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EUGENIO DE CASTRO CALDAS

A AGRICULTURA

NA HISTORIA

DE PORTUGAL

I
Título: A Agricultura na História de Portugal
© 1998, Eugénio de Castro Caldas
Editor: E.P.N. - Empresa de Publicações Nacionais, Lda.
Capa: Paulo Costa
Composição e Paginação: Rui Garcia
Impressão: Tilgráfíca - Soe. Gráfica, SA
Depósito Legal: 127847/98
ISBN: 972-97928-0-1
Tiragem: 5000 exemplares

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;LG7. JAN. 1399*161100

EUGÉNIO DE CASTRO CALDAS

PROFESSOR CATEDRÁTICO
DO
INSTITUTO SUPERIOR DE AGRONOMIA

A AGRICULTURA

NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

LISBOA
1998
Edição patrocinada por

vida Bayer
rural Protecção das Plantas
IMCMP

tf) N OVARTIS Kuboho


& Novaro» Agro, Lda. KNOT flHNS
ProtocçAo da Plantai
NEW HOLLAND

Balcão
Clurai BOLSA DE TERRENOS AGRÍCOLAS
A Meus Netos
INTRODUÇÃO

Recordamo-nos de ter sido muito cedo que tomámos consciência de que a informação
científica no âmbito dos conhecimentos de Agricultura somente progride e se fundamenta com
o auxílio de múltiplos ramos das Ciências. Durante muito tempo existiram analogias signifi-
cativas de informação básica entre a Agricultura e a Medicina e Filosofia. Foi determinante o
facto de ter existido uma Universidade única durante muito tempo, solicitada à Santa Sé por
um grupo de Prelados reunidos com D. Diniz em Montemor o Velho em 1288. Dez anos volvi-
dos chegou a Bula sendo Lisboa escolhida para instalar os "Estudos Gerais" no bairro de Al-
fama, somente de Leis, Cânones, Gramática, Lógica e Medicina. Os Estudos Gerais foram
transferidos para Coimbra, regressando a Lisboa por decisão de D. Fernando. D. João I confe-
riu à Universidade de Alfama altas funções, tendo o Infante D. Henrique feito doação de edifí-
cios, procedendo à criação de Aulas de Geometria e de Astronomia, essenciais para que se
prestassem novos serviços às Navegações e Descobrimentos. Em 1537 D. João III fez retomar
a Universidade a Coimbra. A Agricultura mantinha-se, entretanto, "artezanal" modificando-se,
sem dúvida pela influência dominante da Educação Familiar e do Clero, não podendo enten-
der-se que os "Mestres" se baseassem em fundamentos científicos, mas em conclusões empí-
ricas o que não deixava de ser importante e eficaz. Em 1559 o Cardeal Infante D. Henrique
inaugurou nova Universidade em Évora, que entregou a Jesuítas e chegou a formar Severim
de Faria em Artes e Filosofia, devendo ser considerado defensor do Desenvolvimento Harmo-
nizado que se transformou, com o movimento da Restauração, em declínio da interpretação
medieval das actividades humanas, representando a "Alvorada da Industrialização", abrindo
caminho à entrega ao Conde da Ericeira da direcção da Marinha, do Comércio e das Manufac-
turas, o que permite considerá-lo o Colbert português. Terá sido a influência inglesa que difi-
cultou a criação de Indústrias, levando o Conde ao suicídio em 1690. Em 1703, ao ser celebra-
do o "Tratado de Methuin", Indústrias que poderiam ter transformado o "Artezanato Agríco-
la" encontravam-se em crise. Mesmo assim, embora com o País destituído de "elites" autênti-
cas e do apoio científico do Ensino, o Ouro do Brasil consentiu que D. João V estimulasse a
presença de estrangeiros, fundando a Real Academia de História e a Biblioteca da Universida-
de de Coimbra onde os Estudantes haviam de encontrar as "luzes" o que lhes proporcionaria
efeitos de "Deslumbramento". O Marquês de Pombal, com a expulsão dos Jesuítas, ocasionou
a morte da Universidade de Évora, ao fim de 200 anos, sem alcançar qualquer transformação
na Universidade de Coimbra que voltou a ser a "única". Mesmo assim procedeu a profundas
reformas na Agricultura, como na Região Demarcada do Douro, mas não conseguiu de Coim-
bra mais do que o acréscimo de Ensino de Matemática e de Filosofia. Por isso criou paralela-
mente a Aula do Comércio e o primeiro Plano de Escolas Primárias com Mestres de Ler, Es-
crever e Contar e Secundárias de Latim, Grego e Filosofia. Extinguiu a "Escravatura" no terri-
tório continental, decretando a liberdade para os índios do Brasil. No entanto, com a firme con-
vicção de que era indispensável colocar a Ciência aò serviço do "industrialismo", criou a Aula
Náutica no Porto em 1764, que se transformou na Academia Real da Marinha e do Comércio,

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em 1803, a Aula do Comércio instituída em Lisboa no ano de 1759 e a Academia Real de For-
tificação, Artilharia e Desenho, em Lisboa, que passou a formar Engenheiros desde 1790. Es-
tava iniciado o "cerco" à unicidade Coimbrã que acabara também por transigir nomeando Prof,
da Faculdade de Filosofia, em 1772, Avelar Brotero que, depois de frequentar o Colégio dos
Arrábidos de Mafra emigrara para França dedicando-se ao Estudo de Ciências Naturais e dou-
torando-se em Medicina na Universidade de Reims. Brotero foi encarregado de regência da
Cadeira de Botânica e Agricultura, escrevendo para seus Alunos "Princípios de Agricultura Fi-
losófica" e investigando profundamente a Flora de Portugal. As reformas do Marquês, quan-
do o Ensino competia às Famílias e ao Clero representam um "mundo novo" a despertar do
"obscurantismo" as "trevas em que se abismava o Povo". Deram lugar à implantação do "Enci-
clopedismo" de que serve de exemplo a "Recriação Filosófica ou Diálogo sobre Filosofia Na-
tural, para instrução de pessoas curiosas que não frequentaram as Aulas" do P. Theodoro de
Almeida que se refere no texto. Muito mais tarde, em 1836, foi criado em Coimbra o Ensino
com a designação de Economia Rural e Tecnologia, que não deixou rasto, acabando por dar
lugar à Antropologia, Paleontologia Humana e Arqueologia Pré-Histórica, o que foi inovador.
Em Coimbra a Universidade registou a colaboração, aliás efémera de Pedro Nunes que fre-
quentara em Salamanca estudos de Artes, Matemática e Medicina, inventando o "nónio" e
aprofundando a "arte de navegar", sendo nomeado Cosmógrafo do Reino. Também o Sábio
Naturalista Garcia da Orta, depois de frequentar as Universidades de Salamanca e de Alcalá
de Henares, onde alcançou diplomas de Artes, Filosofia e Medicina, manteve breve colabora-
ção com Coimbra no Ensino de Filosofia, embarcando em 1534 para a índia onde estudou as
mais raras e curiosas Plantas Orientais. Mas, com a expulsão dos Jesuítas, o Marquês privou
dos seus Mestres a Universidade de Évora, que viria a ter a duração de 200 anos, voltando a
Universidade de Coimbra a ser a "única". No reinado de D. Pedro II, sob o signo da "industria-
lização" as Fábricas poderiam ter nascido em Portugal oferecendo à Indústria, com o auxílio
das Ciências Naturais, lugar idêntico ao da Agricultura no "santuário" do "Artezanato" cam-
ponês, integrado ou envolvido em correntes do Pensamento que punham termo à "interpreta-
ção medieval da criatividade familiar dos Mestres" e ao "ensino do Clero" na sequência das
influências de Severim de Faria, Ribeiro de Macedo e Alexandre de Gusmão. Com a morte de
D. José I e o exílio do Marquês de Pombal, D. Maria I concedeu autorização para a fundação
da Academia Real das Ciências em 1779, entregue ao Duque de Lafões "enciclopedista" que
estudara no estrangeiro Humanidades e Filosofia, em íntima colaboração com o eminente Na-
turalista Abade José Correia da Serra, gozando a Academia da isenção da censura inquisitorial
e publicando as suas Memórias de entre as quais "adiantamento da Agricultura, das Artes e da
Indústria em Portugal e suas conquistas". No decurso da implantação do Regime Liberal, o
movimento popular desencadeado em 1836, conduziu ao restabelecimento da Constituição de
1822 e à eleição de novas Constituintes, ficando conhecido como "setembrismo". Destaca-se
o Marquês Sá da Bandeira, "o português mais ilustre do século", como o designou Herculano,
que impôs o termo da escravatura portuguesa a Sul do Equador. Foi nesta fase que Passos Ma-
nuel reformou o Ensino Liceal, revelando Sá da Bandeira a sua inconformação com a resis-
tência imposta pela Universidade de Coimbra à modernização do Ensino Superior, melhoran-
do o Ensino de Engenharia na Escola do Exército e de Veterinária em Escola idêntica, na Luz.

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Foram criadas as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto e as Academias de Belas
Artes de Lisboa e do Porto, fundando também a Escola Politécnica de Lisboa e a Academia
Politécnica do Porto o que, a seu ver, "auxiliava as profissões científicas". Reivindicou o Ensi-
no de Letras, ao qual Coimbra se opôs desesperadamente, acabando por ser inaugurado em
1858, pelo Rei intelectual D. Pedro V, que fundou em Lisboa o Curso Superior de Letras, onde
finalmente se desenvolveram os estudos de História, com seus aprofundamentos de Arqueolo-
gia, Antropologia, Etnografia e de Geografia Física e Humana. Com a Regeneração, quando
a Agricultura corria pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, sendo titular in-
terino Fontes Pereira de Melo, foi submetida a referendo de D. Maria II, em 1852, a criação
de três graus de Ensino Agrícola, dos quais o terceiro seria ministrado no Instituto Agrícola,
destinado a formar Agrónomos em Lisboa. Na primeira reforma de 1855 foi incorporada no
Instituto Agrícola a Escola Veterinária Militar que funcionava em Lisboa desde 1830, passan-
do o Instituto a diplomar também Veterinários. A formação de Silvicultores data de 1864. O
primeiro Director do Instituto Agrícola foi José Maria Grande, Bacharel em Medicina pela
Universidade de Coimbra, Doutorado em Lovaina durante o exílio que D. Miguel lhe impôs.
Lente de Botânica da Escola Politécnica de Lisboa, Sócio da Academia Real das Ciências, Ca-
valeiro da Torre e Espada pela conquista de Marvão e de Castelo de Vide, antes do exílio, em
1833. De entre os Mestres do Instituto Agrícola figuravam mais dois diplomados pela Escola
Médico-Cirúrgica de Lisboa e um diplomado em Medicina por Montpelier e Bacharel forma-
do em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Dois outros Mestres eram da Escola Politécni-
ca de Lisboa, José Vicente Barbosa de Bocage e Andrade Corvo que ensinavam, respectiva-
mente, Zootecnia, e Artes Agrícolas e Engenharia Rural, e um terceiro, João Inácio Ferreira
Lapa "Mestre dos Agrónomos portugueses" era diplomado pela Escola Veterinária Militar, on-
de regia Química Agrícola e Tecnologia. Foi somente a República que fundou duas novas Uni-
versidades, uma em Lisboa e outra no Porto, dando-lhes estrutura idêntica à de Coimbra. Em
1930 foi criada a Universidade Técnica de Lisboa que reuniu o Instituto Superior do Comér-
cio, instalado num convento, que veio a ser designado de Ciências Económicas e Financeiras,
o Instituto Superior Técnico que ensinava Engenharia nuns barracões do Conde Barão, o Ins-
tituto Superior de Agronomia, transferido para a Tapada da Ajuda a formar Agrónomos e Silvi-
cultores, e a Escola Superior de Medicina Veterinária que permaneceu no Palácio da Cruz do
Taboado na Rua Gomes Freire. Foi nomeado Reitor, ainda, um Médico, o Prof. Azevedo Neves
da Universidade de Lisboa, que não abdicava do privilégio de entregar, em mão, assinada, as
Cartas de Curso, com palavras de estímulo o que ainda aconteceu com nosco. O signatário da
presente Introdução considera-se Discípulo do Prof. E. A. Lima Basto, que sucedeu a D. Luis
de Castro que também já era Agrónomo. Foi Aluno de Economia Rural, Legislação e Estatísti-
ca, Agricultura Comparada e História da Agricultura, assim como Administração e Contabi-
lidade Agrícola. Neste período, o I. S. de Agronomia foi objecto de graves intervenções políti-
cas. O prof. Henrique de Barros depois de ter sido promovido, interinamente, por dois anos e
por convite, viu recusada a homologação pelo Ministro da Educação em 1947, pelo que deixou
o Ensino. O Prof. Azevedo Gomes, na mesma altura foi demitido. Nestas circunstâncias, o sig-
natário desta Introdução, que fora nomeado Assistente enquanto aguardava Concurso de pro-
vas públicas para Professor Extraordinário que realizou em 1947, viu-se encarregado da regên-

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cia das três Disciplinas do 10° Grupo. O Prof. Henrique de Barros atribuíra à Economia Rural
a orientação que permitiu viesse a ser designada Economia Agrária, publicando as suas Lições
em a "Terra e o Homem" em 1948. O signatário em nada alterou esta orientação, sempre na
esperança de que Henrique de Barros regressasse ao Ensino, o que mais tarde se verificou. Mas
alterou o Curso de Administração e Contabilidade Agrícola em Gestão da Empresa Agrícola,
o que deu motivo à primeira publicação, com a colaboração do Agrónomo Mário Pereira, do
Centro de Estudos de Economia Agrária da Fundação Gulbenkian, fundado em 1957. A regên-
cia de Agricultura Comparada e História da Agricultura em que substituíra Azevedo Gomes,
permitiu que o signatário orientasse o esquema da Disciplina no sentido de Ensino praticamen-
te desconhecido em Portugal, de Sociologia Rural e História da Agricultura. Entretanto, o es-
quema do I. S. de Agronomia deu lugar a Reforma, e Henrique de Barros regressou, contra-
tando Assistentes, retomando a Economia Agrária e adoptando a Gestão da Empresa Agríco-
la, ficando o signatário totalmente consagrado ao Ensino de Sociologia Agrária e História da
Agricultura até se encontrar Jubilado em 1984. Com a Revolução de Abril Henrique de Bar-
ros aposentou-se, para assumir o que consideramos ser o mais elevado Cargo resultante de
Eleição, de Presidente da Assembleia Constituinte. Quando Vida Rural solicitou ao signatário
que elaborasse uma série de Artigos de Informação Científica de Base ligados ao seu Ensino
não lhe pareceu possível tentar a História da Agricultura, embora tivesse regido Disciplina su-
bordinada a este título, sem que se considerasse Historiador. Verificou que recorrera à História
como instrumento científico que provinha de raiz Pré-Histórica na Arqueologia, Antropolo-
gia, bem como na Geografia Física e Humana, Etnografia, admitidas, quanto muito, como
História Natural, onde vem inserir-se a História de Portugal. Todavia, quando, no decurso da
elaboração dos referidos artigos, foi resolvido publicar um Trabalho, não pareceu ao signatário
que a referência à História fosse adequada, dando preferência à designação de "Agricultura
portuguesa através dos tempos", visto que a Agricultura precede a "História de Portugal". Não
deixávamos de admitir a inexistência da coordenada "tempo" na realidade da dimensão do
Universo cientificamente compreensível, presumindo-se apenas a evolução da "vida", feita a
partir da base da Energia que se encontra na origem e na adaptação às transformações naturais
do Planeta Terra. Nos "Reinos" mineral, vegetal e animal existiria longo "período" Pré-Histó-
rico, na Natureza ainda não Humanizada, sendo encontrados na evolução das "Espécies" os
vestígios da presença Humana de que trata a Antropologia em função das condições Geográfi-
cas e Comportamentais dos Primatas. Pelo motivo de se pretender elaborar a descrição da
Agricultura no espaço Geográfico onde Portugal acabou por ser implantado como orgânica po-
lítica, recebendo naturalmente influências do exterior, volta a preferir-se a designação de "His-
tória de Portugal" embora se não recorra à metodologia desta Ciência no que se refere à docu-
mentação dos factos que registam os acontecimentos. O que se pretende, partindo das circuns-
tâncias Pré-Históricas explicativas da evolução futura da Agricultura, é encontrar o momento
em que o "mistério" do longo e insondável processo de Humanização do Universo, o Trabalho
se implanta como nítido alicerce da Vida Sociológica. Regressamos, por isso, sem qualquer
sombra de dúvida à reedição do que possa ser considerado interpretação de conteúdo Agronó-
mico de "Agricultura na História de Portugal", visto que nunca poderíamos apresentar aos nos-
sos Leitores a "História da Agricultura Portuguesa" dotada de metodologia apropriada no que

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respeita à fundamentação científica dos factos comprovados adequadamente. Foi possível ba-
searmo-nos em Historiadores que promoveram o aprofundamento e a análise de documentos
referentes a diferentes Idades e Épocas, sendo as lacunas preenchidas por especialistas de ou-
tros ramos das Ciências Sociológicas, completando-se tal conjunto com deduções de Agróno-
mo que, por vezes, representam interpretações científicas de factos Humanos e de aconteci-
mentos nebulosos, induzidos por circunstâncias Ambientais inesperadas. O texto representará
Antologia, Memória e Lenda, ficando longe da forma de Romance que se pretenderia elaborar,
de acordo com o Processo Agrário tanto quanto possível investigado.

Casa da Andorinha, 1998

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1 _ o UNIVERSO ONDE A PRESENÇA HUMANA
SE INSTALOU

No Pensamento Monoteísta a Origem do Universo ou Reino de Deus, onde Seu Trono


se encontra instalado, nos Céus, determina a explicação do Génesis do Velho Testamento, feita
segundo conceito poético, que não representa naturalmente o estudo documentado da Evolu-
ção Científica. O tema é tratado com esquematização somente compatível com o Inexplicável
ou Insondável Mistério no que respeita à estrutura e dimensão do Infinito. A realidade do Evo-
lucionismo encontra-se mais compreensível em virtude de "Nada ser Criado, nem Perdido en-
quanto Tudo se TransformaFoi em Seis Dias que Deus revelou o seu Querer desde o Prin-
cipioi, criando a Luz e as Trevas, separando o Firmamento, tanto enrugado como plano, das
Aguas sem fim, sob os Céus, com os Astros e Estrelas que o iluminavam. Teses científicas co-
mo as de Galileu foram duramente condenadas com a defesa da Sagrada Escritura. Tudo foi
povoado com Seres Vivos, mas a criação dos Animais e das Plantas que teve nas Teorias de
Darwin interpretação científica, sugeriu a Deus a Cúpula da Criação, com a moldagem, com
Terra, de Adão, ao qual deu por companhia Eva, arrancada da Carne, na "imagem ou seme-
lhança de Deus", a ficarem Desnudos no Paraíso, com a condição de não tocarem no Fruto
Proibido, sob a forma de Maçã. No Sétimo Dia, Deus descansou, certamente na certeza de ter
deixado Livre a Luta pela Vida. Ao abordarem a teoria específica do Evolucionismo, alguns
Cientistas avaliam o período que precede a presença Humana, pelo menos na Terra, em 2.000
Milhões de anos divididos em Eras, desde o Pré-Cambrico, seguido do Paleozóico ou Primá-
rio, do Mesozóico ou Secundário, do Cenozóico ou Terciário, até ao Quaternário ou Antropo-
zóico, por sua vez sub-divididos em Períodos ou Épocas. Na Origem do Sistema Solar, "pe-
quena" parcela de uma Galáxia desmedida, os Cientistas admitem a Explosão, que nada per-
mite ver-se desmentida porque bem pode ser renovada, resultante do encontro de Meteoro Gi-
gante e "vagabundo" com a Estrela Solar pletórica de Energia, o que projectou em Órbitas va-
riadas os Planetas, de entre os quais a Terra, bem como Cometas e Meteoritos vários, muitos
desconhecidos. O símbolo bíblico da Árvore do Livre Arbítrio, levou a Serpente a sugerir a Eva
que comesse e desse a comer a Adão a célebre Maçã. Por isso Deus os Desnudou, expulsando-
-os, com Folha de Parra, do Paraíso. Talvez deva reconhecer-se que tudo isto tem sido inves-
tigado pelos Cientistas, com hipóteses como a do Crescente Fértil do Oriente Mediterrânico
ter sido o "Paraíso". A causa do Mal não será de Deus mas simplesmente das Criaturas, o que
representa noção interpretada pela Sociologia, que identifica a Expulsão do Paraíso como con-
dição do Trabalho com o Suor do Rosto. O Bem não deixa de estar presente com Adão e Eva,
os dois da mesma Carne, geralmente unígamos, e o Mal é revelado por Caim a matar Abel, o
que justifica a formação de impulsos existentes de Crime e Corrupção. Deus, talvez não arre-
pendido mas, naturalmente realista, perante estas condições da Criação do Homem ordenou a
Noé, seu escolhido, que construísse a Arca onde abrigasse o que considerava justo, fazendo
chover, torrencialmente, durante "quarenta dias" sobre a Terra. Desapareceram todos os seres
viventes que ficaram fora da Arca "desde os Homens até aos quadrúpedes, aos répteis e aves

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dos Céus". As Águas estiveram altas sobre a Terra durante cento e cinquenta dias. Depois sol-
tou uma Pomba que, pela primeira vez, regressou à Arca sem Nada, mas da "segunda vez" vol-
tou trazendo no bico "uma folha verde de Oliveira". Os Cientistas têm procurado encontrar
vestígios da Arca de Noé, o que até agora não foi cientificamente possível, ficando o assunto
fortemente ligado à Antropologia Cultural ou à Sociologia.

A criação da Vida e das Espécies Vegetal e Animal

O Génesis não informa o modo como Deus teria criado a primeira Célula, considerando
os Cientistas que se formou com o Protoplasma e o Núclio compostos por Agua e Elementos
Químicos, dotados de Energia Viva, prontos a manterem-na isolada, ou a formar Tecidos que
passaram a constituir no Reino Vegetal, Musgos e Líquenis ou formas mais adiantadas de Fo-
lhas, Caules e Raízes, a partir do Androceu e do Gineceu ou de outros meios de Propagação
Vegetativa. No Reino Animal o Fenómeno é semelhante, processando-se a Evolução das Espé-
cies com a transformação da Guelra em Pulmão, das Escamas em Penas de Asa, do peso
Monstruoso, dos Membros de Locomoção e de Órgãos de Alimentação, com o Dilúvio a re-
presentar a Rotura dos Sistemas Naturais que vigoraram durante longos milénios, sobre a Ter-
ra. Os Cientistas serviram-se do conceito de "Paraíso na Terra", onde o Clima proporciona Ali-
mentação Constante podendo "viver-se sem trabalho", mas somente se lhes deparou no Qua-
ternário ou Antropozoico a Evolução de Primatas, no sentido de descobrirem, expulsos do Pa-
raíso, exemplares de Espécies que revelavam Comportamento Humano, encontrando-se certa-
mente por descobrir, outros Vestígios, o que confere à Arqueologia as características científi-
cas de Revisão Constante.

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2 _ COMPORTAMENTO PRÉ-HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO
OU FORMAÇÃO DA ESPÉCIE DE HOMENS
SOBRE A TERRA

Deverá admitir-se a existência de muito longo comportamento Pré-Agrícola de Homi-


nídeos, baseado em actos Ecológicos que definem a formação de Espécies, que revelou diver-
sas umas das outras que migraram ou foram extintas no decurso dos Glaciares cientificamente
identificados. José Hermano Saraiva, em "Temas da História de Portugal" refere que a "bitola
do tempo humano pode considerar-se documentada na Península há 1.200 milhares de anos ,
no início do Paleolítico. Segundo George Gamow, em "Biography of the Earth", os Homens
de Piltdown, Peking e Java, emergem do período Glacial Gunz para o Mindel, percorrendo
300.000 anos. O Homem de Heidelberg, vence 300.000 anos até ao Glaciar Riss, o de Nean-
dertal ocorre no decurso de 200.000 anos até ao período glacial Wurm e. finalmente o Cro-
-Magnon, progride em 100.000 anos. Durante muito tempo foi suposto encontrarem-se Gla-
ciares no território hoje português apenas na Serra da Estrela, mas José da Cruz em "Glaciares
do Alto Minho" refere que a Geógrafa G. Coudé-Gaussen descobriu "ocupação glaciária nas
Serras da Peneda e do Gerês recente (Wurm III)". Não será fácil encontrar testemunhos ante-
riores ao Paleolítico. Habitantes de Cavernas, localizadas especialmente no Litoral, onde o
Clima Glaciar seria mais ameno, teriam acabado por tentar o alargamento da Recolecção Ali-
mentar utilizável por Primatas, Antropoídeos e Hominídeos Caçadores ou Recolectores. De-
verá admitir-se que a Selva, somente visitada e percorrida daria o proveito da Recolecção, per-
manecendo, durante milénios, como obstáculo efectivo por dar abrigo à hostilidade de animais
ferozes, salvo no caso dos "Bosquimanos", aliás existentes, por exemplo, na Amazónia. Foram
encontrados Abrigos, sob a forma de Cavernas, objecto de estudos Antropológicos e Etnográ-
ficos de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, em cujo Trabalho
se pode reter o conceito de que "das mais remotas Eras da Pré-História até aos nossos dias,
por toda a parte o Homem procurou quaisquer refúgios para se proteger contra os rigores do
clima e das intempéries o frio, a neve, a chuva, o vento, o sol, as inundações, os ataques dos
animais ferozes e, por ventura, de gentes inimigas". Nestes Abrigos dominava "o terror das
noites" e foram encontrados vestígios de produtos alimentares, de entre os quais se reconhece
a existência de Antropofagia e as primeiras manifestações da Arte presente em Figuras Rupes-
tres, indiscutivelmente definidoras de Comportamentos Humanos. Como referem os Autores
acima citados, são mais frequentes as Cavernas (por vezes enormes cavidades subterrâneas),
podendo assinalar-se Grutas ou "cavidades pouco profundas", sendo frequentes Lapas, ou
simples "abrigos debaixo de rochas". As Cavernas são predominantes em regiões calcárias, e
Grutas podem também encontrar-se em "terrenos de encosta" arenosos, que se prestem a ser
escavados. Perto do Neolítico, povos ainda não identificados, revelaram vestígios de grande
valor Arqueológico, como a Estação de Foz-Coa recém descoberta, situada "ao ar livre", tra-
duzindo Vivência projectada em Domínio de Clima Ameno, sem qualquer significado de "reli-
giosidade". Leite de Vasconcelos, em "Religiões da Lusitânia", dedica um parágrafo a sinais

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insculpidos nas pedras, afirmando que "tanto em simples rochedos como em monumentos cla-
ramente arqueológicos, se encontram, por vezes, insculturas toscas ou sinais que, pela sua sin-
gularidade, têm chamado a atenção dos estudiosos. São de duas espécies principais: cavernas
e figuras. Umas e outras variam na sua forma e dimensões. Já se não duvida, hoje, do carácter
artificial destas insculturas, atenta a regularidade com que, em certos casos aparecem". O Ar-
queólogo do Parque Nacional Peneda Gerês, António Martinho Baptista em "A Arte do Gião"
refere a "maior concentração de rochas historiadas, numa só estação, de todo o Noroeste Pe-
ninsular". O referido Autor inventariou e analisou rochas com figuras insculpidas geométricas
e antropomorfos esquemáticos que se encontram no interior de um vasto anfiteatro delimitado
por um muro "hoje já bastante destruído". A respeito da monumentalidade desta Estação Ar-
queológica, o Autor comenta que as rochas gravadas do Gião comungam uma extraordinária
Paisagem Natural, na qual ainda hoje se pode definir um espaço estruturado em que a Arte e
o Meio Ambiente se conjungam em perfeito paradigma Antropo-Ecológico, não sendo desca-
bido aplicar-se ao conjunto o conceito de Santuário.

O Paleolítico

O Paleolítico Antigo preenche nove décimos de toda a extensão. Há uns 80 ou 70 mi-


lhares de anos inicia-se o Paleolítico Médio, caracterizado pela cultura lítica musteriense; o Fi-
nal, com as culturas aurignacense, perigordense e solutrense, começa há uns 30 milhares de
anos.
Neste longínquo período era possível passar a vau o estreito que hoje forma a ligação
entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Supõe-se, por isso, que há 35.000 anos, grupos humanos
de origem africana tivessem procurado a Península Ibérica, estabelecendo-se aqui o homem
que recebeu o nome de Neandertal. De 35.000 anos a.C. a 8.000 a.C. verifica-se nova vaga
Cro-Magnon, provinda de África ou do Leste asiático. Dadas as condições do clima este pe-
ríodo corresponde à «idade da Rena», animal selvagem de grande importância, que depois se
deslocou para o norte, deixando diminuída a fauna de caça. As profundas modificações de cli-
ma ocorridas no Epipaleolítico, desde o ano 8.000 a.C. a 5.000 a.C. preparavam a alvorada do
Neolítico que coincide com os primeiros passos da Agricultura.
Os grandes Rios como especialmente o Tejo e o Sado, ainda não assoreados, e abertos
às marés atlânticas, onde se formavam lagoas com abundantes pescados, e margens recobertas
de crustáceos de fácil captura, bem como o litoral marítimo, teriam constituido ambientes tí-
picos da vida humana primitiva no espaço hoje português condicionada por severíssima so-
briedade alimentar. É clássica a referência aos povos «taganos» dos concheiros de Muge, mas
outros bandos haveriam arrastado sua penúria, especialmente pelo litoral, emergindo de grutas
pré-históricas, a procurarem, em migrações ousadas, madeiros, pedras e ossos que servissem
de ferramentas ou de armas, assim como abrigos novos oferecidos pelo terreno, nos rochedos
e nas lapas, antes que construíssem choças isoladas ou agrupadas em aldeamentos primitivos.
Abel Viana, na sua "Arqueologia Prática", publicada em Beja em 1962 afirma que, em
todos os Continentes, se estão encontrando sinais da presença humana, "provas constituídas
por pedras partidas segundo regras, de maneira que tais calhaus e lascas deles derivadas ser-

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vissem para raspar, cortar, furar, contundir, podendo alguns destes rudes instrumentos servir
como arma de caça e de guerra como de ferramenta para o trabalho de preparar peles, afeiçoar
madeiros e satisfazer outras necessidades da vida selvagem. Haveria também utensílios, ador-
nos e outros objectos fabricados de osso e de madeira, e utilizariam conchas de mariscos, cas-
cas de árvores e de frutos grandes, mas nada disso o tempo conservou".
Como veremos, o adoçamento do clima glaciar permitiu que muito lentamente, o Paleo-
lítico que precede a Agricultura, mantivesse povos recolectores e caçadores, abrigados nas ca-
vernas e nas grutas, até se desencadearem migrações que a luta pela sobrevivência, na busca
ecológica, determina e comanda. O que mais visível "nos resta são os instrumentos de pedra
lascada" e, por isso, o Autor referido comenta: "chama-se a esse período" relativamente curto
a Idade da Pedra Lascada, ou Paleolítico, palavra que quer dizer Pedra Velha, em alusão ao
mais antigo processo de utilizar e preparar pedaços de pedras a fim de serem usadas como ar-
mas e ferramentas". A apropriação dos meios de produção revelou lentas mudanças, desde o
Comunitarismo Agrário e a Escravatura, à posse privada, sempre a exigirem reformas estru-
turais. Quanto ao funcionamento das trocas, pratica-se usualmente o escambo, com livre con-
corrência desenfreada.
De facto, não deixa de reconhecer-se que a evolução da História da Humanidade, nunca
abandona, nem mesmo com as conquistas mais promissoras, a "Lei da Selva", a condicionar
os nossos actos.
No território europeu, ibérico, onde Portugal nasceu, a população encontrou na agricul-
tura o apoio necessário e bastante para cumprir o destino invulgar que a História lhe reservou.
Embora situado longe do berço das civilizações agrárias do «Crescente Fértil», entre o Nilo e
a Mesopotâmia, o território foi passagem do mundo civilizado mediterrânico à Europa bárba-
ra, atlântica, no decurso de mensagens que haviam de conduzir ao intercâmbio que proporcio-
na o desenvolvimento.

A recolecção alimentar e os sistemas agro-pastoris primitivos

Julga-se essencial reter, para melhor orientação da nossa análise a definição de Agricul-
tura, considerada em seu enquadramento histórico funcional. Tal definição considerará a cul-
tura dos produtos da terra, isto é, do solo, da água e da atmosfera, sob a forma de muito com-
plexa actividade social e económica, orientada no sentido da obtenção de bens destinados à ali-
mentação e a indústrias. Estes bens são obtidos a partir de plantas e de animais por meio de
simples colheita, e depois por grangeios tecnológicos feitos com intervenção do trabalho, fac-
tor de produção essencialmente humano, e do concurso de outros meios auxiliares simples-
mente naturais ou menos humanizados.
Do ponto de vista do enquadramento histórico deverá admitir-se a existência de muito
longo período de comportamento pré-agrícola de Hominídeos, baseados em actos ecológicos
que definem Espécies em formação, fundamentais por constituírem o essencial da defesa da
vida, na recolecção de produtos presentes na Natureza e renovados sem intervenção de traba-
lho. Na História da Humanidade, a alvorada da Agricultura é extremamente recente e encontra-
-se precedida de conquistas lentamente elaboradas, como a descoberta do fogo e das suas uti-

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lizações, e da preparação de instrumentos que facilitavam a colheita de plantas, a caça e a pes-
ca. O fogo foi, durante milénios, objecto de uso comunitário, sendo costume generalizado, nos
aldeamentos, escolher à vez uma casa que se obrigava a mantê-lo "vivo", indo as outras buscá-
-lo quando precisassem de acender suas "lareiras". Ainda nos foi dado ver, ao fim do dia, numa
Aldeia do Soajo, o movimento dos "tocheiros" que transportavam o lume quando era necessá-
rio para os componentes da comunidade, ao regressarem ao "Lar". Assumem particular impor-
tância as técnicas de abrigo para defesa contra os rigores do clima, bem como as de conserva-
ção de produtos. Teriam sido usados madeiros e osso, peles e fibras, bem como a pedra lasca-
da e depois polida, cujos testemunhos chegaram ao nosso tempo, bem como peças moldadas
com argila.
Como veremos, o critério que se adopta de considerar contemporânea do Neolítico, a
Agricultura, é simplificado, marcando o início da evolução da arte de domesticação de animais
selvagens, de entre os que se revelaram susceptíveis de cativeiro ou, mais tarde, de submissão
à pastorícia. Segundo alguns Investigadores, em acção nem sempre simultânea, outro passo
corresponde à descoberta da semente e de outros propágulos de plantas seleccionadas para cul-
tura, depois melhoradas. Nada impediu, porém, que nalgumas áreas se tivesse implantado o
sistema hortícola, sem pastorícia, quando a fauna se não prestava a tanto.
A cultura de plantas era, em regra, feita sobre queimada da floresta natural, onde se es-
tabeleciam abertas ou clareiras, podendo o solo ser mobilizado com simples pau ponteagudo,
antes de ter sido inventado o arado, que representou avanço decisivo. Como veremos, não será
possível identificar rigorosamente épocas de invenção de práticas agrícolas extremamente va-
riadas e dependentes das condições ecológicas, nem definir a evolução, também nada homo-
génea, do processo histórico, o que obriga a constantes confrontações de sistemas e a submis-
são a metodologia analítica severamente cautelosa.
No estado actual da Ciência não se nos afigura indispensável, mesmo para entender a
génese do que tentámos definir como Agricultura, o aprofundamento da referência à evolução
dos Hominídeos, no tempo. Nem será necessário servirmo-nos do que se encontra averiguado
quanto ao que parece constituir o percurso do Homo Erectus. Talvez um facto deva ser notado,
do ponto de vista das influências humanas sobre a Natureza, quando os Historiadores nos per-
mitem saber que há 400.000 anos, em diferentes espaços do mundo, teria sido descoberta a arte
de desencadear e manobrar o Fogo. Em "Temas da História de Portugal", José Hermano Sa-
raiva refere que "a bitola do tempo pode considerar-se documentada na Península há 1.200 mi-
lhares de anos" no início do Paleolítico. Mas, o que nos parece mais importante é estarmos cer-
tos de que a Agricultura não teria contado com mais de 7 a 8 mil anos para se instalar e desen-
volver, nesta parcela do mundo em que vivemos. Neste período, particularmente recente, mui-
tas das mudanças operadas durante séculos, nem sempre correpondem a inovações de fundo,
mas apenas a ajustamentos de forma, mantendo-se inalteradas situações sociais e económicas
características de diferentes costumes.

O Coberto Vegetal

Jorge de Paiva reconhece que "não é possível reconstruir para todo o País o que teria si-

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do o coberto florestal original" legado por outras Eras aos Primórdios da Humanização. Con-
vém reter, como orientação, a Hipótese em que se fundamentou. "A norte do Tejo os carvalhos
caducifóleos como o alvarinho (Quercus robur L.) nos vales e encostas de Clima Temperado
sem longos períodos secos de carácter atlântico e até 1.000-1.200 m; o negral (Quercus pyre-
naica Willd.) formando bosques nas montanhas de clima mais agreste de carácter subatlântico
indo até aos 1.600 m e nas zonas de transição para o Clima mais Mediterrâneo era o carvalho
português (Quercus fagínea Lam. subsp. broteroi (Cout.) Samp.) que abundava, sendo um Car-
valho com as folhas um pouco mais duras que a dos precedentes, perdendo-as mais tarde nunca
ficando completamente despido pois quando as últimas folhas estão a cair, já das gemas novas
brotam folhas. Os Carvalhos do Sul, os Sobreiros (Quercus suber L.) e as Azinheiras (Quercus
ilex L. subesp. rotundifólia (Lam.) Schwarz ex Tab.) são Árvores verdadeiramente Mediterrâ-
nicas, perenifólias, com as folhas duras e resistentes". As Bolotas dos Carvalhos dos Sul têm
grande valor alimentar, especialmente a da Azinheira com a qual deve ter sido fabricado' o pri-
meiro Pão", numa pasta cozinhada numa "pedra aquecida". Desde a alvorada do Povoamento
do Norte Peninsular, o "Maravilhoso Quercetum caducifólio", na Primavera veste-se de gomos
tenros e doirados que, no Verão, desabrocham em folhas de um verde refrescante para, no Ou-
tono, novamente aloirarem, acabando por tombar, melancolicamente, a fim de as copas se ofe-
recerem transparentes, ao Sol de Inverno. Há 30 séculos, Povos de origem obscura, movimen-
taram-se pelas cumeadas, contornando os Pauis onde a Selva, com seus animais bravios domi-
nava, construindo nas Colinas pequenos Povoados. No Verão, aqui, os Fogos são possíveis.
Como referimos, em outras ecologias tropicais as populações seriam e são ainda, como na
Amazónia, constituídas por "bosquímanos" ou "selvagens". Jorge de Paiva refere que "o in-
cêndio ocorrido há cerca de 4.300 anos destruiu praticamente toda a vegetação da Serra da Es-
trela" não se podendo averiguar se tal incêndio foi natural ou humano. De qualquer modo abriu
caminho às primeiras tentativas nas práticas que poderemos vir a considerar da Incipiente
Agricultura.

O Neolítico

Tendo em conta que no ocidente peninsular a implantação do Neolítico íoi tardia, po-
derá reconhecer-se que as técnicas do pastoreio e da agricultura itinerante não tivessem, no ter-
ritório hoje português, qualquer berço inovador. Das pinturas rupestres e do estudo de outros
testemunhos, concluíram os Arqueólogos que, afastada a rena, o mamute, o rinoceronte, a fau-
na rica e variada encontrava-se disponível. Mas impressionava mais os pintores que ensaiavam
a sua arte, do que o engenho dos que deveriam transformar-se em domesticadores. Estavam
presentes o javali, o muflão, a cabra, o boi selvagem, o cavalo, o veado, a corça, o urso, o lobo,
a raposa, o lince, o gato selvagem, a lontra, o texugo, a lebre, o coelho, além de variadas aves
e de peixes. Não foi a carência quanto à oferta ecológica que explica o arrastado e incaracte-
rístico percurso humano ao longo do Paleolítico, sendo certo que os aborígenes se não liber-
taram por si da penúria do primitivismo, embora deixassem um pouco por todo o lado a men-
sagem que os Arqueólogos registaram do «coup de poing» de pedra lascada, a recordar a pri-
meira expressão da inteligência que hoje podemos observar, materializada. Efectivamente,

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deambulando por um território ecologicamente privilegiado, o produto dos nomadismos ante-
riores. acabou por receber do exterior, entre o V e o IV milénios a.C., com os primeiros men-
sageiros do Neolítico que nascera distante, o impulso da modernidade que nessa altura também
não seria pacífico. Para além dos instrumentos utilitários que a grande «revolução industrial»
da pedra polida proporcionou com a cerâmica a acrescentar-se aos equipamentos trabalhados,
veio também, tal como hoje ainda acontece, o aperfeiçoamento das armas, que tanto podem
ser de defesa como de agressão, na dependência das mãos que as usam. No espólio de estações
arqueológicas, nesta longínqua época, não deixaram de ser encontrados crâneos percutidos por
machados assassinos e ossos humanos que sugerem banquetes de canibalismo.
Não teria sido fácil, portanto, a alvorada do progresso que abriu caminho à instalação
da agricultura, nem a adopção da nova mensagem poderia ser imediata e total. Afigura-se mes-
mo não ser viável encontrar em referências arqueológicas o momento preciso que se possa en-
tender como aquele em que a agricultura teve início, como sistema capaz de responder a ne-
cessidades humanas vitais de alimentação e de vestuário. Tudo se apresenta precedido de es-
forços humanos da procura instintiva de alimentos e de abrigo, não podendo imaginar-se que
um ser humano faminto e desprotegido se possa entregar sempre a actividades coerentes, no
que respeita às misérias da terra, fertéis de múltiplos terrores. Por isso, não se poderá reter nem
sequer sob a forma de contorno de sistema organizado, a série de esforços empreendidos pelo
Homem desde a sua origem, para criar as plantas de cultura entendendo as suas associações, e
domar os animais, domesticando-os. Assim, a caça e a pesca perduraram, sem se poder avaliar
quando a domesticação teria submetido à boa ordem do rebanho, com a ajuda dos cães que se
converteram em pastores, a cabra selvagem hoje extinta em Portugal depois do Século XIX na
Serra do Gerês, e o javali, de que ainda existe a reserva genética, donde se obteve o cevado de
chiqueiro do Norte e o porco de pastoreio do Sul. Os migrantes neolíticos introduziram os ovi-
nos que, pela produção de lã, além do leite e da carne, assumiram larga importância civiliza-
dora. Mais tarde o pastoreio foi alargado a bovinos e equinos. A flora natural oferecia aos re-
colectores a lande dos carvalhos de folha caduca e persistente, que transformada em farinha
havia de permitir fabricar o pão, os frutos da faia, as sorvas, as maçãs, as pêras selvagens, a
cereja brava, o arando ou a uva do monte, a amora das silvas, os morangos e as framboesas.
Seriam variados e inumeráveis os bolbos e as raízes, os cogumelos, muitos outros vegetais co-
mestíveis e o mel silvestre.
A contribuição da agricultura para a passagem do sistema de recolecção alimentar a ou-
tro de produção regular faz-se, quando descobertos os mistérios da multiplicação das plantas
no Neolítico, com base na selecção de exemplares que se submetem aos artifícios da propaga-
ção. Werner Rothmaler, em trabalhos efectuados na Estação Agronómica Nacional sobre o
«roteiro das plantas cultivadas até Portugal» refere a expressão de Vavilov quanto a plantas
transportadas «através dos lugares pisados e estrumados pelos rebanhos dos nómadas». Assim,
não devemos alhear-nos da importância que teve a descoberta da domesticação dos animais
selvagens. O pastoreio nunca poderá considerar-se separado da agricultura no espaço mediter-
rânico e atlântico do ocidente ibérico. Recordemos que a agricultura noutras situações pôde
instalar-se e evoluir sem pastoreio, em aluviões férteis de grandes rios apesar da carência eco-
lógica de fauna que se prestasse a esta forma de domesticação, como sucedeu na China, por

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exemplo. Todavia, mesmo assim, essa agricultura não prescindiu da manutenção de animais
domesticados em cativeiro, como o porco e as aves, e viu-se obrigada a utilizar o estrume hu-
mano.
Na evolução da agricultura do Neolítico, quanto a cereais, o trigo globoso, o trigo anão
e a cevada de seis ordens que se encontraram em escavações de jazidas primitivas seriam subs-
tituídos por novos cultivares de trigos moles, pelo milho miúdo, painço, e cevadas com as
quais se fabricava a cerveja, cujas sementes tinham sido transportadas pelos nómadas norte-
-africanos que passaram o estreito que serve de porta do Mediterrâneo. As migrações africanas
teriam alterado profundamente o estádio de evolução em que o autóctone se encontrava, con-
duzindo à formação de povos a que historiadores aplicam a designação de Iberos. A estes mi-
grantes outros se juntaram, seguindo a via da Europa, e todos encontraram abertos os terrenos
planos do Sul do Tejo e, no Norte, deslocaram-se pelas encostas serranas e cabeços próximos
dos cursos de água. Nas terras baixas, apauladas, dominava a selva impenetrável onde nenhu-
ma agricultura se poderia instalar, não sendo seguro também o pastoreio pela presença de car-
nívoros. A selva seria apenas visitada para recolecção alimentar de frutos, caça e pesca.
Nas planuras, nas encostas e nas cumeadas o fogo abria clareiras nas florestas, em cujo
renovo eram pastoreados os rebanhos, germinando nas cinzas as primeiras sementes de cereais
pobres. As planuras do Sul eram percorridas pelo nomadismo que teria acabado por adoptar a
vida sedentária praticando a transumância, ou seja, a alternância de pastagens situadas em di-
ferentes condições de clima, desde a planície às serras, segundo as estações do ano. No Norte
os cômoros na meia encosta das montanhas, a dominarem a selva dos cursos dos rios e ribeiros
torrenciais, passaram a ser ocupados por comunidades tribais que edificavam os primeiros
aglomerados que tendiam a assumir a configuração de «crastros».
O pastoreio deixava na paisagem a marca humanisada dos espaços pisados e queima-
dos nas planuras e nas encostas e cumeadas, mantendo-se preservada a selva das terras bai-
xas onde se acoitavam as feras. A agricultura mostrava clareiras abertas na floresta climace,
formando campos abertos de cultura cerealífera itinerante que conferia aos locais povoados
a instabilidade da dependência dos níveis de fertilidade dos solos que, ao fim de cultura so-
bre cultura, se apresentavam exaustos. Assim, as «instalações» agrárias, que eram a essên-
cia da vida, assumiram o carácter de estrutura provisória sobre a qual pendia a fatalidade do
abandono à natureza, cuja flora, numa orgia de expansão de raízes, caules e gavinhas, tenta-
ria repor a ordem «eterna» apagando os traços dramáticos da presença humana. De qualquer
modo, o abandono à natureza, da terra esgotada, correspondia à prática que mais tarde se tor-
naria sistema ou técnica de «pousio», ao fim do qual a cultura de novo se instala, em «rota-
ção». Quando o repouso não obedece a norma e se prolonga por efeito de eventos históri-
cos, por exemplo, os campos podem voltar a cobrir-se de «matos» que acabam por receber
a designação de «incultos», como sucedeu em Portugal no tempo das Sesmarias de D. Fer-
nando e no século XIX.

O Megalítico

A sedentarização neolítica despertou o culto dos mortos que já não ficariam abando-

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nados no percurso nómada. Para memória perpétua foram erguidas as construções Megalíti-
cas de que restam numerosas necrópoles, desde imponentes dolmens para enterramentos co-
lectivos, a simples orcas e mamoas tumulares mais modestas. Da mesma forma o culto reli-
gioso instalou-se e deixou-nos o enigmático legado de monumentos de pedra, verdadeiros
santuários, menires e cromeleques, ou simples inscrições ou altares talhados nas rochas. A
arquitectura megalítica que prepara grandes blocos de pedra, de mais de 15 toneladas, trans-
portando-os sobre rolos de madeira a quilómetros de distância, colocando-os a prumo e, o
maior, na posição de mesa, com o plano de terra inclinado, poderia ter solar no Alto Alente-
jo. No entanto, esta arrojada arquitectura teve de mobilizar numerosos trabalhadores, certa-
mente escravizados, que só poderiam ser mantidos a partir de grande disponibilidade de re-
cursos sócio-económicos. O que se afigura misterioso será que o megalitismo se apresenta
entre o fim do IV milénio a.C. e os primeiros séculos do II milénio a.C., apagando-se sem
dar lugar a outras expressões arquitectónicas de idêntica envergadura. De qualquer modo
não tem sido encontrada relação entre este apogeu da arte de construir e níveis eventuais de
prosperidade da economia agrária que deveria ter constituído o seu suporte. Mas, por esta
época, o território deveria encontrar-se povoado, porque os monumentos Megalíticos exi-
gem grande esforço de trabalho que deveria ser, como nas Pirâmides do Egipto, não somente
técnico no que respeita à orientação solar, como predominantemente escravo na deslocação
das pedras no plano inclinado.

Plantas pioneiras na Terra agricultada

Afirma Plutarco que foi a Cevada o primeiro cereal cultivado e também Plínio consi-
derava esta gramínia a mais antiga revelação do «berço asiático». Da família das Gramínias
e numa das suas tribos, as Hordeas, agrupa-se o género Hordeum, L. Mas, segundo W. Roth-
maler, em «Roteiro das plantas cultivadas até Portugal», a Cevada apareceu associada ao tri-
go nas escavações do antigo Egipto e também nas habitações lacustres europeias do Neolí-
tico e da Idade do Bronze». O Trigo, cujo género botânico é Triticum, L. tem origem que não
se afasta da que tem sido atribuída à Cevada. Os dois cereais, no início da actividade agrária,
andaram associados. Mas talvez por ser mais precoce, a Cevada separou-se do Trigo e além
de dar pão, foi fermentada produzindo a cerveja, e servindo ainda para a engorda de animais
domesticados. No entanto o Trigo tornou-se a base do pão do mundo ocidental mediterrâni-
co. O Agrónomo Artur Castilho, no seu «Manual do Agricultor», recorda que há mais de
«5.000 anos antes de Cristo, uma mulher que habitava as colinas de Niza, na Fenícia, colheu
distraidamente sementes de ervas espontâneas (cevada e trigo) e deitou-as numa clareira.
Humedecidas pelos nevoeiros que desciam do monte Hermen, ao fim de alguns meses ger-
minaram e frutificaram. Foi tal o interesse que despertou este acto inconsciente, que a mu-
lher foi imortalizada pelos Egípcios como Isis, pelos povos da Ásia Menor como Cybeles,
Agdestes e Dindima, mais tarde pelos Gregos em Demeter e depois pelos Romanos em
Ceres, seja a Deusa das searas».
No Oriente o Arroz foi o cereal que proporcionou o alimento dominante, quase exclu-
sivo, de que também se consumia o Álcool, depois de fermentado.

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Animais pioneiros da Fauna domesticada

Segundo refere Miranda do Vale, no seu «Gado Bissulco — suínos, bovinos, arietinos
e caprinos», a ordem dos Ungulados é «dentro dos vertebrados, depois das dos roedores, aque-
la em que se conta maior número de espécies e nela se incorporam os animais pecuários» que
mais contribuíram «para a felicidade da humanidade». Sem a sua presença «desde os mais re-
cuados tempos» o homem não encontraria tão cedo os caminhos do progresso e «mesmo o
Cão, não seria um tão antigo amigo do homem, se a carne e os ossos dos ungulados, não fos-
sem o penhor dessa amizade». Os Ungulados dividem-se em cinco sub-ordens, mas os que fo-
ram objecto de domesticação «encaixam-se em duas destas sub-ordens: cavalos e burros são
perissodactilos; os porcos, bois, carneiros e cabras ou gado de unha fendida, arrumam-se entre
os artiodactilos ou bissulcos».
A sub-ordem Artiodactila, compõe-se de quatro famílias: Suidae, Camelidae, e Bovidae.
A domesticação teria sido iniciada encurralando animais capturados vivos para que, assim, se
prestassem a consumos que atenuariam a dependência da recolecção de caça, ou se pacifica-
riam para os usos do trabalho. A domesticação de animais selvagens exigiu esforço violento,
completamente diverso da selecção das plantas. Assim como teria sido importante descobrir a
forma de multiplicação das plantas, também a reprodução de animais submetidos a cativeiro
teria servido de demonstração das vantagens da domesticação. O javali teria sido um dos ani-
mais selvagens que primeiro se ofereceu à domesticação, dando origem a diferentes raças de
porcos domésticos. O género Sus representa o ascendente mais próximo deste precioso animal.
Foram identificados sub-géneros como o Eusus na Indochina, Java, Borneu, Celebes, Sumatra,
Molucas e Filipinas; o Striatosus, no Extremo Oriente, Norte da índia, China Central, e neste
grupo o porco anão do Himalaia; o Scrofa, javali da Europa Setentrional até aos Alpes e Piri-
néus; o Mediterraneus, natural dos Balcãs, Sardenha, Península Ibérica, Ásia Menor e Orien-
tal. Os três últimos sub-géneros são considerados os ascendentes do porco doméstico.
Embora seja frequente nas estações arqueológicas encontrar resíduos de javali, algumas
pesquisas demonstraram que, no neolítico, se identificou o porco doméstico. Mau grado este
animal viesse a demonstrar grande capacidade para ser submetido a pastoreio florestal, fussan-
do no solo em busca de raízes e tubérculos, e aproveitando as landes dos Quercus, é provável
que as primeiras fases de domesticação correspondam ao encurralamento que revelou o porco
como aproveitador ideal para toda a espécie de resíduos da alimentação humana. Em função
do maneio adequado o porco doméstico ter-se-ia revelado a fonte de gordura animal, sempre
apreciada, especialmente nas regiões de clima frio. No entanto, nas regiões de clima quente, o
porco doméstico, mantido em cativeiro, na promiscuidade com o homem e toda a espécie de
animais domésticos, originou a instalação de parasitismos e doenças, de que, empiricamente,
se teria concluído ser o porco, o veículo. Daqui, provavelmente, as reservas postas ao seu con-
sumo, sendo classificado por religiões antigas como «animal imundo». Moisés interditou o
consumo de porco, e os Muçulmanos adoptaram a interdição, como preceito religioso. Outras
civilizações Euro-asiáticas e Africanas, encontraram no porco doméstico forte apoio para o
problema alimentar. No que se refere ao conceito que as sociedades humanas elaboraram a res-
peito deste animal doméstico, o seu nome identifica-se com tudo o que não dispõe de limpeza.

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Nas fases iniciais da domesticação, no Neolítico, o homem encontrou forte apoio em
animais selvagens pertencentes à família Bovidae, que se divide em duas sub-famílias: a Bo-
vidae e a Ovinae. Na sub-família Ovinae foram identificados cinco géneros, dos quais assumi-
ram grande importância, no Neolítico, os Ovis ou Aries e o género Capra. As formas primiti-
vas dos Arietinos, estavam representadas pelo Muflão que povoava a Europa e, para além dos
Cárpatos, o Norte da Ásia. Ainda se encontra na Sardenha e na Córsega este Muflão (Ovis mu-
simon). Outros Muflões eram o Ovis orientalis da Ásia Menor, e a Ovis vignei, que tinha o seu
habitat desde o mar Cáspio até ao Himalaia. Pertence a esta espécie o Caracul. O Ovis ammon
é o Argali das montanhas da Ásia Central. Segundo refere Miranda do Vale na obra citada «é
na Península Ibérica e Italica que se descobrem despojos mais antigos de ovinos; na França e
em todo o litoral mediterrânico encontram-se com abundância. Na Suíça, observam-se fre-
quentes vezes nos palafitas da primeira época lacustre».
Os ovinos, com seus carneiros, ovelhas, borregos e cordeiros, viriam a desempenhar na
História da Humanidade transcendente função no pastoreio, produzindo lã, carne, leite e mes-
mo trabalho, figurando em festas comunitárias e cerimónias religiosas, com antiquíssima imo-
lação nos altares para aplacar a ira dos Deuses. O rebanho dos ovinos passou ao simbolismo
com «a ovelha perdida», a figura do «Bom Pastor» e a pureza e inocência do «Cordeiro» que
subiu aos Altares com S. João.
Arala Pinto, em «Gado Caprino», revela as incertezas quanto à origem da Cabra domés-
tica. Alguns autores entendem que a Cabra, pelo seu temperamento bravio, foi domesticada
por último, mas outros demonstram que a domesticação da Cabra se afigura simultânea da dos
Ovinos, sendo provável a preferência dada a Caprinos nas regiões acidentadas ou montanho-
sas. Foi a partir de diferentes Cabras selvagens, como a Capra aegagrus das montanhas do
Caucaso e da Pérsia, a Capra falconeri, das montanhas da índia, ou da Capra prisca, presente
no espaço Euro-asiático, que os rebanhos de pastoreio se organizaram. Até período recente, em
Portugal conservou-se uma espécie selvagem de Caprinos na Serra do Gerês. Ainda se encon-
tram Cabras selvagens «nos Alpes, próximo das geleiras da Serra Nevada ou nos mais arrisca-
dos penhascos, onde vivem contentes roendo os matos silvestres para além das neblinas que
com frequência lhes turvam o horizonte». Talvez por isso «a mesma cabra doméstica tem um
modo vagabundo, enamorada do campo e da liberdade; ao seguir o homem é por gosto, por
capricho e não por vileza ou conveniência, como a ovelha e a maior parte dos animais domés-
ticos».
A Cabra apresenta a particularidade de se contentar com o pastoreio nas serras e nas pla-
nuras sáfaras. Aproveita pastos que não mantêm outros animais, sendo a sua voracidade em re-
lação à flora considerada, simultaneamente, uma vantagem e um risco. Por isso muitos têm
chegado a propor a extinção das Cabras. O simbolismo colocou os Caprinos em óptica com-
pletamente diversa da dos Ovinos. O Bode, prodigioso equilibrista nos mais temerosos penhas-
cos, ou valente caminhante em percursos «vagabundos», identificou-se com os Sátiros e os
Faunos, a quem facultou parcelas essenciais da sua inconfundível figura. Surge também nas
configurações demoníacas e representa os suspeitos de culpa sob a forma de «bode espiató-
rio». Para cúmulo da injustiça humana, este animal magnífico, empresta o seu nome. tanto o
do macho como o da fêmea, a quem pretende ofender, disparando-o, inconscientemente, como

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o mais agressivo dos insultos.
A sub família Bovinae divide-se, em três géneros: Leptobos, que se encontra extinta,
Bubalos e Bos. Está longe de ser unânime a opinião dos cientistas quanto à origem dos bovinos
domésticos: «parece ter sido na Ásia, durante a época neolítica, que se realizou a domesticação
dos zebus». Também se reconhece que «a domesticação do boi fez-se após a domesticação dos
ovinos». Em estações neolíticas da Península Ibérica «encontram-se peças esqueléticas de bois
a que os investigadores atribuem a qualidade de animais domésticos». Admite-se que, na Pe-
nínsula existia o Bos selvagem que foi submetido a pastoreio, tendo-se-lhe acrescentado ou-
tros bovinos domésticos transportados por povos pastores que se entregavam a largas migra-
ções, praticando também a agricultura itinerante. Foi enorme «a influência exercida por estes
animais sobre o homem de todos os tempos. Constituíram a principal riqueza dos povos pri-
mitivos». Os Egípcios adoraram o Boi. a que deram a designação de «Apis». A mitologia in-
diana divinisou os Bovinos, dando-lhes a liberdade de existência perene, o que dificilmente se
entende em regiões onde domina a fome. O boi Nanda é porteiro do Céu. Os Gregos e os Ro-
manos imolavam bois nos altares dos Deuses. Para os povos os efectivos dos rebanhos mate-
rializavam o sentimento de posse, a noção de riqueza mais estimada do que a Terra que repre-
sentava o espaço de livre pastoreio, não pertencendo a ninguém. Entretanto os chifres ou cor-
nos de bovinos vão servindo também de símbolo de quem foi logrado na fidelidade conjugal.
O Cavalo encontra-se presente em figuras rupestres do Paleolítico, demonstrando a for-
ma como impressionou o homem primitivo da Europa Ocidental, estendendo-se a sua presença
selvagem, ao longo do Continente Asiátieo. Na Ásia Central, em 1779 ainda se deparou e
E.caballus prjewalski, conforme refere a Enciclopédia Verbo. O Cavalo é um mamífero da or-
dem dos Perissodactilos, sub-ordem Hipomorfos, família dos Equídeos, gen. Ecuus, represen-
tado actualmente por uma única espécie, Ecuus caballus, que comporta formas domésticas
muito variadas que viriam a desempenhar funções de grande importância, nos transportes e no
trabalho mas, talvez no início em maior escala, na guerra. À família dos Equídeos pertencem
também os Asnos ou Burros, gen. Azinus, Gray representados ainda por espécies e raças do-
mésticas. Aponta-se como antecedentes das raças domésticas seleccionadas na Ásia Menor e
na Europa, mas especialmente no Antigo Egipto, o burro da Somália, o burro da Núbia e os
Onagros ou burros da Ásia. Trata-se de um animal resistente, obstinado ou teimoso. Quando a
Natureza o deu, parecia ser destinado a companheiro do escravo, que em muitas circunstâncias
acompanhou, no trabalho e no sofrimento. Na vida social o «Burro» tanto serve de insulto,
como de explicação, em diferentes situações da vida.

As Ferramentas

Devemos ter em conta que a Agricultura progride, não somente pela escolha e selecção
de plantas que vegetavam em condições naturais e que passaram a ser cultivadas, como tam-
bém pela domesticação de animais selvagens, mas ainda pela invenção e aperfeiçoamento de
ferramentas. Poderemos acreditar que um simples pau aguçado teria sido o primeiro utensílio
posto ao serviço do cérebro humano ao mesmo tempo do que a pedra. Embora a Arqueologia
valorize a pedra como ferramenta, de que chegam a nossos dias significativos exemplares, a

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madeira teria sido também trabalhada dando-lhe, o homem primitivo, a forma que muito difi-
cilmente se nos revela conservada. Com um pau aguçado foi mobilizado o solo agrícola de
forma a preparar a cama da semente, provavelmente sob as cinzas de uma queimada. Não cus-
ta a crer que assim tenha acontecido, porque no mundo ainda se pode encontrar tal prática, em
raros espaços onde o primitivismo não foi destronado. De madeira teriam sido também as pri-
meiras enxadas que numerosas gravuras egípcias nos revelam. Apresentamos em esquema a
ferramenta em forma de A com a qual se combina a percussão do solo com a tracção que o mo-
biliza.
A enxada teria sido aperfeiçoada quando o madeiro que percute a terra passou a apre-
sentar a forma de colher, destinada a voltear a leiva.
Quando o madeiro cravado no solo, começou a ser traccionado, a braço, por outro que
lhe estava ligado em posição quase paralela ao terreno, e que o arrastava, em vez de percutir,
mobilizando a terra, ficou inventado o arado. Está averiguado que o arado se encontrava em
uso tanto na Mesopotâmia como nas margens do Nilo no ano 4000 a.C., constituindo o apoio
destes «berços» da civilização. A tracção era humana, passando a ser feita com animais, em re-
gra bovinos, mais tarde, aparecendo representada em documentos egípcios do ano 2000 a.C.
Isto não significa que o arado de tracção humana tivesse sido abandonado com a domesticação
de animais. Persistiu em função da disponibilidade de trabalho escravo, e serviu — e ainda ser-
ve — sempre que a pobreza dos camponeses os privou — ou priva — do recurso a formas de
tracção.
A Arqueologia revela a presença do arado na Europa atlântica desde o período em que
a cultura calcolítica penetrou no Continente. Assim, o uso do arado explica a rápida expansão
que a agricultura itinerante registou, acompanhando as variações climáticas desde o Norte de
África até à Europa, passando pela Península Ibérica, desenvolvendo as culturas Neolíticas
ocidentais. Como veremos, eram diversos os tipos de arado, resultando da evolução técnica
feita a partir da simplicidade da forma primitiva.
Para que não se deva ter ilusões, nem vaidades, quando a manifestações de progresso
que nos parece não serem somente do nosso tempo, tem interesse meditar em descrição como

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as de G. E. Fussel F. R. Hist. S. em «Farming Technic from Pre-historic to Modern Times» que
nos refere, por exemplo, um arado ao qual está ligado um tubo vertical onde um «operador»
introduzia a semente, formando assim um aparelho que tem as características de semeador. A
nossa experiência pessoal, muito breve em relação aos milénios da História, diz-nos que, numa
região minhota, o semeador de milho, o mais simples, de uma só carreira, de tracção humana,
foi introduzido nas rotinas locais, em meados da década de 50 do século XX. Antes, há cerca
de quarenta anos, semeava-se a lanço, como no Evangelho, o Semeador. Se acaso o semeador
«mecânico» a que nos referimos foi o primeiro a ser «patenteado» na história da Agricultura,
tornou-se necessário, para que a «inovação» fosse adoptada pelos agricultores de Arcos de Val-
devez, vencendo o percurso que vai da Babilónia às doces terras dos nossos encantos, que de-
corressem nada menos de que 3.271 anos.
Nas lutas tribais os vencidos não teriam qualquer préstimo, pelo que se lhes reservava
a morte, com eventual prática de canibalismo. O arado valorizou o "vencido" transformando-
-o naturalmente em "Escravo", o que deu motivo depois a toda a espécie de "Servidões". O
arado estará na origem da Escravatura.

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3 — OS PRIMEIROS PASSOS DE UMA AGRICULTURA
INSTALADA

Não seria fácil assistir-se à expansão da agricultura local, no território hoje português,
sem que fosse quebrado o isolamento em que a população se encontrava. Tinham sido alcan-
çados no próximo Oriente progressos industriais de que em breve houve notícia que propor-
cionou o desenvolvimento.

Os Fenícios

O florescimento da indústria dos metais no Mediterrâneo conduziu navegadores Fení-


cios à exploração da Península Ibérica. Depois do Século XII a.C. as populações agro-pastoris
do território português assistem à instalação no litoral, sempre próximo do mar e dos rios na-
vegáveis, de fortificações que davam protecção a pequenas «feitorias» de comércio interessa-
do na prospecção mineira e na recolha dos metais. Os recursos locais de cobre foram explora-
dos e, com o fabrico do bronze, o território ficava nas vias do estanho que alcançavam o Norte
da Europa. A presença das instalações fenícias não teria nessa altura objectivos de domínio im-
perial e contribuiria de forma decisiva para o progresso da agricultura, da pesca e da indústria
dos metais. Os Fenícios, para fomentarem o comércio, deram o impulso tecnológico necessá-
rio, ensinando a arte de cultivar plantas indígenas como a videira, a oliveira e a alfarrobeira.
Teriam sido de inspiração fenícia os primeiros moinhos aperfeiçoados de cereais, e os lagares
de fermentação de vinho e de extracção de azeite. Nas praias do litoral ficaram colónias de pes-
cadores que «lavravam» não só o mar como a terra, cuja etnia ainda hoje persiste no sangue
popular de forma bem vincada em traços fisionómicos que celebrizaram as obras de Arte en-
contradas no Mediterrâneo oriental. É este o caso das "Ovarinas" ou "Varinas" que emigraram
de Ovar, a vender peixe, em Lisboa, mantendo, em regra, invulgar perfil de beleza. Um dia um
Etnógrafo conhecido, ao subir o Chiado, deteve uma "Peixeira" e disse para o companheiro
"olhe aqui: Fenício... Fenício puro". A visada não gostou e bem se pode saber a resposta que
deu ao que entendeu como "insulto".

Os Gregos

Depois do Século IX a.C. vai-se acentuando a influência de Gregos que navegavam pe-
lo Atlântico dando notícia da Macaronesia, maravilhoso «Continente», talvez a Atlântida hoje
submersa, que não será desajustado identificar com as ilhas atlânticas que, nessa altura desco-
bertas, acabaram por ficar perdidas e mergulhadas na lenda. No entanto, os Gregos vêm esta-
belecer colónias junto das populações ibéricas penetrando o mais possível pelos rios navegá-
veis. Assim, influíram fortemente no progresso da agricultura e das técnicas, deixando a sua
língua amarrada às coisas e aos sítios de uma forma incisiva. Pela mão dos Gregos foi adop-
tada a figueira, com seu fruto de alto valor alimentar, a amendoeira, a amoreira e o loureiro.

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Na indústria o espaço hoje português registara os notáveis progressos da cerâmica cam-
paniforme e desenvolve decididamente a Idade do Bronze. Os Gregos teriam incluído o mes-
mo espaço no universo de Baco, divindade celebrada na civilização da Vinha e do Vinho que
havia de desenvolver-se na Europa.
Da mesma forma os Gregos lançaram as raízes de sistemas institucionais ligados à pro-
priedade não só da Terra como do Homem, através da escravatura. Não teria sido implantada
a Democracia grega, em uso mitigado em algumas das Cidades imperiais, como um bem des-
tinado aos homens livres com exclusão dos escravos. Mas nos costumes autóctones, segundo
os quais o nomadismo pastoril e a agricultura itinerante excluem qualquer espécie de fronteiras
privadas, o uso individual da terra passaria a ser experimentado, ao lado da instituição céltica
do comunitarismo primitivo em favor de orgânicas tribais. Efectivamente, na primeira fase da
Idade do Ferro intensifica-se a invasão de povos Celtas ou celtisados que se instalam definiti-
vamente em todo o território. Coexistindo com outras tribos de origens as mais diversas, con-
solidam o «baldio» e solidíssimas estruturas agrárias camponesas que haviam de perdurar ao
longo de penosas vicissitudes históricas. Com os Celtas vem a couve que permitirá preparar o
caldo verde, os nabos e o linho, usados em espaços europeus atlânticos.
Não se torna fácil demonstrar que a partir destas influências a propriedade privada se
instalou. Terá validade a hipótese de, neste período, ter sido iniciada a partilha periódica de
parcelas sorteadas para fruição temporária, sujeita a revisão na dependência da evolução do
número de famílias. Mas, com o acréscimo da população e a radicação aos locais povoados,
viria a consolidar-se a posse das parcelas sorteadas, formando-se comunidades de camponeses
proprietários, ligados simultaneamente à exploração pastoril dos baldios. Lamentavelmente
tem de entender-se que os contactos com o espaço mediterrânico civilizado conduziram à ins-
tituição de novas formas de escravatura que, daí em diante e até ao século XIX, se apresenta
dolorosamente inserida na História da Agricultura. Isto não significa que a escravatura, que
nasceu na passagem dos povos caçadores e recolectores à prática de sistemas agrários, não fos-
se antigo costume tribal que poupava a vida dos vencidos reduzindo-os a cativos que se toma-
ram indispensáveis para atrelar ao arado, antes de ser adoptada a tracção animal.

A instalação dos Celtas

Foi na alvorada dos períodos históricos que o território hoje português assistiu à chega-
da, em ondas sucessivas de povos celtas que traziam consigo armas e ferramentas de ferro pro-
duzidas a partir do berço de Hellstat, mercê de técnicas de fundição mais complexas e exigen-
tes quanto a temperaturas, do que as tecnologias do bronze, para não referir as do Cobre, que
chegou a ser trabalhado sem fogo. Se a fundição de metais já ia dando grande desbaste na flo-
resta, o problema ter-se-ia agravado com as ferrarias de inspiração céltica. Deve acentuar-se,
porém, que, segundo historiadores modernos, os progressos industriais, verificados na explo-
ração mineira e na metalurgia não podem abstrair da influência de Tartessos, embora o conhe-
cimento desta cultura situada no Sul Ibérico, permaneça envolvido em aspectos lendários, mas
consolidados em indiscutíveis fundamentos históricos. Em virtude da fertilidade dos campos
do Guadalquivir, na época não assoreados, não admira que a lenda celebrize o Rei Gargaris,

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apresentado como inventor da Agricultura, ao lado de outros celebrizados na indústria e no co-
mércio. Por isso a presença das ondas de Celtas na Península não seria mais do que o reforço
ou consolidação de estruturas básicas de grande avanço progressivo. No aspecto agrário teria
sido impulsionado o pastoreio que passou a facultar «riqueza» presente no conjunto do reba-
nho. O gado acumulado conferia poder e liderança social e política. A posse do gado resvala
no sentido da posse da terra e dos escravos. Em tempos de instabilidade permanente, o cam-
ponês sedentário que tentaria radicar-se num pedaço de terra que fosse o amparo e a ferramen-
ta, passou a constituir valor efectivo, pelo que produzia e valorizava, melhorando o solo. Si-
multaneamente era estrato social vulnerável porque apenas se defendia e não guerreava. Sem
admitirmos, nesta fase, a presença de sujeições sequer parecidas com as que haviam de carac-
terizar épocas feudais que de alguma forma se avizinhavam, parece indiscutível que o sistema
agrário céltico apresentava estruturas sociais assimétricas, onde a figura do rico proprietário se
opunha a um campesinato fatalmente pobre. Nesta altura, com a acumulação de espólios de
guerras constantes, à custa dos vencidos, os vencedores tenderiam a formar linhagens familia-
res que dariam suporte a chefias alargadas. Mais tarde, Astolpas, sogro de Viriato, constitui
exemplo dado por historiadores, de grande proprietário que reúne em sua casa forças políticas
que enfrentam duríssimas confrontações características de tão atribulados tempos.
Os Celtas deram ao território a primeira configuração geográfica de regionalização,
configuração de qualquer modo esboçada pela diversidade orográfica que condicionava o sis-
tema pastoril e agrícola anterior. O Rio Douro e o Rio Tejo demarcaram três espaços geo-eco-
nómicos que assim viriam a prevalecer ao longo da história. A Norte do Douro o agrupamento
galaico consolidava o solar da cultura castreja, ampliando o habitat já iniciado nos cômoros,
pela construção de Castros e de Citânias, muitas das quais fortemente amuralhadas. Os habi-
tantes organizaram-se em grupos que se hierarquizavam desde a família às gentilitas, que se
podem considerar idênticas ao clan. As gentilitates, dentro da mesma gens formavam as tribos
que praticavam a exploração agro-pastoril nas zonas de altitude e meia encosta das montanhas,
deixando praticamente intactos os vales inóspitos, cobertos de pântanos e de densas florestas.
Esta organização económico-agrária apoiava-se em poderosa estrutura defensiva. No espólio
de Castros e de Citânias amuralhadas foram encontradas estátuas de guerreiros, restos de es-
cudos e de espadas. A Sul do Tejo, a cultura transtagana que se opõe à castreja apresenta-se in-
tegrada no mosaico de etnias da Ibéria mediterrânica, fortemente apoiada em cidades de que
mal se conhecem os nomes e muito menos os sítios onde estavam implantadas. Será forte, mas
particularmente nebulosa, a participação de Tartessos, cidade enterrada algures nas margens do
Guadalquivir, no desenvolvimento céltico do espaço que hoje é o Alentejo. Entre o Douro e o
Tejo forma-se uma transição plena de originalidades, que se implanta no mais elevado com-
plexo montanhoso do território onde se demarcam bacias hidrográficas, como as do Mondego
e do Vouga.
Com base nestas influências decisivas a paisagem agrária transforma-se totalmente,
passando a incluir as culturas arbustivas e arbóreas, como a vinha, a oliveira, a figueira e a
amendoeira, em parcelas demarcadas no espaço cerealícola anterior, junto dos povoados. A de-
limitação separada de terras de sementeira e de terras de plantação, afigura-se decisiva como
sistema caracterizador do abandono da itinerância agrícola com passagem à sedentariedade.

