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IMAGENS DE DEUS E RACISMO:


da domesticação colonial e do constrangimento decolonial
ao ativismo pluralista1

Werbert Cirilo Gonçalves2

Introdução
Este texto trata-se de um depoimento a respeito de uma “conversão pluralista”. Num
contexto de racismo, entende-se por conversão pluralista o processo de conscientização no
qual uma mente, antes domesticada pelo sistema racista, se abre à compreensão do valor das
identidades humanas e culturais - sendo assim, das populações negras -, porém, não se
contentando apenas em reconhecer a dignidade destas, senão determinada a transformar a sua
concepção de diversidade em “ativismo”. Este processo se constitui como uma atitude
incessante de reflexão, expressão e incorporação existencial que tem como objetivo a
transformação da realidade na qual se vulgarizou existências sendo subalternizadas.
Neste sentido, o ativismo está além da tolerância, do respeito e do reconhecimento,
que são preceitos fundamentais para a vida em sociedade. Ele é um passo mais à frente da
também necessária admissão da diversidade humana, pois o ativismo visa a mudança nas
consciências e nas estruturas sociais; sendo importante, sobretudo, quando pensamos na
relação ambígua entre as diversas concepções religiosas e os desafios de superação do
racismo estrutural.
No que se refere à violência religiosa ou ao racismo religioso, é comum que por trás de
atitudes intolerantes (e preconceituosas) de pessoas e grupos direcionadas à população negra e
às religiões de matriz africana estejam também comportamentos e discursos justificados com
concepções intolerantes, sobretudo de lideranças religiosas racistas. Esses religiosos, na
maioria das vezes, acreditam que suas ideologias e ações são justificadas tal como uma
espécie de missão determinada por um Deus contrário à legitimidade do outro religioso e das
diferentes crenças.

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Artigo apresentado no congresso da SOTER 2022 e publicado no livro Princípio pluralista e decolonialidade
organizado pelo professor Claudio de Oliveira Ribeiro pela editora Recriar (2022), páginas 145-157.
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Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.
Atualmente, é professor no Instituto Santo Tomás de Aquino - ISTA.
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Parece-nos nítido que, sustentando a imagem de um Deus estranho à diversidade e


violento, estão igualmente firmadas concepções adversas às pluralidades religiosas e culturais
e, por vezes, racistas. Sendo assim, não se pode negar a importante contribuição das pessoas
que reconhecem e valorizam a diversidade religiosa e cultural, inclusive dos sujeitos
religiosos, e a contribuição daqueles e daquelas que estudam o fenômeno religioso presente
em nossa estrutura social e que se interessam pelo poder que as imagens de Deus têm na
consciência dos sujeitos religiosos racistas. Mais ainda, não se pode prescindir da necessária
tarefa dos que pensam o pluralismo religioso e que também voltam suas pesquisas e pautam
as suas ações de acordo com o princípio pluralista para uma, talvez utópica, porém
necessária, “redenção decolonial”.

1. A domesticação colonial e as imagens do deus racista


Onde tudo isso começa? Segundo Sílvio Almeida (2019, p. 25), “o racismo é uma
forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por
meio de práticas conscientes ou inconscientes que culimam em desvantagens ou privilégios
para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. Raça é um termo antigo
usado como forma de classificação de diversas realidades, sobretudo de plantas e animais.
Não sendo um termo estático e fixo, terá outro sentido no contexto histórico da modernidade,
quando se tornou um fenômeno de classificação de pessoas (ALMEIDA, 2019).
O racismo não é resultado apenas da imposição eurocêntrica da visão de ser humano,
de mundo, de crenças. No mesmo ideário moderno de expansão política e econômica, o
racismo é uma forma sofisticada de dominação e exploração. E daí, “o incremento das
técnicas de exploração econômica é acompanhado de uma evolução das técnicas de violência
e opressão, dentre as quais, o racismo.” (ALMEIDA, 2019, p. 56). Sem esse modelo violento
de classificação de pessoas, o projeto colonizador de exploração e domínio político e
econômico não seria bem-sucedido (QUIJANO, 2002).
Numa sociedade globalizada e multicultural, o racismo “[...] passa da destruição das
culturas e dos corpos, com ela identificados, para a domesticação de culturas e de corpos”
(ALMEIDA, 2019, p. 56). É bem mais perspicaz promover um modelo racista de
domesticação do que eliminar os indivíduos, porque o sistema econômico e político precisa
dos corpos subalternizados. A fim de que os negros, e também os indígenas, pudessem ser
usados como mão-de-obra para o funcionamento do sistema econômico e político, mais do
que eliminá-los era preciso usá-los e subutilizá-los dentro da máquina, mantendo-os numa
posição social que não pudessem romper com a dinâmica dos privilégios (QUIJANO, 2000).
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A domesticação é, assim, uma maneira perversa de aplacar ou amansar as mentes e


