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HINDUTVA: O FUNDAMENTALISMO NACIONAL-RELIGIOSO

NA ÍNDIA CONTEMPORÂNEA
Gino Battaglia

L. K Advani, notável expoente do nacionalismo hindu, afirma que


Hindutva (principal conceito da ideologia nacional-religiosa indiana, do
qual recebe o seu nome) é a resposta à pergunta: quem somos nós? Advani,
a partir do pensamento de V.D. Savarkar e de Deendayal Upadhyaya, autores
dessa ideologia nacionalista, afirma também que Hindtva não é uma ideia
religiosa, mas se refere à cultura e à identidade do povo indiano. Para ele,
‘hindu’ tem a ver com ‘ser indiano’ e “se a Índia for desindiunizada, ela não
será mais a Índia” (ADVANI, 2008, p. 864).
Roberto Catalano, por outro lado, em um de seus ensaios, analisa a
questão da bramanização do hinduísmo. Ele entende que esse processo, ini-
ciado ao tempo dos Vedas, seguiu dois caminhos principais: o primeiro deles
refere-se à integração de experiências religiosas mais antigas, diferentes ou
locais na religião védica; o segundo refere-se à criação, na cultura e na psique
indiana, da unidade entre religião e sociedade, metafísica e vida social, por
meio da filosofia Advaita (não dualidade) e da estrutura das castas. Segundo
ele, no final, estas duas perspectivas tendem a confluir (CATALANO, 2009, p.
437-471). Tudo isso, embora se tratem de processos históricos e culturais, que
remontam ao segundo milênio antes da Era Comum, não são aspectos estra-
nho à Índia atual porque a afirmação da ideologia Hindutva pode ser enten-
dida como a perpetuação de um projeto hegemônico na sociedade indiana.
A questão sobre a definição da palavra ‘hindu’ ou ‘hinduísmo’ não é
apenas um problema de caráter semântico ou epistemológico. Identificar
uma religião sob este conceito não foi só uma preocupação dos estudiosos
europeus, por mais impregnados que estivessem pela ideologia que E.W.
Said (1977) chamou de o ‘orientalismo’, mas também uma postura das clas-

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ses dominantes na sociedade indiana. Essas buscavam reconduzir toda ri-
queza e pluralidade de tradições locais, de devoções particulares, de ciclos
épicos, de cultos, de figuras divinas, de produções artísticas e de pensamen-
to, a uma única matriz. Atualmente, o Hindutva (exatamente ‘ser hindu’ ou
‘hinduidade’) representa uma retomada em chave identitária e, certamente,
simplificada do imenso patrimônio cultural, religioso e espiritual da Índia.
Com base em numerosos estudos, parece que o fundamentalismo
pode ser entendido como uma forma de nacionalismo. E, de forma geral, o
conflito religioso é sempre um conflito político relacionado à conquista ou
à preservação do poder. Como bem observa Enzo Pace, as religiões entram
em guerra quando pretendem se tornar ‘a linguagem pública das políticas
identitárias’. Isto é um repertório de símbolos utilizados pelos atores sociais,
étnicos ou políticos para falar do ‘inimigo’ (PACE, 2004). Parece que, nessa
perspectiva, se possa compreender melhor o fundamentalismo hindu.
Katharina e Sudir Kakar observam que um hindu “se identifica como
tal somente em relação ao muçulmano, do contrário, as argumentações so-
bre as pertenças se fazem valer mais em termos de casta” (S. e K. KAKAR,
2004). Nesta linha de pensamento, o ser Hindu emerge somente diante do
muçulmano ou do cristão. Este é um dado antropológico, cultural e psico-
lógico. A partir disso se compreende a difusão do Hindutva que envolve,
ainda hoje, não só uma massa de marginais, facilmente fanatizáveis, mas
também as classes médias indianas emergentes e, ao mesmo tempo, deso-
rientadas pela modernidade, deslumbradas pelo bem-estar ou assustadas
com a complexidade do mundo globalizado.