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Sucede que o clima português se apresenta particularmente favorável a culturas arbustivas e
arbóreas que dispensam a rega no estio pelo recurso à água armazenada no solo, o que não su-
cede com a cerealicultura que dificilmente suporta o Verão seco. Não se pode esquecer que um
antigo e ilustre Mestre de Agronomia atribuiu ao território português a qualidade de «solar da
vinha, da oliveira e do sobreiro», conceito que nos sugere a importância que representaria para
o progresso da agricultura dos Iberos, a contribuição facultada por Fenícios e Gregos, quando
proporcionam a expansão de culturas arbustivas e arbóreas mediterrânicas.

Cartagineses

Com a invasão imperial de Cartago, da Península Ibérica, cerca do século V a.C. o re-
duto da cultura castreja nortenha permanece fechado sem compromisso quanto à epopeia de
Aníbal, nos seus esforços de conquista do Império Romano, a partir da Península Ibérica. No
entanto a indústria do ferro e de outros metais como o ouro, progride no Norte e com ela a agri-
cultura em redor dos Castros, com o pastoreio nos baldios das montanhas. No Sul os Cartagi-
neses implantam, fora do território hoje português, a palmeira e a tamareira, e difundiram a
cultura da romanzeira, de plantas aromáticas e medicinais como o alho, a cebola e o aipo. Será
aos Cartagineses que se deve a primeira instalação dos regadios do Algarve, separado do Alen-
tejo por frondosa floresta serrana ainda preservada pelos cerealicultores. Nesta época teria sido
introduzida a «picota» e a «nora» que muito mais tarde os árabes haviam de difundir sempre
com a mesma técnica herdada nas ruínas de Cartago que, depois do Reino Vândalo, viria a fa-
zer parte do espaço islâmico. Porém, não devemos supor, de qualquer modo, que, nesta época,
o regadio fosse privilégio da área de influência de Cartago. Mesmo no Norte as culturas não
se apresentavam especializadas em regadio e sequeiro, o clima é que ordenava a rega de recur-
so. E digna de respeito a técnica de regadio adoptada nos «lameiros» para os quais, no Verão,
se conduzia, em regos, a água das nascentes, para obter o prado que complementasse as pas-
tagens estioladas. Não poderá excluir-se ainda a hipótese de a mesma água servir, no Inverno,
para a rega «de lima» que defende as plantas contra os estragos da geada. Eram de regadio, in-
dispensável no clima de Verão seco, os «linhares», situados junto de nascentes que assegura-
vam a colheita da maravilhosa planta que representa a primeira grande cultura industrial. A
transformação tecnológica do linho exigiu a instalação do engenho à beira da água para mace-
rar a fibra, que depois mobilizava as fiandeiras que também fiavam a lã. Assim se abasteciam
os teares, fundando-se os alicerces de futuras indústrias.

Lusitanos e Galaicos

Não oferece dúvida que o sistema agro-pastoril dos Lusitanos, a tribo mais forte do oci-
dente ibérico, se apoiava em terras férteis do Tejo, do Mondego e do Vouga. No entanto os na-
teiros das montanhas percorridas pelos rebanhos e suas queimadas ainda não haviam sedimen-
tado os solos que mais tarde se formaram. Navegava-se do mar até ao interior, nos rios. Por is-
so somente seria explorada pequena parte dos vales e estuários destes rios, onde a selva tivesse
sido abatida, na parte mais alargada. Nas áreas montanhosas do interior e do Norte do Douro

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onde dominavam tribos que os Romanos viriam a chamar Calaicos, o solo era pobre. Por isso,
e tendo em conta as irregularidades do clima que influiriam mais do que hoje nas colheitas,
dadas as deficiências de técnica de mobilização do solo, a fome teria frequente presença em
lares desprovidos de bons celeiros. A alternativa de nómadas recentes não poderia ser outra,
nessas circunstâncias, do que a de procurar subsistência onde pudesse ser encontrada. Daqui
as lutas permanentes num território que, nesta fase, nunca se encontrou politicamente organi-
zado. Seria por isto que os cronistas Romanos apreciaram a instabilidade tribal Céltica e Ca-
laica, e a agressividade dos seus guerreiros, com o epíteto de bandos de salteadores e de la-
drões. Todavia, quando este pequeno mundo agrário foi invadido pelas poderosas legiões ro-
manas, a pacificação arrastou-se ao longo de mais de 100 anos. Terá que entender-se que a
agricultura e o pastoreio do território e as suas riquezas minerais, constituíram, por um lado. o
objectivo de integração colonial dos administradores do Império Romano e, por outro lado, a
base de interesses instalados de uma sociedade tribal disposta, sem dúvida, a negociar comér-
cio, mas usando duríssima alternativa da revolta e da guerra de insubmissão perante as pres-
sões crescentes do ordenamento exterior. O romano não se apresentava como outros migrantes
que procuravam instalar-se por terem abandonado o solar de origem. Tinha outra tarefa a cum-
prir que era a de explorar recursos em favor da economia imperial ou em seu próprio proveito.
Assim, não é fácil separar, nesta fase da História, o que representou comércio, do que signifi-
cou epopeia, ou seja, a posição dos que aceitavam o jugo para sobreviver ou enriquecer, ou a
dos que se revoltaram contra o sistema imperial sem dúvida opressor. Por isso, será justo re-
conhecer que a figura de Viriato, abatido por Roma com a arma de assassínio traiçoeiro, se
identifica na História com defensores de outros territórios que, na Europa, se bateram pela li-
berdade das regiões e das pátrias, contra o Império, como Armínio dos Germanos ou Vercin-
getorix dos Gauleses.

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4 _ O PROGRESSO DA AGRICULTURA SOB O IMPÉRIO
ROMANO

Aníbal, Cartaginês nascido no Sul Ibérico, reunindo poderoso exército invasor para o
qual também recrutara soldados de aguerridas tribos Lusitanas, acalentou o sonho de conquis-
tar, a partir da Península, o Império Romano. Ultrapassados os Pirinéus e os Alpes, com armas,
bagagens e elefantes, quando as suas tropas, na Itália, se envolviam em duríssimas campanhas,
os Romanos desembarcaram na retaguarda Ibérica, no ano 218 a.C. Logo depois, Cipião aca-
bou por conquistar a parcela europeia do Império de Cartago, levando em seguida a guerra à
África, onde as vitórias lhe deram o Título de Africano.
Foi assim que o território hoje português ficou nas vizinhanças do Império Romano que,
daí por diante, daria início à ocupação particularmente arrastada. Em 194 a.C. teria ocorrido o
primeiro embate entre Lusitanos e Romanos, no regresso de incursão empreendida no Sul Ibé-
rico. Depois, a ocupação romana progrediu ou retrocedeu na dependência de acordos e de con-
flitos que caracterizam as lutas de pacificação colonial, em todas as épocas. No entanto, em
147 a.C. a resistência endureceu quando Viriato assumiu a chefia dos Lusitanos, conduzindo a
guerra durante oito anos, derrotando poderosos exércitos de Roma e sofrendo sangrentos de-
sastres. Ficou célebre por usar a táctica da guerrilha em terrenos difíceis para a movimentação
de exércitos organizados. Em 139 a.C. Viriato foi assassinado por companheiros que os Ro-
manos aliciaram. Com o esmagamento dos Lusitanos no Sul a resistência Calaica do Norte so-
freu a incursão vitoriosa de Décimo Júnio Bruto que, em 136 a.C., levou as legiões de Roma
para além do Rio Lima, ao coração do território da Civilização Castreja. Depois da vitória que
lhe conferiu o título de Calaico, Décimo Bruto fez recuar as legiões rumo ao sul, onde perma-
neceriam durante um século. Entretanto, mesmo refeitos e independentes, os Castros e Citâ-
nias haviam de sustentar constantes investidas.

Ocupação colonial

Depois a ocupação romana passou a assumir aspectos que revelam o envolvimento de


poderosos interesses comerciais. Seria lucrativo o abastecimento das forças militares aquarte-
ladas e a exportação para Roma Imperial, onde nada se produzia e tudo se importava, como é
típico dos grandes impérios coloniais integrados. Também, as lutas políticas romanas, acaba-
ram por encontrar na Península alguns dos seus cenários, como sucedeu com a rebelião de Ser-
tório, que teve o apoio dos Lusitanos. Tendo em conta que a ocupação eficaz apenas respeitava
ao Sul, incluindo o Alentejo e a Beira, permanecendo o Norte rebelde, o Império decidiu, ao
fim de mais de um século, submeter todo o território peninsular. O Imperador César Augusto
tomou o comando, avançou para o Norte e depois de, em 26 a.C., cercar os Calaicos no Monte
de Medúllius, junto ao Rio Minho, que preferiram o suicídio à rendição, acabou por dominar
os últimos redutos de Cantabros e de Astures, em 24 a.C. Estava assim consolidada a «Paz Ro-
mana» pronta a transformar a agricultura e a vida rural Céltica segundo preceitos técnicos ex-

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tremamente avançados.
A implantação do sistema colonial romano que alcançara progressos no Sul, passou a
alargar-se a todo o território. Foi estruturada uma agricultura simultaneamente de subsistência
e de exportação para o Império que se apresentava como mercado integrador de todos os es-
paços conquistados. Simultaneamente foi desenvolvida a exploração mineira, como actividade
de grande importância económica que tinha tradições desde o Calcolítico, alcançando-se gran-
des progressos técnicos que conduziram à exaustão dos recursos naturais, especialmente de
ouro. A vida urbana que estaria implantada em pequenos aglomerados, beneficiou de forte de-
senvolvimento, especialmente no Sul, sendo edificadas cidades ligadas por completíssima rede
viária servida por solidíssimas pontes. No espaço intercalar da rede urbana foram fundadas as
Villae que constituíram domínios ou propriedades atribuídas aos dominas, com seus escravos,
que concediam casais a servos, os adscripti, ou coexistiam ao lado de cultivadores livres, os
ingenui, ou de largos espaços de montados indivisos, comunitários ou colectivos, usufruídos
pelas velhas populações célticas.

Reforma estrutural

A instalação de uma estrutura nova de unidades de actividade agrícola corresponde,


sem dúvida, a um processo agrário de reforma. A partilha de terra alterou a posse e o uso
anterior, onde o domínio privado se não encontraria plenamente institucionalizado. A terra
encontrava-se, sem dúvida, parcelada na mão de camponeses, mas era possuída também, em
grande, por chefias tribais privilegiadas, estando generalizado o uso comunitário, com o pas-
toreio e a agricultura itinerante. Mas a reforma romana consolidou a propriedade privada em
favor de outros privilegiados, de origem romana ou provindos de populações submetidas
que se tornaram cooperantes da nova ordem colonial. O Direito Romano consolidava assim,
nas colónias, a posse da terra, implantando no terreno as Villae, e a ideologia do lucro,
proporcionando as condições de funcionamento do mercado para abastecimento das cidades
e exportação para Roma, sede do Império. O estatuto jurídico em que o estabelecimento das
Villae se fundamentava era o da propriedade plena, privada, que, pela primeira vez na His-
tória, assegurava os direitos de possuir com exclusão de outrém, de fruir e de dispor, de
abandonar e de destruir, os bens apropriados. No entanto o direito romano não se alargava a
todo o território. As Villae formavam uma espécie de ilhas implantadas no espaço rural onde
se mantinha o direito comunitário céltico sob a forma de livre pastoreio ou de baldio, cujos
restos ainda chegariam ao século XIX. No entanto, a ocupação mais demorada permitiu a
transformação fundiária bem marcada no Sul, onde a densidade das Villae permite afirmar,
como regra, que as herdades do Alentejo representam a expressão actual das estruturas
romanas, sendo comum encontrar, no alicerce do «monte», ou em lugar próximo, a ruína da
Villa Rústica que há dois mil anos conduzia no local agricultura idêntica. Quando se cami-
nha para o Norte a densidade das Villae decresce, devendo acreditar-se, no entanto, que uma
poeira de Villae se teria estabelecido nas áreas percorridas, encontrando-se hoje muitas das
Vilas actuais e Aldeias construídas sobre ruínas romanas. As Villae não teriam trepado às
áreas montanhosas, permanecendo as encostas das serras entregues ao sistema céltico dos

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baldios com áreas privadas junto de aldeias comunitárias, muitas de refúgio que os colo-
nizadores romanos respeitavam.
As Villae romanas constituíam assim unidades de exploração agrícola que podiam atin-
gir dimensão inferior ao que mais tarde justificaria a designação de latifúndio. Constavam de
uma parte urbana, com residência do dominus e família e outra parte rústica, com instalações
de criados, servos, escravos, cozinhas, estábulos, celeiros e construções agrícolas. O domínio
não seria escasso, com certeza superior ao de parcelas de agricultura camponesa, mas não
maior do que as grandes propriedades mantidas por chefes tribais lusitanos que ficaram sub-
metidos. Mas o conceito de latifúndio que foi usado por autores romanos que condenaram vas-
tas concentrações de terra promovidas na Itália à custa da propriedade camponesa abandonada
pelos rurais empobrecidos pelas importações agrícolas das colónias do império, tinha sentido
diverso. Latifúndio era, na Itália, a grande concentração fundiária, mal explorada, entregue a
agricultores escravos. Tal situação não teria semelhança com as Villae romanas do território
hoje português, que poderiam dominar áreas de cerca de 600 ha. tanto no Sul como no Norte
do território, visto não serem muito diferenciadas as culturas e o pastoreio nessa época. No en-
tanto as áreas geralmente eram menores.

Cidade e Campo

A reestruturação agrária romana teria encontrado condições muito diversas no Sul e no


Norte. O Sul e Centro mediterrânicos ofereceram às técnicas romanas paisagens de grande se-
melhança com as da Península Latina. O esquema Cidade-Campo foi edificado com a constru-
ção de Cidades como Ossonoba (Faro), Mertilis Julia (Mértola), Pax Julia (Beja), Salacia (Al-
cácer do Sal), Ebora (Évora), Olissipo (Lisboa), Scallabis (Santarém), Conimbriga (em ruínas
perto de Condeixa) e Egitania (Idanha-a-Velha). No campo intercalar da rede urbana prospe-
ravam as Villae animadas por grande actividade agrícola.
No Norte, pela ocupação mais tardia, a implantação da estrutura romana foi mais difícil.
Os exércitos de Augusto movimentaram-se na selva densa que dominava nas terras baixas,
encontrando-se a população defendida em posições castrejas, amuralhadas nos comoros vi-
zinhos das montanhas, que estariam limpas de arvoredo pelas queimadas do pastoreio e da
agricultura. Para instalar as Villae romanas foi necessário abater a selva e sanear os pântanos
por meio de obras de drenagem nunca antes realizadas. As populações foram obrigadas a aban-
donar os Castros e as Citânias, para garantia da segurança militar, baixando às Villae na sub-
missão às condições servis impostas pelos dominus. Outra alternativa seria a de procurarem
refúgio nas montanhas, em defesa da liberdade tradicional do pastoreio e da agricultura céltica,
em aldeamentos comunitários que depois se mantiveram até à actualidade. No Norte são mais
escassas as grandes Cidades, destacando-se Bracara Augusta (Braga) e Aquae Flaviae (Cha-
ves).

Transformação agrícola

A presença dos romanos foi decisiva em termos de transformação agrícola. A cultura do

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trigo túrgido que abastecia os celeiros do Império Romano acusou o primeiro surto de expan-
são. Não se afigura difícil entender quanto a intensificação da cerealicultura teria contribuído
para a ruína de solos, como os que constituíam o suporte da vida urbana em Mértola, hoje
transformados em campo branco erosionado. Os barros, esses, que justificam a grandeza de
Beja, resistiram. Mas não será apenas o Alentejo que explica a tradição de «celeiro do Impé-
rio» atribuída à Lusitânia. O Ribatejo teria oferecido a fertilidade bastante para assegurar a efi-
cácia do mercantilismo cerealícola da época. Além do trigo, eram negociados os cavalos, de
éguas «fecundadas pelo vento», em liberdade, nas lezírias do grande Rio, comparado ao Nilo
pelos nateiros depositados pelas cheias.
Afigura-se notável, do ponto de vista técnico, que o desenvolvimento da cultura cerea-
lífera se apresente simultâneo de acções exercidas no domínio da cultura de forragens, pelo
alargamento da cultura de aveias e pela introdução do tremoço, do fenacho, da ervilhaca. A pe-
cuária teria abandonado, em parte, o sistema pastoril extensivo, adoptando técnicas intensivas
nas terras húmidas, abrindo novas perspectivas à prática de fertilização dos solos. Por isso, nas
Villae a cultura de legumes e hortaliças passou a ser melhorada, introduzindo-se o feijão frade,
o pepino, o melão, as abóboras, a alface, o alho porro, os espargos, a acelga, a cenoura, o ra-
banete, a salsa, a mostarda, os coentros, os cominhos, a segurelha, a mangerona e também a
alcachofra.
A viticultura regista, com os romanos, grande incremento praticando-se larga expor-
tação de vinhos alentejanos pelo estuário do Sado e barra do Guadiana. Dessa exportação
dão notícia as ânforas por todo o lado encontradas e em barcos afundados. Outros vinhos
eram preparados em cubas de fermentação e adegas descobertas em toda a Estremadura e no
Douro. Não deve excluir-se a região dos vinhos verdes, onde a vinha alta se cultivava em
cordões contínuos no terreno, com recurso a técnicas de condução que voltam a ser adop-
tadas especialmente para vinhos brancos. A cultura de plantas arbóreas veio acrescentar ac-
tividades já instaladas como as da maçã e da pera a partir do melhoramento de raças
indígenas como as peras de Numancia. Foi desenvolvida a cultura da ameixieira, da ce-
rejeira, da gingeira, do pessegueiro, do damasqueiro e da cidreira, tudo introduzido pelos ro-
manos.
A destruição da floresta primitiva operada desde o neolítico nas planuras do Sul e nas
terras altas do Centro e do Norte, teria sido completada pelos romanos na selva que resistira
ao fogo nas terras baixas recobrindo os pântanos das margens dos rios. No entanto, em contra-
partida, os romanos introduziram novas plantas florestais como o plátano e outras de grande
valor alimentar como o castanheiro e a nogueira. Particularmente a instalação de soutos, feita
com cultivares mais produtivos do que o castanheiro indígena, encontrou lugares privilegiados
tendo, a castanha, passado a constituir alimento, ao longo de séculos.

Hidráulica agrícola

Assim, o derrube da floresta nas terras marginais dos cursos de água permitiu que as
populações castrejas baixassem dos comoros atraídas pelas obras de drenagem de charcos e
de pauis para estabelecimento de prados e de novas áreas de cultura. Não se afigura possível

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documentar a existência de obras de rega alargadas a espaços apreciáveis de agricultura in-
tensiva, mas será rigoroso considerar a construção dos primeiros dispositivos de defesa
contra as cheias e de pequenas obras destinadas à rega. Todavia não poderá afirmar-se que
sob a influência dos romanos se tivesse estabelecido verdadeiramente o regadio. Rui Mayer,
autor de uma das traduções das Geórgicas de Vergílio, comenta: «Vergílio parece considerar
a rega um meio de socorrer as culturas, que é de presumir fossem normalmente de sequeiro,
em caso de necessidade urgente». No entanto, especialmente no Alentejo, foram identifi-
cadas como romanas pequenas reprezas e está averiguado o conhecimento da arte de cons-
truir poços, ou das técnicas de captação e de elevação de águas como a roda hidráulica, o
parafuso de Arquimedes, e mesmo a bomba elevatória. Este conhecimento permite concluir
que, durante a presença romana no território hoje português, o regadio, mesmo mecânico,
revela a sua mais alargada instalação, depois do que fora obtido através dos ensinamentos
de Gregos e de Cartagineses, que teriam introduzido algumas técnicas avançadas, especial-
mente estes últimos no Algarve. Efectivamente, não pode perder-se de vista que certas for-
mas de domínio da água para rega tivessem sido já concretizadas, antes dos romanos. Não
se tratava, porém, de rega apoiada em instrumentos mecânicos mas simplesmente em dis-
positivos de aproveitamento da força da gravidade que permitiam conduzir a água de nas-
centes e cursos para terrenos situados a nível inferior. Assim, os mananciais correntes nas
linhas de água. cujo caudal era armazenado em poços, seguia depois em canais abertos
segundo as curvas de nível, a humedecer o solo cultivado. Este teria sido o sistema pri-
mitivo, pré-Romano no Norte e pré-Cartaginês no Sul. Mas não poderá deduzir-se que os
sistemas primitivos constituíssem uma prática de regadio. Acentua-se que a água trans-
portada por gravidade permitiria apenas enfrentar situações críticas de aridez em áreas
cultivadas ou em parcelas de pastagem intensiva, dando origem a dispositivos que teriam
semelhança com os «lameiros».
Portanto, as rodas hidráulicas, movidas pela deslocação da água, que permitem a eleva-
ção de caudais de rega para condutas que dominam terrenos marginais, constituem engenhos
de presumível origem persa que os romanos difundiram praticamente por todo o espaço medi-
terrânico. As noras de alcatruzes de tracção animal, especialmente as destinadas a elevarem a
água dos rios e poços teriam sido também devidas aos romanos. Os engenhos mais simples de
tracção humana, como o sarilho instalado em poços, bem como a picota ou a cegonha existiam,
mas foram largamente difundidas em charcos, poços, margens de cursos de água, constituindo
os mais generalizados instrumentos de rega utilizados desde a Asia à Europa Mediterrânea. As
técnicas romanas de elevação e condução de Águas, mesmo em conduta fechada, usadas nos
centros urbanos, em balneários, em jardins, em hortas, nas minas, estão perfeitamente identi-
ficadas. É de admitir que tivessem paralelo, em certos casos, na agricultura, o que permite ima-
ginar, nesta época, a existência de regadio agrícola progressivo, em pequenas hortas e poma-
res. Na prática, o comércio agrícola não envolvia produtos obtidos pelo regadio, mas cereais
de sequeiro, vinho c azeite. Sem dúvida, mais do que o regadio, o enxugo de pântanos e a aber-
tura à cultura de terras baixas inundáveis, teria sido uma das formas de expansão das áreas cul-
tivadas.

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Agronomia Romana

O que não oferece dúvida ter chegado com os Romanos ao território hoje português foi
a primeira mensagem da Agronomia, como Ciência ao serviço do bem comum. Daqui em dian-
te justifica-se o dizer de L'abbé Beaurredon em «Voyage agrícole chez les anciens, ou L'Eco-
nomic Rurale dans 1'Antiquité», ao comentar os tratadistas romanos: «a Ciência esclarece a
Prática, e a Prática controla a Ciência; sem uma, como sem a outra, não pode haver boa agri-
cultura». Embora, por ausência de informação de Historiadores, não seja fácil aperceber-nos
até que ponto a agronomia romana alcançava difundir seus preceitos nesta longínqua parcela
do Império, o certo é que Roma contava com Agrónomos da estatura de Catão, Varrão, Colu-
mela, Paládius e Vergílio, que legaram à Humanidade verdadeiros Tratados de Agricultura, de
que alguns milagrosamente se salvaram da destruição imposta por múltiplos acontecimentos
históricos.
Perdidos para nós, na noite dos tempos, talvez os melhores documentos da Ciência
agrária do «crescente fértil» do Médio Oriente, alguns indecifráveis quando supostamente
conhecidos, é de crer que muito estaria acessível aos Agrónomos romanos que nos colocam
em face de conhecimentos alcançados na Grécia antiga ou em Cartago, para não referir os
mesopotâmicos ou egípcios. No trabalho a que fizemos referência verifica-se que os Agró-
nomos romanos se consideram transmissores de sabedoria muito antiga. Catão nasceu em 234
a.C. esteve presente nas campanhas de Cipião contra Cartago e em Numancia. na trágica sub-
missão dos Celtiberos. Varrão foi, no dizer de Cícero, «o mais sábio dos romanos». César res-
peitou-o, embora se lhe tenha oposto na defesa intransigente das liberdades e dos direitos hu-
manos. Publicou o seu Tratado de Economia Rural quando contava 80 anos, que é um dos
salvados da sua Biblioteca depois da morte de César. Columela e Paládios escreveram durante
o período de César Augusto. Vergílio compôs as Geórgicas na ideia de que poderia perpetuar
o Império Romano, pondo-o ao abrigo da ruína que o esperava, irremediavelmente, pela en-
trega da agricultura a escravos, em consequência do êxodo rural, a alimentar o urbanismo
ocioso.
Os Tratados romanos utilizam aprimorados métodos descritivos ou diálogos didác-
ticos, ordenando as matérias em capítulos de perfeita organização. Temas como os de técnica
gestionária da empresa agrícola englobam a função do proprietário, do intendente e do
capataz, e analisam os problemas dos trabalhadores, livres e escravos. É impressionante a
leitura dos cuidados a assegurar para manter os escravos. Tudo se baseia em princípios de
conservação de meros «motores vivos», com exclusão de preocupações humanas ou sociais.
Os escravos, para os romanos, constituem apenas peças essenciais do equipamento e do
funcionamento da actividade agrícola e doméstica. Como Homem valia apenas o Cidadão
Romano, ou romanisado e livre. Os capítulos reservados à Arquitectura rural são particu-
larmente belos, destacando-se os preceitos de construção das casas de residência de que hoje
se encontram magníficos vestígios como os mosaicos. Os balneários, pátios de lazer e
jardins, merecem atenção particular nas Villae urbanas. As instalações das Villae rústicas são
tratadas com grande minúcia, as cozinhas, as cavalariças, os estábulos, os celeiros, os ca-
banões, as instalações tecnológicas, como adegas e moinhos, as capoeiras. Assumem par-

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ticular interesse os capítulos reservados às águas, sendo descritos os sistemas de captação
incluindo poços e cisternas, rodas hidráulicas e bombas, assim como os de condução ou
aquedutos. No que respeita à descrição das práticas agrícolas, as culturas dos campos são
precedidas de referências ao rompimento dos solos, saneamento dos solos, sucessão e dis-
tribuição das culturas, não faltando a sistematização da prática das observações lunares que
ainda hoje é respeitada por numerosos agricultores. Descrita a preparação dos solos segue-
se a referência a estrumações, sementeiras, grangeios e ceifas. Cada cultura merece capítulos
especiais, como o trigo, a cevada, o centeio, o milho painço, a ervilha, a lentilha, a lava, os
nabos, a aveia, a luzerna, os prados, os fenos, o linho. No que se refere a culturas arbóreas
e arbustivas discutiam-se técnicas de multiplicação, com referências pormenorizadas à en-
xertia. A pecuária merece profunda atenção, descrevendo-se técnicas de maneio e cuidados
higiénicos e sanitários. Encontram-se referências a numerosas espécies de gado, vacas, ca-
valos, mulas e azininos, ovelhas, cabras, porcos, aves, peixes, animais de parque e de caça,
e abelhas.
A informação de Historiadores portugueses quanto a este período fundamental da
evolução da Agricultura no nosso território é particularmente valiosa para os Agrónomos no
que se refere ao Norte devido aos estudos de Alberto Sampaio, em «As Vilas do Norte de
Portugal». Quanto ao conjunto do País, os trabalhos de Jorge Alarcão em «Portugal Roma-
no» e «Domínio Romano em Portugal», sugerem a existência de numerosas «estações roma-
nas» ainda por explorar, embora se encontrem 2.800 inventariadas. Deve reconhecer-se que
estas facultam «vestígios e achados» que nem sempre permitiram conclusões agrárias tão
seguras quanto pretenderíamos. Para nós, permanece a suspeita de que as Vilas romanas, no
sentido de explorações agrícolas, não são somente as instalações sumptuosas que têm sido
assinaladas, que constituem casos pontuais, no domínio rural, como as grandes Cidades.
Existiram edificações modestas que o tempo escondeu, por terem sido, no decurso da His-
tória, sempre utilizadas, porque nos terrenos em redor a exploração agrícola não foi sus-
pensa, e qualquer parede ou alicerce servia para adaptações frequentes, servindo de abrigo
para homens e animais. De qualquer modo, os Romanos, dispondo de conhecimentos agrí-
colas bem aprofundados, não deixaram de instalar, mais no Sul do que no Norte, uma agri-
cultura progressiva, de orientação mercantil muito aprofundada. Aligura-se-nos porém que
o «vestígio» da actividade mineira, da instalação de termas, da estrada ou da ponte, por
exemplo, se apresenta mais esclarecedor, do que o de estruturas agrárias, invisíveis por apa-
gadas no terreno, ou omissas na névoa de outros documentos. Devemos notar, neste passo
do nosso relato, o que a agricultura romana representava como sacrifício do escravo que era
suporte do peso desmedido do trabalho feito a braço, e o que a agricultura representa ainda
como benefício para os «dominus» que arrecadavam também o proveito de outras situações
do servilismo agrário. A escravatura em Roma não era pacifica, ficando memorável a revolta
de escravos sírios na Sicília em 133 a.C. a de escravos gladiadores comandados por Espár-
taco, em 71 a.C. que terminaram crucificados. A apropriação da terra resvalava no sentido
da apropriação de homens que a cultivassem, e tudo era praticado segundo costumes que,
mesmo diversos da escravatura, impunham tributos pesados, o que constituía séria restrição
às liberdades das populações rurais. A cobrança de impostos de toda a espécie facilitava a

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corrupção muito generalizada que impunha condições particularmente gravosas aos despro-
tegidos do ponto de vista social.

O Cristianismo

De qualquer modo a «Pax Romana» teria constituído realidade efectiva depois do es-
magamento da resistência galaico-lusitana pelo Imperador César Augusto cerca do ano do
nascimento de Cristo. Nesta longínqua parcela do Império, recém pacificado pela força das
armas, ninguém se teria apercebido de que, num estábulo situado à beira do caminho, nascera,
a meio da jornada, um «Menino» para quem estava anunciado o nome de Jesus. Foi deitado na
mangedoura, em «palhinhas», como havia de ser contado, onde uma Vaca e um Burro lhe
deram o calor bastante para adoçar o desconforto e a invernia, compondo no «Presépio» o
cenário rural que viria a ser multi-interpretado, sem nunca perder a força intencional da rus-
ticidade. Ninguém por aqui tão longe alcançou descortinar a miraculosa Estrela que convocou
humildes Pastores, muito antes que desse aviso a Reis do Oriente. Depois, e com forte pro-
babilidade, passaram sem qualquer notícia as três dezenas de anos seguintes, fundamentais,
enquanto eram construídas grandes Cidades e as Vilas rústicas se povoaram com servos e
escravos conformados. As Legiões do Exército de Guarnição permaneciam nos quartéis e as
relações Cidade-Campo, bem como as do comércio externo ou Império-Colónia, progrediam
como se fosse de um Mercado Comum que se tratasse. Com as barreiras da distância, nem os
Lusitanos, nem os Galaicos, mais rebeldes, poderiam ter notícia de Jesus Cristo, o Salvador
Crucificado. Faz parte da tradição lendária que o anúncio veio logo com a caminhada de
Sant'Iago Apóstolo, «o maior», a quem ficou entregue a evangelização pacífica do Ocidente
Ibérico. Seus passos, se acaso alguma vez os pôde dar em Vida nestes caminhos, teriam ficado
no segredo dos Camponeses que ao Santo tivessem dado abrigo em suas choças e choupanas,
enquanto escutavam a Mensagem que o Apóstolo lhes entregava. Neste fermento se baseará a
Lenda segundo a qual, depois de «o Maior» ter sido decapitado na Palestina, as suas relíquias
terem arribado, miraculosamente, a praias da Galiza, onde aguardaram que, sete séculos vol-
vidos, com a onda Islâmica a avassalar a Espanha, a «Estrela» assinalasse o «Campo», em
Compostela, onde o Santo quis repousar.
Foi lenta a difusão do Cristianismo na Hispania romana. Por toda a parte os Santuários
dos Deuses que Roma implantara nos lugares de Culto gentílico particularmente rico, asse-
guravam aos povos a prática de Religiões autorizadas. Tanto nas Urbs como nas Villae, Tem-
plos e Santuários eram mantidos. Entretanto o êxodo migratório trazia à Península Cristãos ar-
rastados pelo impulso de conversões que Roma combatia com a repressão que levava ao mar-
tírio numerosos crentes. Mas, somente no decurso do século III, assinalado por revoltas que
chegaram a atingir as proporções de guerra civil, fica registada a presença de fortes comuni-
dades cristãs efectivamente implantadas. Assim, sob o impulso de uma espécie de rebelião
surda, nos lugares de Culto, os Deuses antigos começaram a ser substituídos, passando a Cruz
de Cristo a figurar em Igrejas e Oratórios, na indiferença perante as perseguições de Valeriano
ou de Diocleciano, que chegavam à Hispania atenuadas. Supõe-se que fortes núcleos hispano-
-romanos já teriam adoptado a Fé Católica quando Teodósio Magno (379-95) oficializou esta

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Religião no Império. Daqui por diante começam a ser instituídas as Paróquias para as quais
eram nomeados Bispos. No princípio do século V a Diocese passa a ser a residência e territó-
rio de administração dos Bispos, deixando a paróquia de ser episcopal, passando a rural e pró-
xima das comunidades cristãs assistidas por Presbíteros.

Ventos de Mudança

Mercê de todas estas perturbações que, por toda a parte difundiam ventos de mudança,
a «Paz Romana» e a sua agricultura vergiliana, na Hispânia, havia de sofrer as consequências
de decadência do Império, na sua própria sede, o que neutralizou a resistência à pressão dos
Bárbaros em todas as fronteiras. Porém as estruturas agrárias romanas encontravam-se de tal
modo implantadas que as parcelas conservariam até hoje os mesmos nomes, iguais limites e
idênticas características funcionais. Desbravar as terras é termo romano, assim como certas
áreas florestais são bouças e montados. Junto das Villae formou-se a cortinha, o quintal, a hor-
ta. Nas margens dos rios foi feita a limpeza das várzeas, que serviram de pastagem porque a
produção cerealífera pedia terrenos com certa secura, onde o arado trabalhasse facilmente. Por
isso se demarcavam as agras no chão das encostas, na planura dos outeiros, nas parcelas en-
xutas dos vales. Com área mais pequena estruturavam-se as leiras e courelas. Tais parcelas
eram entregues a agricultores que em diversas situações sociais, as cuidavam. Com perfeito
sentido ecológico eram demarcados os pomares, as vinhas, os olivais e os soutos. Daí por dian-
te, quando a paisagem rural era ferida pelas guerras, havia de permanecer o que Alberto Sam-
paio referiu como «reminiscência vaga e confusa das antigas vilas romanas», e os homens,
quaisquer que eles fossem, submetidos ou invasores, servos ou senhores, deitavam-se ao tra-
balho para repor a agricultura no lugar exacto, a garantir a segurança e o alimento sem o qual
a paz não pode ser, sequer, tentada.
Em todo o território, a calçada romana assegurava a circulação, e solidíssimas pontes
ligavam margens de rios franqueados ao trânsito e às mercadorias. Os cultos romanos ergue-
ram aos Deuses Templos majestosos, as vitórias foram celebradas com arcos triunfais, e em
homenagem à força física construiram-se circos monumentais, reservando-se para a diversão
os teatros ou hemiciclos de grande capacidade. A medicina fomentou as termas que davam re-
frigério a muitos males, aquedutos imponentes conduziram água aos centros urbanos, assegu-
rando o caudal de fontes e os consumos de numerosos balneários. A demarcarem as distâncias,
os marcos miliários, erguiam-se nas vias percorridas e, por toda a parte, estátuas, inscrições,
altares assinalavam presença efectiva, desafiando o tempo e dando testemunho de civilização
e de cultura. Nas malhas da rede viária e de transporte, floresciam cidades de intensa vida ur-
bana, acrescentando vitalidade ao pulsar do campo, na cadência progressiva das villae.

A decadência do Império

Porque o quotidiano da vida se apresenta finito e transitório, moldado ao jeito dos ven-
tos da mudança, assim, a grandeza do Império Romano foi ensombrada, no início do século V,
pelo crepúsculo ameaçador da noite sem remédio. Perante clivagens internas da decadência

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que roía as estruturas sociais do mais imponente dos edifícios políticos da Antiguidade, impa-
rável migração humana de povos germânicos e asiáticos, infiltrou, através da fronteira céltica,
grupos de guerreiros, aloirados uns, quando arianos, e outros escuros, de sangue tártaro ou cau-
casiano. Insidiosamente, avançando e logo recuando, atacando de surpresa baluartes mal de-
fendidos, recusando a luta em face da resistência, tais povos transpuseram os Pirinéus e inun-
daram de pasmo e de terror a Península Hispânica. Os Bárbaros, no seu impulso ameaçador,
viriam inscrever nas crónicas da Lusitânia e da Calecia romana o despertar de novos tempos,
com a presença de Suevos, Alanos, e Vândalos no ano de 409.
O Império lutou pela sobrevivência, pactuando e cedendo parcelas do território, atrain-
do alianças traiçoeiras como a dos Visigodos, tirando partido das divisões que envolveram em
luta os bandos invasores. Os Alanos submeteram-se, vencidos, mas os Vândalos persistiram
nas razias de tal modo que fixaram na memória do povo português a imagem da violência ab-
surda, cega e sanguinária, que se conserva ainda quando se comenta «um vandalismo». Os
Suevos acabaram por escolher o seu espaço na Calecia, com capital em Bracara, e os Visigo-
dos, atraídos à luta pelos Romanos em 411, fixaram-se em Toledo, deixando no Sul a presença
temporária de Bizantinos. Os Vândalos, derrotados em 418, passaram o estreito do Mediterrâ-
neo e implantaram em África um Império efémero.
As instituições judiciais, os fluxos comerciais que demandavam Roma, o estatuto polí-
tico e social, enfim, tudo o que ligava a Hispania ao Império, ruiu espectacularmente. Na re-
gião resistia talvez a Fé Cristã, do povo evangelizado desde Sant'Iago, povo amarrado ao ter-
ritório onde sucessores de Pedro haviam implantado, a partir de Roma Apostólica, Bispos, Pá-
rocos, Dioceses e Paróquias ainda mal estruturadas. Todavia os Bispos tentavam suster a amea-
ça dos Bárbaros, pactuando com Suevos e Visigodos, de forma a consentirem aos luso-roma-
nos cristianisados, relativo sossego político, enquanto as guarnições militares se desfaziam na
debandada dos mercenários, descrentes do socorro eventual e incerto de tropas imperiais que
conquistavam escassas vitórias e acumulavam derrotas de mau prenúncio.

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5 — A INVASÃO DOS GERMANOS

Com a escassez de cronistas nesta época, os Historadores encontram, no termo do do-


mínio peninsular do Império Romano, um densíssimo espaço de penumbra. De qualquer mo-
do, não pode no entanto deixar de se entender a profundidade e a extensão do efeito perturba-
dor, para uma população agro-mercantil sedentarisada, da presença na linha do horizonte de
nómadas guerreiros, portadores de duríssimos costumes e deslumbrados pela riqueza acumu-
lada em cidades activas e nos campos cultivados. Regista-se que se intensificou nessa altura a
ocultação de tesouros que ficaram perdidos quando, os invasores roubaram aos donos, não a
fortuna, mas as vidas, sem qualquer proveito. Ao mesmo tempo, os escravos ficaram libertos,
enquanto muitos dos que viviam em liberdade, foram escravisados. De qualquer modo, os tra-
balhadores suspenderam o trabalho, as plantações estiolaram por falta de cuidados, as searas
foram invadidas por ervas daninhas, os animais abatidos para saciarem fomes inclementes, ou
afugentados ao abandono nas florestas dando repasto às feras e aos abutres insaciáveis. Não se
afigura indispensável crónica para entender o quadro da ruína de uma agricultura abandonada,
sem governo ou programa gestionário.
Mas, os «Bárbaros», migrantes. Vândalos e Alanos, que foram afastados por Suevos
e depois Visigodos, em busca de um destino, acabariam por encontrá-lo mesmo nas ruínas e
no terror que semeavam. O impulso da sobrevivência necessária acabou por unir o vencedor
e o vencido na trégua que prepara o porvir. Daí por diante, a guerra não era ocupação dos
vencidos, mas empenhamento de dois grandes grupos vencedores. Os Suevos corriam a as-
saltar em Toledo os Visigodos e estes vinham em correria destruir Bracara. É certo que, na
passagem, os exércitos semeavam desolação e morte, enquanto os povos básicos, resíduo
humano no processo histórico, se escondiam em refúgios, para retomarem, nas pausas da
luta, os ritmos da agricultura, ajudando as plantas a germinarem e a frutificarem e os ani-
mais a cumprirem a promessa fértil dos seus partos. O confronto irredutível e arrastado de
Suevos e Visigodos durou século e meio, com a interferência frequente de Bizantinos. Foi
no ano de 585 que o poderoso Leovegildo lograria submeter os Suevos. No entanto, ao longo
de tão atribulado período, de elaboração civilizacional, o território dispôs do governo de
chefias militares que elevavam famílias à liderança preparando o terreno ao que havia de vir
a ser o Feudalismo. As estruturas de produção agrícola camponesa foram mantidas como
sistema essencial sem o que não haveria sobrevivência. As mais graves perturbações ocor-
reriam no decurso das confrontações guerreiras e seriam mais trágicas quando impostas pela
retirada dos vencidos que destruíam tudo o que encontravam vivo. Era diferente o avanço
do exército vencedor, para o qual os camponeses constituíam a esperança de aliados, na con-
solidação das vitórias, cujo suporte se encontra sempre na abundância de alimentos. A fome
nunca pode significar mais do que a derrota.
Importa, no entanto, reter que os invasores Suevos ou Visigodos não constituíam guarda
avançada de qualquer Império disposto a dominar de longe, mas onda humana trazida a hori-
zontes de aventura por destino cujos fundamentos continuam por esclarecer. Vinham para fi-

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car, algures, em parcela do Império Romano desmoronado, onde a riqueza acumulada fosse
bastante para compensar por ventura, dolorosas misérias que haviam abandonado. Assim, os
«Bárbaros», ao encontrarem o sortilégio do sítio onde acampavam, entregar-se-iam, na Penín-
sula, à miscigenação que elabora as novas pátrias. A agricultura, como actividade dominante
e essencial constituía, sem dúvida, o ambiente de encontro de diferentes raças, o processo de
concretização das tréguas, a sequência de todas as tecnologias que formavam o património
acumulado.

O Cristianismo e as interpretações heréticas

Entretanto a Mensagem Cristã alertava os espíritos com as heresias instaladas a Oci-


dente. Como relata Francisco José Veloso, ao comentar a presença do Priscilianismo no sé-
culo IV, «é a reprodução do credo de Zoroastro e da doutrina dos Maniqueus, que infestaram
a Lusitânia e a Galécia. Assim se compreende que, degolado em Treveris, Prisciliano, após
trágico diálogo com seu antagonista, o Bispo lusitano de Ossonoba, no Algarve, o cadáver
do heresiarca venha, aos ombros dos discípulos, para a longínqua terra da Galécia. sob os
olhares horrorisados dos Lusitanos». O fermento da heresia teria ficado e, depois da invasão
dos Bárbaros, para salvar os resíduos do Cristianismo dos luso-romanos chegou, em 550,
por mar, S. Martinho, feito Bispo de Dume e, depois, de Braga, a consolidar a conversão dos
Suevos.
Mas, ao fim de atribuladas lutas entre Suevos, que tentaram dominar a Península e que,
embora submetidos nunca foram desalojados. Godos e Bizantinos, estes, de cuja presença re-
sultou invulgar efeito civilizacional, a Religião Cristã veio a ser implantada em toda a Hispania
com a conversão de Teodomiro em 589.

O impulso monástico no povoamento agrário

O Autor citado refere, a este propósito, o exemplo de S. Frutuoso, Bispo de Dume em


653 e Superior do seu Mosteiro e Arcebispo de Braga em 656:
«pondo em primeiro lugar a vida contemplativa, ao contrário de Santo Isidoro, cujo mo-
vimento monástico acentuava a vida activa; e divergindo de S. Martinho, cujos monges se de-
dicavam, como ele, em seu Mosteiro de Dume, ao estudo e à pregação. São Frutuoso infundiu
uma característica inconfundível ao seu monacato: a manifestação do teor da vida local da Lu-
sitânia primitiva, do Algarve ao Cantábrico. A persistência da vida comunalista dos castros e
povoações luso-galaicas primitivas transparece das Regras de S. Frutuoso. Nelas dá-se grande
importância à pastorícia, principal recurso de certas populações serranas de Portugal e da Ga-
liza ainda em nossos dias. Na bela frase de Otero Pedrayo, o castro chamava com voz de sinos
(do interesse nacional...). Vendo repovoar as montanhas, quiçá o Monarca Toledano suspei-
tasse das intenções do filho dum velho dux, que para mais exigia um pacto monástico para ca-
da função, como uma aliança para a vida e para a morte, e reunia nas ásperas montanhas Ger-
manos e Romanos...».

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O declínio da vida urbana

Com a unificação política operada pelos Visigodos a vida económica e social encontrou
renovadas dificuldades. Estava diminuído o predomínio da influência urbana que marcou a Ci-
vilização mediterrânea da Antiguidade que teve como centro motor as Cidades. A História da
Grécia, bem como a de Cartago ou Roma é formada pela sucessão de lideranças de minorias
urbanas que submeteram, pela força das armas, populações rurais. Com a invasão germânica
os costumes atávicos dos novos dominadores recusaram a vida urbana, na tradição da pastorí-
cia e dos sistemas itinerantes da agricultura. Praticantes de uma vida familiar patriarcal que de-
fende, além de tudo, a independência privada, não admitindo ingerência estranha, os germâni-
cos penetraram nesta parcela do Império Romano, instalando em toda a parte a sua maneira de
viver, austera e violenta. Saqueando as Villae romanas, acabaram por acampar nas instalações
abandonadas atraindo à sua rusticidade os antigos servos e escravos dos dominus vencidos.
Não se entende bem, nem o descobriram os Historiadores, que espécie de casas construíram,
onde se abrigassem e defendessem os novos Senhores. Não se encontraram vestígios de mu-
ralhas firmes, deparando-se soluções improvisadas como as defesas de Conimbriga, feitas de
ruínas da cidade destroçada pelos Suevos. Não há notícia de Torre, Solar ou Castelo, nesta fa-
se, que viriam a constituir os símbolos de estruturas sociais que, depois, vieram.
Rústicos, sem dúvida, os neo-godos, agrupados segundo Famílias que viriam a dar ori-
gem à Nobreza medieval, não é difícil admitir, como tem sido habitual em circunstâncias idên-
ticas. que «tanto empunhavam a espada como o arado». O que teria sido a estruturação do rei-
no Visigótico durante um século, deixou escassos vestígios no terreno. Os poderosos e privi-
legiados, porque os havia a disputarem a liderança uns contra os outros, viviam em edificações
que não deixaram nome nos documentos, nem tradição específica na linguagem popular, tal-
vez casas de colmo como as choupanas e os pardieiros dos rurais, erguidas com as mesmas pe-
dras das villae romanas, aos lado de modestíssimos templos do novo Culto Cristão erguidos
nos «outeiros» onde jaziam os restos dos Deuses abandonados. O que se entende mal e a au-
sência de muralhas, a menos que a defesa militar fosse assegurada por madeiras improvisadas,
ou a guerra se fizesse a «peito descoberto».

A sobrevivência das Vilas Romanas

O que se pode bem entender será de novo e sempre a justa conclusão de Alberto Sam-
paio, «reminiscência vaga e confusa das antigas vilas romanas» que continuava a ser o suporte
da agricultura viva na alma e no trabalho dos camponeses residuais, escondidos nas dobras do
terreno. Todavia, para defesa das estruturas agrárias que se reconstituíram à imagem da tradi-
ção, nasceu o «Código Visigótico» pela necessidade de não deixar cair no caos a experiência
do Direito Romano.
Entretanto, a agricultura, nesta época, não poderia representar mais do que a possível
adopção da tecnologia romana em estruturas desligadas agora do mercantilismo externo que
abastecera o Império, e voltada para a subsistência simplesmente regional. As culturas domi-
nantes seriam os cereais de sequeiro. Não há razões para presumir que, nesta fase, os regadios

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se alargassem para além das necessidades de manutenção de efectivos pecuários ou de peque-
nas hortas familiares. Alberto Sampaio descreve:
«Nos vales fundos e terrenos abundantes de águas, eram cultivadas as ervagens, dando-
-se deles uma ou mais parcelas a cada casal. Lá estavam os pratispascuispadulibus. os prados
ou lameiros, as pastagens ou pauis, que alimentavam o gado, sobretudo na força do Estio,
quando as ervas amadurecem e secam nos montes; não só os prados naturais, mas os prepara-
dos artificialmente pela sementeira de ervas e a distribuição de águas por condutas — ductibus
aqua rum. Nesse tempo as terras húmidas não serviam para outra produção, exigindo os cereais
terras enxutas; aquelas porém não eram de pouca monta. Por isso as fontes e todas as corren-
tes foram cuidadosamente aproveitadas como aquas cursiles uel incursites-fontes aquis
aqua rum. repetem-se constantemente, percebe-se que o conhecimento desta riqueza era tradi-
cional e sobre elas exercia-se, conforme a jurisprudência romana, um direito de propriedade,
análogo ou da terra — illo (agro) concedo cunt sua aqua de aqua leuita que ipso agro inrigat».
Todavia o que dominava, como se referiu, seriam as agras para cultura de cereais de se-
queiro. Fazia excepção o linho que «teve uma cultura muito extensa» e «exigindo regas amiu-
dadas, cultivava-se perto das nascentes — adfontes uno linar». Há notícia porém de que o re-
gadio se alargaria em determinadas regiões, como os campos do Mondego, onde as rodas hi-
dráulicas verticais, movidas pela corrente, se multiplicavam no rio e nos afluentes. No Zêzere
proliferavam as rodas de tirar água movidas «a pé de homem», constituindo particularidade se-
melhante à encontrada nas rotinas de rega de regiões sobrepovoadas do Oriente.

O Islamismo

Entretanto, estando em curso de radicação na Península a Religião Cristã, depois da


conversão de Teodomiro em 589. Maomé, declarava a «guerra santa» depois de Alá lhe ter di-
tado, para que o escrevesse, o Alcorão. O êxodo de populações fiéis a Religiões antigas, teria
conduzido desde o Médio Oriente, pelo Norte de África, ao longo da Mauritânia, semitas que
demandavam a Península onde se radicaram. Viriam também outros migrantes que, passando
o estreito, se imiscuíram no Reino Visigótico a vitalizá-lo com a imensa riqueza das raças mis-
turadas, o que não deixava de ser perturbador e tumultuário.
A Espanha Visigótica estava longe de constituir um Reino politicamente unificado. Era
efectivamente o fermento de um Mundo Novo a despertar, um turbulento encontro de Raças,
de Civilizações e de Culturas. A agricultura necessariamente acantonada nos seus refúgios,
constituía a síntese de todas as agriculturas euro-asiáticas da Pérsia, do Egipto, das estepes nór-
dicas do pastoreio nómada, do openfield cerealícola germânico, a vivificarem os fundamentos
célticos e romanos que permaneciam, com os Camponeses amarrados ao terreno, desde as pla-
nuras e os vales até às serras, como um Monumento.

Ferramentas agrícolas

Nesta época, as ferramentas agrícolas acusavam profunda evolução. O arado radial que
representava a versão primitiva de há muito introduzida no território, dera lugar, no Sul, ao ara-

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do dental ou de garganta, vulgarmente designado romano, porque teriam sido os romanos,
efectivamente, os introdutores. Com a invasão germânica, os Suevos teriam implantado o seu
arado quadrangular em todo o Norte e Centro litoral. Para certos trabalhos em que se pretendia
melhor mobilização da terra, os arados teriam aiveca fixa. Estando generalizada a tracção ani-
mal foi adoptada a carreta dianteira e, para as terras pesadas, a sega, e também as rabiças la-
terais, duplas ou triplas desde que se conservasse a central. Na tecnologia dos equipamentos

1 Arado radial Irradiam do mesmo ponto o dente (d), o temão (t) e a rabiça (r) tudo fixado à parte tra-
seira o dente.
2 _ Arado dentaI ou de garganta — O temão insere-se no dente por meio de uma peça encurvada e, no mes-
mo dente, que constitui a peça fundamental, se insere também a rabiça, quase em angulo recto.
3 — Arado quadrangular — O temão fica inserido na rabiça que, por sua vez, se crava no dente que fica qua-
se paralelo ao temão.
4 — Arado com rabiças laterais duplas e sega (s).
5 — Carreta dianteira.

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de preparação do solo, estabelecia-se a distinção fundamental entre os arados de rasgar ou
romper a terra e os arados de revolver a terra, assimétricos e com aiveca fixa. Revolver a terra,
ou virar a leiva ainda seria trabalho imperfeito, mas a descoberta da charrua não se encontrava
longe.
No que respeita a outras ferramentas agrícolas significativas, que acabariam por receber
a designação genérica, árabe, de alfaias, na debulha de cereais o mangual ou malho teria sido
introduzido pelas migrações germânicas, permanecendo confinado à Galiza e Norte de Portu-
gal. No Sul estava generalizado o trilho fraccionado por animais.

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6 _ A INVASÃO ISLÂMICA E A INFLUÊNCIA ÁRABE

Com o Reino Visigótico mal unificado, a dominar a Península e parte da Mauritânia, em


África, não era possível consolidar a resistência em face da avassaladora expansão Islâmica.
Figuras mal definidas como a do Conde Julião, talvez Bizantino, dominavam o Norte de Áfri-
ca, e estavam longe de assegurar a defesa da cristandade, vacilando entre um e o outro dos
campos em confronto. Assim, as divisões políticas na crise de sucessão de Vitiza, Rei Visigo-
do, facilitaram as aventuras de berberes na passagem do estreito. Em 711, Tarique, à frente de
um exército de Berberes, apoiado pelos que se opunham ao novo rei Rodrigo, venceu a batalha
de Guadalete. O êxito dos Berberes atraiu os Árabes que, comandados por Muça, inundaram
a Península de uma forma fulminante, apenas perdendo o impulso avassalador junto às mon-
tanhas das Astúrias e, para além dos Pirinéus, em Poitiers, frente ao poder dos Francos. Em
713 os Árabes conquistaram Ossonoba e Beja, alcançando Évora em 715 e, em 716, Álcacer
do Sal, Lisboa, Coimbra. Braga, Tui, Lugo e Orense. Mas, em 718, Pelágio, reagrupando, nas
Astúrias, forças Cristãs vencidas, alcançou suster a invasão em Cangas de Onis, quando Muça
recebia ordens para regressar. Os cronistas Árabes que Borges Coelho generosamente facultou
a qualquer leitor no «Portugal na Espanha Árabe», comentam a epopeia de Muça «... até che-
gar às ásperas paisagens do Norte. Conquistou os Castelos de Viseu e de Lugo e ali se deteve
enviando exploradores que chegaram à penha de Pelágio, sobre o mar Oceano. Não ficou igre-
ja que não fosse queimada, nem sino que não fosse quebrado».
A retirada de Muça havia de consentir a formação no Norte da Península do refúgio de
Cristãos onde seria organizada a resistência. O facto tinha paralelo com o que sucedera, sécu-
los antes, com a retirada de Décimo Junio Bruto, depois de ensaguentar a Civilização Castreja
da Calécia. No entanto, desta vez, o Norte peninsular seria mais afortunado e havia de defen-
der-se, constituindo a plataforma donde partiria a Reconquista Cristã que, ao longo de quase
oitocentos anos, culminaria com a submissão do Reino de Granada, em 1492, pelos Reis Ca-
tólicos.

A fronteira do Douro

Nestas circunstâncias, para bem entender influências Árabes na agricultura em território


hoje português, haverá que ter em conta a evolução da mais longa das Guerras da Península,
isto é, o tempo de presença Cristã ou Islâmica nas diferentes parcelas regionais, de Norte para
Sul. Não deverá também perder-se de vista que, desde o início, tal como sucedeu com os Ro-
manos, a ocupação Islâmica não teria a mesma eficácia ao longo do território. O seguinte re-
lato afigura-se muito claro:
«Conquistada a Espanha, Muça ... dividiu o território da Península entre os militares
que vieram à conquista, da mesma maneira que distribuirá entre os mesmos os cativos e de-
mais bens móveis colhidos como presa. Então deduziu um quinto das terras e dos campos cul-
tivados, do mesmo modo que deduzira antes o dos cativos e objectos móveis. Dos cativos es-

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Invasão Islâmica Reconquista Período aproxi-
Cristã mado de ocuparão
ãrabe.
ano de 716 Rio Minho ano de 7.14 IX anos

ano de X50 1.14 anos


(— Rio Douro

. t _ Rio Mondego ano de 1064 .14X anos

5 anos ano de 1147 4.10 anos


Rio Tejo

Reino do ano de 1249 53.1 anos


Algarve
V
ano de 711

colheu cem mil dos melhores e mais jovens e mandou-os ao Emir dos Crentes ... mas deixou
os outros cativos que estiveram no quinto, especialmente camponeses e meninos, adstritos às
terras do quinto, a fim de que as cultivassem e dessem o terço dos seus produtos ao Tesouro
Público. Eram estes a gente das planícies e chamou-se-lhes quinteiros; e a seus filhos os filhos
dos quinteiros. Quanto aos outros cristãos que estavam em lugares inacessíveis e nos montes
elevados, Muça deixou-lhes os seus bens e o uso da sua religião, mediante o pagamento de um
tributo, ficando donos de uma parte dos seus bens na terra do Norte. Eles capitularam com a
condição de ceder o resto e pagaram um tributo pelas terras de árvores de fruto e de semeadu-
ra».
Efectivamente, no Norte, apenas encontramos hoje a vaga tradição da passagem de
Mouros e as lendas presentes nos relatos populares. No Sul conserva-se o sítio e a memória
das mourarias urbanas e das colonizações rurais de saloios como os dos arredores de Lisboa,
e dos quinteiros do Algarve. Parece verificar-se, portanto, desde o início, por parte dos inva-
sores, diferença de comportamento político quanto ao Sul e o Norte. O Sul passaria a ser ter-
ritório integrado no Mundo Islâmico, que importava defender contra as agressões dos «in-
fiéis», isto é, dos Cristãos, que Muça não pôde dominar nos «lugares inacessíveis e nos montes
elevados». Das pontas da tenaz cravada nos dois flancos da Europa pela Guerra Santa, a do
Ocidente, logo à partida, ficou bloqueada, com a resistência norte-peninsular e o poder dos
Francos. A do Oriente, haveria de levar até longe a ameaça do cerco a Roma, mobilizando es-
forços desmedidos, arrastadas e sangrentas guerras. Efectivamente, a partir do espaço norte-
nho, embora sustentasse avassaladoras «entradas» de guerreiros do sul, haviam de formar-se

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Reinos Cristãos independentes como o de Leão, Castela, Navarra, Aragão que tanto debatiam
entre si a partilha de poderes senhoriais como a «presuria» da Reconquista. No Andaluz do Sul
o espaço Islâmico também estava longe de permanecer pacífico e a instabilidade política era
permanente. Por isso, todo o território. Cristão e Islâmico, assistiu ao erguer de muralhas na
construção de castelos e de casas acasteladas como suporte do Regime Senhorial e Feudal ins-
talado nos dois campos. No Norte, a sociedade Cristã estruturava a Nobreza e o Clero. A No-
breza partilhava o poder militar, consolidando e alargando o domínio sobre as terras e as po-
pulações. O título inicialmente mais prestigiado foi o de Conde. O Clero dividia-se entre a ges-
tão de Dioceses e Paróquias e a de Ordens Monásticas de funções muito complexas. As posi-
ções mais fortes eram as dos Bispos e dos Abades. No Sul Islâmico o Feudalismo repousava
sobre hierarquia complexa onde dominava o Califa, Principe dos Crentes, zelando pelo civil e
o religioso, e os Emires e outros detentores de diferentes títulos militares ou de governo regio-
nal. Na base do sistema social, político e religioso, encontrava-se, de um lado e do outro, o Po-
vo, ao qual se consentiam escassos direitos, de que estava privado o Escravo, na situação do
objecto económico, submetido a comércio em mercado próprio.
A influência Árabe no equipamento militar foi tão acentuada que as muralhas, reduzi-
das a algumas Torres, no tempo dos romanos, depois de pacificado o território, e que os bár-
baros haviam improvisado, passaram a ser encimadas pelo adarve, defendidas pelas barbacãs
e torres albarrãs, onde os soldados se mantinham de atalaia. De um lado e do outro da fron-
teira, todo o Castelo passou a ter seu Alcaide. A generalização dos termos Árabes mostra que
estes vieram à Península impor um estilo de guerra moderna, fundamentada na alta tecnologia
do aço que muito cedo foi radicada em Toledo, por exemplo, e na estratégia inovadora da mo-
bilidade da cavalaria, e, também, na arquitectura militar de fortalezas nunca antes conhecidas.
No entanto, os Árabes, fulminantes no primeiro embate haviam de ser vítimas dos progressos
que ensinaram quando, no Norte, deram aos Cristãos tempo para se organizarem. Mas, nesse
reduto peninsular a civilização romano-goda não era exclusiva, porque estava presente a Eu-
ropa com todo o seu poderio feudal e este, em face do mundo islâmico, era invencível.

Duas Sociedades Senhoriais

Mas, o que interessava ao rigor que gostaríamos de assegurar ao nosso relato agrário,
será a realidade do confronto de duas sociedades senhoriais que, embora diversas, conduziam,
a seu modo, suas agriculturas camponesas e escravocratas, como suporte de tentativas de co-
lonização e de povoamento, cuja economia o esforço político-militar tanto alcançava preservar
como destruir no campo inimigo.
A maneira de encarar a presença da população amarrada à agricultura tinha, nos dois
campos, diferenças e analogias. Os Islâmicos chegaram a criar um sócio-tipo destinado a pre-
valecer respeitado em diferentes transes da luta. Trata-se do Moçárabe, liberto da escravatura
e. por vezes, integrado em elevados estratos sociais, espécie de Cristão que os Maometanos
consideraram «quase Árabe», isto é, quase convertido ao Alcorão, e que os Cristãos respeita-
vam pela origem e na esperança de adesão à Cruz, muita vez verificada. Constitui figura so-
ciológica presente em todas as bipolarizações políticas, religiosas ou ideológicas, maioria si-

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lenciosa que nesta altura se alargava à ruralidade no que ela contém de instinto de sobrevivên-
cia. O Moçárabe foi realidade viva e actuante pela força da inércia e não teve paralelo no lado
Cristão. Aqui, o Mouro. cativo ou vencido, quando não era escravizado, permanecia Mouro
Forro, isto é, detentor de alforria, mas privado de direitos iguais aos dos Cristãos, de aquisição
de bens e de convívio, acabando, no apogeu dos Tribunais do Santo Ofício, por ser expulso
com os Judeus, quando se não converteu para alcançar o direito de ser Mourisco. No entanto,
da leitura das crónicas até pode depreender-se que a insistência na promulgação das «leis per-
secutórias» dava resposta à tolerância que se instalava no coração do povo disposto a integrar
o Mouro, a todos os níveis, na sociedade portuguesa. Mas as crises de fanatismo vinham às on-
das e ensombravam as relações sociais e políticas em múltiplas ocasiões.
Para entender a evolução específica do Norte afigura-se-nos importante ter em conta a
revolta de Berberes instalados na Galiza que ocorreu em 740, logo no início da ocupação. Tra-
tou-se de reflexo local de problema mais vasto que opôs Árabes e Berberes no Império Islâ-
mico. A velha população Suevo-Visigótica que ficara derrotada, acabou por assistir a um dos
mais violentos conflitos entre invasores que teve desfecho na batalha de Gualzalate:
«Os sírios acometeram com fúria e batalharam como quem busca a morte até que deus
lhe concedeu que os berberes lhes voltassem as costas. E fizeram neles tão grande matança que
quase os exterminaram sem que escapassem mais do que aqueles a que não puderam dar al-
cance. Os sírios cavalgaram nos cavalos e vestiram as armas (dos vencidos), dividindo-se de-
pois em vários destacamentos que foram matando berberes por toda a Espanha até extinguir
completamente o fogo da rebelião».
Não será de excluir a hipótese de que a colonização Islâmica do Norte, que poderia ter
sido planeada na instalação de Berberes, tivesse ficado, logo de início, frustrada por esta rebe-
lião sangrenta de que os Cristãos teriam colhido o melhor proveito. Efectivamente, Afonso I
das Astúrias, aclamado Rei em 739, logo conduziu a Reconquista nas terras da Galiza, ultra-
passando o Rio Minho e alcançando o Rio Douro. Tomou posse de Astorga e de Leão, bem co-
mo de Braga destruída, do Porto e de Chaves. Dizem as crónicas que Afonso I «tendo trazido
até ao Douro as armas cristãs victoriosas, ermou as terras que conquistara, mandando passar à
espada os muçulmanos e levando para as Astúrias os cristãos».

O Ermamento

A tese do «ermamento» largamente discutida pelos Historiadores não se ajusta à sen-


sibilidade agrária que distingue, na guerra, a vulnerabilidade dos aglomerados urbanos, e a
grande capacidade de resistência dos espaços rurais dispersos, onde, aliás, as populações das
cidades se refugiam. São numerosos os lugares que conservam designação próxima de refúgio.
por exemplo «Refoios», o que significa espaço onde populações se esconderam, sendo to-
leradas pelo ocupante desde que se mantenham pacíficas. Mas os cronistas nesta época, quanto
a ermamento, acentuam a preocupação de Afonso I de «levar para as Astúrias» os Cristãos, pa-
ra engrossar as hostes militares, o que se não concilia com a violência indiscriminada no
terreno. De qualquer modo, decorreu praticamente um século, até ao reinado de Ordonho I
(850-866), para que fosse iniciado o repovoamento do território ermado por Afonso I. Efec-

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tivamente, depois da revolta dos Berberes, este território não consta das crónicas, afigurando-
-se que a sua agricultura e o seu Povo constituem o resíduo ecológico, mantido nos redutos
inacessíveis aos guerreiros mesmo quando estes se apresentam dispostos a praticarem a «terra
queimada».
Nestas alturas sucedia que a ameaça dos invasores Islâmicos levava os Cristãos a escon-
derem, não somente «tesouros» mas também as Imagens da maior veneração. Procuravam para
o efeito montanhas e buracos nos rochedos. Com a morte dos que escolhiam os esconderijos
tudo ficava ignorado e as Imagens góticas, de pedra, algumas foram encontradas, séculos de-
pois, dando origem à construção de Santuários em recônditos locais.

Os Normandos

As perturbações ocorridas neste território não se devem somente, por esta época, à pre-
sença Islâmica. Em 853 chegaram por mar os Normandos que, junto à costa, e penetrando nos
Rios navegáveis, se entregaram ao saque mais feroz desencadeado de surpresa. Depois de as-
solarem os territórios do Norte, desembarcaram em Lisboa e navegaram até ao Guadalquivir,
destroçando Sevilha.
Repelidos os Normandos, logo depois, Afonso II, no dizer de Herculano, «adornou Igre-
jas e Paços» e, mais do que isso, «trabalhou por avivar as instituições do Império Visigótico
que, no meio de uma existência de perigos e combates, tinham caido em desuso, restaurando
ao mesmo tempo o esplendor da ordem eclesiástica, reedificando templos e instituindo pasto-
res». Depois, no reinado de Afonso III, em 868, o conde Vímara Peres conquistou o Porto e o
domínio dos Cristãos foi alargado «até ao Mondego, com a conquista de Coimbra, e repovoa-
mento de cidades situadas entre o Mondego e o Minho». Isto significará que a agricultura do
Norte sofreu naturalmente grave perturbação, não progredindo, mas resistiu, garantindo sub-
sistência de população escassa, sem dúvida, talvez muito rarefeita no ermo transmontano, com
exclusão dos arredores de Chaves.
A instabilidade no território era muito grande e as surtidas de Normandos frequentes.
Em 959 verificou-se a segunda grande invasão que chegou a Sevilha e em 966 os Normandos
voltam, relatando os cronistas que «os pagões haviam pilhado aqui e ali e tinham chegado à
planície de Lisboa. Os muçulmanos marcharam contra eles e deram-lhes batalha, na qual mui-
tos dos nossos morreram como mártires». Depois de um combate naval na ribeira de Silves
«chegavam a cada instante a Córdova, do Ocidente, novas sobre o movimento dos Normandos
até que Alá os afastou».
No campo Islâmico, mau grado as lutas permanentes, o poder do Califado de Cordóva
mantinham ameaça efectiva sobre os territórios Cristãos. O avanço de Afonso III até Coimbra
foi prematuro e os camponeses Cristãos do Norte haveriam de assistir a entradas de exércitos
Islâmicos quando tréguas frequentes, mas efémeras, tinham seu termo. A situação mais trágica
foi criada um século depois, em 987, quando o Almançor reconquistou Coimbra e o Porto, em
997, onde aguardou tropas por mar para assaltar Compostela, arrasando a cidade, conservando
apenas as Relíquias de Sant'Iago na paz do seu Altar. Narram as crónicas que os guerreiros
chegaram desta vez, que seria a última, a locais nunca visitados no Norte Asturiano.

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A fronteira do Mondego

Com a retirada do Almançor, a Córdova vitorioso, restaurando a fronteira do Douro,


dois factos se nos afiguram de grande importância para o progresso das comunidades agrárias
e da sua agricultura. Abriu-se uma pausa para além, ou aquém. Douro, durante a qual a cris-
tandade se recompôs, tanto no Reino de Leão como no de Castela. Neste, os camponeses da
estepe peninsular estavam dando suporte à escalada senhorial que haveria de fortalecer o Rei-
no até que dominasse todos os povos da Península, menos Portugal. Outro facto transcendente
resultou da decisão do Almançor de colonizar Coimbra. A «fronteira» do Mondego tantas ve-
zes tentada e perdida pelos Cristãos do Ocidente, passou a constituir, com seus Moçdrabes to-
lerados e Colonos Persas, Sírios e Egípcios, o grande espaço agrário de ligação entre os Mun-
dos peninsulares Cristão e Maometano, no litoral do Ocidente. Tudo indica que, tanto para o
mar, por Montemor, como para o interior até à Serra, com a residência senhorial Islâmica que
o enigmático Castelo da Lousã e sua Lenda, representam, com a baixa do Arouce intensamente
hortícola e bem povoada. Coimbra foi território florescente e activo.
A pausa não foi longa, mas foi importante por coincidir com a explosão do poder se-
nhorial. Fernando Magno, ao reunir as Coroas de Leão e Castela, perante o Califado de Cór-
dova desmantelado em vários Reinos, retomou a conquista do Sul, entrando em Coimbra em
1064, disposto a instalar o seu governo até ao Mondego. No vasto território agrário de Coim-
bra. foi nomeado Conde o Moçárabe Sesnando, nascido em Tentúgal, assimilado no Mundo
Islâmico e depois convertido à Cruz na fronteira aberta do Mondego. Talvez, com as searas de
arroz do Oriente a ondularem ao vento nos campos marginais, e à sombra das laranjeiras, tal-
vez, Cristo, hereticamente contemplado como Profeta, e Maomé, andassem os dois, atinai
Mensageiros do mesmo Deus na simplicidade da imaginação dos Crentes, por ali, com os
Camponeses, lado a lado.

A Agronomia Árabe

Do ponto de vista agrário, os Árabes eram portadores de uma Agronomia extremamente


actualizada, particularmente no que respeita a técnicas de regadio e. de um modo geral, de ari-
docultura. No entanto, os Povos convertidos ao Islamismo apresentavam grande variedade ét-
nica e cultural. Formavam um mosaico onde se inseriam tribos do mais feroz fanatismo reli-
gioso, ligadas à dureza da vida nómada no deserto, até à mais requintada aristocracia urbana,
sublimada pelo conhecimento dos melhores textos clássicos, literários e científicos. Acontecia
assim porque valiosos documentos se conservaram em Bibliotecas de cidades do Médio Orien-
te, estando mais acessíveis aos Povos Islâmicos do que aos sucessores dos Bárbaros que se ins-
talaram no Ocidente. No entanto, muitas dessas Bibliotecas acabaram por ser destruídas quan-
do o obscurantismo da leitura dogmática do Alcorão se tornou avassalador da liberdade do
pensamento.
A presença de elites Árabes, constituiu facto assinalável durante a ocupação Islâmica,
embora dependente de constantes e profundas alterações políticas. No que se refere à agricul-
tura, a base camponesa constituía a realidade constante que permitiu a instalação na Península

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de estruturas humanas de povoamento de grande solidez e eficácia. Não pode ser esquecido
que a expansão do Islamismo englobou Povos originários do berço histórico da agricultura,
desde a Mesopotâmia ao Egipto, passando pelas margens orientais do Mediterrâneo. Todo o
«crescente fértil» de agricultura sedentária, destruída pela invasão do pastoreio nómada guer-
reiro que, depois, a Grécia, Roma e Cartágo, aparentemente ultrapassaram, deixou resíduos
que foram implantados na Península sob a forma de colonos Persas, Sírios, Egípcios a quem
os Árabes deram terras para que abastecessem Cidades e Palácios. Para a Civilização instalada
era essencial que bons agricultores se colocassem ao serviço de Nobres e Burgueses que sus-
tentavam a Guerra, a Política e o Comércio nos vastos domínios do Califado de Córdova. Os
ocupantes Islâmicos deixaram tradição de tolerância na Paz e de dureza na Guerra. Por isso, a
Paz, embora precária, consentiu a presença de Cristãos submetidos, os Moçárabes, que prati-
cavam a agricultura ao lado dos Colonos Islâmicos, quando não eram escravizados.
No que se refere a cereais os Árabes introduziram o trigo rijo, o arroz, o sorgo, e a ce-
vada santa. Difundiram culturas regadas, a horticultura intensiva e o pomar extensivo como o
da amendoeira. De entre as novas plantas cultivadas figuram numerosas variedades de horta-
liças e legumes, como a beringela, novos tipos de abóbora, a chila, a melancia, vários feijões
e os espinafres. Quanto a plantas arbóreas deve-se aos Árabes a primeira expressão da cultura
da amoreira, do bicho da seda e da laranjeira azeda. Para os ajardinamentos introduziram a
olaia e o chorão.
Conquanto não se possa atribuir aos Árabes qualquer espécie de pioneirismo em relação
ao regadio, embora esta ideia se encontre generalizada, deve admitir-se que teriam divulgado
nas áreas onde se estabeleceram com maior segurança, variada gama de soluções mecânicas
para o regadio, todavia já conhecidas na Península. Tendo em conta que a norte do Douro a
permanência Árabe foi efémera — não chegou a um século de relativa fixidez — o regadio
mourisco somente se instalou a Sul do Douro e mais solidamente nos arredores saloios de Lis-
boa e no Algarve. É caracteristicamente árabe a nora de tracção animal das hortas de arredores
e o mesmo sucede quanto às dos regadios de hortas de planícies de sopé de relevos, em espe-
cial calcáreos, do Algarve, onde a água é tirada de poços, por meio de noras para reserv atórios
ou para levada ou aqueduto, donde é dividida através de canais que a levam a talhões de cul-
tura hortícola ou de pomar.
Será árabe também o engenho movido a vento, que eleva a água de rega e que depois
largamente se generalizou. No Algarve o regadio árabe seria idêntico ao que ainda hoje se
pratica, com exclusão dos modernos equipamentos de bombagem e rega e de cultivos origi-
nários de continentes na altura desconhecidos. A mesma influência se pode notar ainda, em-
bora de forma menos marcada, nos arredores de cidades como Lisboa, Santarém ou Coimbra.
Nenhuma das soluções técnicas dos regadios de Povos do próximo e do extremo Oriente, dei-
xaram de ser do conhecimento da Agronomia Árabe, pelo que se deve entender ter sido esta a
via que enriqueceu extraordinariamente as rotinas regionais portuguesas quanto a aparelhos de
elevação de água para rega. O mesmo sucederia quanto às técnicas de armazenamento de re-
servas em albufeiras e de estabelecimento de levadas nos cursos de água para desvio de cau-
dais para condutas de rega. É atribuída também aos Árabes a aplicação da roda hidráulica aos
moinhos.