corpos para que os subalternizados não insurjam contra o sistema de violência. A
domesticação coisifica, massifica, acomoda os grupos ingênuos e sem a crítica necessária dos
processos de uma educação alienadora nos quais todos podemos estar imersos (FREIRE,
1977). Embora a violência esteja frequentemente explicitada nos cenários sociais, a
domesticação acontece, principalmente, de maneira implícita nas consciências para que estas
sejam coniventes com o domínio de pessoas e grupos identificados com base em
determinismos biológicos, físicos e culturais. A domesticação surge como uma ferramenta
indecorosa que leva à manutenção dos privilégios econômicos, políticos, entre outros, dos
herdeiros do ser humano europeu: concebido inadequadamente como o homem universal,
superior ao ser humano do Sul, modelo e paradigma de desenvolvimento (DUSSEL, 2012). O
jogo dos privilegiados não poderia existir sem estruturas capazes de garantir a manutenção
dos privilégios. A base ideológica é necessária para a domesticação. É, neste sentido, que,
devido à força das suas imagens e visões de mundo, a religião cristã será pervertida do seu
horizonte ético e humanístico e se tornará instrumento em prol da domesticação.
As imagens religiosas são fortes o bastante para promover, tal como as imagens
capitalistas, a domesticação dos indivíduos negros (para não se rebelarem) e brancos (para
não se incomodarem). Neste caso, o negro não se vê mais em seu lugar de direito e nem se dá
conta dos fatores que o mantém excluído e a sociedade não consegue ser crítica à condição
dos negros e nem enxergar qualquer anormalidade nos processos de subalternização de um
povo. Somos uma sociedade domesticada e a religião contribuiu muito com esse processo,
sobretudo o cristianismo, a religião do europeu, do “homem universal”, uma vez que ela
ganha status de “religião universal”. O desejo de expansão econômica e política da sociedade
europeia se transformou também num desejo de expansão cultural e também religiosa. O
desejo de universalismo do cristanismo e de sua doutrina levou muitos cristãos (Igrejas e
lideranças) a abraçarem o projeto perverso do racismo. Não por acaso, esse desejo está
igualmente atrelado ao sistema de poder político e econômico que também favoreceu e
favorece a manutenção do predomínio religioso.
As imagens de Deus constituem umas das mais poderosas representações mentais ou
concepções do sagrado próprias dos sujeitos religiosos. Entre as mais diversas imagens que
compõem o mundo de significado, as imagens são um fenômeno importante para se
compreender o ser humano religioso, como se entende e age. Elas estão relacionadas “às
dimensões simbólicas, arquetípicas e culturais, ao sistema de linguagem, às mundividências
(visões de mundo), às questões fundamentais da existência e ao poder de gerar narrativas
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(novas imagens e interpretações) e comportamentos.” (GONÇALVES, 2021, p. 55). Em


outras palavras:

Presente na consciência e compondo o imaginário religioso dos crentes, as


imagens de Deus interferem no agir dos fiéis. Isso se dá, principalmente
porque estão vinculadas a um modo de “explicar o mundo” e de “se
compreender no mundo”; consequentemente, também envolvem elaborações
a respeito do sentido da vida e do propósito da existência humana.
(GONÇALVES, 2021, p. 55).

