 4.


196 ld., ibid., cap. 12, n. 7.
197 Id., ibid., cap. 13, n. 1.

86
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guem os passos do Salvador, que se carregou dos nossos
pecados". 19s O amor de Jesus toma tudo possível.
- Mas, enfim, por qu� tanta insistência sobre a práti­
ca da humildade? Teresa quer dar (xeque ) "mate" ao
Rei divino; ela quer forçá-lo a se dar à alma. "Neste
jogo é sobretudo a dama quem lhe faz a guerra... Pois
bem! Não há dama que obrigue o Rei divino a se render,
como a humildade ... Crede; aquela que for mais humil­
de, mais o possuirá". 199
Concluiremos com razão: o edifício da oração que a
Santa quer elevar repousa sobre fundamentos muito só­
lidos; as virtudes que ela nos propõe não são ordinárias
e sim profundas, perfeitas, heróicas. Teresa conhece a
variedade das almas : algumas caminham " como pintai­
nhos, com pés embaraçados", outras ao contrário, "levan­
tam seu vôo como águias". 200 A Santa quer que suas fi­
lhas não sejam pintainhos, mas que se lancem para os
cumes como as águias. Mas a águia tem a vista pene­
trante; eleva-se bem alto na luz resplandecente e tem a
obsessão de sua radiante claridade.
Se a alma chega a se alçar da terra, por um perfeito
desprendimento, não será justo que também seja mer­
gulhada na luz da amorosa contemplação?

A oração ativa

Até aqui, expusemos apenas um só aspecto de nossa


preparação à intimidade divina. O trabalho do despren­
dimento absoluto deve ser acompanhado de outro que
o vivifica e estimula: o despreendimento praticado
por amor quer ser nutrido pela oração, que desenvolve
o amor. O desprendimento liberta, esvazia o coração do
amor-próprio; a oração o enche do amor divino, de amor
198 Id., ibid., cap. J S, n. 1.
199 Id., ibid., cap. 16, n. 2. .
200 Vida, cap. 39, n. 12.

87
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ativo, enquanto aguarda que apraza a Deus dotá-lo do
amor passivo.
Para Teresa, a oração mental é a preparação mais
próxima à intimidade divina, o começo de uma intimi­
dade procurada pela alma, mas que um dia, - se aprou­
ver a Deus - tornar-se-á mais profunda pela operação
do Espírito Santo.
Teresa insiste muito sobre a necessidade absoluta
da oração para a alma que se quer preparar para a
contemplação: "Minhas irmãs, fazei a oração mental! ...
aquelas que não o éonseguirem dedicar-se-ão à oração
vocal. à leitura e colóquios com Deus... Não deixeis as
h.aras de oração marcadas para todas". Segue uma ad­
vertência característica: "Não sabeis em que nioment?
o Esposo vos chamará; procurai evitar a sorte das vir­
gens loucas". 201
A apliµição assídua à oração desenvolve o amor.
Para S. Teresa, com efeito, a oração é, antes de tudo,
um exercício de amor. Muitas veze� diz claramente que
consiste " não em pensar muito, mas em muito amar",
dando, assim, uma espécie de definição. Explica como
vê aí o grande meio de aprofundar-se na intimidade di­
vina: " A oração é um comércio de amizade, onde nos
entretemos sempre intimamente com Quem sabemos nos
ama n . 202 Estar com Deus, falar-lhe intimamente, eis para
Teresa toda a substância da oração mental. O discurso
intelectual será certamente proveitoso, em muitos casos,
porque serve para despertar o amor, mas permanece
em tudo subordinado ao exercício afetivo. Na oração, a
vontade é a rainha, porque dela procede o amor; fazer
oração é dizer a nosso Senhor que o amamos e que
queremos efetivamente amá-lo.
Uma coisa tão simples não requer, de modo algum,
µma grande inteligência; basta ter um coração, mas um
coração sadio que saiba aniar a Deus. Então, é preciso
fazer trabalhar este coração. Escutai como Teresa ensi-

201 Caminho, cap. 18, n. 4.


202 Vida, cap. 8, n. 5.

88
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na a algumas de suas filhas que acham a meditação di­
fícil. Um primeiro ponto, muito . importante desde o prin­
cípio da oração, é o de se pôr bem em presença de Deus;
em seguida, tudo se reduz a um amoroso colóquio com
o Senhor: "Não vos. peço fixar vosso pensamento nele,
nem fazer numerosos raciocínios, ou altas e sábias con­
siderações. O que vos peço é pousar sobre ele o olhar
de vossa alma... considerai-o atado à coluna, cheio de
dores, todo o corpo flagelado, pelo grande amor que vos
tem. Ele volverá para vós seus olhos tão belos e . com­
passivos, cheios de lágrimas. Esquecerá seus sofrimen­
tos para vos consolar dos vossos, para que... volvais a
cabeça para ele a fim de o contemplar... Vendo-o em
tal estado, vosso coração se enternecerá... ser-vos-á
uma alegria entreter-vos com ele, não com orações es­
tudadas, mas com a linguagem do coração... Podereis
lhe dizer :
"ô meu Senhor e meu Bem-amado, como estais re­
duzido a tal estado ? ... Como é possível que admitais
em vossa presença, em vossa companhia uma mendi­
ga como eu? Vejo em vossa face que vos consolais
de me ver perto de vós ... E já que consentis, Senhor,
em suporar tantos sofrimentos por amor de mim,
que é que eu suporto por vós? ... Caminhemos jun­
tos, Senhor, por onde fordes eu também irei ; por
onde passardes hei de passar ". 203
Quem não vê? Tal maneira de rezar é todo um
exercício de amor afetivo, que excita o amor efetivo e a
resolução prática de querer sofrer por Jesus. Sim! Na
verdade, semelhante oração é fonte de generosidade.
Mas o amor tende à intimidade e a gera. A alma
sente a necessidade de ter seu Deus mais perto de si e
pouco a pouco se habitua a considerá-lo dentro de si
mesma. Teresa nos fala de outra espécie de oração
ativa, mais perfeita que a primeira: é o recolhimento
ativo. A base desta oração é a presença de Deus em nós,

203 Caminho, ·cap. 26, nn. 3-6.

89
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mas isto pressuposto, a alma deve fazer duas coisas: afas­
tar-se da criatura e aproximar-se de Deus de todo o co­
ração.
Teresa desej a imprimir no espírito de suas filhas,
menos instruídas, em razão da sua condição de mulher,
esta grande e consoladora verdade, que é a presença real
de Deus em nós: " Há dentro de nós alguma coisa incom­
paravelmente mais preciosa que o que vemos fora pelos
sentidos. Não imaginemos que todo nosso interior é va­
zio! ... " E acrescenta: " Praza a Deus, não sej am apenas
as mulheres a ignorar esta verdade! " 204 Com efeito, a
Santa havia encontrado algum teólogo que ignorava uma
verdade sobrenatural tão importante para a vida espiri­
tual. Também quanto não se decepcionou com estes
meio-letrados? Um dentre eles lhe disse que Deus não
estava em nós, senão por meio da graça que em nós
produz. Mas Teresa, que tinha a experiência mística pes­
soal da presença real de Deus na alma, estava ( como nar­
ra ela mesma) de tal. modo persuadida desta verdade,
que não o pode crer. " Depois interroguei outras pessoas,
que me disseram a verdade e fiquei, com isto, muito
consolada". 205 Pois que Deus habita realmente em nós,
a Santa ensina a nos recolhermos no pequeno céu in­
terior de nossa alma e a conversar com ele, muito inti­
mamente: " Tratai com ele como com um pai, um irmão,
um mestre, um esposo, umas vezes sob um aspecto, ora
sob outro ... Não sej ais tolas de nada lhe pedir! Desde
que é vosso esposo, deve manter a palavra e tratar-vos
como suas esposas". 206 Estando tão perto de Deus, não é
necessário multiplicar palavras: " Quando antes precisá­
vamos recitar muitas vezes o " Pater" para nos fazermos
entender dele, agora, entender-nos-á desde a primeira
vez... Ele não gosta que quebremos a cabeça. para lhe
dirigir longos discursos". 207 Esta é a oração já muito

204 ld., ibid., cap. 28, n. 10.


20S Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas". cap, 1,
n. 10, cf. Vida, cap. 18, n. IS.
206 Caminho de perfeição, cap. 28, n. 4.
207 ld., ibid., cap. 29, n. 6.

90
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tranqüila e simplificada, chamada pelos teólogos moder­
nos " oração de simples olhar", e que· .a escola teresiana
designa sob o nome de contemplação ativa ou adquirida.
Pode-se. chamá-la "contemplação" porque a alma, reco­
lhida em Deus, se contenta habitualmente com a atitude
de um simples olhar amoroso, antes que com o apro­
fundar raciocínios num mistério particular; mas trata-se
de uma contemplação adquirida pela alma. Toda influên­
cia dos dons do Espírito Santo não está dela excluída,
certamente, mas esta influência permanece escondida à
alma e não cria nela uma nova experiência psicológica.
Não se trata, portanto, de mística propriamente dita.
Todavia a mística não parece mais afastada. Teresa
nota a este propósito:
"Ali, o divino Mestre virá mais prontamente instruí­
-la e dar-lhe a oração de quietação ... Aquelas que,
dentre vós, puderem se encerrar assim no pequeno
céu de sua alma... seguirão, creiam-me, uma via ex­
celente; chegarão certamente a beber, na fonte de
água viva". 208
Sim, a oração mística está próxima sob a condição,
porém, de que a alma seja plenamente generosa. :e. pre­
cisamente nestas páginas que Teresa formula mais cla­
ramente seu princípio de ascese cont�mplativa: "Deus
não se dá totalmente se a alma não se dá totalmente a
ele ". 209 A alma deve se dar inteiramente, mesmo na bus­
ca ativa da intimidade divina. Não pode restringir seu
esforço somente às horas de oração mental, mas, duran­
te todo o dia, procurará manter-se em companhia do
Senhor: "Devemos nos retirar de nós mesmos, em meio
de nossas ocupações", diz Teresa, dando ainda a receita
prática para a alma desejosa de cultivar o recolhimento:
"Se ela fala, lembrar-se-á que tem em si mesma, al­
guém com quem falar; se escuta, recordar-se-á que
deve prestar ouvidos àquele que lhe fala mais de
208 lei., ibid., cap. 28, nn. , 4-S.
209 Id., ibid., cap. 28, n. 12.

91
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perto. EJ]fim, constatará que pode, se o quiser, per­
manecer sempre com Deus... Se nisto vos aplicar­
des, minhas irmãs, consegui-lo-eis, com a ajuda de
Deus, dentro de um ano ou, talvez, em seis me­
n
ses . 210
Um exercício contínuo da presença de Deus deve,
pois, acompanhar o exercício generoso e heróico da vida
virtuosa.
A oração e a prática das virtudes são como dois
braços que se estendem simultaneamente para o Senhor...
e ele, deseja tanto se comunicar às almas, como poderia
resistir aos suspiros de um coração verdadeiramente
bem disposto?

Conclusão

O " caminho de perfeição" de Teresa de Jesus é um


convite à generosidade.
Propondo-nos um ideal moral elevado ......,. a doação
total de nós mesmos a Deus, sacrificando-nos inteiramen­
te aos interesses da santa Igreja - Teresa nos indica a
via mais breve para atingir esse cume. Esse caminho
mais rápido, esse " atalho " é a via da contemplação. Te­
resa sabe que este não é o caminho de todas as almas,
e que se pode chegar à santidade sem oração mística.
Entretanto, ela crê que Deus concede habitualmente esta
graça à alma que se dispõe generosamente a recebê-la.
Ela não quer que, por sua culpa, suas filhas deixem de
ser elevadas à contemplação. Convidando-as para uma
preparação adequada, lhes propõe uma ascese q_ue -
pelo desprendimento perfeito - as libertará de toda afei­
ção criada, e as levará ao encontro da união divina,
por mn exercício contínuo de oração amorosa.
A ascese de S. Teresa é uma ascese total; total e
não rígida: ela nasce, em verdade, do espírito de amor,
210 Id., ibid., cap. 29, n. 7.

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do desejo de intimidade divina e quer dar tudo ao Se­
nhor, porque " Deus não se dá totalmente, se a alma
não se dá totalmente a ele... " A grande austeridade que
esta ascese exige é uma conseqüência de ardente desej o
de Deus. O espírito de amor não é um espírito de rigidez;
não é frio, nem duro - porque o amor toma tudo amá­
vel - mas sabe ser extremamente exigente. A ascese do
Carmelo é, portanto, árdua, porque quer conduzir a al­
ma a essa plenitude de intimidade amorosa com Deus,
para a qual se requer um coração livre da criatura.
Certamente o Carmelo tende à contemplação, mas
proclama altamente que é a vida generosa que prepara a
alma para ela. Nutrir o desejo da contemplação sem
abraçar a via de nudez espiritual é algo a que falta o equi­
líbrio. A contemplação não é encontrada. em todas as vias
que tendem à perfeição; normalmente ela não será con­
cedida à alma que foge dos caminhos árduos, mas àquela
que galga a áspera vereda, subindo reto, bem reto o lado
escarpado do Carmelo. A contemplação não é dada a
quem anda " a passo de galinha"; é destinada às águias
que se lançam da terra para sobrepairar, com o olhar
fixo no sol divino, esquecendo e desprezando os vãos
prazeres do mundo. A contemplação se acha na via ele­
vada da santidade perfeita. " 1! verdade", afirma a Santa
com vigor, " a santidade pode ser atingida sem a con­
templação". Acrescenta que algumas vezes, mesmo a
alma generosa provará apenas pequenos goles da água
viva da iluminação divina; mas é certo que muitas almas
não são elevadas à contemplação por sua própria culpa,
uma vez que elas não abraçam com plena generosidade
a ascese enérgica que lhes conferem as disposições ne­
cessárias.
Mesmo nesta via elevada da perfeição, não o esque­
çamos, nosso primeiro devér é a observância da lei di­
vina e eclesiástica. 1! preciso também condenar absolu­
tamente o pseudomisticismo que pretende não observar
a letra da lei, para se engolfar mais no espírito... não
da lei, mas no espírito próprio, bem distinto do espírito
de Deus. Entretanto, ainda aderindo à lei, há uma gran-

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de diferença, como diz a Santa, entre observar e obser­
var; entre fazer parcimoniosamente o estrito necessário
para não pecar e o dar-se totalmente ao trabalho, ao
ofício, à prática das mais altas virtudes. Para nos pre­
pararmos para a contemplação é preciso a observância
plena e perfeita, magnânima e generosa da lei. Assim
diz a Santa: " Persuadi-vos de que, para adquirir isto de
que falo, quer Deus que não nos reservemos nada. Pouco
ou muito, reclama tudo para ele " . 21 1
Em seus escritos, Teresa quer elevar-nos a um pla­
no moral superior, a uma vida mais fecunda e mais
plena de virtudes heróicas. Procura, como diz ela mesma ,
" atrair para este bem tão grande, que é a contempla­
ção",2 12 a fim de nos decidir a viver mais inteiramente
para Deus. Quem, com freqüência, lê os seus escritos,
deverá sofrer a influência benfazeja desse coração ar­
dente, sedento de totalidade e que se sente pulsar em
todas as páginas de seus livros: "Cum sanctis sanctus
eris ". 213 Aprendamos de Teresa a não limitar nosso ho­
rizonte, não restringir nossas aspirações, nem marcar
passo na mediocridade, mas ao contrário, desejar a vida
profunda e abundante, a vida de total e íntimo amor,
onde a alma se dá a Deus e Deus se dá à alma. Tal
vida é divinatnente fecunda, rica em frutos espirituais
para toda a santa Igreja.
Eis os cimos descobertos ao nosso olhar e ao nosso
coração, por S. Teresa de Jesus: e se esse ideal não é
sempre plenamente realizado aqui na terra - desde
que a oração mística é um dom gratuito e a via da con­
templação não é a única que conduz à santidade - pou­
co importa ! Nossos esforços jamais serão baldados! "Se
nos renunciamos em todas as coisas, se tomamos a cruz
e seguimos Jesus", 214 não é por amor da contemplação,
mas por seu único amor!

211 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas n, cap.


l, n. 3.
212 Vida. �p. 18; n. 8.
213 SI 17,26.
214 Mt 16,24.