59
Retorno à Vida Urbana

Nos cronistas árabes as referências ao Norte são escassas e inseguras. No entanto, desde
o Algarve até Coimbra, o relato é esclarecedor. Para além da colonização agrária a invasão
Muçulmana determina o renascimento da vida urbana a Sul da fronteira duriense. Assim, a
História da reconquista anda em torno do assédio e da tomadia de Cidades amuralhadas, para
além de Castelos fortificados. A sul do Douro encontravam-se Cidades renovadas sobre ali-
cerces de Urbs romanas ou erguidas em sítios novos que se depararam ao novo e industrioso
ocupante. Assim acontecia em Beja, Mértola, Évora, na Salácia romana onde seria erguido
Alcácer de Solaria, em Lisboa, Olisipo Felicitas Julia, que dera lugar à Olissipona visigótica,
que se transformou na Ulixbona árabe, intensamente povoada e com seu porto muito activo,
defendida pelos Castelos de Sintra e de Almada. A velha Scallabis, renascia Chantarin ou
Chantireyn dos Mouros, enquanto Conimbriga permanecia abandonada, concentrando-se em
Coimbra grande desenvolvimento. Silves, a opulenta Chelb quando o Rio Arade se não
encontrava assoreado, dispunha de ancoradouros ligados ao mar e de estaleiros de construção
naval. As montanhas produziam madeiras em abundância. Escrevia-se: «os seus habitantes as-
sim como os dos povoados da vizinhança são árabes originários do Iémene e doutras regiões
da Arábia. Falam árabe muito puro, exprimem-se de maneira eloquente e citam versos de cor».
Silves «está rodeada por uma muralha sólida e possui nos seus arredores plantações e hortas».
O território «é celebrado pelos figos que produz, enviados para todas as regiões do Ocidente e
que são de uma excelência e doçura incomparáveis». Beja é assinalada como a mais antiga e
«a primeira que se fundou» no Andaluz. Évora «é grande e bem povoada. O território que a
cerca é de uma fertilidade singular. Produz trigo, gado e toda a espécie de frutos e legumes. É
uma região excelente onde o comércio é próspero». Alcácer do Sal foi fortificada pelos árabes
que a consideravam inexpugnável. Era cidade florescente, com «o grande rio sulcado por
numerosas embarcações e navios de comércio». Lisboa era cidade de grande movimento
comercial marítimo. Nos arredores tinham sido instalados colonos provindos das melhores
regiões agrárias do Mundo Muçulmano que cultivavam esmeradamente as terras de Sintra.
«Há aí um curso de água que se lança no mar e serve para a rega das hortas», o que seria a
fértil região de Colares «uma das regiões onde as maçãs são mais abundantes». Defendendo
Lisboa, na margem esquerda do Tejo encontrava-se Almada, em cujas areias se pesquisava o
ouro.
A região de Santarém e a Cidade assumiram grande importância durante a ocupação
árabe. «O terreno da região de Santarém é de excelente qualidade. O Tejo inunda periodica-
mente as planícies que o bordejam à maneira do Nilo no Egipto. Os habitantes, depois da
cheia, semeiam grão sobre o lodo que ficou depositado, isto quando no resto da região o tempo
das sementeiras passou já. A colheita obtida é muito abundante e não há atraso na formação
das espigas e na sua maturação». O cronista resume assim o seu relato: «é o terreno mais fértil
do mundo».
Coimbra é a cidade e a região que, depois de Santarém, atrai a atenção dos cronistas:
«possui na margem do rio uma veiga mui boa para a cultura mesmo sem ser irrigada. Quando
o rio sai do seu leito, cobre-a por inteiro. Depois, quando se retira, semeia-se o grão tão bem

60
que os habitantes colhem trigo para todo o ano e para o ano seguinte. A Cidade de Coimbra
tem muitos vergéis de bom rendimento e numerosos olivais que dão um azeite mui bom». Nar-
ra-se também que a região «está bem povoada. O seu território tem muitas vinhas, macieiras
e cerejeiras. No sopé da Cidade corre um rio cuja água move os seus moinhos».

Mais guerra do que paz

Depois da divisão do Califado de Córdova em diversos Reinos, não decorreu muito


tempo para que também os territórios de Fernando Magno, com sua morte, se repartissem por
três filhos: Sancho recebeu Castela e Navarra; Afonso, Leão e Astúrias; Garcia, a Galiza. No
entanto, a guerra civil seguinte acabou por matar Sancho e eliminar Garcia no cárcere, propor-
cionando a Afonso VI a reconstituição da herança de Fernando Magno. Embora dilacerado pe-
la divisão do Califado de Córdova, o Mundo Muçulmano adquiriu novas forças com a vinda
ao Andaluz do Príncipe dos Crentes Texufine que neutralizou os propósitos de Afonso VI
quanto à conquista do Sul. Derrotado em Zalaca, perto de Badajoz, Afonso VI retirou, pedin-
do o apoio dos Cristãos da Europa que lhe foi dado pelos Senhores Feudais franceses. Mas,
Texufine, vitorioso, voltou a Marrocos, desinteressando-se da posse de Toledo que facilmente
teria alcançado.

Vida Rural básica

O território de Leão seria, nessa altura, pouco mais do que um espaço agrário onde se
acumulavam ruínas de Cidades, das quais o Porto teria sofrido recente razia. Embora a do-
cumentação seja escassa para entender a estrutura e o funcionamento da vida rural Minho-
duriense não pode deixar de admitir-se analogia que justifique referência a Georges Duby
quanto à vida no «Ocidente Medieval»; «na civilização destes tempos o campo era tudo».
Quando este Autor acentua a decadência das Cidades, afirma: «todos os homens, mesmo os
mais ricos, os clérigos e até os reis e os raros especialistas, judeus ou cristãos que nas cida-
des exercem a profissão do comércio à distância, todos permanecem rurais para quem a exis-
tência obedece ao ritmo das estações agrícolas e de que a subsistência depende da terra-mãe
de que tiram imediatamente todos os recursos. O Historiador desta época não tem que enca-
rar o problema, tão preocupante nos períodos seguintes, das relações económicas entre a ci-
dade e o campo».
Embora o campo conservasse espaços restritos de cultura intensiva, situados não longe
dos locais habitados, os Camponeses continuavam a «encontrar boa parte da sua subsistência
no espaço mais vasto intercalar onde se depara com o rio, o pântano, o paul ou charco, a flo-
resta e as brenhas que oferecem a quem queira ou possa tomá-las, largas reservas de peixe, ca-
ça, mel e outros alimentos de ocasião». Embora não exista documentação bastante, alguns tex-
tos sugerem a importância da «caça, da pesca e da recolecção na actividade dos camponeses
desta época». Pode mesmo admitir-se que «usavam mais o venábulo ou chuço, a rede e o pau
de escavar, do que o arado».
No espaço Islâmico tem de admitir-se que a destruição da agricultura mercantil anterior

61
à ocupação, ficando a exploração da terra confinada à simples subsistência, tenha empobrecido
sectores da produção, como o vinícola, que reduziu a produção ao nível do consumo local. Em
consequência da presença islâmica, a «lei seca» imposta pela Religião ou as características e
correntes do comércio, reduziram o estímulo produtivo, pelo que no Sul e na Estremadura se
perdeu muito da tradição vinícola romana. O mesmo não sucederia no Norte onde, no Douro,
a cultura da vinha teria sido conservada, melhorando as castas, e proporcionando a qualidade
que os mareantes, na foz do Rio, nunca deixaram de apreciar.

Alianças: Europeia ou Islâmica?

A presença Islâmica na Península representava, de qualquer modo, um risco para a Eu-


ropa. Antes de ser desencadeado o movimento das Cruzadas, a Abadia de Cluny interpretou a
necessidade de erguer barreira ao Alcorão ou de expandir a cultura Cristã na Península Ibérica
ocupada. Por isso, o Feudalismo francês foi convidado a responder ao apelo de Cluny no sen-
tido de apoiar o Reino de Leão empobrecido e em dificuldades militares, activando nele o sis-
tema senhorial que já estava entretanto implantado. À Corte de D. Afonso VI chegou o Duque
de Borgonha, sobrinho da Rainha Constança. Com ele veio seu irmão Henrique de Borgonha
e seu primo Raimundo, Conde de Amous, e todos traziam numeroso séquito. Com a bênção da
Ordem de Cluny Afonso VI, em dificuldades, consagrava a ligação europeia, casando sua filha
Urraca com Raimundo e, com Henrique, outra filha, bastarda, Teresa.
No entanto, a História desta época encerra o nebuloso episódio de um acordo de Afonso
VI com o Rei Mouro de Badajoz que, ameaçado pelo avanço almorávida, entregou Santarém,
Lisboa e Sintra. Custa a entender o que teria sido a marcha dos Cristãos ao longo de vastos ter-
ritórios povoados, desde o Mondego ao Tejo. em desfile pacífico que somente as crónicas cris-
tãs afirmam ser de conquista. Para mais, o Rei Mouro de Sevilha deu a Afonso VI, em «casa-
mento», sua filha Zaida, a preferida. Zaida presenteou Afonso VI com o único filho varão que
teve, o Infante D. Sancho, que o Rei «amava como a luz dos seus olhos, a alegria do seu co-
ração e o consolo da sua velhice». De positivo, sabe-se que, logo de seguida à marcha para o
Sul, o desastre de Raimundo no governo da Galiza, alargada até ao Tejo, conduziria à perda de
Lisboa.
Entretanto, indiferente às alianças dos Reis da Península, o filho do poderoso Texufine,
Ibne Yusuf, no lugar do pai que morrera, deliberou romper as hostilidades. Afonso VI enviou
um exército a defender Uclés cercada, nominalmente capitaneado pelo Infante Sancho, meni-
no, a quem o Aio fiel. Conde Gomes de Cabra, acompanhava. No decurso da batalha, ouviu-
-se o apelo de Sancho, ao Conde: «Oh Pae!, oh Pae! o meu cavalo vai ferido». Na angústia do
desastre «correu o Aio e chegou no momento em que Sancho caía. Estavam cercados de sar-
racenos». E foi assim «que acabaram ambos». Afonso VI perdeu o Infante a quem destinava o
Trono e logo morreu de desgosto. Foi herdeira a filha Urraca, viúva de Raimundo, que viria a
casar com Afonso I, Rei de Aragão.
A conclusão que podemos extrair destes factos, reduz-se à certeza de que, a partir deste
momento histórico, a agricultura praticada no território hoje português, à medida que foi con-
quistado o espaço islâmico, passou a ficar submetida à influência senhorial europeia, e depois

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a um feudalismo português atenuado, cncerrando-se o ciclo da influência árabe. Havia de ins-
talar-se a tentativa de apagar Mesquitas, Culto Maometano, Gente Moura, nomes de Sítios, o
que não poude, no entanto, desenraizar o fundo cultural que se manteve na língua, em costu-
mes e no sangue, mais no Sul do que no Norte. Mas, de qualquer modo, tratava-se, sem dúvi-
da, do primeiro passo de um movimento de europeização que havia de alastrar a todo o Mun-
do, com a participação activa dos portugueses.

O «Livro de Agricultura» de Abu Zacaria — Iahia

No entanto, a presença Islâmica na Península deixou, de entre muitos legados científi-


cos na Medicina e nas Ciências de base, e Culturais nas Artes e na Arquitectura bem como nas
Letras, o «Livro de Agricultura» de Zacaria Sevilhano, Agrónomo chamado vulgarmente Ebne
el Awant, que nasceu em Sevilha, onde viveu, no século XII. Não foi possível determinar a da-
ta exacta deste notável Tratado de Agricultura. Josef António Banqueri. Prior-Claustral da Ca-
tedral de Tortosa que, em 1802, traduziu o texto árabe para castelhano, afirma que «atendendo
à elegância do estilo que Ebne el Awam empregou na composição da sua obra. parece que não
se pode recuar mais do que os princípios do século XII; antes se deve adiantar e aproximar-se
quanto possível do século de ouro da literatura arábica; o qual começando no oriente nos ca-
lifados de Ben Rachid y Almamón e em Espanha nos reinados dos Abdo-Rahamanes de Cór-
dova, foi na nossa península onde por mais tempo do que no oriente permaneceu o estudo das
ciências úteis e do bom gosto que as acompanha».
Abu Zacaria, para elaborar o seu Tratado serviu-se, segundo declara, de textos de mais
de trinta autores do médio oriente, gregos, romanos e árabes, de entre os quais Kutsami que
escreveu o livro intitulado Agricultura Nabatea (berço agrário que vai do Eufrates ao Mar Ver-
melho) em língua caldeia, que foi traduzido em árabe, constituindo repositório importante e
precioso onde se resumem as máximas que o autor encontrou escritas por autores «geopóni-
cos» (que tratam da cultura do solo) da antiguidade e que corriam entre os árabes por tradição
comum que afirmavam derivar de Noé. Abu Zacaria, recompilou a doutrina de Columela; Var-
rão; Lecacio; Yucausos; Toracio; Betodum; Paladios; Demócrito, o Grego; Cassiano (século
VIII); Teodoro ou Deodoro Atiço; Leon, o negro ou africano; Burkastos, sábio da Grécia;
Sadgimos; Somano; Sarao; Anatolio; Solon; Sidagos ou Seyabense (Persa); Monharis (Mau-
ricio); Marsinal, o ateniense; Anon; Barur-Anthos; Rasis; Isahac Abn Soliman; Tabet Aben
Corat e Abu-Hanifa Al-Dinuri.

Esquema do Tratado de Agricultura

O Tratado divide-se em duas partes contando a primeira com dezasseis capítulos e de-
zoito a segunda, dos quais falta o último que se perdeu. É particularmente notável o gosto se-
gundo o qual é apresentada a horticultura e a arboricultura, o que faz diferir, a orientação deste
Tratado, dos textos análogos dos Agrónomos romanos. Afigura-se-nos que Povos curtidos pela
aridez dos desertos, não resistem ao fascínio da sombra das árvores ou à frescura das plantas
hortícolas, a verdejarem em aprimorado regadio que, à maneira dos oásis, repõe o equilíbrio

63
ecológico calcinado pela impiedosa radiação solar.
Os dezasseis capítulos da primeira parte tratam do modo de conhecer as terras e da qua-
lidade e valor dos fertilizantes. Segue-se, com grande pormenor, a técnica de maneio das águas
e de captação em poços e condutas. De seguida trata-se do cultivo das hortas, da escolha das
árvores e do modo de plantar árvores de fruto. São apontadas as árvores que devem plantar-se
nas províncias da Espanha. Com grande rigor discute-se o modo de enxertar as plantas que en-
tre si tenham certa espécie de «amizade», bem como o modo e o tempo de cortar as árvores, o
cultivo da terra onde se plantam árvores e a forma de estrumar a terra e de a regar. Seguem-se
as culturas de «primor» e as «coisas graciosas» como as rosas, as trutas, uvas e figos de várias
cores e paladares. A primeira parte termina com a exposição da forma de guardar sementes e
frutas frescas.
Na segunda parte a exposição inicia-se com a discussão do modo de lavrar a terra e de
a melhorar, depois de «cansada». Segue-se a selecção de sementes e a referência a «plantas
melhoradoras» do solo e à época de sementeiras. É particularmente cuidada a referência à
forma e tempo de semear arroz e outras culturas de regadio. Apresenta grande desenvol-
vimento a técnica de cultura de legumes, de plantas industriais de fibra, aromáticas e me-
dicinais. Merecem cuidada atenção as plantas de jardim e, num capítulo geral, é tratada a
construção de edifícios rurais, cercas para vinhas, hortas e pomares, combate a animais no-
civos, aves e caça. Merecem desenvolvimento as técnicas de amassar pão e de fermentar le-
veduras. Trata-se da chuva, do sol, da «serenidade» e dos ventos. Os últimos capítulos re-
ferem-se à criação de animais, como o gado vacum, ovino e caprino. A suinicultura encontra-
-se naturalmente omissa. Referem-se os tempos de gestação, os pastos e as águas convenien-
tes, as medicinas para enfermidades e acidentes. Tem referência especial a criação de cavalos,
de mulas, asnos e camelos. Segue-se a arte veterinária e as aves de casa e de campo, pombas,
gansos, patos, galinhas e abelhas. Finalmente era prestada atenção aos cães de guarda de casa
e do gado.

As culturas especialmente referenciadas

As plantas cultivadas que figuram com evidência no Tratado são as seguintes: Tamarei-
ra, figueira, pessegueiro, romãzeira, ameixoeira, pereira, cerejeira, amendoeira, nogueira, al-
perce ou damasco, macieira, oliveira, castanheiro, cidreira, laranjeira, trigo, cevada, centeio,
aveia, milho painço, arroz, lentilha, ervilha, feijão, fava. chícharo. tremoço, linho, cânhamo,
algodão, alfena, cebola, açafrão, nabos, cenouras, rabanetes, alhos, alho porro, pimenta negra,
ruiva, dormideira, pepino, melão, meloa, cabaça, abóbora, cominhos, mastruço, anis, rosa,
mangericão, goivo, narciso, crisântemo. Trata-se de culturas provenientes de «berço» europeu,
norte-africano e do médio e próximo oriente.

O Campo visto pelos Poetas Árabes

Da riquíssima literatura dos islâmicos do Andaluz do Sul extraímos de Borges Coelho


o exemplo da interpretação de «as searas» do Poeta Ilade:

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«Olha o campo semeado onde as searas parecem
ao inclinarem-se ante o vento
esquadrões de cavalaria que fogem derrotados
sangrando pelas feridas das papoilas.»

A Oliveira e o Azeite

A Oliveira, que recebeu a designação botânica de Olea europaea L. é uma das mais an-
tigas plantas cultivadas, talvez a primeira de porte arbório, de generoso fruto. As publicações
do «Conselho Oleícola Internacional» celebram tal antiguidade, fazendo notar que é geralmen-
te admitido que o berço da Oliveira foi a Ásia Menor e também Creta. Sabe-se que 3000 anos
antes de Cristo a cultura era praticada na Fenícia, na Síria, na Palestina. A tradição bíblica vai
mais longe e recorda que «a pomba soltada por Noé volta à Arca trazendo no bico um raminho
verde de oliveira, símbolo do restabelecimento da paz entre Deus e os homens». A longevida-
de da Oliveira é notória, sendo assinalados em Jerusalém exemplares contemporâneos de Jesus
Cristo. Embora De Candolle considere a região que se estende da Síria até à Grécia, como o
berço pré-histórico da Oliveira, sucede que as formas selvagens se encontram assinaladas pra-
ticamente em todo o espaço mediterrânico, não somente europeu como norte-africano. Em
Portugal essas formas correspondem ao Zambujeiro, e vestígios dos frutos da Oliveira foram
identificados em jazidas do Paleolítico Superior tanto do Norte de África como da Europa.
Os Gregos da Antiguidade Clássica encontraram no fruto da Oliveira, já submetido a
técnicas de conservação, o apoio alimentar que atenuou fomes calamitosas. A extracção do
azeite já assumia grande importância e a cultura da Oliveira teria tão grande interesse que ficou
inscrita na lenda. Traduzimos uma das passagens do trabalho referido:
«A atribuição à Grécia da origem da Oliveira apoia-se provavelmente no mito grego re-
lacionado com a fundação de Atenas. Cécrops, no século XVII antes de Cristo fundou uma
pequena colónia em Atiça que logo atraiu em seu redor os habitantes da zona, até então dis-
persos, errantes e miseráveis. Eram tempos em que os deuses recorriam à terra tomando posse
das populações que haviam de lhes prestar culto particular. Poseidon e Palas Atenea disputa-
vam entre si a honra de lhes dar o seu nome. Em assembleia fez-se acordo para o conceder
àquele dos dois que desse a seus habitantes o mais importante dos dons. Poseidon, golpeando
a terra com o seu tridente, fez brotar do solo um fogoso cavalo, cheio de força e vigor, belo,
rápido, capaz de arrastar carros pesados e de ganhar combates; mas Palas Atenea superou este
feito fazendo brotar uma oliveira, símbolo da paz e, pela generosidade do seu azeite, capaz de
dar chama para iluminar as noites, de suavizar as feridas, de ser um alimento precioso, rico em
sabor e fonte de energia. Cécrops reuniu então homens e mulheres e recolheu os votos. Os ho-
mens pronunciaram-se por Poseidon, as mulheres por Palas Atenea, e como destas havia uma
a mais, a deusa triunfou. Palas Atenea, deusa da Sabedoria, converteu-se em protectora da ci-
dade, ensinando aos seus habitantes o cultivo da oliveira e seu aproveitamento. A oliveira que
havia brotado na fenda feita pelo tridente de Poseidon, foi rodeada por um muro. A ferida foi
a Acrópole, onde a oliveira primitiva ficou guardada pela casta de guerreiros consagrados para

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defesa desta fortaleza... quando as velas dos piratas passavam pelo horizonte ou quando os ini-
migos tebanos apareciam nos desfiladeiros de Parnes, os cidadãos de Atenas agrupavam-se em
torno da oliveira sagrada dentro dos muros da Acrópole. A Aristeo filho de Apolo e da ninta
Cirene, foi atribuída a invenção da maneira de obter o azeite.»
O azeite era usado como alimento, considerando-se que o seu valor nutritivo era duplo
dos cereais e dez vezes maior do que o do vinho. A alimentação dominante dos Gregos era o
pão com azeite, vinho e mel. O azeite era usado para fricções no corpo, substituindo as gordu-
ras animais. Mantinha a elasticidade dos músculos dos atletas, a frescura da pele das damas, a
suavidade do seu corpo, a flexibilidade e o brilho dos seus cabelos e a delicadeza da pele das
crianças. O filósofo Demócrito de Abdera afirmava que era condição necessária para gozar de
boa saúde e alcançar avançada idade, a alimentação baseada em vinho misturado com mel e a
fricção do corpo com azeite.
No século VII a. C. foi introduzida a cultura da oliveira na Itália, alcançando no fim do
século II d. C. e começo do III a maior expansão no Império Romano. Os Romanos também
atribuíram honras à Oliveira, não podendo a sua madeira ser queimada senão nos altares dos
deuses. As coroas de ramos de Oliveira, consagravam feitos relevantes de heróis da paz, da
cultura e do progresso. Os heróis da guerra eram contemplados com coroas de Loureiro.
O azeite da Península Ibérica veio a ter renome e o mais antigo livro de cozinha que se
conhece, do século I. refere-se continuamente ao azeite de Hispânia. Catão aponta a dieta bá-
sica do camponês, constituída por pão, vinho, sal e azeitonas. Numerosos escritores descrevem
a moenda de azeitonas. Embora se afirme, com fortíssimas razões, que a Oliveira loi introdu-
zida no espaço ibérico hoje português pelos Fenícios e Gregos, não oferece dúvida que os Ro-
manos teriam dado forte impulso à produção de azeite, tornando-o género alimentar de comér-
cio, transportado em ânforas de que se encontram testemunhos não somente em Roma como
também nas vias fluviais do Rodano, do Reno e do Danúbio e, na Europa, até ao limite da Bri-
tânia «de cor verde, de cheiro e gosto agradável, não gorduroso e que recorda a fragância da
azeitona fresca».
A cultura da Oliveira manteve-se durante o governo visigótico e os Árabes deixaram-se
conquistar pelo azeite. O próprio Corão o refere: «Deus é a luz dos Céus e da Terra. Sua Luz
tem a semelhança de um candeio... que se acende graças a uma árvore bendita, a oliveira, não
oriental, cujo azeite reluz embora não o toque o fogo».
Ao longo do período medieval os olivais ocuparam os arredores das povoações e, nos
cursos de água próximos, instalavam-se os lagares onde se extraía o azeite. Quando o viajante
percorria zonas desérticas do Sul e deparava com uma Oliveira, poderia ficar certo de que es-
tava próximo de lugar povoado. Ainda hoje, no espaço mediterrânico português, embora exis-
tam manchas de olival moderno, a carta agrícola mostra o adensamento da área de olival em
redor das povoações. O azeite constituía o óleo comestível mais estimado, o combustível para
iluminação dos Lares e dos altares dos Santos, de Nossa Senhora e de Cristo, o remédio para
muitos dos males do corpo dos homens e dos animais domésticos.

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7 _ A AGRICULTURA SUPORTE SOCIO ECONÓMICO
DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL

A interpretação agronómica da agricultura como sistema dinâmico da viabilização de


soluções políticas, encontra-se hoje facilitada pelo recurso a conclusões obtidas por Historia-
dores modernos. Efectivamente, a agricultura evolui na dependência das alterações estruturais
introduzidas no seu sistema, em função da partilha social dos recursos naturais que utiliza, do
estilo contratual a que o trabalho obecede e do destino da produção repartida no quadro do au-
toconsumo e do mercado. Afigura-se-nos essencial a análise da evolução do processo de liga-
ção do homem à terra, processo ecológico na sua origem e depois humanizado, que leva à for-
mação de dependências de solidariedade campesina e que passam a ser o suporte de institui-
ções comunitárias como os Concelhos. Mas também, por outro lado, assume importância de-
cisiva para a evolução de todo o sistema agrário a formação ou o fortalecimento da «sociedade
senhorial», que se repercute directamente nas estruturas da repartição da Terra, dos Capitais e
do Produto obtido por toda a actividade, digamos, em termos actuais, empresarial.

A apropriação da produção campesina

De facto, a História revela a insistência segundo a qual se renovam, a partir dos está-
dios primitivos, as «formas de apropriação da produção campesina», que resvalam para as
mais diversas expressões de «posse» e do «poder». A sistematização de J. Mattoso afigura-se-
-nos particularmente útil para entender a génese das estruturas agrárias que a agronomia anali-
sa. O referido Historiador consegue, como pretende, «ajudar a esclarecer os problemas, distin-
guir entre o nível das questões predominantemente dominais e dos poderes senhoriais». Afir-
ma: «entendo por aquelas as que se referem fundamentalmente à exploração económica do do-
mínio e se baseiam na posse da terra, considerada como propriedade do senhor, mesmo quan-
do cede a exploração directa aos colonos. E por estas, as que designam o exercício de poderes
de chefia, de organização das relações colectivas, de mando ou de arbitragem de conflitos, de
redistribuição dos excedentes da produção no seio da comunidade». Tendo em conta que tal
orgânica tem seus custos que o camponês suporta, conclui: «de facto há prestações de origem
estritamente dominai e outras de origem nitidamente senhorial».
Quanto à passagem do conceito Senhorial para o de Regime Feudal, o Autor citado inte-
gra conclusões de G. Duby que identificam o «feudalismo com um estado de espírito, forma-
do no pequeno mundo dos guerreiros pouco a pouco tornados nobres com uma consciência de
superioridade de um estado caracterizado pela especialização militar e que supõe o respeito de
certos princípios morais, e a prática de certas virtudes, ou então com a ideia conjunta de que
as relações sociais se organizam em função da camaradagem no combate, das noções de home-
nagem, de dependência pessoal, doravante de primeiro plano e que se substituem a todas as
formas anteriores de ligação política e se manifesta por certos sinais, gestos rituais, sobretudo,
e palavras». Tudo isto para além de outras imposições económicas e costumeiras que a História

67
também regista.
Foi neste contexto que, no Reino de Leão, se formou a regionalização ligada à estrutu-
ra dominai ou senhorial que o Poder Real elabora ao distinguir os seus servidores. Assim, di-
versas Famílias ilustres passaram a ser honradas com o senhorio de terras, substituindo-se ao
Rei em vastas áreas quanto ao domínio de populações que se empenhavam na agricultura. O
Rei. tanto detinha parcelas importantes do Poder Feudal, como alienava outras, atribuindo títu-
los nobiliárquicos de que o mais prestigiado nesta altura era o de Conde, ou direitos e funções
de Tenência de Terras ou de defesa de Castelos. Assim se operou «a prosperidade de uma gran-
de quantidade de senhores que sujeitaram, pela posse das armas e o exercício de poderes públi-
cos, uma numerosa massa de homens dedicados à agricultura intensiva, e se apropriaram, para
sustentarem a superioridade, da sua capacidade produtiva». J. Mattoso esclarece que o sistema
tanto se implanta «numa zona de colinas e de solo fértil, dividida em pequenas unidades fami-
liares de exploração» como se adapta a «terras montanhosas de caçadores e pastores ou aos
planaltos, com as suas aldeias concentradas perto de campos de centeio, a solos agrestes e se-
cos, a vastas charnecas desertas que só os caçadores percorriam, a matagais no meio de pe-
nhascos e serranias». Acrescenta que podem ser cobradas as prestações ou rendas compensa-
doras da «protecção» a «cada família como a cada comunidade». O sistema era avassalador e
tendia a alargar-se a todos os territórios, acabando a vaga senhorial por avançar «para Sul do
Tejo, ao abrigo das concessões às ordens militares, ao serviço da guerra fronteiriça, sem dar
ainda lugar a uma organização orientada para a produção». Ao lado desta orgânica estava o
Clero cuja «configuração social está longe de coincidir com a dos nobres. Por um lado, há os
bispos e abades, que incarnam, os primeiros, a diocese com seus cónegos e párocos, e os se-
gundos, a comunidade monástica com os seus monges». Os membros do Clero raramente se
identificam com o poder senhorial como no caso dos «párocos das aldeias» a quem são exigi-
das prestações «que lembram, até pela sua natureza, as exacções senhoriais», e que chegam,
muita vez, a tentar «resistência à senhorialização». Mais afastados ainda se encontrariam os
Eremitas que procuravam o «deserto material e espiritual e a separação para com o mundo».
Identificavam-se com o sistema senhorial os Bispos e os Abades dos grandes Mosteiros que
dispunham de Poder mesmo quando desligado do uso das armas. No século IX-X existiam no
Entre Douro e Minho 30 Mosteiros e, no século XI. 76.

O Condado Portucalense

Como Senhor Feudal, no ano de 1097, Henrique de Borgonha senhoreava «do Minho
ao Tejo» usando o título de «Conde Portucalense», e chamando aos seus domínios «Província
Portucalense». Nessa «Província» eram numerosos os Barões. Rico-Homens e Infanções, os
Cavaleiros, os Bispos, os Monges e os Párocos. Tudo se movimentava no seio do Povo anóni-
mo de agricultores, servos e escravos, de pescadores, apoiados por artesãos e comerciantes,
dos quais bom número eram judeus.
Por esta altura a orientação de Roma para guerriar os infiéis, concretizou-se nas Cruza-
das. Daí por diante a Europa Cristã passou a visitar os portos do litoral ibérico a caminho da Ter-
ra Santa, participando activamente em episódios da Guerra contra Muçulmanos na Península.

68
A Nobreza e o Povo

Henrique de Borgonha governou o Condado Portucalense com acerto e valentia, defen-


dendo nos seus domínios os direitos senhoriais que procurou dilatar e consolidar, tornando-se
«um dos representantes mais activos do espírito europeu» na Península. Depois de intensa acti-
vidade política que, mais tarde, havia de dar seus frutos, morreu em Astorga, em 1112, esco-
lhendo sepultura na Sé de Braga, onde Alexandre Herculano conta ter ido meditar, a render-
-Ihe homenagem. D. Teresa assumiu a regência do Condado, assinando documentos na quali-
dade de Rainha. Durante o seu governo concedeu numerosos Forais de povoamento e preten-
deu alargar a sua acção a parte do território da Galiza, como Orense. As ligações com o Conde
de Trava vão nesse sentido o que contrariou propósitos de independência dos Barões minho-
tos que fomentaram a liderança de seu jovem filho D. Afonso Henriques. Por isso, em 1128, o
desfecho da batalha de S. Mamede a condenou ao exílio na Galiza, onde morreu dois anos de-
pois.
Na base de tudo isto, o País agrário assistia ao desenrolar das ambições senhoriais. O
Povo pagava pontualmente os seus tributos e, sem discutir fronteiras, levava os filhos à Pia
Baptismal, e os casais junto ao Altar, cumprindo a ordem bíblica do «ide e multiplicai-vos» pa-
ra garantia da sobrevivência colectiva. Esperava também do Pároco a absolvição nos enterra-
mentos, no chão sobrelotado das Igrejas. A tecnologia agrária era essencial, os níveis das co-
lheitas eram espreitados pela Fome, as Guerras eram temidas e as Doenças, sempre graves,
mas piores quando epidémicas, davam à vida terrena, para muitos, a dimensão de episódio,
mais difícil de entender quando, logo à nascença, a Morte praticava a ceifa inexplicável. Por
isso a generosidade das plantas era importante, assim como o parto dos animais. A fecundidade
da terra traduzia a essência da vida que se alimentava do estrume em que tudo o que fora ani-
mado e belo se transformava.

A charrua acrescenta-se ao arado

O solo mobilizado pelo arado passou a ser talhado em leivas volteadas pela charrua por
essa altura inventada na Europa. O progresso foi enorme e a perfeição e o rendimento do traba-
lho aratório influenciou a forma dos campos, favorecendo o sentido longitudinal. Tal modifica-
ção tecnológica aconselhou a partilha em comprimento das superfícies cultivadas.
D. Afonso Henriques e os seus Barões não se aquietavam no propósito de ampliar as
fronteiras do Condado, a Norte, com territórios da Galiza e, a Sul, no espaço Islâmico. Em ac-
ção simultânea com este esforço militar D. Afonso atribuía forais de povoamento a novas ter-
ras, cuja defesa procurava consolidar, fundava Mosteiros e concedia Terras e Castelos à Ordem
dos Templários a Sul do Douro, nas fronteiras difíceis. Famílias nobres que apoiaram D. Afon-
so Henriques foram honradas com a concessão de Terras defendidas por Castelos dos quais,
alguns, dificilmente hoje se localizam. Entre o Minho e o Douro ficam assinalados 24 Caste-
los, muitos deles desligados de centro que vieram a ser povoados. «A constelação das Terras e
Castelos não coincide com as encruzilhadas». Nesses Castelos não habitam os Senhores que
«aí deixam guarnições militares e vão viver para Paços e Quintãs, ou centros dominiais».

69
O dente (d) do Arado rompe ou rasga o solo.
A aiveca (a) da Charrua vira ou volta a leiva.

Valdevez — onde Portugal teve princípio

O nascimento de Portugal constitui o desenrolar de um processo forte mas lento, não


podendo os Historiadores, como o demonstrou Damião Peres, marcar-lhe um momento exac-
to, ao contrário do que sucede quando um Povo alcança libertar-se num rompante do jugo do
opressor. Acontece que a Independência foi depois defendida revolucionariamente, pelo Mes-
tre de Aviz quando executou o Conde de Andeiro ou pelos Conjurados quando proclamaram a
Restauração de 1640 no Terreiro do Paço. No entanto, nos confrontos que levaram à formação
de um País ibérico novo, a lenda de Valdevez não distingue mais do que uma batalha, ou «ma-
tança» necessariamente exemplar e triunfante. Mas no entanto das lendas em que tudo se enre-
da, conta-se muito mais, como a origem do Santo Lenho, Relíquia guardada a «sete chaves»
na Igreja de Grade, o que constitui circunstância muito rara num Templo modesto mas muito
antigo de uma arredada aldeia. Diz o Povo que em «terrível batalha» que então se travou pela
Independência, um guerreiro galego mal ferido, mesmo depois de misericordiado, isto é, apu-
nhalado com arma que se chamava Misericórdia por sarar o padecimento pela morte, balbucia-
va numa angústia, «tirem-me isto senão não morro» e apontava o peito. Vendo este transe dra-
mático, um dos guerreiros de D. Afonso Henriques, libertou da cota de malha o Leonês e des-

70
cobriu, junto do coração, o Santo Lenho. Tirou-lho e o antigo Cruzado da Terra Santa finou-
-se pacificado. O Barão minhoto mandou guardar a Relíquia na Igreja de Grade, Freguesia on-
de tinha sua Torre e Honra. A Tradição afirma que «era a maior Relíquia do Santo Lenho da
Península» mas, um dia, um Arcebispo de Braga levou-lhe metade. Esta Lenda recebeu a con-
firmação de Cronistas, como Frei António Brandão que refere o Santo Lenho como um dos
despojos da batalha que Afonso VII teria perdido no ano de 1128, em Valdevez.
O Padre Bernardo Pintor, no seu trabalho intitulado «O Recontro de Val-do-Vez». Onde
foi?» afirma: «julgo que D. Afonso Henriques e o seu primo D. Afonso VII de Leão se encon-
traram duas vezes em Valdevez conforme depreendo do confronto de várias crónicas antigas».
Baseado especialmente em Frei António Brandão, o Autor referido pondera o arrastado con-
fronto de Barões minhotos, politicamente opostos a Barões galegos. Isto entende-se pela in-
constância da adesão dos seus Castelos a um ou outro dos partidos, mesmo depois de S. Ma-
mede, batalha em que ficou vencida a Rainha D. Teresa. Quando Afonso VII veio tentar a defe-
sa da Rainha deposta, o jovem Conde D. Afonso Henriques ou os Barões que o impulsiona-
vam, fizeram-lhe frente em Valdevez, no ano de 1128, antes de Ourique, em batalha campal
travada, talvez, no chão da «Veiga da Matança», já ensanguentado pela passagem do Almançor
a caminho de Compostela. Afonso VII que pretendia impor ao Conde portucalense o cumpri-
mento dos deveres de vassalagem, tendo posto cerco a Guimarães, cidade salva com a palavra
de Egas Moniz como refere a Lenda, ficou vencido e ferido na batalha. Os conflitos com ou-
tros Reinos Cristãos da Península e a presença Islâmica, ameaçadora, no Andaluz, levariam
Afonso VII a conformar-se com o germinar da Independência portuguesa. Estas circunstâncias
levariam D. Afonso Henriques a iniciar o ambicioso programa de expansão no espaço Islâmi-
co do Sul, muito arriscado por se revelar incompatível com as incursões constantes na Galiza.
Tais incursões a Norte acarretavam custos elevados e teria sido em louca correria que
D. Afonso Henriques voltou a esta fronteira ameaçada, de pois de arremetida vitoriosa que o
levou a Ourique de onde veio aureolado com o título de Rei adiantado por seus desmedida-
mente ambiciosos Companheiros, no campo de batalha com os infiéis vencidos. Tornou-se im-
perioso acudir ao que se passava na Galiza, em terreno agreste de imponente Geografia. Nes-
tas paragens Herculano viu o «território crespo de serranias e cortado de rios e correntes». Nar-
rou que o Imperador Afonso VII invadindo Honra portucalense, desceu «das alturas daqueles
selváticos desvios» transpondo a «portela do Vez». O Rio corria torrencial e bravo no fundo
de ásperas encostas agora talhadas em socalcos a suportarem aldeias embutidas nas pregas dos
rochedos. Somente onde a Montanha abre espaço, o Rio se espraia. Foi neste Campo, ao tem-
po entregue a rude pastoreio, que D. Afonso Henriques aguardou o Imperador. Os Barões do
Entre Douro e Minho que o quiseram Rei, sustentavam com ele a emergência, enquanto os si-
nos das Paróquias e dos Mosteiros de Azere, de Ermelo e de Miranda tangiam a rebate. A peo-
nagem acudiu das choças abrigadas junto a muros senhoriais, ou alertada em redutos de alve-
narias colmadas nas ruínas de posições castrejas, em cavernas, grutas, lapas de abrigo do pas-
toreio serrano, empunhando as bestas e as ascumas da montaria, açulando alãos e sabujos, no
tumulto do mais intrépido dos alvoroços.
Padre Bernardo Pintor confirma, completa e pormenoriza o quadro que acabamos de
descrever: «Afonso VII, retomados na Galiza os castelos que lhe eram adversos, ajuntando às

71
suas hostes homens de armas do alcaide de Alhariz, terá seguido por Castro Laboreiro, Lamas
do Mouro, região de Val-de-Poldros e de Sistelo na Serra da Peneda. Cabreiro, à região das
Choças nas margens do Vez, onde a tradição diz ter sido o seu acampamento».
Ao romper a madrugada, escreveu Herculano, «Afonso Vil viu coroarem-se de uma sel-
va de lanças as altas e ásperas serranias que se prolongavam diante do seu acampamento». Me-
ditando no vigor da descrição podemos acreditar que eram armas mal brunidas da mistura de
sangue Cristão vertido em leivas tudenses da Galiza, e Sarraceno derramado no pó de Ourique.
A angústia do Povo armado mas inseguro, e as lanças erguidas nas «raízes do carrancudo Soa-
jo», como escreveu Herculano, aprontavam-se para cumprir o impulso inexorável do berço,
feito Pátria ou Região. No entanto, desta vez o Povo foi poupado e assistiu nos cabeços so-
branceiros, alapardado, ao Bafordo que os seus Senhores sustentaram, vitoriosos, na Veiga que
entretanto já teria herdado o nome «da Matança».
Depois de os exércitos em presença terem amortecido, no Bafordo, suas energias guer-
reiras, encontraram-se, em pleno Vale do Vez, o Imperador Afonso VII e o Conde portucalense
D. Afonso Henriques, que tomara o Poder que sua Mãe, D. Teresa, detinha como viúva de D.
Henrique e tutora de um Filho que, sozinho, se armou Cavaleiro. O encontro assumiu a forma
a que hoje damos o nome de «Cimeira», sendo pedida a intervenção do Arcebispo de Braga,
D. João Peculiar, na qualidade, agora assim também designada, de «Mediador». Em resultado
das conversações, de que não foi encontrado qualquer documento escrito, estabeleceu-se a
«Trégua» mantida até à «Conferência de Zamora de 1143». Com a presença do Cardeal Gui-
do de Vico, legado do Papa Inocêncio II, foi confirmado o reconhecimento de D. Afonso Hen-
riques como Rei de Portugal que o Imperador Afonso VII fizera em Valdevez, antes de retirar
com o seu exército invasor muito mal experimentado para não dizer vencido.
Entretanto, no que respeita ao valor e essência do recontro de Valdevez, os verdadeiros
artistas não se conformam com o nevoeiro que, depois de Alexandre Herculano, tem sido aden-
sado por novos historiadores, que recusam contributo válido. No seu Velho Minho Santana
Dionísio encerra o tema com a seguinte fantasia:
«O que decerto se poderá afirmar com grandes visos de probabilidade é que Afonso
Henriques não se limitou decerto, nesse torneio, a servir de juiz de campo. A sua têmpera não
lhe consentia tal papel. O imperador das Espanhas, esse, sim, limitar-se-ia a ver como decor-
ria a dura pugna singular, com feridos, prisioneiros e decerto alguns mortos. O Príncipe dos
Portucalenses, com o seu incoercível e belo arcaboiço, ainda cicatrizado de fresco de profun-
da ferida recebida na batalha de Cerneja (provocada por um virotão vibrado de longe por um
labrego da peonagem leonesa), não se conteve e participou seguramente daquele combate de
feição homérica — mas infelizmente não assistido por nenhum cronista ou poeta.»
Por nossa parte, não podemos ir tão longe no encantamento ou entusiasmo. Mas não
deixamos de sentir a presença de D. Afonso Henriques, guerreiro, na Veiga da Matança, em
1128, enquanto, no decurso do bafordo de 1140, exercia o transcendente papel de político, na
presença de um habilíssimo «mediador».
O povo nunca se esquece, embora possa confundir a cronologia dos acontecimentos.
Guarda memória dos factos e, através de gerações, conta e reconta à luz da lareira o que foi
passado. A história erudita não substima a contribuição do povo. Por isso ensina que, em 1140,

72
Afonso VII entrou nos Arcos pela Portela do Vez, e que veio ao seu encontro, em pleno vale,
e que D. Afonso Henriques lhe tolheu o passo. Foi nesta paisagem, neste viveiro de gente que
não pode nem quer ficar alheada do feito que Herculano magistralmente consagrou, que o im-
perador das Espanhas viu na sua frente, impávido, o rei de Portugal. Teria avaliado, de certeza
e para sempre o imperador avaliou, neste extremo da Europa debruçado sobre oceanos e conti-
nentes nessa altura não desvendados o significado e a força da Independência. Hoje, tendo em
conta ideais ensaiados na construção de novos acordos comunitários, económicos e políticos,
o recontro de Valdevez, decorridos oito séculos e meio, continua a encerrar profundo significa-
do sociológico. No momento em que são procurados os meios de adesão a novo convívio euro-
peu, recordar a Independência tem forte sabor a esperança. Esta é compatível com adequadas
fórmulas de integração. Mas a Independência não perde nunca o jeito de objectivo natural, im-
piedoso e necessário. O risco encontra-se somente na ideia peregrina de que o acto económi-
co pode ser dissociado do acto político. A soberania nunca poderá ficar assegurada sem que a
«arte de governar» inspire e subordine a economia, de forma que esta não destrua a essência
da vida, privando de alicerce o bem-estar dos povos.
Nos recortes da paisagem do rio Vez, que teimam em renovar-se sem que o saibamos
entender como património e monumento, muito se passou de imensamente exacto, que não so-
freu, com o tempo, a mais leve erosão ou desgaste. O arcebispo de Braga, «mediador», e os
cavaleiros que, no «bafordo», derrubaram os invasores, tornando-os cativos, não podem ser es-
quecidos. A «trégua» de 1140 foi arrancada aqui, neste maravilhoso Vale do Vez, e entregue às
raízes de uma Pátria, e o que ajustado ficou, mercê das armas e da diplomacia, deu lugar à Paz
de Zamora, que consolidou uma nação das mais antigas da Europa. Paradoxalmente, foi mer-
cê desta paz que prosseguiu a guerra, crudelíssima de séculos, em que o «berço» minhoto de
Portugal e o «reduto» asturiano alargado de Leão, Castela, Navarra e Aragão se empenharam
na reconquista do Sul peninsular, consolidando nações europeias irmanadas no destino de des-
cobrirem o Mundo Novo. A paz teve valor. Sempre o tem, mesmo na ironia de dar lugar a no-
vas guerras. A Paz de Valdevez não podia ser diversa, e viria a impor dolorosos transes que não
esquecem, embora no horizonte se descortinem difíceis mas douradas primaveras.
Depois de os dois exércitos em presença terem amortecido, no bafordo, as suas energias
guerreiras, o imperador Afonso VII e o conde portucalense D. Afonso Henriques encontraram-
-se no Vale do Vez. O encontro assumiu a forma a que hoje damos o nome de «cimeira», sendo
pedida a intervenção do arcebispo de Braga, D. João Peculiar, na qualidade, agora assim tam-
bém designada, de «mediador». Em resultado das conversações, de que não existe documento
escrito, foi acordada a «trégua» que deu fundamento à Conferência de Zamora, onde teria si-
do confirmado o reconhecimento feito pelo imperador Afonso VII, em Valdevez, de D. Afon-
so Henriques como rei de Portugal. Também não foi encontrada qualquer acta da conferência.
Sem diminuir o valor do «bafordo», considerando fabulosa a «matança» sangrenta, devemos
reter a ideia de que teria sido muito importante, mesmo decisiva, a acção do «mediador, figu-
ra da mais elevada estatura diplomática. Não oferece dúvida que D. João Peculiar, depois de
estar presente em Valdevez, garantiu a continuidade das negociações, organizando a Conferên-
cia de Zamora. Logo em seguida foi a Roma fazer a entrega da carta de enfeudamento de Por-
tugal à Santa Sé, acompanhando o laborioso processo de reconhecimento da Nação Portugue-

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sa. O P.e Avelino Jesus da Costa considera-o ministro dos Estrangeiros de D. Afonso Henri-
ques. Mas importa reconhecer que. à maneira da época, foi também cruzado. Ao lado do bis-
po do Porto acompanhou o rei na conquista de Lisboa. Antes da luta. de quatro longos meses,
proferiu, frente às muralhas da cidade, histórico discurso, que tanto pode representar apelo à
concórdia, utópico por ser lançado na ardor da «Guerra Santa», com significar decidido anún-
cio de assalto, por oferecer aos sitiados, no dizer dos cronistas, não mais do que «partido de
rendição».
Os acontecimentos a que estamos a dar relevo constituem tradição muito antiga confir-
mada pelos melhores historiadores. Mas o P.e Bernardo Pintor, que nos acompanha nesta di-
gressão pelo livro aberto da paisagem que estudamos, acrescenta testemunhos históricos de
real fundamento. Refere que as inquirições de 1258 registam na freguesia de Mei, situada jun-
to às Choças, a existência de um casal que o informador da época, ainda de memória fresca,
disse encontrar-se «ao cabo de onde moraram os reis». O citado historiador comenta, com to-
do o rigor metodológico, segundo nos parece, que, «sabido como é que Mei nunca foi residên-
cia de reis nem havendo sequer indícios de que ali tivessem qualquer castelo ou aposento para
quando transitavam pela região, julgo que aquela identificação deverá aludir ao local em que
os reis de que nos vimos ocupando se reuniram a fim de se reconciliarem».
Não se nos oferece dúvida de que a «cimeira» que consagrou a Independência de Portu-
gal, na «trégua» que marca um dos passos, talvez o mais decisivo, depois de feito o arranque
em São Mamede, ocorreu na freguesia de Mei, civilizadamente, com a presença do arcebispo
de Braga, sem «matança» alguma nesta emergência. Como vimos, foi exigido, ao gosto da
época, a prática de um jogo militar brutal, sem o que os rudes e valorosos cavaleiros medievais
se não conformariam com o ir e voltar, sem mais, porque haveria entre eles velhas querelas a
ajustar. Depois, a «trégua» foi escrupulosamente respeitada, dando lugar à «paz» na Conferên-
cia de Zamora, que o arcebispo «mediador» preparou em 1143, com a presença do cardeal Gui-
do de Vico, legado do Papa Inocêncio II.

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8 _ PORTUGAL INDEPENDENTE — A ALVORADA
DA MONARQUIA AGRÁRIA

Portugal independente constitui, no mosaico regional da Península Ibérica, resultante da


História, da Geografia e da População, a única autonomia triunfante e das mais antigas da Eu-
ropa, contra o imperialismo dominador. Na base do processo, largamente analisado pelos His-
toriadores, encontra-se o sistema Senhorial, cujo suporte é agrário e Camponês. A independên-
cia teve êxito talvez por ser específico o grupo de Famílias apoiadas na Tenência de Terras bem
povoadas, grupo que escolheu, na batalha de S. Mamede, o Rei que queria. Nunca ninguém
saberá se os Tenentes interpretavam ou não o empenhamento dos povoadores das Terras. Acre-
ditamos que a vontade era colectiva. E, assim, erguendo ao vento, seus estandartes que serviam
de adorno aos Cavaleiros e de símbolo do Poder dominai, os Barões minhotos, de qualquer
modo, defendiam a vida e a economia de espaços geo-humanos bem delimitados numa das
mais preciosas paisagens agrárias do Mundo em que vivemos. Aceitamos que foi um grupo de
Famílias ambiciosas, a que se juntaram o Arcebispo de Braga e o Bispo do Porto, que assumiu
a decisão histórica de truncar para sempre a raiz comum da Galiza no Noroeste peninsular, im-
plantando, no Entre Douro e Minho, um País novo. Feito isto, as tentativas de expansão para
o Norte, resultariam sempre trágicas ou fratricidas, de sentido tão odioso como o que era im-
posto pela cobiça de domínio leonês ou castelhano. Mas o Sul constituía programa de conquis-
ta legitimado pela tradição da resistência oposta a um invasor, considerando-se toda a ocupa-
ção como reconquista, ou retorno a local que fora perdido ou abandonado.
Logo em 1145, D. Afonso Henriques partira de Coimbra, conquistando Leiria, mandan-
do construir o Castelo que seria a guarda avançada de novos cometimentos. O novo Castelo
seria perdido e reconquistado muitas vezes, ao longo de 50 anos, para se manter Cristão, em
definitivo, apenas em 1195.

Os primeiros Monges Agrónomos Cistercienses

As comunidades monásticas, especialmente de Beneditinos, instalaram-se no território


a partir do século VII tendo desempenhado crescente papel de apoio à vida rural e à expansão
do povoamento por meio do desenvolvimento da agricultura, das artes e dos ofícios. No entan-
to, com a reforma da Ordem Beneditina, operada em Cister, novos Monges adquiriram espe-
cialidades que os haviam de celebrizar na difusão de preceitos e artes agronómicas. Em 1144,
D. Afonso Henriques atraiu a Portugal Monges Cistercienses que se instalaram primeiramente
no Mosteiro de Tarouca, passando depois a Salzedas e Lafões, Aguiar, Fiães, Ermelo, Bouro e
Júnias.

A passagem dos Cruzados

Por essa altura os Cruzados demandavam o Porto a caminho da Terra Santa e, em 1147,

75
tendo D. Afonso Henriques alcançado conquistar de surpresa Santarém, pediu ao Bispo do
Porto que exortasse os Cruzados no sentido de auxiliarem a conquista de Lisboa. Os Cruzados
provinham do Império Alemão, de mistura com Flandrenses e Colonenses e de outros que for-
mavam tropas de Norfolk e Suffolk, Kent, Londres e até Cristãos da Normândia. Acederam a
aprontar a esquadra rumo a Lisboa, tendo embarcado o Bispo do Porto e o Arcebispo de Bra-
ga. Os portugueses foram por terra.
A crónica desta grande aventura foi encontrada em cartas de Osberno onde se descreve:
«nenhum chão se via desaproveitado, coberto quando menos de figueiras. As mesmas praias
verdejavam de óptimo pastio, pululando de caça. Isto tudo lavado de ar magnífico, eram os
contornos da moirisca Lissabona». Os Cruzados descrevem a montagem do cerco, e o anúncio,
feito pelo Arcebispo de Braga, do assalto, oferecendo aos sitiados «partido de rendição». Júlio
de Castilho descreve: «Aproximaram-se os prelados, com sinais de parlamentários, até à beira
da muralha, mais os seus séquitos. Fizeram sinal às sentinelas do adarbe, e chegou ao alto do
muro o alcaide mouro com os maiorais da guarnição. Prometidas tréguas de parte a parte, su-
biu ao muro o bispo do Porto, como para servir de reféns, e tomou a palavra o arcebispo». E
o referido Autor acrescenta: «Respondeu-lhe um dos ansiãos conspícuos da Cidade... recusa
perentória à anuência aos pérfidos arrazoados dos cristãos». E depois: «com o mesmo cerimo-
nial com que tinham ido, tornaram-se os emissários para bordo da sua armada». Iniciou-se a
luta que durou quatro longos meses, com excursões de rapina ou algaras nos arredores. O rela-
to de Osberno comenta: «A forte Sintra resistiu. Como a não puderam tomar, limitaram-se à
devastação da periferia, e recolheram ao acampamento avergados de boas presas e víveres de
todo o género».
Durante o cerco a vida regional ficou suspensa e no seu lugar corria sangue. Antes,
na Cidade e arredores «veríamos as barracas dos vendilhões; o grande carro de mulas de
toldo recurvo, puro cartaginês e romano. Veríamos o mísero burro de carga, um dos heróis
mais perseverantes de todos os tempos, o companheiro do camelo e do escravo... entenden-
do duas ou três palavras árabes, arre e chó\ ajoujado com seu albardão mauritano de volta
em meia lua... perfeitamente arcaico, e talvez afinado num quadro do tempo dos Faraós.
Veríamos na mão dos compradores alcofas, tão mussulmanas, e tanto das nossas casas ain-
da».
A 21 de Outubro de 1147 a Cidade rendeu-se. Nunca mais seria Árabe. D. Afonso
Henriques que dissera aos Cruzados a aspiração de ser Rei de um Povo e não de um territó-
rio ermado, alcançou moderar o saque, logrando impedir que os vencidos fossem passados
a fio de espada como infiéis. Os que preferiram a retirada saíram das muralhas sem levarem
nada. Mas, ao entrarem na Cidade, os conquistadores ainda teriam contemplado o quadro de-
serto:
«Junto ao paço o jardim, sombrio de verdura e recolhido entre muros: fontes a sussur-
rar entre folhedo; alamedas de laranjal, calçadas de mármore ou de seixos em mosaico; lata-
da encanastrada em caniço, e suspensa de pilares; buxos aparados a desenharem arabescos;
caramachão cheio de sombra, abrigando o rendilhado tanque cheio de peixes; ao fundo a no-
ra gemedoura; e os alegretes de tijolo à beira das janelas debruçadas sobre extenso panora-
ma».

76
Terras a povoar para os Cruzados

Ao Cruzado D. Rolim foram feitas doações de terras a povoar em Azambuja, no Riba-


tejo. Francos das Gálias foram povoadores de terras doadas por D. Afonso Henriques e pela
Rainha D. Mafalda, em Atouguia, Vila Verde e Lourinhã.

... e para os pobres de Lisboa

A conquista da Cidade, depois do êxodo dos mouros que procuraram algures vida no-
va, teria aberto um fosso de terríveis necessidades. Foi referenciada a doação de D. Afonso
Henriques, que os seus sucessores confirmaram, de terras de «vallada» aos pobres de Lisboa.
Sucede que, nas vizinhanças da Cidade, onde se encontram boas terras basálticas de cultura, a
área com esta designação coincide com a dos campos de «Alvalade», urbanizados de há anos,
sobre quintas de bom interesse agrícola. Com as voltas que as estruturas agrárias vieram a so-
frer, não se pode afirmar que a urbanização tenha removido restos de Persas, Sírios ou Egíp-
cios, cuja vida fora salva por D. Afonso Henriques da mortífera devoção dos Cruzados. Os
«pobres de Lisboa» que o Rei contemplou já tinham sido afastados pela implantação de Quin-
tas senhoriais nos arrabaldes de Lisboa.
Com a conquista da Cidade, os Castelos de Sintra e de Almada foram abandonados pe-
los Islâmicos, bem como a fortaleza de Palmela. Alenquer e Óbidos teriam cedido antes da
conquista de Lisboa. Em 1158, Alcácer do Sal foi vencida e, a partir do ano seguinte, a con-
quista chega a Évora, Beja, Moura e Alconchel com a acção lendária de Geraldo Sem-Pavor.
No entanto, os avanços de D. Afonso Henriques em direcção ao Sul, acabaram por ser contra-
riados pelas invasões almóadas de 1170 e de 1184 que trazem a guerra a Santarém, ameaçan-
do Lisboa. O território do Sul foi, nestas emergências, percorrido pelos exércitos, repartido pe-
los conquistadores, abandonado quando era perdido, para depois ser retomado e de novo divi-
dido.
A epopeia da conquista territorial de D. Afonso Henriques declina nas portas de Bada-
joz onde o Rei, com a perna partida ao bater num ferrolho, ficou prisioneiro de Castela. Ao fim
teve de ceder, não somente Badajoz que conquistara aos Mouros, mas os territórios galegos
que mantinha para além do Rio Minho.

O campesinato medieval

Deve acentuar-se que, na fase agrária da ocupação humana, as situações campesinas se


caracterizam pela vivência ecológica e pela prática do naturalismo básico. Afirma Herculano
que «o sentimento, a aspiração do indivíduo que cultivou o solo, que construiu a choupana,
que plantou a árvore é principalmente o não separar-se do campo, da choupana e da árvore».
Por isso se envolve na servidão que transformou a escravatura em adscrição à gleba, como for-
ma de aliança com a terra, irresistível e natural. O servo adscrito não pode ser alienado sem a
terra, como o escravo, e assim é livre no trabalho, mas obrigado a manter-se enraizado. Utili-
za-se assim a condição do Camponês que o leva a produzir bens de utilidade permanente e uni-

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versai como os alimentos, o vestuário e os meios de deslocação e de transporte elementares.
Mas, a utilidade social do campesinato volta-se, desde o início, contra os Camponeses, trans-
formando-os em imperativo da sobrevivência colectiva e em objecto de cobiça por parte dos
detentores do poder. De acordo com o sistema senhorial que originou o Feudalismo europeu,
o campesinato resultante do comunitarismo tribal ultrapassado ou consequente de iniciativas
de colonização, deu origem à submissão que amarrou o Camponês às suas artes, cujas rotinas
e instrumentos constituem parte integrante das paisagens agrárias. Mas o essencial será que na
Europa Cristã o campesinato estruturou, sobre o alicerce comunitário, o familiarismo empe-
nhado na defesa ética e espiritual de uma maneira de viver e de uma economia adaptada a siste-
mas de produção autónomos que vitalizam empresas familiares, ligadas à subsistência encos-
tada ao mercantilismo das Feiras, e ao povoamento dos arrabaldes de burgos artesanais, dos
coutos e das granjas dos Mosteiros. Com base em reservas culturais riquíssimas o campesina-
to defendeu e interpretou testemunhos fossilisados em escrita indecifrável, mantendo tradições
orais milenárias, demarcou regionalismos, elaborou costumes, línguas e dialectos, abriu-se a
revelações religiosas, inventou heresias, santificou mártires da Fé ou de iluminismos obscuros,
bateu-se por ideologias contraditórias, com fatalismo e heroísmo matou e morreu, transfor-
mando em armas as ferramentas do trabalho, ou escondeu-se, paralisado pelo terror, aceitou e
recusou lideranças, saudou vitórias, sofreu derrotas, construiu, manteve e, mesmo em alicerces
adormecidos, ergueu santuários, sítios privilegiados, espaços habitados, países, impérios.
Nesta fase, as classes sociais dominantes, o Rei, a Nobreza e o Clero, tanto contribuíram
para o povoamento gerador do campesinato, promovendo colónias em terras para o efeito cou-
tadas ou honradas, como dominaram social e economicamente estruturas camponesas que se
submeteram ou, episodicamente, responderam com a rebeldia que recorre à crueldade, se pos-
sível maior do que a sempre usada no esmagamento das revoltas populares.
Na opinião de comentadores da evolução social, a melhoria da sorte dos escravos agrá-
rios que se foram transformando cm servos adscritos à gleba, teria resultado da fraca densida-
de demográfica e da aliança guerreira que seria necessário manter com as populações onde se
recrutavam mercenários, com tolerância, para bom empenhamento na defesa das Honras e dos
Castelos, sempre ameaçados pela presença Islâmica e pela vizinhança de outros Reinos Cris-
tãos. Por isso o Feudalismo português se apresentou atenuado o que, sem dúvida, explica a par-
ticipação popular em muitos acontecimentos e o poder municipalista que foi possível ver as-
segurado. Não será de excluir a cautela dos Reis de Portugal que sempre procuraram manter
em seu proveito o Poder Absoluto medieval concentrando as funções do Estado. Afigura-se
também importante o facto de não faltarem no campo os escravos, uma vez que o abastecimen-
to se mantinha assegurado com mouros aprisionados na guerra e nas fossadas. Da escravidão
visigoda nada restava na Península Cristã. Tudo fora liberto para garantir a resistência asturia-
na.
No entanto, embora livre, o servo de gleba não podia abandonar a terra e, se fugisse, era
compelido a regressar à choça onde habitava com a família. Estava obrigado a servir o senhor
da terra e a entregar prestações em espécie e pagamentos os mais diversos. Não podia, o ser-
vo, casar sem licença do senhor, sendo ainda submetido a outras sujeições de acordo com o
costume. Herculano escreveu que a adscrição não era lei civil, mas «um facto social, um costu-

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me, uma praxe, que resultava da natureza das cousas, de factos políticos anteriores». Dadas as
condições de insegurança, a adscrição até poderia oferecer a falsa imagem de contrato vantajo-
so por ser irreversível, não admitindo despedimento, e hereditário, não podendo os filhos ser
esbulhados e, finalmente, protector contra agressões exteriores muito frequentes e temíveis.

Fundação da Abadia de Alcobaça

No ano de 1153 foi fundado o Mosteiro Novo de Alcobaça. M. Vieira Natividade refere
a «fantasia e ingenuidade» de versões lendárias desta fundação: «A primitiva doação de Alco-
baça aos enviados de Claraval resumia-se a uma zona muito limitada como se deduz da palavra
Herdade, e só mais tarde foi acrescentada ao estabelecerem-se os pretendidos limites de tão
extensos Coutos». De qualquer modo, Tarouca era local mais seguro para povoar do que Alco-
baça. e tanto que os bons Monges Agrónomos, e não Militares, acabaram por sofrer na Estre-
madura as mortíferas passagens de exércitos almóadas. Mais graves teriam sido as lutas im-
postas aos Monges Cistercienses se o Califa Iúçufe não tivesse encontrado a morte, à vista das
muralhas de Santarém, mercê de certeira lançada de Templário. Só por isso a ofensiva almóa-
da teve seu termo, milagrosamente, para o povoamento dos Coutos de Alcobaça.
D. Afonso Henriques morreu em 1185, com a provecta idade de 76 anos, invulgar na
época. Seu reinado durou 45 anos, tendo cumprido durante 63 anos o juramento de Cavaleiro.
Grandes ameaças pairavam sobre Portugal, quando foi sepultado na Igreja de Santa Cruz, na
fronteira islâmica donde o seu sonho partiu, a consolidar o novo Reino português, que viu nas-
cer minhoto.

79
9 _ A MONARQUIA AGRÁRIA

Ainda em vida do velho Rei Fundador, D. Sancho tomou parte activa nos negócios do
Reino, subscrevendo cartas de foral e guerriando em terras de infiéis. Sua passagem ao Poder
constituiu facto natural que impulsionou as tarefas do Povoamento que justificaram o cognome
de «Povoador» que lhe foi dado pelos Historiadores.
No entanto, o ambicioso empenhamento guerreiro ilustra o início do seu reinado. Reno-
vando o apelo aos Cruzados, de passagem para a Terra Santa, D. Sancho encontrou o apoio ne-
cessário para conquistar, no Algarve, a poderosa Cidade de Silves. Mas, no ano seguinte, foi
perdida esta conquista e o País submetido a uma das mais violentas das invasões Islâmicas.
Em avassaladora arrancada, Iacube Almançor levou os seus exércitos até junto das muralhas
dos Templários, em Tomar. Gualdim Paes defendeu o Castelo e, segundo a tradição, rezando,
fez cair sobre os infiéis terrível epidemia que os destroçou na trágica retirada da incursão, que
seria a última, ao coração do Reino de Portugal.

O Povoamento

Embora perdido o Algarve e agravada a segurança no Além Tejo, D. Sancho I adminis-


trou habilmente o restante território atribuindo na Beira, Estremadura e Trás-os-Montes mais
de cinquenta cartas de foral, que estimularam o Povoamento de vastas regiões distantes, no in-
terior. Fez doações de coutos a povoar de que o Paul da Ota serve de exemplo em favor do
Mosteiro de Alcobaça. Baeta Neves publicou a tradução do latim da «carta de doação e couto
feita por D. Sancho I, do Paul da Ota ao Mosteiro de Alcobaça, Maio de 1189».
O documento revela a posição do doador, que se considera, ele e a Família Real,
plenos proprietários da «presúria» feita aos Mouros, acentuando, muito claramente, que pre-
tende, com a doação, «adquirir bens celestes», embora não oculte a finalidade de ver «a he-
rança distribuída pelos pobres de Cristo», ameaçando alguém que tenha a «ousadia» de «fa-
zer alguma coisa em contrário», com a «maldição de Deus», além das multas correntes e ba-
nais.
É do seguinte teor, o documento:
«Em nome da Santa e Indivisível Trindade do Pai do Filho e do Espírito Santo. Em vir-
tude da devoção dos reis católicos se recomenda por esta carta que a posteridade proceda pie-
dosamente e mantenha a dignidade com firme energia e ainda se esforce por ter algo para ser
imitada para que se sinta herdeira de bons pais aos quais possa suceder no reino semelhante na
lealdade e religião.
Portanto eu Sancho por graça de Deus rei dos Portugueses e minha esposa D. Dulce
com os meus filhos o rei D. Afonso e o rei D. Pedro e o rei D. Fernando e as minhas filhas rai-
nha D. Teresa e rainha D. Sancha querendo adquirir bens celestes em vez dos temporais e pe-
recíveis para honra d'Aquele que permitiu que vivamos e reinemos e de Santa Maria de Alco-
baça e de todos os santos de Deus damos e concedemos para posse perpétua o paul da Ota des-

81
de aquele lugar por onde costumava correr o rio de Alenquer até ao porto de Saicera assim co-
mo é dividido por aqueles canaviais que por ordem nosso Mestre D. Gualdin e Paio Dadi en-
tão pretor de Santarém e Egas Pais e João Carapezas então pretor em Leiria e Fernando Bispo
e Mendo Dareposte e Gonçalo Gonçalves e Soeiro Ribeiro e o monge Soeiro com o nosso por-
teiro mestre Pedro ergueram dos dois lados, a vós D. Martinho abade de Alcobaça e ao prior
do mesmo lugar irmão Martinho e aos pobres de Cristo que vivem no mesmo lugar sob a re-
gra da religião para que misericordiosamente nos considere seus herdeiros Quem considera da-
do a Si o que é dado aos seus pobres.
Portanto com pura devoção se conclui para sempre e em qualquer lugar o supracitado
couto e assinamos abaixo para que se faça a nossa róbora e obtenham perpetuamente o que fi-
zemos piedosamente no presente escrito e confirmamos pelo testemunho.
Proibimos ainda que alguém por ousadia temerária se atreva a atravessar o couto por
nós assinalado para dali subtrair violentamente alguma coisa ou tente fazer dentro alguma coi-
sa contra a vontade dos pobres de Cristo aos quais é atribuída a herança nomeada.
Porém se alguém transgredir o mandato régio dará 500 soldos pela violação do couto e
o dano que fizer reparará duplamente.
Se alguém todavia entre os nossos sucessores se esforçar por engrandecer o que foi feito
por nós e mantiver a herança distribuída pelos pobres de Cristo seja iluminado com as bênçãos
do alto para que veja o que os seus olhos desejarem e não seja privado dos bons desejos.
Se todavia tentar fazer alguma coisa em contrário incorra na maldição de Deus e na nos-
sa e seja seu sucessor aquele que o derrube e que praticar algum bem.
Feita a carta de doação e couto no mês de Março. Era 1227.
Eu rei D. Sancho com minha esposa e meus filhos e filhas acima nomeados a vós D.
Martinho abade de Alcobaça e ao prior D. Martinho e a vossos irmãos presentes e futuros ro-
boro e confirmo.»
Assinam, dezassete testemunhas, «Julião chanceler lavrou», o Rei, a Rainha, e a restan-
te Família Real.

Desenvolvimento regional

Do governo de D. Sancho I consta um dos mais significativos actos políticos que define
a prática de decisões voltadas para o desenvolvimento das regiões fronteiriças do interior. Tra-
ta-se da fundação da Cidade da Guarda, «a mais alta da Europa», que passou a constituir sóli-
do baluarte na defesa contra as pretenções de Castela. Todavia, o desenvolvimento teria de en-
frentar as dificuldades do clima e do isolamento, de tal modo que durante muito tempo os Bis-
pos não haveriam de gostar de viver tão alto.
Assim, na vizinhança do mundo Islâmico ameaçador que, no território hoje português
do Sul, nesta altura se encontrava destroçado pelas entradas dos Cristãos até ao Algarve, e de
Castela que periodicamente impunha a guerra por força de ambições imperiais, D. Sancho 1
organizou o País que, segundo o sentimento popular, somente na conjugação feliz de factos
milagrosos, encontrava explicação bastante. Deve, neste passo, registar-se o comentário de J.
Lúcio de Azevedo: «De feito, aquém da zona costeira, onde imperava o comércio, de lavrado-

82
res se compunha o trama social. Lavradores activos, que com o suor fecundavam as glebas; la-
vradores por substituição, que em rendas e foros, daquele mesmo suor alimentavam os ócios
e a vida fragueira. Na cúpula do organismo o soberano, que possuía mais terras, mais gados,
mais foros, mais rendas, ocasionadas pelos forais, que Sancho 1, o Povoador, grande fundador
de vilas, poude acumular as riquezas em numerário e metais preciosos, mencionadas no seu
testamento». E, mais adiante, refere; «O tesouro de D. Sancho I encontrava-se, ao uso da épo-
ca, espalhado por lugares que proporcionavam segurança mais perfeita; em Coimbra, nas tor-
res e mosteiro de Santa Cruz, no convento de Alcobaça; à guarda dos freires do Templo em
Tomar, e à defesa dos do Hospital em Belver».

O Tesouro de D. Sancho I e a essência do País

No entanto, se o Tesouro do testamento de D. Sancho I se revela importante, o mesmo


Autor citado descreve:
«a quantidade de animais silvestres, cuja abundância tinha parte notável na vida eco-
nómica da nação. Para ser tão copiosa a presa venatória, forçosamente haveria em muitos sí-
tios as matas e charnecas onde ela se abrigava e reproduzia. Sem falar dos ursos e javardos,
caça régia, e dos lobos, que as leis mandavam destruir, a lei cita o zevro (que julgamos ser
um equídeo há muito extinto), o gamo, o cervo, o corço; e os pequenos habitantes da selva,
a lebre, o gato montês, a fuinha, a lontra. As peles, usadas no vestuário, e também expedi-
das para fora do reino, todas têm seu preço, não esquecidas as do coelho e do gato domés-
tico».
Depois de descrever outros aspectos da economia da época, o Autor conclui:
«Tal era. em esboço, a condição geral do país no interior. À beira do mar, extensa cos-
ta, proporcionando à vista largos horizontes, desvendava-os, ainda mais vastos, a imaginação.
Ali não se deparavam a empatar o caminhante os matagais ínvios, os íngremes cerros, os rios
sem ponte, os ladrões do ermo, e a cada passo as peagens, quando não as exacções do fidalgo
salteador. Para qualquer se lançar à estrada pelo mundo fora requeria-se alguma indústria, e
certa soma de audácia. Nenhum dos requisitos faltava à gente do País».

A montaria...

Não poderia ter sido outro senão D. Sancho I, o Povoador, Rei Poeta dos «cantares de
amigo» que, em certa madrugada, transpôs, com luzida comitiva de caçadores, a porta de Mar-
fim Moniz do Castelo mouro de Lisboa. El-Rei ia, com os monteiros armados de ascumas e
embalado com os latidos dos sabujos do Soajo, de montaria a recrear-se na Serra de Monsan-
to. Depois de vencidos com dificuldade os pauis onde se encontra o Rossio, ao aproximar-se
das brenhas que cobriam o vale que abriu caminho à Avenida da Liberdade, justamente no lo-
cal onde se ergue o monumento dos Restauradores, surgiu-lhe, inopinadamente, um corpulen-
to urso, a barrar-lhe o passo. D. Sancho prostrou-o de uma só lançada. Tal era a ruralidade do
sítio que foi «passeio público» e hoje se encontra ultrapassado pela expansão urbana que vai
muito longe.