Os Antecedentes Ilustres do Fundamentalismo Hindu

O fundamentalismo hindu possui seus ilustres antepassados e, tam-


bém, uma história longa e complexa. Esta história remonta à luta pela inde-
pendência e até mesmo antes dela (entre os séculos XIX e XX) as tentativas
dos indianos para se redefinirem frente à civilização dos colonizadores euro-
peus. Até então, a hegemonia política e também cultural pertencia aos sahib
(senhores) brancos, enquanto que o Raj britânico (conjunto das possessões
e das áreas controladas pelos ingleses na Índia) representava a expressão po-
lítico-militar-administrativa da dominação. Para reafirmar a identidade e o
valor da civilização indiana, as classes cultas do subcontinente tiveram que

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fazer um grande esforço criativo. Além disso, até então, a Índia nunca havia
sido uma entidade política unificada e muito menos tivera um momento
na história passada no qual pudesse se inspirar. De fato, a Índia era uma
realidade muito complexa e grande para chegar a se constituir em um espa-
ço político unitário (e para ser totalmente dominada por um único agente
externo). Somente a partir do patrimônio cultural religioso bramânico foi
possível perceber o núcleo sólido de uma identidade compartilhada. É claro
que, em um primeiro momento, os muçulmanos indianos se sentiram des-
confortáveis quando a disputa prolongada com o poder colonial britânico
foi acompanhada por uma proposição da identidade indiana em chave re-
ligiosa (BATTAGLIA, 2015). Esta luta pela independência, embora Gandhi
tenha trabalhado, incansavelmente, pela unidade hindu-muçulmana, en-
contra sua referência em um líder de alto calibre espiritual hindu, cujo pen-
samento e cuja ação eram a expressão madura de pelo menos um século de
busca espiritual e tentativa de renovação do hinduísmo.
V. D. Savarkar, líder do movimento de independência, pensador que
deu início à ideologia do Hindutva, dedica as primeiras páginas do seu tra-
balho fundamental para a discussão do termo hindu (SAVARKAR, 2005). Este
autor diz que a identidade hindu não se reduz apenas ao aspecto religioso. O
Hindutva é, de fato, uma identidade comum a todos os indianos, incluindo
budistas, jainistas e sikhs, e excluindo os muçulmanos e cristãos, que segun-
do ele, se colocaram fora da nação hindu e da herança de civilização.
A controvérsia sobre o hinduísmo e a degeneração histórica é o ponto
nodal também na reflexão, na obra e nos escritos de grandes reformadores
como Swami Dayananda, cujos argumentos são incorporados na bagagem
ideológica do Hindutva contemporâneo.
Em 1914, tem lugar a Akhil Bharatiya Hindu Mahasabha (Grande
Conferência Hindu Pan-Indiana) com o objetivo de defender os direitos dos
hindus na Índia britânica, após o surgimento da Liga Muçulmana (1906).
Tratava-se da primeira organização do hinduísmo político, ou seja, do na-
cionalismo e se colocava claramente como uma organização confessional.
A Hindu Mahasabha entendia que era preciso lutar pela unidade política
dos hindus, tendo em vista o progresso cultural e econômico, bem como a
conversão dos muçulmanos1.

1 A Arya Samaj (sociedade dos arianos), fundada por Dayananda Saraswati em 1875, se en-
volveu com o movimento da shuddhi, ou seja, movimento para a conversão dos muçulmanos
indianos. A Hindu Mahasabha, mais tarde, terá papel importante nesta tarefa.