Ao tomarmos a imagem de Deus como uma chave de interpretação do fenômeno


religioso, identificamos tão logo o poder do Sagrado em dar sentido à existência e ao
configurar a vida dos sujeitos religiosos (dimensão do agir ético) às concepções que crêem. Se
de um lado, uma imagem religiosa pode promover ações altruístas, porém, por outro lado, elas
podem provocar atitudes intolerantes e violentas. Sendo assim, não é difícil imaginar como a
concepção de um Deus adverso à pluralidade religiosa e intolerante provoca nos seus devotos
atitudes também intolerantes e violentas.
Ao falarmos de racismo, reconhecemos na história como as imagens de Deus adversas
ao pluralismo acabam por legitimar práticas de violência racial e são capazes também de
promover a domesticação dos convertidos. Por exemplo, como um discurso de ódio às
pessoas racializadas e às suas religiões, sustentado por uma imagem de Deus violenta, pode
justificar atitudes racistas e intolerantes. Os devotos de um Deus assim são capazes de
violentar as alterimagens do Sagrado, os corpos e os símbolos religiosos dos outros.
Sendo o racismo um tipo de violência presente na estrutura social, a religião não está
protegida e distante desse mal. A religião, por vezes, serviu ao “Deus adverso à pluralidade”.
Os povos originários e os negros escravizados foram desumanizados pelas concepções
religiosas dos europeus. Os negros, por exemplo, não tinham alma e se assemelhavam a
animais. O discurso religioso, que transformava a religião dos outros em crendices primitivas,
a cultura negra e indígena em invenções diabólicas e exóticas e os sujeitos racializados em
animais, era uma forma de legitimar a violência. Nesse sentido, sabendo que não se mata
iguais sem que a consciência acuse o mal, a transformação do outro na imagem do inimigo
(do demônio) não faz o ato de “violentar” um pecado, senão uma missão religiosa que conta
com a graça divina. Assim, tornou-se legítimo matar em nome de um Deus adverso à
pluralidade. Logo, não existe apenas um estado com uma política de morte, necropolítica
como nos disse Achille Mbembe (2018). Há também uma necroreligião com as suas
necroimagens de Deus.
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Ainda hoje, muitos grupos religiosos no cristianismo, conscientemente e


escandalosamente, têm promovido a violência étnico-racial. É o que comprovamos através
das pesquisas sobre as vítimas de intolerância no Brasil. Segundo as diversas agências de
pesquisa sobre racismo, o Disque 100 e a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH)
do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), um dos tipos de
intolerância mais comuns é a religiosa, sendo a maior parte das vítimas pessoas e membros de
religiões de matriz afro-brasileiras. Num país com mais de 82% de fiéis do cristianismo, a
maioria dos agentes violadores são pessoas também religiosas, predominantemente homens
brancos e cristãos. Vale pontuar que não se trata apenas de uma questão racial, senão também
de machismo, uma vez que mais de 53% das vítimas são mulheres negras (conforme os dados
de 2011 a 2018 do Disque 100). Os privilégios de que gozam os membros da religião
predominante favorece a manutenção do racismo. O poder político da religião hegemônica -
num cenário onde o estado laico tem feições cristãs - invisibiliza a violência contra grupos de
minorias religiosas racializadas, como no caso de pessoas do candomblé e da umbanda (etc.) e
até mesmo de brancos filiados às religiosidades herdadas dos negros traficados para o Brasil.
O discurso religioso violento contra os racializados ainda está presente em mentes
domesticadas e doutrinadas pelos generais do Deus racista e adverso à pluralidade. Ela serve
ao sistema de privilégios, à necropolítica e deslegitima qualquer ação contrária. Ele acontece
de “maneira explícita”, como nas pregações dos discípulos do Deus adverso e intolerante, de
“maneira implícita”, como nas atitudes de silenciamento, apagamento e exclusão social.

