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Descolonização em tempos de globalização

Article · February 2022

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Marisa Bittar
Universidade Federal de São Carlos
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Descolonização em tempos de globalização


Marisa Bittar1

De uns tempos para cá, surgiram no vocabulário universitário as palavras


decolonização e decolonialidade, transplantadas do inglês decolonization.
Diferentemente do termo pós-colonial, que abrange estudos sobre o passado
dos países colonizados e a herança do colonialismo, a palavra decolonização refere-se
a um movimento teórico que atualmente prega a libertação da produção de
conhecimento da influência européia. Para esse movimento, tal influência é a base do
imperialismo ocidental.
O que significa ser anti-ocidental em termos de conhecimento? Significa negar
todo o pensamento e a cultura nascidos e difundidos pela Europa Ocidental. Como em
todo caso de restrição, as incongruências logo aparecem. Pois, no caso brasileiro, até
mesmo historiadores que, nas décadas de 1920 e 1930, criticaram a visão
europocentrista e renovaram as Ciências Sociais, como Sergio Buarque de Hollanda,
Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre são alvo de rejeição. Se o Ocidente é definido por três
palavras, cristianismo, ciência e democracia, por coerência, os defensores da
decolonização terão de cancelar esses valores.

Considerando os tempos de hoje, com um mundo globalizado, cada vez mais


integrado por redes de comunicação, é inócuo tentar separar com uma régua os
valores culturais do colonizado e os do colonizador. Tomemos o cristianismo no Brasil
como um exemplo de como as culturas agem reciprocamente umas com as outras. No
século XVI, quando os jesuítas tentaram aplicar aos indígenas os dogmas e regras que
traziam da Europa, perceberam imediatamente que, frente à cultura que encontraram
aqui, seria uma tarefa impossível. O que fizeram então? Improvisações e adaptações.
Para realizar a sua missão de cristianizar, curvaram-se à força do meio – muito mais
potente do que bulas e prescrições – e, desobedecendo ordens, cristianizaram ao seu
modo, incorporando elementos culturais que combatiam. Os resultados fizeram do
Brasil o país com maior número de cristãos no mundo; um cristianismo que adquiriu
feições próprias no contato com a cultura indígena e, depois, com a africana.
Então o que significa decolonizar o Brasil hoje? Além de negar os valores
ocidentais, a decolonialidade visaria negar também a língua do colonizador, falada de
norte a sul, de leste a oeste? E quanto aos autores? Um Index classificaria o que
devemos e o que não devemos ler? Como professora, defendo a liberdade de
pensamento. Nas minhas aulas, estão presentes culturas e valores orientais como o
islamismo, judaísmo, confucionismo etc, além de autores africanos e latino-

1
Professora Titula de História, Filosofia e Politicas da Educação (UFSCar); pesquisadora do CNPq em
História da Educação desde 2008.
2

americanos. Da mesma forma, os valores europeus. Pois, colocá-los no mesmo balaio


como agentes do imperialismo ocidental seria uma postura retrógrada e
preconceituosa.

Neste exato momento, na Índia, igrejas cristãs estão sendo depredadas por
grupos políticos extremistas. Esses ataques criminosos têm se valido do discurso
acadêmico sobre a decolonialidade, que prega a ideia de que os missionários cristãos
foram instrumentos da opressão colonial britânica. Mas escondem o fato de que
apenas 2,5% da população é cristã. Além disso, a decolonização vem sendo usada para
negar educação de qualidade à população pobre e marginalizada da Índia.

Tomando esse caso como emblemático já que a Índia é o segundo país mais
populoso do mundo, com quase 1,4 bilhão de habitantes, a decolonialidade soa como
algo anacrônico em um mundo no qual é cada vez mais tênue a linha entre o que é de
fora e o que é de dentro.

Publicado no Jornal Primeira Página


São Carlos, 01.02.2022, p. 02.

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