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Nos anos vinte, quando aconteceu a primeira grande crise do movi-
mento de não cooperação gandhiano, o declínio da aliança hindu-muçul-
mana, desejada por Mahatma, como também uma série de confrontos inter-
comunitários cada vez mais sangrentos, a Hindu Mahasabha foi fortemente
influenciada por Savarkar, que falava dos hindus, como sendo os habitantes
da terra santa da Índia (Hindusthan), uma ‘raça’, unida pelo sangue, por uma
cultura comum (e também por uma língua comum, o sânscrito), pelas mes-
mas instituições, por uma mesma geografia sagrada e, finalmente, por uma
história comum de resistência às invasões. Muçulmanos e cristãos indianos
são estranhos a esta raça, uma vez que as referências identitárias são outras.
O crescimento das organizações nacionalistas hindu é impressionan-
te (OZZANO, 2007). Em 1925, surge a Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS),
a União Nacional dos Voluntários, que após dois anos teria o seu “batismo
de fogo” nos confrontos intercomunitários de Nagpur. Em 1932, a União
contava com dez mil membros. Em 1951, os ‘voluntários’ eram cerca de
seiscentos mil e, atualmente, são pelo menos três milhões, apesar das esti-
mativas controversas, com cinquenta mil centros em todo o país. Em 1964,
foi criado em Bombay o Vishva Hindu Parishad (VHP), o Conselho Mundial
dos Hindus, com a finalidade de integrar os religiosos (sadhu) e os asce-
tas (sannyasin), de dar uma conotação religiosa e uma identidade marca-
damente hindu à campanha da RSS. Em 1994, o VHP contava com três mil
seções e cem mil adeptos. Em 1966, ainda em Bombay, nasce Shiva Sena,
por iniciativa de Balasaheb Thackeray, um partido com base étnica que en-
carnava o nacionalismo maharathi. Tratava-se de um movimento urbano,
xenófobo. Mesmo estando radicado no Maharashtra (importante estado da
Índia, cuja capital Bombay hoje chamada Mumbay), com o novo milênio,
o partido conhece uma expansão, em nível nacional, acolhendo as posições
do nacionalismo hindu. Em 1984, foi fundada a Bajrang Dal (Armada do
Forte), ramo juvenil do VHP, que tinha a função de ‘serviço de segurança’,
isto é, proteger as manifestações para a ‘reconquista’ do lugar sagrado de
Ayodhya (veja abaixo). Esta organização se tornou logo o braço armado do
nacionalismo hindu e tem, atualmente, duas mil e quinhentas seções2.

2 Bajrang é um dos epítetos de Hanuman (o ‘Forte’), o deus parecido com o macaco, que está
ligado a Rama por meio de uma devoção amorosa. Com a transformação de Rama em um
deus guerreiro, ponto central do culto popular criado pelo nacionalismo, também a repre-
sentação de Hanuman se modifica. Rama se transforma, mais que Kali ou Durga, no deus

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Surge, assim, uma ‘família’ de organizações (a Sangh Parivar), que
reforça e alimenta sindicatos, centros culturais, instituições educativas, di-
ferentes iniciativas centradas na cultura, nas brincadeiras (as crianças tam-
bém foram envolvidas), no esporte e nas artes marciais. Durante os anos da
Índia independente surgiram também partidos políticos que representaram
o Hindutva no parlamento: em 1951 surge o  Bharatiya Jana Sangh  (BJS),
União Indiana do Povo, que foi substituído, em 1980, pelo Bharatiya Janata
Party (BJP), o Partido Popular Indiano. Estes partidos são a expressão polí-
tica do nacionalismo hindu e, ao mesmo tempo, seus reféns, pois este movi-
mento, ou seja, o nacionalismo hindu, tem o poder de influenciar totalmen-
te as decisões e as escolhas do partido. Dessa forma, o movimento garante
votos ao partido e o partido lhe oferece cobertura política (NOORANI, 2000).

A Subida ao Poder de um Partido Hindutva

Depois de dez anos de oposição, em 2014, o BJP sobe novamente ao


poder com uma maioria no parlamento, o que lhe permite governar sem
muita preocupação durante a sua gestão. No entanto, a vitória eleitoral do
BJP revela o declínio, talvez irreversível, do Partido do Congresso e a influ-
ência do Hindutva na sociedade indiana. Se a Índia é considerada a maior
democracia do mundo, ela é um exemplo positivo da exportação da demo-
cracia fora do Ocidente, hoje é também considerada uma democracia domi-
nada por uma força política centrada, explicitamente, no fundamentalismo.
A Índia surgiu como estado laico e pluralista3 e, ao contrário do Pa-
quistão que surgiu como nação dos muçulmanos no subcontinente indiano,

dos hindus revoltados. Por conseguinte, a figura de Hanuman, representada na iconografia


tradicional com a imagem de Rama no coração vai perdendo as conotações fraternas, devo-
tas e afetivas para privilegiar o aspecto violento, a força, os músculos, a estatura gigantesca, o
bastão que agita, de maneira combativa em sua mão, contra seus inimigos e aqueles da Índia.
3
No preâmbulo da Constituição, a Índia é definida como uma república “soberana, democrá-
tica, socialista e laica (secular)”. É importante fazer algumas considerações acerca da palavra
inglês secular. A laicidade do estado indiano não corresponde de fato ao secularismo de alguns
estados europeus. Não é, para compreensão, uma laicidade francesa como veio definida por
meio dos séculos. A laicidade indiana é, ou pretende ser, respeito a todas as religiões e não uma
atitude hostil, que limita às expressões religiosas ou a presença das religiões no cenário público.
Ao contrário, representa um papel ativo do Estado: garantir a todas as comunidades religiosas
a mais alta expressão da sua identidade e a possibilidade de realizar seu estilo de vida.