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O CASTELO INTERIOR

Era necessário um complemento ao Caminho de


perfeição, o precioso livro de educação espiritual da ma·
dre Teresa de Jesus. Propor às almas o ideal contem­
plativo e ensinar-lhes a via que conduz à intimidade di­
vina não basta; é preciso guiar nesse misterioso cami­
nho da contemplação aquelas que Deus nele introduz,
ajudando-as a melhor aproveitar desse celeste favor e
pondo-as em guarda contra as possíveis ilusões. Educa­
dora perfeita, Teresa de Jesus não se podia subtrair a
essa obrigação. Seu livro da Vida, quase contemporâneo
do Caminho de perfeição, a isso corresponde, é verda­
de, até certo ponto. Nele, a Santa explica os diversos
graus de oração mística, acrescentando às suas descri­
ções, abundantes conselhos práticos. 21s Mas este livro,
tendo um caráter biográfico, não podia conveniente­
mente ser posto, em vida da Madre, entre as mãos de
suas filhas; a um grande número destas, estando eleva­
das à oração mística, tornava-se necessário algum escri­
to apropriado à sua direção.
Ninguém era mais apta para isto que a mesma San­
ta, tão experimentada nas vias da oração. Esta foi tam­
bém a opinião de Pe. Graciano, o qual lhe ordenou re­
tomar a pena. 216 Sua obediência enriqueceu a literatura
religiosa de uma inestimável j óia.
Quando escreveu seu Castelo interior, Teresa con­
tava sessenta e dois anos e, sob todos os pontos de vis-

215 Vida, caps. 11-21.


216 Ver no prefácio da edição italiana do Castelo interior ou
moradas, a ocasião que motivou essa ordem, exposta pelo mes­
mo Pe. Graciano.

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ta, atingira a plena maturidade. Eram passados treze
anos desde a primeira redação do Caminho de perfeição;
há cinco anos gozava a Santa, em plenitude, da vida
mística e vivia de experiência o estado de -matrimônio
espiritual. Entrementes, de quantas almas tinha ela re­
cebido íntimas confidências, quantas tinha dirigido, por
seus conselhos maternais e doçura de sua autoridade,
para os cumes da mais sublime perfeição! Ei-la, pois,
rodeada de uma legião de elite, que se chamam " suas
filhas", uma vez que todas foram nutridas e educadas
por ela. Elas esperam que sua Mãe ponha a última de­
mão no trabalho de ensinamento, para o qual o m�smo
Deus a preparou e instruiu.
No dia da festa da Santíssima Trindade, do ano
1577, 217 numa cela solitária mas agradável do mosteiro
de Toledo, 218 Teresa, movida pela obediência, pôs-se a
descrever as moradas de seu Castelo interior.
Há um ano que habita este mosteiro, nele perma­
necendo reclusa por ordem do padre geral João Batista
Rossi. 219 Encontramo-nos, com efeito, no meio mesmo
da tempestade que sacudiu a Reforma teresiana até em
seus fundamentos.
Estava longe o tempo em que o padre geral se com­
prazia em chamar Teresa " sua filha" ; 220 presentemente,
enganado por informações falsas, ele se mostra severo
e descontente. O coração de Teresa chora. 221 Ah! isto é
apenas o principio! Logo a tempestade se desencadeará
e a Rofonna correrá o maior perigo. Quanta angústia
para a pobre Madre!
� precisamente nesta época que ela edifica seu Cas­
telo. Terminá-lo-á em Avila no mês de novembro do mes­
mo ano, quatro dias antes de João da Cruz, confessor
do mosteiro da Encarnação da mesma cidade, ser preso

217 Castelo interior ou moradas, prefácio, n. 3.


218 Cartas (5 de outubro de 1576), Ed. Silvério, tomo VII,
p. 301.
219 Id., ibid., (30 de dezembro de 1575), Ed. Silvério, tomo
VII, J>. 205.
220 Fundações, cap. 2, n. 1.
221 Maria de S. José, Livro das recreações, recr. 9, p. 99.

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e encerrado em um obscuro cárcere do convento de
Toledo. 22? O livro escrito em meio de tal borrasca é
de uma maravilhosa serenidade. Na verdade, os aron­
tecimentos humanos não podem abater essa verdadeira
esposa de Jesus! Ela pode sofrer e até morrer, sim!
Bater em retirada, nunca! Toda inflamada por seu ideal
de conduzir as almas à mais alta santidade, - como se
nada estivesse acontecendo, como se o céu estivesse lím­
pido, - tranqüila e serena, traça a via da intimidade
divina. Na profundeza em que ela vive, nada mais pode
p�rturbar-lhe a paz.
Quem não se sentiria plenamente confiante junto de
semelhante mestra de vida espiritual ?

O palácio da intimidade divina

O " castelo interior" é o �alâcio da intimidade divina.


A alma pode ser comparada a um castelo de cris­
tal, onde diversas séries de aposentos ou moradas cir­
cundam uma câmara central na qual reside o Senhor
do castelo: Deus, sol radioso que pode fazer cintilar o
cristal e o tornar participante da mesma luz divina.
Deus está sempre presente na alma, ainda mesmo que,
por infelicidade, tenha ela caído em pecado mortal; nes­
te caso, o pecado cobre de pez o cristal da alma, tor­
nando-o impenetrável à luz divina: tudo se toma tene­
broso, obscuro, negro! 223 " Imaginai um cristal ", diz Te­
resa, " que é exposto aos raios do sol, após ter sido co­
berto com um pano muito negro; ainda que o sol dar­
dejasse sobre ele, sua luz não faria resplandecer este
cristal". 224 Mas apenas a alma entra em contato com

222 Cf. Pe. Bruno de Jesus Maria, Saint Jean de la Croix,


Paris, 1929, cap . 12, "A Grande Tempestade de Provações", p .
162ss.
223 Castelo interior ou moradas, "Primeiras Moradas", cap. 2.
224 Id., ibid., n. 3.

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Deus, o sol divino envia sua luz através de todo o cas­
telo. J! verdade que nos aposentos mais afastados a
luz será mais velada, enquanto nos mais próximos do
centro é mais abundante e mais clara. Nenhuma parte
do castelo dela fica privada, pois que em todas a luz e
o calor do sol se fazem sentir.
A alma entra neste palácio iluminado quando pro­
cura tomar contato com este grande Deus que habita em
seu centro, isto é, quando pratica a oração mental.
A oração é, se assim podemos dizer, " a porta de en­
trada" do castelo. 225 Com efeito, por ela a alma se apro­
xima da intimidade divina, se expõe aos raios do sol
divino e dele recebe, naturalmente, mais abundante ilu­
minação. Mas como a luz divina se derrama em maior
quantidade nos aposentos centrais, a alma que se toma
mais interior é também mais esclarecida e mais facil­
mente tem consciência disso.
Há, pois, graus de oração, que nos fazem experi­
mentar a vida de Deus em nós. Eles correspondem, de
certa maneira, às diversas etapas da vida interior da alma.
Veremos, segundo a exposição mesma da Santa, que ela
não considera estes diferentes modos de oração como
estritamente ligados ao progresso na santidade; estão,
todavia, ordinariamente tão unidos ao desenvolvimento
da vida interior generosamente vivida, que se pode atri­
buir aos diversos graus de contemplação uma época de­
terminada da vida espiritual. Os estágios do progresso·
espiritual aparecem, pois, como o substrato conatural dos
diferentes modos de oração. Além disso, a palavra "Mo­
radas" tem, para a Santa, dupla significação. Indica,
e sempre de preferência, os graus de oração; entretan­
to, serve também, em muitos lugares, para designar os
degraus do progresso espiritual, que são como o am­
biente conatural onde se exercitam as diversas orações
e o fundamento sólido sobre o qual elas se apóiam.
Com efeito, Teresa jamais esquece que toda vida de
oração deve ser fundada sobre o exercício contínuo das

225 Id., ibid., cap. 1, n. 7.

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virtudes. Através de tudo, permanece sempre sua prin­
cipal preocupação: conduzir a alma para uma vida de
doação total de si mesma a Deus.
Se em seu livro ascético, o Caminho de pe,jeição,
ela convida . à generosidade a fim de chegar à contem­
plação, no Castelo, consagrado à exposição das graças
místicas, sua preocupação é mostrar que a vida de amor
consiste mais em dar que em receber, e que o grande
valor das graças místicas está no fato de que elas ele­
vam a um plano moral superior; sim, elas nos levam a
uma imolação mais completa de nós mesmos ao serviço
de Deus.

As sete "Moradas" e as três vias

Dada esta espécie de paralelismo estabelecido pela


Santa, entre as diversas espécies de oração e graus da
perfeição uma boa maneira de se orientar no "castelo
interior" é determinar a relação existente entre as sete
séries de "Moradas" descritas pela Santa e as três vias
de perfeição, que a tradição espiritual distingue ordina­
riamente.
Seguindo aqui a opinião do Pe. Baltazar de S. Cata­
rina, 226 o eminente comentador carmelitano do Castelo
interior, classificamos as três primeiras Moradas na via
dos principiantes. As "Quartas Moradas" correspondem
à via dos adiantados, enquanto as últimas - quintas,
sextas e sétimas - pertencem à via unitiva, isto é,
dos perfeitos. Este último ponto parece evidente, uma
vez que S. Teresa mesma afirma, a propósito das quintas
Moradas, que a alma nelas pode entrar pela perfeita con-

226 Pe. Baltassare di S. Caterina da Siena, Splendori riflesse


di sapienza celeste vibrati da gloriosi gerarchi. Tommaso d'Aqui­
no e Teresa di Gesú sopra il C{lStelo interiore e Místico Gif!.rdino
meta/ore delta Santa, Bologne, 1671, cf. pp. 28 e 69ss.

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formidade de sua vontade com a vontade de Deus. m
Ora, sabemos que, para a Santa, semelhante conformi­
n
dade constitui a perfeição moral. As "Quintas Moradas
pertencem, pois, aos perfeitos. De outro lado, as três pri­
meiras Moradas consideram a alma desde o momento em
que entra na vida espiritual, para conduzi-la a um estado
em que se enraíza no temor· de Deus, ao ponto de poder
concentrar todas as suas preocupações no progresso es­
piritual. Os teólogos místicos vêem, ordinariamente,
tal disposição como o indício da passagem à via ilumina­
tiva. Esta, ou via dos adiantados, começa, portanto, após
n
as "Terceiras Moradas J! a esta etapa iluminativa da
vida espiritual que são propriamente atribuídas às "Quar­
tas Moradas ".

A Santa se detém pouco ao considerar as " Primeiras


n
Moradas , isto é, a via dos principiantes. Neste novo
livro tem a intenção de tratar especialmente das graças
místicas, as quais não se encontram ainda nestas três
primeiras "Moradas " . Procurando ünicamente completar
nossa síntese doutrinal, com a ajuda dos elementos de
seu ensinamento místico, contentar-nos-emos pois, em
recolher dessas três "Moradas " algo com que se possa
compreender toda a estrutura do "castelo".
n
As almas que habitam as " Primeiras Moradas não
estão bem adiantadas! " Elas estão ainda impregna­
das do espírito do mundo, mergulhadas em seus pra­
zeres, inebriadas de suas honras e ambições. Os sen­
tidos e as potências, que são os vassalos da alma,
não têm mais a força natural com a qual Deus os
tinha dotado; estas almas são facilmente vencidas,

227 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas", cap. 3,


nn. 4-5.

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apesar dos seus desejos de não mais ofender a
Deus e de suas mesmas boas obras". 228
Elas não são também muito esclarecidas: "Nestas
'Primeiras Moradas', ainda quase nada recebem da luz
que sai do centro do palácio do Rei. Não estão comple­
tamente nas trevas, nem negras, como quando a alma
está em estado de pecado, mas permanecem, �ntretanto,
em uma certa obscuridade". :e. o resultado de todas as
solicitudes mundanas da alma, "preocupada com os
bens terrenos, honras e negócios". Se quer progredir e
entrar nas "Segundas Moradas" deve "se desprender dos
cuidados e negócios que não são indispensáveis". 229 Em
resumo, nas "Primeiras Moradas", a alma, se bem que
em estado de graça, está muito dividida entre Deus e o
mundo, não praticando ainda a vida interior; esta só
começa nas "Segundas Moradas".
Aqui, a alma se dá de maneira regular à oração
mental, isto é, à meditação; aplica-se em aprofundar,
por meio de suas faculdades, as grandes verdades da fé,
as quais servirão de fundamento à sua nova vida - o
exercício da penitência ajuda a nutrir a tendência para
a generosidade. Realmente, dela temos grande necessi­
dade na vida espiritual, e desde o princípio Teresa quer
nos habituar a dar antes que receber. Então se poderá
enfrentar com mais coragem as dificuldades causadas
pela aridez, que bem depressa visita a alma.
Não é preciso procurar as consolações! Absoluta­
mente! "A única ambição daquele que começa a se dar
à oração, deve ser trabalhar por se fortalecer nas boas
resoluções e não negligenciar nenhum meio para tomar
sua vontade conforme com a vontade de Deus". 230
Sim! Esta é a única coisa necessária! "Quanto mais
esta conformidade for perfeita, tanto mais Deus vos
cumulará de graças � maiores serão vossos progressos

228 ld., ibid., "Primeiras Moradas", cap. 2, n. 1 1.


22 9 Id., ibid., n . 13.
230 Castelo interior ou mm-adas, "Segundas Moradas", cap.
1, n. IS.

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na via da perfeição". Apraz-nos mostrar aqui como, des­
de o princípio do caminho que conduz ao centro do
castelo, Teresa tem em vista, não as consolações divi­
nas, mas a conformidade de nossa vontade com a de Deus.
Durante o trajeto, nós a veremos manter suas posições,
afirmá-las com um vigor sempre crescente e delas pene­
trar as páginas sublimes das últimas "Moradas".
Eis-nos, porém, apenas no termo ãa via purgativa.
Teresa nos descreve as almas que acabam de entrar nas
"Terceiras Moradas":
" Elas têm wn desejo ardente de não mais ofender
o Senhor; mantêm-se mesmo em guarda contra os
pecados veniais; dedicam-se à mortificação; têm
suas horas de recolhimento; empregam bem seu
tempo; são caridosas para com o próximo, ponde­
radas em suas palavras, ordenadas em seus modos
de trajar, e quando se acham à frente de uma casa,
a governam com sabedoria". 231
São por conseguinte, almas das quais pode-se dizer
que entraram plenamente na vida espiritual. Sua oração
própria é a meditação simplificada, chamada por Teresa,
oração de recolhimento. Teresa acredita que elas podem
nutrir as mais belas esperanças: " Este estado é digno de
inveja, pois parece que nada as impedirá de chegar até
à última "Morada". Se o querem, nosso Senhor não lhes
recusará a entrada! " 232 A última "Morada" estaria, en­
tão, bem próxima? Certamente que não! Ser-lhes-â neces­
sário muito esforço antes de atingi-la!
Teresa trata com uma ponta de malícia estas almas
que caminham sempre a "passo de galinha". " Se pudés­
seis, minhas filhas, empregar oito dias para ir de um
país a outro, seria razoável gastar um ano sob chuva e
neve, expondo-se a todos os incômodos das hospedarias
e do caminho? ... " Amavelmente ela caçoa de tanta len­
tidão!

231 Id., ibid., "Terceiras Moradas", cap. 1, n. S.


232 ld., ibid.

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"As pessoas das quais falo, têm suas penitências tão
,bem reguladas quanto o seu modo de proceder.
Querem muito à vida, a fim de empregá-la no ser­
viço do Senhor, dizem elas... Não temais que se ma­
tem; estão ainda muito em sua razão e o amor ainda
não é bastante forte para as pôr fora de si. Quanto
a mim, preferiria que nossa razão nos levasse a não
nos contentarmos com essa maneira de servir a
Deus, sempre tão lenta, a ponto de nunca chegarmos
ao termo do caminho". 233
"Se o queremos", dizia ela mais acima. Sim! Mas é
preciso, antes de tudo, querer ser generosos, e depois
outra coisa ainda: não se impacientar se aprouver ao
Senhor manter fechada a porta do aposento onde ele
reside. "Não peçais o que não tendes merecido", 234 diz
Teresa, que polsui a arte de nos propor um ideal muito
elevado, sem pôr nossa humildade em perigo: " Se per­
severarmos neste despojamento e abandono de todas as
coisas chegaremos, sem dúvida, ao termo dos nossos de­
sejos, mas sob a condição, que vos peço considerar bem,
que nos consideremos como servas inúteis... e que ja­
mais creiamos esteja Deus obrigado a nos conceder seus
favores... " Repete então um pensamento que lhe é caro:
" Oh! humildade! humildade! ... Eu não me posso impe­
di r de crer que é falta de humildade quando as almas se
afligem com a aridez que lhes faz sofrer". 235 Sim! Tere­
sa está bem entre aqueles que pensam que o amor con­
siste mais em dar do que em receber.
Após ter considerado a conversão da alma, de uma
vida tI'bia a uma vida generosa, sigamos os principiantes
generosos introduzidos na via dos adiantados.

233 ld., ibid., cap. 2, n. 7.


234 ld., ibid., cap. 1, n. 6.·
235 Id., ibid., cap. l, n. 7.