83
As estruturas agrárias camponesas

As desigualdades dos berços e os votos religiosos, faziam com que emergissem duas
classes sociais que se tornavam efectivamente poderosas: a Nobreza e o Clero. Qualquer de-
las se mantinham detentoras do Poder que dificilmente se deslindava quanto era dependente
do domínio económico, ou considerado de emanação divina, sendo, sem dúvida, político e so-
cial. O Rei possuía o domínio natural, concedendo regalias e isenções que chegavam a repre-
sentar verdadeiras imunidades perante as próprias prerrogativas régias. Tanto a Nobreza como
o Clero mantinham o Senhorio de Terras, cobrando dos Povos tributos e serviços. Também os
donatários administravam a Justiça. O Clero governava o foro eclesiástico, com independência
quanto a factos e espaços mais do que essenciais.
No mais alto grau da hierarquia social figuravam os Rico-Homens, os Bispos, e os Aba-
des, detentores de vastos privilégios e da chefia militar que assegurava, na guerra, o recruta-
mento de homens armados. Da classe popular destacavam-se os cavaleiros-vilãos, que se apre-
sentavam ao serviço militar a cavalo, quando dispunham de bens suficientes para manterem os
cavalos e as armas respectivas. Quando os bens não eram bastantes o soldado apresentava-se
a pé, como peão.
No período medieval não foi implantada no território qualquer estrutura de exploração
agrícola baseada em grandes unidades de produção. Nem mesmo o Rei, que era o maior dos
proprietários, mantinha vastíssimos reguengos, mas não implantava explorações latifundiárias,
cedendo o seu uso mediante diferentes formas contratuais. No entanto, os agricultores maiores,
quando lhes escasseavam os escravos, não deixavam de recorrer a assalariados, cabaneiros e
assoldados por compulsão. A escravatura começava a perder a importância que tivera em tem-
pos anteriores, embora se mantivessem escravos mouros cativos na guerra e nas fossadas. Em
seu lugar nascia servidão, segundo a qual os Camponeses eram peões cavadores que pagavam
jugada, pelas juntas de bois que possuíam, peões precários que arrendavam terras a curto pra-
zo, herdadores, posseiros, foreiros que dispunham de vínculos em relação à terra, formando,
com os artesãos e mercadores os estratos de onde eram seleccionados os homens-bons dos
Concelhos detentores de Forais.
Não se apresenta fácil imaginar o que seria o sistema estrutural desta época. Na base do
funcionamento da sociedade rural deparava-se com contractos agrários cujas garantias e de-
veres regulavam as relações económicas e sociais dos cultivadores com os Senhorios de Ter-
ras. Tratava-se de relações complexas de Moradores com Donatários, apoiadas em tradições
antigas de cobrança de tributos, de prestação de serviços, sendo os Colonos compelidos a acei-
tarem modalidades contractuais diversas que os Historiadores enquadram nos domínios do
censo reservativo, arrendamento, parceria e enfiteuse ou aforamento. O census corresponde a
denominação romana que passou ao direito visigótico, tanto podendo ser tributo que corres-
ponde a doação ou imunidade de terras mantidas em usufruto por homens livres, ou de glebas
cultivadas por servos, como a imposto devido por quem dispõe de propriedade plena.
Aos Moradores tanto seria garantido pelos Senhorios o uso da terra por «certo prazo»
limitado, com a obrigação de pagamento de renda ou de quota de parceria, podendo à renda
ou quota serem adicionadas diferentes modalidades de prestação de serviços, como ficar asse-

84
guiada, pelo emprazamento, a posse perpétua e hereditária do solo cultivado, desde que fosse
pago o foro, na enfiteuse ou aforamento. Na história rural das sociedades medievais os empra-
zamentos constituíram dispositivos que tanto oferecem o incentivo ao Povoamento, pela fixi-
dez em relação ao uso da terra, como permitiram constante e profunda intervenção senhorial
que facultou a imagem e a realidade dos múltiplos aspectos do servilismo. No entanto, a enfi-
teuse ou o aforamento pode, sem dúvida, nesta época, ser visto como a base da futura conquis-
ta das liberdades camponesas. Embora durante longos séculos tenham sido mantidas cláusulas
severas na fixação e na especificação do foro, o facto é que o sistema assegurou a perpetuidade
do uso e da disposição da terra, o que se encontra na base da formação do Campesinato.
O aforamento, ou enfiteuse, sofreu alterações e ajustamentos ao longo dos tempos, mas
o sistema constituiu notável avanço ou progresso, em relação a outras formas de contratação
que acompanharam os primeiros passos da formação das estruturas agrárias camponesas, de-
pois de ultrapassada a organização tribal.
Maria do Rosário Castiço de Campos, num estudo intitulado «Foz de Arouce no sécu-
lo XVIII — economia agrária e reconversão agrícola» sintetisa conclusões de diversos trata-
distas como Manuel Lobão, Coelho da Rocha, Almeida e Costa e outros, o que se resume da
forma que segue:
«Natureza do contracto: bilateral, pelo qual o proprietário da terra cede o domínio útil
e a posse natural, reservando para si o domínio directo e posse civil. Duração: perpétuo e fa-
teusim (em perpétuo na frase da Orden. quando o contracto é sem limitação de tempo ou de
vida). Sucessão: nos prazos de vidas a sucessão faz—se por livre nomeação, ou por nomeação
restritiva. Quem dá de aforamento: todas as pessoas que podem alienar e que tenham a proprie-
dade plena. Quem recebe: todos os que podem adquirir. Vieram a ser exceptuados, por lhes
obstar as leis de amortização, os corpos de mão morta, e pelo receio de fraude, os vereadores
e oficiais dos Municípios, administradores, mesários, procuradores e mais oficiais das Igrejas,
Misericórdias e outros estabelecimentos desta qualidade. Bens aforados: rústicos e urbanos,
onde se pode separar o domínio directo e o útil. Extinção da enfiteuse: extingue-se por todos
os meios que extinguem as obrigações.»
Quanto aos direitos dos contratantes, o resumo é o seguinte:
«Direitos do Senhorio Directo: receber o cânon, foro, pensão ou renda. Direito à lutuo-
sa e laudémio (por transmissão do domínio útil). Direito de opção (ou prelação) e direito de
consolidação. Arrecadação de várias prestações extraordinárias estipuladas no contracto, no-
meadamente, serviços pessoais, jugada, primícias, dízimos eclesiásticos. Direitos do Senhorio
útil: direito de tirar dos bens aforados todos os frutos e vantagens, ordinários e extraordinários,
fazer as alterações e mudanças que quiser e usar de acções reais e possessórias para reivindicar
ou defender os seus direitos. Direito de alienação condicionado por alguns dos direitos de en-
tidade senhorial, nomeadamente o de consolidação, opção e laudémio. Direito de subemprazar.
isto é, alienar para um terceiro o seu domínio útil. Direito de nomeação de pessoa ou pessoas
que lhe devam suceder no prazo. Direito de renovação de contracto, quando em vidas.»
Como veremos, a enfiteuse teve grande perenidade ao longo da História e mereceu a de-
fesa de ideólogos do século XIX, como Alexandre Herculano. Somente com a República veio
a sofrer a restrição de o enfiteuta ou foreiro passar a ter a faculdade de remir o foro. Depois de

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1975 a enfiteuse foi extinta, ficando proprietário pleno, o enfiteuta, livre do encargo de qual-
quer remissão. Foi, portanto, expropriado o Senhorio Directo, sem indemnização.

Terras a sanear e regar

A sul do Mondego, pela Estremadura e Ribatejo, estendiam-se as terras baixas alagadas,


impróprias para o cultivo e insalubres para o Povoamento: Soure, Cela e muitas áreas alagadi-
ças do Tejo e do Sorraia. No entanto, estas terras não deixavam de ser. tanto quanto possível,
aproveitadas, tendo D. Sancho doado várias terras da «lezíria» a povoadores de Azambuja. Por
essa altura a baixa saloia de Loures apresentaria a paisagem que depois perdurou, e que Orlan-
do Ribeiro viu e sugestivamente descreveu: «crivada de poços, onde as cegonhas lembravam
a mastreação sem velas de uma enorme frota de pesca».
A regulamentação do uso da água era preocupação constante servindo de exemplo os
«costumes e foros de Castelo Rodrigo» de 1209: «toda a fonte que nasce entre quadrelas, e
fore fonte de regar, como parten la heredat partan la agua. E em qual heredat nascire esse tome
primeyro. E assi per orden e II dias ande fora e el quarto dia torne a la heredat hu nasce».
Quanto ao uso de águas públicas a prioridade parecia ser dada à regra, ficando outros usos su-
bordinados. D. Sancho ordenou nos «costumes e foros de Alfaiates», 1188-1230, que «los mo-
finos nec acenias non tollant aquas ad ortos nec ad finares».
Foram numerosos os colonos estrangeiros atraídos à obra do Povoamento, em Sesim-
bra, entre o Tejo e o Ervedal. na Azambuja. Para a defesa do território as Ordens Militares dos
Hospitaláros e dos Templários receberam vastíssimas terras onde foi construído o Castelo de
Belver. A Ordem de Calatrava recebeu os Castelos de Alcanede e Alpedriz e a de Sant'lago da
Espada os Castelos de Alcácer, Palmela, Almada e Arruda. No entanto a actividade bélica dos
Mouros tornava incerta a posse de Castelos, especialmente os do Sul.
Foram duríssimos os conflitos com os Bispos feudais que ameaçaram sempre com a ar-
ma da excomunhão, sendo o Rei apoiado pelo Povo, especialmente no Porto.

Cantares de amigo

D. Sancho I, protector do Povoamento, deixou na História de Portugal a tradição de ter


impulsionado a ida de estudantes ao estrangeiro e a lenda do gosto pela Poesia. No termo da
sua vida ficou célebre a paixão por Maria Paes Ribeiro, a «Ribeirinha», que o Rei conquistou,
à maneira medieval, eliminando tudo quanto se opunha a tão desesperado amor.
O pai da Ribeirinha, Rui Martins de Oliveira, era um dos Barões limianos e tinha seu
Paço na Freguesia de Oliveira situada junto ao Lima. Por isso, quando D. Sancho resolveu visi-
tar as mais agrestes fronteiras do território, acompanhando, à vista, a construção da Cidade da
Guarda que fundou, escondeu a cobiçada Maria Paes Ribeiro no seu recôndito Paço de Giela,
situado em Terras do Vale do Vez, muito próximo do Paço «condal» de Oliveira.
Ao partir, na hora da despedida, ainda ouviu a Ribeirinha entoar o cantar de amigo que
lhe ensinara a dizer de cor. porque Maria Paes, sendo bela e nobre era, ao jeito da época, anal-
fabeta:

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«Ay eu coitada como vivo
Em gran cuidado por meu amigo
Que ei alongado»...

Mas o tropel dos cavalos do séquito, no páteo lageado do Paço de Giela, abafou o mais
sentido dos versos do cantar que D. Sancho legou à História como expressão de tão desmedi-
do amor:

«muito me tarda
o meu amigo na Guarda/»

Quando D. Sancho transpunha, a vau, as águas do Rio Vez, os Camponeses, nas glebas
onde serviam junto ao Paço, parte integrante da paisagem minhota, fabulosa recordaram lendas
que nessa altura eram histórias de Mouras, das quais os Cavaleiros Cristãos se enamoraram,
ferindo este belo evento senhorial da presença do Rei apaixonado, segredavam a maliciosa
suspeita de que o cantar de amigo de D. Sancho não seria depois nunca mais ali cantado. Sabe-
mos que não andam por lá os ecos da voz da Ribeirinha, que depois se revelou a pérfida. Ape-
nas animam as redondezas os fantasmas de Mouras encantadas, conservando, no recorte de ve-
lhas pedras agredidas, memória do que pode ser visto com o impulso inventivo do sentimento.

Os abusos nas concessões régias

D. Afonso II, que sucedeu no trono, exerceu o papel de firme coordenador de Leis anti-
gas que, por não se encontrarem codificadas, muito dificultavam a administração das justiças.
Para alcançar a indispensável moderação das apropriações abusivas de terras, ordenou Inquiri-
ções Gerais para averiguar a realidade dos factos e fundamentar as Confirmações que manti-
nham direitos dominais legitimados.
O reinado de D. Afonso II não foi longo mas obrigou a sustentar a guerra com os Islâ-
micos e a enviar tropas em socorro dos Reinos Cristãos ameaçados pelo Emir Anaci que, de
Marrocos, passara à Espanha. A batalha de Navas de Tolosa, vitoriosa para os Cristãos, afas-
tou o perigo e, entretanto, D. Afonso II, com o auxílio de Cruzados, reconquistou Alcácer do
Sal. Participaram no feito as Ordens Militares dos Templários, do Hospital e de SantTago que,
assim, abriram caminho, de novo, rumo ao Sul.
D. Afonso II, de um modo prematuro, morreu leproso como qualquer rústico medieval.
Pior ainda, as suas Inquirições haviam gerado conflito com D. Estêvão Soares da Silva, sem
remédio. O poderoso aristocrata e Arcebispo de Braga, vendo suas coutadas e honras saquea-
das por ordem do Rei, brandiu a arma da excomunhão que mergulhou o agonizante no mais
doloroso dos arrependimentos. Valeram os caridosos Monges de Alcobaça que abençoaram o
passamento do desgraçado Rei. Ficaram dois filhos, o mais velho, ainda menino, D. Sancho
que, depois de regência, herdaria o Trono, e D. Afonso que foi viver em França onde foi feito
Conde de Bolonha, acabando por vir a ser o Rei D. Afonso III.
Os dois irmãos enfrentaram um período particularmente complexo da administração do
jovem País que Portugal era ainda, ou, mais especialmente, de dificuldades da delimitação das

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fronteiras durante a conquista do Sul. D. Sancho II empenhou-se nas tarefas do Povoamento,
concedendo numerosos forais a novas terras. Intensificou as campanhas militares alargando a
ocupação cristã até ao Algarve, de uma forma definitiva, pouco restando do Reino algarvio pa-
ra submeter. As Ordens Militares suportaram as estratégias da guerra e receberam o domínio
de vastíssimos territórios alentejanos, onde a influência Islâmica passou a ser efectivamente
neutralizada. A queda do Reino do Algarve no reinado de D. Afonso III constituiu evento pre-
parado por D. Sancho II de forma irreversível. O que mais se opunha à integração do Reino
do Algarve no Reino de Portugal, já não era a força dos Maometanos, mas a cobiça de Castela.

Com o Rei na guerra os rurais viviam no terror

Duros tempos seriam estes, quando não havia Código que não fosse o do Costume ou a
decisão do Rei ou do Senhor. A pairar sobre os problemas pequeninos, mandava a Honra da
Cavalaria ou da fidelidade da palavra dada como vassalagem pelos Alcaides dos Castelos.
Longe das muralhas e da frente de batalha, os roubos e homicídios eram constantes, sem haver
temor das justiças que não eram mais do que tardias e arbitrárias. Reinava o terror e a prepo-
tência. Talvez por isso D. Sancho caiu em desgraça. «No seu reino, os bens tanto eclesiásticos
como de leigos, por fraqueza da justiça popular, são roubados à vista de toda a gente por la-
drões, espoliadores, usurpadores, incendiários, profanadores públicos e abomináveis homici-
das de padres, como superiores de conventos e outros religiosos, clérigos e seculares e até lei-
gos». Assim bradava o Clero Feudal, com voz de trovão, que chegou a Roma. E o Papa deci-
diu que o País aclamasse Rei o Conde de Bolonha, D. Afonso III. D. Sancho II, que tanto dila-
tara o Reino, não teve em conta o Poder dos «Senhores da terra conquistada, senhores de ho-
mens submetidos, de homens menos classificados do que animais, e para quem a resistência
aos senhores não era só pomo proibido, senão desconhecido, em breve se manifestam os abu-
sos e as violências de que o medievalismo é uma larga tela. A vida do colono não tinha valor;
e, se a poupavam, não era por caridade ou humanitarismo: era por interesse directo, por serem
poucos os braços e porque faziam falta para os amanhos da gleba». O Clero Feudal alcançou
a excomunhão de El-Rei D. Sancho li que escolheu o exílio, em Toledo, onde morreu confor-
mado. Durante algum tempo não foi fácil que os Alcaides dos Castelos reajustassem os jura-
mentos de fidelidade, no que alguns não transigiram, vindo um deles depor a chave na mão ge-
lada do cadáver. Nunca foi possível trazer o túmulo de D. Sancho para Alcobaça. Seus restos
repousam na Catedral de Toledo, junto de muitos outros ossos visigóticos, ou suevos, sem es-
quecer os ibéricos, lusitanos ou galaicos.

Talvez, o primeiro passo da Democracia

D. Afonso III representou, sem dúvida, no território, novo impulso da influência euro-
peia, em toda a sua pujança feudal. Logo de início completou a conquista do Reino do Algarve,
o que levantou problemas com Castela. Tudo ficou sanado com um nebuloso contrato de casa-
mento com D. Beatriz, que obrigou o Rei a sofrer as penas da excomunhão. Caracteriza o seu
reinado o esforço para defender o património régio contra os abusos senhoriais, tanto dos no-

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bres como do clero. As inquirições de 1258 permitiram ordenar as confirmações régias que es-
clareceram. tanto quanto possível, os problemas da repartição das terras em reguengos, foros,
honras, coutos e herdades. O Rei restaurou numerosas povoações e concedeu muitos forais.
Em 1267 convocou as Cortes em Leiria que, pela primeira vez, registaram a presença de repre-
sentantes dos Concelhos ficando aberta aos Municípios «as portas das assembleias políticas do
País».

Os Coutos de Alcobaça

No dizer de M. Vieira Natividade


«Couto se chamava as terras ou propriedades que, pertencendo a particulares, nobres ou
eclesiásticos, se achavam vedadas às justiças reais, ou onde estas não tinham inteira acção, ou
ainda o território sujeito a uma jurisdição particular, concedida pelo rei a qualquer donatário
ou senhorio. Couto, marco do couto ou lugar do couto se chamava também um poste, porta ou
lugar estipulado, onde qualquer criminoso ficava fora da acção da justiça. Todos os casos exis-
tiam em Alcobaça. O marco do couto colocava-se de preferência, ou nas fronteiras do País, ou
no limite das terras, isto é, nos lugares onde especialmente se pretendia aumentar a população,
porque, muitas vezes, para junto do criminoso, deste modo defendido da acção da justiça, vi-
nham em breve os mais próximos elementos da família, e assim se constituíam pequenos nú-
cleos que, em geral, se conservavam. O marco do couto defendia de tanto maior número de
crimes quanto mais necessária e urgente se tornava a povoação de um lugar. Alcançado o seu
fim, era mudado para outro local».
Mesmo assim o povoamento dos coutos de Alcobaça nesta altura não progredia:
«o minguado capital demográfico não aumentava, e os monges, ou levados pela neces-
sidade ou por estrita obediência aos cânones da Ordem, entregavam-se ao trabalho agrícola di-
recto ou pessoal. Apascentavam os rebanhos, cavam as terras, tecem os linhos e as lãs para
conforto corporal, trabalhariam nas ferrarias e olarias, confundir-se-iam, enfim, com o mais
modesto dos seus colonos ou escravos. Como valiosa iniciativa, criam-se as Granjas em terre-
nos que se transformaram nas mais ricas e modelares quintas, e onde monges, noviços e lei-
gos desenvolviam toda a sua actividade, e davam exemplo de santo amor ao trabalho. A Gran-
ja era uma escola geral de todas as actividades agrícolas e de todas as indústrias anexas. Mer-
cê desse esforço admirável, de uma vida dura e austera partilhada entre o trabalho e a oração,
foi possível erguer, apesar de todos os obstáculos, os alicerces da futura prosperidade».

Não só o «couto» era a esperança, mas também o «fogo morto»

Mas não era somente o Couto a esperança dos perseguidos ou abandonados, que procu-
ravam salvatério nos sítios ermos. A propriedade, como instituição de função social, tinha tam-
bém génese diferente do favor do Rei ou do Senhor Feudal. Surgia, por vezes, como processo
natural de encontrar amarra para o destino incerto. Alberto Sampaio refere a tradição do fogo
morto:
«num sítio despovoado e solto, a família foragida, trazendo consigo os utensílios do-

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mésticos de primeira necessidade, e um cão. um galo e uma galinha, tem de levantar numa noi-
te uma barraca de tábuas, de palha ou de ramos. Pela manhã tudo deve estar feito: o lume ace-
so, a farinha amassada, pronto a ser cozida, e o terreno em volta da casa demarcado com um
rego. Se a obra for a cabo sem oposição, a posse está tomada».

A instalação da Corte em Lisboa

Pouco tempo decorrera sobre a conquista do Reino do Algarve, quando D. Alonso 111
decidiu transferir a Corte para Lisboa, deixando Coimbra que seria terra do seu nascimento. D.
Afonso Henriques passara de Guimarães a Coimbra onde se instalara para expansão do terri-
tório. Com a decisão de D. Afonso III ficava alargada mais para o Sul a ocupação efectiva do
espaço ibérico, antes dominado pelos Islâmicos durante longos séculos. Nessa altura Lisboa
era Cristã há pouco mais de cem anos, mantendo-se Moçárabe. com sua mouraria urbana den-
samente habitada e solidíssimos arredores rurais saloios, depois de ter sido Árabe durante qua-
tro séculos e meio e, antes, três séculos Sueva e Visigótica, sobre seis séculos de domínio Ro-
mano: Felicitas Julia Olissipo.
Aconteceu que, pouco depois, veio da Cidade «industrial» e universitária de Cahors, on-
de o «Bolonhês» provavelmente passara nas suas digressões pela Europa antes de ser Rei, o
Sacerdote Aymeric d'Ebrard, a facultar ao jovem Príncipe D. Dinis, no Paço. o mais esmerado
conhecimento científico da época. Das suas Lições proferidas junto às sacadas dos austeros sa-
lões medievais ou nos jardins, onde talvez os buxos moldassem «arabescos» com o feitio das
naus, resultou, quando D. Dinis se encontrou Rei, o desenvolvimento da Agricultura, de indús-
trias como a da Construção Naval, e a instituição dos Estudos Gerais que os Arcebispos de
Braga não tiveram a inspiração de. antes, promover, como obrigação ou devoção episcopal que
ficou esquecida ou foi recusada.

Firme e esclarecida gestão pública

Ao contrário do que se poderia supor, na Idade Média as actividades económicas encon-


travam-se estreitamente condicionadas. Serve de exemplo a Lei de 25 de Dezembro de 1252,
segundo a qual D. Afonso III fixa o preço de géneros e de salários na Província do Minho. A
relação é extremamente copiosa e pormenorizada:
«et melior boos valeat tres morabitinos veteros; et vaca pregnans, vel parida, valeat du-
os morabitinos veteros; et alea vaca valeat unum morabitinum veterem; et quatuor carnarii vivi
valeant unum morabitinum vetus; et quatuor oves paridas valeant unum morabitinum vetus; et
tres capri masculii vivi valeant unum morabitinum vetus...» e assim por diante a relação dos
«porcus, zevros (que julgamos ser um equino selvagem extinto), gamus, cervus, corzos» e, em
seguida, os «corium, e pellis». Não escapam as «pellis de gato de casa», todavia mais baratas
do que as «pellis de gato montes». Segue-se longa relação de tecidos importados de diversíssi-
mas origens, como «Brugiis, Normandia. Roan, Chartes. Rocete, Caan, Tornay, Londres». Da
mesma forma se fixava o preço de «meliores armas valeant quindecim libras, seilicet, scutus,
et sella, canelladus de auro. cum guarnimento de coriis vermeliis, et de scalata nova, et cum

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capelo pintato»... e também da «melior albarda de azino valeat quinque solidos».

Os Mouros Forros de Évora

Em 1273, D. Afonso III assinou o Foral dos Mouros Forros de Évora, ordenando: «que
nem os cristãos nem os judeus tenham poder de vos fazer mal». No entanto, a protecção, com
certeza necessária e útil, não deixava de ter seu preço: «Que nos pagueis em cada ano um mo-
rabitino por cada cabeça dos vossos», e, ainda, «preparai as minhas vinhas e vendei os meus
figos e o meu azeite», e «pagai- -me os outros foros e usos e costumes como me pagam e paga-
ram os mouros forros de Lisboa».

As Finanças régias

Para melhor entender o ambiente económico do País no período medieval importa ter
em conta o indicador das finanças régias, que outras não existiam de carácter público. Por is-
so, Lúcio de Azevedo se deteve analisando:
«no que toca às finanças régias, além dos testamentos, raras são as notícias que se nos
conservaram; mas desse pouco, e de um modo geral, resulta a impressão nítida de que não po-
diam ser insignificantes as receitas da coroa. Lucros da grande casa agrícola, tributos, multas
judiciárias, pedidos aos povos, empréstimos forçados, exacções, de que cada um dos monar-
cas, na hora dos arrependimentos, se confessava delinquente, tudo isso devia elevar-se a so-
mas quantiosas. Nem de outro modo era possível o soberano acudir aos gastos enormes do seu
trato pessoal, e aos das empresas bélicas, das fundações piedosas, dos subsídios à casta mili-
tar, cujos membros venciam soldos desde a hora em que nasciam».

Os Forais

Foram passadas Cartas de Foral que retalhavam e distribuíam o território por inúmeros
Concelhos e Senhorios. No seu estudo sobre os Coutos de Alcobaça, M. Vieira Natividade atri-
buiu aos Forais origem visigótica, constituindo a Lei, umas vezes escrita, e outras vezes, repre-
sentada por costumes que regulavam direitos e deveres e continham «a própria determinação
da lei penal».
Os Forais eram concedidos «pelos reis a cada uma das suas terras, e igual direito assis-
tia aos fidalgos e ao clero que possuíam territórios dados por munificiência régia». O Autor re-
ferido esclarece: «da máxima simplicidade na sua origem desdobram-se depois segundo os ca-
prichos, as intenções e a moralidade dos senhores, e muitas vezes patenteiam-se notas do mais
bárbaro e cruel feudalismo. Outras vezes surgem cheios de simplicidade, como singelos códi-
gos do mais amigável convívio».
Fica assinalada a atitude do Conde D. Henrique que contemplou, com larga generosi-
dade Cavaleiros «vindos das mais diversas procedências», europeizando o Condado. Seguiu-
-se D. Afonso Henriques que repartiu a presúria por Mosteiros, Cruzados e companheiros de
Armas. Mas o Autor elabora uma espécie de conclusão terrível, que desenha, com particular

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realismo, a condição social em que o Povo se encontrava nestes dolorosos tempos de perma-
nente guerra: «era um povo escravizado, submetido, sem força e sem conhecimentos de reac-
ções; eram escravos que viam em cada senhor um semi-deus, grande, intangível, invulnerável,
e cuja suprema vontade tinha de ser satisfeita». E, por fim, «ameaçavam-se os desobedientes
com as penas do inferno, da excomunhão, da eterna maldição. O clero e a nobreza, de mãos
dadas, trabalhavam para a sua própria grandeza».

Ainda os Monges Agrónomos de Alcobaça

Julgamos ser por esta via que se poderá surpreender o carácter específico da experiência
agrária do povoamento dos Coutos de Alcobaça.
O termo da guerra contra os Maometanos, em Portugal, conduziu a «um relativo sosse-
go que obrigou a pensar seriamente no progresso do País». M. Vieira Natividade desenvolve
a sua análise, que seria pecado resumir, só valendo a transcrição:
«Alcobaça não podia deixar de sentir a benéfica influência desse movimento que vinha
alterar a vida monástica e as condições económicas da Abadia. O monge trabalhara sempre, e
sempre lutara com falta de colonos. Agora que os braços válidos abandonavam as armas de
guerra, surgia uma nova época de desenvolvimento agrícola e de fecundo labor.
Num abençoado entusiasmo alargam-se as zonas já povoadas e l undam-se novas colónias
em lugares até aí desertos. Mercê das regalias e isenções dos primitivos forais e dos privilégios
de muito valor dados pelos monarcas, os colonos preferiram o Mosteiro a outro qualquer senhor.
Esta transformação opera-se em Alcobaça num período muito rápido. Vencidas as difi-
culdades iniciais, vivem o monge e o colono na doce placidez do trabalho, num auxílio mútuo,
exemplar e feliz.
Multiplicam-se os rebanhos, largos olivais elevam a sua copa arredondada, soutos den-
sos e aprumados vestem as encostas menos produtivas. Crescem as vinhas em abundância pe-
las encostas; e as louras searas, como manchas de oiro, quebram alegremente a densa verdura
da floresta e dos olivais e soutos cultivados. Surge, dispersa, a alegria dos casais, como peque-
nas fontes de vida, e esses casais cedo dariam origem às mais pitorescas povoações.
Elementos de diversas raças e procedências vinham trazendo aptidões e conhecimentos
herdados, e iam lançando, embora na humildade dos seus recursos, as bases de uma vida nova.
O monge, trabalhador e bom, colaborava nessa tarefa. O labor comum e abençoado ia
produzindo o bem-estar do colono e a riqueza do Mosteiro. A Granja era o poderoso auxiliar;
e o colono tinha ali à sua disposição todo o material para instrumentos agrícolas, e as próprias
sementes em anos de escassa colheita. Anexa à Granja, estava a Ferraria onde poderia ir bus-
car os utensílios de ferro indispensáveis ao seu trabalho.
Neste período de limitadas necessidades, mas também de limitadíssimos recursos, o
monge punha à disposição do colono que chegava tudo o que era indispensável à sua instala-
ção e tudo o que era preciso para o seu trabalho. Depois, marcava-lhe os terrenos segundo o
regulamento da sesmaria, terrenos que o colono só poderia legar ou alienar depois de passados
os anos estipulados pelo foral.
Abundantes colheitas, obtidas em terrenos férteis que a insistência e boa vontade des-

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bravara, terrenos em que as mãos do homem ainda não tinham tocado, coroavam triunfalmente
os prévios e árduos trabalhos.
Perante a bondade de tão raro senhor, chegam de longe numerosos colonos e talvez fa-
mílias completas. Esta fase, que pertence ao século XIV, é, certamente, a mais fecunda e a mais
brilhante da história do Mosteiro.
Definem-se então, e com exclusão nos forais, as quintas e especiais propriedades que os
monges reservam para si. Iniciam a concessão de prazos particulares a pessoas reais ou nobres,
que por sua vez foram novos elementos de progresso agrícola. Nestes prazos se instituíram
quintas, algumas de recreio, e aí se faria, por certo, a mais variada cultura.
Por seu lado. os monges, nas propriedades que reservavam para especial exploração, fo-
ram estudando e resolvendo os mais delicados problemas de economia rural, introduziram es-
pécies florestais, cerealíferas e frutíferas, foram vagorosa e seguramente seleccionando e acu-
mulando os melhores factores da sua prosperidade futura.
Período feliz e raro foi esse em que o clero se viu abraçado ao povo perante o sacrossan-
to altar do trabalho.»
A longa transcrição do relato que supomos fidelíssimo, esclarece a forma como foi im-
plantada no Centro do País, uma das mais sólidas e duradouras das estruturas agrárias cam-
ponesas. Tais estruturas haviam de suportar, em períodos difíceis, penosas violências que, no
entanto, não abalaram a solidez dos alicerces.

Os almocreves e as feiras

O transporte de mercadorias constitui actividade essencial para estabelecer o pulsar da


vida económica por meio da troca. Tal actividade dificilmente pode ser executada tanto pelos
vendedores como pelos compradores, pelo que a especialização no transporte se revela im-
portante para garantir o trabalho de mercadores situados nos pontos-chave da circulação e do
comércio, terrestre e marítimo. Os forais do Conde D. Henrique serão os primeiros que re-
conhecem os almocreves como profissionais dos transportes com «bestas de carga», ao lado
dos caminheiros que levavam novas e recados, dos carreteiros, que faziam transporte com car-
ros e dos barqueiros que se ocupavam da navegação fluvial e da travessia dos rios. A partir
desta referência, os profissionais dos transportes crescem em número e beneficiam de protec-
ção especial que procura defendê-los contra o banditismo, ou o abuso de donatários das terras
por onde estavam obrigados a transitar.
As feiras, no sentido técnico, constituem o local especificamente destinado a estabele-
cer o encontro de compradores com vendedores, perante a exposição das mercadorias. Tanto
vigorava na feira o escambo, como a troca monetária. No local da feira «existia uma paz espe-
cial, a paz da feira, que proibia toda a disputa ou vingança, ou todo o acto de hostilidade, sob
penas severas em caso de transgressão». Refere o «Dicionário da História» que a primeira re-
ferência a feiras se encontra no foral de Castelo Mendo de 1229, sendo muito antiga a feira de
Ponte de Lima. Até ao reinado de D. Afonso III «define-se a protecção jurídica aos feirantes,
a pouco e pouco surge a isenção de penhora e aumenta a composição do couto régio». Depois
deste reinado, as feiras multiplicam-se aceleradamente.

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10 _ o APOGEU DA MONARQUIA AGRÁRIA:
D. DINIS, O LAVRADOR

A herança recebida por D. Dinis, quanto à modernização administrativa, como legado


do Bolonhês, representa facto que se afigura importante devendo, talvez, ficar relacionado
com a cultura adquirida por D. Afonso III na sua permanência em França, e com a trégua da
guerra com os Islâmicos em território português. No entanto, o poder feudal, embora atenua-
do em Portugal, como é costume admitir quando confrontado, na mesma época, com situações
típicas da Europa, não deixou de criar dificuldades ao Rei e aos Povos que sofriam violências
e abusos. Foi assim que o direito de sucessão de D. Dinis chegou a ser contestado por seu ir-
mão segundo, Afonso, pelo facto de o primogénito ter nascido quando D. Afonso III se encon-
trava excomungado. Tal argumento chegou a justificar movimentações de tropas feudais nos
campos de batalha. Mais tarde, D. Dinis que, no dizer do Povo, «fez tudo quanto quiz», havia
também de ser contestado por seu filho Afonso, à frente de exército feudal que, em Alvalade,
a Rainha Santa Isabel aquietou, interpondo-se, «montada num jumento», entre as hostes do Pai
e do Filho, dispostas a tudo.

A Rainha Santa

A D. Dinis coube, como Rainha, Isabel de Aragão que foi canonizada e marcou, na His-
tória de Portugal, um dos mais belos traços da aliança que raras vezes se formou, entre a Coroa
e o sentimento popular de respeito e de ternura. A presença da Rainha Santa foi constante e
sempre generosa, junto da pobreza e nos momentos políticos em que a violência guerreira pa-
recia inevitável.

O «que os Fidalgos fazião como nom deviam»

Se atentarmos no significado da atitude de D. Dinis perante a forma como o território


era objecto de actividade agrícola ou motivo de simples domínio senhorial que elegia a popula-
ção como comunidade de meros pagadores de tributos, alguma novidade se poderá descorti-
nar no esforço administrativo do Poder Real que procurou exercer. As Inquirições e Confirma-
ções que se revelaram armas de relativa eficácia, manobradas por D. Afonso II e D. Afonso III,
D. Dinis também as usou, para conter as ambições feudais. Afigura-se indiscutível que, em re-
lação ao domínio e posse da terra e servos adscritos, dois movimentos se acentuavam com par-
ticular insistência. O primeiro correspondia ao abuso quanto à delimitação territorial de doa-
ções régias mal demarcadas e nem sempre fundamentadas em título de valor, o que constituía
objecto de Inquirições que tanto visavam a Nobreza como o Clero feudal. O segundo respei-
tava à acumulação de bens fundiários na posse de comunidades religiosas, consideradas «de
mão morta», ou mesmo de Clérigos que aumentavam o seu património por meio de aquisições
a vários títulos, o que não estaria de acordo com o exercício da missão apostólica. Seria neste

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terreno que o Rei experimentava a sua força moralizadora, por um lado, e fomentadora do Po-
der do Estado, por outro. Assim, as cartas régias regulavam «as compras de bens de raiz», a
«inquisiçom per razom das honras, e coutos, que os Fidalgos fazião como nom deviam», as
cartas «sobre os reguengos d'El-Rei», por exemplo.
Efectivamente, em relatos de Historiadores como L. A. Rebelo da Silva, pode descorti-
nar-se o sentido reformista de D. Dinis, no que respeita à acção agrária:
«Nos sistemas de emprazamento, adoptados pelo rei em harmonia com a índole e os
usos das diversas localidades, é que nos parece descobrirmos a razão da popularidade, com que
o seu nome chegou até à nossa época. A despeito dos encargos onerosos impostos aos povoa-
dores, os quais os forçaram em muitos lugares a largar os casais por não poderem suportar o
peso das exigências, os traços gerais de economia rural lançados por D. Dinis nesses contratos
provam, que ele conhecia praticamente o modo de promover e de adiantar a cultura. No Alen-
tejo o seu plano foi estabelecer o maior número que podia de aldeias repartidas em courelas.
dando a cada morador sua courela; vedar aos poderosos o abuso de coutarem grandes tratos
ermos, e devassar-Ihes os que houvessem tomado para os distribuir cm pastos comuns aos vizi-
nhos; respeitar as herdades lavradas dos nobres, mas dividir tudo o que nelas se achasse incul-
to e entregá-lo a quem o quisesse desfrutar; demarcar a cada senhorio a porção de terra neces-
sária para a sustentação dos gados que tivesse, ou precisasse de ter, ordenando que se lhe ti-
rasse no seu caso de não agricultar as fazendas.»
Assim, o Alentejo quase se apresenta como objecto de reforma agrária, que todavia irá
resultar frustrada por deficiências de povoamento resultantes da trágica incidência de guerras,
fomes e pestes que se aproximavam. Em referência a outros territórios, o relato é esclarecedor:
«Na província de Entre Douro e Minho, em que a tranquilidade relativa se afirmara pri-
meiro. as circunstâncias eram diversas e favoreciam muito mais a boa economia rural. Afon-
so III e D. Dinis souberam aproveitá-las, e consiste nisso o seu maior elogio.
O sistema adoptado por eles reduzia-se em seu primitivo plano a dividir-se os terrenos
em casais, distribuídos a dez, a vinte, ou a trinta povoadores, pagando de ordinário cada casal
o seu foro em cereais, galinhas e dinheiro, além das direituras, dos serviços pessoais, da luc-
tuosa e muitas vezes da colheita. A cada casal correspondiam uma porção suficiente de terra
de lavoura com maninhos para romper, baldios para pastagem, e matos para estrumes vegetais.
Todas as terras incultas revertiam para a coroa, para o concelho, ou para o senhorio, mas
como o interesse próprio animava a agricultá-las, na realidade só ficavam maninhos os terre-
nos do termo dos municípios ainda não distribuídos, ou os casais que, não podendo com os en-
cargos bastantes vezes excessivos, ou por outra causa qualquer, chegavam a despovoar-se. Es-
tes ou tornavam a ser aforados ou eram arrendados a seareiros que os faziam valer.
Na província da Estremadura concorreu mais de uma fórmula de povoação rural, mas a
predominante foi a que tomou por base o imposto predial das jugadas. Cada lavrador pagava
a contribuição territorial na proporção da superfície agricultada, isto é, segundo o número de
juntas de bois empregadas no seu granjeio. O moio de pão, medida variável de uma para ou-
tras localidades, servia de tipo à fixação do tributo. Em outras terras os cultivadores davam a
quarta, a sexta ou a oitava parte dos frutos colhidos, solvendo a contribuição de quota. Esta
fórmula produziu menos vantajoso resultado, do que a adoptada em geral nos distritos do Mi-

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nho. Obrigados a buscar os terrenos que podessem melhor com o tributo, os lavradores prefe-
riam cultivar as folhas mais produtivas e mais apropriadas às gramíneas cerealíferas, deixan-
do em maninho as de qualidade inferior. A lavoura, retalhando o solo em campos arados, e em
malhas de extensos baldios, criou assim uma povoação dispersa e disseminada por muitos lu-
gares pequenos. A outra consequência deste sistema foi a plantação dos arvoredos frutíferos
nos pontos, que não prometiam vantagens quase certas aos cereais. Por isso desde os séculos
XII e XIII, os documentos nos apontam tantos olivais entresachados com as vinhas e as terras
de pão, e tantas charnecas que nas comarcas do Norte não teriam ficado desaproveitadas.
Em Trás-os-Montes a iniciativa do rei lavrador aparece em muito maior escala, porque
lhe pertence a maior parte das fundações, que o tempo favoreceu, convertendo-as em centros
populosos e abastados. Apesar, contudo, da vizinhança da província do Minho. D. Dinis não
abraçou aqui a fórmula dos casais encabeçados. Acomodando-se aos costumes que já encon-
trou arreigados, e provavelmente desde antigas eras, seguiu plano diverso. Concedia os terre-
nos rematados, ou lotados em foros de pão, ou de moeda, a um povo, e os moradores repar-
tiam entre si os encargos, como depois se repartiu a sisa.»
Outras iniciativas foram empreendidas por D. Dinis que «por sua ordem e a expensas
do seu tesouro» entregou à direcção dos Monges de Alcobaça o enxugo, no termo de Leiria,
do Paul de Ulmar. As terras «depois de sangradas foram repartidas a colonos para as agricul-
tarem». E, ainda:
«pelos cuidados do rei se romperam igualmente os pauis de Salvaterra de Magos, de
Muge e de Valada... As ribeiras e as torrentes, que até aí, correndo entregues a si, alagavam
os campos, e encharcavam de pântanos terras feracíssimas, começaram a ser contidas com
plantações marginais de arvoredo. As águas, mais bem regidas, principiaram a enriquecer a
cultura... D. Dinis ensoberbecia-se de possuir em Beja, em Campo de Ourique e noutros luga-
res, belas manadas e numerosos rebanhos, dos quais pagava o dízimo à ordem de S. Tiago».
Também: «as leis protegiam a agricultura, defendendo com multas e severas penas a proprie-
dade rural dos roubos e incêndios e das invasões dos animais daninhos», e ainda, «no fabrico
dos campos seguiam-se em geral os métodos recomendados pela tradição dos agrónomos ro-
manos e árabes, dando às terras as lavras e adubos necessários, e introduzindo a pouco e pouco
os processos da rotação bienal. No amanho das vinhas apontam os documentos a cava, a redra,
a empa, e até a esfolha em algumas partes. No tratamento dos olivais usavam-se os alqueives
e os estrumes. As oficinas rústicas, abegoarias, currais, apriscos, celeiros, adegas e lagares, já
eram construídas com bastante largueza... As hortas e pomares ajardinados fechados de mu-
ros, ou de sebes vivas aparecem com frequência nos antigos diplomas... A criação de hortali-
ças variadas e até de algumas mimosas, e a plantação e enxertia das árvores de fruto, como
ameixieiras, pereiras, pessegueiros, damasqueiros, macieiras e ginjeiras existia a par de belos
e frondosos laranjais e limoeiros.»

«A catedral verde e sussurrante»

Eis o Pinhal do Rei, que, para além da expressão do Poeta Afonso Lopes Vieira, cons-
titui, nas palavras do Silvicultor Arala Pinto, o «maior monumento de Portugal, o monumento

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que a si mesmo se renova e alinda dia a dia, o monumento que, se já tinha dado a acha ao nos-
so homem pré-histórico e o pez ao navegador fenício, veio ainda a dar a madeira para as cara-
velas gizadas e aparelhadas para a pesca de D. Dinis e, mais do que tudo, o tabuado e os mas-
tros às naus de D. João II e de D. Manuel, que nos levaram a desvendar os mistérios do Atlânti-
co e do Indico».
Quanto à origem do Pinhal do Rei, Arala Pinto aponta que, sobre o alicerce «do pinhei-
ro manso», do medronheiro e do aderno» aconteceu que «o pinheiro bravo veio depois» insta-
lar-se. E, arrancando ao Povo a Lenda, o Autor citado diz-nos que a sementeira foi feita «com
uma arregaçada de penisco, vindo de França, e lançado à terra pela Rainha Santa». Lenda ou
não, o certo é que D. Dinis, em 1300, doou Leiria e seus termos à Rainha Santa, que mandou
erguer no alto de um monte, um Paço, em Monte Real, que dominava os campos do Ulmar e
o Pinhal do Rei, onde a Rainha passava largas temporadas.
A Rainha a tudo atendia, convivendo com o Povo, até que, um dia:
«uma embarcação portuguesa, vinda do Golfo da Gasconha, teria metido como combus-
tível as pinhas, as braças e o lenho dalguns pinheiros bravos autóctones dessa região. As pi-
nhas ter-se-iam aberto com o calor e os mareantes, habituados a comer os pinhões do nosso pi-
nheiro manso, teriam estranhado a semente muito mais pequena e com uma amêndoa insigni-
ficante para servir de alimento ao homem. Uma vez entrados no surgidouro das Paredes ou no
rio Lis contaram o sucedido à Rainha, mostrando-lhe as sementes e dizendo-lhe que os pinhei-
ros em França vegetavam igualmente em terreno arenoso e que se desenvolviam bem.
Foi então deliberado lançar a semente à terra, e a Rainha teria sido quem transportou "a
arregaçada de penisco" até qualquer clareira, e lançou aí a semente no areal.
Passaram-se meses, a sementeira vingou, mostrava-se linda e prometedora, e quando D.
Dinis voltou a aparecer em Monte Real foi-lhe a Rainha mostrar não só os trabalhos levados
a cabo no reguengo que lhe tinha dado, como a sementeira que tinha feito por suas mãos. D.
Dinis entusiasmado com o lindo desenvolvimento do nascedio, e desejoso de ter em abundân-
cia material lenhoso para a construção naval, diz aos mareantes que para a outra viagem lhe
tragam mais semente daquela.
Vindo então mais semente (penisco e não pinhão) é lançada noutras clareiras, e o povo,
sempre cheio de curiosidade e de amor à terra, passou a ir ver "O Pinhal do Rei" e o desenvol-
vimento que ia tomando. Depois, a semente alada, transportada pelo vento e levada pelo ho-
mem, foi-se espalhando por toda a costa portuguesa ao norte do Tejo, penetrou nas Beiras e
deu-se tão bem em Portugal que os botânicos consideram indígena o pinheiro bravo, quando
me parece ter sido a primeira essência exótica introduzida no país.
Esse pinheiro manso, de copa mais frondosa, mais bracejador, dando do seu corpo a qui-
lha, já com a forma própria, as curvas, enfim, todas as peças para o liame e tabuado das embar-
cações de D. Dinis e anteriores, foi sendo escorraçado a pouco e pouco do Pinhal de Leiria.
Hoje, só a lenhite e as pequenas manchas de pinheiro manso nos talhões 297-298-311
ainda poderão atestar que o Pinus Pinea também teve o seu habitat no solar hoje ocupado pe-
lo Pinus Pinaster.»
Embora o tema da introdução das plantas exóticas seja sempre controverso, afigura-se
muito provável que, por altura do reinado de D. Dinis, tivesse sido entregue à cultura, nas du-

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nas do litoral de Leiria, semente, provavelmente originária das Landes, de P. pinaster Aiton,
subespécie Atlântica (Pinus marítima) que assim teria sido introduzida em Portugal ou, pelo
menos, submetida a cuidados culturais naquelas areias. Do ponto de vista técnico e humano o
Pinhal do Rei passou a ser, e mantém a qualidade, de «monumento» florestal, que até agora
não foi sequer igualado por qualquer das florestações depois realizadas em Portugal. Afonso
Lopes Vieira chamou-lhe «catedral verde e sussurrante» mas, em sentido transcendente e his-
tórico, Fernando Pessoa deu-lhe o nome de «sementeira das naus a haver».

D. Dinis e o Mar

Contra a vontade dos concelhos rurais, ciosos da disponibilidade de trabalhadores, D.


Dinis procurou organizar a Marinha, suportando despesas com o recrutamento de marinheiros
provindos do trabalho dos campos e de técnicos estrangeiros como o genovês Pesagno. Este
adoptou o nome de Pessanha, usando o título novo de Almirante-Mor, defendendo o litoral
contra a pirataria, enquanto desenvolvia navegações de comércio.

A renovação dos castelos e as Ordens Militares

Foi notável o esforço de reparação e construção de castelos que asseguravam a defesa


das fronteiras contra Castela, desde o Minho ao Alentejo. A preocupação de segurança levou
o Rei a vigiar pelo carácter nacional da Ordem de Santiago, que tinha assento em Castela, o
que não sucedia com as do Hospital e Calatrava. A extinção, imposta do exterior quanto aos
Templários determinou a oposição de D. Dinis que alcançou a transferência para a nova Ordem
de Cristo, instalando Templários em Castro Marim, no Algarve.

Os Estudos gerais em Portugal

A mais antiga tradição de Estudos é anterior à fundação da nacionalidade e resulta de


influência Árabe. Encontra-se assinalada escola ou aulas no Mosteiro de Santa Cruz, em
Coimbra, no tempo do Conde Sesnando. Com esta base os Estudos desenvolveram-se e, de-
pois da independência, foram alargados ao Mosteiro de Alcobaça. Nestes dois Mosteiros ensi-
navam-se Artes e Ciências, como a Física, próxima da Medicina, em escolas monacais ou con-
ventuais.
Além destes Estudos ficam também referenciadas as Colegiadas ou Colégios, como a
Colegiada de Guimarães do tempo de D. Dinis. Em Lisboa foi fundado em 1291 um Colégio
frequentado por estudantes pobres que aprendiam Gramática, Lógica e Medicina, e Cânones.
Na base, funcionavam as Escolas Paroquiais que resultavam de Escolas Episcopais que
ensinavam a cultura da época constituindo a porta de entrada nos Estudos mais avançados. Fir-
mando-se nestas estruturas D. Dinis fundou, em 1290, os Estudos Gerais de Lisboa, abertos a
leigos, no bairro de Alfama, inicialmente com Estudos de Direito Civil, Cânones, Gramática,
Lógica, Física e Artes. Logo em 1308, D. Dinis ordenou a transferência dos Estudos Gerais pa-
ra Coimbra, para tranquilidade de Estudantes e Professores. Os Estudos Gerais, voltariam a

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Lisboa, para regressarem depois a Coimbra, onde acabariam por fixar-se, durante longos sécu-
los.
D. Sancho impulsionou a ida de estudantes ao estrangeiro e cultivou esmerado gosto pe-
la poesia. No termo da sua vida, plena de cuidados em defesa do seu reino, D. Sancho apaixo-
nou-se por Maria Paes Ribeiro, a «Ribeirinha». À maneira medieval, eliminou tudo quanto se
opunha a tão desesperado amor, inclusivamente a circunstância de o «objecto» da paixão ser
casada. O pai da «Ribeirinha», Rui Martins de Oliveira, casado com D. Sancha Ana, tinha seu
paço na Terra de Valdevez, na freguesia de Oliveira, junto ao rio Lima. E possível que a «Ri-
beirinha» tivesse nascido na quinta que ainda hoje conserva o nome de «paço». Mas foi talvez
por isso que D. Sancho, em 1202, coutou a freguesia de Parada, estabelecendo nela um celeiro
real, e atribuiu-lhe a designação de vila, acabando por doá-la à sua amada. Certamente por to-
dos estes motivos, quando D. Sancho resolveu visitar uma das arredadas e agrestes das frontei-
ras com Castela, para acompanhar à vista a construção da cidade da Guarda, que fundou, e por-
que a viagem seria demorada, resolveu esconder a muito requestada Maria Paes Ribeiro no seu
recôndito Paço de Giela, situado em Terra de Valdevez, não longe do Paço «condal» de Oli-
veira.
Na hora dolorosa da despedida, ao partir, o rei ainda ouviu a «Ribeirinha» entoar o
«cantar de amigo» que lhe ensinara a dizer de cor, porque Maria Paes, sendo belo e nobre, era,
ao jeito da época, analfabeta. Soavam assim as estrofes imortais:

Ai eu coitada como vivo


Em gran cuidado por meu amigo
Que ei alongado, Muito me tarda
O meu amigo na Guarda!

Mas o tropel dos cavalos do séquito, no pátio lajeado do paço visigótico, alindado pelos
Mouros, abafou os versos mais sentidos do cantar que D. Sancho legou à História, como ex-
pressão de um amor desmedido:

Ai eu coitada como vivo


Em gran desejo por meu amigo
Que tarda e não vejo. Muito me tarda
O meu amigo na Guarda!

Quando D. Sancho transpunha a vau as águas do rio, os camponeses, nas glebas de que
eram servos, junto ao Paço, parte integrante da paisagem minhota, fabulosa, segredavam a sus-
peita maliciosa de que o «cantar de amigo» de D. Sancho não seria nunca mais ali trovado. Sa-
bemos que por lá ninguém ouviu os ecos da voz da «Ribeirinha» que, mal o rei trovador fechou
os olhos, suspenso o bater do coração, se revelou traiçoeira e pérfida, esquecendo tudo. Por is-
so, no recorte de velhas pedrarias agredidas e abandonadas do Paço de Giela surge talvez o
perfil de um grande rei, cujo último sonho pode ser mencionado apenas com o impulso inven-
tivo do sentimento.

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11 — ESTRUTURAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO TERRITORIAL

Em noites estivais, sem nuvens, no Minho, o Povo segreda poder-se ouvir, ao contem-
plar a Via Láctea que, pelo sentido dos caminhos do Céu, tem nome de «estradinha de Santia-
go», gemidos de almas penadas, voando a Compostela, por lá não terem ido na vida terrena.
Por isso, na época que estamos referindo, peregrinos percorriam a Península, desde os Piri-
néus, provindos da Itália, da França, dos países germânicos e flamengos, de forma que, no di-
zer de Marcello Caetano, seguiam «atravez das rotas traçadas tradicionalmente para venerar o
Apóstolo. E durante o longo caminho, quer calcorreando as estradas, quer pousando nos hos-
pitais, quer reunindo-se nas grandes igrejas do percurso, iam os homens de várias nações tro-
cando ideias e permutando práticas, num enriquecimento recíproco que haveria de produzir o
fundo comum do espírito europeu».

Albergarias e Hospitais

E assim, à porta das choupanas dos Camponeses nada era negado aos «romeiros com-
postelanos», dos quais alguns cumpriam voto de se alimentarem apenas do que lhes fosse
dado como esmola, ou de se manterem mudos ao longo do percurso. Também não era recu-
sado auxílio a qualquer viandante que pedisse apoio vital. A completar a hospitalidade ex-
pontânea existiam albergues rurais situados nas vias de circulação onde instituições religio-
sas prestavam assistência a todos os necessitados. A pobreza contava com refeição sumária
e enxerga, enquanto clérigos e viajantes abastados se instalavam em Igrejas, Hospícios e
Pousadas situadas em diversas localidades. A assistência na doença era facultada, à medida
dos recursos da época, em Hospitais, uns urbanos e outros situados também nos percursos,
que desde muito cedo beneficiaram de protecção régia, de autoridades religiosas e de dona-
tários privados.

A regionalização do território

A presença das gentes, a criatividade do trabalho, forma o sistema que, no percurso civi-
lizacional, à partida e, depois, no desenvolvimento, esvazia de sentido qualquer ideia de homo-
geneização regional. A regionalização é realidade viva e dinâmica pela diversidade geo-huma-
na onde se moldam acontecimentos históricos e eventos políticos, esbatendo-se no perfil das
situações de fundo.
As regiões apresentam, portanto, «autonomia» específica, baseada em vocações natu-
rais aproveitadas pela natureza humana. Identificam-se com o «país» no sentido de lugar onde,
radicado, se firma o primeiro elo da cadeia do sentimento, ou com a «pátria» que recorda o
berço, o torrão natal, a origem. A região é ambiente que se não discute, é paisagem que se en-
tende, modeladora de homens e pelos homens modelada. Sucede, porém, que as regiões assim
vos» impostos por diferentes expressões do Poder, de entre as muitas que se podem imaginar.
Nos esquemas mais ricos tudo teve início com a primeira Queimada do pastoreio nómada ou
da agricultura itinerante que deu lugar ao Acampamento, à Aldeia sedentária, aos Socalcos, aos
Regadios, à Colónia, ao Refúgio, à Cidade, à Fábrica, ao Comércio e ao Império. Foi aberto
caminho à Circulação e, quanto possível, vedado o passo, com Muralhas, à Invasão. Cons-
truiu-se o alicerce da Vida Social e da Economia, com a argamassa de tudo quanto possa ci-
mentar o ordenamento dinâmico que, em luta permanente, acaba por se instalar.
O período que analisámos de intensa elaboração regional tem proporcionado a Historia-
dores e Geógrafos o manancial onde colhem informações para explicarem o nascimento de
Portugal. Sucede que esse nascimento ocorreu, como vimos, a partir do espaço menos hetero-
géneo (mais coeso) de todos os que constituem as regiões que a diversidade geo-humana obri-
gou a distinguir no território hoje português. Trata-se do Noroeste, que viria a ser designado
Entre Douro e Minho, ou somente Minho. No entanto, quanto à origem política relembramos
que Portugal nasce «do Minho ao Tejo», como território senhoreado por D. Henrique, Conde
Portucalense. Mas, ao arrepio da doação, o rio Douro reteve a fronteira a separar Cristãos de
Islâmicos, o que atribui à região do Minho a função de cenário principal das lutas subsequen-
tes. Vencido o impasse, o Sul apresentou-se como Colónia conquistada onde acabou por ficar
incluído o Algarve, outro Reino distinto do Reino de Portugal, que muito mais cedo toi funda-
do no Andaluz do Sul, depois da dissolução do Califado de Córdova.
Com o triunfo dos Barões do Entre Douro e Minho que fizeram Rei D. Afonso Henri-
ques, Conde Portucalense, foi iniciado o mais fértil ciclo de regionalização que se deve aos
Reis da primeira Dinastia. O impulso inicial teria procurado construir o País sobre o alicerce
regional da Galiza, em acção simultânea com a conquista do espaço islâmico do Sul, onde
mais fortemente a Lusitânia estivera implantada. Assim, a coerência dos Barões Minhotos
levava-os a cavalgadas guerreiras entre as fronteiras do Norte e do Sul. Privando a História
de um curso natural, o programa de expansão para o Norte Galego resultou frustrado pela
vitoriosa oposição de Castela. Entretanto o Sul islâmico passou a oferecer o mais efectivo
dos programas dos Reis povoadores e lavradores de que constava a conquista para além do
Douro, em território já reivindicado ao domínio Árabe por Astures e Leoneses, como Fer-
nando Magno que o administrou enquanto poude. Foram estes Reis que demarcaram e bapti-
zaram toda a «presúria». A Geografia Física comandava o processo e as fronteiras regionais
passavam a ser fixadas nos grandes rios e nas montanhas. A região de origem, o Antre Doiro
e Minho, trazia à ilharga o território escondido para lá do Marão, logicamente designado
Tralos Montes. Assim, o Douro passou a constituir a grande fronteira com o Islão, para além
da qual se desenhavam dois territórios distintos, a «strema Durii», no litoral, que daria a Es-
tremadura, e a «beira Douro» que passaria a ser designada Beira no interior montanhoso.
Para além destes dois grandes territórios que tinham seu termo no Rio Tejo, Ficava, natural-
mente, o Além Tejo, a confrontar com o Reino do Algar\'e, cuja capital, a opulenta Shelb, D.
Sancho I se atreveu a assaltar muito cedo para logo a devolver. Estes territórios que forma-
ram dois Reinos independentes, o de Portugal e o do Algarve, este último conquistado por
D. Afonso III que passou a ser detentor das duas Coroas, constituíram a regionalização refe-
renciada daí por diante.

102
A Peste Negra

A peste ou pestilência, tanto de cólera, tifo exantemático, varíola, tifóides ou desinte-


rias, em ligação estreita de dependência com a fome e as guerras, constituía ocorrência quase
banal, que reduzia a esperança de vida, condicionando severamente a sobrevivência. No entan-
to, a violência da Peste Negra de 1348 foi tal que, durante três meses, na sua expressão bubóni-
ca, pulmonar, intestinal, teria ceifado dois terços dos portugueses. O colapso demográfico pro-
vocado pela anormal incidência da morte na maior epidemia do segundo milénio da era cristã,
deu origem a alterações fundamentais que, seguramente, comandaram acontecimentos históri-
cos durante longos anos.
Tão mortífera peste veio do Extremo Oriente e propagou-se do litoral para o interior ao
longo das vias de comunicação que serviam os portos. Na Europa teriam morrido 25 milhões
de habitantes, especialmente nas cidades onde faltavam as mínimas condições de higiene. Ge-
rou-se o pânico da morte, foram procuradas causas e culpados, sendo assassinados judeus por
morrerem menos nas «judiarias» onde se respeitava o asseio que faltava nos bairros cristãos
contaminados.
Em Portugal foram particularmente afectadas as Cidades, os Mosteiros e as zonas rurais
densamente povoadas. Do colapso demográfico resultaram heranças inesperadas que fizeram
novos-ricos que procuravam «vidas mais fáceis», o que originou o despovoamento rural. Es-
truturas agrárias tradicionais ficaram desfeitas, assistindo-se ao termo da servidão da gleba por
falta de servos. Foi desencadeada a «revolução dos salários» que assumiu forma de reivindica-
ção de trabalhadores, tornados espécie rara por terem sido poucos os que se revelaram imunes
à peste. Os proprietários, desprovidos agora do apoio de prestadores de serviços, recorriam a
todos os meios para assegurarem o funcionamento da actividade agrícola, queixando-se, em
Cortes, da carestia de quem se escusava ao peso do trabalho. Deve reconhecer-se que a «revo-
lução dos salários» citada em muitos textos não representava ainda qualquer alteração de fun-
do no sistema económico dominante, o que havia de suceder muito mais tarde.
A Igreja, sem grande interferência neste processo, registaria enorme concentração de
propriedade, sob a forma de heranças de pestíferos aterrados com a perspectiva do «Juízo Fi-
nal» que lhes poderia impor as penas do Inferno, devidas por seus nefandos actos medievais.

Uma agricultura sem escravos mouros, nem servos que a peste «libertou»

A Peste Negra que dizimou os servos da gleba deixou a agricultura entregue a Campo-
neses «livres» a quem a terra passou a ser oferecida por «uma» e raras vezes «duas ou três vi-
das». Claro que ceder a terra por mais de «uma vida» valia o risco de entregá-la para a eterni-
dade. Ao fim do tempo que permitia benfeitorias não era fácil ordenar a evicção, ficando a pro-
priedade consolidada. Mas, de qualquer modo, não havia alternativa faltando o escravo mouro
com o fim da guerra, conquistado o Algarve.
A História, porém, no que respeita a assuntos essenciais, nunca se encontra encerrada.
Nos mares, navegadores de diferentes origens viviam aventuras de Corsários, como Lanzarote,
que deu nome a uma das Ilhas Atlânticas, com a lendária fama de «conquistador conquistado»

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pela beleza da filha do «Rei» local. Estavam descobertas as Ilhas Canárias, e D. Afonso IV
mandou uma expedição naval a reivindicar a posse, que acabou por não lhe ser dada. Efectiva-
mente os mareantes tinham deparado com população selvagem, misteriosamente implantada
nas Ilhas Afortunadas, situada no estádio histórico do Neolítico, de tez branca, Cro-Magnon.
Os indígenas defenderam-se bravamente com setas de pedra lascada mas, vencidos e aprisio-
nados pelos Piratas dos mares, vieram à Península, como escravos, juntando-se aos mouros ca-
tivos na guerra.
Os «Guanches», assim foram chamados os autóctones das Canárias, misterioso resíduo
humano da Atlântida, o «Continente Afundado», ou descendentes de prole desaculturada e sal-
va de naufrágio de mareantes da Antiguidade, deram entrada no mundo da escravatura, que es-
tava ainda muito longe de se esgotar. Julgamos adequado imaginar que, nessa altura, em Portu-
gal, a penúria de trabalhadores na agricultura, orientava o pensamento político não somente no
sentido dos selvagens das Canárias, mas da enorme reserva de escravos que o Continente Afri-
cano prometia ao europeu civilizado.

As Cidades do Porto e de Lisboa. Crescimento urbano

Por esta época a Cidade do Porto consolidava a vitória da «burguesia», enfrentando, em


continuadas revoltas populares, a ambição dos Bispos feudais e da Nobreza. Assim, a Cidade
comercial e marítima, formando já parcela do Portugal do futuro, cresceu em riqueza, apoian-
do o mundo rural circundante e desenvolvendo a penetração fluvial até ao Alto Douro.
Lisboa, entretanto, progrediu aceleradamente pela intensificação do tráfego marítimo, e
centralização da vida administrativa e cultural. Seus arredores agrícolas prosperavam, com ba-
se em populações herdadas da ocupação árabe. Tornara-se também residência da aristocracia
do Norte que mostrava ter resolvido conquistar o Sul até ao Algarve.
No entanto, as Cortes, como parlamentos medievais, funcionavam normalmente em Ci-
dades de província. Especialmente depois de D. Afonso IV, meirinhos-mores iam às terras, não
estando fixos. Foram escolhidos corregedores para manterem a ordem, a lei e a justiça. Para
enfrentar causas difíceis eram nomeados juízes de fora, independentes ou imparciais. Surgem
também, ao nível local, os vereadores.

D. Inês de Castro, condenada à morte

Inês de Castro, por quem o Príncipe herdeiro se tomou de amores, pertencia a Família
poderosa, com fortíssimas ramificações em Castela e em Portugal. Tal força era suficiente para
ameaçar acção política no sentido de concretizar o que, na altura, representava a «união ibéri-
ca». Não admira, portanto, que os partidários da «independência» alcançassem transformar D.
Afonso IV em figura responsável pela tragédia da «bela Inês» assassinada. O povo assistiu ao
desenrolar de um grande amor barbaramente desfeito por um Rei cruel, no drama que, afinal,
constituía a expressão sensível de um nebuloso, mas efectivo, «problema de Estado».
D. Pedro surpreendido quando ausente, aguardou a morte do Pai justiceiro e somente
depois reagiu em termos de vingança sobre os executores da sentença. Em seguida arrastou a

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sua dor cuja dimensão nenhuma metodologia da História alcançará determinar. Fernão Lopes,
cronista, comenta:
«E sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois já mais fazer não podia, mandou fa-
zer um monumento de alva pedra, todo mui subtilmente obrado, pondo elevada sobre a cam-
pa de cima a imagem d'ela, com coroa na cabeça, como se fora rainha. E este monumento
mandou por no mosteiro de Alcobaça, não à entrada, onde jazem os reis, mas dentro da igre-
ja, à mão direita, a cerca da capela-mor.
E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde jazia, o mais hon-
radamente que fazer se pode, cá ela vinha em umas andas, muito bem corrigidas para tal tem-
po, as quais traziam grandes cavaleiros, acompanhados de grandes fidalgos, e muita outra gen-
te, e donas, e donzelas e muita cleresia.
Pelo caminho estavam muitos homens com círios nas mãos, de tal guiza ordenados, que
sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre círios acesos; e assim chegaram até ao
dito mosteiro, que era dali dezassete léguas, onde com muitas missas e grão solenidade foi pos-
to seu corpo naquele monumento. E foi esta a mais honrada transladação que até àquele tem-
po em Portugal fora vista.»

Inquirição real nos Coutos de Alcobaça

D. Afonso IV, «cohibindo os excessos de jurisdição nos Coutos e Honras», revelou-se


insensível à obra de povoamento dos Monges Agrónomos que, aliás da mesma forma como
outros donatários, alargaram desmedidamente o âmbito das doações reais feitas desde o tem-
po de D. Afonso Henriques. Por isso o Rei contestou a presença dos Monges em Alfeizerão,
Cela, Ramalhosa, Turquel, Évora de Alcobaça, Póvoa de Santa Catarina, Berrantes, Salir e ou-
tros lugares que embora beneficiassem de foral concedido pelo Mosteiro, se situavam fora dos
limites dos Coutos. A questão teria ido longe se não fosse a generosidade de D. Pedro que per-
doou os «excessos de jurisdição» dos Monges Agrónomos, restituindo o que fora contestado,
talvez em troca do sítio onde repousam os dois belos túmulos destinados a perpetuarem os
amores de D. Pedro e da bela Inês. Teria sido com base neste acordo que a estruturação agrária
empreendida nos Coutos de Alcobaça poude ainda manter-se, nesta emergência revisionista,
em liberdade campesina.

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12 — UM DECISIVO LIMIAR DE REFORMA AGRÁRIA

A Península Ibérica, na Europa feudal, apresentava a particularidade de enfrentar a


Guerra Islâmica no seu território, dividido em dois espaços inconciliáveis, o cristão e o mao-
metano. A invasão islâmica de 711 ocupara quase toda a Península, com exclusão do reduto
Asturiano. Daí partira a reconquista cristã que se arrastou ao longo de 800 anos. Sucede que a
ocupação islâmica não sedimentou em todo o território estruturas agrárias originais que se im-
pusessem ao reconquistador cristão pelo facto, que temos procurado acentuar, de ser diverso,
de Norte para Sul, o tempo ou a segurança da referida ocupação. No Norte do território hoje
português, os árabes não alteraram as estruturas romano-góticas, senão em função do abalo
provocado pelo estado de guerra. O que teria sido possível ao ocupante foi a tentiva de cobran-
ça de tributos lançados sobre populações que capitularam, cessando a resistência armada até à
primeira oportunidade de revolta. Por outro lado as chefias Árabes não concediam privilégios
senhoriais aos quadros militares e administrativos que acompanhavam a conquista, pelo que
nenhuma estrutura dominai teria sido consolidada em escala adequada, mantendo-se o poder
concentrado em grandes unidades políticas, com a dimensão de «Reinos» ou Califados.
Por tudo isto se afigura lógico admitir que a reconquista, de início, no Norte tenha recu-
perado orgânicas de produção agrária que representavam, de acordo com a lúcida conclusão
de Alberto Sampaio que noutro passo deste relato adoptámos, a «reminescência vaga e confu-
sa das antigas vilas romanas». Com o decorrer do tempo, de Norte para o Sul. na presúria, tal
«reminescência» apresentava-se cada vez mais diluída pelo inevitável desgaste da população
que dessa estrutura era o suporte, sem deixar, no entanto, de se conservar presente. Mercê da
violência da guerra, nalguns espaços apenas restariam componentes físicos, a configuração dos
campos cultivados, as divisórias, os alicerces das construções, o perfil dos solos, a sobrevivên-
cia biológica das plantas introduzidas e cultivadas, a perene e efectiva expressão das paisagens
rurais que conservam o fundo de estruturas agrárias, mesmo quando profundamente modifica-
das. Mais para Sul, não oferece dúvida que a presença Islâmica implantou estruturas totalmen-
te originais, que os romano-godos nunca poderiam ter instalado. Servem de exemplo as coló-
nias de Egípcios, de Persas, de Sírios radicadas especialmente no arrabalde de Cidades, em
Coimbra, Santarém, Lisboa, que a reconquista Cristã respeitou, mantendo em actividade agri-
cultores que depois receberam o nome de «saloios» dada a designação dos impostos que paga-
vam para manterem a alforria. Nem só nos arredores das Cidades esses núcleos se encontra-
riam, sendo assinaláveis no Mondego e em todo o Algarve, onde se manteve a designação de
«quinteiros». No conjunto da sociedade islâmica eram múltiplas as etnias, algumas de estrutu-
ra tribal, e numerosos os grupos de actividade, mercadores, artesãos, almocreves, sendo opos-
ta e diversa a condição de vida dos burgueses das cidades e dos camponeses rurais. Nas Cida-
des eram notórios os elitismos de intelectuais e letrados, médicos e funcionários do «serviço
público». Mas a Religião não exigia funções clericais específicas, nem formou comunidades
monásticas. Quasi se pode crer que a sociedade Islâmica era homogénea, na grande heteroge-
neidade das funções sociais, militares, técnicas e económicas, as mais diversas.

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A reconquista cristã dos territórios ocupados pelos islâmicos assumiu geralmente as
proporções de rapina executada em território que, simplesmente, era usurpado às populações
residuais. Exigia-se, portanto, um sistema novo para estruturar a posse e a propriedade. Se, nos
primeiros tempos da reconquista Afonso I das Astúrias ainda podia «entrar» no território islâ-
mico para recuperar cristãos que servissem nos seus exércitos, aconteceu que, mais tarde, nas
«fossadas» no espaço islâmico, os cristãos não traziam mais do que mouros cativos, na condi-
ção de escravos. No entanto, como a guerra não era permanente, mas entrecortada de tréguas
ou, por vezes, de longos anos pacíficos, não pode excluir-se o efeito de permeabilidade da vizi-
nhança. As movimentações sócio-profissionais e políticas chegavam a ser fomentadas, de mo-
çárabes, de judeus e de outras populações motivadas pelas mais diversas oportunidades da difi-
cílima existência da época, que ultrapassavam as fronteiras e enraizavam nos territórios. Mes-
mo na Corte dos Reis Cristãos, mal providos de Técnicos e Cientistas, não faltavam especialis-
tas formados em Escolas islâmicas a prestarem serviços médicos, de arquitectura, de engenha-
ria ou de gestão económica.

A partilha da presúria

Não se afigura viável sintetizar qualquer visão sistemática elaborada por Historiadores
quanto à evolução da propriedade rústica no período medieval. A presúria podia encontrar
consolidadas estruturas agrárias que preservava. D. Afonso Henriques, ao discutir com os Cru-
zados o que seria o prémio da conquista de Lisboa, afirmava desejar ser Rei de um Povo e não
apenas de um território. Mas, quando o território resultava ermado, devemos admitir que su-
cederia como Virgínia Rau aponta:
«nas zonas sucessivamente reconquistadas, a propriedade territorial abandonada, ou
considerada sem dono efectivo, e os baldios, cabiam ao soberano por direito de conquista. To-
davia, logo uma parte dessas áreas era alienada pelo rei ou para recompensar serviços presta-
dos por validos e homens de armas, ou confiada à actividade desbravadora de alguns magnatas
eclesiásticos, ou ainda deixada à exploração de súbditos não nobres. Por isso devemos integrar
a presúria no movimento geral da colonização medieval portuguesa, ou seja, a ocupação das
terras sem dono e que tinham passado a fazer parte, em princípio, do património da coroa».
Tal como temos procurado acentuar, a presúria facilitou a formação de domínios senho-
riais, embora respeitasse os interesses da peonagem que também corria os riscos dos cavaleiros
nobres. O Rei demarcava os Reguengos, a que dava destino em função da sua vontade política,
atribuía as Honras, com suas imunidades a Nobres e Alto Clero, contemplava Ordens Religio-
sas Militares e Mosteiros com doações, algumas Coutadas, para estimular o povoamento. Nas
malhas da partilha, naturalmente confusa em muitas ocasiões, escondiam-se alódios, muitos
dos quais acabariam por ficar envolvidos na avassaladora onda de senhorialização que acabava
sempre por se implantar, alastrando e dominando.
A propriedade que, em sentido agronómico, hoje significa capital fundiário garantido
pela protecção jurídica quanto à posse, transmissão por herança ou venda, ou direito de contra-
tação por arrendamento, parceria ou hipoteca, já tomou, no período medieval a designação de
herdade que tanto podia pertencer ao Rei, a um Nobre ou a um Mosteiro, como a simples e

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modestíssimo camponês herdador. Tudo dependida da dimensão mas no sentido técnico da uti-
lização agrária, o conceito valia como unidade patrimonial que depois se manteve até à actuali-
dade. Diversas eram as imunidades e privilégios de Títulos nobiliárquicos regionais, que be-
neficiavam de liberdades do Rei que abdicava em favor de donatários de foros que lhe perten-
ciam. No entanto o que se afigura importante será insistir na espantosa circunstância da «remi-
nescência vaga e confusa da vila romana» ter sobrevivido à ocupação árabe no Alentejo, coin-
cidindo fisicamente a herdade actual, com a estrutura agrária que nos séculos I-V foi instalada
e mantida pelos romanos.

