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Introdução
Este texto trata-se de um depoimento a respeito de uma “conversão pluralista”. Num
contexto de racismo, entende-se por conversão pluralista o processo de conscientização no
qual uma mente, antes domesticada pelo sistema racista, se abre à compreensão do valor das
identidades humanas e culturais - sendo assim, das populações negras -, porém, não se
contentando apenas em reconhecer a dignidade destas, senão determinada a transformar a sua
concepção de diversidade em “ativismo”. Este processo se constitui como uma atitude
incessante de reflexão, expressão e incorporação existencial que tem como objetivo a
transformação da realidade na qual se vulgarizou existências sendo subalternizadas.
Neste sentido, o ativismo está além da tolerância, do respeito e do reconhecimento,
que são preceitos fundamentais para a vida em sociedade. Ele é um passo mais à frente da
também necessária admissão da diversidade humana, pois o ativismo visa a mudança nas
consciências e nas estruturas sociais; sendo importante, sobretudo, quando pensamos na
relação ambígua entre as diversas concepções religiosas e os desafios de superação do
racismo estrutural.
No que se refere à violência religiosa ou ao racismo religioso, é comum que por trás de
atitudes intolerantes (e preconceituosas) de pessoas e grupos direcionadas à população negra e
às religiões de matriz africana estejam também comportamentos e discursos justificados com
concepções intolerantes, sobretudo de lideranças religiosas racistas. Esses religiosos, na
maioria das vezes, acreditam que suas ideologias e ações são justificadas tal como uma
espécie de missão determinada por um Deus contrário à legitimidade do outro religioso e das
diferentes crenças.
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Artigo apresentado no congresso da SOTER 2022 e publicado no livro Princípio pluralista e decolonialidade
organizado pelo professor Claudio de Oliveira Ribeiro pela editora Recriar (2022), páginas 145-157.
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Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.
Atualmente, é professor no Instituto Santo Tomás de Aquino - ISTA.
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Todo esse processo dialético inicia-se com uma espécie de conversão pluralista. A
conversão pluralista se consolida de acordo com as pautas tão importantes que vêm sendo
propostas com base no princípio pluralista (RIBEIRO, 2017), isto é, uma adequação da práxis
e do discurso aos valores éticos, aos direitos humanos, à defesa da vida, o respeito aos
símbolos, aos corpos em sua diversidade, às estéticas, liturgias, crenças e não crenças, aos
saberes tradicionais, às espiritualidades e místicas, etc. No processo de superação da
domesticação da colonialidade, acontece mais do que a atitude de tolerância, senão acontece a
consciência de legitimação do outro religioso e o respeito pelas suas “imagens do Sagrado”.
A conversão pluralista é uma ação pessoal profunda de mudança de mentalidade - uma
metanoia, na qual o sujeito então “convertido” desvia o olhar das estruturas alienantes e volta
a sua atenção para o reconhecimento de si mesmo, da sua dignidade e identidade. No caso do
nosso discurso sobre o racismo, essa conversão implica num movimento reverso à
domesticação, refere-se ao processo de educação que visa a libertação das mentes dos
encantos da colonialidade. Nessa ação se legitima a alteridade e as diferenças: não racializa e
nem divide; confessa a própria identidade e assume os diversos, em sua singularidade, como
fraternos; sente empatia pelos diferentes violentados e assume também com a vida o ethos do
princípio que transformou o seu modo de ser, ver e pensar a realidade; livra a consciência das
lógicas exclusivistas e absolutistas; descentraliza as visões unilaterais e coloca a diversidade
no centro do pensar em conjunto.
Essa conversão nasce em meio ao que podemos chamar de constrangimento
decolonial. É sabido que a colonialidade trata-se do processo de repetição das estruturas
coloniais, a partir da lógica de exploração e domínio colonizador, que se reproduz “em
dimensões do poder (econômico e político), do saber (conhecimento) e do ser (do gênero,
sexualidade, subjetividade e conhecimento).” (MIGNOLO, 2010, p. 11). Já a decolonialidade
é a reação ou o movimento de oposição à dominação; isto é, a refutação, a resistência e o
protesto contra a domesticação e as estruturas de poder que mantém a colonialidade
(CARVALHO, 2021).
Como dissemos, a conversão produz não necessariamente um arrependimento, mas um
constrangimento. Este constrangimento é resultado da consciência de que de algum modo
estamos no meio de uma sociedade que vive e corrobora para a manutenção das estruturas de
violência étnico-racial. Os processos de educação pluralista criam em nós uma espécie de
análise de conjuntura e revisão de vida que ousa nos libertar das concepções racistas ao
mesmo tempo que provoca um mal-estar decolonial.