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ela não é o Hindusthan, sobre o qual confabulavam Savarkar e seus seguido-
res. Na era de Nehru, o inimigo era considerado de direita, o nacionalismo
hindu. A isso o Pandit (mestre), como foi afetuosa e respeitosamente cha-
mado Nehru, desde os tempos pela luta da independência, responde en-
fatizando o caráter laico do Estado e a proteção das minorias. Aqui, como
lembra Marta Nussbaum, há certa fraqueza na reflexão nehruviana: ele con-
siderou a religião uma espécie de fardo do passado e, com isso, dedicou
pouca atenção aos aspectos ligados a essa dimensão. Porém, esses aspectos
tiveram e ainda têm uma grande influência na vida dos indianos. Ele acre-
ditava que apenas uma cultura cívica nacional pudesse servir de base para o
pluralismo e a tolerância (NUSSBAUM, 2009). Isto é exatamente o que o fun-
damentalismo hindu critica ao se pensar na Índia: o projeto de se construir
uma identidade nacional isenta e até mesmo contra o hinduísmo.
Esta visão iluminista e aristocrática de Nehru acabou por deixar livres
as organizações do Hindutva em seu trabalho meticuloso de doutrinação de
massa e de propagação incessante do medo dos muçulmanos. O medo é
outro fator que explica o contínuo crescimento do fundamentalismo hin-
du. De fato, outro elemento, que colocou a comunidade hindu em posição
defensiva e hostil foram os censos que a administração colonial organizava,
desde 1871, a cada dez anos. A sensação que os hindus tinham de serem as-
sediados pelo proselitismo cristão e islâmico foi acentuado no momento em
que os membros das diferentes comunidades tiveram acesso aos resultados
dos censos e puderam perceber as respectivas evoluções demográficas. U.N.
Mukherji, em 1909, publicou uma série de artigos, que suscitaram bastante
interesse, cujo título era: Hindus: a Dying Race (SARKAR, 2002).
No entanto, foi com Nehru e, mais tarde, com Indira Gandhi, que se
difundiu a sensação de que ser hindu significava ser discriminado, enquan-
to aos outros era garantido um lugar ao sol. Ficava, dessa forma, aberta a
discussão sobre como a igualdade de tratamento, prevista pela constitui-
ção, era garantida às diferentes comunidades religiosas pelo estado laico.
As escolhas dos governos indianos foram organizadas sob alguns critérios
norteadores: o primeiro é que os cidadãos são todos iguais, isto é, que a
população do estado é composta por indivíduos e não por grupos, por cas-
tas, tribos, categorias sociais, grupos étnicos ou por comunidades religio-
sas. A aplicação deste princípio nem sempre é linear, sobretudo, quando se
aplicam outros princípios, em particular o da discriminação positiva (para
promover as castas e grupos mais desfavorecidos), gerando certo descon-