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As "Quartas Moradas"

A via iluminativa nos abre a região em que a con­


templação mística se desenvolve na alma. Aí assistimos
ao nascimento e ao progresso de uma nova vida, que
invade a da alma e a penetra, para transformá-la, enfim
totalmente, dela fazendo uma vida verdadeiramente di­
vina. A engenhosa Teresa se serviu de várias compara­
ções para melhor fazer compreender esse mistério da
vida sobrenatural mais profunda. Entre todas, ela prefe­
riu a da água: " Ignorante e pouco instruída como sou,
nada encontro de melhor para explicar certas coisas es­
pirituais que esta comparação da água; gosto tanto des­
se elemento e assim o tenho considerado com mais aten­
ção que os outros ". 236
Com a ajuda da metáfora da água, a Santa nos inicia
nas oropriedades da oração de quietação, característica
n
das " Quartas Moradas . Habitualmente lhe dá o nome de
"gostos de Deus ", explicando-nos como estes "gostos"
se distinguem dos "contentamentos" produzidos pela me­
ditação. Diz a Santa:
" Imaginemos que estamos diante de duas fontes que
enchem de água duas pias. A primeira recebe a água
de muito longe e é trazida por aquedutos e por nos­
sa indústria; a outra recebe imediatamente da fonte
que a enche sem nenhum ruído ... A água que vem
por aquedutos representa esses 'contentamentos'
que procedem da meditação e que procuramos por
nossas reflexões ... Uma vez que são o fruto dos nos­
sos esforços, fazem ruído quando trazem à alma
qualquer proveito espiritual. Na outra pia a água
provém da mesma fonte que é Deus; e, assim, quan­
do Sua Ma.iestade se digna conceder algum favor
sobrenatural, faz brotar no mais íntimo de nós mes­
mos a mais profunda paz, a quietação e a suavi­
n
dade . 237
236 Id., ibid., "Quartas Moradas", cap. 2, n. 2.
237 Id., ibid., nn. 2-4.

104
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O efeito desta água celeste não tarda em se fazer
sentir à alma: "Apenas começa a correr de sua fonte
que está no íntimo de nós mesmos, todo nosso interior
se alarga e dilata. As faculdades, ainda que não estejam,
ao meu parecer, unidas a Deus, estão inebriadas e como
maravilhadas; elas se perguntam o que é isto". Manifes­
tamente a alma se sente passiva, incapaz de produzir por
si mesma semelhantes efeitos : " Este não é um favor que
se possa J.maginar. Mesmo com todas as nossas diligên­
cias, não poderíamos consegui-lo, manfestando-se clara­
mente que não é do nosso metal, mas ouro puríssimo da
Sabedoria divina". 238 Em que parte da alma se experi­
menta esta passividade? A Santa é aqui muito explícita
e, nas diversas passagens de seus escritos onde trata des­
ta oração, repete sempre que a vontade aí se acha unida
a Deus. 239 Vejamos como é ela cativada: " Só a vontade
age de tal maneira que, sem saber como, se toma cativa.
Ela não faz outra coisa senão dar seu consentimento
para que Deus a segure, exatamente como alguém que
sabe bem tomar-se cativo de quem ama. ô Jesus! meu
Senhor ... como vosso amor. nos ajuda aqui! Ele segura
o nosso de tal maneira encadeado, que não lhe deixa a
liberdade de amar então, outra coisa que vós! " 240 Ven­
do seu amor voltar-se irresistivelmente para Deus, a al­
ma se dá conta de que se acha bem próxima dele: " Suas
faculdades estão em repouso. Ela compreende, melhor
que com seus sentidos exteriores, que está perto de seu
Deus e que, por pouco mais que se aproxime, tomar-se­
-ia, pela união, uma mesma coisa com ele". 241 Isto ainda
não é a união, mas Deus já se faz sentir, agindo sobre
a vontade e atraindo-a suavemente a si. Só esta faculdade
está prisioneira; as outras, a inteligência e a memória,
permanecem livres e às vezes importunam muito a alma,
perturbando com seus movimentos e divagações o pací­
fico gozo da vontade. Teresa nos ensina a não nos preo-

238 Id., ibid., n. 6.


239 Caminhos de perfeição, cap. 31, n. 3. Vida, cap. 14, n. 3;
240 Vida, cap. 14, n. 2.
241 Caminho de perfeição, cap. 31, n. 2.

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cupar com isto, mas concentrar toda a nossa atenção
sobre o amor.
A ação ··divina na alma começa, pois, na vontade,
mas pouco a pouco se desenvolve e cativa as outras fa.
culdades - ora duas dentre elas, ora as três. A oração
de quietação é, com efeito, a característica destas Mora­
das, mas há também outras. :e.
de notar antes de tudo
certo " recolhimento infuso", 242 pelo qual Deus produz
passivamente na alma uma excelente disposição pa­
ra se aproximar ativamente dele. Esta graça nos pre­
para a oração de quietação e, para Teresa. constitui a
primeira oração infusa concedida no princípio da vida
iluminativa. Outras orações desta via são descritas mais,
pormenorizadamente pela Santa no livro de sua Vida,
onde fala de uma " espécie" de "união" 243 que cativa as
duas faculdades: inteligência e vontade; mas a memória
e a imaginação permanecem livres e atormentam muito
a alma que quereria gozar tranqüilamente de sua con­
templação. No " sono das potências", 244 pelo contrário.
todas as três estão cativas e fixadas, sem, entretanto,
estarem completamente unidas; a união perfeita começa
somente nas "Quintas Moradas". Como sempre, de pre­
ferência, a Santa recorre à comparação da água. Assim
é que, falando desse elemento, diz: "Como me seria útil
poder me entreter com alguém que conhecesse a filoso­
fia. Se eu estivesse a par das propried�des das coisas,
conseguirià melhor explicar-me". 245 No " sono das facul­
dades", retoma Teresa, " a água da graça submerge a al­
ma até a garganta. ao ponto de não saber como avan­
çar nem retroceder; eu compreendia bem que não havia
aí união completa de todas as faculdades com Deus, mas
reconhecia claramente que esta união era mais perfeita
que na oração precedente ( de quietação) " . 246 A união
ainda não é perfeita, pois que as faculdades permane-

242 ld.. ibid., "Ouarta, Moradas•, cap. 3.


243 Vida. cap. 17, n. S.
244 ld., ibid., caps. 16 ·e 17.
24S Caminho d,e perfeição, cap. 19, n. 3.
246 Vi.da, cap. 16, nn. 1-2.

106
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cem .um tanto livres de agir por si mesmas, não estando
totalmente arrebatadas em Deus. "Realmente, as facul­
dades estão quase inteiramente unidas a ele, mas ·não
estão de tal modo absorvidas que não operem ainda; to­
davia, não têm então outra liberdade senão a de se ocu­
parem inteiramente com Deus " . 247 Nas orações da via
iluminantiva a passividade da alma não é, pois, ainda
completa.

A Santa nos mostra como nessas "Moradas ", corres­


pondentes à via iluminativa, e onde a ação divina se
estende gradualmente da vontade às outras faculdades,
a alma se sente sempre mais passiva sob a mão de Deus.
Eu digo propositalmente " se sente" porque, para Teresa,
esta passividade experimental é a característica da ora­
ção mística. Mesmo nas contemplações infusas inferio­
res, a operação divina em nós se toma de certo modo
perceptível à consciência: a alma se sente movida, atrai­
da. Ao constatar como esta moção por ela sofrida a leva
a se ocupar totalmente de Deus, contemplando-o amoro­
samente, conclui: � Deus quem age em mim; eu estou
bem perto dele. No recolhimento infuso que é como o
preâmbulo da oração de quietação e o grau íntimo da
oração infusa, a alma sente o influxo divino que a dis­
põe para bem rezar. Segundo S. Teresa, o caráter pró­
prio da oração mística é, portanto, esta experiência da
passividade; um critério psicológico serve à Santa para
circunscrever o campo da contemplação infusa.

A propósito do proceder psicológico da Santa, eis


uma anedota típica, narrada pelo famoso Pe. Tomás de
Jesus ao Pe. Baltazar de S. Catarina, quando este estu­
dava em Roma. S. Teresa, que consultava muitos letra­
dos de seu tempo - entre os quais o célebre Pe. Domin­
gos Baiiez - devia, às vezes, necessariamente ouvir al­
gum eco das disputas que dividiam então tomistas e
molinistas quanto à natureza da graça eficaz. Curiosa

247 ld., ibid.

101 ·
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como era a respeito de tudo o que toca à vida sobrena­
tural, deveu se mostrar interessada e... ( damos a palavra
ao Pe. Baltazar ) " posta ao corrente por alguns padres
ao assunto dessa controvérsia, como era disputada e
qual a opinião de uma parte e da outra, chegou a dizer
que praticamente sentia em si a eficácia da graça deter­
minante ". 248 Parece, pois, que a Santa tenha dado razão
aos padres dominicanos! Entretanto, o pacífico Pe. Bal­
tazar prossegue: "Mas para não tornar odiosas... as pa­
lavras de nossa Madre aos sábios padres da Companhia,
que nos são tão afeiçoados, pode-se crer que a Santa fazia
alusão a essas iluminações e moções místicas... que são
experimentalmente sensíveis". Conclui, então, o ancião:
" Quanto a mim, eu acato a todos". 249

Não devemos, pois, esquecer: quando Teresa trata


da vida sobrenatural emprega o método experimental,
psicológico. Outra maneira de agir, mais especulativa,
tê-la-ia exposto, aliás a muitos erros, pois que lhe falta­
va, para se guiar, a ciência teológica suficiente. Se, es­
tudando a Santa, levarmos isto em conta, acharemos
natural que ela se sirva de um critério experimental,
mesmo para caracterizar a contemplação mística.

Sentir em si a operação divina, ver-se próximo do


Senhor, perceber o amoroso calor deste sol que ilumina
a alma é certamente coisa muito atraente. Após ter des­
crito a oração dos "gostos divinos", Teresa acrescenta:
" Quereríeis, minhas filhas, ter imediatamente esta oração
e . é justo". Entretanto, prossegue:

" Quero, pois, dizer-vos o que compreendi a este res­


peito... Praticai a humildade e ainda a humildade.
1! por esta virtude que o Senhor se deixa vencer e
nos concede tudo o que pedimos. O primeiro sinal
pelo qual vereis se vós -a possuís é a persuasão de
que não mereceis de modo algum esses favores e

248 Sr,lendori riflessi... p. 296.


249 ld., ibid.

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gostos de Deus, assim como de que jamais gozareis
deles nesta vida". 250
:e evidente que, embora esteja persuadida de que es­
sas graças são freqüentemente comunicadas às almas
que se dispõe convenientemente, Teresa não quer que es­
tejamos muito preocupados em as obter. Nossos contí­
nuos esforços não devem tender para elas, mas, antes,
para realizar a vontade de Deus: " Somos suas, minhas
irmãs! Que ele faça de nós o que quiser, conduzindo-nos
por onde melhor lhe aprouver! " 251 Eis um princípio para
Teresa: "A perleição... não consiste nos gostos, mas é
tanto mais perleito quem mais ama a Deus e o serve
com justiça e verdade". 252 Aqui recorda o exercício das.
virtudes, que deve ser sempre a primeira e grande preo­
cupação. Jovialmente, a Santa prossegue: " Se é assim,
como de fato é, perguntar-me-eis: para que serve tratar
desses favores? ... " Responde então: " Eu o ignoro; per­
guntai àquele que me mandou escrever... " 253 Mas isto é
apenas um repente, uma vez que logo enumera vários
bons motivos para no-los fazer desejar; entre eles, mos­
tra " que esses favores... são acompanhados de tanto
amor e força que a alma pode, sem nenhuma fadiga,
avançar mais na prática das boas obras e das virtu­
des ". 254 Os favores permanecem, pois, muito desejáveis,
porque estimulam o exercício das virtudes e tornam mais
fácil o caminho do amor perfeito.

As "Quintas Moradas.,

As " Quintas Moradas" abrem a via unitiva. Enquan­


to nas "Quartas Moradas " a alma se sentia muito unida
250 Castelo interior ou moradas, "Quartas Moradas", cap. 2,
DD, �9.
251 Id., ibid., ca-p . 2, n. 10.
252 Id., ibid., "Terceiras Moradas", cap. 2, n. 10.
253 Id., ibid., n. 11.
254 Id., ibid.

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a Deus, até certo ponto, aqui a união se torna total e
a alma experimenta uma transformação em si mesma,
que a faz viver de uma vida divina. Uma deliciosa com­
paração nos dá a compreender, em conjunto, a profun­
deza da transformação que se deve realizar e a maneira
de nos prepararmos para ela. Em seu estilo pitoresco,
Teresa nos descreve as metamorfoses do bicho da seda.
"Tereis ouvido falar", diz ela, "que ele vem de uma se­
mente semelhante a grãozinho de mostarda... Nunca o
vi, mas ouvi dizer... " - seus conhecimentos de história
natural parecem verdadeiramente bastante reduzidos! -
"Se pois o que vos digo não é certo, disto não sou res­
ponsável" . Ela poderia ter-se informado melhor, mas não
sej amos muito exigentes para com uma monj a enclau­
surada! " Quando chega o verão, desde que as amoreiras
começam a se cobrir de folhas, esta semente se põe tam­
bém a tomar vida. Enquanto o alimento que deve sus­
tentá-la não está pronto, permanece como morta. Ao con­
trário, quando os vermes crescem se prendem a certos
ramos onde, com a boquinha, fiam a seda que tiram de
si mesmos. Fazem, assim, casulos muito apertados, onde
se encerram. � aí que esses vermes, grandes e feios, che­
gam ao fim da vida. Pouco depois, porém, desse mesmo
casulo sai uma borboleta branca e graciosa. 255
Eis a aplicação prática: a alma, da qual o verme é a
imagem, começa a viver quando, com a ajuda do Espí­
rito Santo, aproveita do socorro geral que Deus concede
a todos. " Quando esse verme cresce, põe-se a fiar a seda
e a construir a morada onde deve morrer" . 256 A alma
constrói sua casa imitando o Cristo, por uma vida de des­
pojamento perfeito e de virtudes generosas. Morre a si
mesma, mas prepara seu renascimento à vida divina.
" Coragem, pois, minhas filhas! Mãos à obra sem
demora! Teçamos nosso casulinho renunciando a
nosso amor-próprio, à nossa vontade e a todo ape­
go às coisas da terra, produzindo obras de penitên-

25,; Id., ibid., "Quintas Moradas", cap. 2, n. 2.


256 Id., ibid., D. 3.

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eia, de oração, de mortificação e de obediência... E
depois, que morra, morra esse verme, como o bicho
da seda, após ter realizado a obra para a quai foi
criado. Então saberemos como se contempla a
Deus ... quero dizer, a maneira pela qual ele se dá a
sentir nessa espécie de união ". 251
A união da qual fala Teresa é uma morte, mas que
faz viver em Deus. As faculdades aí estão suspensas;
não se sente mais nada, e mesmo a respiração parece
interrompida. Mas, entrementes, que vida!
" Deus se estabelece então de tal modo no mais ínti·
mo dessa alma, que voltando a si, lhe é impossível
duvidar que tenha estado em Deus e Deus nela.
Essa verdade se imprime tão vivamente em seu
espírito que, mesmo passados anos sem que Deus
lhe tenha renovado esta graça, ela não a pode es•
quecer nem dela duvidar". 258
Este é o caráter distintivo da presente união. Assim
diz Teresa: " Se falta essa certeza não se trata mais, a
meu ver, de uma união total da alma com Deus; haverá
somente união de uma ou outra das faculdades, ou en­
tão será um ou outro dos numerosos favores com os
quais Deus presenteia as almas ". 259
Sempre desejosa de perfeição moral, Teresa nos des­
creve com entusiasmo os efeitos produzidos por esta
oração:
" Quando o verme entra nesta oração e aí permane­
ce morto ao mundo, sai transformado em uma pe­
quena borboleta branca. Verdadeiramente essa alma
não se reconhece mais ... sente um desejo, que a con­
some, de louvar a Deus e de afrontar mil mortes
por ele. Ei-la que aspira a levar grandes cruzes e
esse desejo é irresistível. Tem sede de penitência,
suspira pela solidão e quereria que Deus fosse co-
257 Id., ibid., n. 6.
258 Id., ibid., "Quintas Moradas", cap. 1, n. 9.
259 Id., ibid., n. 11.

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nhecido de todos os homens; daí vem uma aflição
profunda por vê-lo tão ofendido ". 260
Uma vida muito generosa nasce desta união total;
n
todavia é apenas um princípio. As duas "Moradas se­
guintes nos mostram como essa "graça de união se de­
senvolve até invadir totalmente a alma e tornar-se habi­
tual. As graças dessas últimas "Moradas " são, com efei­
to, todas da mesma ordem. A Santa diz expressamente
que as "Sextas Moradas" não se distinguem das prece­
dentes, enquanto que, entre as sextas e as "Sétimas Mo­
radas " "não há mais porta fechada " . 261
A Santa, portanto, pode logicamente comparar os
três estágios do progresso da alma na união mística aos
diversos momentos de um mesmo desenvolvimento; no
caso presente, às etapas de um casamento: o primeiro
namoro, o noivado e a união nupcial. Veremos agora
como desenvolve sua comparação. As primeiras graças
da união total, recebidas nas "Quintas Moradas ", é pri­
meiro namoro da alma com Deus.
" Sua Majestade ", diz Teresa, "querendo fazer-se me­
lhor conhecer à alma, lhe faz esta graça ... de vir ao
que se chama um namoro... porque é muito breve...
a alma vê apenas de maneira místeriosa que é
aquele que vai tomar por esposo ... Ela se acha , des­
de então, de tal modo enamorada, que põe tudo em
ação para que esses divinos esponsais não sejam
entravados ". 262
:S muito oportuno que a alma conheça antes seu
noivo, porque terá que suportar muitos trabalhos antes
de obter de Deus a promessa do matrimônio espiritual.
As descrições dessas provas, no princípio das "Sextas
Moradas " 263 fazem de Teresa uma verdadeira precursora
de S. João da Cruz na asserção de que terríveis noites

260 ld., ibid., cap. 2, n. 7.