O trabalho inicia a conquista da propriedade

Pode entender-se que o sistema senhorial alcançava os seus objectivos económicos so-
mente quando se instalava em territórios povoados. Mas, como é óbvio, em face de áreas de-
sertificadas, o seu objectivo dependia do sucesso do povoamento. Quando a população era es-
cassa, tendo de ser recrutados de longe os povoadores, muitas vezes estrangeiros, o sistema
via-se compelido a aceitar transigências fundamentais. Assim, a demarcação de Coutos confe-
ria imunidade a perseguidos das justiças, como tivemos ocasião de ver, e tanto mais pesadas
eram as penas a que se dava alívio, quanto maior era a necessidade de fixar colonos.
Mas, o que nos interessa neste momento acentuar, é a circunstância de que um dos con-
ceitos base do direito medievo apontado pelos especialistas, se encontrava ligado à conquista
da propriedade pelo trabalho. Quando assim sucedeu ficou marcado o progresso das classes
rústicas que se libertaram da servidão da gleba. O cultivador alcançou posição mais firme em
face do senhorio, passando a ser detentor do direito de explorar ou de usufruir a terra, mediante
o pagamento de anuidade previamente fixada ou de quota-parte da colheita obtida, segundo
contrato livre, excluída a compulsão. Isto acontece quando entra em uso o emprasamento ou
aforamento, que entrega ao cultivador a terra, durante tempo estipulado que vai de um ano à
perpetuidade, com a obrigação de satisfazer ao senhorio, o foro ou terradigo. Não se afigura
fácil estabelecer o escalonamento ao longo do período medieval, do contrato tipo dominante.
Tem lógica admitir que tudo dependia da premência do intuito de povoar, tal como se existisse
um mercado onde os domínios vagos procuravam a oferta variável dos povoadores. Quando o
deserto territorial ameaçava toda a economia, baixava o nível do tributo a cobrar e aumentava
a duração do contrato: uma, duas, três vidas, ou então para sempre.

As sesmarias

A generalização dos forais que fundavam os Concelhos atribuiu aos Povos o direito de
repartir pelos moradores terras incultas parceladas em sesmarias, com a condição expressa de
serem cultivadas em prazos variáveis, de um a quatro anos ou em «tempo aguisado». As ses-
marias eram demarcadas por «seis homens bons» do Concelho, ou nomeados pelo Rei ou pelos
Donatários, quando implantadas em reguengos ou em terras senhoriais. Esta forma de coloca-
ção em uso da terra inculta não corresponde à estruturação imediata da propriedade, embora
nela se possa reconhecer uma das modalidades da sua génese. As sesmarias parece não serem

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anteriores ao século XIII e perduram até ao século XV. Assumiram importância dominante,
substituindo sistemas de elaboração estrutural anteriores. A Historiadora Virgínia Rau ao refe-
rir-se às sesmarias afirma:
«não andaremos longe da verdade se afirmar-mos que a sua aparição se deu a partir do
momento em que a divisão pela presúria e a apropriação pelo cultivo não logravam garantir
eficientemente a colonização e as arroteias nos territórios ocupados e em que a ordem social
já não tolerava tal sistema. Por isso, a partilha das terras em sesmos verifica-se no repovoa-
mento de Portugal a partir de determinada época e, em determinadas regiões, corre paralela ao
desenvolvimento do regime municipal, e é mais um reflexo da progressiva organização do
país, intimamente ligada ao desenvolvimento dos grémios municipais, do seu povoamento e
da sua economia agrária».

Um sonho profético de El-Rei D. Pedro

O Rei D. Pedro «amava muito fazer justiça com direito. E assim como quem faz correi-
ção, andava pelo reino, e vizitada uma parte não lhe esquecia de ir ver a outra, em guisa que
poucas vezes acabava um mez em cada lugar de estada». Assim relata Fernão Lopes na sua
crónica e diz também, a definir um dos mais invulgares dos Reis de Portugal: «Este rei não
quiz casar depois da morte de D. Inês... mas houve amigas com que dormiu, e de nenhuma
houve filhos, salvo de uma dona, natural da Galiza, que chamaram D. Tereza, que pariu um fi-
lho que houve nome Dom João, que foi mestre de Aviz em Portugal e depois rei...». Embora
assim fosse, El-Rei D. Pedro já havia cumprido o dever de assegurar sucessão, na pessoa de
D. Fernando, filho que teve de D. Constança, Rainha que lhe deram antes de se apaixonar por
D. Inês de Castro. D. Fernando foi Rei, mas não deixou herdeiro, o que deu motivo a dolorosas
guerras, cumprindo-se então o sonho profético que D. Pedro sonhou muito antes de tais suces-
sos. O Rei D. Pedro tinha dois filhos de nome João, um de D. Inês de Castro e outro de D. Te-
resa, a que a citação do cronista se refere, que foi mestre de Aviz, nomeado ainda menino. Diz
Fernão Lopes, relatando palavras de El-Rei D. Pedro: «cá a mim disseram que eu tenho um fi-
lho João que hade montar muito alto». E referindo-se ao menino, que estava nomeando mestre
de Aviz:
«como quer que muito me suspeita a vontade que este hade ser e outro nenhum não,
porque eu sonhava uma noite o mais estranho sonho que vós vistes: a mim parecia em dormin-
do, que eu via todo o Portugal a arder em fogo, de guisa que todo o reino parecia uma fogueira,
e estando assim espantado vendo tal cousa, vinha este meu filho João, com uma vara na mão,
e com ela apagava aquele fogo todo».

«eu lho estranharei nos corpos e nos haveres»

El-Rei D. Pedro I fazia justiça, julgando os malfeitores e criminosos, «e assim lhos tra-
ziam presos do cabo do reino, e lhos apresentavam hu quer que estava. E da mesa se levantava,
se chegavam a tempo que ele comesse, por os fazer logo meter a tormento e ele mesmo punha
n'eles quando via que confessar não queriam ferindo-os cruelmente até que confessavam».

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O mesmo espírito de crueldade se encontra inscrito nas Leis e Posturas antigas:
«se achardes que alguns homens, e molheres som taes, que possam servir, em algumas
das cousas sobreditas, que andam pedindo pelas portas, e nom querem servir, e lhes dam as es-
molas, que deviam, a ser para os velhos, e mancos, e cegos, e doentes, que nom podem ganhar,
per que vivam, que de razom, e da guizado as deviam d'aver, pois nom an corpos para fazer
nenhum serviço, contrangendoos, que sirvam em aquelo que virdes, que compre, e se o nam
quizerem fazer açoutadeos, e deitadeos fora da Vila, e nam consentades que os colham nas Al-
bergarias, e Espirituais e dade pena qual virdes, que he aguisada aos Albergueiros, e a outros
quaisquer que os em essas Casas acolherem».

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13 — ANTECEDENTES DA LEI DAS SESMARIAS

A morte de D. Pedro I, ao fim de dez anos de reinado, teria deixado memória no Povo
— «diziam as gentes, que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes que reinara el-
-rei D. Pedro».
Mas, com D. Fernando, veio a guerra de Castela que se juntou aos efeitos da Peste Ne-
gra. Não é fácil entender como o resíduo demográfico de tanta desgraça, alcançou suster in-
vasões castelhanas e erguer muralhas em Lisboa e noutras posições acasteladas, apresentando-
-se ainda a comunidade nacional como força que desperta interesse aos primórdios diplomáti-
cos da aliança inglesa. O Povo, abandonando efectivamente a agricultura, voltava-se decidido
para a nobreza e burguesia que demandava o Mar e, em terra, erguia muralhas junto às quais
o seu destino viria a ser decidido quando Portugal começasse a «arder em fogo» como ficou
previsto no sonho profético de el-rei D. Pedro, louco ou visionário.
Não sabemos se o Agrónomo pode, efectivamente, imaginar o que seria nesta época o
País Agrário. Em Cortes, são lancinantes as queixas dos representantes populares, podendo
concluir-se que a agricultura portuguesa se encontrava tecnicamente envolvida em processo
que hoje pode ser definido como o primeiro «limiar de Reforma Agrária». Para melhor enten-
der o quadro agrário desta época deve ter-se em conta o sentido da legislação agrária medieval
que teria alcançado a sua expressão mais típica na Lei das Sesmarias de D. Fernando.

A legislação básica da Monarquia Agrária

No período medieval as reformas estruturais dispunham de dinâmica própria que, a todo


o momento, ajustava o sistema produtivo às necessidades de sobrevivência ou aos interesses
dos mais poderosos. Ao publicar as «Ordenações Afonsinas», a Universidade de Coimbra
apresenta elucidativa síntese quanto à perspectiva anterior:
«Quando logo Portugal se desmembrou do Reino de Leão, e se erigiu em Monarquia
própria, é constante terem nossos Maiores, que vieram a constituir o novo Império, continuado
a governar-se pelas leis do Código Gótico, que era então a legislação geral de todas as Hespa-
nhas. Nossos primeiros Príncipes cheios do projecto de desapossar do país os Sarracenos, e
ocupados dos costumes cuidados da guerra, tinham pouco vagar de ser Legisladores; mas co-
mo à proporção que iam ganhando as terras, achavam os campos desvastados, e as povoações
despejadas dos seus antigos habitantes, que, como era natural, as abandonavam, por escapar à
fúria do vencedor, vinham estes a ser dois objectos, que pela sua importância pediam eficaz e
pronta providência, a saber. Povoação e Agricultura. Eles a deram pois desde logo, quanto à
Povoação, considerando novos moradores, e atraindo-os por meio de certos foros, privilégios
e isenções, que lhes concediam; e quanto à Agricultura, reservando para si das terras conquis-
tadas as melhores em pô-las para seu património, que ainda hoje chamamos Reguengos, e dis-
tribuindo as mais pelos seus soldados, e pelos novos povoadores, prescrevendo aos cultivado-
res de umas e outras os direitos, que em razão do seu alto Senhorio lhes deviam pagar, à pro-

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porção do terreno que cultivassem, ou dos frutos que colhessem. Tudo isto se continha em uma
Carta, que davam a cada Povo. a que Chamaram Foral, onde além disso se determinavam cer-
tos outros direitos, que se deviam pagar por ocasião do seu trato e comércio, se estabeleciam
penas, quasi sempre pecuniárias, pelos delitos que cometessem, e se prescreviam alguns regu-
lamentos a respeito da sua particular polícia, e governo municipal.»
Nestas circunstâncias:
«certos Costumes, ou direitos introduzidos na república e que é provável ao princípio
se observassem e guardassem por nossos Maiores só por memória e uso, ainda que muitos fos-
se depois julgados, tomados em assento, e mandados escrever nos livros de Chancelaria, prin-
cipalmente no tempo do Senhor Rei D. Afonso III, dos quais costumes derivaram depois arti-
gos muito singulares das nossas actuais Ordenações. Eis aqui pois a Legislação, por que se go-
vernaram nossos Maiores por mais de um século; até que o Senhor Rei D. Afonso II nas Cortes
congregadas em Coimbra no ano de 1211 primeiro do seu reinado publicou as primeiras Leis
gerais, depois das que se fizeram nas Cortes de Lamego, também poucas em número, mas
cheias de humanidade, e sabedoria. Continuaram os Senhores Reis seus Sucessores até ao Se-
nhor D. João I, a estabelecer leis, mas já tão várias e tantas, que veio a crescer prodigiosamente
o número delas.»
Conforme se referiu noutra passagem, a dinâmica da partilha da presúria foi-se trans-
formando em divisão em «sesmos» das terras dos Concelhos ou Senhoriais, quando a recon-
quista teve seu termo no reinado de D. Afonso III. Assim se formaram numerosas sesmarias,
entregues a agricultores com a obrigação de as cultivarem.

A obrigação de cultivo como condição de posse

No trabalho intitulado «Sesmarias Medievais Portuguesas» a Historiadora Virgínia Rau,


depois de debater aspectos fundamentais da estruturação da posse da terra em função da par-
tilha da presúria territorial, faz incidir a sua análise sobre o problema da instituição da «obri-
gatoriedade do cultivo» das terras a que foi dada posse ou propriedade. Logo à partida afirma
que «a ideia de tirar a terra aos proprietários que a não cultivassem é tão antiga entre nós que
a podemos fazer remontar à apropriação pelo cultivo». A Autora cita Gama Barros quando afir-
ma que «os legistas achavam no Código de Justiniano alguma coisa que se parecia com essa
doutrina porquanto o Código dá a qualquer pessoa o direito de ocupar para cultura o terreno
abandonado pelo proprietário; se este reclama no prazo de dois anos, pode rehave-lo pagando
as despesas que tiver feito o ocupante, não reclamando nesse prazo, perde todo o direito de
posse e de domínio».
Procurando os vestígios mais remotos de decisão judicial a consagrar o direito de ocu-
pação de D. Afonso II que, na região do Mondego, deu razão a João Eanes que ocupou um oli-
val abandonado que a Colegiada de S. Bartolomeu possuía e assim perdeu.

As reclamações em Cortes

Prosseguindo na sua análise a referida Autora acentua que:

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«com os anos a doutrina fortalece-se e fixa-se à medida em que as condições sociais,
económicas e agrárias vigentes se alteram ao aproximarem-se do ponto crucial da vida da Ida-
de Média, não só portuguesa mas também europeia, na última metade do século XIV. Agora
são já os procuradores dos concelhos que fazem sentir em cortes a necessidade de obrigar os
proprietários a lavrarem e aproveitarem os seus bens». No entanto, a Autora acentua que «não
esqueçamos que estes princípios enunciados em cortes apenas visavam o clero, cuja excessi-
va riqueza predial era tomada pela classe popular como causa da sua incúria em relação ao cul-
tivo das terras que possuía». E, assim, «os homens-bons dos concelhos levantavam a voz con-
tra os bispos, clérigos, mestres priores e abades que tinham deixado arruinar as suas casas nas
cidades e vilas, ao mesmo tempo que muitas das suas terras ficavam sem ser lavradas». E, ain-
da, «dentro em pouco tempo todas as herdades do reino seriam da igreja porque a maior parte
dos que passaram e passam deste mundo lhe deixaram e deixam grande parte do que pos-
suem».
Embora as reclamações em Cortes fossem constantes, as Ordenações que as contempla-
ram por parte de D. Afonso IV e D. Pedro I apresentam-se inoperantes, mantendo-se os pro-
blemas de fundo. Como referimos, a Peste Negra alargava os seus efeitos e, conforme se afir-
ma no Trabalho que estamos citando
«todos os diplomas sucessivamente elaborados para compelir os homens a trabalhar no
campo, reflectem a mesma situação angustiosa da agricultura nacional e a mesma orientação
de carácter coercivo para a debelar. Enquanto se procurava promover o aproveitamento da ter-
ra, punindo com a expropriação o proprietário que a deixasse inculta, tentava-se fornecer-lhe
os braços necessários para o seu amanho, coagindo o maior número de indivíduos ao mester
da lavoura, e entravava-se o encarecimento da mão-de-obra taxando os salários máximos.
Contudo são as cortes de Lisboa, de 1371 e as de 1372, que indicam o paradoxismo da crise
que havia mais de um século se avolumava. As tintas do quadro não podem ser mais sombrias.
A falta de trabalhadores rurais jungia-se o excessivo salário dos poucos que ainda laboravam,
as guerras ruinosas e de depreciação da moeda; às exigências do exército e da frota adiciona-
vam-se os abusos dos funcionários régios e dos senhores compelindo os lavradores a cederam
os seus produtos por um preço diminuto e numa moeda desvalorizada sob o pretexto de aten-
derem às necessidades do reino, revendendo-lhes depois astutamente a taxas elevadas.»

Acentua-se o limiar da Reforma Agrária

Um «limiar da Reforma Agrária» apresenta-se assim mais nítido e tudo se encaminha


para que seja elaborada a construção jurídica destinada a representar a tentativa de modifica-
ção do curso inexorável dos acontecimentos.
Embora se não possa avaliar a situação estrutural agrária nesta época, será possível en-
tender que o País se dividia em dois grandes espaços. O Norte, estruturado em função de par-
tilhas antigas da presúria, onde a posse e a propriedade se encontravam consolidadas, embora
contendo assimetrias que não favoreciam tanto quanto possível ou desejável as courelas dos
Camponeses. Os Reguengos, os bens Senhoriais, dos Nobres e das Ordens Religiosas, e mes-
mo os baldios dos Concelhos, seriam vastíssimos e muito espaço se encontrava maninho, a pe-

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dir dono que o transformasse. Todavia no Sul a necessidade de partilha das enormes doações
e imunidades resultantes da recente presúria de terras conquistadas aos Mouros, tinha determi-
nado a demarcação de sesmarias ainda não consolidadas em herdades funcionais, suficiente-
mente mobilizadas por população campesina bastante e sedentária. Os domínios do Rei, das
Ordens Militares e de Donatários nobres e eclesiásticos e mesmo dos Municípios contempla-
dos com Foral, eram desmedidamente vastos e mantinham-se naturalmente incultos, por trági-
ca escassez de colonos. Seria este o drama, essencialmente técnico, ou melhor, social e econó-
mico, que definia os níveis de desenvolvimento regional na época que estamos analisando. Da
leitura dos Historiadores pode depreender-se que o estudo das decisões tomadas pelos deten-
tores do poder para enfrentarem tão vasto e doloroso drama, revela especialmente medidas ju-
rídicas, porque outras não existiam disponíveis para alterar os sistemas funcionais de uma agri-
cultura despovoada. Daqui a diversidade de opiniões que pode ser registada quanto ao valor
das soluções jurídicas na época fernandina. Não falta a paixão de cronistas antigos interessa-
dos em valorizar ou denegrir figuras que povoam os seus relatos, nem o preconceito ideológi-
co de comentadores liberais ou modernos quando se empenham em abstrair de severos condi-
cionalismos históricos e técnicos, que nunca devem ser ignorados.

Diagnóstico da crise de subsistências

No dia 26 de Junho de 1375, em Santarém, D. Fernando, invocando a sua qualidade de


detentor de poder absoluto — «D. Fernando pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve»
— declara-se seguro quanto ao diagnóstico dos problemas em relação aos quais se dispõe a
ordenar as medidas necessárias:
«Considerando que em todas as parcelas dos nossos Reinos, ha dificuldade de abasteci-
mento de trigo, e de cevada, embora entre as Terras e Províncias do Mundo costumem ser mui-
to abastadas, e estes produtos alcançaram tão grande carestia que os consumidores de qualquer
categoria social os não podem adquirir, sem grande encargo, e observando que entre todas as
razões, esta carência e carestia resulta mais certa e especialmente da falta de sementeiras que
os homens abandonam preferindo outras obras e outras profissões que não são tão proveitosas
para o bem comum; e as terras e herdades que deveriam ser lavradas e semeadas, tendo capa-
cidade para produzir pão e outros frutos, com os quais os Povos se hão de manter, ficam de-
samparadas e incultas sem proveito e com grande prejuízo do Povo.»
As considerações assumem a configuração de diagnóstico de conjuntura da situação
económico-social agrária, apresentando a carência de produtos fundamentais para o abasteci-
mento como simples resultante do abandono de sementeiras em terras que «costumavam ser
muito abastadas». A situação estrutural encontra-se excluída da análise, não se vislumbrando
qualquer propósito de alargamento das áreas cultivadas a terras que certamente se encontra-
vam incultas e ainda não repartidas em sesmarias novas.
Entretanto, o legislador, embora dispondo de poder absoluto, procura alívio da sua res-
ponsabilidade, declarando ter baseado a sua decisão de intervir em conselhos abalisados e bas-
tantes, referindo-se à maneira de suporte deliberativo de «assembleia política». Assim, afirma:
«tendo o acordo e conselho do Infante D. João nosso Irmão, e com o Conde D. João

116
Afonso, e com os Prelados, e Prior do Hospital e Mestre da Cavalaria, e comos outros Fidal-
gos, cidadãos e homens-bons dos nossos Reinos que para isto e outras coisas do nosso serviço
em favor dos ditos Reinos mandamos chamar, para se encontrar o devido remédio para haver
na terra abundancia dos produtos agrícolas referidos.»

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14 — O CONTEÚDO DA LEI DAS SESMARIAS

Fixado o campo de aplicação que se orientava no sentido de «todos os que tenham her-
dades de sua propriedade», o que não representaria efectivamente o conjunto do solo agrário
submetido a diferentes formas de domínio Senhorial e Concelhio, a Lei das Sesmarias encon-
tra a sua justificação na «obrigatoriedade do cultivo» resultante da posse e da função social da
propriedade, expressa como proveito ou ausência de prejuízo do Povo.

A acção interventora

Nesta base o texto afirma peremptoriamente:


«estabelecemos, ordenamos e mandamos, que todos os que tenham herdades de sua pro-
priedade, ou emprazadas, ou aforadas ou por qualquer outra forma ou título tenham direito a
essas herdades, sejam constrangidos para as lavrar e semear; e se o Senhorio das ditas herdades
não puder por si lavrar todas as herdades que tiver, por serem muitas, ou situadas em diferentes
comarcas, ou estiver impedido por alguma razão legítima pela qual não possa por si lavrar to-
das, lavre parte delas por si, onde tiver preferencia e quanto poder lavrar sem grande dificulda-
de, tendo em conta as determinações daqueles a quem for dado poder; e as mais faça lavrar por
outrem, ou as dê a lavrador, que as lavre e semeie por sua parte, ou a pensão certa, ou a foro,
assim como melhor se puder fazer; de forma que as herdades, que tenham capacidade para dar
pão, sejam todas lavradas, e aproveitadas, e semeadas como for de preceito, de trigo ou cevada,
ou de milho (entenda-se milho painço porque o Zea Maiz ainda não fora descoberto no Conti-
nente Americano) para que mais fruto e melhor possa dar em seus tempos e estações conve-
nientes.»
Tudo indica que o objectivo de suprimir incultos incidia especialmente sobre agriculto-
res beneficiários de «sesmos» que haviam sido demarcados em terras incultas de Concelhos, do
Rei ou em domínios senhoriais. A referência a «todos os que tenham herdades de sua proprie-
dade» envolve um universo de estruturas produtivas tradicionais camponesas, anteriores às ses-
marias, que permaneceriam acantonadas na autosuficiência alimentar que o património assegu-
rava aos rústicos dominantes. Os faltosos seriam os agricultores do Sul, recém-colonizado, que
muito provavelmente alcançaram «sesmos» desmedidos para a sua capacidade de trabalho fa-
miliar, comprometendo-se no pagamento de prestações ou foros que excediam em valor o cau-
teloso limite de «uma galinha» ou de «um pão» dos modestíssimos povoadores do Norte.
Assim, a Lei das Sesmarias configura-se mais com um ajuste de contas com beneficiá-
rios de sesmarias faltosos, do que com reforma estrutural capaz de penalizar incultos, em terras
submetidas a diferentes imunidades, não somente do Rei, como da Nobreza, das Ordens Reli-
giosas e mesmo dos Concelhos. A Reforma fernandina pretende atacar a frente funcional do
sistema agrário e por isso incide também sobre a população que se furta ao trabalho agrícola.
Afigura-se-nos que se vislumbram nesta atitude da população amargas recordações de resíduos
da escravatura antiga, que havia de ser renovada quanto a «selvagens» e negros, e memória re-

119
centc da servidão da gleba talvez banida ou, pelo menos, muito atenuada. Ficaria intocada a
essência das estruturas dominiais, e mesmo concelhias nos baldios, que constituiriam o colos-
sal e avassalador latifundismo que havia de ser mantido para se transformar, muito mais tarde,
no suporte do capitalismo agrário.

A mobilização de factores de produção

Tem interesse assinalar a objectividade de ordenações que procuram mobilizar equipa-


mentos indispensáveis, como seria o gado de trabalho. Assim, manda-se:
«que também sejam constrangidos os proprietários a disporem de tantos bois quantos
forem necessários para a lavoura, segundo as herdades que tiverem, juntamente com outras
ferramentas que à lavoura pertencem. Porque pode acontecer que aqueles que são constrangi-
dos a lavrarem e a terem bois para a lavoura não os possam achar para comprar senão por preço
elevado do seu valor; temos por bem e mandamos, que sejam constrangidos aqueles que os ti-
verem para vender, para os cederem aos que os procuram, por preços correntes, segundo o que
for fixado pelas Justiças dos lugares, ou por aqueles que forem nomeados Vedores deste pro-
cesso.»
O aspecto do equipamento dos agricultores é focado com insistência apontando-se me-
didas para garantir o aprovisionamento, pouco faltando para se poderem identificar referências
a propósitos contidos na disponibilidade de crédito exigido no desenvolvimento moderno. «E
mandamos que para comprar os bois e o que mais é pertença da lavoura, para começar a lavrar
e aproveitar as herdades que forem para lavrar, seja marcado prazo, para que façam e cumpram
sob certa pena que lhes seja imposta».

Penas imperativas...

Não assume as proporções de expropriação imediata a penalização dos faltosos. As Jus-


tiças são chamadas a entregar as herdades que ficarem incultas «a quem as lavre e semeie» pa-
gando pensão que não reverte para o lavrador faltoso mas «para o bem comum». Custa admi-
tir a existência de abundância de candidatos a tal regime. Mas o castigo final fica reportado a
decisão do Rei. O texto determina:
«E se os Senhores das herdades por sua negligencia não quizerem cumprir o que por
nós foi ordenado, nem quizerem lavrar nem aproveitar as suas herdades por si ou por outrem,
as Justiças dos lugares ou aqueles a quem foram dados poderes, dêem essas herdades a quem
as lavre e semeie, por certo tempo ou por pensão ou parte certa; e o dono da herdade não a pos-
sa depois rehaver para si ou impedir o dito tempo por que foi dada; e essa parte ou pensão que
o lavrador assim tiver que dar seja para o bem comum, em cujo termo essas herdades se encon-
trem, mas não seja dada a nenhum uso, senão por nosso mandato especial.»

Uma sociedade rural em crise de adaptação

O legislador refere as condições em que se encontravam as estruturas humanas da acti-

120
vidade agrícola, talvez, como afirmámos, em fase adiantada da transição da escravatura e da
servidão da gleba para costumes em curso de penosa liberalização. Procurava-se acentuar a ne-
cessidade de intervenção neste domínio, para que o factor trabalho se não mantivesse na sua
evidente carência:
«os que forem lavradores e os outros que tem razão para o ser, e os que tem herdades
para lavrar, se escusam da lavoura, porque dizem que não têm nem podem ter trabalhadores de
que precisam; e muitos daqueles que lavravam e serviam no trabalho agrícola deixaram esse
trabalho da lavoura; acolhendo-se aos Paços dos Rico-homens e Fidalgos, para gozarem de vi-
da mais folgada e mais livre, deitando a mão ao alheio sem medo e por grandes soldadas que
lhes davam, para servirem noutras actividades e profissões menos proveitosas do que as da la-
voura; e outros que são pertencentes para lavrarem, e servirem na dita actividade da lavoura,
não querem servir nela, e procuram outros ofícios de que a terra não pode dar tão grandes pro-
veitos; e muitos que andam vadios pela terra, chamando-se criados, ou escudeiros ou moços
de estribeira nossos, ou de Infante, ou de cada um dos Condes, ou dos outros poderosos, e hon-
rados, por serem coutados, a defezos das Justiças dos males e do que fizeram, não vivendo na
nossa merçê, nem com nenhum dos sobreditos; e alguns que se lançam a pedir esmolas não
querendo fazer outro serviço; e catam outras muitas maneiras e justificações para viverem
ociosos, e sem ocupação a não servirem; e alguns deitam a mão a hábitos como de Religião, e
vivem à margem, fazendo Congregação contra a defeza do direito, não entrando nem sendo
professos em nenhumas Ordens Religiosas estabelecidas e aprovadas pela Santa Madre Igre-
ja, não fazendo qualquer obra proveitosa para o bem comum e sob figura de Religioso, e de
santa vida andam pelas terras pedindo, e juntando algo, e induzindo muitos que se juntem a
eles e por sua influencia deixam profissões e obras para andar com eles não fazendo outro ser-
viço nem outra obra de proveito.»
Em face do quadro que ficou descrito o legislador ordena:
«Temos por bem e mandamos que todos os que forem ou sejam lavradores, bem como
os filhos e netos de lavradores, todos os outros moradores tanto nas Cidades e Vilas, como fo-
ra delas e tenham de seu fortuna maior do que quinhentas libras e que não usem tão proveitosa
função para o bem comum e que por razão e direito deva ser escusado de lavrar ou de servir
na lavoura e viver continuamente com pessoa que o mereça e tenha obra de serviço proveitoso;
que todos e cada um destes sobreditos sejam constrangidos para lavrar, e usar do dito ofício da
lavoura; e os sirvam e ajudem a fazer essa obra da lavoura por sua soldada e preço ajustado,
segundo o que é fixado pelas Ordenações que sobre isto são feitas, ou segundo fixarem ou arbi-
trarem aqueles que para isto forem postos em cada lugar.»

Tabelamento de salários

O legislador determinou:
«e qualquer que der ao mancebo, ou aquele que tiver de o servir, mais do que for fixa-
do pelos Regedores dos ditos lugares, ou por aqueles a quem por isto for dado encargo ou po-
der, pague cinquenta libras a primeira vez; e pela segunda cem; e daí em diante pague essa
quantia e demais seja castigado com pena de Justiça como aquele que quebra a Lei, e vai con-

121
tra mandado do seu Rei e Senhor; e estas penas sejam metidas em rendas para o bem comum.»

Trabalho agrícola obrigatório

«E mandamos que quaisquer que forem encontrados a andar chamando-se nossos ou da


Rainha, ou do Infante, ou de qualquer outro que não seja notoriamente conhecido, que sejam
logo presos e postos à disposição das Justiças dos lugares, para se saber como e de que modo
vivem, e o que fazem e de que se intitulam. E se não mostrarem prova de como vivem e do
que fazem ao serviço de outrem que sejam constrangidos para que sirvam; e se servir não qui-
zerem sejam açoitados e de seguida constrangidos para servirem por soldadas fixas como foi
dito.»
As determinações de obrigatoriedade de trabalho abrangeram mais do que as falsas pro-
fissões:
«porque a vida dos homens não deve ser ociosa, e a esmola não deve ser dada senão
aquele que por si não pode ganhar, nem merecer por serviço do seu braço para que se mante-
nha, e segundo o dito dos Sabedores e dos Santos Doutores, mais justo é castigar o pedinte sem
necessidade e que pode evitar pedir fazendo outra obra proveitosa; do que dar-lhe a esmola que
pertence a outros pobres que não podem fazer outra obra de serviço. Porem mandamos que
quaisquer que assim forem achados, tanto homens como mulheres que andarem pedindo, não
usando recurso, sejam vistos e catados pelas Justiças de cada lugar e se acharem que podem e
têm idade que possam servir nalgum ofício ou obra de serviço, mesmo que tenham defeito físi-
co que os não impeça de fazer algum serviço, sejam constrangidos para servirem nos trabalhos
que as ditas Justiças ou aqueles que para isto sejam nomeados virem que podem servir, para
seu mantimento e por sua soldada, segundo entenderem que a podem merecer, de forma que
ninguém do nosso Serviço viva sem ofício, ou sem obra de serviço e de proveito.»
Entretanto, a severidade das penas acentua-se para certas formas de ociosidade que de-
veriam ser muito comuns:
«aqueles que forem encontrados a viverem com trajos Religiosos, que não são professos
em alguma das Ordens aprovadas, digam-lhes e mandem que vão lavrar e usar o ofício da la-
voura, fazendo-se lavradores por si, se o puderem e quizerem fazer; ou senão que sirvam aos
outros lavradores no ofício da lavoura. E obriguem-nos por qualquer meio e os que não quize-
rem servir, nem trabalhar no ofício que lhes mandaram quaisquer que sejam as condições se-
jam açoitados pela primeira vez, e constrangidos de toda a forma para servirem; e se daí em
diante não quizerem servir, que sejam açoitados com pregão, e deitados fora dos nossos Rei-
nos.»

A ténue face da misericórdia

No entanto, não deixa de aflorar no texto, o tímido embrião do que muito mais tarde vi-
ria a configurar-se serviço social:
«e aqueles que forem achados tão fracos, e tão velhos, ou doentes comprovados, que
não possam fazer nenhum serviço, ou alguns envergonhados, que já tivessem sido honrados,

122
a caíssem em míngua e pobreza, não podendo evitar pedir esmola, sem poderem servir a ou-
trem, que as Justiças lhes entreguem Alvarás, para que possam pedir esmola com segurança.
E qualquer homem ou mulher que andar pedindo sem motivo ou sem Alvará de Justiça, que
lhe seja dada a pena sobredita.»

Os serviços públicos para aplicação da Lei

«E para se cumprir e pôr em execução estas medidas que são assim ordenadas por nós;
temos por bem e mandamos que em cada Cidade ou Vila de cada Comarca e Província das
Correições, sejam escolhidos dois homens-bons dos melhores cidadãos, que nessas Cidades ou
Vilas houver, os quais devem conhecer e ver todas as herdades, que existem em cada Comarca,
aptas a darem pão, que não se encontram lavradas e aproveitadas; e façam que sejam lavradas
e aproveitadas para pão e tenham poder para constrangerem os Senhores delas, que as lavrem,
ou façam lavrar e semear da forma que fica escrito e ordenado.»
As rendas das herdades semeadas por lavradores que substituíam os proprietários que
as não lavravam «por si» eram tabeladas para moderar especulações:
«e porque os Senhores das herdades as não querem dar a outros que as lavrem senão por
grandes pensões ou por muito grandes rendas os lavradores ou aqueles que as lavrem não as
querem tomar senão por moderados preços ou muito pequenas quantias, ou por ventura sem
nenhum encargo de dar pensão ou parte aos senhorios dessas herdades; porém para não have-
rem motivos de nenhuma das partes se escusar e as herdades não ficarem por lavrar; temos por
bem e mandamos que estes dois homens-bons, que forem escolhidos, como foi dito, em caso
em que as partes não possam entender-se, fixem e alvitrem a quantia, a parte e a pensão que
os lavradores dêem aos Senhorios das herdades; e possam constranger, os Senhores das herda-
des para que as dêem e os lavradores que as tomem, pela avaliação e fixação que fizerem.»
E ainda se pormenorizava o método de arbitragem:
«e se por ventura estes dois homens-bons entre si não estiverem de acordo quanto à ava-
liação e fixação que fizerem, então que seja dado um homem-bom por terceiro Juiz do lugar,
para partir a diferença que existir entre os dois e concordar no mais igual, segundo entender;
e cumpra-se o que pelos dois ditos homens-bons for acordado nesta razão. E se os Senhores
das herdades isto não quizerem consentir, e forem contra o deliberado, ou o embargarem de
qualquer maneira por sua decisão, percam essas herdades e desde essa altura sejam aplicadas
ao comum para sempre; e a renda delas seja tomada e recebida para o prol comum do lugar,
em cujo território essas herdades se encontrarem.»
Nesta última passagem podemos aperceber-nos de que as penas podem chegar à expro-
priação.

Arrolamento de recursos humanos

Mais se afirma:
«Outrossim temos por bem e mandamos que os sobreditos dois homens-bons que forem
postos em cada lugar do nosso Senhorio, inquiram e saibam logo e daí em diante pelos tempos

123
quais e quantos são os que vivem e moram em esses lugares, sendo deles naturais, como nou-
tros quaisquer que aí chegarem, ou viverem de fora aparte, e que não são artífices (mesteirais),
nem vivem de ofícios necessários para o prol comunal, ou viverem com alguém que os mereça
e tenham ofício para servirem e também dos mendicantes e dos outros que andam com hábitos
religiosos: e isto mesmo também é mandado aos jovens de vinte anos (vintaneiros) que são
postos para guardadores das Freguesias e das ruas e das praças, que dêem recado a estes sobre-
ditos homens-bons de todas as pessoas, que acharem e souberem, cada um em sua freguesia,
rua ou praça da condição sobredita para serem constrangidos para lavrar e semear pão na terra
que lhes for dada por essas Justiças. E se não puserem, ou não quizerem por si manter lavoura,
dêem-nos a quem der trabalho para lavrar e semear pão, e não para outro ofício, nos lugares e
Comarcas, onde houver herdades e lavouras de pão, ou para grangeio das vinhas, onde houver
vinhas e a lavoura de pão escassear, à qual nossa intenção é de acudir primeiro pela razão subs-
crita, para que nos havemos a fazer esta ordenação, e fixação a esses mancebos e servidores
dos seus preços e soldadas ajustadas que tenham a receber, segundo dissemos.»

Advertência a eventuais opositores

Também se considera:
«Para que isto que assim ordenamos e mandamos fazer como serviço de DEUS e prol
dos nossos Reinos, não seja perturbado nem embargado por ninguém, estabelecemos e manda-
mos que qualquer, de qualquer estado e condição que seja, que por seu poderio, sem razão di-
reita defender ou embargar por qualquer maneira contra a decisão (Juizo) daqueles que manda-
mos por esta ordenação constranger, ou que forem constrangidos por aqueles a que isto for da-
do poder ou ofício, para não servirem ou não cumprirem o que lhes for mandado, que paguem
a nós, se for fidalgo, quinhentas libras cada vez que o fizer ou tentar fazer; e sejam logo por
esse mesmo feito, sem outra sentença de Juizo, desterrados do lugar onde morarem e saiam lo-
go daí sem outro mandato a seis léguas do lugar onde nós estivermos; e se não for fidalgo que
pague tresentas libras e tenha a dita pena de degredo e sejam logo penhorados e constrangidos
e vendidos seus bens pela dita quantia, pela forma que por nós é mandada, que se vendam pelas
outras nossas dívidas. E as Justiças dos lugares e também queles a quem for dado poder para
isto cumprir que por nós é ordenado, o façam saber ao nosso Sacador, e ao nosso Almoxarife,
e Escrivão dos nossos direitos, para mandarem constranger pelas ditas penas; e se o não fize-
rem ou forem negligentes, que esses Juizes e Vereadores as paguem a nós em dobro.»
Nesta última passagem a referência a «penhora» encontra-se mais explícita, sendo alar-
gadas as penas impostas aos intervenientes na aplicação da Lei, o que se afigura tentativa de
combate à corrupção.

Restrições ao pastoreio itinerante

Não falta a referência a prejuízos resultantes do livre pastoreio, itinerante ou transuman-


te:
«Outrossim e porque alguns dos que eram lavradores, e muitos outros, que o poderiam

124
ser se quizessem, compram e reúnem grandes manadas de numerosos gados, e os trazem e go-
vernam pelas coutadas e herdades alheias, e compram as ervas e os pascigos dos Senhores das
herdades, de que esses Senhores das herdades dispõem, e esses Senhores dos gados vendem
os estercos dos seus gados e recebem por eles e por esta razão uns e os outros, assim os Senho-
res das herdades como os dos gados não cuidam de lavrar nem aproveitar as herdades; porém
defendemos e mandamos que daqui em diante não sofram nem consintam a ninguém que pos-
sua ou traga gados seus nem de outrem, se não for lavrador, ou não mantiver lavoura, ou for
mancebo de lavrador que more com esse lavrador para o serviço da lavoura ou para guarda dos
seus gados ou para outros trabalhos pertencentes à actividade da dita lavoura. E os que manti-
verem lavoura e quizerem ser lavradores, e lavrarem herdade sua ou de outrem, ou viverem
com esses lavradores, ou que mantiverem lavra para essa actividade da lavoura, possam ter e
pastorear gados, quanto necessários para seus mantimentos e para manutenção adequada da
sua lavoura, sem pena nem outro embargo. E qualquer que desde o dia da publicação desta
nossa Ordenação a tres meses pastorear ou tiver gados, se não lavrar e semear herdades, se for
tempo e estação de lavoura, e sementeira, ou se não for tempo de lavrar e se estiver obrigado
com caução suficiente para lavrar, e semear ao tempo e sazão conveniente, tomando logo e as-
sinado alguma herdade, que para o primeiro tempo se seguir da lavoura, tenha de lavrar, perca
todo o gado, que daí em diante pastorear ou tiver e seja-lhe todo entregue para o bem comum
do lugar onde isto acontecer; e qualquer que os acusar, e mostrar tenha para si o terço. E esse
gado que assim for tomado para o comum, não seja consumido nem desbaratado sem nosso
especial mandato, senão nas obras das fortalezas e reparação desses lugares.»
Que saibamos, nenhum Historiador documenta o efeito da Lei das Sesmarias na econo-
mia agrária e vida social da época, sendo correntes as reservas quanto a resultados ou desen-
volvimentos. As alterações estruturais indispensáveis não se processaram e as populações con-
tinuaram a movimentar-se em busca de novos locais de actividade e de trabalho e, por não en-
contrarem ocupação bastante, entregavam-se à vagabundagem, em bandos onde. a pesar de tu-
do, viriam a ser recrutados os mais intrépidos dos colonizadores do Mundo.

D. Dinis, o mais novo dos filhos de D. Pedro e D. Inês de Castro

D. Fernando deixou-se envolver em duríssimas lutas entre o rei de Castela, Pedro, o


Cruel, e seu irmão Henrique de Trastâmara. Estas lutas levariam o rei português, logo que su-
biu ao trono, a envolver-se numa guerra sem futuro. Tendo sido Pedro I de Castela assassinado
pelo irmão e logo feito rei Henrique II, D. Fernando desencadeou a guerra na fronteira do rio
Minho. A Galiza foi invadida, mas sem êxito, regressando o rei português e permitindo que
Henrique II chegasse a vir pôr cerco a Guimarães. A guerra acabou em breve com a aliança de
casamento de D. Fernando com D. Leonor, fdha do rei de Castela. D. Fernando traiu o acordo
com Castela e afrontou a indignação popular e dos nobres, escolhendo casamento com D. Leo-
nor Teles, casada com João Lourenço da Cunha, que viu o seu casamento «anulado por paren-
tesco», fugindo para Castela. D. Fernando reuniu «ricos-homens, infanções e cavaleiros de
Portugal» para lhes declarar, como narra Alexandre Herculano no seu belo conto «Arras por
foro de Espanha», que «D. Leonor Teles é minha mulher! Fidalgos portugueses beijai a mão à

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vossa rainha». Todos assim fizeram mas «só faltava D. Dinis, que continuara a ficar imóvel.
Houve um momento de silêncio sepulcral na vasta sala, e este silêncio era para todos indefini-
do, mas terrível». El-rei, «com os dentes cerrados, murmurou:
— Infante D. Dinis, beijai a mão à vossa rainha.
Foi um só o volver de todos os olhos para o moço Infante; o sussurro das respirações
cessara.
D. Dinis não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento; parou defronte do tro-
no e, olhando em redor de si, perguntou com um sorriso de amargo escárnio:
— Onde está aqui a rainha de Portugal?»
Nesse mesmo instante sem o saber, via perdido o Senhorio de vastos Domínios no Nor-
te, e no auge do drama, ainda declarou:
«— Nunca um neto de D. Afonso do Salado beijará a mão da que el-rei meu irmão e se-
nhor quer chamar rainha. Nunca D. Dinis de Portugal beijará a mão da mulher de João Lou-
renço da Cunha. Primeiro ela descerá desse trono e virá ajoelhar a meus pés. que de reis ve-
nho eu, não ela.»
E daí se foi D. Dinis acolher junto de Henrique II de Castela e. depois, correr mundo,
acabando por ser contestado por João das Regras, nas Cortes de Coimbra, como legítimo can-
didato ao trono de Portugal.

126
15 — O TERMO DA MONARQUIA AGRÁRIA

D. Fernando, pouco antes de morrer, deu em casamento ao Rei de Castela sua filha úni-
ca, D. Beatriz, que passaria a invocar o direito de sucessão no trono português. O Povo sentiu
que a concretização desse direito representava a perda da independência nacional. Com a mor-
te do Rei. a Rainha viúva, D. Leonor Teles, tomou a Regência. Ao Conde de Andeiro foi atri-
buída a responsabilidade do casamento de D. Beatriz. Estava assim comprometida a transmis-
são do trono para Rei português, que seria o Infante D. João, filho de D. Pedro e de D. Inês de
Castro. Entretanto o Infante D. João ficou preso em Espanha. A revolta alastrou e outro filho
de D. Pedro, também D. João, Mestre de Aviz, foi convidado a assumir o encargo de eliminar
o Conde de Andeiro. O Mestre foi ao Paço e friamente executou o Conde, tal como na conjura
estava planeado. De seguida aconteceu o que refere a crónica de Fernão Lopes:
«o pagem do Mestre, que estava à porta, como lhe disseram que fosse pela vila segundo
já era percebido, começou de ir rijamente a galope em cima do cavalo em que estava, dizendo
altas vozes, bradando pela rua: Matam o Mestre! Matam o Mestre nos paços da rainha! Acor-
rei ao Mestre que matam!»

Dado o golpe no Palácio, a Revolução saiu à rua

Melhor do que resumir a crónica será transcrever Oliveira Martins, no seu estilo carac-
terístico, ao relatar os acontecimentos:
«Na rua Álvaro Paes vinha a cavalo à frente da procissão de energúmenos, bradando por
desvairadas maneiras. A plebe, investindo com o palácio, quebrava os cancelos de ferro, trazia
escadas para o assalto e montes de lenha para queimar tudo. Era uma algazarra incrível de im-
propérios e nomes desonestos dirigidos à rainha. Já de dentro havia medo que o fogo pegasse,
e que o fim da tragédia fosse um fogo justiceiro. Extenuavam-se a gritar que o Mestre estava
vivo e Andeiro morto; mas ninguém tinha ouvidos no meio do clamor da turba. Por fim o Mes-
tre de Avis apareceu a uma janela e foi victoriado: Vinde para nós, gritavam-lhe, e dai ao demo
esses paços! Ali mesmo ao pé do palácio, ficava a Sé. Era necessário solenizar a festa, com os
repiques dos sinos, conforme a plebe o ordenava; mas os padres, recolhidos no alto da torre,
não sabiam o que queriam deles; e por esse crime foram precipitados à rua o bispo e mais dois;
e os cadáveres, arrastados ao Rossio, ali ficaram para pasto dos cães.»
Foi este o início urbano da Revolução que havia de alastrar a todo o País rural na mais
espantosa das epopeias populares.

O último Cavaleiro Medieval

Da análise dos Historiadores destaca-se uma das mais enigmáticas figuras de Português,
a desempenhar papel decisivo em momento fulcral. D. Nuno Álvares Pereira, considerado o
«último cavaleiro medieval», Condestável do Reino, que entregou à causa do Povo a herança

127
do juramento antigo, sem abdicar das ambições senhoriais que conservou até ao momento de
transpor as portas do Convento, onde morreu Carmelita, pobre, «descalço», sem abandonar, no
entanto, as armas da Cavalaria, que se dispunha a retomar, se necessário, em qualquer momen-
to.

O País em Guerra

Castela invocou os seus direitos, mas o Povo quis Rei português. A Nobreza dividiu-se,
sendo minoria os que defendiam o Mestre de Aviz, apoiado por D. Nuno Álvares Pereira que
assumiu funções de líder militar e pelo jurista João das Regras que tomou a seu cargo a argu-
mentação política. O Povo vigiava os Alcaides dos Castelos, ocupando muralhas como as de
Lisboa e de Évora. Um exército castelhano veio pôr cerco a Lisboa. D. Nuno Álvares Pereira
não se encurralou na Cidade cercada, e movimentava-se com escasso grupo armado em dife-
rentes pontos da província, desde o Alentejo ao Porto. Entretanto, uma epidemia dizimou o
exército castelhano que sustentava o cerco. A fina flor da aristocracia espanhola morreu de pes-
te, ingloriamente, sendo os cadáveres salgados em esquifes para que os Nobres fossem trans-
portados a Castela, a enterrar nos seus panteãos senhoriais. Relata Fernão Lopes: «cada uns le-
vavam os seus senhores em um ataúde coberto de dó posto em cima de uma azemola, e arredor
dela todolos de pé, vestidos de grande luto, e de trás os de cavalo que o acompanhavam na vi-
da, com a bandeira de suas armas logo junto acerca dele. E assim iam todos, um antre o outro,
per grande espaço do caminho a qual procissão era dorida de ver». Foi este o epílogo do trági-
co cerco e na Cidade amuralhada de Lisboa saiu procissão de «acção de graças» e o Povo escu-
tou, «em lágrimas», o sermão de um Franciscano.
Depois, em Cortes de Coimbra, o Mestre foi proclamado Rei de Portugal. A diplomacia
desencadeou o interesse britânico e, perante nova invasão castelhana, a batalha de Aljubarrota
defendeu a independência nacional, enfrentando os espanhóis pesadíssima derrota.
Este acontecimento suscitou a Oliveira Martins o seguinte comentário:
«a Idade Média portuguesa acaba no dia de Aljubarrota, com a primeira época da nação,
com o período da sua formação trabalhosa e lenta. Novos horizontes, vastas ambições, pensa-
mentos ainda inconscientes de um largo futuro amadurecem encobertos no seio da nação, for-
mada, aclamada, baptizada em sangue. Chama-se de longe um dúbio tentador — o Mar!»

A ínclita geração

Logo depois de Aljubarrota, D. João I teve encontro, na ponte do Rio de Mouro, em


Melgaço, com o Duque de Lencastre. Pouco depois casava no Porto com D. Filipa que foi Mãe
da «ínclita geração». D. Duarte sucedeu no trono, D. Henrique e D. Pedro impulsionaram as
navegações, D. Fernando morreu, cativo, em África.

A Revolução popular acabou por ampliar domínios senhoriais

Embora morta a Idade Média, a forma de encarar a agricultura no que respeita a estrutu-

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ras básicas, permaneceu medieval. Os Senhores da terra que aderiram ao partido castelhano,
que foram muitos e talvez os principais, caíram em desgraça, expropriados e banidos. Deste
modo, D. João I passou a deter em suas mãos vastíssimos territórios antes submetidos a privi-
légios, cujos encargos pesavam sobre as populações, e propriedades sem conta, de fartos rendi-
mentos. Se efectivamente o apoio ao Mestre de Aviz foi uma Revolução que mobilizou a arraia
miúda no assalto a Castelos fiéis à usurpação, e em emergências como as da fome no cerco de
Lisboa, ou na formação da heróica barreira da infantaria em Aljubarrota, acontece que o desfe-
cho de tão grande empenhamento popular, no domínio agrário, não representou para os campo-
neses mais do que uma enorme e injusta desilusão.
O País permaneceu submetido a pesadíssimos tributos senhoriais. É certo que muitas
rendas passaram a receita da Coroa pela supressão de imunidades que favoreciam o feudalismo
português que sofreu duro golpe. Mas foram raríssimos os casos em que o Povo teve alívio, de
tal modo que, mais tarde, Herculano havia de dar a tão grande carga fiscal o nome de «vexa-
mes» a justificarem outra Revolução. Os bens dos «traidores» não foram repartidos sequer em
courelas como as cedidas «aos pobres de Lisboa» por D. Afonso Henriques ao conquistar a Ci-
dade, mas disputados e partilhados por novos e ambiciosos senhorios. E, assim a estrutura
agrária manteve-se latifundiária, acabando por dar lugar a concentrações como a resultante do
casamento, em 1401, de D. Afonso, Conde de Barcelos e filho bastardo de D. João I com D.
Brites, filha única do Condestável D. Nuno Alvares Pereira. Este casamento fundou a Casa de
Bragança que, depois de anexar novos bens, se transformou no maior domínio agrário do País,
talvez não igualado por qualquer dos Grandes de Espanha.
No Sul, as sesmarias fernandinas permaneceram desertas e abandonadas, e os rurais, nas
choupanas, alimentavam-se com o caldo de subsistência, a rapina de animais selvagens na flo-
resta coutada, ou o pastoreio extensivo, à espera do milagre que, de qualquer forma, se aproxi-
mava.

O milagre era Ceuta

Do Mar tinham vindo à Península, Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos e Árabes.


Ao Mar se ofereciam os estuários dos rios portugueses e as praias do litoral onde povoações,
ligando a Terra aos Oceanos, se instalaram praticando a construção naval e albergando artífices
mareantes. Tais povoações constituíam a charneira da passagem do Mediterrâneo em direcção
ao Norte da Europa. Mas seria através dos Árabes que o Mediterrâneo se abriria ao Sul Afri-
cano, sugerindo percursos que poderiam alcançar o Índico onde os povos islamizados, a partir
de outras terras navegavam. O continente africano, tão próximo, mantinha-se o grande enigma
para a comunicabilidade terrestre e marítima. M. Emília M. dos Santos, afirma:
«desde a antiguidade que a África guardava o fascínio próprio do desconhecido e do
imprevisível. O Sará, desde tempos remotos, que ia perdendo a vegetação e afastando os ho-
mens. Velhas civilizações tinham ficado esquecidas: o deserto instalara-se entre o Norte de
África mediterrânico e o Continente Negro. A todos os avanços para o sul se deparavam as
areias desoladas, sulcadas por trilhos muito difícieis de seguir que, de oásis em oásis, atingiam
o Alto Niger e toda a savana sudanesa. Ao longo do Nilo, os Egípcios tinham chegado ao Su-

129
dão nilótico. Através deles os Gregos conheceram a existência da grande cidade africana de
Meroc, centro de uma importante civilização sudanesa, junto da actual Cartum. Os Romanos
tinham penetrado no interior, em busca das origens do Nilo. mas as suas ideias sobre a Africa
Negra eram extremamente fantasiosas. Na Idade Média, porém, à barreira do deserto vem jun-
tar-se a interposição do poderio árabe. O avanço do Islão, acentuando os isolamentos, trans-
formara a África numa terra inacessível e misteriosa para os Europeus. Reduzidos os contac-
tos a indagação só era possível através dos autores antigos e das notícias filtradas pelo mun-
do árabe.»
A 25 de Julho de 1415, «dia de Sant'Iago, o patrono da luta contra os infiéis», com a
Rainha D. Filipa de Lencastre vitimada pela peste e cumprindo pedido que fizera, agonizante,
para que nada se alterasse quanto a tão decisivo projecto, «todo o Portugal» embarcou para a
África. D. João I, seus filhos D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique e o Condestável D. Nuno Ál-
vares Pereira, assistiram à conquista de Ceuta. A grande mesquita foi «purificada, consagrada
e transformada em catedral» onde os três maiores da ínclita geração e vários nobres foram ar-
mados cavaleiros. Como em 711, em Geb al Tarique, ficava consolidada a união da Europa
com o Continente Africano, somente, o sentido da conquista era agora inverso ao da expressão
islâmica.

A Terra que fora berço, era espaço finito em Portugal

Efectivamente a agricultura medieval não podia ser programa de desenvolvimento.


Eram pouco diversificadas as culturas e de escassa produtividade os cultivares. O alimento hu-
mano baseado no pão fazia incidir o esforço agrário sobre cereais de sequeiro, como o trigo, o
centeio, a cevada, o milho miúdo ou painço, de grangeio difícil e pouco compensador. O com-
plemento hortícola, embora protector, reduzia-se ao feijão e couve, fundamentalmente, mobili-
zando escassos regadios de subsistência.
As técnicas de fertilização eram primitivas sendo os solos entregues a largo pousio. No
entanto, do ponto de vista agronómico, não se alcança vislumbrar rotação cultural que tenha
vigorado como rotina geralmente adoptada, como sucedeu em muitas regiões da Europa, com
a rotação bienal, que depois se modificou, passando a trienal, mais intensiva, com cereal de
Primavera. Embora nas terras mais férteis a cultura do trigo tenha assumido na rotação a po-
sição principal, alternando com outros cereais e com o pousio, a técnica de afolhamento das
unidades agrárias de produção parece representar preceito recente, que se torna possível depois
de suprimido no século XIX o compáscuo ou livre pastoreio do Sul. Com o pastoreio a domi-
nar o espaço agrário, as searas seriam tentadas na dependência dos favores do tempo, das chu-
vas ou das estiagens. A Fome ou a Abundância marcavam os ritmos da vida de uma forma im-
previsível e inexorável.
Embora a História assinale anos de cataclismo pelo excesso de chuvas ou de secura, o
problema não se reduziria a essas ocorrências, acontecendo que as técnicas agrícolas utilizadas
bem como os cultivares de que se dispunha, não conferiam a mínima segurança em face de va-
riações climáticas frequentes no território hoje português, pelo que eram grandes as oscilações
quanto a níveis de colheita.

130
O vinho estava longe de alcançar circuitos de comércio, como no tempo dos romanos,
mantendo, essencialmente, a arte local de hábeis viticultores, e a oliveira circunscrevia-se aos
arredores dos povoados. Importante, no aspecto de segurança alimentar, seria o pastoreio que
dominava em vastíssima área do território, livremente praticado em regime de compáscuo que
não consentia sesmarias fechadas quando incultas.
O território oferecia assim o aspecto de uma espécie de «openfield», onde a cultura ex-
tensiva de cereais, alternava com a deambulação dos rebanhos em transumância que permitia
aproveitar a pastagem estival das Serras, em alternância com a de Inverno nas Planuras. De
Norte a Sul, a paisagem agrária não seria muito diversa, porque os cereais cultivados eram os
mesmos, e o gado idêntico, oferecendo a notável particularidade de se apresentar melhorado
nalguns «berços» genéticos, onde valiosíssimas raças começavam a ser melhoradas. Com a
chuva abundante no espaço atlântico ou invernal no mediterrânico, os cursos de água, subme-
tidos a regime torrencial e as lavouras e queimadas nas encostas, desencadeavam a erosão dos
solos, cujos nateiros seguiam transportados para o litoral onde formavam extensos depósitos
aluvionares no Vouga, no Mondego, no Tejo, no Sado, no Guadiana e em rios menores. As flo-
restas ofereciam materiais para a construção naval e civil, lenha para manter vivo o lume das
lareiras, abrigo à caça das coutadas senhoriais, ou de rapina camponesa que se intensificava à
menor perturbação social.
Intimamente ligadas às comunidades rurais as profissões artesanais prestavam seus ser-
viços trabalhando o ferro e outros metais, mantendo indústrias como a de moagem de cereais
e de extracção de azeite, de viaturas de transporte, de ferração de animais, de ferramentas, de
armas, de tecidos, de calçado e vestuário.

Novas classes sociais, profissionais e urbanas

No entanto, o que caracteriza a evolução fundamental do período que estamos analisan-


do, é a formação de novas classes ou categorias sociais diferentes das camponesas. Jaime Cor-
tezão assinala: «é na segunda metade do século XII, terminadas as incursões dos piratas nor-
mandos, e muito reduzidas as dos muçulmanos que assistimos ao súbito povoamento do litoral
português. Não só, como demonstrou Alberto Sampaio, o Douro abriu então ao comércio ex-
terno e com ele vários portos do Norte nas fozes do Ave, do Lima e do Minho, mas, entre o
Liz e o Tejo, como nós mostrámos documentalmente. Paredes, Pederneira, S. Marinho, Alfei-
zerão, Selir, Atouguia, Lourinhã e Ericeira foram povoados e abriram ao comércio externo, uns
na segunda metade do século XII, outros na primeira do seguinte. Os portugueses de Setúbal
e a fundação de Odemira datam semelhantemente dos meados do século XIII».
Foi com esta base que se deu o incremento do comércio marítimo no sentido do Mar do
Norte, França, Inglaterra, Holanda, especial izando-se a população no comércio à distância, o
que foi o alicerce da nova burguesia. A força desta transformação afigura-se muito grande. Em-
bora não possa considerar-se, por si só, declínio do ruralismo que dominava a sociedade me-
dieval portuguesa, acontece que o poder popular passou efectivamente para a população con-
centrada nos centros urbanos que alcançou pelo menos o arranque da Revolução que deu a D.
João I o trono e manteve a independência.

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O feudalismo agonizante cai sobre os camponeses de Alcobaça

A transformação da sociedade portuguesa, depois da «revolução de 1383», reflectiu-se


no Mosteiro de Alcobaça, aniquilando a tradição dos Monges cistercienses que viram encerra-
do o seu ministério de criatividade agronómica e pacífica. Para qualquer Agrónomo causa má-
goa ler os comentários de M. Vieira Natividade que transcrevemos:
«O reinado de D. João 1 marca uma triste e dolorosa era na história dos povos de Alco-
baça. lnicia-se a decadência moral e laboriosa da Abadia e que traz, para os povos, o negro fan-
tasma da espoliação. É uma nova época que surge, fruto das transformações económicas, po-
líticas e sociais operadas no decorrer dos séculos anteriores.
Ao abade de Alcobaça manda o rei que tenha vinte arneses e, como consequência, gente
de armas. Ficava isto bem ao seu título de Fronteiro-mor dos Coutos, porque assim se envolvia
numa auréola de faustoso terror de que tanto havia de abusar.
O abade, cioso dessa prerrogativa, rapidamente transforma a sua corte de monges numa
corte de guerra, com grandeza e fausto até ali nunca vistos. Nas mais pequenas excursões fa-
zia-se acompanhar sempre pelos seus capitães e homens de armas.
E então, no meio do tétrico fulgir dos bacinetes, das grevas, das lorigas e dos braçais,
mal iria a humildade de um monge cisterciense dentro do burel branco do seu hábito; mal iria,
certamente, entre os montantes erectos, a proclamarem ameaças, ódios, sangue, a modéstia de
um servo do Senhor.
Estranha, rápida e inesperada transformação se opera no governo monástico nos últimos
anos do século XIV, transformação essa que aos colonos leva o desespero e traz aos monges a
maldição do povo.
Com o rápido progredir no campo da economia rural, com a assistência assegurada dos
colonos, já senhores dos terrenos desbravados, começa o Mosteiro a reconhecer que nos primi-
tivos forais haviam sido esquecidos capítulos de extraordinária importância, e que, além de
grande perda pecuniária, envolviam questões de ordem social que importavam ao seu senhorio
e posse.
Como malévolo reformador, entra Fr. João Dornellas no abaciato de Alcobaça. Quebra
de vez toda a simplicidade primitiva, transforma o monge trabalhador num espoliador infamís-
simo dos colonos, pratica todos os actos autoritários e violentos, próprios de um exagerado
feudalismo, até então desconhecido nas terras de Alcobaça.
Homem da corte, quer transformar-se em rei absoluto; torna-se rapidamente senhor da
vida, da liberdade e fazenda dos desgraçados colonos, e o frade, até então trabalhador e activo,
vê ràpidamente, inesperadamente, a sua missão de paz, amor e trabalho, convertida na de car-
cereiro, espião e executor de caprichos. Numa pretendida nobilitação da Ordem, errada orien-
tação do clero e de muitos nobres ao desaparecer o medievalismo, quer assegurar pela força
bruta, quer subjugar pela violência, quer apagar pela má fé e pelo dolo, os primeiros assomos
de independência que germinavam nos cérebros rudes dos homens do povo. Pretendia nobilitar
a Ordem, não pelo trabalho, senão pela fidalguia; transformar a comunidade numa corte e as
gentes dos Coutos em escravizados vassalos, e assim julgava poder realizar a sua desvairada
aspiração: ser rei absoluto de um minúsculo estado.

132
Na funda e gananciosa revisão dos forais concedidos, procura-se especialmente alargar
as fontes de receita indispensáveis ao sonhado fausto, a um louco anseio de grandeza.
A princípio, intervém-se com a mais odiosa violência: expulsam-se das suas casas, se-
minuas, as mulheres e as filhas dos colonos; prendem-se estes, ou, melhor diríamos, enterram-
-se nas grandes cisternas do Castelo; levam-se os moços e as raparigas para o trabalho particu-
lar e contra vontade dos pais; mantêm-se prisões até à cegueira, à loucura e à morte. Não são
mais repugnantes os actos do feudalismo francês e alemão.»
No entanto, as estruturas agrárias camponesas radicadas pelos Monges Agrónomos, que
o Abade D. João Dornelas, Fronteiro Mor dos Coutos, entregou a Monges Guerreiros, eram
tão fortes que, no terreno, resistiam a todas as violências, mau grado os sofrimentos que foram
impostos.

133
16 _ O PROGRAMA DOS DESCOBRIMENTOS

As navegações atlânticas estavam na lógica de um país marítimo situado no extremo


ocidental da Europa. As «Descobertas» haviam-se inserido na História ou na Aventura desde
as explorações da costa africana empreendidas pelo Almirante Pessanha com embarcações de
D. Dinis que, por ironia do destino, recebeu o cognome de «Lavrador». Quem sabe se, na har-
monia do pensamento que havia de impulsionar o fundamento científico dos Descobrimentos,
não estaria presente o lugar devido ao autêntico programa agrário, que havia de ser cumprido,
universal e inovador.

As motivações

A generalidade dos Historiadores procura a motivação dos Descobrimentos na necessida-


de de compensar carências de abastecimento fundamentais. A falta de cereais avultaria como
causa determinante, pela impossibilidade da agricultura territorial enfrentar o consumo que au-
mentava com o crescimento urbano. Mas, para certos comentadores o horizonte afigura-se mais
vasto, visado pelas ambições nacionais de um Povo enraizado em território aberto à circulação
de gente e de mercadorias a demandarem portos comerciais dos continentes europeu e afro-asiá-
tico mediterrânico. Tais portos recebiam embarcações que completavam o trânsito que vencia
longínquas distâncias asiáticas e africanas no Oriente e a Sul do Equador até ao Sudão. O mundo
conhecido era apenas o que se encontrava «civilizado», embora composto de «muitas e desvai-
radas gentes». Só muito mais tarde se veio a avaliar quanto era imenso e, em vastas áreas acultu-
rado, o mundo a descobrir. Mas, aos portugueses, o descobrimento apresentou-se como programa
em obediência a motivos que C. R. Boxer resume do seguinte modo: «os quatro motivos princi-
pais que inspiraram os dirigentes portugueses (reis, príncipes, nobres e mercadores) foram, numa
ordem cronológica mas sobrepostos em diversos graus: (1) um zelo de cruzada contra os Muçul-
manos, (2) o desejo de se apoderarem do ouro da Guiné, (3) a questão do Prestes João, (4) a pro-
cura das especiarias orientais». Facilmente se entende hoje que não faltaria aos descobridores
portugueses a previsão programada da revolução agrária que transformaria o mundo.

A revelação dos «selvagens»

Com a Europa isolada do espaço equatorial pelo Império Islâmico, tudo indica que a
primeira revelação do «selvagem» sob a forma humana na aparência, mas «desnudo e hirsuto»
teria ocorrido com a descoberta das Ilhas Canárias. Os primeiros exemplares capturados foram
submetidos a atenta observação comportamental e os que não morreram de doenças de que não
estavam imunizados, acabaram por ser aculturados pela via da escravatura. Todavia a escravi-
zação do «selvagem» afigurava-se impiedosa porque se não tratava de inimigo sectário de ou-
tra Fé, vencido na guerra e portador da culpa de ser infiel, mas simplesmente do produto da
captura de um ser humano mergulhado na Natureza e talvez dotado de capacidade para amar

135
e trabalhar. Como afirma C. R. Boxer, não se tratava de «antecipação portuguesa da concepção
do Bom Selvagem dos filósofos franceses do século XVIII» nem ainda do «selvagem irreme-
diável, sem fé, sem rei, sem lei», mas da revelação imprevista da capacidade de Ilhas povoadas
fornecerem escravos. Por isso se imaginava a desculpa de que a captura era bom serviço pres-
tado à causa da salvação da Alma, podendo os Pagãos vir a ser convertidos enquanto, de outra
forma, se perderiam nas veredas que conduzem ao Paraíso.
O que não oferece dúvidas será que, em termos do programa agrário, o «selvagem» ca-
nário se apresentou como ferramenta essencial para suprir a carência de escravos antes obtidos
pela guerra conduzida contra os Muçulmanos, até à conquista do Algarve. Daqui se poder de-
duzir a explicação do interesse que as Ilhas Canárias despertaram aos Portugueses que, desde D.
Afonso IV a D. João I. renovaram tentativas de ocupação territorial e de captura de «selvagens»
solicitando insistentemente a Roma o reconhecimento da Conquista, o que umas vezes foi con-
cedido, acabando por ser negado, em favor de Castela. Por essa altura outras Ilhas Atlânticas
também eram conhecidas dos Portugueses mas conservadas em segredo, por serem desertas.

A primeira planta revolucionária tropical

Desde os tempos primitivos que o mel era conhecido e apreciado. As abelhas extraíam-
-no das flores, como sustento dulcíssimo armazenado em favos, de que os homens e muitos
animais aprenderam a aproveitar-se. A partir de altura remota, mas não determinável, foi des-
coberta a possibilidade de extrair açúcar de uma planta, a cana sacarina, que passou a ser culti-
vada nos climas tropicais. Tal planta não viria a ser a única açucarada, acabando por encontrar
concorrência com a descoberta recente da beterraba açucareira, de cultura viável em climas de
temperatura moderada. A cana do açúcar, ou cana mélica, apresenta duas variedades botânicas,
a Saccharum officinarum, L., da família das gramínias, originária da Ásia Tropical e da Ocea-
nia, introduzida no Ocidente pelos Árabes, através da Pérsia, no Egipto, Sicília e Sul da Espa-
nha, e a S. sinense Roxb., cultivada no Norte da índia e China, também para a produção de
açúcar. O açúcar obtido a partir da cana sacarina alcançou mercados europeus com o comércio
veneziano, começando por ser vendido em boticas, como produto medicinal ou de luxo. Em
breve o consumo se generalizou passando, o açúcar, a ser mercadoria de grande interesse co-
mercial que circulava, frente a Lisboa, transportado especialmente da Sicília para os portos da
Europa.
Por isso, conforme referem diferentes Historiadores, realizaram-se em 1404 no Algarve,
ensaios da cultura da cana sacarina em concessão dada a favor de João de Palma. Do ponto de
vista agronómico a cultura no Algarve não teria possibilidade de expansão económica, mas o
ensaio serve para deduzir que estaria em marcha o propósito de competir com o comércio ve-
neziano de açúcar, procurando local apropriado para implantar estruturas de produção que so-
mente viriam a ser encontradas em climas de influência tropical ou tropicais.

A plataforma da Ilha da Madeira

A «Insula de Legname» foi descoberta muito antes do povoamento, ou «redescoberta»

136
pelos portugueses, se acaso foi antes visitada por Fenícios, Gregos, Cartagineses ou Norman-
dos. Figura na cartografia de 1339 e 1384. O povoamento foi iniciado em 1425 com a funda-
ção de capitanias, que repartiam as terras em sesmarias. Conforme a designação da Ilha sugere,
o coberto vegetal seria constituído por densíssima floresta, impenetrável, onde somente o fogo
podia abrir clareiras que proporcionassem a prática de culturas alimentares. É ideia comum
que a Ilha foi intencionalmente incendiada, mas pode ter sucedido que os primeiros povoado-
res tivessem avançado com a técnica da «queimada», e teria sido acidental e, com certeza ines-
perado, o efeito que dessa prática resultou. A «queimada» propagou-se a toda a Ilha, que se
manteve a arder durante alguns anos, tal como sucedeu noutros territórios colonizados. Nas
clareiras do monumental incêndio foram-se estabelecendo os povoadores que instalaram os
alicerces da produção alimentar ensaiando culturas conhecidas e praticadas no Continente. No
entanto, muito cedo foram mais longe, conforme relata J. Lúcio de Azevedo, referindo que o
ensaio da cultura da cana sacarina passou do Algarve à Ilha da Madeira na capitania do Ma-
chico — «o ensaio da nova plantação fez-se em terras hoje no centro da cidade, a que chama-
ram Campo do Duque (Infante D. Henrique), talvez em lembrança do facto».

A tecnologia do açúcar exigia o escravo

Com os bons resultados obtidos no Machico, logo se confirmou o programa de D. Hen-


rique que teria assumido efeitos quanto ao povoamento da Ilha. J. Lúcio de Azevedo comen-
ta:
«não sobravam no reino os trabalhadores rurais e aqueles que buscavam as Ilhas do
Atlântico pretendiam ser donos das leiras, e não assalariados nelas. A cultura do açúcar, para
dar vantagem, tinha de fazer-se em larga escala, demandando assim cópia de braços; e se era
duro o labor do campo, mais ainda, além de perigoso, o que no engenho se prestava.»
Do Mochico, a cana sacarina propagou-se a toda a Ilha. O melaço era obtido espremen-
do a cana em moinhos manuais, que mais tarde foram substituídos pela tracção animal e hi-
dráulica. Moída a cana, o sumo era levado a caldeiras onde cozia até ir às formas, a coalhar.
Por isso «mouros do Algarve e de África, canários e guinéus trabalhavam no campo e junto às
caldeiras». E, noutro passo, «com efeito, a produção de açúcar era, por tradição e necessidade
de trabalho, de cativos. Tal se mostrava nos países do Levante, de onde a indústria procedia, e
tal se poude estabelecer na ilha portuguesa, novamente descoberta, desde que a costa africana
ministrava os braços, tantos quantos fossem necessários. Foi sem dúvida este pensamento que
induziu o Infante a mandar vir da Sicília, onde também os cativos trabalhavam, a preciosa cana
e os mestres da arte».
Com a concorrência da produção portuguesa ficaria encerrado o «ciclo do açúcar» na
Sicília, que determinou efeitos irreparáveis de erosão dos solos, que não permitem hoje avaliar
o que teria sido a grande Ilha mediterrânica, quando disputada pelos Impérios da Antiguidade,
pelo seu valor quando mantinha a ecologia conservada.
J. Lúcio de Azevedo, comenta, em relação à Madeira:
«da ilha saíam carregados os barcos, a levar o produto às gentes ávidas de um gozo, que
dos ricos da terra baixava ao burgo. Estendeu-se a cultura a um mundo novo; prosperou, e en-

137
tretanto era a África despojada de seus filhos selvagens, para que tivessem os civilizados um
barato manjar. Às caravelas dos portugueses seguiam-se embarcações de todas as bandeiras,
espanhóis, ingleses, franceses, holandeses, quantos outros? participaram no rendoso tráfico.
Séculos durou a sangria espantosa do sertão negro. À medida que a cana sacarina se propagou
além Atlântico, foi-se tornando mais intensa a caça ao homem no continente infeliz. E indubi-
tável que ao açúcar se deve o desenvolvimento da escravatura no seio da civilização moderna.
Sem negros não havia açúcar.»
Da Madeira, pela mão dos portugueses, a cultura da cana sacarina passou aos Açores
onde não encontrou condições ecológicas favoráveis, e depois a S. Tomé onde abriu o primeiro
dos ciclos culturais de relevância económica. Todavia, segundo Tomás Morbey, num Colóquio
sobre «A acção dos técnicos agrários portugueses nos trópicos» realizado na Sociedade de
Ciências Agrárias, os efeitos da cultura foram mais desastrosos do que na Madeira: «a ocupa-
ção de largas áreas cultivadas com cana agravou o problema da degradação do meio ambiente,
através de um processo de intensa erosão do solo, sendo hoje ainda visíveis, especialmente no
Norte de S. Tomé, os efeitos do fenómeno a que nos reportamos. Com efeito as derrubas da
floresta e as mobilizações do solo a que a cultura da cana obrigava, deixavam este a descober-
to, tornando-o pasto das enxurradas frequentes que as elevadas precipitações favoreciam». O
referido Autor acentua que «o ciclo da cana do açúcar correspondeu ao mais negro período de
trabalho agrícola de S. Tomé e Príncipe, já pelas condições desumanas impostas aos trabalha-
dores-escravos já pela destruição do ambiente». Acrescenta que o Padre António Vieira «com-
parava a actividade nos engenhos com o inferno». Mas, relata ainda que «em 1590 o negro Ar-
mador proclamou-se rei da Ilha de S. Tomé, o que veio abalar um tanto todo o sistema agrário
implantado à base da cultura da cana. Por sua vez, em 1600, um ataque de uma esquadra holan-
desa comandada pelo almirante Van Der Don. dá origem a uma destruição e saque na maioria
das empresas agrícolas, o que representou o golpe de misericórdia na indústria açucareira san-
tomense. A permanência dos holandeses prolongou-se até 1644, ano em que foram expulsos
pelos portugueses».
A cultura da cana sacarina passou, também a Cabo Verde, onde se instalou sem propor-
cionar ciclo cultural de importância económica. Manteve-se, constituindo, fundamentalmente,
a base do fabrico de aguardente consumida pela população.
De seguida, a cana sacarina, passou ao Brasil, onde lhe estava reservada entrada triun-
fal. Tal expansão foi sempre acompanhada pelo desenvolvimento da escravatura. Quanto ao
Brasil, o Padre António Vieira havia de nos legar palavras que não sendo de concordância
quanto ao modo como tudo acontecia, assumem tonalidade extremamente realista: «Sem ne-
gros não ha Pernambuco», assim proclamava em visita ao fabuloso império da cana sacarina,
que os portugueses ergueram nos Trópicos.
A navegação comercial de Veneza sofreu duríssimo golpe concorrencial. O comércio
marítimo português prosperou no tráfico de açúcar e de escravos. Com a expansão acelerada
da produção brasileira, o «ciclo da cana do açúcar» acabou por ficar encerrado na Madeira
que, mercê da protecção de um clima excepcional, não sofreu desastre ecológico. Acudiram
mais colonos que, em socalcos rasgados nos mais recônditos lugares, implantaram uma agri-
cultura diversificada de correctíssima adaptação ecológica. E, assim, o escravo do açúcar aca-

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bou por ser expulso da Ilha da Madeira, dando lugar a um mundo camponês, da «colonia»,
que encerrava vestígios subtis, mas bem marcados, de tradições medievais da servidão da gle-
ba.