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forto social. Uma separação absoluta, referente ao estado e às confissões
religiosas era impensável na Índia e, portanto, estava fora de cogitação. No
fim, há sempre certo pragmatismo que, ao procurar resolver um problema,
se esquece de outros mais urgentes. Na resolução dos problemas religiosos
foram abertas diversas negociações que procuravam trabalhar sobre o coe-
ficiente de disponibilidade (ou de indisponibilidade) das diversas comuni-
dades. Enquanto aos muçulmanos foi consentido manter o direito civil de
origem corânica, o direito hindu foi reformado com critérios mais moder-
nos ou progressistas, esperando o surgimento de um código civil comum
para todos (SEN, 2010).
Seria de se esperar uma ‘simetria’ na intervenção do Estado em re-
lação às diversas comunidades religiosas. No entanto, sabe-se que é difícil
estabelecer tal simetria mesmo em nível teórico. No plano prático a reali-
zação é parcial. O sociólogo indiano Partha Chatterjee, a quem não pode
ser imputado simpatias nacionalistas, observa que o princípio da igualdade
foi quebrado no momento em que escolheram intervir sobre questões refe-
rentes à maioria hindu, adiando por tempo indefinido as intervenções re-
ferentes às minorias (CHATTERJEE, 1997). Até mesmo os representantes das
oposições de esquerda consideraram que não se podia proceder com tanta
parcialidade, e que nem mesmo a argumentação de Nehru de que os muçul-
manos não estavam prontos para tal reforma era convincente. O tema po-
deria dar lugar a todo gênero de controvérsia e a prova disso são os grandes
“casos” (judiciários, mas também políticos) da Índia contemporânea, como
o da viúva Shah Bano (sobre direito da família islâmica) ou como o da mes-
quita de Ayodhya, a Babri Masjid, que, entre outros, foi o lugar de confronto
e de crescimento privilegiado dos movimentos fundamentalistas e da BJP.

Os Acontecimentos da Mesquita de Ayodhya

Os acontecimentos de Babri Masjid de Ayodhya (Uttar Pradesh) tive-


ram seu momento crucial durante a sua destruição, em dezembro de 1992,
e durante os sucessivos confrontos entre os fundamentalistas e as forças da
ordem e, especialmente, entre hindus e muçulmanos, espalhados em todo
país, com milhares de vítimas. Do ponto de vista do nacionalismo hindu, es-
tes acontecimentos possuem uma relevância histórica e até mesmo cósmica.
Advani afirma que este foi o momento em que “a alma da Índia falou”. Ele

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conecta o acontecimento em Ayodhya ao templo de Somnath (Gujarath),
um dos doze santuários ditos jyotirlinga (em que Shiva é venerado na for-
ma particular de lingam4 de luz), espalhados por toda a Índia. O templo de
Somnath surge na costa do mar Arábico e é famoso por suas grandes rique-
zas. Por isso, foi objeto recorrente de saques pelos invasores muçulmanos.
Sua última reconstrução remonta à independência nacional.
Advani sintetiza o quanto este monumento significa para os nacio-
nalistas hindus: na conjuntura da Partition (a divisão entre a Índia e o Pa-
quistão) e do derramamento de sangue que a acompanhou, era natural que
“a reafirmação cultural do espírito nacionalista da Índia encontrasse apro-
priadas linguagens e símbolos hindus para se expressar” (ADVANI, 2008, p.
842). Em suma, o templo é o símbolo da “fé nacional”. No mesmo sentido,
houve uma grande mobilização para recuperar a posse do lugar onde fora
levantada a mesquita de Ayodhya. Este era o lugar onde Rama nascera, se-
gundo a tradição, mas depois se tornou o lugar da batalha política e judicial,
a fim de se reconstruir o templo. Em um momento de crise de identidade
da Índia, foi necessário que a alma da nação voltasse a se manifestar. Pelo
que foi dito, pode-se entender a importância desta batalha que teve como
estopim o culto a Rama.
A estes eventos em Ayodhya, e ao movimento dos devotos da/e para
a cidade santa em Uttar Pradesh, ligam-se um dos episódios mais graves
entre as duas maiores comunidades religiosas da Índia: o incêndio de um
dos vagões do Expresso Sabarmati, no qual viajavam militantes e peregrinos
que retornavam de Ayodhya. Este incêndio aconteceu em 27 de fevereiro
de 2002 fazendo cinquenta e nove vítimas. A este incêndio seguiu-se um
massacre antimuçulmano, que fez centenas e, talvez, milhares de vítimas,
incluindo um grande número de crianças e mulheres.

O Hindutva entre a Renovação e o Conservadorismo

Não é fácil enfrentar as contradições de uma sociedade complexa ou


a coexistência entre diferentes comunidades religiosas. A Índia é um país
complicado. Diante de contradições, de fraquezas internas, de problemas,
parece mais fácil criar um inimigo e encontrar falhas em vez de soluções.