261 Id., ibid., "Sextas Moradas", cap. 4, n. 4.
262 Id., ibid., "Quintas Moradas", cap. 4, n. 4.
263 Id., ibid., "Sextas Moradas", cap. 1, n. 1.

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de purificação devem preceder a aurora dos desposórios
espirituais. 2S4 Em seguida vem a descrição das graças
concedidas durante este período. :e
todo um conjunto
de favores celestes que cercam a graça mais profunda
e mais central dos desposórios.

As "Sextas Moradas"

A fim de atrair a alma cada vez mais, Deus, que


reside em seu centro, lhe envia desse mesmo centro
" certos impulsos " que a fazem morrer de amorosos de­
sejos. " A alma sente que acaba de receber uma deliciosa
ferida ... mas compreende-lhe tão bem o valor, que ja­
mais quereria ser dela curada... O efeito que daí resulta
é tal , que a alma se consome em desejos " . 265 Um arre­
batamento que faz perder os sentidos marca o momento
dos desposórios. Os sentidos e as faculdades estão sus­
pensos, " podemos dizer que estão como mortos ", 266 e, en­
tretanto, " a alma jamais esteve tão desperta para as coi­
sas de Deus, jamais teve tanta luz e conhecimento de
Sua Majestade". 267 Trata-se, é verdade, de uma contem­
plação obscura. 268 Mas por vezes é alternada com a visão
intelectual dos segredos divinos ; dir-se-ia mesmo que
Deus quer fazer-se reconhecer: " Certas verdades con­
cernentes à grandeza de Deus, permanecem de tal modo
impressas na alma que, ainda mesmo sem a fé para lhe
dizer o que ele é, e para obrigá-la a reconhecê-lo por seu
Deus, adorá-lo-ia desde então como tal ". 2.69 "Ao voltar a
si, conserva a alma uma lembrança muito viva do que
passou, mas não pode dizer nada". no Teresa procura

264 Noite escura, L. II.


265 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 2,
nn. 24.
266 Id., ibid., cap. 4, n. 4.
267 Id., ibid.
Wl Id., ib;d., "Sextas Moradas", cap. 4, n. 3.
269 Id., ibid., n. 6.
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"que comparação esclareceria um pouco o que ela de­
n n
sej a fazer compreender e, " eis uma , diz ela. 271 Um dia,
no curso de uma das suas viagens, a Santa, obrigada
pelos seus superiores a se deter no palácio da duquesa
de Alba, foi introduzida por ela numa dessas salas cha­
madas " camarins ", que os grandes senhores da época
mostravam com orgulho a seus visitantes; "encerram
um sem número de cristais, vasos de porcelana e muitas
outras coisas dispostas de tal maneira que são vistas
quase todas, desde a entrada". m À primeira vista Teresa
ficou muito surpresa. Depois lhe veio o pensamento: pa­
ra que serve esse acúmulo de curiosidades ? Mas, boa e
piedosa como era, acabou por ver "que tantos objetos
variados poderiam levar a bendizer o Senhor". Neste
moménto então, quando procurou fazer compreender a
inefabilidade dos segredos revelados por Deus nos arrou­
bamentos dos desposórios, ela se acha "encantada de
ver como isto lhe vem a propósito para o assunto que
ela trata". Narra-nos, pois, suas impressões: r, 3 " Eu fi­
quei algum tempo nessa sala, mas a quantidade mesma
dos objetos fez com que logo tudo se apagasse de minha
memória. · Lembro-me apenas confusamente de os ter
visto. Pois bem! Semelhantemente é assim, para a alma
tornada uma . mesma coisa com Deus... e de tal modo
mergulhada no gozo que experimenta, que este único
Bem lhe basta. Algumas vezes, entretanto, apraz a Deus
tirá-la do gozo que a absorve toda inteira e mostra-lhe
subitamente o que contém o aposento onde ela se en­
contra. Uma vez voltada a si, guarda a imagem das ma­
ravilhas que aí viu, mas não pode descrever nenhuma" . r,:c
Contudo, .a inteligência da alma permanece nutrida " a
ponto d e não se poder ocupar, durante dias e mais dias,
de outra coisa que não sejam objetos próprios a infla­
mar a vontade para amar... "

270 Id., ibid., n. 3.


271 Id., ibid., n. 8.
272 ld., ibid.
273 Id., ibid.
274 Id., ibid.

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" Oh! que confusão experimenta a alma", diz S. Te­
resa, quando volta inteiramente a si. Que ardentes
desejos de trabalhar por Deus, de todas as manei­
ras que a ele aprouver! ... Quisera ter mil vidas para
todas lhas consagrar; desejaria que tudo o que há
na terra se transformasse em línguas para o louva­
rem por ela. Desejos insaciáveis tem de penitên­
cias ... Queixa-se também a Sua Majestade quando
lhe faltam as ocasiões de sofrer" . r,s
Estamos longe deste empobrecimento da vida psí­
quica que certos racionalistas modernos querem ver no
êxtase. 2i6 Absolutamente; o arrebatamento é para a alma
mística a fonte de obras magnânimas.

Um gênero particular desses arrebatamentos é de­


nominado " vôo do espírito ". É de uma impetuosidade
especial: "Com a facilidade com que um gigante levanta
uma palha, nosso divino Gigante, em sua força, arrebata
o espírito ". Zi 7 "Tão prontamente como a bala sai do ar­
cabuz, quando se faz fogo, do interior da alma se eleva
um movimento, ao qual dou o nome de vôo ... Enquanto
a alma está fora de si mesma, grandes coisas lhe são
mostradas. Voltando a si, acha-se enriquecida de bens
preciosos e as coisas da terra lhe parecem como lixo". 2iB
Todas essas graças, com efeito, nos levam a um maior
desprendimento e a uma vida espiritual mais elevada.
Teresa então conclui: " Essas são as jóias que o Esposo
come� a dar à sua esposa... Seja para sempre louvado
aquele que tem o poder de fazer semelhantes dons ! " r,9

275 Id., ihid., no. 14-13.


276 Cf. Lhermite-Maquart, Le réve et l'extase mystique, Etu­
des Carmélitanes, avril, 1932.
277 Castelo interü:n ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 5,
n. 2.
278 ld., ibid., n. 9.
279 ld., ibid., nn. 11-12.

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Visões e revela9ães

Nestas Sextas Moradas", ao lado dessas graças de


II

contemplação, segundo a Santa muito desejáveis, são


descritos outros favores sobrenaturais a respeito dos
quais ela adota uma atitude bem diferente: são as visões ·
e as revelações. 280 Teresa classifica as visões em exterio.:
res, imaginárias e intelectuais, fazendo notar que a ilu­
são é fácil nesses favores. Ela procurou, pois, critérios
para esclarecer o julgamento sobre sua origem; além do
demônio, nossa imaginação mesma pode nos enganar.
As visões intelectuais parecem a Teresa menos perigosas
que as outras, mas é preciso notar que ela não reserva
o nome de intelectuais às visões particulares e distintas;
emprega-o, algumas vezes, para designar certas contem­
plações místicas, ricas de conhecimentos. Ela quer, por­
tanto, que sejamos muito prudentes, porque algumas ve­
zes o Senhor mesmo poderá permitir ao demônio que
nos tente. Em resumo, nos encontramos num terreno
que exige uma grande circunspecção.
Deve-se dizer outro tanto das revelações ou palavras
ditas à alma de maneira misteriosa. Delas há diver­
sos gêneros, � a Santa conhece bem aquelas que S. João
da Cruz denomina substanciais ", 281 isto é, que produ­
II

zem instantaneamente o que elas significam. Percebe-se


que deste gênero de favores a Santa teve igualmente
uma rica experiência. Embora admitindo que podem ser
um grande bem para a alma, em regra geral ela reco­
menda uma grande prudência. Tratando das visões ima­
ginárias, escreve: "Quando ·souberdes ou ouvirdes dizer
que Deus concede tais graças a certas almas, não vos
arrisqueis, vo-lo recomendo insistentemente, a pedir ou
a desejar que ele vos conduza por essa via. Ainda que
ela vos pareça excelente e que mereça efetivamente nos­
sa estima... isto não convém de modo algum, por várias

280 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", caps. 3,


8, 9 e 10.
281 ld., ibid., cap. 3, n. 5.

1 16
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n
razões . Enumerando-as, Teresa nos mostra, certamen­
te, que não é desprovida de intuição, mesmo no terreno
da psiquiatria: " É certo", escreve ela, " que aquele que
desej a estas graças jâ estâ na ilusão, ou em grande pe­
rigo de cair nela... quando o desej o é veemente, a ima­
ginação intervém e então imagina-se ver ou ouvir o que
se deseja, do mesmo modo que se sonha à noite com
aquilo que se desejou e pretendeu durante o dia". 282
Certamente seria exagerado afirmar que a Santa te­
nha chegado a estabelecer sobre visões e revelações uma
doutrina tão clara e sólida quanto a do Doutor Místico,
S. João da Cruz; 283 podemos, entretanto, concluir que ela
também preferiu se enquadrar na via de uma prudente
reserva.
Prouvera a Deus que todos os dir�tores espirituais
seguissem uma via tão segura e que todas as almas obe­
decessem verdadeiramente, quando se lhes traça uma li­
nha de conduta prudente. Evitariam, assim, muitas ilu­
sões e uma grande perda de tempo e de forças. Será sem­
pre um dos grandes méritos de S. Teresa o ter distingui­
do bem as duas categorias de favores sobrenaturais, pon­
do-nos em guarda contra toda crendice.

As "Sétimas Moradas"

Resta-nos tratar do ponto culminante da vida mís­


tica: o matrimônio espiritual, que se celebra nas sétimas
moradas. Enriquecida pelo Senhor de tal magnificên­
cia de graças, a alma que lhe é desposada aspira mais
do que nunca à união com ele. Uma pena indescritível a
fere " como uma flecha abrasada n , 284 e em certos momen­
tos a lança " fora dos sentidos". É o êxtase doloroso, a

282 ld., ibid., "Sextas Moradas", cap. 9, nn. 14-15.


283 Subida do Carmelo, L. li.
284 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 2,
n. 2.

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última preparação à união do matrimônio espiritual, an­
gústia. intensa de amor que é igualmente descrita por
S. João da Cruz, 23s depois do que a alma é introduzida
no aposento do Rei. Anteriormente, já no curso do êxta­
se, suas faculdades apenas nele penetravam, permanecen­
do completamente cegas pela luz; agora, pelo contrário,
a alma toda inteira ali entra e sem perder o uso de suas
faculdades. "Deus faz cair as escamas dos olhos da al­
ma", diz Teresa, " a fim de que ela contemple e com­
preenda... alguma coisa do favor com o qual a gratifi­
ca " . 21!6 Que compreende ela? Vê-se admitida à companhia
contínua da Santíssima Trindade: "As três pessoas da
Santíssima Trindade a ela se comunicam; falam-lhe e lhe
descobrem o sentido dessa passagem do Evangelho em
que nosso Senhor anuncia que ele virá, com o Pai e o
Espírito Santo, habitar na alma que o ama e guarda os
seus mandamentos n . 281
A alma não perderá mais esta divina companhia, mas
não será sempre igualmente luminosa, porque em certos
momentos, como diz a Santa, "fecham-se as janelas e
a alma fica na obscuridade" . 288 Entretanto, através de
tudo, ela permanece consciente da presença divina.
Desde então pode ser ao mesmo tempo Marta e Ma­
ria; as ocupações exteriores não a afastam mais de seu
Deus. 289 Nas " Sétimas Moradas ", tais são os bens que
constituem o ambiente conatural à graça do matrimônio
espiritual, que deve completar a transformação da alma.
O mesmo Cristo, em sua santa humanidade, se re­
vela em seu mais íntimo centro e a ela se une com um
laço perpétuo. " O espírito dessa alma", diz a Santa, " tor­
na-se a mesma coisa com Deus... como a água do céu,
que caindo num rio ou fonte, confunde-se de tal modo
que não se pode mais nem separá-las, nem distinguir

285 Viva chama de amor, cap. 3, n. 26.


286 Castelo interior ou moradas, "Sétimas Moradas", cap.
1 , n. 6.
287 ld., ibid.
288 Id., ibid., n. 9.
289 Id., ibid., n. 10.

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qual é a água do céu". 290 "Mihi vivere Christus est",
repete a Santa, com S. Paulo. " :e, aqui que a pequena
borboleta morre, mas com uma indizível alegria, por­
que já sua vida é Jesus Cristo''. 291 Quando Teresa quer
dar uma idéia dessa vida nova que sente transbordar em
si, uma profusão tumultuosa de símbolos, figuras abun­
dantes j orram de sua pena!
"Daqueles peitos divinos, onde Deus sustenta conti­
nuamente essa alma, brotam então veios de leite que
reconfortam todos os habitantes do castelo... Desse
rio imenso, onde essa pequeníssima fonte se perde,
j orram jatos de água... Com efeito, como a água não
pode j orrar sem ter sua fonte em algum lugar, as­
sim a alma compreende claramente que dentro de
si alguém lhe arroja as setas que a transpassam e
dá vida à sua vida; ... um sol, enfim, difundindo
de seu interior, essa brilhante "luz que lhe' ilumina as
faculdades". 292
Quem não sente palpitar aqui umã vida profunda,
imensa, divina?
Quando pensa que as riquezas da união divina po-
dem ser nossas, Teresa se comove:
"ô minhas irmãs! Como tudo o que deixamos é
um nada! Nada é também tudo o que fazemos e o
que podemos fazer por um Deus que se quer comu­
nicar, assim, a uns vermezinhos como nós! Desde
que temos a esperança de gozar, já nesta vida, de
semelhante felicidade, que fazemos nós? Em que
nos detemos? ... :e.
verdade que são dons que Deus
concede a quem ele quer,· entretanto, se amássemos
o Senhor como ele nos ama, no-los concederia a to­
das. Ele nada deseja tanto, quanto achar a quem
dar". 293
290 Castelo interior ou moradas, "Sétimas Moradas", cap.
2, nn. 3-4.
291 Id., ibid., n. S.
292 Id., ibid., n. 6.
293 ld., ibid., "Sextas Moradas•, cap. 4, nn. 10-12.

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A união de conformidade

Enquanto nos descreve as riquezas da união místi­


ca, Teresa não deixa de reafirmar seu princípio: estes
favores não são propriamente necessários à santidade.
"Deus pode enriquecer as almas de muitas maneiras;
pode fazê-las chegar a essas Moradas ( dos perfeitos ) sem
o atalho ( da união mística) ... Que se possa aí chegar,
não }:lá que duvidar". 294 Aqui na terra, com efeito, todas
as almas não bebem com a mesma abundância à fonte
de água viva; e a iluminação do Espírito Santo, que é
inseparável de uma vida santa, não se apresentará ne­
cessariamente sob essa forma intensiva que a toma per­
ceptível à alma, pondo-a num estado de passividade ex­
perimental; poderá mesmo ser muito confusa, pouco sen­
sível e, entretanto, penetrar largamente a vida da alma
santa. Uma alma poderá ser santa, sem gozar da oração
mística; sem esse apoio, porém, seu caminho ser4,. certa­
mente árduo. Deverá morrer a si mesma, sem sentir, em
compensação, as delícias da vida nova da união mística.
Diz Teresa: " Confesso que isto só é possível realizar a
custo de grandes lutas ". 29s
A união . mística é, portanto, muito preciosa. Toda­
via, as preferências de Teresa vão para a união de con­
formidade, plenitude da caridade e perfeição moral. Per­
manece, assim, o primeiro objeto de suas aspirações:
" Tal é a união que tenho sempre desejado e que não
deixo de pedir a Deus, pois que é mais segura e mais
evidente". 296
Que digo ?! Mesmo as graças místicas da ordem mais
elevada têm por fim realizar em nós essa união de ca­
ridade perfeita. Nas últimas páginas do seu Castelo, Te­
resa quer nos revelar " o motivo pelo qual o Senhor con­
cede tantas graças " ... " Se prestásseis atenção", diz ela,
"já o teríeis compreendido pelos efeitos que elas produ-

294 ld., ibid., "Quintas Moradas·, cap. 3, DJL 4-5.


295 ld., ibid., n. S.
296 ld., ibid.