No Mar... ao longo da costa africana

Ceuta era encargo desmedido e inútil em termos de povoamento. Encerrados os merce-


nários dentro das muralhas, não encontravam da parte da população islamizada qualquer espé-
cie de abertura que permitisse a construção de país novo. Não passava de orgulhosa fantasia o
acréscimo que o Rei de Portugal pretendia dar a seus títulos, ao afirmar-se Rei, não só de Por-
tugal, como também dos Algarves, de aquém e além-mar em África. Quanto ao Algarve de
aquém, estaria feita a integração, mercê da geografia, mas o além havia de ficar reduzido a me-
ras fortalezas litorâneas, arduamente conquistadas, penosamente defendidas, cuja posse, desde
muito cedo amargurava o Povo, com o espinho do Infante D. Fernando, Santo e cativo, nunca
remido, por ser impossível o preço do resgate. Efectivamente as fortalezas do litoral africano
debruçavam-se sobre a muralha da Religião Maometana, frente ao mistério impenetrável do
deserto do Sará. Assim, os caminhos de África não podiam ser outros senão os do avanço marí-
timo ao longo do litoral.

A tentação do Ouro

Encontrando-se pesquisado por romanos e árabes o Ouro de que Portugal dispôs no Rio
que conservou o nome, nos areais de Almada, e noutros raros locais, apenas ficaram esventra-
das minas exaustas. Impedido ou incerto o saque de tesouros arrecadados por inimigos despre-
venidos, especialmente depois da conquista do Algarve, não havia remédio senão tentar a sorte
de procurar o vil metal nas suas diversas e distantes origens. Esta seria a constante que se insta-
lara no pensamento íntimo, e secreto, de todos os que viam no comércio, a diversidade das fon-
tes de riqueza. A este propósito em «Viagens de exploração terrestre dos portugueses em Áfri-
ca», de M. Emília Madeira Santos, pode ler-se:
«Portugal iria tentar o domínio do comércio do ouro na sua própria origem. Convencido
de tal possibilidade, D. Henrique lança os seus navegadores na descoberta do Atlântico. Gon-
çalo Velho, navegando para lá das Canárias, ao longo da costa, chega à Terra Alta, já próximo
do Bojador, e vê a orla costeira do deserto arenoso. Os Portugueses sabiam que aquele deserto
ocupava uma faixa da África de costa a costa. Era o mar arenoso atravessado pelas caravanas
portadoras do ouro sudanês». Avançando pela costa os Portugueses tentam penetrações no con-
tinente no sentido de encontrar a capital do ouro, e «recolher informações das zonas mineiras
do Senegal e Alto Niger, do interposto comercial de Tombuctu e das caravanas que através do
Sará levavam o ouro para Cartago, Tunes, Fez e Cairo». E, assim, «o conceito dos Portugueses
sobre as terras de África era agora bem diverso das dúvidas com que tinham começado: a Áfri-
ca ao Sul da Mauritânia e da Etiópia adquiria nova dimensão e um novo aspecto. A autoridade
dos geógrafos antigos começava a ser substituída pela observação dos navegadores, seguros
das informações que transmitiam».

139
A luta pela sobrevivência do senhorialismo

O empenhamento do Infante D. Henrique nos Descobrimentos, teria recebido o apoio


cultural do Infante D. Pedro, viajante das «sete partidas do mundo» que deu notícia de centros
de actividade científica e tudo o que revelava o fabuloso Reino Cristão que, no coração de
África, poderia ser o fortíssimo aliado contra o Império Muçulmano. Em Portugal, o Pai da ín-
clita geração fora sepultado no Mosteiro da Batalha que mandara construir a dois tiros de besta
do campo de Aljubarrota. Seu filho D. Duarte teve curto reinado deixando o herdeiro que seria
D. Afonso V, apenas com seis anos. Depois da Regência da Rainha, o Infante D. Pedro, com
todo o seu prestígio de cultura foi escolhido para Regente. A Nobreza movimentou-se contes-
tando a «lei mental», idealizada por D. João I e promulgada por D. Duarte, que fazia reverter
bens à Coroa na ausência de varonia. Muito novo, rodeado de cortesãos interesseiros, D. Afon-
so V foi proclamado Rei e o Regente D. Pedro acolheu-se a seus domínios de Coimbra. Em
dado momento, usando de direitos senhoriais, recusou passagem ao Duque de Bragança que,
em tom de guerra, se deslocava com seu séquito militar. A intriga do Paço acusou-o de rebel-
dia. D. Pedro resolveu ir a Lisboa, parando a rezar em Alcobaça. Acabou por dar-se o encontro
do seu exército com o exército real de D. Afonso V em Alfarrobeira. Num dos dias mais tristes
da História de Portugal, em malfadado manejo de armas, morreu D. Pedro, o Infante culto e
ilustre, ficando «três dias insepulto» e. a seu lado, D. Álvaro Vaz de Almada, Conde de Avran-
ches, presente na qualidade de amigo, como ele armado Cavaleiro na conquista de Ceuta. Ana-
listas do triste acontecimento, concluem que, nesse trágico dia, os interesses privados alcança-
ram sobrepor-se, ainda, ao bem dos Povos e do Estado.
O reinado de D. Afonso V foi longo e fortaleceu a Nobreza ambiciosa que, embora di-
versa do estilo feudal europeu da época, manteve poderes senhoriais, e disputou, em manobras
palacianas, os favores do Rei. De qualquer modo, com largo dispêndio de recursos, a presença
portuguesa no Norte de África foi ampliada, mas as navegações atlânticas não mereceram estí-
mulo ou impulso assinaláveis. No entanto, mais pobre, Portugal herdou, do perdulário Rei
«Africano», seu filho El-Rei D. João II.

As Ordenações Afonsinas

A codificação das Leis medievais ordenadas especialmente a partir de D. Afonso II de-


correu no reinado de D. João I, tendo seu termo no de D. Afonso V. O Infante D. Pedro foi o
grande animador, particularmente durante a regência. Mau grado a oposição determinada, de-
pois de Alfarrobeira, quanto ao que resultasse da influência do Duque de Coimbra, as Ordena-
ções Afonsinas foram publicadas em 1446, passando a constituir a síntese do «sistema jurídico
nacional no conjunto peninsular».

140
17 — AS NAVEGAÇÕES, EM BUSCA DO DESCONHECIDO

D. João II, em vida de D. Afonso V, já se ocupara dos descobrimentos, tendo adquirido


experiência política. Por isso, mal assumiu as funções de Rei, convocou, com toda a solenida-
de, as Cortes de Évora, em 1481, tomando medidas de «concentração» do poder real. Tais me-
didas determinaram a oposição de Nobres, cujos poderes tinham recebido largo reforço duran-
te o reinado de D. Afonso V. A oposição chegou ao ponto de conjura apoiada pelos Reis de
Castela, sendo o Duque de Bragança o mais temível dos conjurados. Os Historiadores registam
que, nessa altura, a Casa de Bragança tinha os Senhorios de Braga, Vila do Conde, Monforte,
Penela, Alter e Ilha do Corvo, o padroado eclesiástico de Guimarães, Barcelos e Ourém e apre-
sentava 41 comendas na Ordem de Cristo e 80 igrejas. Podia prover as alcaidarias-mores de
Vila Viçosa, Monsaraz, Arraiolos, Monforte, Sousel, Alter, Borba, Evoramonte, Ourém, Porto
de Mós, Barcelos, Vila do Conde, Melgaço, Bragança, Montalegre, Viana e Outeiro. Os seus
títulos eram Duques de Bragança, Guimarães, Barcelos, Marqueses de Valença e Vila Viçosa,
Condes de Ourém, Arraiolos, Neiva, Faro. Faria e Penafiel. Eram suas 21 vilas e perto de 400
lugares. Podia recrutar nas suas terras um exército de 3.000 cavaleiros e 10.000 infantes. Seria,
o Duque de Bragança, o mais forte dos opositores às medidas ordenadas em Cortes por D. João
II. Foi preso em Évora e, depois de presente a cinco Juízes da Casa da Suplicação, doze mem-
bros da classe nobre e dois cidadãos, ao fim de três semanas de julgamento, condenado à morte
por traição e degolado na praça pública. Relatam as crónicas que El-Rei D. João II, ao ouvir
tocar o sino que anunciava a execução, «com os olhos cheios de lágrimas, e assi de joelhos es-
teve hum espaço rezando por elle, e chorando...». Os imensos bens do Duque foram confisca-
dos. A Duquesa acolheu-se a Castela, levando os filhos no regaço.
Em seguida, tendo D. João II descoberto que o Duque de Viseu, irmão da Rainha, tam-
bém fora conjurado, apunhalou-o por suas amãos e mandou degolar e esquartejar outros qua-
tro nobres e encerrar na masmorra do Castelo de Palmela, o Bispo de Évora, onde morreu. Ao
longo de um ano, D. João II ainda lavrou sentenças diversas contra conjurados. O Povo assis-
tiu, sem de tanto se aperceber, à consolidação do «absolutismo» quanto ao poder real.

Feito isto, regresso ao Mar

Não oferece dúvidas que D. João II e seus cosmógrafos se encontravam detentores, no


mais completo secretismo, do conhecimento científico da época em relação à geografia do
mundo. Por isso se iam empenhar na exploração do litoral do ocidente africano de modo a des-
cobrirem a forma de, penetrando no Continente, alcançarem os espaços conhecidos na Etiópia
oriental ou, noutra hipótese, contornarem por mar a África, a caminho da índia, no sentido do
Oriente. Historiadores facultam-nos a descrição e a cronologia dessas impressionantes tentati-
vas. Assim, para além dos riscos da navegação ao longo do litoral desconhecido «as explora-
ções terrestres vão revelar-se tarefa bem dura para europeus sem qualquer protecção contra um
ambiente desconhecido e um clima adverso».

141
O luso-tropicalismo nascente

Tratava-se efectivamente dos primeiros passos da epopeia do «luso-tropicalismo». A


realidade era só uma: pela primeira vez, deliberadamente, no ocidente atlântico, um grupo de-
cidido de exploradores do Mundo, contactava com espaços tropicais, iniciando a tarefa de des-
vendar todos os seus riscos e mistérios — «nem as febres mortíferas, nem as adversidades de
outra natureza, impediram os portugueses de conhecerem a África, desde a aridez do deserto
à exuberância da floresta equatorial».
Assim, D. João II, revelando o mais completo e seguro conhecimento científico do
Mundo na época, decide explorar a totalidade do Continente Africano a sul do Sará, enviando
expedições por dois caminhos:
No litoral do ocidente africano, «pela Guiné, através do Senegal, do Gâmbia e do Niger;
pelo Congo, atravez do Zaire; esporadicamente pelo Cabo da Boa Esperança».
Através do Mediterrâneo e Mar Vermelho, trilhando caminhos da índia e da costa orien-
tal africana, até Sofala, de há muito conhecidos. Nestas circunstâncias, conforme relata M.
Emília Madeira Santos:
«a penetração foi levada a efeito não só por portugueses delegados de el-rei, como tam-
bém por abexins, etíopes e negros utilizados como intérpretes. É indispensável lembrar os lan-
çados ou tangomaus, portugueses que se lançavam no sertão a viver fora da lei e faziam comér-
cio proibido pelo rei e particulares. Estes tangomaus chegaram a ter grande importância nas
sociedades indígenas. Assim um tal Ferreira, chamado pelos negros Galagoga, intrometeu-se
na política interna do império Grão Fulo, casando com uma filha deste. Aos lançados era dada
possibilidade de regressarem mediante pagamento de uma multa. Tratava-se de observadores
participantes que transmitiam um tipo especial de observação tal como séculos mais tarde viria
a acontecer com os colonos. Relacionada com a penetração do Continente está a política de
amizade com os potentados da costa de África. Embaixadores, missionários e comerciantes fo-
ram enviados, quer às velhas civilizações islamizadas do Sará ocidental e do Sudão, quer aos
potentados negros da floresta que cobria a faixa marítima até ao Congo.»
Tudo isto acontecia 300 anos antes das grandes e conhecidas explorações africanas de
outros «pioneiros» modernos que mobilizaram as atenções das Sociedades de Geografia.
É impressionante a certeza de que, nesta época, «o Reino de Benim foi o primeiro po-
tentado negro da floresta a ser conhecido com certa profundidade, pelos portugueses. Pouco
depois da construção do Castelo da Mina, fundou-se a feitoria do Benin».

O fascínio dos trópicos

A referida Autora comenta:


«Para o sul do reino de Benim, a zona das florestas descia até à foz do Zaire, onde o rei-
no do Congo, já habitado por negros bantos, chegava no seu limite mais ocidental até à costa...
Diogo Cão e os seus companheiros (1482) foram os primeiros exploradores da região.»
Com estas descobertas a presença da África tropical ficava consolidada em Lisboa. As
ruas eram percorridas por escravos negros e «na corte eram educados filhos de reis e nobres

142
africanos». A Casa da Mina apresentava produtos exóticos. Surgiam na Cidade pequenos «jar-
dins botânicos» onde se tentava aclimatar plantas tropicais como os dragoeiros da Guiné. Ha-
via exposição de peles de crocodilo, de cobra e lobo marinho. No pátio do palácio real podia
ver-se um camelo, e no castelo estabelecia-se uma espécie de «jardim zoológico», onde se exi-
biam magníficos leões. Por toda a parte «macacos e papagaios, alegravam a cidade». Nestas
circunstâncias, quem «quizesse saber as últimas novidades sobre a África devia vir a Lisboa.
Bem o sabiam os espiões das grandes cidades marítimas italianas e alemãs que, rompendo a
barreira do sigilo que envolvia tais assuntos, de cá levavam preciosos informes secretos».
Por esta altura o «luso-tropicalismo», embora contivesse um doloroso comércio de es-
cravos, não se apresentava ainda «colonialista» e D. João II procurava consolidar alianças com
potentados africanos que auxiliavam nos negócios. Assim, o Reino do Congo ficou ligado ao
Reino de Portugal desde que, em 1489, na Vila de Palmela, um Príncipe africano recebeu, com
toda a pompa, a água baptismal. O Soberano português na presença de luzido e aristocrático
séquito, deu-lhe o seu nome, João. E, mais do que o nome, deu-lhe ainda o direito ao uso de
D. João, e o tratamento de «Primo». Quando o Príncipe Cristão retornou a África, a seus do-
mínios, renegou a Fé mas, seu filho, também baptizado, veio a ser D. Afonso, Rei Cristão do
Congo independente, que suplicou a D. Manuel I o envio de Missionários e de Artífices a mo-
dernizarem a vida do seu Povo. O Rei do Congo não era, nessa altura, nem sequer vassalo, mas
aliado.
Explorado o Zaire, onde os bois pastoreados, pela primeira vez foram cangados, D. João
II entregou a Bartolomeu Dias o encargo de navegar à descoberta da passagem do sul. Em
1487, os navegadores dobraram o Cabo a que chamaram das Tormentas, alterando-lhe D. João
II, o nome, para «Cabo da Boa Esperança».

D. João II perde o muito amado herdeiro

Em 1490, o Príncipe herdeiro, D. Afonso, filho único de D. João II, casou em Évora,
com grande pompa, com a Princesa D. Isabel, filha dos Reis Católicos. Narram os cronistas
que, para evitar o efeito da peste, a cidade foi evacuada durante quinze dias, sendo percorrida
por rabanhos. No entanto, mesmo assim, não foi afastada a Morte que se apresentou ao Prín-
cipe configurada de outra forma também usual na época. Passado pouco tempo, D. Afonso
morria da queda de um cavalo. D. João II acompanhou ao túmulo da Batalha o Filho que era
a sua esperança, sofrendo o mais lancinante dos desgostos.

A partilha do Mundo

Tudo indica que D. João II conservava, em segredo, o conhecimento do Continente


americano que se havia revelado, como se fosse o extremo oriental asiático, a navegadores
que, no Atlântico, procuravam novos caminhos em torno do Mundo. Por isso alcançou demar-
car, no Tratado de Tordesilhas, em que dividiu o Mundo com o Rei de Castela, o meridiano
que deu ao Brasil destino português. Pouco depois D. João II morreu e foi-lhe reservado o cog-
nome de «Príncipe Perfeito». Em testamento deixou o trono a seu primo, «muito estimado»,

143
D. Manuel, filho do Infante D. Fernando que era irmão de D. Afonso V. D. Manuel que nunca
teria previsto ser Rei era um Nobre poderoso que recebera os títulos e honras de seu irmão D.
Diogo, Duque de Viseu, conjurado que El-Rei D. João II por suas próprias mãos executou.

Reposição de aristocratas banidos

O novo Rei refez a Casa de Bragança no exílio, restituindo a posse das suas vastíssimas
terras e de mais de cinquenta Castelos. Suprimiu regalias populares, emendando depois a mão,
ao entregar a seu aio D. Diogo da Silva Menezes o Condado de Portalegre. Mas privou os bur-
gueses do Porto de muitas das suas conquistas contra poderes aristocráticos. Cumulou de im-
portância D. Jorge, o bastardo de D. João II, Duque de Coimbra.

A expulsão dos Judeus

Vinham de longe os conflitos sociais entre Cristãos e Judeus. No entanto, o problema


apresentava maior acuidade noutros Reinos da Península, sendo notória a fuga de Judeus per-
seguidos em Castela que procuravam abrigo em Portugal. Muitos, depois de terem sido decla-
rados convertidos pela força das circunstâncias, retomavam a sua Fé. Tempos antes, por altura
da Revolução de 1383, morto o Conde de Andeiro e precipitado o Bispo de Lisboa da torre da
Sé, a população chegou a tentar o massacre dos Judeus na Cidade. O Mestre de Aviz evitou tal
violência e depois, durante o seu reinado, assim como no de D. Duarte, de D. Afonso V e de
D. João II, foram constantes as medidas régias protectoras da vida e dos interesses de Judeus
ameaçados. No entanto, tais medidas não evitaram o assalto à Judiaria Velha, verificado em
1449, durante ausência em Évora de D. Afonso V. Baquero Moreno documenta o acontecimen-
to e demonstra que foram grandes as dificuldades do Rei para executar o castigo dos culpados
e garantir a harmonia entre os dois grupos sociais que praticavam, especialmente por parte dos
Judeus, a mais severa das segregações sociais. O isolamento comunitário judaico tinha respos-
ta na demarcação de Judiarias em bairros de cidades, e na manutenção de preconceitos que se
arreigavam no espírito dos Cristãos.
O Autor citado refere a síntese de M. Viegas Guerreiro, que se nos afigura lapidar. Os
Judeus eram «responsáveis pela morte de Cristo, sofrendo como castigo do seu acto a diáspora
atravez do mundo; matavam crianças inocentes, bebendo-lhes o sangue; profanavam as hóstias
consagradas e flagelavam as imagens de Cristo; tinham parentesco com Satanás; praticavam a
usura e constituíam uma raça impura de idólatras e sedomitas». Era assim da Cidade ao Campo
e o pior foi quando os Reis Católicos ordenaram a expulsão de Judeus e Mouros em Castela.
D. Manuel, que negociou o seu casamento com D. Isabel, viúva do malogrado Infante
D. Afonso, filho de D. João II, que era filha dos Reis de Castela, inclinou-se no alinhamento
quanto à política adoptada em obediência aos referidos preconceitos, que dariam também co-
bertura a interesses económicos mais profundos, de há muito latentes. Os Judeus foram expul-
sos e a comunidade portuguesa viu modificada a sua estrutura social, perdendo valores huma-
nos efectivos, de um modo que se torna difícil avaliar. Nos meios rurais a condição de Judeu
passou a ser muita vez escondida, começando a ver-se, em Trás os Montes, penduradas à la-

144
reira, as alheiras que simulavam os cristianíssimos chouriços de carne de porco, quando ensa-
cam apenas carne de galinha.

O caminho marítimo para a índia

D. Manuel mandou concretizar o sonho antigo do Infante D. Henrique e de D. João II


fazendo partir as naus de Vasco da Gama que chegaram, finalmente, à índia. Estava descoberto
o caminho que a África mantivera encerrado. Mas os Povos e Territórios que por esse caminho
foram contactados faziam parte do velho mundo há muito identificado com a actividade co-
mercial a que se entregavam. De novo, Portugal encontrava-se em confronto com a influência
Islâmica que, através do Oceano Índico se adiantara no comércio marítimo e na expansão reli-
giosa. Mas, apesar do confronto ocorrer em mares longínquos, Portugal iria destruir, mercê de
duríssimos golpes militares. Cidades e equipamentos navais de enorme importância, à procura
do domínio exclusivo da navegação. A europeização encontrava nos portugueses os pioneiros
da construção de um Império na índia, imprevisível e com certeza utópico. Os Portugueses fo-
ram mais longe, contactando antiquíssimas Civilizações na China e no Japão. Embora a par-
cela do Mundo por esta forma explorada já tivesse entregue ao ocidente europeu, por outras
vias, grande parte do seu valor ecológio e comercial, os Portugueses intensificaram o intercâm-
bio abrindo novas perspectivas que rapidamente exploraram.

Os reflexos nos monumentos e nas artes

Por toda a parte, no território português se instala e expande a influência e a sugestão


dos novos contactos universais. No estilo, dito «manuelino», adoptam-se símbolos das navega-
ções e mesmo das plantas novas como as maçarocas do milho americano. No mobiliário, o in-
do-europeu atrai as atenções dos artífices, o mesmo sucedendo quanto à ourivesaria e à ilumi-
nura. A riqueza constitui o suporte da monumentalidade de Conventos e Residências senho-
riais que a economia local nunca poderia justificar.

A descoberta do Brasil

Logo depois, D. Manuel enviou Pedro Álvares Cabral ao Brasil. Ficava assim aberta ao
Mundo a perspectiva de quatro continentes desvendados. A simultânea viagem de Cristóvão
Colombo à América do Norte abria os caminhos do Ocidente. Efectivamente, o descobrimento
da América, de Norte a Sul, representava o contacto com espaço ecológico inteiramente novo,
passando a Europa a ter oportunidade de convívio, particularmente difícil, com comunidades
de «selvagens» cujas condições de existência dificilmente poderiam ser entendidas. O contacto
com a América facultou plantas, mais do que animais, que revolucionaram as técnicas agrárias
nos velhos continentes, acabando por alimentar a explosão demográfica dos séculos seguintes.

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18 — MEIO MUNDO DESCOBERTO

Não oferece dúvida que os descobrimentos proporcionaram ao acto administrativo di-


mensão e sentido inteiramente novos. Todavia, esta circunstância não exclui a necessidade de
conferir à gestão local o sentido que se ajustasse, em coerência, à ambição, certamente desme-
dida, do governo da metade do Mundo negociada em Tordesilhas.

Reformas administrativas

D. Manuel encontrou múltiplos e diversos Forais instituídos em diferentes Terras por


seus antecessores, sempre atentos ao povoamento e, por vezes, às aspirações dos Povos. Os
Forais representavam, assim, a expressão de regionalismo diversificado, pleno de particulari-
dades que não deixando de proporcionar valiosíssimas originalidades políticas contrariavam,
no entanto, a unidade da vida nacional. Não somente na linguagem, como também no conteú-
do, era bem diverso o Foral de D. Henrique, ou outro de qualquer dos Reis da Primeira dinastia
e muito mais os Forais modernos da Segunda dinastia. Por isso, D. Manuel resolveu mandar
proceder à revisão dos Forais, o que foi feito sistematicamente em obediência a normas que
hoje diríamos tecnocráticas. Assim, os novos Forais manuelinos apresentam-se esvasiados do
conteúdo político, transformando-se, segundo opinião de especialistas, em pautas aduaneiras
que conferem a tão fundamental instrumento do regionalismo, o forte sentido de aparelho de
cobrança de receitas que, aliás, muitos dos Forais antigos já continham.
O propósito de reforma da sociedade portuguesa foi mais longe interessando o domínio
dos pesos e medidas, que permitia normalizar o comércio. Finalmente, a organização do Esta-
do burocrático e mercantilista conduziu à publicação das Ordenações Manuelinas, que introdu-
ziram nas Ordenações Afonsinas, que permaneceram básicas, ajustamentos onde poderá ser
encontrada influência e propósitos de modernidade.

As Misericórdias

O homem integrado no ecosistema será tão pobre ou tão rico quanto for baixo ou eleva-
do o nível dos consumos proporcionados pela «produção natural». Este conceito, estritamente
ambiental, decorre da ideia de que, em fases iniciais da existência humana, tudo funciona em
termos de livre apropriação de recursos e de produtos. Assim, a pobreza ou a miséria que even-
tualmente se registe, será predominantemente ambiental ou ecológica. Todavia, no decurso da
evolução histórica, com a instalação da agricultura a produção campesina procura adaptar-se
aos níveis da autosuficiência, alcançando-a no enquadramento de ecologias compatíveis. Mas,
nos quadros sociais que estamos analisando, o processo de «apropriação da produção campe-
sina» praticado por agentes exteriores, assume diferentes expressões e diversa intensidade. Se
a apropriação transpõe determinado limiar instala-se nos campos a pobreza ou a miséria que
não será ecológica mas social, umas vezes conjuntural ou de crise e, outras vezes, estrutural e

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arrastada. Este pobreza conduz ao desapego das populações campesinas em relação à sua acti-
vidade. ao êxodo dos campos em busca de melhor destino, à vagabundagem quando esse desti-
no não é encontrado.
No entanto, o problema não se reduz à simplicidade segundo a qual ficou esquematica-
mente descrito. No período histórico da senhorialização medieval as situações resultantes do
processo foram extremamente complexas e os comportamentos sociais reflectiam dependên-
cias que dificilmente se integram na análise da economia funcional. Baquero Moreno observa
que:
«dificilmente podemos integrar o vagabundo no mundo dos pobres, nos fins da Idade
Média, apezar de muitas vezes aparecerem confundidos na própria documentação. O vagabun-
do é em geral um falso pobre que vive sobretudo da ociosidade e da vida parasitária. Enquanto
no século XIV o vagabundo é em grande parte o fruto da depressão social e económica que
afecta a Europa Ocidental e por conseguinte actua ainda dentro de um certo esquema indivi-
dualista, a partir do século XV organiza-se em grupos ou bandos, numa sociedade em que a
lenta recuperação demográfica e económica constituía uma realidade.»
De qualquer modo, a pobreza ou miséria correspondia a situação social fortemente im-
plantada, talvez tanto maior quanto mais a população se desprendia, pelo êxodo rural, do apoio
alimentar que a terra minimamente assegurava. Mas, simultaneamente, não faltavam sinais ex-
teriores de riqueza concentrada em estratos sociais privilegiados. Noutra face do edifício por-
tuguês contemplava-se a referida imagem da abundância especialmente induzida pelo comér-
cio marítimo. Por isso, em 1498. D. Leonor, Rainha viúva de D. João II, fundou as Misericór-
dias. Teria obedecido a sugestão de Frei Miguel Contreiras que conhecia a iniciativa de Fran-
ciscanos italianos que, em 1462, haviam fundado o primeiro monte de piedade. Todavia, ao
contrário dos montes de piedade que promoviam empréstimos gratuitos a agricultores pobres,
cobrando esmolas por serviços prestados aos ricos, a Misericórdia portuguesa nasceu ampla-
mente filantrópica, acudindo a enfermos, a crianças, a velhos, a condenados, a viúvas, manten-
do hospitais e albergarias. Iam mais longe as Misericórdias resgatando escravos, prestando
consultas médicas, remédios, enterros a gente necessitada, tomando conta de crianças expos-
tas. distribuindo esmolas à pobreza envergonhada e fazendo distribuição diária de sopa carita-
tiva de entrega anónima. A primeira Misericórdia foi instalada em Lisboa mas, depois, alastra-
ram praticamente a todo o País, estruturando-se a nível concelhio.

A alvorada de uma Agronomia portuguesa mundial

No período inicial dos descobrimentos os Estudos Gerais iniciados por D. Dinis não se-
riam mais do que modestas Lições proferidas por Professores que deambularam, com os Estu-
dantes, entre Lisboa e Coimbra, em busca de assento. A Universidade portuguesa não teria pa-
ralelo, por exemplo, com Salamanca, mesmo nos domínios da Teologia. É certo que se aproxi-
mavam tempos em que passaria a contar com Mestres como Pedro Nunes, dando-se ao luxo
de dificultar a entrada do cristão-novo Garcia da Orta. Embora a Ciência portuguesa alguma
coisa devesse aos Estudos Gerais, as Universidades estrangeiras e as deambulações pelo Mun-
do que aos portugueses se revelava, constituíam efectivamente o estímulo mais notável. Foi o

148
caso de Garcia da Orta que embarcou para a índia com o coração e os olhos abertos em face
do desconhecido. Julgamos não ser fácil ficar seguro do conhecimento do que existia ou de
qual o nível do ensino de Botânica que em Portugal mais poderia apoiar formações científicas
próximas da Agronomia. Agrónomos não os havia, diplomados. Mas, assim como se navegava
usando pilotos mouros aos quais os mareantes arrancavam segredos práticos bastantes, tam-
bém se tirava partido da experiência das rotinas agrárias sempre vividas e da enorme curiosida-
de de experimentar, em qualquer parte, o que era conhecido. A descoberta de novos territórios
revelou o Continente africano de há muito habitado, embora misterioso a sul do Sará, mas tam-
bém ilhas atlânticas desertas, porque apenas as Canárias foram encontradas povoadas.
Havia, por isso, largo campo para ensaiar as plantas cultivadas em Portugal e verificar
o comportamento de animais vulgares no ecosistema português. Em contrapartida, plantas e
animais deconhecidos eram trazidos a Portugal e também ensaiados.
Nas ilhas desertas despertou interesse a floresta natural que deu nome à Madeira, e as
aves, semelhantes ao «Açor», sem efectivamente o serem, que serviram para designar os Aço-
res. Em S. Tomé o clima era tropical e em Cabo Verde extremamente severo quanto a falta de
chuvas. Tendo em conta a ausência de plantas cultivadas nas ilhas desertas e a generalizada po-
breza da fauna, o povoamento foi precedido do lançamento de animais que, uma vez exponta-
neamente multiplicados, se prestariam a captura por parte de futuros povoadores. Tal prática
corresponde a solução empírica que representava o enorme risco de conduzir a profundas per-
turbações ecológicas. A escolha dos animais a lançar obedeceria a critérios baseados na capa-
cidade de resistência das espécies e no seu poder de reprodução em liberdade. De entre os ani-
mais domésticos, a cabra, a ovelha, o coelho, as aves, seriam os preferidos. Supõe-se que cer-
tas embarcações tenham exercido esta tarefa apresentando-se carregadas, como se fossem ar-
cas de Noé. Muito cedo, Gonçalo Velho foi «lançador de animais» nas ilhas dos Açores. No
que se refere a animais encontrados era notória a mansidão ou ingenuidade das aves da Ilha da
Madeira que não receavam a aproximação e a presença dos povoadores.
Quanto às plantas, as conclusões obtidas nos territórios descobertos eram muito diver-
sas. Na Madeira comportaram-se bem os cereais, como o trigo, que teria aberto o ciclo de pro-
dução inicial, logo seguido da cana sacarina, como se referiu, e a vinha, que viria a encontrar
o solar de um produto original de grande renome. Seguiu-se a cultura do pastel dos tintureiros
e da urzela que proporcionaram proveitosa exportação, que viria a ser seguida de outros ciclos
de culturas ainda não conhecidas nesta época. Nos Açores expandiu-se a cultura do trigo e epi-
sodicamente a da cana sacarina, seguida do pastel e da urzela e, com dificuldade e limitações,
a da vinha que somente na Ilha do Pico encontraria microclima que daria um produto que mais
tarde viria a ser muito apreciado por marinheiros russos. A oliveira não se adaptou a qualquer
das novas terras demonstrando a grande exigência que a caracteriza quanto a peculieridades
do clima mediterrânico. Em S. Tomé, o clima equatorial, e em Cabo Verde a escassez das chu-
vas, não permitiram a aclimação das mais típicas espécies atlânticas e mediterrânicas.
Do lançamento de animais resultaram desastres ecológicos como a multiplicação de
coelhos na Ilha de Porto Santo, que tudo devoraram por ausência de equilíbrio biológico na
falta de predadores. A introdução da cabra, embora vantajosa para garantir a alimentação de
colonos, desencadeou, especialmente em Cabo Verde, profunda alteração na flora pastoreada.

149
provocando a desarborização. Quanto a outras espécies pecuárias o ajustamento foi feito lenta-
mente até se encontrarem equilíbrios compatíveis. Nos Açores, por exemplo, só recentemente,
percorridos vários ciclos de actividade produtiva, é que foi encontrada a expansão vocacional
da exploração de gado bovino leiteiro. O cão domesticado acompanhou sempre os marinheiros
e, em certas ilhas, como na da Madeira, tendia a regressar às origens quando adandonado, as-
saltando rebanhos como o «avô lobo». Nas áreas tropicais, não poude transformar-se em auxi-
liar de caça porque dificilmente resistia a agressores traiçoeiros que o atacam com mordeduras
ou picadas venenosas.
Na parcela da África que se revelou aos portugueses durante a fase inicial das navega-
ções era muito escasso o número de plantas cultivadas. De qualquer modo o que essencialmen-
te se procurava era o ouro. Todavia o interesse pelas especiarias permitiu, muito cedo, montar
o comércio da malagueta, especiaria africana, que passou a ser associada ao comércio de es-
cravos que rapidamente se desenvolveu.
Uma das revelações da África teria sido a da enorme variedade de fauna selvagem, ca-
racterizada por densíssimos povoamentos de herbívoros e de carnívoros vivendo em perfeita
dependência trófica, a sul do Sará. A prodigiosa energia solar dos trópicos sintetizava em plan-
tas expontâneas matéria alimentar que estômagos vorazes de herbívoros transformavam em
carne e sangue ferozmente disputado por carnívoros.
Efectivamente a fauna escondia misteriosas revelações como a referida por Liz Ferreira
no magnífico estudo sobre «Os Gorilas do Maiombe português». Afirma que a primeira notícia
de Gorilas é dada por Cartagineses que navegavam ao longo da costa de África nos séculos VI
ou V a.C. e encontraram «uma ilha, que continha num lago outra ilha, estava cheia de homens
selvagens. As mulheres, muito numerosas, tinham o corpo muito peludo. Os indígenas chama-
vam-lhes Gorilas, e nós agarrámos três. Mordendo e arranhando os captores, eles não queriam
segui-los. Nós matámos alguns a que tirámos as peles que transportámos para Cartago». Se,
para os Cartagineses, se punha a hipótese dos Gorilas serem «homens selvagens», muito mais
exigente seria o homem moderno quando, ao fim de 22 séculos, duvidava se os «selvagens»
teriam Alma ou eram humanos.
Uma tradição muito antiga que se renovou nos tempos modernos em vez de ser banida,
levava o egoísmo dos povos cultos a entregarem o peso do trabalho agrícola ou o saguão da
vida doméstica a seres humanos reduzidos à condição de escravos. Tal circunstância deu ori-
gem ao comércio de negros que as lutas tribais negociavam como vencidos ou simplesmente
capturados na selva e que, arrancados ao sertão africano, eram transportados a velhos e novos
Continentes onde, por dinheiro, o peso do trabalho ou a submissão da mulher, sustentavam o
mercado que foi suporte das mais prósperas economias europeias: o do comércio dos escravos.

O algodão — a fibra mais divulgada

Com a designação botânica de Gossypium L, o algodão constitui uma das plantas produ-
toras de fibra cujo uso, na antiguidade, é difícil de determinar. Foi encontrado espontâneo na
Ásia e na América, embora sejam distintas as espécies botânicas. O seu uso mais remoto refe-
re-se à índia, e os Maias, Incas e Aztecas também o utilizavam. Sendo planta tropical andou

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sempre em cultura longe da Europa. Só recentemente, com a obtenção de cultivares de ciclo
vegetativo curto poude ser introduzida a cultura na zona temperada. Por isso os «panos» obti-
dos a partir da fiação e tecelagem do algodão foram objecto de comércio com o Oriente du-
rante muitos séculos. No entanto. Historiadores assinalam o arranque da primeira revolução
industrial em coincidência com a instalação na Europa da indústria de produtos obtidos a par-
tir do algodão importado.
Nestas circunstâncias afigura-se particularmente importante a decisão dos Portugueses
de instalarem e desenvolverem a cultura do algodão, muito cedo, em Cabo Verde, particular-
mente na ilha do Fogo, logo nos primeiros anos depois da descoberta como ficou assinalado,
por exemplo, no trabalho de António Carreira intitulado «Panaria, cabo-verdeana-guineense».
Embora cultivado o algodão em Cabo Verde, a tecelagem não se encontra assinalada antes de
meados do século XVI, estando já desenvolvida na Guiné, onde não bastavam os «panos» que
os Mouros transportavam por terra.
Depois, o algodão de Cabo Verde seria exportado para a Europa, incluindo Portugal. A
cultura estava intimamente ligada ao trabalho escravo, como esteve depois nos grandes espa-
ços onde se desenvolveu no continente americano. Em Cabo Verde «o escravo foi utilizado
quasi exclusivamente em trabalhos agrícolas, no pastoreio e na criação de gado e em activida-
des domésticas uma vez que não havia possibilidade de fiar e tecer algodão. Desenvolvidas,
poucos anos após a ocupação, as condições precisas, fácil foi, portanto, encontrar artífices.
Estes vinham em número apreciável em cada leva de escravizados». E, mais adiante, «já em
1582, Andrade, na sua Relação, aponta oito freguesias do interior de Santiago, onde existiam
600 homens brancos e pardos e 500 pretos forros casados, os quais terão em suas fazendas de
serviço de suas casas 5.000 escravos, 3.000 de confissão (isto é cristianizados) e 2.000 que se
ensinam para isso (submetidos a catequese). Vê-se, portanto, que paralelamente aos escravos
de comércio e aos escravos de trabalho existia uma classe de forros, possivelmente não livres
de todo, mas ainda assim gozando de relativa independência de movimentos e todos eles casa-
dos à face da Igreja». Foi mais tarde que a cultura do algodão se expandiu no Brasil e muito
recentemente na Africa de influência portuguesa, no período colonial.

A presença dos franceses no Brasil

O primeiro contacto dos portugueses com o Brasil revelou descoberta desmedida para
os recursos nacionais, mas nunca para o génio dos colonizadores. A expedição de Cabral, des-
coberto o Brasil, rumou à índia mas, em 1503, nova expedição de Gonçalo Coelho fundava a
primeira feitoria no Rio de Janeiro. Entretanto a notícia do feito correu célere pela Europa e
logo mercadores e corsários franceses vieram atraídos pelo comércio do pau-brasil. Tão grande
foi a implantação de interesses que, nos anos seguintes, pouco faltou para que a descoberta se
transformasse em colónia francesa.
Foi em 1530 que a expedição de Marfim Afonso de Sousa deu combate aos franceses
em Pernambuco, explorando o litoral e os territórios do Maranhão. Na Baía foi encontrado a
viver entre os índios, Diogo Álvares, a quem foi dado o nome de Caramuru e outros pioneiros
rodeados de caboclos. Em 1532 foi erguido o primeiro pelourinho do Brasil, construída a pri-

151
meira capela, na primeira Vila, nomeado o primeiro Pároco, distribuídas as primeiras terras
em Sesmarias. Mas, antes, no alto da Serra, morava João Ramalho que os Cronistas descrevem
como o mais notável dos colonos que chegara, não se sabe como, e vivia com Bartira, a amo-
rosa índia de quem tinha descendentes que povoaram os Campos de Piratininga.

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19 — O CONVÍVIO COM DIVERSOS POVOS

Não oferece dúvida que na fase inicial dos descobrimentos a Agricultura portuguesa es-
tava muito longe de constituir sistema inteiramente protector das necessidades nacionais. Por-
que a abundância das colheitas era o alicerce das explosões da vida, não se alcançavam resulta-
dos que permitissem ir mais além de moderada subsistência. Deve admitir-se que a penúria,
em grande parte devida a perturbações climáticas para as quais não havia defesa, abria ciclos
trágicos de fome e de morte. Vivia-se do esforço de selecção de plantas e de animais que fora
decisivo por parte das Civilizações mediterrânicas, mas que era imensamente escasso, tendo
em conta a enorme variedade de exemplares da flora e da fauna naturais que hoje se pode veri-
ficar encontrarem-se mantidos no estado selvagem ou escassamente integrados nas rotinas
agrárias de outras comunidades do Mundo, acabadas de descobrir.
Será este o ponto essencial que polariza a atenção do Agrónomo. E porque não somos
Historiador, não podemos decidir se a força que transformou os portugueses desta época em
autênticos Agrónomos universais, veio de D. Dinis quando enviou as suas barcas ao Mar, se
do secretismo do pensamento de Templários condenados, talvez, por saberem muito a respeito
do Universo, se das viagens de D. Pedro das «sete partidas», a saber do «Livro», se da convic-
ção obstinada de D. Henrique, em Sagres, ou do «punho a segurar o leme» de El-Rei D. João
II. Não se duvida que ao Povo faltava o Trigo. Mas o Trigo tem o valor de um símbolo, como
o do Pão. A ideia de que D. João I, com a ínclita Geração e os Companheiros, foi a Ceuta à
procura de Trigo, afigura-se imensamente pobre. O pensamento agronómico das Descobertas
tem outra dimensão, outra grandeza, representando, de entre todas as motivações possíveis, a
que determinou mais generoso e duradouro alcance. Para além de se pretender dilatar a Fé, o
que se não discute, não era apenas o Ouro que se procurava, nem somente as especiarias para
Comércio, mas também as Plantas e os Animais diferentes dos conhecidos e as terras sem fim
onde tudo pudesse ser cultivado. Na História da Humanidade, nunca Sonho maior foi alguma
vez sonhado, nem mais ajustado às esperanças colectivas, do que o de transformar o Mundo
através de uma Revolução Técnica que promovesse novo arranjo ambiental agrário, mais ge-
neroso e farto. O tema é aliciante, mas imensamente vasto, e nunca despertou a atenção dos
Historiadores no seu aspecto global, pelo que apenas podemos, neste trabalho, facultar referên-
cias parcelares, respeitantes ao convívio dos portugueses com outros povos do Mundo, deten-
tores de património agrário diverso.
A descoberta de novos espaços geográficos, ou melhor, o início da exploração de espa-
ços contactados, que permaneciam no seu isolamento de sempre, proporcionou aos portugue-
ses meios que permitiram revolucionar as técnicas e modificar os sistemas produtivos. Por in-
fluência dos portugueses a agricultura mundial beneficiou da adopção de novas plantas e ani-
mais quando a aclimação de cultivares exóticos ou de espécies o consentiu. Teremos ocasião
de notar a acção desenvolvida por navegadores portugueses e espanhóis nas suas deslocações
intercontinentais. Acentue-se porém que o processo não é novo na História da Humanidade. A
difusão de plantas e de animais foi sempre praticada por todo o nómada migrante da antigui-

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dade, explorador de Comércio ou construtor de Império. A diferença que encontramos em rela-
ção aos factos desta época resulta da convicção que temos quanto à existência nos centros de
decisão ou de comando dos navegadores portugueses da Ideia a que hoje damos a configuração
de um Plano cientificamente organizado. Tudo corresponde a uma epopeia, da qual os portu-
gueses foram os pioneiros, ao impulsionarem renovados meios de transformação da face da
Terra, humanizando ambientes desertos, aculturando outros, povoados, na complexidade de
Tecnologias que nem sempre poderiam respeitar as Leis que regem o equilíbrio das Forças Na-
turais.

A primeira planta revolucionária do Continente americano

O Continente americano guardava, para transformar a agricultura mundial, maravilho-


sas plantas, sendo escassa a fauna que mantinha. Logo no primeiro contacto Colombo encon-
trou, no Haiti, uma planta cultivada pelos nativos, a que davam o nome de maiz que, transpor-
tada a Espanha, foi ensaiada em Sevilha, cerca do ano de 1500. Tal planta veio a receber a de-
signação botânica de Zea Maiz, L. e, em Portugal, o nome vulgar de Milhão ou Milho. Em face
dos resultados deste ensaio e, com certeza, de outros, a cultura do Milhão difundiu-se na Euro-
pa e em África. Aconteceu, porém, que os Espanhóis vieram a encontrar, em diferentes parce-
las do território americano que ocuparam, o maiz intensamente cultivado, desde a América do
Sul até para além do México, constituindo a base da alimentação facultada por uma agricultu-
ra praticamente desprovida de outros cereais. Como o maiz era cultivado desde a América do
Norte ao Rio da Prata, os Portugueses também depararam com essa maravilhosa cultura no
Brasil, concretamente na Baía.
O que se afigura importante notar, desde já, é que o maiz constitui um caso original de
planta cultivada. Nunca foi encontrada planta que constituísse o «antepassado» de tão nobre
exemplar, no estado expontâneo. O maiz, tal como os seus descendentes actuais, só podem vi-
ver em cultura, estando a sua multiplicação dependente de intervenção humana, a menos que
uma ave atrevida descamise a espiga, como é possível, e debulhe o grão deixando-o cair na
terra. O Agrónomo Artur Castilho esclarece: «o milhão comparado com outras gramíneas pa-
rece uma monstruosidade, porque as suas sementes pesadas, fixadas num eixo carnudo e en-
volvidas por grandes brácteas, não podem destacar-se naturalmente». Segundo hipóteses pos-
tas quanto à sua origem, trata-se de mutação que se revelaria na feixiação das flores femininas,
a partir de plantas expontâneas existentes; ou de cruzamento do Tripsacum com outra planta
aparentada, talvez uma Andropogenia.
De qualquer modo a presença desta maravilhosa planta, que depois veio a revelar por-
tentosas potencialidades em face do melhoramento e da hibridação, suplantando hoje muito o
valor dos cultivares encontrados entre Maias, Aztecas ou Incas, representa um evento históri-
co notável e aparentemente bem esclarecido. Orlando Ribeiro em «Portugal, o Mediterrâneo e
o Atlântico» estuda pormenorizadamente a sua importância como suporte da transformação do
povoamento rural e, em artigo do «Dicionário de História de Portugal», esclarece aspectos fun-
damentais de problemas ligados às dúvidas que têm sido postas quanto à sua origem. A obs-
curidade aparente resultará do facto de ter sido dada a designação de milho a plantas cultivadas

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muito diversas. Orlando Ribeiro esclarece:
«Milium, milio, milho, milhom aparecem em documentos medievais, aplicados às se-
guintes espécies: Particum miliaceum, L., milho alvo, milho miúdo, milhinho; Sectária itálica,
Beauv., milho painço; ambos se desenvolvem em infrutescências a que se deu o nome români-
co de espiga. Fazem parte do velho património agrário do mundo mediterrânico. Eram cereais
de Primavera, cultivados de sequeiro, em terras enxutas (agras), e apenas o primeiro entrava
habitualmente, combinado com o trigo e cevada, nos pães meados, terçados e quartados, de
que se alimentava o povo; também se comiam em papas; cultivavam-se principalmente no
Norte, porque a secura do Verão meridional lhes era desfavorável.»
Mais adiante o Autor afirma:
«Em Africa são tradicionalmente cultivadas várias espécies de cereais, usadas em fari-
nhas, como papas e bolos, a que os Portugueses, e depois outros povos europeus, aplicaram a
designação de milho. Andropogon sorghum, Brot., milho zaburro, milho-das-vassouras, sorgo,
Pennisetum, sp., milho branco, milho miúdo. Provavelmente de origem africana, fazem em to-
do caso parte do velho património agrário do mundo negro. O primeiro foi introduzido em Por-
tugal, onde ainda é cultivado como grão para aves ou para, desgranado, se fazerem vassouras
dos caules e infrutescências; para zaburro (cf. castelhano ceburro) não foi dada nenhuma eti-
mologia decisiva.»
Orlando Ribeiro discute larga e sitematicamente a origem do Zea Maiz e as razões da
confusão com outros milhos antes conhecidos, defendendo a hipótese da introdução do milho
zaburro ser quasi contemporânea da presença do milho americano, o que justificaria a dúvida.
Acontece que o Historiador João de Barros, ao referir a existência em Africa de «milhos de
maçaroca», confundindo a infrutescência muito compacta de alguns sorgos com a espiga do
milhão, teria induzido em erro Historiadores menores, alguns modernos, que defenderam a
existência em Portugal de milhão pré-colombiano.
Sucede porém que as virtualidades deste cereal que veio a revelar-se revolucionário, de-
pendiam de exigências bem marcadas quanto a temperatura e humidade, bem como de fertili-
dade do solo. Por isso, em clima português a sua implantação acabou por exigir a expansão do
regadio, com a pesquisa e captação de águas, o nivelamento de terras e a construção de socal-
cos, para que o ciclo vegetativo se adaptasse ao Verão de escassa precipitação atmosférica,
obrigando também ao fabrico de estrumes, o que levou à estabulação do gado antes pastorea-
do. Do ponto de vista da produção o novo cereal ofereceu larga resposta ao consumo alimen-
tar tanto humano como pecuário. Entretanto as exigências da sua cultura acabariam por impor
aos camponeses a participação activa em vasta e profunda revolução agrária que, depois do
primeiro ensaio, decorreu ao longo de três séculos indispensáveis para que se processasse, em
vastíssima área do continente português e em Africa, a substituição da tradicional cultura ce-
realícola de sequeiro, pelo milhão revolucionário.

Casamentos reais. Alianças europeias

Com a morte da Rainha D. Isabel, considerada pelos Historiadores fanática e culpada


da expulsão dos Judeus, D. Manuel contratou novo casamento com D. Maria, irmã da Rainha

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extinta. No ano seguinte nasceu D. Isabel que viria a casar com o Imperador Carlos V, deixan-
do a tradição de grande tacto político e de prestígio social. Nasceu também D. João que viria
a suceder no trono, e vários Príncipes e Princesas ilustres, de entre os quais D. Henrique, Car-
deal e Rei no termo desventurado desta dinastia.
Quando o Príncipe D. João alcançou a idade das negociações de casamento, D. Manuel
escolheu D. Leonor, irmã de Carlos V. Entretanto a Rainha faleceu e. D. Manuel viúvo pela se-
gunda vez. resolveu casar com a noiva escolhida para o filho, com o argumento de estreitar po-
liticamente os laços com o maior Império europeu. Não é fácil avaliar ou entender se o Prín-
cipe D. João teve desgosto. Aconteceu que este último casamento de D. Manuel foi breve por-
que logo morreu. A diplomacia dos matrimónios reais ofereceu ao novo Rei D. João III a noiva
antiga, agora madrasta viúva, o que deu motivo a recusa irónica. No entanto, D. João III esco-
lheria para Rainha outra irmã de Carlos V, também irmã da viúva, de quem teve nove filhos
todos marcados pela morte prematura. Um deles, D. João, que chegou a dar esperança de vir
a ser herdeiro, casou com D. Joana, filha de Carlos V, e morreu no limiar do nascimento de D.
Sebastião, produto das mais apertadas ligações consanguíneas.
O Povo, longe do Paço, nem podia mesmo avaliar tudo quanto se passava neste domí-
nio, ameaçando a solidez do Reino, a cujos alicerces entregava sangue que, miscigenado com
o dos negros, de ameríndios e de orientais, se transformaria numa das mais espantosas das cria-
ções multiraciais do Mundo.

O comércio do Oriente

A ideia do monopólio comercial parece ter presidido à acção portuguesa nos mares da
índia. No entanto as posições conquistadas para apoio da navegação, constituiriam também a
forma de proporcionar casamentos de portugueses com autóctones que originaram profunda e
duradoura mistura racial. A administração foi entregue a Governadores-gerais que, por vezes,
assumiam a função de Vice-reis, com largas prerrogativas. E particularmente notável o efeito
da presença portuguesa no Oriente que constitui, sem dúvida, a guarda avançada da europei-
sação que havia depois de processar-se, com outros meios, e com a presença de imperialismos
do velho continente. Para os Portugueses o Oriente constituiu o efémero deslumbramento da
descoberta, o encanto científico e artístico da revelação do profundo contraste dos costumes,
das ideias e da ecologia, para além do proveito económico resultante das trocas comerciais e
da rapina de riquezas que se deparavam nas mãos de vencidos na guerra. Para os Portugueses
não foi possível manter no Oriente territórios com a configuração de países do futuro, mas ape-
nas resíduos pontuais, valiosos sem dúvida, como Goa, Macau, Timor, e núcleos dispersos de
sangue português, que nunca deixarão de conter profundo e efectivo significado humano e his-
tórico.

As ilhas atlânticas

Entretanto as ilhas atlânticas portuguesas continuavam a ser povoadas. A Madeira e os


Açores transformavam-se em viveiros humanos florescentes, onde as técnicas agrícolas roma-

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no-árabes do Continente se instalavam, moldando-se a influências marítimas cujos efeitos se
aproveitavam à custa de prodigioso trabalho. Todavia, as Ilhas atlânticas representavam todas
elas, mas particularmente as pequenas, como Flores e Corvo nos Açores, por exemplo, uma es-
pécie de presídio que retinha nos limites das falésias debruçadas sobre o Mar. qualquer hipó-
tese de nomadismo humano. Os recursos naturais eram explorados para além dos seus limites,
elaborando-se rotinas agrárias específicas, em função de heranças transportadas de outras
áreas do mundo, que se amoldavam ou cristalizavam no mais severo dos isolamentos. As Ilhas
encontradas desertas, no meio do Mar. por intrépidos navegadores, sustentavam os riscos des-
medidos da presença de corsários que percorriam os Oceanos, na rapina de tudo o que repre-
sentasse valor, fosse o que fosse, desde que pertencesse a quem se encontrasse incapaz de se
defender. Se hoje é entendido que a insularidade tem seus «custos», maior seria a insegurança
do isolamento no meio do Mar, nos tempos em que o povoamento se acrescentava à descoberta
de espaço vazio de gente, de tradições, de heranças, onde se implantavam vidas que, de algu-
res, ficavam desenraizadas. Era preciso refazer tudo, procurar no vácuo as analogias, inventar
sucessos truncados da sequência histórica, deixar que a língua se amoldasse aos ecos das mon-
tanhas ou murmúrio das ondas. E, no entanto, a História chegava brutalmente às praias, no de-
sespero de quem se exilava, ou no apego que atraía os emigrantes à colonização de espaços
sem limites, como o Brasil.
A Madeira e os Açores tinham seus Donatários e em S. Tomé era fundado um Bispado
para governo do Povo descendente de judeus e degredados a quem Álvaro Caminha deu escra-
vas negras da costa de África, para que se multiplicassem. Cabo Verde era local de ensaio agrí-
cola e entreposto de escravos, onde o branco português e estrangeiro se misturavam em terri-
tório que fora povoado, com negros, especialmente guinéus, originando o creoulo que, pela
língua e pela pele, antecipava ou corria em paralelo com o maravilhoso laboratório racial es-
pontâneo do Brasil.

O Terreiro do Trigo

O trigo foi sempre o rei dos cereais na agricultura europeia e cedo começou a ser farina-
do e transformado em pão, constituindo a base do regime alimentar dos povos. No entanto, na
generalidade das regiões, a produção local, juntamente com outros cereais, não era uniforme
nos diversos sistemas cerealícolas, dependendo da fertilidade dos solos uma vez que, de todos
os cereais, o trigo é o mais exigente. Por isso o comércio do trigo nascia naturalmente, abaste-
cendo nas fatigas que constituíam o mercado especificamente cerealífero, as populações que
não alcançavam a autosuficiência. Acontece também que o processo de senhorialização condu-
ziu o Rei, o Clero e a Nobreza a efectuarem as suas cobranças por meio de trigo, pelo que fi-
caram os Senhorios interessados no comércio do cereal. Por isso se equipavam com as covas,
os celeiros ou armazéns onde arrecadavam os tributos. De posse dos cereais, os Senhorios lai-
cos ou eclesiásticos passaram a interessar-se pelo valor acrescentado que obtinham com a
transformação tecnológica, instalando moinhos e azenhas, concretizando antecipadamente a
tendência monopolista que havia de generalizar-se quando o processo industrial desenvolveu
a moagem. No entanto, nesta fase, eram múltiplas as iniciativas artesanais que aproveitavam a

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energia animal ou o braço humano para mover atafonas. Raras vezes os moleiros seriam os
donos das instalações onde trabalhavam, mas a importância e o número de atafonas era tão
grande que os atafoneiros chegavam a fazer parte da organização profissional.
Com o desenvolvimento das cidades, como o Porto e Lisboa, e em face da duríssima
experiência obtida nos anos de fome resultante da escassez da colheita imposta pela irregulari-
dade do clima, a importação tornou-se indispensável, passando as ilhas da Madeira e depois
os Açores a suprir as carências. No entanto, a importação por mar de trigo estrangeiro mante-
ve-se, o que levou D. Manuel a montar em Lisboa, no ano de 1517, o Terreiro do Trigo, de que
ainda hoje resta o nome do lugar.
O Terreiro do Trigo constava de instalações apropriadas para armazenar o cereal descar-
regado no porto de mar, no Tejo, e proceder depois à sua comercialização mediante regimento
elaborado pelos homens-bons do Senado da cidade, que regulava a acção do Juiz e Escrivão
que não podiam ter interesses nesse comércio, com a participação de numerosos vendedores
reconhecidos pelo Município.

Mais uma vez os Coutos de Alcobaça

As dificuldades impostas aos camponeses de Alcobaça não abrandaram no período que


estamos abordando. São de M. Vieira Natividade os seguintes comentários:
«A reforma dos forais, levada a efeito por D. Manuel, maior ruína trouxe aos povos dos
Coutos: é que além de confirmar os primitivos forais e sentenças havidas contra os colonos,
vinha, com a criação de novos capítulos, aumentar enormemente os encargos.
Numa sequência de discórdias, continua a vida dos Coutos, agravada ainda com a vin-
da dos Abades comendatários, que faziam dos rendimentos da Abadia receita própria, e entre-
gavam, em geral a procuradores e almoxarifes gananciosos e de pouco escrúpulo, a arrecada-
ção das rendas.
Com a entrada dos abades comendatários criam-se extensos prazos particulares, de que
se fizeram enormes e extraordinárias quintas. À volta delas, igual feudalismo. Os nobres em-
prazavam os terrenos mais férteis, compravam aos velhos proprietários as mais valiosas terras,
assenhoreavam-se de tudo o que havia de melhor na vasta extensão dos Coutos. Os parentes e
os amigos dos abades encontravam aqui copioso manancial a explorar, como largamente se do-
cumenta nos "Livros dos Prazos" do Mosteiro. Pouco a pouco, surge o desânimo nos colonos,
como natural consequência de tantos abusos, abandonam-se as propriedades e busca-se nou-
tras partes a segurança indispensável ao honesto trabalho. Todos estes factores constituíram
grave obstáculo à larga povoação dos Coutos.
Do que se expôs se conclui que a população dos Coutos não usufruía condições de pros-
peridade. Os frades, a princípio, depois os seus próprios rendeiros, visto que, para não criar
atritos directos, o Mosteiro arrendava os diversos impostos e foros a pessoas estranhas, anàlo-
gamente ao que haviam feito os comendatários, levavam ao desespero os pobres povos quase
escravizados no seu tardio feudo.
Nas eiras ficavam os cereais esperando o Celareiro, sem a presença do qual nada de ali
se podia retirar, embora a chuva inutilizasse toda a colheita; as uvas aguardavam longos dias

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a entrada nos lagares do Mosteiro, e aí pagavam o que os forais impunham; com o milho e o
trigo caminhavam-se léguas até chegar aos moinhos da Ordem, visto ela ter o direito exclusi-
vo da moagem; nalgumas povoações, até o próprio forno era interdito, e lá tinha também que
se esperar que o monge forneiro permitisse a cozedura do pão. Somente em Aljubarrota, Tur-
quel e Santa Catarina era permitido o emprego da mó de braço. O pescador teria que esperar
que o monge cobrador ou dizimeiro viesse cobrar as diversas dízimas.
A miséria por toda a parte era enorme, excepto nas casas fidalgas dispersas pelos Cou-
tos, e que constituíam novos flagelos a incidir sobre o mesmo alvo: o povo. As indústrias, co-
mo consequência deste mal estar geral, limitavam-se às estritamente indispensáveis a tão es-
cassa gente, e pouco podiam ir além da tecelagem do linho e da lã, dos cortumes, da cerâmi-
ca, da tanoaria e ferraria, indústrias pobres como a população, e que no campo da agricultura,
se limitavam à secagem de frutas, queijaria e criação de gados, extracção do azeite e fabrico
do vinho. Só em meados do século XVIII se alargam um pouco as actividades industriais nos
Coutos, mercê do aumento rápido da população e da nova era de progresso criada pelo Mar-
quês de Pombal.»

A colonização do Brasil

A descoberta do Continente sul-americano ofereceu aos portugueses quadro geográfico


completamente diverso do Mundo que antes fora contactado. Embora fosse patente a exube-
rância tropical não havia semelhança com as ilhas atlânticas Canárias povoadas por «selva-
gens» Cro-Magnon, situados no estádio da idade da pedra, nem com a África tropical a sul do
Sará, onde a organização tribal de «reinos» negros mantinha actividades de comércio de pro-
dutos agrícolas, de exploração mineira e da caça, como as peles e o marfim, para além dos es-
cravos. Eram diferentes as ilhas atlânticas desertas que apresentavam o programa do povoa-
mento inteiramente livre, com instalação, de raiz, de sistemas produtivos originais. Completa-
mente diverso era todo o Oriente, com suas Civilizações milenárias de há muito conhecidas
pelo comércio praticado ao longo de vias terrestres percorridas por mercadores asiáticos, euro-
peus e africanos, que também navegavam no Índico. Não era a expansão territorial mas a con-
quista do comércio pela via atlântica que constituía um dos objectivos mais determinantes da
descoberta do caminho que contornava o Sul da África.
O ameríndio que foi visto nas praias, a contemplar a chegada das naus portuguesas co-
mo primeira mensagem europeia, era o produto ecológico de migrações de mongólicos asiáti-
cos que, atravessando os mares gelados dos estreitos do Norte, demandaram o Sul, em gigan-
tesca migração, enfrentando os mistérios do sertão e da selva tropical. Deambulando na itine-
rância, os índios dedicavam-se à recolecção e caça, vencendo primórdios da agricultura nóma-
da ou refugiavam-se, nas suas lutas, na imensa selva amazónica. Na guerra, os vencidos não
eram escravizados, mas permaneciam capturados até ao momento em que rituais complexos e
cruéis de antropofagia, os sacrificavam. As grandes Civilizações ameríndias, não haviam flo-
rescido no Brasil em sedentarização ou urbanização semelhante à dos Maias, Incas ou Aztecas
que enfrentaram valorosamente, mas sem êxito, a colonização espanhola.
A «Ilha» ou Terra de Santa Cruz revelou de imediato a disponibilidade do «pau-brasil»

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que não era produto de sistema económico organizado, mas simples reserva florestal expontâ-
nea, de valor desconhecido para os naturais, que despertou a cobiça de mercadores e de corsá-
rios franceses, que deram em percorrer o litoral, chegando a manobrar contra os portugueses
alianças com indígenas que chegaram a ser levados a França. Por isso D. João III resolveu de-
fender o achado português, concedendo Capitanias a quem recebia o encargo de povoar e de-
senvolver o território. O sistema não teve êxito generalizado pelo que foi substituído por Go-
verno Geral. Perante a passividade do ameríndio local os colonos passaram a recorrer ao escra-
vo negro africano, através do entreposto de Cabo Verde, para disporem do trabalho necessário
à instalação da cultura da cana sacarina e ao maneio do engenho do açúcar. Ficava assim ins-
tituído o Senhor do Engenho vivendo na Cosa Grande e chefiando as milícias ou ordenanças
com toda a autoridade. Os escravos viviam nas senzalas, submetidos a feitores extremamente
severos. Sem direito a engenho, a terra também era possuída por colonos livres que ficavam
subordinados ao Senhor do Engenho pela obrigatoriedade de entrega da matéria-prima para
transformar. Ficavam assim lançados para sempre os alicerces do Brasil.

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20 — CONSEQUÊNCIAS DA ABERTURA DE PORTUGAL
AO MUNDO

D. João III viveu longo reinado durante o qual se configuraram penosas dificuldades
quanto à segurança territorial, desde o Algarve de além-mar em África a todas as Conquistas
que em breve começaram a ser disputadas pela ambição de poderosos concorrentes. O novo
Rei começou por se apresentar magnânimo, na opinião de numerosos Historiadores mas, de-
pois de ver morrer os numerosos filhos que tivera, deixando o trono a um neto ainda criança,
acabou por endurecer, esmagado talvez pelos terrores que a mudança dos tempos impõe a
quem julga impossível a realidade de perder.
No entanto foi no seu reinado que a essência dos descobrimentos se aprofundou, confe-
rindo à Ciência, à Literatura e à Arte a sublimidade do seu efeito, dando à Religião a oportuni-
dade do seu Apostolado, e encontrando no aventureirismo do colono, degredado ou bandeiran-
te, a eficácia do sacrifício que transforma em vida a própria morte, ou da presença pioneira que
muda desertos em regiões ou países povoados.

O numeramento de 1527

Uma das mais lúcidas das decisões de D. João III, que revela o sentido da eficácia admi-
nistrativa que nunca poderá ser alcançada sem informação bastante, foi a de mandar proceder
ao numeramento da população portuguesa que, desde o Imperador César Augusto, nunca teria
sido organizado, em termos globais, no território português. Nos espaços rurais, procedeu-se
à contagem de «moradores per fogos, per lavradores e escudeiros e abades e clérigos e viuvas
per fogos», bem como de «mancebos solteiros de idade de dezoito para trinta anos que vivem
com seus pais e amos» o que representaria trabalho difícil e laborioso. No entanto a tarefa en-
controu o obstáculo de um velho Duque de Bragança que se opôs à devassa que iria contra as
suas imunidades. Foi necessário que o Duque velho se finasse, para que o seguinte, mais novo
e esclarecido, facultasse aos numeradores régios condições de trabalho nos vastos territórios
do Ducado.
Para apreciação dos resultados vamos considerar quatro grandes regiões elaboradas
com base nos actuais distritos, assim constituídas:

1 — Norte do Douro — Distritos de Viana do Castelo, Braga, Porto, Vila Real


e Bragança.
2 — Sul do Douro — Distritos de Aveiro, Coimbra, Leiria, Viseu, Guarda
e Castelo Branco.
3 — Vale do Tejo — Distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal.
4 — Sul do Tejo — Distritos de Portalegre, Évora, Beja e Faro.

A superfície de cada região (quilómetros quadrados), a população e as densidades de-


mográficas são o que segue:

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Superfície Habitantes Densidade
Norte do Douro 1.816 446.000 25
Sul do Douro 2.746 307.000 11
Vale do Tejo 1.455 337.000 23
Sul do Tejo 2.875 360.000 13
Total 8.892 1.450.000 16

Se estabelecermos o confronto entre o Norte e o Sul do território, reunindo as duas mar-


gens do Douro e integrando o Vale do Tejo no Sul, teremos o seguinte:
Superfície Habitantes Densidade
Norte 4.562 753.000 17
Sul 4.330 697.000 16

Afigura-se-nos muito significativa esta conclusão porquanto, dois espaços territoriais,


onde a população urbana ainda pouco pesava, de dimensão semelhante, registam nesta época
a mesma densidade demográfica, situação que depois se altera profundamente até à actualida-
de. Com o objectivo de orientar o leitor, no que respeita à análise que estamos ensaiando, apre-
sentamos desde já a repartição da população entre o Norte e o Sul, segundo o último Recen-
seamento demográfico de 1981 e tomando como unidade 1.000 habitantes:
Habitantes Densidade
Norte 5.291 115
Sul 3.996 92

E as diferenças acentuam-se se considerarmos as quatro regiões:


Habitantes Densidade
Norte do Douro 2.953 162
Sul do Douro 2.338 85
Vale do Tejo 3.165 217
Sul do Tejo 831 28

José Mattoso procede, em «Identificação de um País» a profunda análise da diversidade


regional existente entre o Norte e o Sul no território português. As suas conclusões demons-
tram a complexidade das influências que determinam a diversidade qualitativa e quantitativa
da população hoje presente nos dois grandes espaços geográficos. O estudo do referido Autor,
por ser histórico, apresenta-se naturalmente dinâmico, embora submetido às coordenadas das
situações geográficas ou ambientais. Supomos que a homogeneidade da cobertura demográfi-
ca que se descortina nos resultados do numeramento de 1527 em nada contraria a análise his-
tórica de José Mattoso, visto que não só desconhecemos qual era a posição anterior, mas prin-
cipalmente porque, a partir deste momento, o Norte e o Sul vão evoluir em sentido fortemente
diferenciado. Tendo em conta a influência determinante da agricultura como suporte da popu-
lação. a densidade demográfica desempenha o papel de indicador da situação económica e so-
cial no momento em que é retida. Este aspecto interessa particularmente ao Agrónomo que.

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sem dispor de outros indicadores de produção ou de implantação da actividade agrícola, tem
consciência do papel desempenhado pela agricultura quanto a exigências de ocupação da po-
pulação activa e de garantia de subsistência alimentar. Excluindo as áreas montanhosas do
Norte, pouco produtivas como os vastos maninhos incultos do Sul, em 1527, era praticamente
homogénea a agricultura portuguesa em todo o território, cultivando os mesmos cereais de se-
queiro com os mesmos pousios, conduzindo igual pastoreio manadio a percorrer as mesmas
áreas queimadas, de tal modo que não poderia ser diversa a densidade demográfica que indica
a finalidade e o suporte de tais rotinas.
A revolução da agricultura que nesta fase decisiva de 1527 se aproximava, com a adop-
ção de novas plantas descobertas no Continente americano, é que irá acentuar ou revelar dife-
renças existentes entre o Norte e o Sul. Efectivamente, muitas destas diferenças são físicas ou
geográficas, mas outras essencialmente históricas, como José Mattoso demonstra claramente,
quando nos revela o processo de elaboração de estruturas sociais e económicas — de que nos
interessam especialmente as agrárias que, aliás, nessa altura eram ainda dominantes — que ex-
plicam a dinâmica subsequente do desenvolvimento e a natureza e força dos obstáculos que,
por vezes, formaram barreiras opostas ao progresso nas suas expressões mais diversificadas.

A Inquisição

A adopção do Cristianismo em Roma sob a forma de Religião do Estado levantou o pro-


blema do combate às heresias e desvios da leitura oficial dos preceitos. As primeiras vítimas
da pena de morte que passou a ser imposta da mesma forma como era usada no martírio dos
crentes, foram os maniqueus, apontados como perturbadores da ordem pública. Daí em diante,
o zelo quanto à defesa de princípios essenciais, tanto se fixava nas estruturas religiosas, como
entre responsáveis políticos, alargando-se ao povo que não prescindia dos seus ferozes julga-
mentos. Tudo conduzia à prática das maiores violências sobre comportamentos considerados
heréticos. Foi longo, constante e doloroso o desenvolvimento dos processos inquisitoriais que
não respeitavam domínios essenciais para assegurarem as liberdades humanas. Embora as exi-
gências da Lei de Cristo conduzissem a sempre renovados argumentos para justificarem, na
aplicação prática, as técnicas de tortura, procurava-se que a decisão quanto à pena de morte
fosse entregue ao «braço secular» que não estaria obrigado à norma inflexível da defesa da vi-
da. Em Portugal, embora o efeito das ideias reformistas fosse atenuado, deve-se a insistências
de D. João III sobre a Santa Sé. a instituição do Tribunal do Santo Ofício, que veio suprimir a
tradição de tolerância, perante Mouros e Judeus, que por vezes se instalava, mas que D. Ma-
nuel maculara ao ordenar a violência da expulsão. Os mecanismos do funcionamento dos tri-
bunais da Inquisição que combatiam a heresia, a feitiçaria, a sodomia, a solicitação dos peni-
tentes pelo confessor, aceitando denúncias e testemunhos secretos, alcançou penetração na so-
ciedade urbana e mesmo na sociedade rural, provocando profundos estragos nas relações hu-
manas. Do ponto de vista intelectual, a censura a toda a espécie de documentos escritos, havia
de limitar a criatividade durante muito tempo. Na praça pública a decisão do Tribunal culmina-
va no Auto de Fé ao qual o Povo assistia, mergulhado em pasmo e terror, ou prisioneiro do
gosto doentio de assistir à justiça a eliminar culpados. O primeiro Auto de Fé realizou-se em

163
Lisboa no ano de 1540. O último teria sido a execução do Padre Malagrida, em 1761, sob go-
verno do Marquês de Pombal. No entanto, o Tribunal do Santo Ofício durou perto de três sécu-
los, porque somente foi suprimido pelas Cortes Constituintes de 1821.