2. O constrangimento decolonial e o ativismo pluralista.


A libertação da domesticação das mentes se dá junto com um processo no qual os
sujeitos subalternizados ou mesmo os sujeitos de grupos privilegiados aprendem sobre o valor
da diversidade e se dão conta do violento sistema de escravização das consciências dominadas
pela colonialidade. Essa libertação se faz como síntese de um processo dialético no qual a
mente domesticada aprende e reflete sobre a estrutura de racismo que, por vezes, é apoiada
por imagens religiosas de um Deus intolerante e racista. Uma autêntica educação pluralista,
que oferece consciência da diversidade e da real identidade dos sujeitos que estavam
domesticados, provoca ainda o entendimento que há um poderoso sistema racista e de
privilegiados. Esse entendimento desperta nas mentes um inevitável ativismo, utópico e
necessário, para lutar e promover um estado social de bem comum, de igualdade e
fraternidade social.
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Todo esse processo dialético inicia-se com uma espécie de conversão pluralista. A
conversão pluralista se consolida de acordo com as pautas tão importantes que vêm sendo
propostas com base no princípio pluralista (RIBEIRO, 2017), isto é, uma adequação da práxis
e do discurso aos valores éticos, aos direitos humanos, à defesa da vida, o respeito aos
símbolos, aos corpos em sua diversidade, às estéticas, liturgias, crenças e não crenças, aos
saberes tradicionais, às espiritualidades e místicas, etc. No processo de superação da
domesticação da colonialidade, acontece mais do que a atitude de tolerância, senão acontece a
consciência de legitimação do outro religioso e o respeito pelas suas “imagens do Sagrado”.
A conversão pluralista é uma ação pessoal profunda de mudança de mentalidade - uma
metanoia, na qual o sujeito então “convertido” desvia o olhar das estruturas alienantes e volta
a sua atenção para o reconhecimento de si mesmo, da sua dignidade e identidade. No caso do
nosso discurso sobre o racismo, essa conversão implica num movimento reverso à
domesticação, refere-se ao processo de educação que visa a libertação das mentes dos
encantos da colonialidade. Nessa ação se legitima a alteridade e as diferenças: não racializa e
nem divide; confessa a própria identidade e assume os diversos, em sua singularidade, como
fraternos; sente empatia pelos diferentes violentados e assume também com a vida o ethos do
princípio que transformou o seu modo de ser, ver e pensar a realidade; livra a consciência das
lógicas exclusivistas e absolutistas; descentraliza as visões unilaterais e coloca a diversidade
no centro do pensar em conjunto.
Essa conversão nasce em meio ao que podemos chamar de constrangimento
decolonial. É sabido que a colonialidade trata-se do processo de repetição das estruturas
coloniais, a partir da lógica de exploração e domínio colonizador, que se reproduz “em
dimensões do poder (econômico e político), do saber (conhecimento) e do ser (do gênero,
sexualidade, subjetividade e conhecimento).” (MIGNOLO, 2010, p. 11). Já a decolonialidade
é a reação ou o movimento de oposição à dominação; isto é, a refutação, a resistência e o
protesto contra a domesticação e as estruturas de poder que mantém a colonialidade
(CARVALHO, 2021).
Como dissemos, a conversão produz não necessariamente um arrependimento, mas um
constrangimento. Este constrangimento é resultado da consciência de que de algum modo
estamos no meio de uma sociedade que vive e corrobora para a manutenção das estruturas de
violência étnico-racial. Os processos de educação pluralista criam em nós uma espécie de
análise de conjuntura e revisão de vida que ousa nos libertar das concepções racistas ao
mesmo tempo que provoca um mal-estar decolonial.
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Agora com certo espanto identificamos que ao nosso lado e neste exato momento
corpos estão sendo violentados, sagrados estão sendo profanados, mentes estão sendo