120
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zem". Aqueles que Teresa assinala com predileção se
reduzem sempre ao nosso progresso moral.
"Quero vo-lo repetir ainda, para não vir alguma de
vós a pensar que o desígnio de Deus seja unicamen­
te cumular essas almas de carícias. Seria um grande
erro. Sua Majestade não nos pode conceder nada de
mais precioso que uma vida conforme à de seu Filho
Bem-amado. Disto estou também absolutamente
convencida... essas graças são destinadas a fortificar
a nossa fraqueza e a nos tomar capazes de imitar
esse divino Filho, suportando como grandes sofri­
mentos". 2'11
Grandes sofrimentos : imitar Cristo sofrendo e sacri­
ficando-se, eis a verdadeira prova de amor. O amor é
tudo! O Castelo se encerra com um hino de amor, onde
aparece uma última vez, a Teresa que quer se dar total­
mente: " O Senhor olha menos a grandeza das nossas
obras que o amor com o qual as realizamos". 298 Mas, co­
mo precisamente o amor se revela no sacrifício, " no bre­
ve tempo desta vida, devemos oferecer ao Senhor, inte­
rior e exteriormente, todo o sacrifício do qual somos ca­
pazes". 299 O verdadeiro amor se dá inteiramente. Gosta
mais de dar que de receber.

Conclusão

Guiados por S. Teresa percorremos os diversos apo­


sentos do " castelo interior". Tanto quanto pode, a Santa
nos descobre as maravilhas que Deus realiza na alma,
conduzida pela via mística. Mostra-nos como aquela que
se dá totalmente a Deus se vê sempre possuída cons­
cientemente por uma vida nova, uma vida divina. Na

297 Id., ibid., "Sétimas Moradas", cap. 4, n. 4.


298 Id., ibid., n. 15.
299 Id., ibid.

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via ilum.inativa a influência divina se estende gradual­
mente: ela prepara a alma para o recolhimento infuso,
se apodera da vontade na oração de quietação, para ca­
tivar em seguida também as outras faculdades, sem, to­
davia, privar a alma de todo concurso pessoal. As ora­
ções dessa via são, pois, ainda imperfeitamente passivas.
A via unitiva se caracteriza, ao contrário, por uma pas­
sividade mais completa. Com ela, pode-se falar de morte
e de renascimento. Como o bicho-da-seda que morre,
para retomar a vida sob a forma de borboleta bran­
ca, assim a esposa de Deus morre ao mundo e a si mes­
ma pela abnegação. E, uma vez preparada pelas graças
místicas interiores, é arrebatada fora de si mesma e vive
inefáveis momentos de vida divina, onde não tem mais
outra liberdade que a de dizer " Sim n ao Bem-amado.
Esta mesma vida nova déve crescer; os toques divinos
irão se multiplicando até introduzirem a alma em um
estado de união contínua, onde não perde quase nunca
a presença de seu Bem-amado. São as graças da união
mística.
Existe, pois, certa correspondência entre as eta­
pas da vida espiritual e a profundeza da oração mística.
Na via ilumínativa, onde a vida sobrenatural não está
ainda perfeita, se acham as contemplações imperfeita­
mente passivas, enquanto na via unitiva, ou dos perfei­
tos, Deus se apodera totalmente da alma. Em certos mo­
mentos a alma se torna, pois, consciente da ação sobre­
natural de Deus nela, com mais ou menos força e cla­
reza, conforme os diversos graus de profundeza de sua
vida espiritual. Para dizer a verdade, não parece que essa
consciência seja essencial à vida perfeita, mas, produzida
pela intensidade particular de uma iluminação divina que
jamais é recusada totalmente à alma bem disposta; ela
acompanhará freqüentemente a santidade plena e per­
feita.
A essas graças de contemplação se juntam, por ve­
zes, visões e revelações, que são favores de menor im­
portância e expostos a mais ilusões. Todas essas graças
celestes, porém, tendem a um mesmo fim: preparar a

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alma para a prdtica de uma caridade magnificamente
generosa. Se as recebemos de Deus, aqui na tel'nl, é
para que possamos dar mais.

Nas maravilhas que Teresa nos tem desvendado pu­


demos distinguir três espécies de dons: visões e revela­
ções - contemplação mística - amor perfeito. Em si,
todos os três são preciosos, mas Teresa nos ensina a
tomar diante de cada um atitude diferente.
Não devemos nem pedir a Deus, nem desejar o pri­
meiro dom, das visões e revelações; fazê-lo, seria expor-se
à ilusão.
Podemos, pelo contrârio, desejar o segundo: a con­
templação mística; ensina-nos, então, S. Teresa, a orde­
nar para esse fim toda nossa vida ascética. Não é, contu­
do, necessário à santidade, mas, sem ser indispensável,
ajuda poderosamente a adquiri-la. Por outro lado, jamais
é recusado inteiramente à alma que se dispõe com in­
teira generosidade. A alma não atingirá sempre a via da
oração mística experimental. Mas se não se detiver no
caminho, por falta de coragem, beberá um dia, de qual­
quer modo, à fonte de água viva. A contemplação pode,
pois, ser chamada um fim da nossa vida espiritual, mas
não é o termo imediato dos nossos esforços; devemos
obtê-la da misericórdia divina. Ela não é, por outro lado,
um fim último, mas permanece ordenada à prdtica ge­
nerosa da vida de amor.
O terceiro dom, que é o amor perfeito, sem reserva
alguma é o fim para o qual todos devemos tender e es­
tamos bem certos de atingi-lo, se o quisermos. Ele se
identifica com uma conformidade perfeita de nossa von­
tade com a de Deus, levada ao ponto de jamais querer
outra coisa senão o que agrada ao Bem-amado, ainda
que fosse a custo dos maiores sacrifícios. Essa é a união
que Teresa sempre desejou e pediu; que seja possível
atingi-la ativamente, isto é, sem passar pelo atalho da
união mística, "não há dúvida". Aqui está o verdadeiro
fim da nossa vida moral. Este fim se distingue, pois, do
ideal contemplativo, pela segurança que temos de o atin-

123
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gir e porque só ele merece mais plenamente o nome de
fiin, pois que é o termo imediato de nossos esforços.
Além de tudo, o amor perfeito é absolutamente necessá­
rio à nossa perfeição sobrenatural; chegar aí é alcançar
ao mesmo tempo a santidade.
Logicamente, Teresa atrai o olhar da alma para esse
fim, de maneira contínua e absoluta; quando se trata,
porém, da contemplação, sua atitude é, pelo contrário,
toda cheia de matizes. Mesmo a custo de muito esforço,
devemos atingir a perfeição da caridade; a contemplação
é muito desejável, certamente, porque ela nos confere
novas forças para amar; porém, uma vez que ela é
dom gratuito de Deus, convém afastar de nós toda preo­
cupação muito viva em obt�la e, sobretudo, toda pre­
tensão de a conseguir. � preciso, entretanto, fazer tudo
o que se pode para remover os obstáculos que se opõem
à concessão de uma graça de santificação tão eficaz.
Mas, depois de nos dispormos com generosidade, deve­
mos reconhecer que somos "servos inúteis".
Aliás, será essa a maneira mais segura de chegar à
contemplação. Deus ama tanto a humildade! ª �la ", diz
Teresa, "f�lo descer do céu, ao seio da Virgem". 300 Dese­
jamos forçar a mão do Esposo divino ? Queremos, co­
mo diz Teresa, dar xeque-mate ao Rei dos corações? Hu­
mildade e ainda humildade! Pois que ªnão há dama que
obrigue o Rei a se render como a humildade ". 301 " Nós
somos " dele", minhas irmãs; que faça de nós o que lhe
aprouver, levando-nos por onde preferir! Porém, se nos
humilharmos e nos desprendermos verdadeiramente... o
Senhor não deixará de nos fazer essas graças e outras
ainda, acima de nossos desejos. Seja ele para sempre
louvado e bendito! Amém! ". 302

300 Caminho de perfeição, cap. 16, n. 2.


301 ld., ibid.
302 Castelo interior ou. morada, ªQuartas Moradas•, cap. 2,
n. 10.

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TERESA '�DE JESUS"

A fisionomia de S. Teresa, mestra de vida espiritual


e educadora de almas, permaneceria muito imperleita­
mente esboçada se, tendo concluído o estudo das passa­
gens fundamentais de seu ensinamento, não se relevasse
um ponto de sua doutrina que se pode chamar "central"
pela grande influência por ele exercida sobre o conjunto
de sua espiritualidade. Trata-se do lugar que ela dá à san­
ta humanidade de Cristo na ascensão da alma até os
cumes mais sublimes da vida sobrenatural. A Santa to­
mou diante desse problema delicado e um tanto contro­
vertido da vida mística , uma atitude clara e caracterís­
tica: ela não admite, por nada, que se a separe da hu­
manidade de Cristo, não importa em que período da vida
de oração. Todos os autores místicos não estão, sobre
este ponto, de acordo com a Santa. Duas tendências
bastante opostas são de notar, entre eles, quanto ao uso
a fazer da lembrança de nosso Senhor, na vida contem­
plativa. 303 Muitos seguem a opinião da Santa; outros
crêem, ao contrário, que se deter na consideração de
Cristo pode ser, em certos casos particulares, um obstá­
culo ao progresso da alma na contemplação.
A razão desse desacordo se encontra na mesma na­
tureza da contemplação mística. Uma de suas caracte­
rísticas mais salientes é a presença muito restrita de
imagens ou representações : a contemplação mais quali­
ficada é delas tão despojada que merece o nome de con-

303 Valcntin Breton. O.F.M., "L'imitation du Christ", in Le.


Christ, Encyclopédie populaire, Paris, 1932. O papel da santa
humanidade na contemplação, p. 783.

125
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templação " pura". 304 Nessa espécie de contemplação, a
alma está de tal modo ocupada do conhecimento geral
de Deus na fé obscura, que perde toda consciência -
ou quase toda - do concurso da imaginação. De modo
que muitos teólogos místicos apresentam a questão: po­
de existir, aqui na terra, uma contemplação desprovida
da "conversio ad phantasmata?" 305 Certos autores espi­
rituais, querendo, pois, aj udar as almas a progredirem
no conhecimento místico ( suposto que Deus tenha co­
meçado a lhes conceder essa graça), lhes aconselham a
moderar muito, na oração, o trabalho da imaginação.
Como o espírito humano tem uma tendência para gene­
ralizar, alguns acham bom estender à humanidade de
Cristo a supressão sobredita das imagens. A seu ver, no
momento da vida de oração em que Deus introduz a al­
ma na contemplação obscura, seria melhor abandonar
simplesmente a consideração dos mistérios do Verbo en­
carnado, para se abismar totalmente no pensamento ge­
ral de Deus presente na alma. Por outra parte, habitual­
mente, trata-se apenas de um método temporário; esses
autores comumente estão de acordo que a alma, chegada
à maturidade, habituada à contemplação de fé e gozando
de uma vida mística mais perfeita, volta a nosso Senhor
Jesus Cristo. Daqui se poderá concluir quão profundo
é o erro de alguns racionalistas modernos que vêem na
prática da contemplação de fé ob�cura uma espécie de
divórcio entre a fé dogmática da Igreja católica e a fé
viva dos místicos, que se desenvolve além de todo dogma.
Nesta conjuntura, eles não receiam mesmo atribuir ao
Doutor Místico, S. João da Cruz, semelhante absurdo. 306
Nossa intenção não é refutar aqui tais aberrações, mas
expor a opinião de S. Teresa sobre um método recomen­
dado algumas vezes por autores que se dizem do campo
católico.
304 Pe. Baltassare di S. Caterina, Splendori riflessi... , p.
159ss.
305 Joseph A. SS., Cursus theologiae mystico-scholasticae,
tomo II, Disp. XVII, q. 4.
306 J. Banizi, Saint Jean de la Croix et le probleme de
l'expérience mystique, Paris, 1924.

126
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Parece que a Santa teve um contato direto com os
partidários dessa doutrina que recomenda suprimir, em
çerto momento da vida espiritual, toda representáção
de nosso Senhor Jesus Cristo. Encontrou-a exposta nos
livros espirituais da época e a ouviu formular pelos teó­
logos por ela consultados e com os quais, por vezes,
examinava os problemas da vida sobrenatural. Dizemos
de propósito: "ela examinava n porque a humilde Teresa,
quando se tratava de um ensinamento em que a experiên­
cia tinha o que dizer,. não temia submeter ao julgamento
dos letrados os fatos que ela havia observado. Ela o fa­
zia, aliás, com muito tato; o que não excluía nem a insis­
tência nem a firmeza. Teremos a ocasião de o constatar
nessa discussão em que Teresa toma totalmente o "parti­
do de Jesus ". Ela foi muito feliz de trocar seu nome de
" Teresa de Ahumada " pelo de " Teresa de Jesus ". A todo
n
instante veremos como quer ser sempre " dele e como
n
"não podia sofrer o seu afastamento, nem mesmo em
favor de sua amada contemplação. Sim, Teresa perma­
necerá sempre e antes de tudo: "de Jesus " !
. A mesma Santa pôr-nos-á ao corrente dos verdadei­
ros dados da discussão e dos motivos sobre os quais
baseia sua opinião; em seguida nos ensinará como Jesus
pode ser "nosso companheiro " durante toda nossa vida
espiritual.

A posição ela Santa

A Santa trata duas vezes, em seus livros, a interes­


sante questão acima indicada, e num intervalo de quinze
anos mais ou menos. A doutrina do Castelo interior 3111
se evidenica, portanto, completamente fiel aquela ante­
riormente exposta na Vida, 308 posto que nela se pode
notar maior firmeza de pormenores na aplicação dos
princípios propostos. O problema procede da prática da
301 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 7.
308 Vida, cap. 22.

127
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oração, mas tem sua repercussão no conjunto da vida es­
piritual.
Teresa havia lido em alguns livros de oração - pa­
rece que entre eles o Terceiro abecedário, do francisca­
no Osuna 309 - como a alma, ainda que pouco avançada
na vida espiritual, pode favorecer seu progresso na con­
templação, "desprendendo seu espírito de todas as coi­
sas criadas e elevando-o humildemente para Deus ". 310
Não creiais que se trate aqui do desapego geral de todas
as coisas, tão recomendado por Teresa à alma que se
prepara para a contemplação. Não; trata-se de um exer­
cício que tem por fim libertar das imagens o pensa­
mento no momento mesmo da oração contempla­
tiva:
"Esses livros", diz a Santa, "recomendam com insis­
tência afastar de si toda imagem corporal e elevar-se
à contemplação da Divindade. Porque, dizem eles,
essa espécie de imagens, mesmo a da humanidade
de nosso Senhor é, para aqueles que chegam a um
estado tão elevado, um embaraço e um obstáculo a
uma mais alta contemplação ". 311
Na ocasião em que lia esses livros, Teresa ainda não
tinha diretor espiritual e, por um momento, tinha-se
deixado convencer por essa doutrina.
"Desde que comecei a ter um pouco de oração de
quietação ", diz ela, "eu me apliquei em afastar de
meu pensamento toda coisa corporal... Eu sentia,
contudo, parece-me, a presença de Deus e me aplica­
va em me manter recolhida nele... Experimentando
309 Abecedário esipritual, prólogo : " ...achamos escrito que
convém, aos que querem chegar a alta e pura contemplação,
deixar as criaturas e a sagrada humanidade para subirem mais
aJto e receber mais inteiramente a comunicação das coisas pu­
ramente espirituais... Pois que aos apóstolos foi conveniente
deixar algum tempo a contemplação da humanidade do Senhor
para mP.is livremrnte se ocuparem inteiramente na contempla­
ção da divindade; bem parece convir também isto, . algum tempo,
aos oue Querem subir a maior estado".
310 Vida, cap. 22, n. l.
3H ld., ibid., cap. 22, n. 1.

128
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tanto proveito e gozo, ninguém teria podido, então,
fazer-me voltar à consideração da humanidade $àn­
ta de Cristo, que me parecia verdadeiramente um
obstáculo n . 312
Teresa não permanecerá longo tempo em seu erro,
pois que experimentará bem depressa os inconvenientes.
Quando depois se lembra disso, experimenta bem viva
dor :
"O Senhor de minha alma, 6 meu Bem, ó Jesus
crucificado ! Não posso recordar tal üusão sem pro­
var uma verdadeira pena. Parece-me que era da mi­
nha parte uma grande traição, ainda que procedesse
da ignorância ... Como pude ter, ain$ que um ins­
tante apenas, o pensamento de que vós devíeis ser
para mim um obstáculo a um bem maior ? De onde
me vieram, pois, todos os bens, a não ser de vós ?
Não ! Eu não quero mais pensar que tenha havido
nisso falta da minha parte. Tenho disso excessivo
pesar ... n 313
Esta passagem, excerto do livro de sua Vida, já fala
n
claramente de "ilusão e mostra a Santa muito aflita de
ter seguido um conselho tão pouco respeitoso para com
o Cristo. Com os anos, porém, sua convicção se fortifica;
apesar da oposição encontrada ela se afirma sempre mais
radical em sua maneira de ver e escreve, no Castelo:
"1:: verdade que tenho deparado com contraditores.
Disseram que eu não entendia a questão... e que,
uma vez superados os começos, é melhor ocupar-se
da Divindade, afastando tudo o que é corporal. Ora
bem ! Apesar de tudo, não me farão confessar que
esse caminho seja bom ... Notai bem ! Eu ouso mes­
mo dizer-vos que não creiais naqueles que vos fala­
n
rem diferentemente . 3 14

312 ld., ibid., n. 3.