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Agora com certo espanto identificamos que ao nosso lado e neste exato momento
corpos estão sendo violentados, sagrados estão sendo profanados, mentes estão sendo
domesticadas e muitas vidas passam a perder o sentido porque mais um templo sagrado está
sendo quebrado pela intolerância. Olhando para a cidade, o constrangimento fica evidente.
Somos uma sociedade hipócrita e obscena, porque mesmo diante de tanta violência e mesmo
diante de tantas manifestações e grupos conscientes, em nossos territórios, ainda se venera,
em praças públicas, “os traficantes e senhores de escravizados”; sem contar que os nossos
caminhos e ruas ainda eternizam os nomes dos algozes de nossos pais negros. Pelo visto,
andamos diante dessa afronta de uma sociedade sem empatia pelos vitimados da
colonialidade. Em púlpitos e em plenários, não são raras as cenas em que crentes e políticos
demonizam a religiosidade dos negros e riem da sua estética. E, lamentavelmente, ainda
conseguem nos domesticar.
Vejam, o mal-estar gerado pelo constrangimento decolonial não é de modo nenhum
plenamente negativo, pois ele se torna um instrumento de incômodo que nos move (ou pode
nos mover) em busca de uma “redenção decolonial”, isto é, um ato de desagravo ao sagrado
de nós mesmos e de tantos irmãos e irmãs negros. O desagravo é necessário e urgente devido
à violência das mentes domesticadas, ao apagamento histórico e social, ao ódio à estética dos
corpos negros e indígenas, à vergonha dos saberes e da pobreza à qual fomos condenados, à
rejeição aos também irmãos e herdeiros das senzalas, aos estereótipos que assassinam
inocentes corpos negros, etc. A redenção só existe quando nos tornamos, para além de
conscientes do valor da diversidade e das identidades, conscientes do nosso papel social.
A conversão se dá junto com o processo de constrangimento quando se identifica o
óbvio: o racismo real. Os números agora nos acompanham: todos os negros são vítimas, mas
muitos não se dão conta. Além da maioria das vítimas de intolerância religiosa, outros
registros demarcam a cor da maioria dos violentados pelo racismo no Brasil: as taxas de
analfabetismos, da população penitenciária, de violência obstétrica, do trabalho escravo
contemporâneo, dos policiais negros mortos em operação, dos vitimados por chacinas em
favelas, os sem acesso à cultura e à saúde, os mortos pelo convid-19, os sem direito à cidade,
etc. (FBSP, 2020). Destaca-se ainda as menores porcentagens de médicos e outras profissões
elitizadas e menor número de negros em funções de poder social. Sem contar que a miséria
que condena a população negra, por si só, já é violenta. Diante disso, não se pode fechar os
olhos nem encerrar os lábios; é urgente e é preciso se envolver.
Não basta um arrependimento, são necessários todos os protocolos comuns àquele
sacramento: mudança de mentalidade, confissão pública e ações que revelem o novo ser
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humano. Assim, o caminho se inicia com a confissão e termina com o profetismo: a denúncia
como crítica social e religiosa.
A conversão pluralista leva a um ativismo convergente aos predicados intuídos do
princípio pluralista, naquilo que se refere aos postulados éticos, axiológicos, teológicos,
decoloniais e dos valores morais, espirituais, estéticos, entre outros (RIBEIRO, 2021). É certo
que o princípio pluralista é contrário ao universalismo (doutrina de uma verdade universal e
absoluta), mas também não é relativismo, pois não entende que todas as realidades,
concepções religiosas e imagens teológicas são “autênticas”, por exemplo, as violentas e
intolerantes. Admite-se o valor das religiosidades, mas não admite concepções com pretensão
de superioridade, exclusivismo, sobretudo, não admite as concepções intolerantes e violentas
como as imagens religiosas racistas.
Ele se fundamenta no pressuposto da pluralidade e/ou da diversidade. Da sua
centralidade epistemológica dos muitos e diversos (plurais e diferentes), o princípio pluralista
não é mera retórica sobre a realidade do pluralismo humano e religioso. Nas palavras de
Claudio Ribeiro, o princípio pluralista:
pluralista, tal como uma ideologia, no seu sentido mais positivo, uma ideia, um modo de ser,
um modo de compreender, um modo de se compreender: esta é a conversão pluralista que
leva ao ativismo ou a uma tarefa comum. O princípio pluralista deve provocar cada um, em
seu lugar de fala e de escuta, o urgente ativismo social, mas também acadêmico para o bem
comum.