4 Lingam é o símbolo da divindade em forma fálica que representa seu poder criador.

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Tudo isso, talvez, explique o medo dos hindus de serem oprimidos ou es-
cravizados, a suspeita do complô, o terror do crescimento demográfico in-
controlável do inimigo, a síndrome de uma maioria assediada e até mesmo
discriminada, o pesadelo da extinção da comunidade e até mesmo os medos
contemporâneos diante do terrorismo Jihadista (lembrando que o funda-
mentalismo hindu se aliou às teses do choque de civilizações).
Segundo alguns autores, o Hindutva é um movimento que pretende
acabar com a lógica das castas. Savarkar relativizava as castas e tinha uma
visão instrumental delas, consideradas como instituições da nação. Para ele
o que contava não era a casta, mas a nação e a realização daquilo que pensa-
dores como Deendayal Upadhyaya, ideólogo do BJS e do BJP, definiria chiti,
ou seja, o ethos da Índia. A maioria dos pesquisadores acredita que o Hindu-
tva seja um movimento de caráter conservador do ponto de vista social. A
relativização das castas é, portanto, de natureza ideológica e se inscreve na
tentativa de unir os hindus, de serrar fileiras, de fornecer uma única iden-
tidade hindu que, necessariamente, deve ter uma referência nacional e não
mais territorial ou de castas. No entanto, ninguém sabia exatamente o que
era ser hindu até que Savarkar tentou dar uma resposta.
Aquilo que se chama fundamentalismo religioso é um fenômeno
eminentemente contemporâneo, caracterizado por uma busca identitária
face à desorientação causada, antes pela modernidade, e mais recentemente
pela globalização. Por isso, a religião é utilizada como um elemento identi-
tário. Trata-se, muitas vezes, de movimentos com inspirações religiosas de
caráter global. Paradoxalmente, embora nascendo de um incômodo face à
modernidade e à globalização, o fundamentalismo não é por nada um re-
torno às tradições ou às origens (ROY, 2009). Trata-se, muitas vezes, de sim-
plificações, que se apossam das pessoas que se encontram subjugadas pelos
conflitos cotidianos e são confrontadas com a diversidade e complexidade
em um mundo que muda rapidamente. Tais pessoas anseiam por respostas
tranquilizadoras.
A tentativa, conduzida pelo hinduísmo político, de mobilizar a massa
indiana parece com um sincretismo simplificado. Aquilo que aos poucos
vai se impondo, por meio do percurso histórico e cultural, que é acenado
aqui, é uma visão limitada e sequer consegue justificar a grande civilização
que se pretende preservar. E a vítima principal que o nacionalismo hindu
procura há décadas, a religião, se encontra aprisionada por uma espécie de
ideologia da raça e da terra e por um sincretismo que tenta reconduzir a

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multiplicidade das religiões da Índia a uma identidade monolítica de tipo
racial e cultural.
Os cristãos e os muçulmanos indianos se apresentam como hindus
convertidos, geralmente pela força, pois precisam, idealmente, ser recupera-
dos pela religião da maioria. O fato de ter passado muitos séculos é, para a
mentalidade e para a concepção histórica indiana, totalmente irrelevante. Por
outro lado, é típico de todo revanchismo perpetuar a memória dos erros his-
tóricos. Isso também faz parte do aparelhamento de todo fundamentalismo.
Tudo o que foi dito até agora leva, em modo de conclusão, a conside-
rar o aspecto mais problemático sobre o fundamentalismo e o nacionalismo
hindu: a relação com a violência.
Nem toda prática fundamentalista implica em uso da violência e na
justificação em termos teológicos ou moral. Fato é que, em muitos casos
concretos e, inegavelmente, o nacionalismo hindu está entre estes, os fun-
damentalismos religiosos conduzem à intolerância, à segregação, ao medo,
à agressividade e, também, a ataques violentos contra os monumentos, edi-
fícios de culto, e contra as pessoas, consideradas ‘inimigas’. A história re-
cente da Índia é recheada por episódios mais ou menos graves (alguns
gravíssimos) de violência, que remontam a uma matriz fundamentalista.
Aqui parece ser o ponto nevrálgico: a violência, extrema ou sem proporção,
é sempre justificada em termos de reação ou de defesa.
A prática do associacionismo inspirada no Hindutva possui caracte-
rísticas autoritárias, paramilitares, de forte militância e, às vezes, até de qua-
drilhas. Para muitos comentaristas, bem como para os adversários políticos,
houve a tentativa de se aproximar o nacionalismo hindu do fascismo ou do
nazismo. No entanto, Koenraad Elst tem se empenhado em sua importante
pesquisa em rejeitar fortemente qualquer ligação histórica entre Hindutva e
o nazi-fascismo, mesmo se ele acaba por atribuir toda responsabilidade da
violência intercomunitária na Índia aos muçulmanos (ELST, 2001).
O RSS é, atualmente, a maior organização não política do mundo, em-
bora essa afirmação seja, na realidade, algo a ser discutido. Concordo com
Alberto Pellissero, quando escreve que o nacionalismo hindu tem mais a
ver com a política do que com a religião (PELISSERO, 2003). Lê-se em inglês
no website oficial da Sangh o seguinte: “Em palavras simples afirmo que o
ideal da Sangh é levar a pátria ao topo de sua glória por intermédio da orga-