3 1 3 ld., ibid.• n. •.
314 Castelo interior ou móradas, "Sextas Moradas", cap. 7,
n. 5.

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Certamente Teresa não conhece o medo quando se
trata de defender Jesus!
Todavia, seria um erro crer a Santa totalmente pos­
ta a toda "purificação" do pensamento; suas reservas
dizem respeito diretamente à humanidade de Cristo. Ela
recorda como alguns autores ensinam a " considerar que
somQ_s completamente cercados de Deus por todas as
partes", 315 sem dar lugar a qualquer imagem corporal,
e acrescenta: "Esse método algumas vezes me parece
bom; mas abandonar inteiramente a consideração do
Cristo e pôr no mesmo nível seu corpo divino com nos­
sas misérias ou com uma criatura qualquer, não posso
sofrê-lo". 316 Parece que uma passagem da Sagrada E�
critura serviu, mais de uma vez, de apoio a seus adver­
sários, porquanto a Santa a ela se refere em dois luga­
res: "Eles alegam a palavra que o Salvador dirigiu a
seus apóstolos, reunidos no_JD.omento de subir ao céu:
'Expedit vobis ut ego vadam'. - � bom para vós que
eu me vá. Mas Teresa não admite que o texto se aplique
ao nosso caso e refuta, vigorosamente, o argumento:

"Mas eu não posso admiti-lo. O Salvador não disse


isso à sua Mãe. Ela estava bem firme em sua fé e
sabia que ele era Deus - e homem; ainda que ela lhe
tivesse mais amor que todos, era com tal perfeição,
que sua presença lhe servia de estímulo. Mas, sem
dúvida, a fé dos apóstolos não estava então bastante
firme como o foi mais tarde e co:qio deve estar a
nossa agora". 317

Não; nós não estamos no caso dos apóstolos antes


de Pentecostes: "A meu ver, se os apóstolos tivessem
acreditado, então, bastante firmemente, como após a vin­
da do Espírito Santo, que Cristo era ao mesmo tempo
Deus e homem, a presença da santa humanidade não

315 Vida, cap. 22. n. 1.


316 Id., ibid.
317 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 7.
n. 14.

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teria sido para eles um obstáculo n . 318 A alma que se exer­
cita na oração mental já crê firmemente que Jesu.s é
Deus e homem; seu caso é, antes, semelhante ao da Vir­
gem, "Mãe de Deus, a quem essa palavra jamais foi diri­
gida, se bem que ela amasse o Salvador mais do que to­
dos os apóstolos". 319 Se a presença humana de Cristo
foi sempre, para a Virgem santíssima, um estímulo para·
mais amar, igualmente o será para a alma amante que
souber utilizar como deve a lembrança de Josus Cristo.
Vimos Teresa bem decidida. Ela tomou posição con­
tra os autores que pretendem possa a alma ajudar-se a
si mesma a progredir na contemplação, aconselhando,
em conseqüência, habituar-se a rejeitar na oração toda
imagem, mesmo a que representa Jesus Cristo. A Santa
não condena, na alma contemplativa, toda a tendência
a moderar o uso da imaginação, mas não admite de
modo algum que a alma afaste de si, de propósito deli­
berado e com esforço, a lembrança de nosso Senhor.
Vejamos agora suas razões.

As razões ela Santa

Os motivos que determinaram Teresa a adotar essa


posição bem categórica são perfeitamente coerentes com
os dados fundamentais do seu ensino. Ela nos propõe
duplo fim: a contemplação e a perfeição da caridade;
entretanto, aconselha-nos uma atitude bem diferente pe­
rante estes dois termos de nossas aspirações. Podemos
desejar a contemplação e para ela nos prepararmos por
uma vida de grande abnegação; mas todo esforço direto
para no-la conseguir seria inútil, pois que é um dom
gratuito de Deus, que o concede " a quem quer, quando
e como quer". Aqui, port�to, resta apenas abandonar-

318 Vida, cap. 22, n. 1.


319 ld., ibid. .

131
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-nos ao Senhor, pois fazer de outro modo seria faltar
à humildade, quando é exatamente a humildade que nos
dispõe melhor à contemplação.
Devemos, pelo contrário, ·pretender a todo preço a
perfeição da caridade, praticando com todas as nossas
forças as mais altas virtudes e exercitando-nos numa
vida generosa. Para atingir essa perfeição não temos pro­
priamente necessidade da contemplação, mas temos ne­
cessidade de Jesus: " Para a ela chegar, não é preciso que
o Senhor nos conceda grandes delícias espirituais; bas­
ta o dom, que ele nos fez, de seu Filho, para nos ensinar
o caminho". 320 A via da santidade é imitar Jesus! Por­
tanto, a alma que abandona Jesus sob pretexto de mer­
gulhar mais profundamente na contemplação, estará pra­
ticamente em contradição formal com as diretivas fun­
damentais da doutrina teresiana: não se serve dos apoios
que Deus lhe deu para progredir na virtude e se intro­
mete, com pouca humildade, na obtenção da contem­
plação.
Teresa no-lo fará compreender muito claramente.

Falta de humildade

Seguir um método que ensina a evitar a lembrança


de Jesus Cristo, para atingir uma contemplação mais
elevada, é enganar-se na atitude que devemos tomar em
face da oração mística. " Pretender elevar o espírito in­
dependentemente de Deus, não se contentando em me­
ditar sobre um objeto tão excelente como a humani­
dade santa do Cristo n, diz Teresa, é "querer ser Maria,
antes de ter trabalhado como Marta ". 321 Tal método
constitui um esforço pessoal para mais nos introduzir na
contemplação mística; o que seria inadmissível e peca-
320 Castelo interior ou moradas, "Quintas Moradas", cap.
3, n. 7.
321 Vida, cap. 22, n. 9.

132
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do contra a humildade. " Eu estou persuadida de que,
quando uma alma faz qualquer coisa para se ajudar nes­
sa oração de união, ainda mesmo que parecesse no prin­
cípio realizar algum progresso, não tarda a cair muito
prontamente, como um edifício sem fundamento". 322
e
" ...este pequeno defeito de humildade parece nada en­
tretanto, causa o maior prejuízo à alma que quer adian­
tar-se na contemplação" . 323 Com efeito, a contemplação
requer como disposições fundamentais uma profundís­
sima humildade, imensa abnegação e aquela pobreza de
espírito que "consiste", diz Teresa, "não em procurar
consolações e doçura na oração, após ter a elas renun­
ciado aqui na terra, mas em encontrar sua felicidade em
sofrer por aquele cuja vida toda inteira foi uma cruz con­
tínua". 324 Se quisermos atingir a contemplação é preciso
não querer procurá-la, afastando-se de Jesus, mas obtê-la
da misericórdia divina, conformando-se com Jesus.
Não, Teresa não pode admitir que nos entremeta­
mos, por nossa própria indústria, no que depende total­
mente de Deus:
" Devemos àndar com toda liberdade no caminho da
oração, entregando-nos nas mãos de Deus. Se Sua
Majestade quer nos elevar à dignidade de sua corte
e de seus mais íntimos amigos, a isso nos presta­
mos com simplicidade; caso contrário, que o sirva­
mos nos ofícios mais insignificantes e, como o te­
nho dito algumas vezes, não vamos por nós mesmos
assentar-nos no melhor lugar". 325
Se Deus nos quer elevar, saberá fazê-lo sem que pro­
curemos remover o obstáculo imaginário da lembrança
do Cristo, pois que ele não necessita de nossa ajuda.
" Oh! como Deus sabe bem, quando o quer, vir às claras,
sem empregar todos esses pobres e pequeninos meios.
Apesar dos nossos esforços, ele arrebata nosso espírito

322 Id., ibid., n. 11.


323 Id., ibid, n. 9.
324 Id., ihid., n. 11.
325 ld, ibid., n. 12.

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como um gigante a uma palha, sem que possamos resis­
tir". Graciosamente continua: " Se ele quer fazer voar
um sapo, vai esperar que o sapo levante o vôo por si
mesmo? " 326 Portanto, até que apraza a Deus fazer-nos
voar, não devemos ter a pretensão de nos elevar por
nós mesmos. Aliás, todo o esforço em vista de elevar o

e.
nosso espírito mais do que Deus o quer, seria vão e
inútil. preciso contentar-nos com o dom de Deus, so­
bretudo nos domínios dos favores gratuitos: " Se alguém
tem a voz áspera, apesar de todos os seus esforços não
conseguirá tomá-la agradável. Mas se Deus dignar-se dar­
-lha befa, poderá cantar sem, antes se esganiçar" m, diz
Teresa.
Não querer ocupar-se com a lembrança de Cristo
é, por outro lado, outra falta de humildade:

" Encontrar-se-á alguém" , diz a humilde T eresa, " que,


mesmo depois de ter passado sua vida em todas as
penitências, orações e perseguições imagináveis, se­
ja, como eu, bastante orgulhoso e miserável para
não se considerar muito rico e muito bem pago, se
nosso Senhor consente em admiti-lo ao pé da cruz,
com S. João? Não sei em que cabeça, a não ser na
minha, pQde nascer o pensamento de não se conten­
tar com tal favor". 328

Ai de mim! Existem tais cérebros! Têm medo de


perturbar a quietude de sua contemplação e impedir
uma absorção mais profunda na Divindade. Em poucas
palavras Teresa põe todas as coisas em seu lugar:

" Quando Deus quer suspender as faculdades da al­


ma ... é claro que, ainda mesmo que não o queira­
mos, a presença da santa humanidade nos é tirada.
Que nos seja então arrebatada, está muito bem! ...
Mas que ponhamos nós mesmos nossa habilidade e

3i6 Id., ibid., n. 13.


327 Id., ibid., ri. 12.
328 Id., ibid., 5.

134
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nossos cuidados ... em evitar... ter sempre presente a
santa humanidade ... isto, repito, parece-me inadmis-
sível" . 329
Desse ensinamento da Santa tiramos uma regra prá-
tica : quando desaparece a representação de nosso Senhor,
simplesmente em conseqüência de nosso recolhimento em
Deus, tudo vai bem; mas afastar de propósito deliberado a
imagem de Jesus Cristo, nem querer de maneira alguma
tê-la presente ao espírito - como se ela fosse um obstá­
culo ao progresso da oração - é inaceitável. Teresa não o
pode suportar.
" Uma alma que segue esta via", diz ela, "parece-me
andar... no ar. Ainda que ela se creia cheia de Deus,
está privada de apoio, porque a prática de nos re­
presentar nosso Senhor sob a forma humana é im­
portante para nós, fracos mortais, enquanto vi­
vemos aqui na terra". 330
O segundo motivo alegado por Teresa para rejeitar
esse método põe às claras quanto temos necessidade des­
se apoio.

Teresa parece ter compreendido profundamente a


ajuda que nossa pobre natureza humana encontra, indo
a Deus pelo mistério da encarnação. Se o Verbo se fez
carne para se aproximar de nós, quão desarrazoado se­
ria não querermos servir-nos dessa santa humanidade
para nos aproximarmos de Deus! Não é Teresa certa­
mente, quem nos privará de tal apoio!
Quando, em grandes carros fechados ( verdadeiros
conventos ambulantes ) 33 1 a Santa, com algumas de suas
filhas, percorria as dificultosas estradas de Castela e An­
daluzia para fundar seus mosteiros - esses "pombaizi­
nhos da Virgem" 332 - sob a cobertura estendida, ao
329 Id., ibid., n. 9..
330 Id., ibid.
331 et. Pe. Léon, e.e.. La joie chez Sainte Thérese d'Avila,
Bruxelas, 1930, pp. 119-121.
332 Fundações, cap. 4, n. 5.

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abrigo do sol do verão, Teresa tinha sempre sobre seus
j oelhos uma pequena imagem do Menino Jesus. 333 As
sacudidelas e os choques do carro parecem embalar o
Infantezinho que ela contempla temamente. Então, aju­
dada pela pobre imagem, o olhar interior da amante
contemplativa se eleva suavemente ao mistério do amor
do Verbo por nós. E seu coração de esposa, que quer se
imolar totalmente por ele, canta a embaladora canção
do " todo-nada" ( tudo-nada), da amorosa renúncia, que
um dos seus filhos devia um dia traduzir, em estrofes
imortais:
" Para venir a gustar le todo,
No quieras tener gusto en nada...
y cuando lo vengas dei todo a tener,
has de tenerlo sin nada querer". 334
" Para chegares a saborear tudo,
Não queiras ter gosto em nada...
E quando vie:res a tudo ter,
Hás de tê-lo sem nada querer".
Não, a humanidade de Jesus não impede a contem­
plação; pelo contrário, provoca-a. Escutemos ainda os en­
sinamentos da Santa, tão cheios de bom senso cristão:
"Não somos anj os, mas temos um corpo. �. pois, uma
loucura querer imitar anj o, quando se está nesta terra...
De maneira habitual, nosso pensamento tem neces­
sidade de um apoio ". 335 "Viver separado de tudo o que
é corporal e estar sem cessar abrasado de amor é bom
para os espíritos angélicos; mas não é conveniente para
nós, que habitamos um corpo mortal". 336
Teresa mostrar-vos-á quanto isto é verdade, tanto pa­
ra a vida de oração como na prática das virtudes.

333 Pe. Ribera, Vida de la Madre Teresa de Jesú.,;. Lib. II,


cap. 18, cf. Miguel Mir, S. Teresa de Jesus, Madrid, 1912, vol. II,
p. 33; e Silvério de S. Teresa, B.M.C., tomo XVIII, p. 58.
334 Subida do cannelo, L I, e. 13, nn. 1 1-12.
335 Vida. cap. 22, n. 10.
336 Castelo interior ou morada, "Sextas Moradas", cap.
7, n. 6.

136
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Jesus na oração 111ental

A alma começa, lu,.bitualmente, a ser introduzida na


contemplação de .fé obscura na época em que caminha
na via iluminativa. :e
o momento em que se deve aplicar
particularmente à aquisição das virtudes, onde sua ora­
ção se simplifica gradualmente e se esclarece pela ilumi­
nação divina. Isto depende de Deus, que o concede quan­
do e como lhe apraz ... Não seremos agraciados cada dia
da mesma maneira. Ora nos sentiremos verdadeiramente
levados pela graça, ora, pelo contrário, será preciso re­
mar por nós mesmos, se não quisermos perder tempo e
cair numa espécie de quietismo. Deste modo, períodos
de desamparo sensível se alternarão com outros de reco­
lhimento saboroso. Teresa conhece perfeitamente essa
espécie de instabilidade dos favores divinos. Quando ex­
perimentamos pouco fervor, a Santa quer que determi­
nadamente nos ponhamos à obra: "Quando esse fogo do
amor não está aceso na vontade e não se sente a presença
de Deus, é preciso procurá-la, como fazia a esposa dos
Cânticos. Esta é a vontade de nosso Senhor". 337 Como
faremos então ? Teresa sabe que as almas que saborea­
ram a contemplação experimentarão sempre repugnân­
cia no trabalho do intelecto, preferindo andar sempre,
só por meio de sua vontade; mas, na sua opinião, " para
se inflamar, a vontade tem muito freqüentemente neces­
sidade do concurso do intelecto ... porque, embora a von­
tade não esteja morta, o fogo que a consome ordinaria­
mente está amortecido e, para que se ateie, é necessário
um sopro de alguém". 338
Esse é o papel do intelecto. Como poderia então me­
lhor realizá-lo do que pensando nos mistérios da encar­
nação, que manifestam admiravelmente o amor de Deus
por nós ? Não seria absurdo não querer pensar em nosso
Senhor, sob pretexto de que impediria, talvez, a contem­
plação se, por acaso, Deus quisesse dá-la naquele momen�
337 ld., ibid., n. 9.
338 Id., ibid., n. 8.