O nosso contexto político e histórico nos mostra que uma sociedade domesticada e
racista sobreviverá ainda muito tempo financiada pelos privilégios de poucos e pelas
manobras dos poderes políticos e econômicos. Mas, é possível fazermos muitas coisas para
que corpos e símbolos sagrados não sejam violados pela intolerância religiosa. De um lado, os
teólogos e religiosos pluralistas são provocados a demonstrarem as imagens amorosas de um
Deus (Mistério, Sagrado, etc.) que acolhe e respeita a diversidade, ao mesmo tempo, que
renunciam e denunciam as imagens do Deus intolerante e violento contra os povos negros.
Ademais, além de toda sociedade, os estudiosos do pluralismo são convocados a se envolver
nas diversas pautas de enfrentamento do racismo, sem prescindir de tantas outras pautas que
precisam seriamente da nossa atenção e ativismo.
Considerações finais
A nossa proposta tratou-se de um testemunho que tem como escopo a reflexão sobre o
tema imagens de Deus, racismo e o princípio pluralista, sobretudo no que se refere a três
perspectivas, a saber: a alterimagens coloniais, conversão pluralista e redenção decolonial. O
objetivo foi refletir sobre a existência de concepções cristãs racistas e convergentes à
mentalidade colonialista, ao mesmo tempo demonstrar como essas concepções acabam por
revelar a imagem de um Deus intolerante e adverso à pluralidade religiosa. Isso não significa
renunciar a própria identidade ou religiosidade, mas uma ressignificação das suas imagens de
Deus de acordo com uma educação pluralista.
O processo de educação pluralista, pautado na compreensão do valor do outro e no
reconhecimento da “legitimidade das crenças”, possibilita a superação de imagens religiosas
comuns à colonialidade. Orientado por um princípio de reconhecimento e valoração da
diversidade, esse processo leva ao rompimento com aquela mentalidade domesticada pelo
processo violento do racismo estrutural, e desloca as consciências para uma forma de
constrangimento decolonial, um estado de mal-estar ético diante do reconhecimento da
imersão de muitas doutrinas religiosas poderosas e de mentes cristãs, ainda subalternizadas e
resignadas, ao sistema racista. Em outras palavras, o processo de educação pluralista leva à
compreensão não apenas de que vivemos numa sociedade estruturalmente racista, mas que,
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ainda hoje, no cristianismo, há imagens (concepções religiosas) que acabam por testificar e
perpetuar um sistema violento de intolerância, discriminação, apagamento social,
silenciamento, desigualdade, etc.
Se o processo de educação pluralista desloca da domesticação colonial ao
constrangimento decolonial, o princípio pluralista surge como síntese desse processo
dialético entre mente subalternizada e consciência decolonial contribuindo para a
desconstrução das imagens adversas ao pluralismo religioso, por vezes, intolerantes e
violentas, provocando uma espécie de ativismo pluralista que move as consciências ao
engajamento ético que visa um mundo mais humanizado, de relações mais fraternas e
respeitosas, bem como antirracista.
Há uma urgência! Não se pode mais adiar! É necessário um esforço comum,
envolvendo diversas pessoas e grupos, ciências, saberes, culturas, bem como diversos agentes
públicos, privados, religiosos e não religiosos. A mudança é religiosa, epistemológica,
cultural e ideológica. Precisa ser uma mudança das imagens religiosas, do sistema e das
estruturas; por isso não é tão simples e envolve tempo, privilégios, isto é, uma grande
conversão. Não se pode tolerar as imagens intolerantes em prol da existência da própria
diversidade e das vidas negras, indígenas e tantas outras vítimas na história. Não se pode
aceitar o silêncio social, das pessoas de boa vontade, nem dos promotores do diálogo
inter-religioso, nem dos defensores dos direitos humanos e, sobretudo, dos estudiosos do
pluralismo.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019 (E-book).
DUSSEL, Enrique. Para um diálogo inter-filosófico Sul-Sul. Filosofazer, Passo Fundo, n. 41,
p. 11-30, 2012.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
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GONÇALVES, Werbert Cirilo. Imagens de Deus, ícones do Mistério: por uma teologia e um
ethos cristãos do pluralismo religioso sob a inspiração das imagens de Deus na teologia
mística da tradição apofática. 2021. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) - PUC Minas
Belo Horizonte, 2021.
RIBEIRO, Cláudio. O debate sobre o princípio pluralista: um primeiro balanço. In: RIBEIRO,
Cláudio (org.). O princípio pluralista em debate. São Paulo: Recriar, 2021. p. 11-53.