domesticadas e muitas vidas passam a perder o sentido porque mais um templo sagrado está
sendo quebrado pela intolerância. Olhando para a cidade, o constrangimento fica evidente.
Somos uma sociedade hipócrita e obscena, porque mesmo diante de tanta violência e mesmo
diante de tantas manifestações e grupos conscientes, em nossos territórios, ainda se venera,
em praças públicas, “os traficantes e senhores de escravizados”; sem contar que os nossos
caminhos e ruas ainda eternizam os nomes dos algozes de nossos pais negros. Pelo visto,
andamos diante dessa afronta de uma sociedade sem empatia pelos vitimados da
colonialidade. Em púlpitos e em plenários, não são raras as cenas em que crentes e políticos
demonizam a religiosidade dos negros e riem da sua estética. E, lamentavelmente, ainda
conseguem nos domesticar.
Vejam, o mal-estar gerado pelo constrangimento decolonial não é de modo nenhum
plenamente negativo, pois ele se torna um instrumento de incômodo que nos move (ou pode
nos mover) em busca de uma “redenção decolonial”, isto é, um ato de desagravo ao sagrado
de nós mesmos e de tantos irmãos e irmãs negros. O desagravo é necessário e urgente devido
à violência das mentes domesticadas, ao apagamento histórico e social, ao ódio à estética dos
corpos negros e indígenas, à vergonha dos saberes e da pobreza à qual fomos condenados, à
rejeição aos também irmãos e herdeiros das senzalas, aos estereótipos que assassinam
inocentes corpos negros, etc. A redenção só existe quando nos tornamos, para além de
conscientes do valor da diversidade e das identidades, conscientes do nosso papel social.
A conversão se dá junto com o processo de constrangimento quando se identifica o
óbvio: o racismo real. Os números agora nos acompanham: todos os negros são vítimas, mas
muitos não se dão conta. Além da maioria das vítimas de intolerância religiosa, outros
registros demarcam a cor da maioria dos violentados pelo racismo no Brasil: as taxas de
analfabetismos, da população penitenciária, de violência obstétrica, do trabalho escravo
contemporâneo, dos policiais negros mortos em operação, dos vitimados por chacinas em
favelas, os sem acesso à cultura e à saúde, os mortos pelo convid-19, os sem direito à cidade,
etc. (FBSP, 2020). Destaca-se ainda as menores porcentagens de médicos e outras profissões
elitizadas e menor número de negros em funções de poder social. Sem contar que a miséria
que condena a população negra, por si só, já é violenta. Diante disso, não se pode fechar os
olhos nem encerrar os lábios; é urgente e é preciso se envolver.
Não basta um arrependimento, são necessários todos os protocolos comuns àquele
sacramento: mudança de mentalidade, confissão pública e ações que revelem o novo ser
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humano. Assim, o caminho se inicia com a confissão e termina com o profetismo: a denúncia
como crítica social e religiosa.
A conversão pluralista leva a um ativismo convergente aos predicados intuídos do
princípio pluralista, naquilo que se refere aos postulados éticos, axiológicos, teológicos,
decoloniais e dos valores morais, espirituais, estéticos, entre outros (RIBEIRO, 2021). É certo
que o princípio pluralista é contrário ao universalismo (doutrina de uma verdade universal e
absoluta), mas também não é relativismo, pois não entende que todas as realidades,
concepções religiosas e imagens teológicas são “autênticas”, por exemplo, as violentas e
intolerantes. Admite-se o valor das religiosidades, mas não admite concepções com pretensão
de superioridade, exclusivismo, sobretudo, não admite as concepções intolerantes e violentas
como as imagens religiosas racistas.
Ele se fundamenta no pressuposto da pluralidade e/ou da diversidade. Da sua
centralidade epistemológica dos muitos e diversos (plurais e diferentes), o princípio pluralista
não é mera retórica sobre a realidade do pluralismo humano e religioso. Nas palavras de
Claudio Ribeiro, o princípio pluralista:

[...] é um instrumento de mediação teológica e análise da realidade


sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e
posicionamentos que são gerados nos ‘entre-lugares’, bordas e fronteiras das
culturas e das esferas de institucionalidades.” Ele possibilita divergências e
convergências novas, outros pontos de vista, perspectivas críticas e
auto-críticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas
e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os
diferenciais de poder presentes na sociedade (RIBEIRO, 2017, p. 11).

Em suma, a conversão pluralista é ainda mais profunda do que a simples compreensão


do fenômeno religioso e das compreensões do Deus racista presente em nosso cenário.
Trata-se de uma conversão que se faz de um processo que tem como escopo a redenção da
própria história pessoal e coletiva em vista do que nos propõe o princípio pluralista. É nesse
sentido, que a conversão leva ao ativismo pluralista. Trata-se de um ativismo que é ainda uma
consciência das urgentes tarefas e defesas dos plurais ou dos diferentes, ou seja, do ativismo
político, social, teológico, religioso, decolonial, anti-racista, favorável às pequenas cidadanias,
aos esquecidos e subalternizados - muito pertinente com a amizade social, daí a sua coragem
em ser uma denúncia, em exigir que o outro seja livre, respeitado, feliz, como se referiu o
Papa Francisco (2020) na Encíclica Fratelli Tutti.
Nesse ativismo, os pluralistas assumem o seu lugar de fala e fazem do seu
protagonismo: militância. Dialogam e tornam as suas vidas uma convergência ao princípio
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pluralista, tal como uma ideologia, no seu sentido mais positivo, uma ideia, um modo de ser,
um modo de compreender, um modo de se compreender: esta é a conversão pluralista que
leva ao ativismo ou a uma tarefa comum. O princípio pluralista deve provocar cada um, em
seu lugar de fala e de escuta, o urgente ativismo social, mas também acadêmico para o bem
comum.
O nosso contexto político e histórico nos mostra que uma sociedade domesticada e
racista sobreviverá ainda muito tempo financiada pelos privilégios de poucos e pelas
manobras dos poderes políticos e econômicos. Mas, é possível fazermos muitas coisas para
que corpos e símbolos sagrados não sejam violados pela intolerância religiosa. De um lado, os
teólogos e religiosos pluralistas são provocados a demonstrarem as imagens amorosas de um
Deus (Mistério, Sagrado, etc.) que acolhe e respeita a diversidade, ao mesmo tempo, que
renunciam e denunciam as imagens do Deus intolerante e violento contra os povos negros.
Ademais, além de toda sociedade, os estudiosos do pluralismo são convocados a se envolver
nas diversas pautas de enfrentamento do racismo, sem prescindir de tantas outras pautas que
precisam seriamente da nossa atenção e ativismo.

Considerações finais
A nossa proposta tratou-se de um testemunho que tem como escopo a reflexão sobre o
tema imagens de Deus, racismo e o princípio pluralista, sobretudo no que se refere a três
perspectivas, a saber: a alterimagens coloniais, conversão pluralista e redenção decolonial. O
objetivo foi refletir sobre a existência de concepções cristãs racistas e convergentes à
mentalidade colonialista, ao mesmo tempo demonstrar como essas concepções acabam por
revelar a imagem de um Deus intolerante e adverso à pluralidade religiosa. Isso não significa
renunciar a própria identidade ou religiosidade, mas uma ressignificação das suas imagens de
Deus de acordo com uma educação pluralista.
O processo de educação pluralista, pautado na compreensão do valor do outro e no
reconhecimento da “legitimidade das crenças”, possibilita a superação de imagens religiosas
comuns à colonialidade. Orientado por um princípio de reconhecimento e valoração da
diversidade, esse processo leva ao rompimento com aquela mentalidade domesticada pelo
processo violento do racismo estrutural, e desloca as consciências para uma forma de
constrangimento decolonial, um estado de mal-estar ético diante do reconhecimento da
imersão de muitas doutrinas religiosas poderosas e de mentes cristãs, ainda subalternizadas e
resignadas, ao sistema racista. Em outras palavras, o processo de educação pluralista leva à
compreensão não apenas de que vivemos numa sociedade estruturalmente racista, mas que,
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ainda hoje, no cristianismo, há imagens (concepções religiosas) que acabam por testificar e
perpetuar um sistema violento de intolerância, discriminação, apagamento social,
silenciamento, desigualdade, etc.
Se o processo de educação pluralista desloca da domesticação colonial ao
constrangimento decolonial, o princípio pluralista surge como síntese desse processo
dialético entre mente subalternizada e consciência decolonial contribuindo para a
desconstrução das imagens adversas ao pluralismo religioso, por vezes, intolerantes e
violentas, provocando uma espécie de ativismo pluralista que move as consciências ao
engajamento ético que visa um mundo mais humanizado, de relações mais fraternas e
respeitosas, bem como antirracista.
Há uma urgência! Não se pode mais adiar! É necessário um esforço comum,
envolvendo diversas pessoas e grupos, ciências, saberes, culturas, bem como diversos agentes
públicos, privados, religiosos e não religiosos. A mudança é religiosa, epistemológica,
cultural e ideológica. Precisa ser uma mudança das imagens religiosas, do sistema e das
estruturas; por isso não é tão simples e envolve tempo, privilégios, isto é, uma grande
conversão. Não se pode tolerar as imagens intolerantes em prol da existência da própria
diversidade e das vidas negras, indígenas e tantas outras vítimas na história. Não se pode
aceitar o silêncio social, das pessoas de boa vontade, nem dos promotores do diálogo
inter-religioso, nem dos defensores dos direitos humanos e, sobretudo, dos estudiosos do
pluralismo.

Referências
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
11

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