137
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to ? Que sabemos a esse respeito ? Não convém se intro­
meter nos desígnios de De�!
"Guardemo-nos de esperar, ficando como estúpidos
e perdendo nosso tempo, aquilo que nos foi conce­
dido apenas uma vez. Com efeito, nos princípios po­
de muito bem acontecer que se passe um ano e
mesmo mais, sem que nosso Senhor renove esse fa.
vor. Sua Majestade tem suas razões: quanto a nós,
não procuremos sabê-las, pois que não é necessá­
rio ". 339
Trata-se, por conseguinte, de fazer esforço ! " Seria,
pois, preciso", prossegue Teresa com graça, "que a alma
permanecesse na secura, esperando, como nosso Pai
Elias, que o fogo do céu venha consumar o sacrifício que
ela faz de si mesma ?! Certamente não ! Pois que não se
deve esperar milagres ". 340
Ponhamo-nos , pois, à obra!
" Sabemos por qual caminho podemos contentar a
Deus: é o dos mandamentos e dos conselhos evan­
gélicos; andemos por ele diligentemente e pensemos
na vida e na morte de nosso Senhor, como também
em seus imensos benefícios. Tudo o mais virá quan­
do Deus quiser". 341

Na prática das virtudes

Se temos necessi_dade de Jesus para praticar com


fruto a oração mental, o exercício das virtudes, por sua
vez, acha nele um poderosíssimo apoio. Com efeito, Jesus
Cristo é nosso divino modelo e é a ele que devemos imitar
para nos santificarmos. " Seguindo-o, andamos com se-

339 Id., ibid., n. 9.


340 Id., ibid., n. 8.
341 Id., ibid., n. 9.

138
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gurança. Esse dulcíssimo Mestre é a fonte de todos os
bens. � ele quem vos ensinará. Considerai sua vida; é
o mais perleito dos modelos ". 342 Mas, se não queremos
pensar em Jesus durante a oração, - conseqüência mui­
to psicológica - sua lembrança não nos permanecerá
familiar durante o dia. O divino modelo não nos ficará
presente. Entretanto, temos uma verdadeira necessidade
do Cristo. Sem ele, nos sentimos excessivamente sós!

"A "vida é longa", diz Teresa, " e as penas nela se


.encontram em grande número. Para suportá-las co­
mo é preciso, temos necessidade de considerar co­
mo Jesus Cristo, nosso modelo, como seus apósto­
los e seus santos as suportaram. Excelente compa­
nhia é a do bom Jesus; portanto, não nos separe­
mos dele, nem de sua santíssima Mãe" . 343

Preciosa companhia que procuraremos ter sempre


presente. Assim fizeram os santos, mesmo os mais con­
templativos - insiste Teresa, que examinou de propó­
sito suas vidas, a fim de poder nos legar seu ensinamen­
to com mais segurança:

"Considerei com atenção a conduta de alguns san­


tos, grandes contemplativos, e eles não seguiam ou­
tro caminho. S. Francisco disto nos deu a prova por
seus estigmas, e S. Antônio de Pádua, por seu amor
para com o Menino Jesus. S. Bernardo punha suas
delícias na santa humanidade, como também S. Ca­
tarina de Sena e tantos outros ... " 344

Aliás, não é Jesus mesmo quem nos ensina esse ca­


minho ? A Santa encontra a prova disso na Sagrada Es­
critura: " O Salvador mesmo disse que ele é o caminho.
Disse também que ele é a Luz e que ninguém pode ir ao
Pai, senão por ele... " Teresa não se deiu abalar pelas

342 Vida, ca:p. 22, n. 7.


343 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 7,
n. 13.
344 Vida. cap. 22, n. 7.

139
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sutilezas de alguns exegetas. "Alega-se que essas pala­
vras devem se entender num outro sentido; o primeiro
é aquele que minha alma sempre sentiu ser o verdadeiro
e nele tenho-me achado muito bem". 345 Seu firme bom
senso cristão, esclarecido pela luz celeste - que lhe foi
concedida com tanta profusão - a tranqüiliza e assegu­
ra que ela está na verdade. Não! Nunca mais Teresa se
separará de Jesus! Bastou-lhe ser enganada uma vez! Do
tempo em que ela não queria pensar em Jesus, diz: "Meu
espírito errava aqui e ali, assemelhando-se minha alma
a um pássaro que voej a sem achar onde pousar. Eu per­
dia muito tempo, não avançava nas virtudes e não fazia
nenhum progresso na oração". 346 Teresa quer que nos
aproveitemos do seu erro momentâneo e que alimente­
mos nossa vida espiritual com a contínua lembrança de
Jesus:

"Cada vez que pensamos em Cristo", diz Teresa,


"recordamos o amor que ele nos testemw:ihou con­
cedendo-nos tão altos favores e, do mesmo modo, a
caridade excessiva de seu Pai, que o leva a nos dar
nele tal penhor de sua ternura por nós. O amor
reclama amor ... e se, um dia, dignar-se o Senhor em
sua misericórdia imprimir esse amor em nossos co­
rações, tudo nos será fácil; realizaremos os maiores
progressos em pouquíssimo tempo e sem a menor
fadiga". 347

Aprendamos agora de Teresa como é possível man­


ter-se perto dessa fonte de amor através de todas as fa:
ses da vida espiritual.

345 Castelo interior ou moradas, ªSextas Moradas", cap. 7,


n. 6.
346 Id., ibid., n. 15.
341 Vida, cap. 22, n. 14.

140
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A. intimidade com Jesus

Teresa é a grande mestra da intimidade com Jesus.


Ela vai nos mostrar como devemos fazer para que essa
intimidade cresça sempre ao longo da vida espiritual.
Para os principiantes, a oração mental deve aproxi­
má-los de Jesus, pois que, desde o princípio da vida
espiritual, " a vida de Jesus deve ser o assunto habitual
da oração mental" . 348 A alma deve fazer trabalhar o in­
telecto para penetrar suas excelências; mas a Santa lo­
go a põe em contato íntimo com o Senhor:
"Podemos, pelo pensamento, pôr-nos em presença
de Cristo, abrasar-nos pouco a pouco de um grande
amor para com sua santa humanidade, fazer-lhe
sempre companhia, falar-lhe, recomendar-lhe nossas
necessidades, queixarmo-nos a ele em nossas penas,
regozijarmo-nos com ele nas cohsolações e guardar­
mo-nos de o esquecer na alegria e na prosperi­
dade". 349
Se Jesus deve ser o companheiro de toda nossa vida,
importa aproximar-nos dele desde o princípio e guardá-lo
presente em nossa alma. Esse. é, por outro lado, um po­
deroso meio de progresso: "Manter-se na companhia do
Salvador é proveitoso em todos os estados ", diz Teresa.
"Esse é um meio muito seguro para progredir no pri­
meiro grau de oração e para chegar ao segundo ( isto é,
à oração de quietação ) em pouco tempo". 3.so
Ei-la indicando como devemos meditar:
"Meditamos, suponho, um mistério da paixão, por
exemplo: aquele que nos representa nosso Senhor
atado à coluna. ·o entendimento procura descobrir
os motivos que lhe farão compreender quão grandes
dores e que angústias suporta Sua Majestade e em

348 ld., ibid., cap. 11, n. 9.


349 Vida, cap. 12, n. 2.
350 Id., ibid., cap. 12, n. 3.

141
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um tal abandono... 1! bom servir-se do raciocínio,
durante alguns instantes, examinando o motivo pe­
lo qual nosso Senhor sofre, quem é aquele que so­
fre e o amor com o qual sofre n. 351
Mas, embora conhecendo e estimando esses. meios
que aj udam o trabalho do intelecto ( meios muito reco­
mendados pelos autores espirituais do seu tempo), Te­
resa quer que dem95 mais largas ao coração em nossa
oração meditativa:
"Àqueles que se servem do discurso, recomendo não
empregar nele todo o tempo da oração... que eles se
conservem, portanto, assim como já o disse, na pre­
sença de nosso Senhor, sem cansar seu intelecto;
que lhe falem e ponham sua alegria em se achar
com ele ... 352
...façamos-lhe companhia, falemos-lhe, exponhamos­
-lhe nossos pedidos; humilhemo-nos e lembremo-nos bem
de que não merecemos estar em sua presença". 353 Ela
q uer, por todos os modos, tornar a oração mental mui­
to fácil, e verdadeiramente é assim, quando se faz em
companhia do nosso - bom Mestre. Ensinando a oração
em seu Caminho de perfeição, Teresa conduz suas filhas
diretamente a Jesus. Escutemo-la:
"Antes de tudo se faz o sinal da cruz. Depois exami­
na-se. a consciência e se recita o Confiteor. Logo em
seguida, minhas filhas, aplicai-vos em procurar
uma companhia, pois que estais sós. E, que melhor
companhia podeis encontrar que a do mesmo Je­
sus?! ... Representai esse Senhor perto de vós e con­
siderai com que amor e humildade ele vos ensina.
Acreditai-me; nada negligencieis, para q_ue nunca es­
tejais sem um amigo tão fiel. Se vos habituardes a
considerá-lo perto de vós, se ele vê que assim fazeis

351 Id., ibid., cap. 13, nn. 12 e 21.


352 Id., ibid., n. 11.
353 Id., ibid., n. 21.

142
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com amor e que vos aplicais em lhe agradar, não
podereis mais, como se diz, livrar-vos dele. Jamais
vos faltará; em todos os vossos trabalhos ajudar­
-vos-á e ·por toda parte andareis em sua companhia.
Pensais que seja pouca coisa ·ter tal Amigo per­
to de vós ? " 354
Teresa quer que freqüentemente o olhemos: ...ainda
que por um instante, se não pudermos mais.. Uma vez
que podeis olhar os objetos mais horrendos, como não
teríeis a possibilidade de considerar o objeto mais ar­
rebatador que se possa imaginar? Se não o achardes
belo, permito-vos que nunca mais o olheis! " 3SS Eis um
conselho muito prático para melhor se habituar a re­
presentar nosso Senhor presente: " Um bom meio para
vos manter na presença do Senhor é ter uma imagem
ou pintura sua que seja do vosso gosto. Não vos conten­
teis de trazê-la sobre vosso peito sem jamais olhá-la;
antes, servi-vos dela para vos entreterdes muitas vezes
com ele; então ele mesmo vos sugerirá o que tereis de
lhe dizer ". 356 Assim a alma entrará bem depressa na in­
timidade de Jesus.

Além disso não temos apenas imagens à nossa dis­


posição; temos também a realidade. Jesus-Eucaristia!
Oh! quanto S. Teresa a amava! Um dos motivos pelos
quais ela achava "perigoso " o caminho, que combatia
com tanto ardor, era " que o demónio podia acabar fa­
zendo perder a devoção ao Santíssimo Sacramento ". 357
" Que fé em Jesus Cristo presente na santa hóstia!
Que amor por Jesus-Eucaristia ! Falando de si mes­
ma, Teresa nos confia que Deus lhe tinha dado uma
fé tão viva que, ao ouvir alguém dizer que quisera
viver no tempo em que Cristo, nosso Bem, estava

354 Caminho de erfeição, cap. 26, n. 1.


355 ld., ibid., n. f.
356 Id., ibid., n. 9.
351 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 7,
n. 14.

143
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neste mundo, ela ria interiormente. Uma vez que
o possuímos no Santíssimo Sacramento, tão verda­
deiramente como então, que desejamos mais?" 358
Ela o " via n , com efeito, com os olhos da fé, ª e no
momento da comunhão pareceia vê-lo entrar em sua
alma, nem mais nem menos que com os olhos do
n
corpo . 359
Ela nos · ensina, pois, a aproveitar dessas visitas do
Se�or: " Quando acabardes de comungar procurai fe­
char os olhos do corpo e abrir os da alma, pois que vos
encontrais com nosso Senhor em pessoa, e fixai o olhar
nele, em vosso coração". 360 Esse não é o momento de
ir rezar diante de um quadro de Cristo:
" Se assim o fizerdes, ficando .então a considerar uma
imagem do Cristo, seria a meu ver, uma extrava­
gância... Pois que, não seria um desatino se, tendo
o retrato de uma pessoa que amamos e recebendo
a visita dessa pessoa, deixássemos de lhe falar, para
nos entretermos com seu retrato?" 361
� preciso, pelo contrário, entrar em contato ime­
diato com nosso Senhor, realmente presente em nós.
Teresa cercava de tal devoção a presença real
da humanidade de Cristo, que recebia com prazer
particular uma hóstia grande, crendo talvez que nosso
Senhor permaneceria, por isso, mais longo tempo pre­
sente nela. Quando era priora no mosteiro da Encarna­
ção, sendo então o confessor S. João da Cruz, manifes­
tou esse atrativo ao prudente diretor de almas; este,
temendo, sem dúvida, uma busca de prazer demasiado
sensível, quis mortificá-la. Um dia - era a oitava de S.
Martinho do ano 1 572 ( 18 de novembro) - no momento
em que Teresa se aproximava do comungatório, o Pe.
João partiu a hóstia e lhe deu apenas a metade.

358 Caminho de perfeição, cap. 34, n. 6.


359 ld., ibid., n. 7.
360 ld., ibid., n. 11.
361 IcL, n. 10.

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" Eu logo pensei ", conta Teresa, "que ele fazia isso ...
para me mortificar, pois que lhe tinha confiado mi­
nha preferência pelas hóstias grandes, sabendo em­
bora que isto não tinha nenhuma importância, já
que o Senhor está tanto e todo inteiro, mesmo na
mais pequenina parcela. Ora! Bis que Sua Majesta­
de, querendo me fazer compreender que em ver­
dade isto não importava, diz-me estas palavras:
'Não temas, minha filha; ninguém te poderá sepa­
rar de mim' ". 362
� belo ver na Santa esta pronta reação da fé pura
e forte, que as palavras do Senhor vêm confirmar. Não!
Teresa não tinha necessidade de ser mortificada em sua
devoção; entretanto, a prudência vigilante dos minis­
tros da santa Igreja está longe de ser inútil! Certamente
nossa fraca natureza pode abusar das menores coisas
e, mesmo na recepção de Jesus-Eucaristia, as ilusões po­
dem se introduzír. Teresa nos fala no livro das Funda­
ções, de duas religiosas que temiam morrer se não rece­
bessem cada dia a sagrada eucaristia; uma delas julga­
va mesmo que devia comungar " de madrugada". Que­
rendo lhe fazer apalpar sua ilusão, "eu lhe disse", es­
creve Teresa, "que eu também sentia esses mesmos de­
sejos e que, apesar disso, ia me abster da comunhão;
ajuntava que se não o pudéssemos assim fazer, sem mor­
rer... morreríamos todas três juntas ". 363 Assim foi feito;
mas, é claro, nenhuma morreu! ...
Em todas as práticas da religião Teresa se disti.Ii,rue
por um sólido bom senso; ela encarna a piedade sadia,
forte, católica. Na sua escola se está em sep.urança. Ela
nos mostra como convém procurar Jesus pela represen­
tação imaginária, ou na sua presença real eucarística.
Nutridos por essa intimidade com ele, tornar-nos-emos
generosos. Resta-nos ver como podemos prolongar �sse
comércio de amizade com Jesus, mesmo quando a ora­
çã·o se torna mais elevada.
362 Mercedes, n. 35 (18 de . novembro de 1572).
363 Fundações, cap. 6, n. 1 1 .

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A primeira oração da qual Teresa fala após a me­
ditação, é a de recolhimento ativp. Nela, a alma perma­
nece facilmente em presença de Cristo: "Recolhida den­
tro de si mesma, pode meditar na paixão, reproduzir
mentalmente a imagem do Filho de Deus e oferecê-lo ao
Pai celeste, sem cansar o espírito indo procurá-lo no
Calvário, nQ Horto ou à coluna". 364
Jesus está, pois, muito perto; uma. vez que a alma
se habitua a considerá-lo dentro de si mesma, ele se tor·
na realmente mais íntimo. Teresa não se estende muito
sobre a maneira de praticar esta oração mais íntima; po­
rém, as explicações que ela dará em seguida, tratando do
modo de agir de uma alma j á habituada à contempla·
ção, far-nos-ão compreender como nos devemos compor­
tar. Tocamos, com efeito, no ponto mais delicado de to­
da ascensão espiritual. Após a oração de recolhimento
vêm as orações místicas imperfeitamente passivas, da
via iluminativa; ora, precisamente à alma que começa
a ser nela introduzida é que c.ertos autores aconselham
abandonar a consideração do Cristo. Teresa, que "não
pode sofrer" semelhante ensinamento, como boa Mestra,
deve nos dizer como a alma, já contemplativa, ainda
pode se exercitar nessa consideração de Cristo. Com efei·
to, parece que tal alma não pode mais ·realmente me­
ditar; mas, então, que fazer?

Jesus na contemplação

Te,resa não (alta de modo algum à sua função de


Mestra espiritual. Bem ao contrário, a fim de pôr as
almas no bom caminho, ela nos ensina uma maneira de
fazer oração que se tornará muito cara à sua família
religiosa. Antes d� tudo ela está de acordo, sem comen­
tários, que tais almas não conseguem mais_ meditar. Se,

364 Caminho de perfeição, cap. 28, n. 4.

146
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por conseguinte, a meditação fosse o único modo de con­
siderar atentamente Jesus Cristo e os mistérios da .san­
tíssima humanidade, o contemplativo deveria forçosa­
mente renunciar à mesma. Mas Teresa observa, com
grande habilidade, as diversas maneiras de proceder do
nosso entendimento e nota judiciosamente: " Uma coisa
é discorrer com o entendimento e outra é apresentar
verdades à inteligência com a cooperação da memó­
ria" . 365 Em seguida ela explica mais claramente seu pen­
samento:
" Chamo meditação o discorrer com o entendimento.
Por exemplo: pensamos primeiramente na graça que
Deus nos fez, dando-nos o seu Filho único e, sem
nos determos, vamos adiante percorrendo todos os
mistérios de sua gloriosa vida... ou também, se es­
colhemos um mistério da paixão: a prisão de Jesus,
por exemplo, e vamos pensando e aprofundando
esse mistério, considerando-o em minúcias, tudo o
que pode tocar o espírito e comover o coração, co­
.mo seja a traição de Judas, a fuga dos apóstolos e
assim por diante" . 366
Esta é a maneira habitual de meditar, gerando
em nós as afeições, levando-nos a conversar amorosa­
mente com nosso Senhor.
Tratando-se de semelhante discurso intelectual, Te­
resa admite francamente que as almas já contemplati­
vas, dele são habitualmente incapazes. Mas, não há
outro modo, muito mais perfeito, de considerar os mis­
térios de Cristo ? A priori podemos dizer que existe um:
"Quando essas pessoas afirmam que não se podem
deter nesses mistérios, nem os recordar freqüente­
mente, sobretudo nas épocas em que a Igreja cató­
lica os celebra, estão em erro; pois não é pos­
sível que uma alma, assim favorecida por Deus, per-

36S Castelo interim' ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 7,


n. 10.
366 Id., ibid.