Companhia de Jesus

Em 1540 a Santa Sé reconheceu a Companhia de Jesus fundada por Santo Inácio de


Loiola para catequização de infiéis. Logo em 1541 vieram a Portugal, a pedido de D. João III,
Francisco Xavier que embarcou para a índia e Simão Rodrigues que fundou a Casa de Santo
Antão o Velho e o Colégio de Coimbra para preparação de membros da nova Ordem. Daí em
diante rara era a nau que não transportava um Jesuíta, de forma que, alcançada a Índia, os Pa-
dres da Companhia passaram ao Ceilão e Molucas, entrando, como Missionários de Cristo e
obreiros do Império português, no Japão e na China. Em acção simultânea os Jesuítas passa-
ram às terras do Congo, enquanto procuravam Marrocos e a Etiópia. Decisivo, no seu efeito
histórico, foi o embarque de Nóbrega, em 1549, para o Brasil.
A presença da Companhia de Jesus no complexo processo dos descobrimentos, consti-
tui, sem dúvida, o espaço controverso, onde ficaram inseridas para sempre, as preocupações
humanas e espirituais, a moderarem o egoísmo da prossecução de múltiplos interesses mate-
riais. Militares, ambiciosos detentores do poder, aventureiros, comerciantes que chegavam a
considerar, pela dureza das circunstâncias, o escravo como mercadoria, bandidos de toda a es-
pécie, degredados, muitos compelidos sem vontade própria, outros fugidos à miséria e vaga-
bundagem, e muito raros iluminados pela curiosidade ou sentimento de artistas, constituíram
a onda humana em cuja crista os Padres da Companhia de Jesus se inseriram, tentando organi-
zar a defesa das populações selvagens, ou portadoras de outras crenças, sobre as quais se aba-
tia a fatalidade imposta por violência desmedida.
Mau grado a raiz em que se alicerçava, o programa da Companhia de Jesus não se des-
prendia do conteúdo utópico quanto ao imediato, porque a exploração do meio Mundo desco-
berto, não se identificava com exigências de natureza espiritual. A escala de valores dos que
se encontravam envolvidos na acção guerreira, ou que contavam arrecadar os lucros máximos
em todos os mercados, não se compadecia com a ideia ou a palavra apresentada para além dos
tempos. Os Jesuítas, como os Beneditinos, os Franciscanos ou os Templários, estavam conde-
nados a celebrarem as suas vitórias, com o gosto amargo das derrotas que os expulsavam, epi-
sodicamente.

Consequências sociais da expansão portuguesa

Na sua «História concisa de Portugal», José Hermano Saraiva afirma: «Nenhum escri-
tor descreveu as consequências sociais da expansão com tanta clarividência como Gil Vicen-
te». E, de seguida, serve-se das passagens mais eloquentes do Auto da Romagem dos Agrava-
dos e apresenta o comentário que transcrevemos, com a devida vénia:
«A análise das contradições e conflitos que agitavam a sociedade portuguesa decorridos
trinta e cinco anos sobre a descoberta do caminho marítimo para a índia é o tema de uma peça

164
representada em Évora em 1533: a Romagem dos Agravados, isto é, o desfile dos que estavam
descontentes com o tempo em que viviam. Esse texto é, ainda hoje, o mais lúcido estudo de
que se dispõe sobre a sociedade portuguesa dos meados do século XVI.
O desfile faz-se perante Frei Paço, que preside. É frei porque pertence à Igreja, é paço
porque pertence ao governo, mas as duas qualidades confundem-se: "o paço, em frade torna-
do, não é frade nem é paço", diz a peça. Domesticada a nobreza, desaparecida a alta burgue-
sia, a influência política do clero era cada vez maior; o poder religioso confundia-se com o po-
der civil. Uns meses antes da representação tinha D. João III criado a Mesa da Consciência e
Ordens, à qual passava competir a decisão dos assuntos que "tocassem à consciência" do rei,
isto é, das questões mais melindrosas da governação. E quem a dirigia eram prelados.
Os personagens vêm dois a dois, e cada par simboliza uma classe social. A primeira a
aparecer é o proletariado campesino: um cavador acompanhado pelo filho. A imagem do ca-
vador do século XVI é menos risonha do que a do século XIX. Não se chama Zé-Povinho, cha-
ma-se João Morteira, João da morte. O filho é Sebastião, nome de mártir. É a ideia de morte a
que Gil Vicente sempre liga à vida do trabalhador da terra; "sempre é morto quem do arado
há-de viver"; "nós somos vida das gentes e morte das nossas vidas"; "se o nascer foi um mo-
mento, porque morro em tantos dias padecendo?". Era uma classe que agonizava. Em 1521,
uma fome terrível assolou os campos, tendo morrido pelos caminhos muitos camponeses que
tentavam chegar a Lisboa. A carne, base da alimentação durante a Idade Média, era agora rara;
em 1580, dois estrangeiros que viajam por Portugal surpreendem-se da pobreza alimentar po-
pular: sardinha salgada e pão escuro. A riqueza ultramarina não chegava ao campo, mas as suas
consequências repercutiam nele. Os proprietários, do clero ou da nobreza, faziam pressão para
obter cada vez mais de um solo que produzia cada vez menos, porque a quantidade dos gados
e portanto dos estrumes diminuía, porque os braços fugiam sob o impulso de um estímulo du-
plo: a recusa da miséria e a cobiça da fartura que a cidade parecia oferecer. A luta por um sa-
lário melhor já não era possível, porque um trabalho igual ao do cavador aldeão podia ser pres-
tado pelo escravo negro; mais ou menos por esta altura (em 1541), Damião de Góis calculava
que entravam anualmente em Portugal dez a doze mil escravos africanos. E tudo isso está por
detrás da figura dramática de João Morteira: "Eu trabalho até que caio!" "Eu sou pobre como
um cão!" Já só tem uma esperança: que ao menos o filho possa ter uma vida melhor. Quer, para
isso, encaminhá-lo para a Igreja; não é, explica, uma questão de devoção; é para que possa vi-
ver um pouco mais folgado. Mas nem isso consegue, porque Frei Paço, que examina o rapaz,
não o deixa passar no exame.
Também a aspiração do cavador é característica da época. A Igreja era um caminho para
fugir à miséria ou para a evitar. Filhos de camponeses, filhos segundos de nobres, filhas sem
dote e portanto sem casamento, procuravam as ordens religiosas. Elas eram um dos três cami-
nhos possíveis: "Quem quiser medrar. Igreja, Casa Real ou mar", dizia a sabedoria do povo. A
alternativa era entre a religião, o serviço do paço ou de algum nobre ligado ao paço, ou a emi-
gração. Essa procura conduziu o século XVI, à hipertrofia do pessoal da Igreja: subiu o núme-
ro de ordens religiosas, subiu o número de conventos de cada ordem (o total passou de duzen-
tos para o dobro). Mas a Igreja só marginalmente participou da riqueza dos descobrimentos;
era fundamentalmente da renda da terra que vivia. Não explorava directamente os solos, mas

165
recolhia o dízimo de toda a produção (isso vinha já do século XIII e a instituição da décima de
Deus fora então a forma pela qual a Igreja se defendera da subida do custo e do nível da vida)
e recebia as rendas dos pequenos empresários rendeiros e enfiteutas, que formavam a classe
média rural.
A crise da classe média rural é denunciada no auto pelo lavrador Aparicianes, que vem
acompanhado pela filha: "Porém eu, que estou no meio, vivo mais desesperado." Está no meio
porque a sociedade rural se articula em três níveis: senhores, lavradores, servidores. Os senho-
res mostram-se agora mais exigentes na cobrança dos seus quinhões, os servidores fogem dos
campos e os lavradores empobrecem. Este queixa-se de que traz de renda dois casais que per-
tencem aos frades; o temporal desbaratou as sementeiras e ele foi pedir que lhe esperassem um
pouco pela entrega da renda. Mas os frades responderam que a espera não era a sua divisa. A
palavra espera tinha então o sentido duplo de moratória e de esfera; e esta última era a divisa
de D. Manuel e simbolizava a riqueza planetária dos descobrimentos. É esse o sentido da res-
posta dos frades: estão fora da esfera, não podem, esperar. E obrigaram-no a pagar a bem ou a
mal: penhoraram-lhe o lar, e nem os lençóis escaparam. E o lavrador queixa-se e lembra com
saudade o tempo em que cantava alegremente à frente dos seus bois, sem sentir o peso da fadi-
ga. Agora não canta, porque está pobre e "a pobreza e a alegria nunca dormem numa cama".
A destruição da classe média rural era consequência directa das novas condições de vi-
da do País e não resultava só da severidade dos proprietários na cobrança da renda e da fuga
dos trabalhadores. Pouco a pouco, as quintas e os casais que andavam nas mãos dos lavradores
passavam à posse dos nobres, funcionários e aventureiros regressados da índia, porque a terra
foi o único género de investimento dessas economias. O Português entendia que só a terra ofe-
recia segurança. Um nobre sentencia nas suas trovas: "Segundo se diz, e eu avento, de ter coisa
sem raiz não se faça fundamento", isto é, segundo se diz e eu também penso, só a posse da ter-
ra é um investimento seguro. Ele referia-se aos perigos dos negócios de gado, mas a ideia alar-
gava-se a todo e qualquer negócio com alguma margem de risco. Um texto de 1608 mostra
que, em plena crise, o ramo de oliveira, o palmo da terra, era considerado o último refúgio:
"Domina este reino uma certa constelação que faz os homens incapazes de receber o bom con-
selho; e assim, eu profetizo uma grande ruína, e será ditoso o que tiver um pé de oliveira a que
se abraçar!"
"Mas esse pé de oliveira já existia antes de o torna-viagem o comprar. O pão. o vinho,
o azeite, não aumentavam pelo facto de o título da propriedade ou a iniciativa da exploração
estarem a cargo do lavrador plebeu ou do proprietário ido da cidade, enriquecido com a canela
ou a pimenta, e que passava a viver do rendimento rústico. O número de explorações nas mãos
da classe média é que diminuía. Os novos donos são dons; muitos não o são por nascimento,
mas exigem que lho chamem, ou pelo menos comportam-se como se o fossem. A antiga socie-
dade rural, que se hierarquizava na base das funções, é substituída por uma outra com base na
exterioridade e no tratamento: de um lado os senhores e as donas, por outro os homens e as
mulheres. Homem passa então a ter sentido de trabalhador rural; ser tratada por dona é o objec-
tivo de toda a mulher. Mas a passagem dessa fronteira social é impossível a quem fique agarra-
do à enxada. O passaporte obtém-se na cidade."»
E Hermano Saraiva conclui este seu precioso comentário, relatando:

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«No mesmo ano em que o rei pediu em Roma o estabelecimento da Inquisição com o
pretexto, entre outros, de que a heresia luterana já tocara Portugal, um embaixador português
fez representar em Antuérpia, na presença do legado do Papa, um dos mais atrevidos autos de
Gil Vicente, precisamente do tráfico das indulgências. Os teólogos romanos indignaram-se e
fizeram queixa ao papa. Não foi em vão. O poeta teve um processo e expiou dois anos de casti-
go. Ainda voltou à corte em 1536, e é nessa última representação que nos dá o seu auto-retra-
to de pensador amordaçado. Mas nesse ano começou a funcionar a Inquisição, e um silêncio
impenetrável desceu sobre Gil Vicente.»

A Universidade de Coimbra

A instalação definitiva da Universidade em Coimbra tem largos antecedentes. Por ini-


ciativa de D. Diniz, um grupo de Prelados, reunidos em Montemor o Velho em 12 de Novem-
bro de 1288, solicitou da Santa Sé os bons ofícios para a fundação dos primeiros Estudos Ge-
rais portugueses. A Bula De statu regni Portugaliae chegou dez meses depois, sendo escolhi-
do edifício situado no bairro de Alfama, em Lisboa, onde se instalou o ensino de Leis, Câno-
nes, Gramática, Lógica e Medicina. Em 1308 os Estudos Gerais foram transferidos para Coim-
bra onde foi construído o Colégio de S. Paulo, albergando-se os estudantes junto à porta de Al-
medina. Mas, em 1338, D. Afonso IV fez retornar os Estudos Gerais a Lisboa para, em 1354,
os repor, de novo, em Coimbra.
Não ficaria por aqui a deambulação de Mestres e de Estudantes, porque D. Fernando,
em 1377, fez reinstalar a Universidade em Alfama, solicitando Bula apostólica para atribuição
de graus de bacharel, licenceado e doutor. Em 1384, D. João I conferiu à Universidade funções
que a prestigiaram, acrescentando-se ao alto nível dos seus Mestres a protecção do Infante D.
Henrique que fez doação de edifícios para que se criassem Aulas de Geometria e Astronomia.
Foi nesta fase, em que se encontrava instalada em Lisboa, que a Universidade portuguesa pres-
tou os primeiros serviços científicos à navegação e descobrimentos, devendo-se a D. Manuel,
em 1496, novos auxílios necessários.
Com D. João III, em 1537, a Universidade voltou a Coimbra, retomando a antiquíssima
tradição do Convento de Santa Cruz. O Ensino foi instalado também nos Paços Reais e iniciou
depois, junto do Mondego, em local definitivo, a tarefa de formação científica que alcançaria
crescente nível, participando em variadas e muitas vezes heróicas mas também dolorosas
emergências nacionais. Em 1634 a Universidade portuguesa havia de ver colocada na Porta
Férrea a estátua de Filipe II, rei castelhano. Pouco duraria o vexame, seis anos apenas.

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21 — A PERDA DA INDEPENDÊNCIA NACIONAL

Em 1557 morreu D. João III, deixando o neto, D. Sebastião, pequenino, nomeando re-
gente a Rainha D. Catarina. Esta regência durou até às Cortes de Lisboa de 1562. Nessa altura
o Cardeal D. Henrique, assumiu a regência que manteve até ao dia em que D. Sebastião foi
aclamado, com 14 anos, apenas.
Nessa altura percorria os mares a mais desenfreada pirataria, tendo uma esquadra fran-
cesa atacado a Ilha da Madeira, saqueando muitas riquezas e causando centenas de mortos. En-
tretanto corsários ingleses pilhavam a costa da Guiné e, no norte de África, os infiéis pressio-
navam Ceuta e Tânger.

Os Celeiros Comuns

No vasto conjunto de desembargos legislativos que caracterizam o curto reinado de D.


Sebastião, deve destacar-se a criação dos Celeiros Comuns.
A ideia dos «montes de piedade» que haveria presidido à fundação das Misericórdias
teria estado presente quando se discutia em Cortes, em 1562, a gravidade do problema resul-
tante da carência de semente de trigo por parte de agricultores pobres quando a fome obrigava
a sobreconsumo que impedia qualquer espécie de reserva. Assim, a um ano de fome seguia-se
fatalmente outro por escassez de sementeiras. Deste modo foi proposta a ajuda mútua destina-
da a garantir sementes de trigo em especial a pequenos agricultores em anos de escassa produ-
ção, com ágio, juro ou censo moderados e pagos em espécie na altura da colheita. Trata-se,
sem dúvida de uma das primeiras modalidades de crédito que podem ser apontadas. Daqui nas-
ceu em Évora no ano de 1576, o primeiro Celeiro Comum. Três anos depois foi fundado outro
em Beja, alastrando o movimento no século seguinte a quase todo o Alentejo com a criação de
mais de 40 Celeiros Comuns. A repercução do movimento fora do Alentejo foi sempre mais
moderada, assinalando-se tardiamente os Celeiros de Vila Franca, Alenquer, Castelo Branco,
Alcobaça, Torres Novas, Bragança, Macedo de Cavaleiros e Freixo de Espada à Cinta.

A mandioca, revolução agrária no continente africano

No Brasil os Portugueses encontraram em cultura a mandioca, maravilhosa planta a que


foi dada a designação botânica de Manihot esculenta, Grantz. Segundo o Conde de Ficalho, os
Portugueses teriam introduzido em Angola, nos fins do século XVI, a cultura que rapidamente
se difundiu, passando a constituir a base da alimentação de povos africanos. Efectivamente, a
cultura ficou presente em todos os aldeamentos para consumo diário, sob a forma de raiz seca
ou transformada em fuba ou farinha. A industrialização veio a permitir a preparação de nume-
rosos produtos como a farinha de pau, a tapioca e a araruta.
Os portugueses também passaram a cultura à Ásia, nas áreas tropicais, que alcançou as
índias Holandesas, os Estados malaios e a Indochina. O valor alimentar desta cultura permitiu.

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em regiões onde era notória a carência de cereais, passar a dispor de alimento de base que foi
o suporte de acréscimos demográficos explosivos.

O plano de guerra contra Marrocos

Embora fosse efectivo o risco da presença da pirataria nas rotas marítimas para o Orien-
te, logo a partir das costas do Algarve, particularmente inseguras, prevaleceu a ideia de afas-
tar dos Castelos portugueses do Magrebe, o perigo mouro que os ameaçava, conquistando es-
trondosa vitória exemplar. Foi assim organizada a expedição que em malfadada hora transpôs
o estreito, desembarcando no continente africano.

O desastre de Alcácer-Quibir

D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir. Relata o Historiador Queiroz Veloso que Fili-


pe II de Espanha instou «pela entrega do corpo de D. Sebastião; e Mulei Ahmed que desejava
ser-lhe agradável, resolveu mandá-lo para Castela. Na mira das suas ambições políticas, Filipe
II preferia, porém, que o cadáver do sobrinho ficasse em terra portuguesa». Entretanto o Car-
deal-Rei D. Henrique ofereceu «sessenta mil cruzados pelos despojos do seu antecessor». Mas
o cadáver acabaria por ser recebido por Filipe II quando já era Rei de Portugal e depositado,
com grande pompa, na Igreja de Santa Maria de Belém.
Sejam lá o que forem os ossos que nos venderam, o certo é que veio também, por outro
caminho, a Lenda que se firmou na alma portuguesa, na configuração do «Sebastianismo» que
haveria de permanecer como património do ideário nacional.
Entretanto, Francisco da Costa, embaixador junto de Mulei Ahmed, negociava o resgate
dos Nobres aprisionados. Para isso foram reunidas «fazendas» que renderam «muito menos do
que se esperava, faltando cento e vinte mil cruzados para completar a soma estipulada no con-
trato». No entanto «D. Francisco da Costa tomou a responsabilidade dessa quantia, e o Xerife
deu-lhes liberdade, em Novembro de 1579». Uma vez chegados a Lisboa, os Nobres, «descul-
pando-se uns com os outros, como se a obrigação não fosse de todos, olvidavam o fiador e a
dívida, que deveria ser sagrada; e D. Francisco da Costa não pode regressar a Portugal, porque
nunca foram pagos os cento e vinte mil cruzados, em que empenhara a sua palavra».
No resgate geral de soldados e de não combatentes empenharam-se «religiosos trinitá-
rios em generosa e extenuante tarefa», bem como o Padre Amador Rebelo da Companhia de
Jesus e o Padre Alexandre, italiano, da mesma Ordem. Queiroz Veloso conclui afirmando «co-
mo faz um cronista coevo, que em mãos de judeus ou mouros então estava todo o dinheiro de
Portugal. Eram assim aflitivas as consequências económicas da derrota de Alcácer-Quibir,
agravadas ainda pela enorme falta de braços para o amanho das terras. Mais dolorosas, mais
pungentes, foram, porém, as suas consequências políticas!»

O Cardeal-Rei D. Henrique

Com avançada idade, sem sucessor directo, D. Henrique não logrou facultar ao Povo,

170
Rei português. O Prior do Crato não alcançou prestígio bastante para se opor à influência es-
magadora de Filipe II. Os Castelos do Reino dividiram-se entre D. António e os Espanhóis o
que abriu caminho ao exército invasor do Duque de Alba.

O rei de Portugal é Castelhano

Com a morte do Cardeal-Rei tudo cai na desordem. Vamos ver o relato de Oliveira Mar-
tins:
«Com o intervalo de duzentos anos, em que se fechara o círculo de uma história brilhan-
te e meritória, a capital, que iniciara a viagem por uma revolução, concluia-a por uma Comuna.
As mesmas ruas que tinham visto as cenas de 1385. presenciavam as de 1580. O prior era um
Mestre de Avis, o conde de Vimioso o Nuno Álvares de agora. Havia a cena, havia os persona-
gens; faltavam, porém, os coros; porque nesses duzentos anos o povo extinguira-se, trucidado
nos palmares da Índia, devorado pelos mares irritados, roído pelas pestes. Restava apenas a ba-
ba vil, como os limos e restos que a onda abandona com desprezo quando vai fugindo para o
mar, na praia nua.
O governo do prior do Crato em Lisboa era uma tirania de energúmenos. Tinham deser-
tado da capital os nobres e os ricos: ficara uma plebe desvairada, que tomou posse dos cargos
e dos arsenais. Era o reinado da demagogia. Lisboa parecia uma cidade antiga, D. António um
antigo tirano da plebe. Os fugitivos, tíbios, eram caçados; e uma vez colhidos, prendiant-nos,
arrastavam-nos pelas ruas, apedrejando-os e vilipendiando-os, para os obrigarem a alistar-se
nas desordenadas levas do exército de Lisboa. Do mesmo modo por que se compunham as tro-
pas, se obtinham recursos: eram assaltos às casas, rapinas, violências. O governo vendia tudo:
lugares e honras, desesperado por não achar compradores bastantes. Os judeus folgavam, re-
mindo-se a dinheiro. Também os escravos, alistados nas tropas, se libertavam; e esta medida
deu um tom novo aos tumultos e aos roubos e assassinatos que impunemente se cometiam por
todas as ruas. Os tesouros e alfaias das igrejas eram saqueados, os templos profanados. Os fra-
des andavam arregimentados, de couraça e capacete sobre o burel, pregando sermões e ordens
de comando. Arregaçado o hábito, subiam aos marcos, nas esquinas das ruas e, de espada em
punho, falavam em Deus, na glória que esperava os Macabeus, nas penas do inferno reservadas
aos tíbios. Os conventos eram arsenais, e pelas salas abertas, homens e mulheres escolhiam ar-
mas, praguejando. Era uma saturnal.
Entretanto o duque de Alba avançava cautelosamente. Como os enfermeiros, quando ro-
deiam em círculo o louco varrido, aproximando-se, defendidos por almofadas para evitar os
golpes, e para o abafar, pondo-lhe o colete, assim o veterano, com prudência, fortificada Setú-
bal, dava por mar a volta a Cascais segurando as torres, e avançando contra Lisboa, torneada
e presa.
Em Alcântara (1580, Agosto) não houve propriamente uma batalha: foi o encontro de
uma onda fatal com um viveiro de formigas tontas. A artilharia castelhana varreu breve os ba-
talhões de frades, de escravos e de regateiras; e a cavalaria tornou a derrota numa debandada.
Toda a força do Prior, do conde de Vimioso, do bispo da Guarda não bastava para amparar, na
derrocada, os muros que desabavam a pedaços.

171
Os do Senado de Lisboa imploravam ao duque de Alba que os libertasse da tirania dos
revolucionários; e os governadores, a quem o cardeal, morrendo, confiara o reino, refugiados
em Castro Marim, tinham por sentença dado a coroa a D. Filipe. O seu general ocupou Lisboa,
e no ano seguinte (1581, Abril), as cortes, em Tomar, aclamaram-no rei.»

Reis de Castela, a governarem Portugal

Filipe II de Castela teria procurado ser magnânimo para com os opositores da «união
ibérica». No entanto excluiu D. António, Prior do Crato exilado para tentar, algures, a sua lu-
ta, e os seus companheiros, alguns deles degolados ou esquecidos nos cárceres.
Ao chegar a Lisboa. Filipe II pediu para ver Luiz de Camões, que foi poupado à dor de
tolerar o Castelhano, porque antes se finara com a «ditosa pátria» que tanto amara. Morreu po-
bre, sem que se saiba ao certo onde depositaram seus restos e, por isso, o «pó» que muito de-
pois passou a repousar nos Jerónimos, não é certo ser, como os seus inconfundíveis versos, ca-
moneano. Mas, pouco importa, a ideia representa maior valor quando a dúvida tem causa no
infortúnio.

O domínio marítimo ibérico

Não era somente a pirataria que ameaçava o domínio marítimo ibérico, obrigando tam-
bém a guarnecer o litoral dos territórios com fortalezas. O que estava também em causa era a
competição na conquista do comércio marítimo organizado e, nesse campo, apresentava-se
muito forte a posição dos Holandeses. Efectivamente a sua esquadra não era composta de sim-
ples corsários como a dos Franceses ou Ingleses, mas alcançava a posição da maior frota do
Mundo. Por isso, a perda da independência de Portugal facultou aos Holandeses a oportunida-
de de intensificarem as suas acções, nos pontos vitais do sistema de relações comerciais maríti-
mas dos Portugueses, sem abandonarem o ataque que também orientavam na área de domínio
Espanhol.
Os Holandeses apoderaram-se de todo o comércio português de especiarias do Oriente,
ocupando o Sul da índia, Malaca, Ceilão, substituindo também os Portugueses que foram ex-
pulsos do Japão, sendo massacrados os Cristãos que haviam evangelizado. Caindo sobre o
Brasil, conquistaram a Baía e o Recife e, em África, as posições da Mina e de Luanda. A luta
que os Portugueses isolados, sem qualquer apoio do País ocupado, sustentaram durante o ca-
tiveiro castelhano, foi heróica. Ficou perdido o comércio do Oriente onde se mantiveram ape-
nas posições simbólicas, mas o Brasil, apesar de novas derrotas como a perda de Pernambuco,
acabou por ser recuperado, intacto, sucedendo o mesmo na Guiné, em Angola e em Moçambi-
que, para além dos pontos vitais das Ilhas atlânticas que resistiram.

Os pedaços de Portugal isolados no meio do Mar

As terras desertas que aos navegadores se deparavam no meio do oceano, transforma-


vam-se nesta altura em viveiros de Povo original, que nascia como produto da criatividade cul-

172
tural portuguesa. Variava desde a expressão atlântico-mediterrânica da Madeira e dos Açores,
ao Creoulo de Cabo Verde, ou luso-tropical africano de S. Tomé. Com a vitória de Castela, que
antes ficara sempre adiada, não sabemos se com a «morte da bela Inês» ou em Aljubarrota, foi
nos Açores, que a Ilha Terceira inaugurou a tradição de reduto das liberdades. A Ilha, embora
com alguns traidores, preferiu manter-se território português e escolheu para Rei o Prior do
Crato. Os Espanhóis, ao tentarem dominar a rebelião, foram esmagados na Praia, no primeiro
desembarque. Voltaram mais tarde e foi imposto o cativeiro. Mas, na essência, um inumerável
património de tradições portuguesas permaneceu nas Ilhas, e as populações haviam de se uni-
versalizar, colonizando diferentes espaços do Mundo, criando dependências comunitárias que
contradizem qualquer autonomia de que se tenha a veleidade de adoptar.

A dimensão do País prisioneiro

Assim, o País, enorme, mas ímpar na História da Humanidade porque tinha a impossí-
vel dimensão de meio mundo não cristianizado, tocando todos os mares e continentes e seus
«desvairados» povos descobertos. País que, na Antiguidade, só teve semelhança na mensagem
de civilizadores Fenícios ou Gregos, mas nunca dos que pretenderam consolidar Impérios, co-
mo os Persas ou os Romanos. Dotado, talvez, de impulsos idênticos aos que motivavam migra-
ções de asiáticos que se entregaram ao esforço de transformação geográfica de espaços territo-
riais mal povoados, Ponugal expandiu-se em conjugação com o propósito da propagação da Fé
Cristã, propósito que se viu sempre enredado com a oposição de Maometanos. Agora, no ca-
tiveiro, o País dividiu-se em dois territórios, o Berço e o Ultramar, onde continuou a jogar o
que restava do sonho ou da grande aventura das descobertas.
Nos territórios onde flutuara a bandeira portuguesa, sem que tal símbolo representasse
a implantação de Império, ficava a resistência, o instinto, a inspiração de portugueses, agora
isolados, que se batiam em face da cobiça de Holandeses, Franceses e Ingleses que, sem dúvi-
da, procuravam estruturar Impérios coloniais modernos. Nunca os Povos contactados pela pri-
meira mensagem europeia que Portugal lhes levara, teriam entendido que não eram libertado-
res os mareantes que se aproximavam, mas simples agentes de renovados sofrimentos. Os Por-
tugueses puderam contar com algumas alianças, e não pode bem avaliar-se se as teriam mere-
cido.
No território continental português, submetido ao jugo castelhano, o que restava de su-
porte humano dos Descobrimentos, os Nobres e o Povo, regressou ao Campo ficando os Sola-
res e as Choças dos Camponeses mais povoados, vivendo talvez o conforto das esperanças na-
turais que, não sendo as únicas que devam ser vividas, são necessárias nas horas amargas do
sofrimento.

173
22 — O ARRANQUE DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
EM PORTUGAL

Sobre os campos de Portugal pairou, depois de 1580, o efeito benigno da paz filipina.
Embora o Povo não esquecesse El-Rei D. Sebastião, a saudade de um Rei português era senti-
mento pacífico, na ausência de alternativa que viria mais tarde a ser possível. O que se apresen-
tava de efectivo, mais do que a Lenda, foi o anúncio murmurado de feira em feira, de plantas
maravilhosas trazidas do além-mar, que podiam oferecer a esperança de transformarem a vida.

O Milhão revolucionário

Em homenagem a Autores que não basta citar, passamos a transcrever, ao gosto das an-
tologias necessárias, parte do texto «Uma revolução social» do Agrónomo e Arquitecto Paisa-
gista Ilídio de Araújo:
«Refugiado no esconderijo de uma montanha, lá para cima para as serras do Minho, vi-
ve um povo orgulhoso, não humilde, que eu ainda não sei se descende de alguma velha tribo
germânica ou se mergulha as suas raízes nos povos mais antigos dos tempos precélticos — os
astures ou os draganos.
Os seus pergaminhos pouco interessam, porém, para a compreensão da história que
quero narrar, e mais importante é o conhecimento do carácter desse povo e o da natureza da
paisagem serrana como a de muitas montanhas agrestes que existem por esse mundo, e o povo,
como muitos outros também, o representante hodierno de uma velha estirpe de pastores e agri-
cultores, mais dados ao trato dos bichos do que ao cultivo das searas. Nos tempos medievos
constituiu uma das tradicionais villas que os romanos fizeram brotar por todos os pontos do
seu império — foi a villa bona.

Atingira-se um estádio de civilização rural apoiada numa cultura variada e meticulosa,


que ainda hoje é o principal esteio da sociedade rural.
E assim se vivia lá em cima no planalto, numa paz serena e doce, quando o vírus da re-
volução, que já alastrava pelas ribeiras de Entre Douro e Minho, lentamente começou de aí se
infiltrar.
Seria pelos primeiros lustros do século de 1600.
Chegado ao planalto no bolso de algum curioso, o milhão escolheu para mostrar as suas
habilidades o período que medeia entre as últimas geadas primaveris e as primeiras outonais.
Embora não se sentisse lá muito bem na montanha, porque quando muito lampeiro às vezes
deitava o nariz de fora vinha uma geada que lhe murchava as pretensões, ou quando já se julga-
va quase livre de perigo uma queima mais temporã, lá por meados de Outubro, apanhava-o
ainda «em leite», a verdade é que ele, alojando-se a princípio nas terras mais quentes e leveiras
de encosta — as bouças —, atirou com a relva ou milho alvo para o rol das recordações... e o
centeio quase levou o mesmo destino.

175
O trigo, esse foi mais ruim de desalojar porque nas terras tundas as geadas não eram pa-
ra brincadeiras e a cultura daquele também não era tão miserável que não tosse capaz de re-
compensar o trabalho do cultivador com produções de 2.000 kg por hectare. Mas lá chegou o
tempo em que variedades de milho surgiram capazes de se desenvolverem em 150 dias sem
riscos de maior e garantindo produções das 3 a 4 toneladas por hectare. Quando o milho falou
esta linguagem o trigo preparou as trouxas e nunca mais pôs os pés na montanha. As vezes la
aparece uma folhita dele a assinalar casa com c'roa ou de mais fartos cabedais.
Os meus bons conterrâneos desses tempos deliraram, diga-se a verdade. As promessas
do senhor milho eram sedutoras. E vá de rodeá-lo com todas as cortesias, que ele disso era me-
recedor. O agricultor já não sabia onde armazenar tanto grão. Ele que até aí em duas arcas com
a capacidade total de 200 alqueires arrecadava toda a sua colheita, achou-se de repente a con-
tas com um figurão que dum momento para o outro lhe atulhava a casa de espigas, e não havia
já arcas nem casas que chegassem para arrecadar tanto grão.
Mas nem tudo eram rosas.
O senhor milho começava a tornar-se exigente, e na sua linguagem de mudo ia dizendo
ao agricultor que até ali tinha sido assim porque as terras estavam descansadas por um sistema
cultural em que predominavam os paúlos; que se quisesse continuar a vê-lo espigar e crescer
com valentia, ano após ano, lhe fosse deitando adubo lá para os pés; e que 30, 50, 60 carros de
estrume por hectare não eram demais.
O nosso lavrador, que estava habituado a passar as tardes assobiando pelas devesas atrás
das barrosas ou pelos lameiros a empilheirar a água nas levadas, não viu outro remédio senão
satisfazer os apetites do seu menino amimado. E toca de ir roçar mato como um mouro para
as devesas e coutadas; esgotava-se o mato destas e atirava-se lá mais para cima para os cerros
e visos a roçar com o ar resignado de quem se sacrifica por um filho querido.
Mas não era só isto; é que o mato não se ia enterrar assim verde no solo; tinha que pas-
sar por debaixo das patas do gado. E lá passaram as pobres «amarelas» a recolherem-se todas
as noites nas cortes, porque até aí ficavam muitas vezes pelo monte; antes porém houve que
fazer mais cortes, pois só havia uma ou duas para recolher vaca doente ou parida ou apartar
vitela desmamadoira.
E o milho parecia que quanto mais o amimavam mais rabujento se tornava. Agora que
as terras onde o semeavam todos os anos levavam estrumações da ordem das 30 toneladas por
hectare, — quando dantes nem 10 toneladas veriam de 2 ou de 3 em 3 anos — começou a quei-
xar-se com sede; que a água que escorria dos fontelos ou vinha nas enxurradas lhe não bastava.
E lá foi o lavrador esfuçar como uma toupeira à procura de água; abriu minas por todos
os lados — coisa que durante milénios os seus antepassados não tinham sequer pensado em
fazer. Se a água escorria por todos os sítios!...
Mas não ficavam por aí as exigências do milho; é bem certo que debaixo dos pés se le-
vantavam os trabalhos. Com as praganosas a colheita era tarefa quase sem risco de precalços;
colhiam-se no pino do verão, levavam-se para um terreno alisado e fixado com bosta, tazia-se
a espabita, emendava-se a palha, limpava-se o grão, e metia-se na tulha.
Com o milho o caso era diferente; como aprontava lá para fins de Outubro, não havia
em geral tempo de secar as espigas, malhá-las, e guardar o grão, porque as chuvas ameaçam

176
cada dia que passa.
Ter-se-ia começado por improvisar uns alpendres ou varandas na fachada da casa volta-
da a nascente, onde se pendurariam as espigas ainda presas pelo folhelho. Mas isso foi nos
princípios, quando a colheita era de alguns cestos; desde que ela começou a ser aos carros não
houve outro remédio senão construir amplos alpendres junto à eira — as casas da eira.
E nem assim se afastaram todos os riscos; é que aqui nesta região, como noutras, a chu-
va, quando Ihisso lembra, desata a cair em Outubro e vai por aí adiante até Janeiro sem dia de
sol; e as espigas mesmo abrigadas dentro do alpendre corriam grandes riscos ali amontoadas.
Lá teve o lavrador que se meter em mais despesas e fazer o espigueiro... e ladrilhar a eira, para
não falar em mais.
A verdade, porém, é que onde ele antigamente colhia 200 alqueires de trigo, centeio e
milho alvo, passou a colher 400, 500 e 600 de milho, e quando o feijão surgiu de braço dado
com ele ainda houve que contar com 50 deste e ainda tinha ficado terra para 40 a 50 de centeio.
Entretanto foi-se habituando a substituir os paúlos por prados de azevém nas regadas, e
de ferrã nas bouças. A capitação de gado subiu também, e onde antes pensava 4 vacas passa-
ram a criar 7 ou 8.
Mas diga-se em abono da verdade que do corpo lhe saía. Nunca em tempos passados o
montanhês tanto tinha amassado o pão com o suor do rosto. Repare-se que até a fortuna lhe
trazia trabalhos: — Pois se as casas que tinha herdado dos avós estavam preparadas para arma-
zenar 200 alqueires de colheita, onde ia ele meter os 700 a que agora ela montava?
Não houve outro remédio senão alargar as casas. E os primitivos casebres, que raramen-
te possuíam mais que uma cozinha térrea, um sobrado e uma loja, um cortelho para os ceva-
dos e uma ou duas cortes para o gado, com barras para arrecadar as palhas e fenos, evoluíram
para muito maior volume de construções.
Ao lado desses casebres e em torno do eido levantaram-se amplas casas sobradadas de
silharia maciça e janelas rasgadas para melhor arejamento das tulhas do cereal; e mais cortes,
palheiros e barracos para estabulação do gado ou arrecadação de pensos e alfaias. Num sítio
soalheiro construiu-se a eira e ao seu lado o alpendre e o espigueiro.»

Novo sistema agrário

O Milhão regado veio substituir, nos terrenos onde a sua cultura poude ser implantada,
a cerealicultura tradicional de sequeiro, o milho painço, a cevada, o centeio e mesmo o trigo.
A substituição obrigou a demarcar campos onde o declive o consentia, desde que o regadio pu-
desse ser estabelecido em função da disponibilidade das águas que foram exploradas. O open-
field', ou o espaço aberto à livre circulação do pastoreio em pousios cerealíferos, deu lugar a
recintos vedados, compartimentados, o campo-prado servido por condutas de água de rega ar-
mazenada em represas ou poças, e saneado com valas de drenagem. campo onde o Milhão era
cultivado em alternância com a erva de inverno quando possível limada, dando feno na prima-
vera, antes da sementeira. Para construção dos campos foi indispensável rever todas as serven-
tias, substituindo velhas canadas percorridas pelos rebanhos, por caminhos vedados para circu-
lação de carros de bois de transporte de alfaias, estrumes e colheitas.

177
A construção dos campos imposta pela cultura do Milhão, arrastou consigo a implanta-
ção de outras culturas que passaram a ser conduzidas em obediência a sistema novo. A mais
importante teria sido a cultura da vinha. Com o sistema de sequeiro a vinha era cultivada nos
solos e exposições mais favoráveis, em espaços de plantio contínuo. Nas regiões húmidas a vi-
deira tenderia a trepar pelo que não é de excluir a existência de tutor vivo a servir de amarra
às gavinhas. Os «vinhos verdes» já teriam, desde o tempo dos romanos, encontrado a sua re-
gião, sendo a plantação contínua, idêntica à das vinhas dais regiões menos húmidas. Ora, a
construção dos campos de cultura do Milhão, veio oferecer as bordaduras onde a vinha pas-
sou a ser localizada, beneficiando das estrumações efectuadas por exigência do Milhão, e das
regas de que o novo cereal carecia. Mercê deste artificialismo cultural a vinha trepou mais, exi-
gindo tutores mais fortes e o vinho teria alterado a sua maturação, tornando-se mais «verde»,
mesmo nas áreas menos húmidas, quando regadas.
O Visconde Villarinho de S. Romão, no seu «Minho e suas culturas», assinalou a anti-
guidade da vitivinicultura nesta região, citando autores romanos. Mas regista depois preciosa
referência a alterações de localização da vinha: «extensas propriedades das mais férteis, foram
em verdade em longínquas eras dedicadas à videira, como se infere de antiquíssimos empra-
zamentos e doações, sendo ainda na província denominados vinhas, muitos terrenos hoje vesti-
dos de soutos e olivais, e que bem justificam o antigo adágio foi chão que deu vinho». O subli-
nhado é nosso, mas, pondo de parte a questão de terem sido ou não «extensas» as propriedades
reconvertidas a «soutos e olivais», afigura-se-nos que esta referência corresponde a facto re-
sultante da introdução da cultura do Milhão. O enforcado estabelecido nas bordaduras dos
campos, bem estrumado e regado, acabou por destronar economicamente a cultura da vinha
nos sequeiros, mesmo «em propriedades das mais férteis», desde que não pudessem ser rega-
das e transformadas em campos. Daqui a validade e o significado do dito popular «chão que
deu vinha» ou «chão que deu uvas» e que, acentuamos, se transformou em «souto e olival»
por não ter sido possível adaptá-lo ao regadio.
Note-se porém que a orientação actual da exploração de vinhos verdes brancos de alta
qualidade, obriga a replantar ou, talvez a repor a vinha em localização diversa da bordadura
dos campos, respeitando, no entanto, rigorosos preceitos técnicos que não vem para o caso re-
ferir neste passo.

O regadio camponês

A necessidade de enquadrar o ciclo vegetativo do Milhão, exigente em temperatura e


humidade conjugadas, no período primavero-outonal português, em que o verão é seco, obri-
gou a mobilizar os recursos hídricos de forma intensiva. Pode entender-se que antes da chega-
da do Milhão as nascentes naturais já estariam praticamente represadas para rega de linhares,
hortejos e lameiros, encontrando-se construídas levadas que permitiam conduzir a seu destino
águas de ribeiros torrenciais. Mas o quadro descrito por Ilídio de Araújo para o Planalto da La-
meira onde os seus antepassados viram que, para o milho, «a água que corria dos fontelos ou
vinha nas enxurradas não bastava» pode ser generalizado a parcela importante do País. E, por
isso, como afirma «lá foi o lavrador esfuçar como uma toupeira à procura de água». Foi desta

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forma que procederam os camponeses de Portugal, onde lhes foi consentido decidir tão pro-
funda transformação, tão grande investimento, que somente foi possível nas parcelas apropria-
das aos objectivos das estruturas sociais familiares. Por isso, tem de admitir-se que a revolução
do milho teve início nas courelas de camponeses onde tradicionalmente havia posse, alargan-
do-se depois a domínios vastos quando parcelados pelo aforamento ou por outras modalidades
contratuais, como o arrendamento e a parceria, compatíveis com a segurança relativa de conti-
nuidade camponesa na exploração da terra.
Estamos certos de não cometer erro grave se avaliarmos em cerca de 350.000 hectares,
o que representará 60 por cento do regadio actual português, a dimensão do regadio filipino
camponês, que prossegiu depois de 1640, como efeito da explosão demográfica que provocou.
Situamos esse regadio em todo o Entre Douro e Minho e parte de Trás-os-Montes confinante,
na Beira Litoral, prolongando-se em Leiria, e na Beira Alta. Reunindo oito Distritos (Porto,
Braga, Viana do Castelo, Coimbra, Aveiro, Viseu, Vila Real e Leiria) podem calcular-se alguns
indicadores actuais, porque outros não existem, que sugerem situações passadas:

Conjunto de oito Distritos Posição em relação ao total do Continente


Superfície Percentagem
Área dos oito Distritos 26
Clima Super Húmido (Thornthvvite) 83
Clima Húmido 42
Superfície agrícola actual (S.A.U.) . 21
Regadio actual 66
Sementeira actual de milho 72
Produção média actual de milho . . 84

A observação das percentagens acima apresentadas mostra que, cerca de quatro séculos
depois dos ensaios do Milhão, o conjunto de oito Distritos que representa a quarta parte do ter-
ritório, beneficiando de clima Super Húmido e Húmido na percentagem de 58 por cento (83
S.H. mais 42 H.), alcançou regar uma área que representa 66 por cento do regadio de todo o
território. Assim, quase monopolizou a cultura (72 por cento da sementeira) e a produção de
milho (84 por cento). Não será difícil aceitar que este foi o terreno onde os camponeses de Por-
tugal, a partir dos primeiros anos de 1600 «esfuçaram como uma toupeira» no dizer sugestivo
de Ilídio de Araújo, para cumprirem o programa revolucionário do Milhão, sem Crédito, sem
Subsídio, mas ditado pelo Plano irrevogável do combate à Fome.
Sabe-se hoje, por duríssima experiência do Planeamento técnico, económico e social
contemporâneo, que uma Obra Pública monumental pode represar a água, construir canais a
dominarem a terra a regar, acabando por ficar os resultados distantes das previsões de apro-
veitamento ou do benefício do investimento. A rega exige a conjugação de factores e de acções
de grande complexidade que os instrumentos políticos nem sempre estão aptos a desencadear.
Na fase histórica a que nos estamos a referir, o programa tinha a força de instalar o Milhão, o
que se fez sem plano, na certeza de que o cereal colhido facultava abundância alimentar para
o homem e para os animais, em cereal, palhas e outras culturas associadas. Por isso se não re-
gateou investimento de trabalho, sendo aproveitadas ao máximo as águas superficiais que es-

179
corriam no estio, em condições de serem conduzidas para os campos de milho depois de acu-
muladas em presas e poças. Mas a necessidade de regar exigiu que se fosse mais longe, explo-
rando todas as técnicas conhecidas do sistema de hidráulica agrícola praticado. Jorge Dias, em
«Aparelhos de elevar água de rega» descreve:
«Este sistema estende-se por todo o norte de Portugal sobretudo nas regiões onde a to-
pografia se presta à sua prática e a água é abundante, ou seja, no Entre Douro e Minho e nas
regiões serranas de Trás-os-Montes e Beiras, onde há precipitações mais frequentes.
É particularmente eficaz nas regiões graníticas e de intensa pluviosidade invernal, pois
o granito da superfície alterado pela erosão, funciona como uma esponja, e armazena grandes
massas de água. que ficam retidas pelas camadas não alteradas da rocha que são impermeáveis.
Como as nascentes naturais são insuficientes para as necessidades dos camponeses, é costume
abrir minas nas encostas, até encontrar um veio de água que satisfaça as necessidades de rega.
A permanente necessidade de procurar água deu origem a um curioso tipo de especialistas,
chamados vedores, que, guiados por uma faculdade especial, tomam ares divinatórios e são
considerados pelo povo como homens dotados de poder sobrenatural».
Com o auxílio de vedores, que mais tarde se equipariam com varinhas e pêndulos apro-
priados, cuja função não importa discutir, vastíssima parte do País foi prospectada, e nas re-
giões de clima chuvoso foram abertas minas e poços, cujos caudais acrescentaram as águas
correntes e as nascentes naturais.
O aproveitamento dos cursos de água levou à construção de múltiplas levadas, sendo
muitas do povo, ou de regantes associados que ajustaram regras de repartição sob vigilância
de juiz para o efeito nomeado e respeitado. Atendidas as exigências estivais do Milhão, muitos
regadios passaram a obedecer a outras normas, de torna-torna, especialmente para lima de pra-
dos no inverno, quando o regante utiliza a água que encontra disponível e enquanto a guarda.
As levadas podem regar terras situadas a nível inferior, deslocando-se a água por gravi-
dade. Mas é frequente ver-se terras regadas quando se encontram acima do manancial, pelo
que se impõe o recurso a aparelho de elevação que pode ser o simples cabaço, a picota, a rol-
dana, o sarilho, a bomba ou aparelho, em geral roda hidráulica, movida a água, por animais
ou pelo homem. Todos estes equipamentos se encontram estudados no referido trabalho de Jor-
ge Dias, mas são grandes as dificuldades de analisar a história da sua introdução nas diversas
regiões agrárias. O regadio antigo constitui o essencial do regadio português, mas grande parte
encontra-se perdido ou em grande risco de se perder (minas, poços, levadas, aparelhos de ele-
vação) por impossibilidade de conservação ou por inadequação às modernas exigências do tra-
balho. Por isso se tem verificado a substituição de equipamentos de elevação de caudais e me-
lhorias das redes de distribuição, adoptando-se soluções modernas dependentes de acréscimos
de consumo de novas formas de energia. O mais grave, porém, é que o regadio tradicional vai
sofrendo as consequências da poluição das águas, o que reduz a disponibilidade para uso agrí-
cola.

A construção dos campos de regadio

A rega possível era a rega de pé, feita com enxada e o pé, para espalhar a água de for-

180
ma a penetrar no solo. A rega feita com regos ou sulcos paralelos corresponde a formas aper-
feiçoadas que exigem a sementeira em linhas, o que então se não fazia, adoptando-se a se-
menteira a lanço. De qualquer modo os declives do terreno tiveram que ser adaptados à deslo-
cação da água por gravidade, evitando a erosão quando muito inclinados e permitindo que a
água ficasse retida.
As primeiras áreas onde o Milhão se instalou em grande, seriam as várzeas que, para o
sistema agrícola tradicional se não prestavam para a cultura cerealífera de sequeiro, encontran-
do-se entregues ao pastoreio. Seriam preferidas as susceptíveis de enxugo e regáveis com
águas de charcos, de poços, elevadas por aparelhos montados nos rios ou ribeiros que as margi-
navam, ou transportadas por regadeiras a partir de cursos de água dominantes. O pastoreio fi-
cou assim privado dos melhores recursos, e por isso deu lugar à estabulação, ou subiu nas ser-
ras em altitude.
Os terrenos de meia encosta tiveram que beneficiar de trabalhos de nivelamento, cons-
truindo-se campos murados, delimitados por valas e regos de regadio e de drenagem. O pasto-
reio nestes campos-prado passou a ser temporário ou estacionai ficando impedido o manadio
com a presença do Milhão. Entretanto o gado recolhia à corte, onde pisava o estrume. É nos
campos de meia encosta que se encontram numerosas minas sendo as águas represadas em po-
ças. Os poços existem, mas são mais frequentes nas várzeas, variando a concepção dos apare-
lhos de elevação em função da profundidade do lençol freático.
Onde o Milhão trepou às Serras, alcançando altitudes de 300 a 400 metros, tornou-se
indispensável a construção de socalcos, isto é, muros a suportarem a terra deslocada do seu
perfil natural. São muito frequentes as paisagens de leiras construídas em socalco para a cultu-
ra do Milhão. As leiras tanto podem ficar dominadas por poças que armazenam água que corre
de nascentes ou de minas, como por regadeiras de levada que transporte caudais captados em
cursos de água torrenciais da montanha.
Os trabalhos empreendidos para construção dos campos e dos socalcos onde o Milhão
foi instalado, representam investimento de trabalho que, embora não tivesse sido avaliado, cor-
responde a esforço considerado escravizante, que sem dúvida seria condenado pela lógica da
moderna economia. Mas sabe-se que nunca foi pago qualquer salário para armar terras em so-
calco para o Milhão. Os monumentos agrários deste tipo que existem nas regiões do norte, fo-
ram construídos com enorme sacrifício humano, e encontram-se em terras que eram da posse
ou domínio útil de camponeses e foram erguidos de acordo com a sua própria lógica, ou falta
de lógica se os tecnocratas assim o preferirem, quando não existiam outras alternativas para o
trabalho disponível e a terra era escassa para garantia de sustento, embora se encontrasse acu-
mulada em domínios senhoriais vastíssimos e fechados. Mas, no fundo, por estes tempos, a Fo-
me não era apenas ameaça potencial, mas realidade sensível nos seus efeitos dramáticos.

As alterações no Habitat e na Casa Rural

A estabulação do gado que antes era pastoreado em manadio, para fabrico de estrumes,
obrigou a demarcar as bouças onde o mato era roçado, e a construir ou modificar Casas Ru-
rais dotadas de corte para abrigo do gado. As bouças foram demarcadas na periferia dos cam-

181
pos em terras que não podiam ser arroteadas, constituindo, na paisagem, a mais perfeita inte-
gração da floresta 110 campo cultivado. A bouça também era pastoreada e além do mato para
fabrico dos estrumes fornecia, segundo ordenamento florestal ajardinado, as madeiras e lenhas
necessárias.
Para tratamento da colheita do Milhão, muito mais produtivo do que os cereais antigos
que foram abandonados, tornaram-se indispensáveis as eiras e os espigueiros, como Ilídio de
Araújo acentuou. Assim, muitos aldeamentos deram lugar à dispersão do Habitat, passando a
Casa Rural, agora transformada em oficina agrária, a ser instalada junto dos campos de Mi-
lhão. Foi nesta fase, de intensa construção rural que se acentuou a rapina de pedras velhas
meio trabalhadas. Foram removidas ruínas de posições castrejas e de vilas romanas, restos de
muralhas de fortificações que a paz filipina tornou inúteis, aproveitaram-se monumentos es-
quecidos como marcos, memórias, aras ou altares, estátuas de guerreiros galaicos e pelouri-
nhos que passaram a servir de suporte de paredes ou de soleira de portais.
Onde o Milhão trepou à Serra, alguns aldeamentos comunitários obedeceram à sua or-
gânica, como Soajo ou Lindoso, construindo eira comum, em torno da qual se agruparam os
espigueiros privados entregues à vigilância colectiva.

Estabulação do gado

A estabulação do gado para fabrico de estrume pisado nas cortes, e aproveitamento in-
tensivo do campo-prado e da bouça pastada, bem como das bandeiras, desbastes e palhas do
Milhão, corresponde à mais importante das revoluções pecuárias, resultante da introdução da
nova cultura regada. O mato passou a ser macerado sob a pata do gado que. assim, todas as
noites recolhia às cortes quando fora tinha pastagem, ficando o estabulamento a substituir o
pastoreio tradicional de gado ntanadio. Também, os caminhos das aldeias, de piso irregular,
encharcados pela passagem de águas que regavam, no estio, campos de milho e, no inverno,
erva de lima, serviam de nitreira de fermentação do mato estrumado por porcos, galinhas, cães
e habitantes, em perfeita coexistência da rotina agrícola.
Com o Milhão, o gado serrano baixou dos seus solares de origem, a recrear-se nas pasta-
gens ribeirinhas, estabelecendo com os camponeses novo estilo de convívio. O agricultor
acrescentou à sua vivência feita de amor às plantas, o apego aos animais com que cohabitava,
adoptando também o que sempre constituiu a filosofia pastoril. Em sentido técnico, pode afir-
mar-se que a maravilhosa planta trazida triunfalmente da América, consolidou o sistema agro-
-pecuário, que foi também integrador da actividade florestal, ao fabricar o estrume necessário
com os matos, solução que hoje se encontra em risco de perder-se, sem que se descortine alter-
nativa consistente. Deve ter-se em conta que a fertilidade do solo onde o Milhão foi implanta-
do. fora dos raros campos aluvionais, em regra não é natural mas assegurada por copiosas es-
trumações que estão na base dos resultados alcançados.

Mais alimento e o «bicho santo»

A introdução da cultura do Milho conduziu a resultados demográficos notáveis, em con-

182
sequência da contribuição deste cereal para o acréscimo de recursos alimentares. Entre 1527.
data do numeramento de D. João III, nas vésperas da «revolução do milho», e em 1864. ano
do primeiro Censo da População, a Densidade Demográfica apresenta as seguintes variações
regionais:

1527 1864 índice


Litoral Interior Litoral Interior Litoral Interior
Norte 48 10 183 35 381 350
Norte-Centro 12 11 67 42 558 382
Centro-Sul 29 16 56 29 193 181
Sul 15 12 34 14 227 117
25 12 73 28 292 233
Ao longo do período assinalado, de pouco mais de três séculos, a implantação do Milho
ocorreu especialmente no Minho e em Trás-os-Montes, nas Beiras, com forte localização no
litoral, do Vouga ao Mondego. No Minho a população quase quadruplicou. Nas restantes re-
giões do País apenas duplicou, mantendo-se estável no Sul interior, onde o trigo não foi amea-
çado, e muito menos destronado.
Efectivamente a nova cultura veio provocar a substituição do Pão tradicional, nas re-
giões que passaram a colher Milho, pela Boroa ou Pão de Milho. Aconteceu que o Milhão, ao
expandir-se na Europa, desencadeou um mal a que foi dado o nome de «doença de Colombo».
Tratava-se da pelagra, avitaminose muito tarde identificada como carência de ácido nicotíni-
co, princípio protector de que o Milho é pobre. Nas regiões portuguesas onde a boroa passou
a constituir a base da alimentação, a pelagra, embora endémica de forma atenuada, que chegou
a ser confundida com a lepra, não se agravou. Talvez esta circunstância se possa atribuir às vir-
tudes do «caldo verde» que, mercê do contributo da couve portuguesa, teria assegurado o com-
plemento vitamínico necessário para que o equilíbrio nutricional se mantivesse.
O abandono do trigo, nas regiões onde o regadio do Milho se instalou teria provocado
alterações nas formas de pagamento das rendas, foros e outros tributos senhoriais. Nestas cir-
cunstâncias as antigas «covas», celeiros ou armazéns onde os Senhorios laicos e eclesiásticos
arrecadavam a contribuição dos Camponeses, tiveram que adaptar-se a «tulhas», ou enormes
«arcas», algumas de magníficas madeiras do Brasil, onde o Milho era guardado, «limpo e se-
co», entregue depois de esfolhado e malhado, nas eiras, com um folclore que foi preciso reno-
var ou inventar, com os cantares, as danças e o beijo que era devido a quem encontrasse o «Mi-
lho Rei». A resistência do milho à voracidade do gorgulho é bem menor do que a do trigo que
já contemplara a sabedoria de Faraós prudentes, em tempos de «vacas gordas». Com o Milho
era diferente, e o povo deu ao gorgulho do Milho o saboroso nome de «bicho santo», porque
obrigava os Senhorios a lançar mais cedo o cereal no mercado, moderando assim a alta de pre-
ços no termo do ano cerealífero, impedindo a especulação por superarmazenamento. Como a
«autosuficiência» dos Camponeses funcionava à base das sobras da produção que colhiam, de-
pois de deduzidas as rendas, nos anos maus a margem era escassa, e não havia remédio senão
comprar o Milho que fora entregue como renda e os Senhorios armazenavam. Era o «bicho
santo» que o punha ao Sol nas feiras, a mendigar comprador para se não perder na tulha. Nesse

183
tempo, para o Camponês, quanto mais barato fosse o Milho, tanto melhor.
Maria do Rosário Castiço de Campos no seu trabalho já citado «Foz de Arouce no sécu-
lo XVIII» refere, a respeito da transformação do regime alimentar o seguinte: «não se verificou
apenas a substituição do pão de trigo e de centeio pela broa de milho e centeio, triga-milha, ou
só de milho, mas também são da época as chamadas papas-labeças feitas à base de farinha de
milho e couve serrana, comidas quentes ou, depois de frias e enqueijadas, fritas em azeite, as-
sim como as sopas-secas ou de travessa, todas elas com uma camada de broa esfarelada, sobre
a qual e conforme a época se usam várias hortaliças aferventadas, como é uso dizer em todo
o termo da Lousã, designação dada às hortaliças cozidas em água fervente e abundante para
que não fiquem amarelecidas mas sempre muito verdes».
No que respeita ao acréscimo da produção resultante de «revolução do milho» a mesma
autora encontrou registos dos seguintes valores: «considerando a média em trigo 64 alquei-
res/hectare verificámos que o mesmo terreno a milho produz em média 264,5 alqueires, o que
representa um aumento de produção de 4,13 vezes mais». Acentua depois que o trigo exigia
pousio e a cultura regada de milho passou a ser contínua, o que permitiu registar «espectacu-
lar aumento do cereal disponível».

A importância dos efectivos pecuários no trabalho e na guerra

Dos animais pastoreados eram seleccionados exemplares que passavam a ser explora-
dos em função das suas vocações específicas. O trabalho de Bovinos assumiu importância
enorme, constituindo um avanço muito grande a arte de os jungir à canga. Uma vez cangados,
os animais eram submetidos a treino de tracção de materiais transportados de rastos, ou em
carros providos de rodas, de arados e outras ferramentas, de engenhos de água e de atafonas.
O mesmo acontecia com o gado Cavalar, sendo domados os animais destinados à trela dos
transportes e das máquinas, à cavalaria que beneficiou lentamente do aperfeiçoamento das se-
las, dos estribos, dos freios, e também à carga, com albardas.
Por vezes, os animais de trabalho, durante períodos mortos de actividade, regressavam
ao pastoreio mas, em regra, e com o aperfeiçoamento dos equipamentos, passou a ser estabula-
do, embora pudesse ter à sua disposição os prados. Na referência ao trabalho, merece destaque
especial o Burro, que além de ter suportado grande força das tarefas no espaço mediterrânico,
serviu de cruzamento com Cavalos, dando animais de grande vigor e utilidade. A cruza das
duas espécies de Equos, o cabal los e o asinos, origina híbridos estéreis, os muares ou mulas,
que podem ser eguariços ou asneiros, conforme a mãe é égua ou burra, respectivamente. Ao
longo da História de Portugal o uso de Cavalos foi particularmente importante, tendo-se obtido
no Norte raças de garranos de grande resistência, de que serve de exemplo a «burra travadi-
nha», que avança ao mesmo tempo a mão e o pé de cada lado. depois de submetida a aprimo-
rado treino. No Centro e Sul. raças lusitanas de maior porte, têm não menor valor, prestando-
-se a todas as funções, incluindo o toureio e a alta escola. Já no tempo dos Romanos, ficaram
célebres as éguas que no Vale do Tejo «eram fecundadas pelo vento». O Cavalo, em regra, não
era pastoreado. Lançado em planícies e em montanhas, quase se tornava selvagem, sendo cap-
turado e domado à medida das necessidades. Apontam-se no País garranos, ditos «selvagens»

184
sem o serem, na Serra do Gerês, sendo frequente o lançamento de idênticos garranos para as
alturas do Soajo, onde se reproduzem livremente.
Nos transportes civis, de tracção de viaturas, nas tarefas agrícolas, nas filas de muares
de almocreves, com a sela de cavaleiros, manteve-se grande procura de animais, cuja produção
se oferecia nas feiras, satisfazia a «remonta» do exército regularmente praticada com a escolha
dos melhores animais, a completarem o que se obtinha em «coudelarias» do Reino.
Os Bovinos constituíram em muitas regiões, especialmente do Norte, os efectivos de
trabalho que, no termo da sua exploração, eram abatidos para consumo da carne. A função lei-
teira também era explorada, acontecendo que a reduzida capacidade de produção de certas ra-
ças, obrigava a consumir o filho como vitela, para depois mungir o leite. Durante longos sécu-
los do período medieval, a selecção de raças procurou tanto a especialização em trabalho, car-
ne ou leite, como a função mixta que, em regra, se tornava compatível com as necessidades.
A raça Barrosã será das mais importantes no território português. Provém de um tron-
co «mauritânico» de que é «uma raça pura». Os Barrosãos foram magníficos no trabalho e a
sua carne é de alta qualidade, tendo enriquecido a região minhota quando eram exportados pa-
ra Inglaterra. O leite é de alta percentagem butirosa e foi o alicerce da indústria de manteiga
que, depois, pela disponibilidade de raças especializadas, se transformou em indústria de lacti-
cínios. A raça Mirandesa pertence ao «tronco ibérico», e a vocação foi a do trabalho. No Jar-
melo aperfeiçoou a função leiteira. Transportada para o Sul, deu origem ao «touro de lide» nas
margens do Tejo. A raça Transtagana «filia-se no tronco aquitânico» que se compõe «de al-
guns restos que ainda possam existir de raça minhota». Tornaram-se abundantes os mestiços,
de que é exemplo o Arouquês, o Vermelho, o Vianês, o Marelo, o Braguês, o Maronês, o Mari-
nhão, o Charnequeiro, o Garonês. A importação tardia de gado leiteiro Holandês, deu o Torino,
perfeitamente adaptado.
Como noutras passagens do presente trabalho se refere, o pastoreio assumiu grande im-
portância em Portugal, sendo praticado no Norte, com gado Caprino, Ovino, e Bovino, nos
Baldios, organizado em «vezeiras» comunitárias. No Sul dominava o pastoreio, não só nos
Baldios, por vezes sob a forma de «adua» comunitária, como também nas herdades, sob a for-
ma «livre» ou de «compáscuo», deslocando-se os rebanhos nas «canadas», que a Revolução
Liberal acabou por banir. Era muito importante o pastoreio de Porcos nos «montados» de So-
bro e de Azinho.
O Suporte que a Agricultura facultou aos efectivos de trabalho, incluindo os Cavalos e
Muares ao serviço dos transportes e do exército, para além dos Bovinos e dos Burros presentes
nas explorações agrícolas, representará, expresso em termos económicos ou de energia, um va-
lor muito alto, difícil de medir, mas fácil de reconhecer e ponderar. Quando a inovação técni-
ca transferiu a função de trabalho do Motor Vivo para o Motor Inanimado, libertou, na Agricul-
tura, em favor da produção de carne e de leite, quantiosa energia forrageira. Não é fácil saber
se tal transferência acabaria por se revelar compensatória. Hoje, parece ser desmedido o valor
do consumo de energia provinda de fontes diversas da Agricultura, energia que passou a ser
utilizada em transportes de toda a espécie e de tracção agrária moderna.
Muito cedo o Cavalo foi melhorado como animal de guerra. Os movimentos migrató-
rios dos povos pastores, transformados, por vezes, em conquistadores guerreiros, foram facili-

185
tados pelo meio de deslocação e transporte que o Cavalo representava. Os Faraós deslocaram-
-se em carros atrelados a Cavalos. Na Grécia e em Roma celebrizaram-se as corridas de Qua-
drigas. Embora os Historiadores apontem a importância da infantaria nas guerras clássicas, a
lenda da Cidade de Tróia, celebrizou a máquina traiçoeira que representava um Cavalo. Era
numa Quadriga, esplendorosamente enfeitada, que eram ovacionados em Roma os Heróis que
regressavam vitoriosos. Embora se possa considerar que a guerra mobilizava outros animais,
como os Elefantes que, da Península Ibérica acompanharam Aníbal à Península Itálica, trans-
pondo os Alpes, talvez sem cavalos se não cumprisse tão arrojado percurso. Foi a cavalo que
os Bárbaros conquistaram o Império Romano. No solo pisado pelas patas do Cavalo de Atila
«nunca mais crescia a erva».
Com o uso da lança, espada e escudo, o cavaleiro e o Cavalo foram revestidos de pesa-
da armadura. Noutros casos o Cavalo manteve, como nos exércitos Árabes, a eficácia da mobi-
lidade, transportando cavaleiros que manobravam armas do melhor dos aços. Na guerra, trans-
portada para o quotidiano da vida social, a Cavalaria medieval transformou-se em apanágio da
Nobreza. Manter Cavalo de guerra era particularmente dispendioso e exigia Págem a manobrar
os Cavalos ajaezados. O Clero organizou-se em Ordens militares. Mas o Povo não podia ir
além da Infantaria, ftxando-se nos sistemas que regulavam o recrutamento de «besteiros», fiéis
depositários de armas de guerra particularmente eficazes. No entanto, quando as posses o con-
sentiam, ascendia a «cavaleiro vilão», eventualmente nos percursos que, em função dos com-
portamentos na guerra, conduziam à aristocracia. Um Código de Honra regulava a cavalaria
medieval. Os cavaleiros eram «armados» com solenidade. Os juramentos continuaram a ser
proferidos em actos fundamentais, como sucedeu com a «ínclita geração» e seus companhei-
ros, na conquista de Ceuta. A prática manteve-se e foi suporte do «gesto» de D. Filipa de Vilhe-
na, em 1640.
Depois de difundidas as armas de fogo, a cavalaria manteve-se nos exércitos, tirando
partido da mobilidade que o Cavalo consentia às tropas que, em certas circunstâncias, comba-
tiam apeadas. Afigura-se que a celebridade de cavaleiros como os da «ala dos Namorados»,
conservou o prestígio do uso do Cavalo que acabaria por conduzir a «cargas» de lanceiros so-
bre a infantaria, vitoriosas ou dramáticas, pelo acréscimo da eficácia das armas de fogo moder-
nas. À margem do exército é a Cavalo que se movimentam as forças do banditismo armado, e
a Cavalo se desloca, no Brasil, o Bandeirante. Nos exércitos modernos as unidades «de cava-
laria» abandonaram o Cavalo e passaram a motorizadas. E, nas forças militares, o Cavalo ainda
ficou, naturalmente vexado, ao serviço da «polícia montada», rural e urbana, servindo para in-
timidar multidões de idealistas ou de arruaceiros. Manteve também a sua figura garbosa nas
festas militares, ou nos cortejos, quando aos Museus se vai buscar os coches, que transportam
os figurantes ou, noutras circunstâncias, servem nas visitas dos Reis. Também o Romance
imortal de Cervantes, celebrizou D. Quixote que mereceu a Teixeira de Queiroz, numa sessão
comemorativa na Academia das Ciências de Lisboa, as seguintes palavras:
«...numa linda manhã de Julho sai pela porta falsa de um curral, montado num cavalo
magro, vestido de maneira desusada, à procura de aventuras andantes pelos campos de Mon-
tiel, que ele conhecia e amava. Armou-o cavaleiro o dono de uma taberna e é deliciosa e encan-
tadora essa memorável noite em que ele velou as suas armas junto de um poço. A Tolosa, filha

186
de um remendão de Toledo, cinge-lhe a espada invencível; a Mulinera, filha de um moleiro de
Antequera, calça-lhe a espora de oiro. Assim preparado, a armadura luzente atada com cordéis,
a vizeira de papelão levantada para se lhe ver o rosto fero, a enorme lança erguida, montado
no seu adorável Rocinante... Soldado do resumido exército da justiça, pressentindo que no
mundo triunfa a protervia, a força que esmaga a fraqueza, a calúnia que oprime a verdade, vai
a consertar os malavindos, a socorrer donzelas desprotegidas, a instituir o impecável direito, a
vencer gigantes malfeitores, ferindo batalhas nunca vistas.»
Vai, e vai «montado no seu adorável Rocinante» e, com ele, Sancho Pança, num burro.

187
23 — A REVOLUÇÃO AGRÁRIA E OS PORTUGUESES
NO MUNDO

O domínio filipino condenou os territórios ultramarinos onde os portugueses se instala-


ram. a ficarem entregues a núcleos de resistência heroicamente mantida perante propósitos im-
perialistas de países europeus poderosos. Mas, pode entender-se que, mau grado a violência da
luta, o esforço de autonomia administrativa ficou assegurado e, embora com dificuldades em
face da pirataria dos mares, manteve-se a navegação desde o Oriente ao Brasil, passando por
Africa. Naturalmente, prosseguiu o intercâmbio de plantas descobertas em diferentes regiões
e os ensaios de aclimação continuaram a constituir a base da revolução agrária iniciada no
Mundo. A Agronomia portuguesa, cuja importância temos procurado assinalar, voltada para as
novidades regionais agora conhecidas, prestou serviços fundamentais ao progresso das técni-
cas de abastecimento alimentar de povos que sofriam as consequências do isolamento e de do-
loroso atraso. Isto não significa que a mensagem portuguesa representasse, na altura, o sinal
de pronta e efectiva libertação. Todo o progresso tem seus custos e as conquistas suas fases.

As Ordenações Filipinas

O propósito de intervir na actividade administrativa portuguesa, sem ferir susceptibili-


dades que, sem dúvida, poderiam dar motivo a revolta, levou Filipe II de Castela a mandar re-
ver a legislação portuguesa, sem que pretendesse chegar ao ponto de unificar os códigos em
todos os territórios em que reinava. Os trabalhos de revisão legislativa arrastaram-se e foi no
reinado de Filipe III que as Ordenações Filipinas foram promulgadas, tomando o lugar das Ma-
nuelinas que serviram de base.

O «sebastianismo»

Foram quatro os aventureiros que se apresentaram invocando a qualidade de D. Sebas-


tião vivo e salvo do desastre de Alcácer-Quibir. Uns, mais do que outros, alcançaram a adesão
de nobres e do povo mas, ao cabo das situações que encenaram, foram todos degolados como
castigo do atrevimento. No entanto, os Castelhanos não amordaçaram o «sebastianismo» por-
tuguês nascente, ficando instalado para se exprimir nas mais complexas e variadas emergên-
cias.

Os Holandeses no Brasil

Embora as Capitanias procurassem defender o litoral contra a agressão de corsários,


construindo fortalezas amuralhadas, tal esforço não foi, em dados momentos, bastante para im-
pedir a instalação de estranhos. A ocupação filipina do Reino de Portugal animou os Holande-
ses nos seus empreendimentos que visavam o estabelecimento de colónias em diferentes pon-

189
tos vitais do Mundo recém descoberto por portugueses e espanhóis. As iniciativas de Holande-
ses. concorriam com esforços idênticos de Franceses e Ingleses, mas apresentaram muito cedo
o apoio de marinha poderosa, e de perfeita organização técnica, sob a forma de Companhias
de Comércio, onde não faltavam administradores e técnicos dotados de esclarecida formação
científica. Para além das ocupações praticadas pelos Holandeses com êxito no Oriente, a ques-
tão tornou-se mais ampla quando se instalaram em Angola, e pareciam dispostos a ficarem no
Brasil, em país novo que pretenderam construir. A administração do Conde de Nassau foi efi-
caz e progressiva dotando a cidade de Pernambuco de equipamentos técnicos e arquitecturais
de que a povoação original, caótica, não poderia dispor sob administração portuguesa, espe-
cialmente durante o período de ocupação castelhana, muito pouco interessada no progresso do
ultramar português.
No entanto, os sucessos da Holanda na colonização do litoral brasileiro, não lograram
obscurecer a iniciativa dos portugueses na exploração do interior, particularmente da Amazó-
nia, cuja posse era contestada pelos espanhóis. Estes, instalados nas margens do Pacífico, des-
ciam o grande Rio ao encontro dos exploradores portugueses. O empenhamento dos bandei-
rantes na pesquisa do ouro apresentava-se mais forte do que a cobiça dos que vieram na estei-
ra do que se encontrava desbravado no litoral. Foi por isso que a tecnocracia colonialista norte
europeia foi batida no Brasil, em sucessivas tentativas de instalação, sendo expulsos os Holan-
deses pelo assalto feroz de Portugueses que se viam abandonados e traídos pela Europa, arras-
tando consigo na sua fúria, escravos negros e índios, empenhados todos, sem o saberem, na lu-
ta histórica pela independência do Brasil multirracial e livre.

As especiarias perdidas que a Agronomia portuguesa reencontrava

Como se referiu, para além do ouro, escondido algures em Africa, os portugueses pro-
curavam, com as descobertas, o comércio das especiarias do Oriente, como se a fonte estivesse
ali e em mais nenhuma parte. A pimenta. Piper nigrum L., o gengibre. Zingiber officinale
Ross., o cardamomo, Elettaria cardamomum L., a curcuma, Curcum longa L., a canela, Cinna-
momum zeylanicum Brey., o cravinho. Eugenia caryophillata Tunb., a noz moscada, Myristica
fragans Hout. e outras especiarias, constituíam a base do comércio, a que se acrescentavam
variadíssimas manufacturas de enorme valor.
Para alcançarem a canela, com a ideia de a comerciarem mas também de deitarem mão
à planta que a produzia, os portugueses chegaram ao Ceilão e, à procura do cravinho, deman-
daram as Molucas e, ainda, nas ilhas de Banda, encontraram a noz moscada. A importância
conferida ao comércio marítimo, como solução mais fácil c imediata de arrecadar riqueza, le-
vou D. Manuel I e D. João III a adoptarem a solução monopolista, desastrada para qualquer
Agrónomo, de proibirem a cultura de especiarias em África e no Brasil, ordenando a destrui-
ção de ensaios já iniciados. Assim se organizava o ilusório proteccionismo ao monopólio do
comércio do Oriente, procurando impedir-se o florescimento de regiões concorrentes noutros
climas tropicais. No entanto, quando foi perdido o comércio do Oriente durante a ocupação
castelhana, acabou por ser incentivada a produção de especiarias em África e no Brasil. Verifi-
cou-se mesmo que as medidas restritivas não tinham sido totalmente cumpridas, sendo assina-

190
ladas plantações muito antigas no Brasil de magníficas caneleiras. A produção de pimenta teve
acréscimos importantes, especialmente no Brasil. O trabalho agronómico de aclimação de cul-
tivares acudiu assim à perda do monopólio do comércio do Oriente.

O Cajueiro, planta de alta qualidade

Com a designação botânica de Anacardium occidentale L., esta planta foi encontrada
em cultura no Brasil pelos portugueses, servindo o cajú para fabrico de bebida fermentada e
para alimentação. Muito cedo os portugueses levaram o cajueiro à índia, passando pelas ilhas
atlânticas tropicais e pelo continente africano onde se instalou. Embora exigente quanto a cli-
ma é muito importante a economia desta cultura cuja difusão se deve à iniciativa dos portu-
gueses.