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nização de toda sociedade e da proteção do Hindu Dharma”5. É recorrente
nos textos do Hindutva contemporâneo a ideia fixa pela organização, pelo
enquadramento, pela disciplina e pelo caráter. M.S. Golwalkar, segundo
presidente do RSS e artífice do espetacular crescimento das organizações da
Sangh Parivar, afirmava: “o nosso objetivo não é desenvolver uma pequena
organização ao interno da sociedade hindu. O nosso objetivo é organizar a
inteira sociedade hindu”.
É provável, como sustenta Christophe Jaffrelot (1999, 2014), autor de
um dos mais profundos estudos sobre o fenômeno, que sem as domina-
ções, antes moghul e depois britânica, o Hinduísmo não teria adquirido uma
identidade ideológica militante. Os hindus não tinham uma verdadeira e
própria ortodoxia, não eram organizados de maneira centralizada e hierár-
quica, não eram conscientes o bastante da existência do ‘outro’ para terem
consciência de si mesmos. Foi, portanto, a epifania do ‘outro’, poderosa e an-
tagônica, que criou a tensão que conduziu ao nascimento do nacionalismo/
fundamentalismo hindu. Neste contexto, pode-se compreender a elabora-
ção de uma nova imagem de um hinduísmo autêntico, racional, puro, des-
provido de idolatria e práticas aberrantes, que pode ser considerado como
sendo a ‘Idade de ouro’, ou seja, a época védica.
O RSS e a Sangh Parivar nascem e se desenvolvem como uma reação
às ameaças à identidade hindu, ou às práticas e aos usos da vida religiosa e
social, que vinham de dois sujeitos um tanto secularizados: a administração
britânica do Raj e o Congresso de Nehru. Nesta perspectiva, compreende-se
a criação da VHP, organização com uma identidade religiosa mais preponde-
rante. Essa organização, ao esboçar uma definição vaga e genérica de ‘valo-
res’ hindus, pretende superar as muitas diferenças internas do mundo hindu
para reagrupar as fileiras dos devotos, atrair os secularizados, recuperar os
dalit (os intocáveis) e as tribos e, eventualmente, reconverter os muçulma-
nos e cristãos. A estratégia da organização prevê a difusão de uma versão
moderna e coerente do hinduísmo com o objetivo de dar à religiosidade
dos indianos uma ‘espinha dorsal’, que lhe permita resistir aos ataques que
sofrem por parte do Islã, do cristianismo e do secularismo. Neste sentido, a
religião deve ser forte, porque os seus inimigos são percebidos como pode-
rosos e potencialmente destrutivos.

5 Dharma é muito mais que religião. É a lei eterna, a realidade última das coisas e por isso
mesmo a sabedoria e o conjunto dos deveres das pessoas.

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Referências

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APPAIAH, P. Hindutva. Ideology and Politics. New Delhi: Deep & Deep, 2003.
BASU, K.; SUBRAHMANYAM, S. (eds.). Unravelling the Nation: Sectarian Con-
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BASU, T.; DATTA, P.; SARKAR, S.; SARKAR, T.; SEN, S. Khaki Shorts, Safron Flags.
A Critique of the Hindu Right. New Delhi: Orient Longman, 1993.
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