147
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ca a lembrança de semelhantes provas de amor ( co­
mo são as da santíssima humanidade ), centelhas
vivas, tão próprias para mais inflamar aquele que
muito ama a nosso Senhor". 367
Não nos parece ouvir aqui o mesmo bom senso cató­
lico-? Certamente! Não é possível que a alma contempla­
tiva não possa participar na vida da Igreja quândo esta
celebra os mistérios da Redenção! Seria absurdo! Deve,
pois, haver maneira de considerá-los, adaptada a seu
estado. " Essas pessoas", diz a Santa, "não se entendem
a si mesma" . 368 Teresa traz nova luz:
"A verdade é que a alma compreende· então esses
mistérios de maneira mais perfeita. O entendi­
mento representa-os tão vivamente e sua memória
recebe deles uma impressão tão profunda, que só o
aspecto de nosso Senhor estendido por terra no jar­
dim das Oliveiras, banhado de suor e sangue, basta
para ocupar não somente uma hora, mas muitos
dias. Por um simples olhar, ela considera a gran­
deza daquele que sofre e a ingratidão - com a qual
temos correspondido a essa imensa dor. Talvez, até
sem ternura de devoção, logo a vontade é tomada
do desejo de pagar algo por tão insigne benefício,
sofrer algo por aquele que tanto sofreu por nós,
com outros desejos do mesmo gênero que ocupam
a memória e o intelecto" . 369
Portanto, sem realmente meditar, a alma é capaz de
se ocupar de Jesus. Mas em lugar de discorrer, ela se
contenta · com um simples olhar, mais profundo, toda­
via, que as múltiplas considerações da meditação, e que
é como o .fruto das meditações anteriores. Esses sim­
ples olhares geram um amor mais ardente e exci­
tam à generosidade. Sendo, por outra parte, mais sim­
ples, são mais duráveis. E Teresa nota que podem per-

367 ld., ibid., n. 11.


368 Id., ibid.
369 Id., ibid.

148
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manecer atuantes durante vários dias. Donde conclui­
remos que Teresa tan.i:...:::-
,.nnhece claramente a prática
de uma contemplação ativa. O modo que ela nos pro­
põe de considerar Cristo depende da alma. A esse res­
peito a Santa diz claramente: " Se a alma não pensa fre­
qüentemente (em Cristo e · na sua paixão ), que se es­
force por fazê-lo; sei que isto não porá obstáculo à mais
sub.lime oração e não· aprovo que deixe de exercitar-se
nisto muitas vezes". 370
Essa consideração não é, aliás, discursiva: o olhar
simples, profundo e sintético substitui os raciocínios
múltiplos da meditação e basta para produzir na alma
afeições e resoluções mais ardentes e mais eficazes que
aquelas procedentes do discurso.
Teresa, portanto, reconhece uma oração interme­
diária entre a meditação e a contemplação experimental­
mente infusa ; pode-se facilmente chamá-la contemplação
ativa ou adquirida. Semelhante contemplação tomar-se-á
a oração habitual da alma que já é mística, no tempo
em que não for favorecida por Deus pelas graças celes­
tes mais particulares. Na via iluminativa, a contempla­
ção ativa ou adquirida alternar-se-á freqüentemente com
a infusa. Assim o entende toda a escola teresiana.

Nos estados místicos superiores

Do mesmo modo, nos estados místicos superiores a


lembrança de Cristo não poderá obstaculizar a contem­
plação. Teresa também sustenta que os que abandonam
a Cristo fecham a si mesmos a entrada às "Moradas"
mais íntimas do "castelo interior" : "Ao menos, assegu­
ro-lhes que não entrarão ( essas almas ) nas duas últi­
mas "Moradas". Faltando o verdadeiro guia, que é o

370 ld., ibid., n. 12.

149
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bom Jesus, não acertarão com o rumo; já será muito
n
se ficarem em segurança nos demais aposentos . 371 Sen­
do Jesus nosso modelo e nossa luz, parece a Teresa que
sem ele jamais poderemos atingir uma perfeição moral
que dele devemos aprender. Ora bem! As últimas " Mo­
radas" supõe a alma já muito perfeita. Por outro lado,
Teresa experimentou em sua própria vida como Jesus
pode intervir, de maneira mais direta, nessas últimas
" Moradas" . As visões intelectuais e mesmo imaginárias
da humanidade de Cristo ajudaram muito a alma da
Santa em sua ascensão para os cumes sublimes dos des­
posórios e tnatrimônio espiritual. Falando do matrimô­
nio espiritual, Teresa nota como as almas que a ele che­
gam " não deixam de estar de uma maneira admirável
com Jesus Cristo nosso Senhor, o qual juntamente com
sua divindade e humanidade lhes faz fiel companhia". 372
Todavia, não pretendemos de modo algum afirmar que
� visões que acompanharam a celebração do matrimô­
nio espiritual de S. Teresa pertençam à essência deste
estado sublime; elas provam, entretanto, e claramente,
que mesmo este estado de oração não exclui a presença
da humanidade de Cristo.
A mesma união mística, aliás, não desabrocha numa
perfeita conformidade com Jesus sofredor? Numa pági­
na comovente do último capítulo do Castelo interior Te­
resa nos recorda que todas as graças místicas têm por
n
fim, não "acariciar as almas , mas conduzi-las a uma
vida conforme à de Jesus Cristo, tornando-as aptas para
"muito sofrer". 373 A visão da cruz redentora nimbada
dos raios luminosos do amor fecha a série das mara­
vilhas contempladas no castelo míst(co. E a alma aman­
te abraça com paixão essa cruz do seu divino esposo Je­
sus. A união mística transformante gue é, segundo o
ensinamento de S. João da Cruz, a "vida espiritual per-

371 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradasn , cap. 7,


n. 6.
372 Id., ibid., n. 9.
373 Castelo interior ou rrwradas, "Sétimas Moradas", cap.
4, n. 4.

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feita", 374 não deixa de nos "incorporar" totalmente a
Cristo e "identificar" com a sua, a nossa vida.
Concluamos com Teresa : a alma jamais deve, no cur­
so de sua vida espiritual, se desprender de Jesus. Pelo
contrário! Jesus permanece sempre o seu mais poderoso
apoio, seu mestre, sua luz, sua " vida " e também seu
"fim". Sim, Teresa tem razão de querer ser sempre "de
Jesus".

Conclusão geral

Terminando este ciclo de instruções em que, insis­


tindo sobre os pontos mais salientes do ensinamento
espiritual de S. Teresa, procuramos reconstituir a sín­
tese doutrinal que se delineia, ainda que um pouco ve­
lada, em suas obras, desejamos pôr em relevo algumas
características da doutrina teresiana.
Certamente, sua elevação espiritual é notável. É uma
doutrina de totalidade. A grande alma de Teresa parece
enformar todas as suas concepções da vida sobrenatural.
Incapaz de fazer as coisas pela metade, . também não as
concebe a meio. Ela entreviu o ideal cristão em sua
máxima plenitude e, para realizá-lo, voltou-se para os ca­
minhos que a ele conduzem, diretamente e o mais rá­
pido possível.
A perfeição cristã lhe apareceu como a plenitude da
caridade divina, que nesta terra leva a alma ao sacri­
fício total de si mesma, pelos interesses do Senhor, o
bem da santa Igreja e a salvação de todas as almas
resgatadas pelo sangue divino. Teresa ama imensamente
seu Deus e deseja fazê-lo também imensamente amado
por outras almas. A essa obra de amor ela quer se con­
sagrar inteiramente e empregar todas as suas forças.
Esse é o ideal que propõe também a seus discípulos.

374 Viva chama de amor, cap. 2, n. 32.

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Na escola de Teresa não se conhece medida p� o dom!
Dá-se tudo!
Contudo, o grande coração de Teresa compreende
instintivamente as leis do amor. Ela sabe que o amor
intenso tem necessidade da presença do Amado: quem
ama quer também ser amado. Ela convida ao amor
ativo, generoso e total, mas quer também que não po­
nhamos limites às nossas aspirações de amor. Sabendo
que Deus admite de bom grado em sua intimidade a
alma que se dá totalmente a ele, Teresa permite à alma
generosa aspirar à contemplação. Ao lado do ideal da
doação total, ela propõe um segundo: o ideal contem­
plativo, a intimidade com o Senhor, experimentada des­
de esta vida. Esse ideal aparece como um complemento
do primeiro, pois que pertence à mesma vida de amor,
a qual não é completa sem a reciprocidade no amor.
A esse duplo ideal a alma ordena toda a sua vida.
Entretanto não os pretende de uma maneira igualmen­
te absoluta. Quer realizar, a todo custo, a doação total,
enquanto que diante da intimidade divina ela se sente
sempre sem nenhum mérito e se abandona ao bel-prazer
de Deus.
Todavia, saber que Deus concede sempre sua inti·
midade à alma totalmente generosa é um agradável con­
forto e um estímulo poderoso para a prática das virtudes.
A plenitude do ideal que nos propõe permite a Teresa
pedir com mais insistência a totalidade de nosso esforço
ascético. Com efeito, a contemplação não pei tence a
qualquer via de santidade, mas somente à via 3uperior
da generosidade plena. A ascese proposta por Teresa é
severa, mas se envolve na cálida luz do amor. Ela . re­
quer a nudez de espírito, mas, como meio preparatório
para gozar de Deus, na plenitude da vida de amor. O
amor tem, portanto, exigências que o mais austero espí­
rito de penitência jamais atingiria. Porque o amor exige
não apenas "muito ", mas exige "tudo " . Contudo, · a es­
perança de gozar do amor suaviza o sacrifício. Não! A
ascese do Carmelo não pode ser declarada " rígida" e,
seria preciso acabar inteiramente com o erro com que

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se pinta o Doutor do Carmelo, S. João da Cruz, como
um homem duro e implacável. Para S. João, a cnµ é
amável porque conduz à união com Deus.
As belezas da vida contemplativa, descritas com
tanta magnificência no Castelo interior, são bem próprias
para excitar os desejos ardentes de um coração amante.
Novos horizontes se abrem ao olhar da alma; imensas
riquezas se manifestam acessíveis, mesmo aqui na terra,
e a alma repete com Teresa: "Ah! como tudo o que faze­
mos é um nada! E - se temos a esperança de gozar
desde ·esta vida de tamanha felicidade - que fazemos
nós?... Em que nos detemos?" 37s
Sim, a espiritualidade de Teresa é bem alta e supe­
rior é o ideal que nos propõe. Trata-se de uma singular
plenitude de amor: a doação total da alma a Deus, acom­
panhaêla freqüentemente da doação de Deus à alma; e
para nos conduzir a esses cumes, a generosidade plena,
nutrida da doce esperança de chegar à intimidade divina.
Posto que permitindo à alma nutrir aspirações su­
blimes, Teresa a mantém; entretanto, no terreno prático;
é o que confere à sua doutrina uma nota particular de
segurança e solidez. Teresa propõe à alma o ideal con­
templativo, mas não fez dele o acabamento de seu edi­
fício doutrinal. A "meta" onde quer levá-la, o "centro"
para o qual converge o conjunto de seus ensinamentos,
é a perfeição da caridade, concebida como uma doação
total e atual da alma a Deus, isto é, como um exercício
completo de virtudes muito elevadas, coadjuvado por
um amor ardentíssimo. Para atingir tal cume, a alma
evidentemente deve aplicar-se inteiramente à prática das
virtudes.
:8 verdade que Teresa vê também na contemplação
um meio muito eficaz para atingir essa perfeição moral
superior; permite à alma aspirar à mesma e a ela ten­
der, mas proíbe terminantemente todo esforço direto
para obtê-la, enquanto recomenda com insistência a
375 Castelo interior ou moradas, "Sextas Moradas", cap. 4,
n. 10.

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aqws1çao de uma disposição que lhe é habitualmente
indispensável. Esta disposição é o exercício eminente das
virtudes: a abnegação total e o recolhimento contínuo.
A doutrina teresiana concentra, pois, toda a imediata
preocupação da al.ma na aquisição das virtudes. Não é
somente uma doutrina emin�ntemente mística, que abre
horizontes ilimitados às nossas aspirações íntimas, mas
é também uma doutrina profundamente ascética, que
mergulha a alma na abnegação e na imolação. Ela não
se contenta com grandes desejos, mas quer obras mag­
nânimas.
Ainda mais: ensinando a alma a se apoiar através
de tudo em Jesus Cristo, diretamente lhe indica a fonte
de toda virtude generosa. Teresa quer que a alma viva
na intimidade de Cristo e que ame sua humanidade,
e,catamente para dela f�er o modelo de sua vida. Quer
que seu desejo mais profundo seja o de se conformar
com ele no sacrifício total de si mesma para o bem
das almas. A plena conformidade a Jesus crucificado é
o último termo para o qual tende a Santa nesta vida.
Mesmo as graças contemplativas que nos são concedi­
das por Deus têm por fim dar a força de imitar Jesus
" no muito sofrer". 376
Jesus é também mais caro a Teresa que a mesma
contemplação. Jesus é mais indispensável que a oração
mística. Sem ela se pode chegar à santidade, mas sem
Jesus, nunca! Ele é o modelo da nossa santidade!
Teresa, ainda menina, contemplando o quadro da
n
Samaritana, rezava: " Senhor,. dá-me dessa água . 377 En­
tão, por que na idade madura, engolfada na via de união,
suspira ardentemente: " Sofrer ou morrer ? 378 - Porque,
n

amante apaixonada, ela se deu inteiramente a um Esposo


crucificado por amor e porque também quer ser to­
talmente
TERESA " DE JESUS"

376 Id., ibid., "Sétimas Moradas", cap . 4, n. 4.


377 Cf. capítulo 2 - O ideal contemplativo.
378 Vida, cap. 40, n. 20.

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1NDICE

7 Prefácio do Autor
10 Introdução

14 A PERFEIÇÃO MORAL
15 O livro da Vida
17 O Caminho de perfeição
19 Pensamentos sobre o amor de Deus
21 O livro das Fundações
22 O Castelo interior
25 O amor do próximo
26 O ideal apostólico
29 Caráter prático da doutrina teresiana
31 O ideal carmelitano
33 A alegria teresiana
34 Conclusão

37 O IDEAL CONTEMPLATIVO
39 Diversas acepções do vocábulo " contemplação"
41 Contemplação e perfeição
45 O "atalho"
47 A contemplação ordinária nas almas generosas
53 Aparente contradição
57 A disposição para a contemplação
61 Conclusão

67 O CAMINHO DE PERFEIÇÃO
69 Estrutura do livro
77 A virtude generosa
79 A caridade fraterna
81 O desprendimento absoluto
85 A humildade profunda
87 A oração ativa
92 Conclusão
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95 O CASTELO INTERIOR
97 O palácio da intimidade divina
99 As sete "Moradas" e as
três vias
n
100 As três primeiras " Moradas
104 As " Quartas Moradas"
109 As "Quintas Moradas "
1 1 3 As " Sextas Moradas"
1 16 Visões e revelações
117 As " Sétimas Moradas n
120 A união de conformidade
121 Conclusão

1 25 TERESA " DE JESUS "


1 27 A posição da Santa
1 31 As razões da Santa
132 Falta de humildade
137 Jesus na oração mental
138 Na prática das virtudes
141 A intimidade com Jesus
146 Jesus na contemplação
149 Nos estados místicos superiores
1 51 Conclusão geral
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Não é fácil adaptar aos tempos atuais os escritos de
mestres espirituais do passado. Ainda mais em se tra­
tando das obras de Santa Teresa de Jesus, que nem
sempre seguem um plano previamente estabelecido.
A compreensão da estrutura intima de suas concep­
ções geniais depende do grau de familiaridade que te­
mos com seu pensamento.
Neste livro o Au tor consegue o objetivo. Ajuda os lei­
tores a compreer,.der melhor a unidade profunda do
pensamento de Teresa de Jesus, suas idéias mestras,
a síntese doutrinal e as maravilhosas riquezas conti­
das em seus escritos.

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