O Coqueiro, uma das mais preciosas plantas tropicais

Esta palmeira que recebeu a designação botânica de Cocos nucifera L. é originária da


Polinésia. O fruto que conserva a água e serve de alimento fresco, determinou grande interesse
por parte dos mareantes que logo o teriam transportado a diferentes lugares, onde a planta se
instalou em ilhas e litorais dos trópicos. Os portugueses estabeleceram a cultura muito cedo
em Cabo Verde e no Brasil, bem como no continente africano em cuja costa oriental se encon-
tram extensas plantações.

O Ananazeiro, aroma dos trópicos

Esta planta foi encontrada pelos portugueses no Brasil e pelos espanhóis na América
central. O nome botânico é Ananas commosus L., e as pinhas, saborosas e aromáticas, desper-
taram interesse invulgar. Os portugueses transportaram-no para o Oriente, onde rapidamente
se difundiu nos climas tropicais. Muito cedo o ananazciro foi instalado em África, onde vegeta
ao ar livre em perfeita aclimação. Recentemente a cultura foi ensaiada nos Açores, sob protec-
ção de estufas, o que deu origem a técnica muito aperfeiçoada de cultura, quando se descobriu
o efeito do fumo na maturação.

O Amendoim, cultura de grande capacidade de expansão

Foi também no Brasil que os portugueses encontraram em cultura esta planta a que foi
dada a designação botânica de Arachis hypogea L. Como cultura alimentar foi transportada pa-
ra o Oriente e instalada em África. A difusão da cultura em climas temperados é recente, bem
como o seu aproveitamento industrial como oleaginosa.

De novo, Portugal independente

Foi simples, na aparência, a restauração nacional. Alcançada a adesão do Duque de Bra-

191
gança. os conjurados, escassas dezenas de Fidalgos, transportaram-se ao Terreiro do Paço em
coches carregados de mosquetes. Juntou-se-lhes um punhado de populares arregimentados por
um Padre no dia e hora exacta, mantida em segredo. Rapidamente foi dominada a guarda do
Paço. na manhã de 1 de Dezembro de 1640. O momento ficaria na História com o sabor de S.
Mamede, Valdevez ou Aljubarrota, no alto sentido que a independência nacional encerra.
Seguiu-se, de forma quase rotineira, os passos da insurreição armada. Foi símbolo de
todos os culpados, Miguel de Vasconcelos, objecto de «defenestração» que o precipitou nas la-
ges do Terreiro, depois de baleado no esconderijo onde, louco de pavor, de escopeta em punho,
se acoitara. Espalhada a nova, a multidão cresceu e a turba saciou no cadáver ódios que susten-
tam justas e velhas autonomias da complexa Ibéria. À noite, os cães famintos, rosnando e mor-
dendo, disputaram os ossos do português serventuário dos castelhanos.
Entretanto o Povo, com o Duque de Bragança a aguardar cautelosamente os sucessos
no Paço de Vila Viçosa, foi à Sé buscar o Arcebispo, que era o Patriota mais graduado da Ci-
dade, a percorrer as ruas de Lisboa, em festa. A alegria alastrou a todas as terras da província
e as guarnições castelhanas, conformadas, renderam-se uma a uma. Dois dias depois, em Vila
Viçosa, o Duque de Bragança era aclamado quando assomou, com D. Luiza de Gusmão, à ja-
nela do Paço Ducal, perante o delírio da multidão. Passadas duas semanas os três Estados, no
Terreiro do Paço, prestavam juramento de fidelidade ao Rei português e, na Sé Catedral, proce-
dia-se à coroação que iniciava nova Dinastia. Decorreram ainda seis meses pacíficos, até ao
momento em que, na fronteira, soaram os primeiros tiros da Guerra da Restauração.

A paz filipina terminara

Foram raros os Fidalgos fiéis a Filipe IV, que se passaram a Espanha. Alguns conspira-
ram conluiados com plebeus. Presos, foram julgados e degolados em catafalso erguido no Ros-
sio. Os plebeus foram esquartejados e depois enforcados. O Arcebispo de Braga, também com-
prometido, não foi supliciado, mas preso, tendo morrido no cativeiro.
Logo depois foi levantado o Exército e feitas reparações em fortalezas, guarnecidas com
artilharia. Todos os homens válidos se alistaram, sendo formados regimentos do activo com
soldados pagos. Foi constituído o Conselho de Guerra Permanente e a Junta de Provimento da
Defesa das Fronteiras. Entretanto a Diplomacia movimentava-se junto das Cortes europeias,
procurando vencer dificuldades e alcançando penosíssimos sucessos.
A Guerra da Restauração teve início nas fronteiras do Alentejo, e também no mar, alas-
trando depois ao Minho e às Beiras. Arrastou-se com acções valorosas de tropas portuguesas, e
somente teve o seu desfecho em 1668. no reinado de D. Pedro II, ficando reconhecida, nessa al-
tura, a independência de Portugal. No ultramar, em 1653, Salvador Correia de Sá foi do Brasil a
reconquistar Luanda em poder dos Holandeses e logo a seguir S. Tomé. No Brasil, em 1656. por-
tugueses, índios e negros reconquistam o Recife, pondo termo à ocupação dos Holandeses.

Frutos diversos, tropicais

De entre a diversidade de plantas alimentares que as regiões tropicais, muito

192
especialmente as do continente americano, proporcionaram nos seus solares de origem devem
destacar-se os frutos da Goiabeira, Psidium guajava L., encontrada no Brasil e difundida em
todo o mundo tropical, africano e do Oriente; o Abacateiro, Persea americana Mill., com o
qual os espanhóis depararam na América central, tendo os portugueses efectuado a sua difusão
em Átrica e no Oriente; a Papaia, Carica Papaya L„ encontrada pelos espanhóis nos Andes,
tendo os portugueses proporcionado a sua vastíssima difusão em África e no Oriente; a Ano-
neira, que da América central, oferecendo numerosas variedades, foi difundida no Brasil e
noutras regiões tropicais; o Maracujá, com muitas espécies do género Passiflora que, originá-
rio do Brasil se difundiu em África adaptando-se a climas temperados da Ilha da Madeira.

A grande diversidade dos feijoeiros

Os feijões, de há muito cultivados em Portugal, de origem asiática e africana, introdu-


zidos por diferentes povos migrantes, contribuíram fortemente para o equilíbrio alimentar, em
virtude da sua riqueza proteica vegetal. O Feijão abastecia a dispensa das naus e caravelas e,
por isso, muito cedo viajou pelo mundo. Mas a descoberta do continente americano proporcio-
nou a introdução de novos cultivares que muito enriqueceram o património camponês quanto
a este valiosíssimo alimento. Pode afirmar-se que o feijão representa um consumo que permi-
tiu enfrentar o esforço físico das mais penosas tarefas agrárias da escravatura e da servidão da
gleba. Observadores contemporâneos, ao estudarem regimes alimentares rurais registam que a
mecanização de actividades agrícolas, aliviando o esforço físico, determina a redução dos ní-
veis de consumo de feijão tradicionalmente praticados. No Brasil, a feijoada foi, e continua a
ser, prato típico de muitas regiões rurais, transformando-se em património cultural ou motivo
de saudade de povoadores dos centros urbanos.

Conflitos palacianos, a manipularem o sentimento popular

D. João IV viu morrer, novo, o primogénito D. Teodósio que, para os perceptores, pas-
sou na Corte como figura enigmática e indefinida. No seu lugar ficou o Príncipe Afonso, doen-
tio e turbulento, que havia de assistir, apenas com treze anos, à morte do Rei. A Rainha D. Lui-
za de Gusmão, governou o Reino durante seis anos, com plena autoridade, organizando e apoi-
ando os exércitos que viriam a bater-se vitoriosamente nas linhas de Elvas, no Ameixial, em
Castelo Rodrigo, em Monção, em Montes Claros.
Entretanto, o novo Rei, ao alcançar a maioridade, viu-se abandonado pela Regente, a
Rainha Mãe D. Luiza de Gusmão que procurou repouso num Convento. Destituído de qualida-
des pessoais, logo foi manipulado pelos políticos. No entanto. Castelo Melhor, ambicioso mas
competente, sustentou-o para tomar o poder, revelando-se hábil defensor dos interesses do
Reino, conduzindo a Guerra da Restauração a seu termo militar. Sucedeu que, entretanto, Luiz
XIV enviou de França D. Maria Francisca de Sabóia, que chegou já casada com o Rei, por pro-
curação. A intriga palaciana tinha desfeito o poder de Castelo Melhor e o Infante D. Pedro mo-
vimentava-se na Corte. Em breve o Rei se viu compelido a desistir da Coroa e a dar por nulo
o casamento. D. Maria Francisca recolheu a um claustro e, muito rapidamente, o matrimónio

193
era anulado, casando em seguida com o cunhado D. Pedro, que convocou as Cortes.

As últimas Cortes. O despotismo

A 27 de Janeiro de 1668 reúnem as Cortes em Lisboa. O Clero, a Nobreza e o Povo san-


cionam o juramento do Infante D. Pedro como herdeiro do Trono, depois do Rei D. Afonso VI
ter assinado auto de desistência em seu favor. D. Pedro escolheu o título de Príncipe Regente,
que usou quinze anos, até à morte do Rei, seu irmão. Em 1697 reuniam, pela última vez, as
Cortes. Ficava assim instalado no poder o despotismo do Rei Absoluto que passava a ter, co-
mo nas Monarquias dominantes da Europa, ele só, as Luzes do Espírito. Tinha seu termo o re-
gime velho, democrático, dos Três Estados. Os Estados continuavam, mas ao Clero ficava re-
servado martírio quando defendia a Fé contra a Vontade Real, à Nobreza o suplício quando ao
Poder Absoluto se opunha a Honra e o Povo ficava mais longe de alcançar alívio do Cativeiro.

El-Rei I). Afonso VI prisioneiro

D. Afonso VI foi deportado para a ilha Terceira onde penou seis anos. Perante o risco
de revolta para repor no trono o Rei exilado, o pobre veio a ser encarcerado no Palácio de Sin-
tra. Ao longo de nove anos, seus passos gastaram as lages que pisou e repisou, passeando o
tempo de ver chegar a libertação da Morte.
Nas ruas das cidades, no isolamento dos campos, o Povo partilhava os sofrimentos da
Guerra Peninsular e participava activamente na revolução agrária que progredia, abrindo cami-
nho à industrialização que se instalara em regiões pioneiras do Mundo. Os sinais da mudança
vinham, cada vez mais fortes, da Inglaterra. O Infante D. Pedro, depois da morte do infeliz ir-
mão no cativeiro, tomou-lhe. além da mulher com quem casara, o título de Rei de Portugal,
com o nome de D. Pedro II.

A versão doce da histórica laranja amarga

De entre o conjunto de Citrinos ou Hisperídeos, segundo designação pela qual os Botâ-


nicos reconheceram a lenda do Jardim das Hisperides, onde a beleza dos «pomos de ouro» ti-
nha assento, a laranjeira doce é a mais apreciada.
O Agrónomo J. Duarte Amaral refere no «Manual enciclopédico do agricultor portu-
guês» que a Cidra teria sido o primeiro Citrino, originário do Sul da China ou do Norte da ín-
dia a chegar ao conhecimento do mundo mediterrânico com as conquistas de Alexandre Mag-
no. Depois, a Laranja azeda c o Limão, a partir de vasta área a Sul do Himalaia, da Birmânia
até à China do Sul e a Cochinchina. ficaram ao alcance dos romanos somente na altura dos
contactos com os Bárbaros que haviam de ser os invasores. Foram os Árabes que difundiram
estas maravilhosas plantas, com fruto de paladar exótico e de grande valor decorativo, no sen-
tido do Ocidente, até à Península Ibérica, já no século X.
Os navegadores portugueses depararam no Oriente, particularmente na China, com a
Laranjeira doce, o que lhes proporcionou grande surpresa. Provavelmente porque os cultivares

194
mais doces se encontravam em climas quentes, muito cedo foram levados ao Brasil, onde en-
contraram tácil aclimação, sendo ensaiados na Madeira e nos Açores também, na altura em que
se procedia a plantações nos vales do Sado e do Tejo. O fruto de uma das variedades passou a
ser designado «laranja da China» em Portugal, recebendo, fora do País, a designação de «la-
ranja de Lisboa» ou «laranja de Portugal». No espaço mediterrânico a Laranjeira doce, conser-
va a designação de «Portugal» ou «laranja de Portugal» em Nice, no Piemonte, na Albânia, na
Grécia, no Kurdistão. O cultivar designado «laranja da Baía», que apresenta a particularidade
notável de ter as sementes abortadas, revela a origem da passagem, antes de chegar à Europa,
pelo Brasil.
A difusão de Citrinos prosseguiu, seguindo-se a Tangerino, a Lima, a Torranja que al-
cançou grande mercado recente na América, sob a designação de «grapefruit».

A bananeira, cultura escravocrata, depois de abolida a escravatura

Esta planta pertencente ao género Musa L., da família das Musáceas, de altíssimo inte-
resse alimentar, constitui em muitas regiões tropicais a base da alimentação. A referência mais
antiga à cultura da bananeira encontra-se na índia e depois na China. Passou à África no pri-
meiro milénio, tendo os Portugueses deparado com esta maravilhosa planta na costa oriental
africana, onde teria sido introduzida pelos Árabes. Encontrada pela primeira vez em África, foi
depois vista no seu solar de origem e descrita com grande entusiasmo. Os Portugueses levaram
a cultura à África ocidental, ilhas atlânticas e Brasil, donde irradiou para climas tropicais privi-
legiados da América central. Aqui tomou a forma de plantações comerciais que, mesmo depois
da independência de Colónias espanholas, foram o suporte de Repúblicas dependentes de um
neo-colonialismo que ficou celebrizado. Mas não foram os Portugueses nem os Espanhóis que
inventaram as «Repúblicas das Bananas», mas empresas que se instalaram a partir do enorme
mercado consumidor americano.

195
24 — O AJUSTAMENTO A NOVAS REALIDADES

A revolução agrária difundia os seus resultados. A população crescia e movimentava-se


na tentativa de elaboração de novas estruturas sociais. As Ciências alcançavam as suas con-
quistas, mau grado o obscurantismo que dominava o vigor imparável da criatividade e do pen-
samento. O Brasil desenhava-se como esteio da economia portuguesa, ao mesmo tempo em
que se revelava sorvedouro dos saldos demográficos resultantes da primeira revolução verde.

No Brasil os africanos eram colonos forçados

Independentemente do conceito que se possa formar quanto ao facto de os negros afri-


canos terem sido forçados à emigração, em levas sucessivas, para o Brasil, a realidade antro-
pogeográfica obriga a considerar como colonos, os escravos. Somente não lhes foi conferida
a liberdade de construírem, a seu modo, a região onde os implantavam e, muito pelo contrário,
foram compelidos ao desempenho do papel de meros executores de tarefas de trabalho impos-
tas de forma brutal.
No entanto, o apelo do sertão era tão forte, identificando o Brasil à África, que os es-
cravos não resistiam à tentação da fuga das fazendas, instalando-se em refúgios, os quilombos
ou mocambos, onde permaneciam escondidos até que chegassem os «capitães do mato» a cap-
turá-los, devolvendo-os, mediante prémio, aos Senhores. Talvez por abrandamento da acção
dos «capitães» ou por intensificação das fugas, um quilombo, cuja história ficou célebre, al-
cançou as proporções de «Vila de Palmares» em Alagoas. Dada a sua génese, a «Vila» não dis-
punha de mulheres pelo que os homens se viram compelidos a capturar pela força as mulatas
e mesmo as brancas que encontrarvam nas roças dos arredores. Assim, os negros de Palmares
passaram a constituir comunidade temida que desenvolveu no interior uma agricultura de sub-
sistência particularmente rica. Adoptando o sistema electivo foi escolhida a chefia política que
organizou a administração da justiça e a defesa na guerra.
Segundo Historiadores brasileiros, em obediência a código costumeiro não escrito, a pe-
na de morte era aplicada ao homicídio, ao adultério, ao roubo. Os escravos que chegavam, fu-
gidos, ficavam livres, mas era praticada a captura de escravos cuja condição se mantinha inal-
terada. A pena capital castigava o escravo que, tendo fugido, voltasse ao Senhor por sua von-
tade. O Cristianismo tinha tocado a superfície da comunidade, sendo usado o sinal da Cruz e
certas orações muito deformadas. A Vila de Palmares foi fortificada com muralhas de madeira
e no termo do século XVII contava mais de vinte mil habitantes e uma agricultura próspera.
Por essa altura o Governador General de Pernambuco resolveu destruir a Vila de Pal-
mares. Enviou uma expedição que foi derrotada no primeiro assalto. Organizado um exército
em pé de guerra, foi dominada a resistência dos negros. Muitos dos vencidos precipitaram-se
de um rochedo, preferindo o suicídio, os restantes foram escravizados e a Vila de Palmares ar-
rasada.
A História demonstrou que não era este o caminho que podia transformar em colono o

197
escravo. Para que o sangue negro se incorporasse em igualdade no Povo brasileiro, era essen-
cial ver abolida a escravatura. E, nesta época, estava ainda muito longe essa alvorada.

O ouro do Brasil

A Corte de D. Pedro II recebeu com alegria e ansiedade a notícia da descoberta de ouro


no Brasil. Entretanto, nos desertos, a que depois foi dado o nome de Minas Gerais, Ouro Pre-
to, Ourobueno, acudiam bandeirantes do modo que se encontra descrito pelos Historiadores
do Brasil:
«De todos os ânimos se apoderou a cobiça do ouro. De toda a parte correu gente, ape-
nas lhe soava aos ouvidos a notícia de qualquer nova descoberta. Quantas vezes se humilhou
o próprio governo ante esses sertanejos audazes, que formaram no centro dos desertos como
que um Estado, sem lei nem regulamentos, sem moral e sem princípios! Ficaram impunes os
crimes. Premiaram-se até os motores de sublevações e homicídios, para se conseguir atraí-los
e aproveitá-los, em benefício do governo.»
Ficava assim aberta, por esta via. a perspectiva que caracterizou o opulento reinado de
D. João V.

O Tabaco, a «erva santa» de drogados

Tabaco era o cachimbo, com dois tubos adaptáveis às narinas, por onde os ameríndios
aspiravam o fumo de apreciada planta, a Nicotina tabacum L., que os portugueses e espanhóis
viram, pela primeira vez, ao descobrirem as Américas. Na Europa, a planta recebeu o nome de
Tabaco, mas no Brasil conservou a designação de Fumo.
Referem Historiadores que Luís Góis, após a descoberta do Brasil, trouxe sementes a
Portugal onde ensaiou com êxito a cultura. Damião de Góis teria revelado o tabaco a Jean Ni-
cot, embaixador de França em Lisboa, que o levou estudando as suas propriedades e identifi-
cando a «nicotina». Foram atribuídas à nova planta grandes virtudes medicinais, mas o efeito
do seu uso, aspirando o fumo, causava embriaguês e vício que transformava os consumidores
em drogados, quando o utilizavam para além das suas eventuais qualidades de erva de botica.
Efectivamente o tabaco era consumido sob a fornia de mascar, de pó para aspirar como rapé,
ou para fumar em cachimbo, ou enrolado em charuto ou cigarro. O costume teve grande difu-
são e determinou a implantação no Brasil de estruturas produtivas que foram base de próspero
comércio, que davam origem a importantes rendimentos régios alfandegários.
Como não podia deixar de ser, os efeitos do consumo de tabaco, alargado a todos os es-
trados sociais, foram objecto de críticas severas por parte de defensores de bons costumes,
sempre aconselhados mas raramente cumpridos. Efectivamente as classes populares viciaram-
-se a mascar tabaco, a aspirar rapé, e embriagavam-se com o fumo que. naturalmente, se acres-
centava ao efeito do álcool vínico. Mas o vício não ficou circunscrito às vielas dos portos ma-
rítimos por onde o tabaco entrava, ou de centros urbanos de mercadores e alcançou os meios
rurais com forte penetração nas áreas onde foi possível praticar a cultura, que se adaptou, sur-
gindo por todo o lado a «erva santa» espontânea. Em Trás-os-Montes as camponesas fumavam

198
charuto, como as pretas faziam no Brasil ou em África, muito antes de os «Havanos» se trans-
formarem em privilégio de Banqueiros.
Nenhuma restrição moral logrou suster a marcha gloriosa da droga. Até mesmo os Aba-
des, enquanto liam o Breviário, ou nos intervalos das sestas dormidas nos Passais, sacavam das
caixinhas de rapé, tomando pitadas celebradas com estrondosos espirros que aliviavam o cé-
rebro, assoando-se depois a fartos e coloridos lenços que vieram a ser descritos, na comédia
rústica, por Júlio Diniz. O vício ultrapassou as portas de salões aristocráticos e de recônditos
escritórios de negócios, enfurnando o ar onde qualquer reunião se celebrasse. O tabaco ofere-
cia as diferentes modalidades de consumo a marinheiros, artesãos, camponeses, mercadores,
vagabundos, aristocratas e clérigos. Para o erário régio, logo de início, o comércio do tabaco
foi sólido esteio do imposto, talvez por não ser consumo vital mas sumptuário.
O facto da cultura se revelar viável em Portugal levantou problemas de concorrência
com culturas alimentares, o que levou à proibição da cultura no Continente tendo em conta as
ameaças da fome. Assim, foram montados sistemas persecutórios dos cultivadores da droga
que, talvez e no fundo, não fossem mais do que a defesa escamoteada da cobrança do impos-
to alfandegário. A produção nacional, especialmente a autoconsumida, não era facilmente tri-
butável. De qualquer modo, o argumento da concorrência com a produção alimentar era, do
ponto de vista agronómico, correcto demais para poder ser tomado como efectivamente ver-
dadeiro, ou praticável perante os egoísmos dominantes.

A Videira, planta colonizadora e civilizacional

Plantas do género botânico Vitis L., foram encontradas espontâneas em vastas extensões
dos continentes euro-asiático e americano. Na Europa, a Vitis vinífera L. ou Vitis europeia é
espontânea desde a bacia do Danúbio, pela região mediterrânica até à Ásia central, onde ex-
pandia vigorosamente as suas lianas, longos metros, trepando pelos arvoredos sem revelar, nas
formas selvagens, o verdadeiro valor dos frutos. Foi o artifício da poda, provavelmente mais
ocasional do que premeditado que, reduzindo a dimensão desmedida do porte selvagem da
planta, e concentrando, mercê da forçagem dos cortes, as notáveis potencialidades produtivas
com os microclimas que se demarcavam mais favoráveis. A poda passou a ser operação de cul-
tura essencial que conduzia a planta ao porte compatível com a ecologia que comandava o de-
senvolvimento produtivo, deixando o talão quando a aridez do clima aconselhava que a cepa
ficasse prisioneira de modesto porte, ou conservando a vara quando a humidade do ambiente
permitia que a videira trepasse amarrando as gavinhas a qualquer tutor que assim ficava en-
volvido na vigorosa verdura primavero-estival. Acentuando a tortura a que a Vitis passou a ser
submetida pelas técnicas culturais que impedem o seu pronto regresso à expansão bravia, o
abrolhamento dos gomos passou a ser regulado pela empa que torce e dobra a vara de forma
particularmente violenta. Esta operação cultural é a mais delicada, dizendo o viticultor que
«poda quem quere mas só empa quem souber».
Depois da descoberta do Continente americano, a introdução na Europa da vinha «ame-
ricana» arrastou consigo as pragas em relação às quais a Vitis europeia não era resistente. Por
isso se verificaram calamidades que somente novas técnicas de enxertia e tratamento químico

199
vieram suplantar, impondo dispendiosos encargos. Nesta fase do relato que vamos organizan-
do, interessam-nos reter a simplicidade da cultura da vinha europeia, antes da difusão das re-
feridas pragas que a destruíram.
A videira era propagada de estaca, enraizando com extrema facilidade. Usava-se a prá-
tica da mergulhia de varas que, presas à planta-mãe, eram enterradas de forma a enraizarem
para darem origem a nova cepa independente. A cultura não se apresentava exigente quanto a
fertilidade e humidade no solo. Tudo se reflectia na qualidade do vinho e a videira, em certas
condições, dá resposta qualitativa à aridez, como sucede no Douro, onde a vinha «bebe sol e
come pedras» oferecendo produção escassa por cepa mas, sem dúvida, a melhor do Mundo.
Sendo tão fácil a cultura, antes das pragas, não admira que a expansão da viticultura,
feita de acordo com o natural ajustamento ecológico, porque a vinha não vence a altitude e
acusa muitas outras limitações climáticas, acompanhasse o agricultor nas regiões adequadas
que são muitas e variadas em Portugal. A facilidade da cultura permitia a implantação para au-
toconsumo, e dava pronta resposta à procura comercial. Para a venda, o maior obstáculo era o
dos sistemas de transporte, sendo a via fluvial a mais favorável, como sucedia no Douro, na-
vegável até ao cachão da Valeira e no Tejo, Sado e Guadiana.
A Vitis vinífera entrou em cultura na Antiguidade, para consumo de uvas frescas, ou
conservadas, ou do vinho depois de fermentação do mosto pisado. O vinho constitui bebida al-
coólica, particularmente aromática, que veio substituir, nas áreas onde a cultura da videira se
divulgou, outras bebidas alcoólicas, resultantes da fermentação de cereais, como a cerveja, por
exemplo. Em Portugal o solar de produção primeiramente celebrizado teria sido o alentejano
no tempo da ocupação romana. O vinho era exportado para Roma, em ânforas de barro, em-
barcando nos portos do Guadiana e do Sado. Mas, noutras regiões está demonstrada a antigui-
dade da viticultura. O Abade de Baçal, na sua preciosa análise da Viticultura Duriense refere
o comentário de Estrabão, geógrafo grego, relativo à região transmontana: «os Montanheses
colhiam pouco vinho e ainda menos lhes durava, consumindo-o logo em patuscadas uns com
os outros, bebendo depois um líquido feito de cevada (espécie de cerveja)».
O citado Autor refere depois, entre muitos outros comentários, que o Código Visigóti-
co ordena que «o criminoso que cortava, arrancava ou incendiava vinhas, era obrigado a plan-
tar ao dono duas vinhas de igual extensão e valor» e, ainda, que a ocupação dos Mouros e
eventual ermamento «dada a resistência da videira, capaz de se aguentar séculos, sem cultura
nenhuma, no meio de matas, agarrada às árvores, pode logicamente concluir-se que a viníco-
la duriense continuou na mesma, segundo vinha da tradição romano-visigótica». E, por isso,
«El-rei Ordonho (850-866) fez doação de certas vinhas, pomares, terras cultivadas e por cul-
tivar». E o estudo do Abade de Baçal prossegue a demonstrar a importância da viticultura ao
longo do período medieval: «o foral de Favaios, concelho de Alijó, terra do meu compadre e
muito compadre António Augusto Correia, dado em 1214, impõe aos colonos a pensão anual
de seis quartários, metade pão e metade vinho e mais, de parada, um almude de vinho».
E tão radicada é a tradição da vinha e do vinho que o Abade de Baçal reuniu 121 adá-
gios populares tais como «de vinho abastado, de juízo minguado», ou «vinho velho, amigo
velho, ouro velho». Dedicou também larga referência ao «vinho no cancioneiro popular e etno-
grafia, na literatura e na arte».

200
Muitas regiões vinícolas foram crescendo no Centro e no Norte simultaneamente ou de-
pois de normalizada a perturbação dos bárbaros, sendo o vinho levado aos portos marítimos
em pipas ou transportado por almocreves, em odres, a abastecerem as regiões urbanas e mon-
tanhosas de escassa produção. A cultura da vinha, como se referiu, passou à Madeira e aos
Açores, especialmente na ilha do Pico, não se apresentando viável nas áreas tropicais.
Cada vez com maior evidência, foram-se definindo regiões típicas que alcançavam cres-
cente prestígio, mercê da selecção e melhoramento de castas que habilíssimos vitivinicultores
camponeses promoviam amorosamente. Assim, os cronistas escreviam que, no Douro, «são os
mais excelentes vinhos, e de mais dura que no Reino se podem achar, e mais cheirantes».
Não oferece dúvida que em progressivo ajustamento vocacional a agricultura portugue-
sa tendia a transformar-se em sistema essencialmente vitivinícola. Esta orientação haveria de
moldar a economia mas, também abria caminho ao alcoolismo pela multiplicação de adegas e
de alambiques e pela abundante oferta de pipos nas feiras e nas vendas urbanas e rurais. Ou-
tras bebidas alcoólicas, como a cerveja, concorriam nos centros urbanos a baixo preço e infe-
rior qualidade. Nestas condições os produtos vínicos tomavam conta do mercado e do con-
sumo, e fundamentavam gloriosamente o que bem se pode designar como «civilização do vi-
nho», realidade antiga como a divindade de Baco ou a inspiração das Musas. Por esta altura o
vinho era tolerado pela Inquisição e o seu consumo estreitava as distâncias entre as classes so-
ciais, identificando os fidalgos nas suas aventuras brutais, com os populares nas libações ex-
cessivas. Em toda a parte o vinho firmava a garantia dos contratos verbais, da palavra dada, e
constituía a materialização dos votos de saúde nas bodas e nos baptizados, de felicidade, de
amizade, era o sinal mais vivo da hospitalidade. Era o emoliente dos ódios, o estímulo das eu-
forias, o detector de mentiras desnudando a verdade, o atenuante dos crimes de alcoólicos ou,
simplesmente de ébrios ocasionais. Mas era também o fosso onde caiam, na morte prematura,
os drogados.

A diversificação das actividades económicas

Afigura-se importante tomarmos consciência de que a autonomia humana é ilusória co-


meçando a dependência mesmo em relação ao ambiente, quando este, sem pedir trabalho, ofe-
rece ou recusa o que o homem necessita para sobreviver, na problemática da competição com
diferentes consumidores, quer eles sejam humanos ou outros seres vivos. Em óptica económi-
ca o problema do homem autónomo, recolector, resolve-se considerando que se trata de eco-
nomia sem troca, inserindo-se a relação homem-meio na cadeia trófica ou alimentar estricta-
mente biológica ou natural.
Porém, a questão complica-se quando o homem passa a influir inteligentemente no eco-
sistema. Destacando-se dos outros seres vivos da natureza que não ultrapassam, quanto a con-
sumos, comportamentos instintivos, o homem inicia a sua marcha de produtor. No caso que
analisamos, o processo básico da produção agrícola, o quadro é simples e está de acordo com
os fundamentos do que sempre ocorreu na natureza, sob incidência da energia solar em foto-
síntese, completada pela digestão dos herbívoros que elaboram a proteína animal. O homem
produtor apenas começou por acrescentar à nature ' :ntada do músculo, primeiro

201
dele próprio e depois dos animais, a escolha das oportunidades, preparando solos onde as raí-
zes de plantas seleccionadas mergulham, sob a acção do geotropismo, procurando a osmose de
suspensões orgânicas de solutos minerais preparados pela orgia microbiana em torno do azo-
to, fabricando a seiva para que estruture e alimente a multiplicação das células na maravilhosa
arquitectura dos tecidos vegetais. Em perfeita harmonia voraz o estômago dos herbívoros e dos
omnívoros completa a obra que conduz à formação dos tecidos animais.
Tudo isto decorreu e decorre em recantos do Mundo onde se não vislumbrou nem des-
cobre chaminé de fábrica ou balcão e balança de comércio. O homem autonomizou-se, na apa-
rência, emergindo racionalmente da natureza, passando a conduzir processos biológicos natu-
rais, eliminando seres vivos concorrentes, seleccionando outros em associações vegetais e ani-
mais. graduando o valor das coisas e escolhendo, armazenando para defesa contra os riscos de
carência e acumulando meios para sempre renovados cometimentos. O homem traz consigo
também a fatalidade de destruir recursos naturais insubstituíveis ou não renováveis e de con-
sumar monstruosas poluições do ambiente.
A partir de certa fase do desenvolvimento do processo biológico da produção agrícola,
a actividade de multiplicação de plantas e de animais, da transformação dos produtos e do seu
armazenamento, veio a exigir o recurso a soluções cada vez mais artificiosas, o que conduziu
à concepção de soluções industriais. A preparação do solo, a colheita, o grangeio das plantas,
o maneio dos animais, exigiu ferramentas e equipamentos cujo fabrico deixou de ficar ao al-
cance do agricultor autónomo, obrigando ao apoio de especialistas artesanais de que o ferreiro
serve de exemplo. A tecnologia de transformação dos produtos tornou-se cada vez mais com-
plexa deixando de poder ser praticada na exploração agrícola, passando a constituir tarefa de
actividade artesanal como a dos moleiros, ainda como exemplo. Mas a vida humana deixou de
ser processo estrictamente alimentar, e o vestuário, o abrigo, os utensílios domésticos e as ar-
mas, cujo fabrico de início estivera entregue ao agricultor autónomo, passaram a ser produzi-
das pelo artesão que preparava os panos, o calçado, as vasilhas, os móveis, os adornos e os ins-
trumentos de defesa e de agressão. Foi assim que a actividade artesanal se desenvolveu de for-
ma irreversível e cada vez mais diversificada. Embora as tarefas do agricultor também se di-
versificassem em função das culturas e da pecuária, nada se assemelhou ao trabalho artesanal
onde se verificou a rápida multiplicação das artes e dos ofícios, não tendo os surtos de activi-
dade, por vezes, relação directa com a agricultura.
Não pode admitir-se que a actividade industrial, embora organizada em artesanato,
mantivesse autonomia nas especializações, sendo crescentes as interdependências. No entanto,
uma característica bem marcada define o artesão medieval: a escola identificada com a Ofici-
na onde o Mestre ensina o Aprendiz, escola que muita vez é familiar na transmissão do segre-
do das Artes e dos Ofícios. Também o labor dos Mesteres ficou organizado em Corpo que
definia e classificava os Ofícios, representados, desde D. João I, nos principais Municípios,
através das Casas dos Vinte e Quatro.
A organização dos Mesteres e Ofícios alcançou invulgar prestígio, assumindo depois da
Restauração, notável desenvolvimento, com a multiplicação das oficinas artesanais, solicitadas
pela procura cada vez mais exigente e diversificada.

202
25 — A ALVORADA DA INDUSTRIALIZAÇÃO

O sistema artesanal, atomizado e disperso, baseando-se em Oficina que não obedece a


exigências de produtividade, revelou-se incapaz de dar resposta à procura acrescida. Por isso
a Indústria iria abandonar o santuário dos artesãos onde se havia mantido, fortemente humani-
zada no valor do Mestre, em secretismo de técnicas, amorosamente praticadas, na defesa da
qualidade, da originalidade, da arte e da ética do trabalho pessoal e criativo. Embora o artesão
tivesse sido e continuasse a ser dominado por certa organização industrial e muito mais do co-
mércio, as luzes que se difundiam nos espíritos, por esta época, no fundo, eram essencialmente
produtivistas, sem que se possa afirmar representarem propósito deliberado de senhorializar o
trabalho do artesão, à imagem do que muito antes fora feito em relação ao trabalho camponês,
escravizado e submetido à servidão da gleba. Tratava-se, sem dúvida, em obediência à pers-
pectiva de um lucrativismo possível, de tentar construir oficinas novas, com a configuração de
Fábricas, onde hábeis processos gestionários poriam em movimento energias do músculo hu-
mano ou outras que fosse possível inventar, no sentido de coordenar movimentos que operas-
sem o resultado final de produtos acabados. O artesão que fizera, sozinho, tudo isto, autónomo
e independente, ficaria incapaz de enfrentar a concorrência da coordenação científica e mecâ-
nica, encadeada e exacta, que iria orientar a Indústria, onde, em desmedida contribuição ini-
cial de multidões que nesta altura eram camponesas, os homens e mulheres se transformariam
em Operários, simples executores de gestos que não decidem, ficando o cérebro incapaz de
avaliar a verdadeira grandeza ou expressão do resultado final. No reinado de D. Pedro II a Fá-
brica ia nascer em Portugal, sob o signo da industrialização, oferecendo à Indústria que, ao la-
do da Agricultura, arrancara com o Neolítico, estrutura operacional inteiramente nova. A dúvi-
da que ainda hoje se põe, será a de saber se, nesta emergência, o artesão ficou efectivamente
vencido, ou se teria conservado, como o camponês, o privilégio imensamente humano e pes-
soal das artes que se não desprendem da harmonia natural dos atributos da qualidade.

A lã e o linho. Os tecidos

A lã constituía fibra que ofereceu a mais antiga sugestão do fio capaz de ser tecido. A
roca e o fuso são instrumentos da Antiguidade e acompanham há milénios as gerações hu-
manas. Conseguido o fio nasceu naturalmente o tear onde se prepara o pano. O tear era ins-
trumento caseiro que ocupa tempos livres da vida camponesa, no fabrico de tecidos, de man-
tas, de tapeçarias, passando, em diferentes circunstâncias, a maquinismo de actividade artesa-
nal.
Das fibras vegetais, conforme noutros passos se referiu, o linho era planta expontânea
ou cultivada muito antiga. Refere o Agrónomo Luís Quartin Graça em «O Linho em Portugal»
que estações arqueológicas do Neolítico, revelam a presença de ossoiros ou fuseiolas que de-
monstram a fiação de fibras que bem podiam ser também de linho. Em Castros pré-romanos
foram encontrados fusos, e pesos de teares rudimentares, bem como furadouros de osso. Nos

203
períodos seguintes os achados são muito mais frequentes, sendo seguro que os romanos encon-
traram instalada a manufactura da lã, do pêlo das cabras e do linho, que se regista referida por
cronistas da época.» Tal manufactura mantém-se, sem interrupção, tão essencial era a utilidade
dos seus produtos, concorrendo, no entanto, com a importação que sempre abasteceu o País de
produtos de qualidade superior.
O foral de Guimarães, do Conde D. Henrique, refere o linho grosso, o brocale e, outros
documentos da mesma época, assinalam o linho mais fino, preparado pelos tecelões, os lenzá-
rios, da região que se especializou até à actualidade. Em muitas regiões o trabalho familiar dis-
punha do linhar, sendo levados os molhos de plantas, depois de secos, ao engenho onde a fibra
era macerada e, trazida à eira, era espadelada e depois fiada e tecida no tear doméstico ou arte-
sanal.
A cultura do linho constituiu, sem dúvida, o suporte da «maior indústria doméstica por-
tuguesa». No século XV a sua expansão chegou a determinar queixas como as da Vila de Torre
de Moncorvo, pela sua excessiva «largueza» que prejudicava a expansão das vinhas e dos
cereais. Todavia a cultura e a sua tecnologia não abandonou o seu carácter doméstico e cada
camponês trabalhava o linho no seu lar e apenas as obras eram vendidas nas feiras e nos mer-
cados. Era de linho a Feira de Montalto. O linho sofreu a concorrência algodoeira e a sua in-
dustrialização foi muito tardia e episódica (Fiação mecânica de Torres Novas — 1845). Mas
ficou a tradição muito viva de numerosas fiandeiras que, à luz da lareira, fiavam contando his-
tórias por vezes de maldizer, enquanto habilíssimas tecedeiras batiam o ritmo monótono do
tear familiar. Alguns dos trabalhos assim executados constituem hoje raríssimas peças de Mu-
seu.
Para bem entender o que o linho representou na vida rural reproduzimos um «projecto
pedagógico» do Conselho Escolar de Grade, no qual «estão agrupadas as Escolas de Grade,
Vilela de Grade, Carralcova, Cabana Maior e Penacova» do Concelho de Arcos de Valdevez.
O projecto, que visa a projecção do Ensino Primário na comunidade local, subordina-se ao te-
ma «As voltas que o linho dava» e faz «a recolha, no meio, de tudo quanto se relaciona com
o linho». O texto, acompanhado de elucidativas fotografias narra assim:
«O linho é semeado numa terra bem cavada e limpa de ervas e raízes.
Em Abril semeia-se o linho.
Fazem-se uns canteiros e semeia-se a linhaça.
Durante a época do crescimento o linho é regado nove vezes, para ser de fibra mais ri-
ja e dar um linho de melhor qualidade.
A planta dá uma flor de um azul muito bonito, e dessa flor cria-se a baganha, assim se
chama o fruto do linho.
Dentro da baganha está a semente que se chama linhaça.
A baganha, antigamente, era aproveitada para encher travesseiros e almofadas. A linha-
ça serve, para fazer remédios caseiros.
Quando a planta está amarelada, o linho está maduro e pronto a sair da terra.
Arranca-se o linho e leva-se para a eira onde é ripado num utensílio que se chama ripan-
ço, para se lhe tirar a baganha.
Depois de ripado, o linho é atado em molhos e levado ao rio, onde se mete em poços

204
fundos para ficar bem coberto de água. Fica de molho durante oito dias.
O linho é lavado e posto a enxugar, às cruxas, três ou quatro dias para corar.
Volta-se a meter o linho na água durante mais oito dias. Tira-se e põe-se novamente a
enxugar.
Depois de enxuto traz-se e põe-se na eira e é malhado com um malho até largar a cas-
ca e ficar bem desfeito.
E posto em molhinhos para espadar.
Espada-se o linho com o auxílio de um cortiço e de uma espadela.
E espadado três vezes: uma a cascar, outra a baixar e outra a colher.
Depois de espadado fica em estrigas para ser asseado num Sedeiro, onde se separa o li-
nho da Estopa.
Desse linho fazem-se as meninas, que daqui vão para a roca, onde se fia o Linho.
A Estopa é passada novamente no Sedeiro e separam-se desta os tornemos.
A Estopa e os Tomentos também são fiados: os fios de Estopa e Tomentos são utilizados
para urdir Teias para mantas de trapos de lã.
Destes fios tecidos faz-se a Cerguilha. Deste pano faziam-se antigamente, as calças e os
casacos para os homens, bem como saias, camisas e aventais para as mulheres.
O linho em fio fica enrolado no fuso. Estando o fuso carregado, descaiTega-se para o sa-
rilho onde se fazem as meadas.
Essas meadas são cozidas num pote de ferro com água e cinzas.
Após bem fervidas, tiram-se as meadas do pote e lavam-se bem lavadas; depois de bem
branquinhas põem-se a enxugar.
As meadas de linho metem-se numa dobadoura e das meadas fazem-se novelos.
E desses novelos que a Tecedeira tece, no tear a teia.
Dessas belas e ricas teias, depois de devidamente coradas durante o mês de Março, se
fazem peças de vestuário, adorno e utilidades tão apreciadas por todos nós».

O Esparto e o Cânhamo, fibras para Cordoaria

A pesca, bem como a construção naval lutaram sempre com a falta de fibras necessárias
para fabrico de redes e de cordoaria. Por isso se verificavam importações que a produção na-
cional dificilmente atenuava. O Esparto, Stipa tenacíssima L. era planta espontânea no Algarve
e cedo determinou a preparação da fibra, nascendo assim indústria artesanal que não adquiriu
grande importância.
Originário da Ásia central, o Cânhamo, Cannabis sativa L., entrou em cultura campo-
nesa de escassa difusão, resolvendo problemas locais de consumo de estopas e fios. No sécu-
lo XVII, sob estímulo de feitorias estabelecidas em Santarém, Moncorvo e Coimbra, que ti-
nham por objectivo fomentar a produção dirigida para as Cordoarias, a cultura alargou-se
ocupando terras férteis, alivionares, e vencendo dificuldades tecnológicas de maceração da
planta para obtenção da estopa. A cultura foi ensaiada no Brasil e não se adaptou, acabando
depois por ser quase abandonada, quando outras plantas de fibra tropicais assumiram impor-
tância.

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A Seda, a mais delicada das fibras

A cultura do bicho da seda, Bombix mori, é originária da China. A larva que elabora o
fio enrolado nos casulos, alimenta-se das folhas de Amoreira. Gen. Morus L. de que a espécie
mais importante para a cultura é a Amoreira Branca, Morus alba L„ também originária da Chi-
na, até à índia e Ásia Central. A produção de tecidos de seda na China remonta ao segundo mi-
lénio antes de Cristo e o seu comércio manteve-se por via terrestre, em caravanas que abastece-
ram as Civilizações da Antiguidade, do Médio Oriente e Mediterrânicas. Em relação a Portu-
gal apresentamos traduzida a referência de Menezes Pimentel no artigo «La Sericiculture» de
«Portugal ou point de vue Agricole», 1900: «no começo do século VIII os árabes, sírios ou ie-
menitas, segundo toda a aparência, muito versados na cultura das artes mais avançadas da civi-
lização pelo longo contacto com os gregos e persas, que mantinham, além disso, relações de
longa data com a China, invadiram a Espanha submetendo-a ao seu domínio. Foi assim que a
Península Ibérica foi a primeira das nações europeias onde foi cultivado o bicho da seda e fia-
do o precioso têxtil». Por isso, Frederico Barba-Roxa pôde ser presenteado, em 1154, com teci-
dos de seda provenientes do saque praticado pelos Cruzados na conquista de Lisboa. As refe-
rências históricas registadas pelo Autor citado revelam que o Arcebispo de Braga, em 1233,
acautelava no seu Couto de Chaves, a cultura da amoreira, D. Afonso III considerava produ-
tos da seda nas Leis de Almotaceria e D. Afonso V deu protecção à indústria em Trás-os-Mon-
tes, especialmente em Moncorvo, e em Lamego. Com a instalação dos portugueses em Macau,
novos cultivares de amoreira foram introduzidos no País. Mas as navegações proporcionaram
a concorrência de sedas do Oriente, da China e do Japão, que passaram a ser importadas com
maior facilidade. Foi somente com o proteccionismo do Conde da Ericeira que a indústria na-
cional de seda se activou. Foram depois atraídos pelo reinado do ouro de D. João V industriais
estrangeiros como Roberto Godim, Luís Terrier e Estevão Gingu que desenvolveram a produ-
ção de seda. Mas, em 1752, o Marquês de Pombal estabeleceu isenções de impostos e outros
privilégios para os plantadores de amoreiras. Em 1770 foi criada a Real Fábrica de Seda em
Lisboa, que depois de breves anos de prosperidade, entrou em penosas dificuldades acabando
por cair em ruína com a Revolução Liberal de 1820. Mas nessa altura a produção do «pasto»
para os bichos estava florescente com plantações de amoreiras estabelecidas ao longo de ruas.
que ainda conservam este nome, e de avenidas em Lisboa, e estradas de acesso ao Campo de
Sant'Ana, a Santa Marta, a Arroios, e a outros arredores. Em Trás-os-Montes a indústria ten-
tou sobreviver, até ao desencadeamento de graves epizootias cerca do ano de 1860.

Severim de Faria, precursor do industrialismo

Na grande variedade dos seus discursos, Severim de Faria. Mestre em Artes e Doutor
em Filosofia pela Universidade dos Jesuítas, em Évora, apresenta-se durante a ocupação cas-
telhana e na Restauração, como defensor de reformas estruturais na agricultura e na economia,
praticamente incompatíveis com o egoísmo reinante.
Em seu parecer escasseavam terras de cultura por estarem «completamente ocupadas»
as do Entre Douro e Minho e as do Douro ao Tejo. Por outro lado apontava, em visão pouco

206
usual na época, a existência de «vastos latifúndios» no Alentejo que «por sua própria natureza
geravam a impossibilidade de cultura e povoações». Por isso, Severim de Faria aconselhava a
instalação de colónias — «por este meio das Colónias teve a povoação de reino princípio» —
como as que haviam sido estabelecidas desde o Conde D. Henrique até D. Diniz. E acentua-
va: «nenhuma terra se pode chamar infrutífera porque a que não é boa para trigo é boa para ce-
vada, centeio ou vinha, e, quando não para pastos», condenando declaradamente os incultos,
que cobriam áreas extensíssimas do território.
Com a Restauração, logo em 1641, as Cortes pediam que se «dignificasse a profissão
de agricultor» cumprindo as Leis que ordenavam a demarcação de Sesmarias, desde o século
XIV. Voltava-se à declaração de propósitos de intensificar a cultura do trigo e renovavam-se
diferentes formas de coacção para os trabalhadores que se afastavam da agricultura. Os viticul-
tores queixavam-se da concorrência dos vinhos espanhóis e franceses, bem como da cerveja
cujo consumo se alargava a baixo preço.
Mas, Severim de Faria apresentava-se como Economista defensor do desenvolvimento
harmonizado e apontava a importância que assumiam as indústrias, como as de tecelagem,
olaria e ferraria, para colmatar a «falta de trabalho». Naturalmente, dava declarada preferên-
cia a indústrias de produtos agrícolas para desencadear o arranque: «a lã, a qual é fruto sim-
ples e grosseiro da natureza; mas a arte — quão excelentes panos, quão vários e de quanta di-
versidade fabrica desta maneira, sustentando-se dela não só o que a cria, mas os que a cardam,
fiam, urdem, tecem, tingem, coram, cozem e a formam em mil matérias, e a levam de um lu-
gar a outro? O mesmo se diz da seda, que é fruto simples; e, contudo, quanta variedade forma
dela a arte? O mesmo acontece com toda a outra matéria». E, assim, «o remédio para a causa
porque falta gente neste reino será exercitarem-se nele as artes mecânicas de que carece».
Severim de Faria nasceu quando Portugal foi ocupado pelos castelhanos e viveu até
1655, tendo-se identificado, no declínio da vida, com o movimento da Restauração que visou
transformar a economia do país.

O mercantilismo industrial do Conde da Ericeira

Integrado ou envolvido em correntes de pensamento que punham termo à interpretação


medieval dos factos económicos, o Conde da Ericeira apresenta-se como político executor de
decisões pela primeira vez desprendidas de preconceitos de religião ou de moral. Isto signifi-
ca que, para além da teorização introduzida em Portugal por economistas como Severim de
Faria, Ribeiro de Macedo ou Alexandre de Gusmão, no que respeita à moeda e metais pre-
ciosos, balanceamento das trocas comerciais, comando do Poder absoluto quanto a decisão
económica, o Conde da Ericeira identifica-se com Colbert, na qualidade de estadista interes-
sado na industrialização da economia.
Efectivamente, coincide com a entrega a D. Luiz de Menezes, 3.° Conde de Ericeira, da
direcção da marinha, do comércio e das manufacturas, a instalação de fábricas de tecidos de
algodão na Covilhã e em Manteigas, além de outros teares em Estremoz e Tomar. Em Braga
era instalada a indústria de Chapéus. No que se refere a panos de lã existiam fábricas de tece-
lagem em Torre de Moncorvo, Porto, Guimarães, Lamego, Pinhel, Guarda, Fundão, Castelo

207
Branco, Coimbra, Minde. Portalegre. Redondo e Castelo de Vide. Havia fábricas de linho em
Guimarães, Coimbra e Santarém. As ferrarias localizavam-se em Tomar. Pedrogão e Figueiró.
No ano de 1676 os Corregedores das Comarcas procuravam «excitar a plantação» de Amorei-
ras para que se instalasse a indústria da seda, cumprindo a ordem de administrarem subsídio
para fomentar a plantação de «todas as amoreiras que for possível». Entretanto era promovida
a vinda de técnicos estrangeiros para servirem na Fábrica de Sedas de Lisboa.

A morte do Conde da Ericeira — colapso da industrialização nascente

Portugal vivia intensamente o consumismo de artigos de luxo e as programáticas ou leis


sumptuárias de 1669 e 1677 que limitavam ou impediam aos privilegiados o uso de artigos es-
trangeiros, procurando defender, no mercado, os produtos da indústria nacional nascente, eram
consideradas com particular antipatia pelas classes nobres, economicamente dominantes. Para
mais tudo corria mal nas empresas industriais que o Conde da Ericeira com tão grande entu-
siasmo fomentara, porque os seus quadros de profissionais se destacavam da apatia ou submis-
são intelectual das massas trabalhadoras, particularmente nos grupos activos de cristãos novos,
empreendedores e pensantes. Por isso os Tribunais do Santo Ofício recebiam denúncias a que
davam pronto andamento, resultantes de invejas de vizinhanças conflituosas, em relação a in-
dustriais e comerciantes que se destacassem da vulgaridade dos ritmos da vida submissa. Por
outro lado os Nobres e os Clérigos não se conformavam com os efeitos do proteccionismo in-
dustrial que os condenava ao desconsolo do uso de bens nacionais de segunda categoria, dife-
rentes dos artigos de luxo exibidos no estrangeiro.
Por tudo isto D. Pedro II atenuou a severidade das referidas programáticas, reconhe-
cendo «que a produção portuguesa de chapéus, tecido preto, vidros e outros artigos fabricados
era insuficiente para satisfazer a procura». E, assim, a análise modelar desta época, devida ao
Historiador Carl A. Hanson em «Economia e Sociedade no Portugal Barroco» permite-lhe afir-
mar:
«Quaisquer que fossem as razões, o conde caiu num tal estado de depressão mental, que
em 26 de Maio de 1690, pôs termo à vida. Relatos existentes do seu suicídio divergem em
vários pormenores, mas um deles refere que D. Louis de Menezes, sentindo-se doente, teria fi-
cado em casa no dia de procissão do Corpo de Cristo. Enquanto sua mulher, que tinha ticado
em casa com ele, estava a orar à Virgem, o conde abriu a janela e atirou-se para o jardim em
baixo, morrendo pouco depois, devido às graves lesões craneanas sofridas. O acto desespera-
do do conde da Ericeira privou a indústria portuguesa do seu mais devoto promotor. Sem a sua
vigorosa presença, a versão portuguesa do colbertismo caiu em declínio. Na altura em que o
Tratado de Methuen foi assinado em 1703, a indústria portuguesa já estava moribunda.»

A influência britânica

As dificuldades da Guerra da Restauração conduziram a diplomacia portuguesa a cons-


tante alternativa em face de hipóteses de auxílio francês ou britânico. A aliança inglesa conser-
vava, sem dúvida, antigas raízes, mas Luiz XIV colocou como Rainha de Portugal D. Maria

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Francisca de Sabóia, o que acentuou a influência francesa. Chegou a admitir-se que a Prince-
sa D. Catarina, filha de D. João IV e portanto irmã de D. Pedro II, casaria com Luiz XIV, mas
o certo é que veio a casar com Carlos II da Inglaterra. Como dote, a Princesa levou de Portu-
gal, além de dois milhões de cruzados, a fortaleza de Tanger e a ilha de Bombaim, que ficaram
na mão dos ingleses, a acrescentarem-se a outras posições ultramarinas já ocupadas pelos
britânicos, na rapina colonialista praticada nos mares quando Portugal estava submetido ao
domínio castelhano.
A Inglaterra consentia aos portugueses a liberdade de governar o Brasil e sabia que a
descoberta do ouro havia de ser alcançada, e que transformaria o velho país, subordinado e po-
bre, em cliente com poder de compra apreciável para adquirir produtos da indústria nascente.
Quanto ao Oriente o Problema era diverso, e em Africa os ingleses também sabiam do ouro
sul-africano que de há muito havia sido descoberto pelo degredado português António Fer-
nandes na sua exploração pioneira do reino de Monomotapa. Sabiam os políticos ingleses que
a dependência das Ilhas em relação a produtos agrícolas europeus ou mediterrânicos, como os
vinhos, constituiria sólida contrapartida para a prática de mercantilismos de futuro assegura-
do. Nestas circunstâncias e de acordo com a eficácia cínica que sempre caracterizou as re-
lações anglo-lusas, depois de ter sido alcançado o privilégio da instalação de mercadorias in-
glesas nas praças do Reino a negociarem tecidos e bacalhau da Terra Nova, morto o Conde da
Ericeira, chegou a Lisboa o embaixador inglês que ficou vulgarmente designado D. João Me-
thuen, tão grande era a sua influência. O Tratado que o referido embaixador acabou por cele-
brar, em 1703, consta de três artigos, apenas, e representa, para uns traição, por ser identifica-
do como cemitério da industrialização portuguesa e, para outros, salvatério da economia, pelo
impulso conferido à agricultura decadente. O Tratado consta do seguinte:
«I — Sua Majestade El-Rei de Portugal promete tanto em seu próprio nome, como no
de seus sucessores, de admitir para daqui em diante no Reino de Portugal, os panos de lãs, e
mais fábricas de lanifícios de Inglaterra, como era costume até ao tempo que foram proibidos
pelas Leis, não obstante qualquer condição em contrário.
II — É estipulado que sua Sagrada e Real Majestade Britânica, em seu próprio nome e
no de seus sucessores será obrigada para sempre daqui em diante, de admitir na Gran Breta-
nha os Vinhos do produto de Portugal, de sorte que em tempo algum (haja paz ou Guerra en-
tre os Reinos de Inglaterra e de França) não se poderá exigir de Direitos de Alfândega nestes
Vinhos, ou debaixo de qualquer outro título, directa ou indirectamente, ou sejam transportados
para Inglaterra em pipas, tonéis ou qualquer outra vazilha que seja mais o que se costuma pedir
para igual quantidade, ou de medida de vinho de França, diminuindo ou abatendo uma terça
parte do Direito do costume. Porém, se em qualquer tempo esta dedução, ou abatimento de di-
reitos, que será feito como acima é declarado, for por algum modo infringido e prejudicado.
Sua Magestade Portuguesa poderá, justa e legitimamente, proibir os Panos de lã e todas as de-
mais fábricas de lanifícios de Inglaterra.
III — Os Excelentíssimos Senhores Plenipotenciários prometem, e tomam sobre si, que
seus Amos acima mencionados ratificarão este Tratado, e que dentro do termo de dois meses
se passarão as Ratificações».
Em resumo, os portugueses desistiam de proibir a importação de panos de Inglaterra e

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alcançavam medidas protectoras para a exportação de vinhos, suplantando a concorrência dos
franceses.
D. Luís da Cunha foi talvez o primeiro crítico do Tratado: «o que eles querem é adiantar
as suas manufacturas e arruinar as que começam em Portugal». Ou então: «a exportação de
vinhos não é tão utilíssima como se imagina, porque os particulares converteram em vinhas as
terras de pão, tirando assim delas maior lucro, mas em desconto a generalidade padece maior
falta de trigo, de centeio e de cevada, de sorte que se o vinho sai de Portugal é necessário que
de fora lhe venha maior quantidade de Pão».
Quando numerosos Camponeses se encontravam alistados no exército português do
Marquês das Minas que, depois de conquistar Madrid, se movimentava em Espanha, nas inú-
teis campanhas da Guerra da Sucessão, morreu D. Pedro II, em 1706, e foi aclamado D. João
V. As famílias rurais ainda choravam os mortos das grandes e justas batalhas da Restauração
e não entendiam agora as guerras que prosseguem sem finalidade alguma. À sua dor acres-
centava-se a saudade imensa pelos que partiram para o Brasil. Sobre esta pequena comunidade
nacional, exausta pela mais ampla expansão mundial, nunca por outra experimentada, iria ser,
finalmente, derramado o ouro, em mal repartido caudal, que tudo corrompe e logo se consome.

O Café, bebida estimulante, a mais difundida

O Cafezeiro apresenta-se sob a forma de diversas espécies do género Coffea L. da fa-


mília das Rubeáceas, subfamília das Cafeoideas de que se destaca a Coffea arábica L. e a C.
canephora Pierre, conhecida pela designação de Café-robusta, expontâneo em Angola, e sem-
pre cultivado pelos indígenas. O Café-arábica é originário da Abissínia e África Oriental, onde
o fruto era consumido pelos indígenas. Os Árabes instalaram a cultura na Arábia, o que serviu
de base à designação botânica. Como a cultura se não adaptava ao espaço mediterrânico, o seu
solar não se alargou. O conhecimento que os portugueses tiveram da cultura e do produto co-
mercial não teria desencadeado imediatos ensaios de expansão, porque a bebida chegou a ser
fortemente condenada, e mesmo proibida nalguns países, por determinar a dependência de
«drogados», tal como sucedia com o tabaco.
Somente em 1708 há notícia de ensaios positivos da cultura em Cabo Verde, na Ilha de
S. Nicolau. Em S. Tomé, somente fica aberto o ciclo do café no início do século XIX, embo-
ra antes a cultura tivesse sido ensaiada, ao longo do período difícil que decorreu depois de
encerrado o ciclo da cana sacarina. Também é tardia a introdução do café no Brasil e muito
discutível a versão generalizada de que viajou, a partir da Abissínia, em 1727, no bolso do Sar-
gento-mor Francisco de Melo Palheta, para ser semeado. Antes dessa época teriam sido muito
mais variadas as oportunidades de ensaio da cultura no Brasil, cujas condições ecológicas pro-
porcionam a posição de o maior produtor mundial que este país viria a assumir. Talvez o pro-
blema do atraso da inclusão desta cultura no «Plano de transformação agrária do Mundo»
cumprido pelos portugueses, tenha resultado das interdições acima referidas. O café foi depois
levado a Timor e mais tarde a Angola, onde assumiu recentemente grande importância. Em
Angola a introdução do café-arábica teria sido feita por emigrantes que abandonaram o Brasil
durante as lutas de Pernambuco, instalando-se em Moçâmedes. Atravessando o deserto e su-

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bindo ao planalto, juntamente com Madeirenses, teriam iniciado plantações que depois se de-
senvolveram em época recente, como se referiu.
O consumo de café só veio a generalizar-se rapidamente no século XVIII e originou a
instalação da indústria de Torrefacção, que mistura o grão com diversos produtos, também tor-
rados, de que os iniciais foram a cevada e a raiz de chicória, Cichorium, L.. espontânea no
Centro e Sul de Portugal. A bebida passou a ser servida nas Cidades e centros urbanos, em es-
tabelecimentos característicos, dotados de mesas, cadeiras e balcões, designados Cafés. Tais
estabelecimentos proporcionaram intenso convívio social, lugar de negócios, centros políticos,
artísticos e literários, adquirindo, alguns, grande prestígio, mesmo internacional. Nos meios
rurais o café, muita vez só de cevada, passou a ser servido, ao lado do vinho, ou do «bagaço»,
em tabernas e tendas das feiras e romarias, e alcançou prestigada instalação nas refeições ou
na hospitaleira recepção a visitas.

Um vínculo e morgado em 1700

Em Portugal, desde 1384, os bens que haviam constituído doação régia, revertiam para
a Coroa sempre que não houvesse descendência legítima do Donatário. O sistema não tinha
aceitação geral e desde 1397 passaram a ser vinculados a morgados muitos bens doados. Foi
esta a «Lei Mental» que D. Duarte promulgou em 1434, depois de ter andado na ideia de D.
João I, estabelecendo, em relação aos bens os princípios da indivisibilidade, da primogenitura
e da masculinidade na sucessão.
A vinculação de bens era feita não somente a Morgados, como também a instituições
religiosas sob a forma de Capelas. A inaliabilidade que era imposta, representava muito seve-
ra restrição ao direito de propriedade, pelo que D. Afonso V veio a consentir o emprasamento
das terras dos morgados, o que proporcionou receitas obtidas através dos foros de bens vincu-
lados, em relação aos quais o domínio útil era alienado, mantendo-se o domínio directo. Este
consentimento proporcionou dinâmica nova na repartição do domínio útil da terra pelos cam-
poneses, que se transformava, com o decorrer do tempo, em propriedade plena.
A «lei mental», que muito tempo levou para ver a luz do dia, serviu para garantir o su-
porte económico da aristocracia militar, dando-lhe base territorial para cobrança firme de ren-
dimentos e outras formas de sustentação dos atributos da nobreza. Afigura-se que surge trans-
formada, quanto à finalidade, depois da Restauração. É certo que a propriedade rústica con-
tinuava a servir de alicerce de valores sociais e morais. Tanto servia os camponeses formando
o apoio das famílias agrárias na configuração dos esteios da sociedade, como também se
prestava a ser suporte da riqueza dos nobres que acrescentavam, quanto podiam, as reservas
de ouro acumuladas nas deambulações pelo mundo defendendo as causas de Deus e do Rei.
Por isso, a velha instituição dos morgados, mesmo nas vésperas de mudanças efectivas no
mundo rural, ainda oferecia a segurança, capaz de garantir o que se pretendia como perpetui-
dade de valores familiares e individuais tidos na maior das contas. No ano de 1700, quando
provedores, no Brasil, vão às minas receber os quintos, num Solar minhoto, em torno de pesa-
da mesa de «pau-santo» de longínquas terras, reuniram-se um nobre, o tabelião e testemunhas
e escreveram:

211
«Em nome de Deus amen saibam este público instrumento de escritura de vínculo, e
morgado, ou como em Direito melhor nome e lugar haja virem que no ano de nascimento de
nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos anos, aos vinte e dois dias do mês de Maio do
dito ano nas casas de morada de... aonde eu Tabelião vim aí perante mim Tabelião e testemu-
nhas tudo adiante nomeado apareceu presente o outorgante... Reverendo Abade de... pessoa
por mim Tabelião e testemunhas reconhecido por o próprio e por ele foi dito e disse que por
causa da divisão dos bens resultaria muitos danos e inconvenientes e por ela se perdiam as fa-
mílias e memória das pessoas nobres e ilustres e pelo contrário se conservavam e perpetuavam
ficando indivisos e unidos por instituição de morgado ficando os sucessores deles com maior
obrigação de servir a Deus e a El-Rei e de sustentar de alimentos seus irmãos e por outras mais
causas disse que ele era Senhor e possuidor dos bens seguintes todos sitos na freguesia de... o
campo dos poços que tem de semeadura sete alqueires de trigo pouco mais ou menos... (os
bens ficavam minuciosamente descritos)... ele dito Reverendo Abade une e vincula por insti-
tuição de Morgado que desde hoje e para todo o sempre do mundo andem unidos e vinculados
em uma só pessoa. E não se venderão nem alhearão em tempo algum e melhorarão e não pio-
rarão. E andará sempre este morgado no filho mais velho e não havendo filho andará em filha.
E não havendo filho nem filha da descendência de seu irmão... e de sua mulher... sucederá a
descendência e linha de seu primo... e em falta desta sucessão sucederá a linha de seu primo...
e em falta da sucessão da descendência das ditas linhas sucederá no dito vínculo e morgado a
linha de descendência de seu sobrinho... e em falta das linhas e descendência acima sucederá
o parente mais chegado do último administrador sendo sempre do sangue dele instituidor. E
disse que para primeiro administrador do dito vínculo e morgado nomeia a seu sobrinho...
com condição que enquanto for vivo seu irmão... e sua mulher... prima dele instituidor disfru-
tarão os ditos bens por ele instituídos e vinculados. Disse que as pessoas que forem adminis-
tradoras deste morgado usarão o apelido... por andar sempre este apelido na geração dele insti-
tuidor. E não terá raça de judeu nem mouro nem mulato nem casado com nenhuma dessas ge-
rações. E o que isto tiver não herdará o dito morgado e passará à pessoa a quem por direito
vier e como se o tal instituído o não houvera do mundo porque a condição dele instituidor é
que quem suceder neste morgado seja sempre limpo. Disse que o que suceder neste morgado
será filho legítimo nascido de legítimo matrimónio e nele não sucederá filho natural bastardo
espúrio e incestuoso, nem outro algum que não seja filho nascido de legítimo matrimónio nem
sucederá clérigo, frade ou freira, mentecapto nem mudo, nem furioso com fúria perpétua e de
nascimento. Disse que o administrador que suceder neste morgado será católico e bom cristão
e não cometerá delito contra sua Majestade nem Rainha nem Herdeiro. E o que tal delito come-
ter o ha ele instituidor por excluído do dito morgado um dia de antes que o cometa e sucederá
nele logo aquele a quem direito deva de vir como se tal culpado no tal delito o não houvera no
mundo. Disse que os administradores que sucederem no vínculo e morgado serão obrigados a
mandar dizer todos os anos para sempre uma missa no dia das onze mil virgens por tenção dele
instituidor a qual o administrador mandará dizer onde lhe parecer pelo Clérigo que lhe pare-
cer mostrando certidão ao Doutor Visitador que vier a esta freguesia. Disse que os administra-
dores que sucederem neste vínculo serão obrigados pelos seus falecimentos a anexar ao mes-
mo vínculo o terço do terço dos seus bens o qual se unirá ao mesmo vínculo depois do seu fa-

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lecimento a três meses e o que suceder no mesmo vínculo o fará unir com condição que o que
assim não satisfazendo e fazendo unir pelo dito modo não sucederá neste morgado onde suce-
derá aquele a quem por direito tocar. Disse que o administrador neste vínculo e morgado será
obrigado dentro de três meses a fazer o inventário de todos os bens a ele vinculados e a tomar
conta se andam ou não alheados o que poderá fazer diante das justiças desta vila e não o fazen-
do ele instituidor o ha por excluído do mesmo vínculo e que nele suceda a quem por direito
tocar sempre com a mesma obrigação. Disse que havendo nos bens acima por ele instituídos
assinalados algum foro por onde não possam ser vinculados o administrador precedendo justa
vedoria os poderá trocar ou vender e vendendo esse dinheiro deles procedido prá judicialmente
em depósito e dele se não tirará até que com ele se comprem bens livres que se unam a este
mesmo vínculo».
Seguem-se a nomeação das testemunhas e reconhecimentos.
Uma das ideias que se poderá extrair da leitura deste documento será a de que, nesta fa-
se, o conceito de propriedade individual que ficaria implícito na instituição do Morgadio, se
encontrava extraordinariamente limitado. Tudo o que se encontra estipulado, foi construído em
favor da perpetuação do prestígio, conceito da vida e vontade do instituidor, embora este se
considere integrado na família e nome, outra instituição a que rende homenagem e pretende
defender. De qualquer modo, a figura do Morgado instituído não é a de um Proprietário, à ma-
neira do Direito Romano ou Visigótico, recebendo, aliás, a designação de «administrador»,
praticamente destituído de liberdade de gestão patrimonial, para além de objecto de interferên-
cias que à luz do nosso tempo se apresentam estravagantes ou atentatórias das liberdades indi-
viduais. Mesmo assim, a instituição, em relação à qual este documento representa a expressão
perante o mundo e vida há cerca de três séculos, revestia-se de tal força e prestígio que resis-
tiu ainda a mais dois séculos de História. Os vínculos mais fortes enfrentaram triunfantes o re-
formismo pombalino. O despotismo iluminado apenas logrou suprimir pequenos morgados ru-
rais que talvez tivessem feito falta nas aldeias. O mesmo aconteceu no primeiro embate da Re-
volução Liberal. A instituição acabou por cair, vencida, em 1863 na Regeneração. Ficou, no
entanto, até à República, como privilégio da Casa de Bragança.

213
26 — O DESPOTISMO «ESCLARECIDO»

No início do reinado de D. João V, no Continente, os portugueses não seriam mais de


2.000.000. J. H. Saraiva acentua que «a época de D. João V caracterizava-se pela inexistência
quase completa de quadros empresariais pela falta de gente preparada para se servir da riqueza
como instrumento criador de nova riqueza». E, assim, «o Tejo foi apenas a escala de passagem
de valores que afluíram a regiões de economia mais desenvolvida, produtoras de bens que os
portugueses consomem mas não sabiam produzir. A Inglaterra foi a mais beneficiada dessas
regiões».
Efectivamente o rasto da passagem do ouro não foi o que poderia ter acontecido, tecni-
camente eficaz como um conjunto de iniciativas a que os Economistas dão o nome de investi-
mento produtivo. Ficou, no entanto, o efeito sumptuário de obras que assumiram a dimensão
e o encanto que define uma época. Teve enorme importância a escola que se formou na apren-
dizagem de portugueses alcançada pela presença de técnicos e de artistas estrangeiros, que
nunca teriam vindo a Portugal se os não atraísse o fascínio do ouro.

A grandeza dos monumentos. A frustração da indústria

A entrada em Portugal de toneladas de ouro enviado do Brasil, a que depois se acrescen-


taram os diamantes, permitiu cunhar novas moedas, dobras e peças que levavam a correr a Eu-
ropa, a efígie de D. João V, atraindo estrangeiros na tentativa de instalarem as suas indústrias.
Em 1716 nasce a Fábrica de Papel da Lousã. Júlio M. de Lemos, em «Subsídios para a História
da Lousã», conta que a Fábrica actual, situada no lugar da primitiva, no Penedo junto à ribeira
de S. João, «não oferece semelhança alguma à que, há um século e anos, foi, em Lisboa, com-
prada em hasta pública. Nessa época não passava ela de um conjunto de rudimentares apare-
lhos de fazer papel, quasi manuais, podemos dizer de importância mínima, e, tanto assim que
chegou ao estado de decadência em que foi encontrada pelos seus compradores». Em 1718 fi-
cam frustradas tentativas da indústria do Vidro e, em 1732, tenta-se a construção da Fundição
do Campo de Santa Clara em Lisboa e, ainda, em 1734, entra em funcionamento, com o fio de
casulos de bichos alimentados por amoreiras mandadas plantar pelo Conde da Ericeira, a Fá-
brica de Sedas das Amoreiras, também em Lisboa, que passará a fábrica nacional depois de fa-
lência.
Técnicos estrangeiros vieram dirigir obras monumentais como o Convento de Mafra.
Nicolau Nasoni estabeleceu-se no Porto e deixou o seu nome ligado à Torre dos Clérigos, Mi-
sericórdia, Paço Episcopal, Palácio do Freixo e aos mais belos Solares nortenhos do século
XVIII que imprimem à paisagem a marca sumptuária que os rendimentos agrícolas da época
não explicam suficientemente de forma alguma.
Por essa altura Lisboa sofria o sacrifício da sede e do desconforto da falta de água. A
população abastecia-se em poços, cisternas e raras fontes contaminadas. O Município da Ci-
dade alcançou constituir sociedade de vinte pedreiros que levou a termo a construção do impo-

215
nente Aqueduto das Águas Livres que passou a conduzir a Lisboa água puríssima da região de
Belas e Caneças.
Embora destituído de elites autênticas e entregue a classes dominantes como a Nobreza,
mergulhada no primitivismo de velhos costumes generalizados que consideravam a ociosidade
como atributo aristocrático, reduzindo o trabalho à condição de fardo naturalmente suportado
pelo Povo, ou o Clero inacessível a qualquer mudança inovadora, tudo considerando como
ofensa ao dogma. Portugal desta época foi marcado pela presença dos estrangeiros que aspi-
ravam ver a difusão de correntes intelectuais e científicas que se atreviam a lançar os alicerces
da transformação do mundo. Figuras como D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Luís An-
tónio de Verney, com seu polémico «Verdadeiro Método de Estudar» e Bartolomeu de Gus-
mão, autor da mensagem que anunciava ao mundo «poder-se navegar pelo elemento do ar»,
não podem ficar esquecidos nesta época durante a qual o ouro se apresentava a espíritos retró-
grados como valendo mais do que o pensamento.
D. João V não deixou, porém, de aceitar tais presenças, fundando a Real Academia de
História e destinando parte do seu ouro à instalação da Biblioteca da Universidade de Coim-
bra onde muitos Estudantes haviam de encontrar as luzes que lhes proporcionaram efeitos de
deslumbramento.

A vocação vitivinícola da agricultura portuguesa

Como reflexo do Tratado de Methuen ou em consequência da vocação natural, a agri-


cultura portuguesa conferia à vitivinicultura impulso nunca antes verificado. A cultura da vi-
nha recebia em diferentes microclimas os favores da ecologia e, em largo espaço, dentro de al-
titude compatível, condições propícias de vegetação e facílima propagação das cepas, sobre as
quais ainda não incidia qualquer das pragas que se avizinhavam. Prosseguindo na adopção de
textos dignos de antologia, vejamos a síntese da introdução que o Agrónomo Álvaro Moreira
da Fonseca apresentou no seu trabalho intitulado «As demarcações pombalinas no Douro vi-
nhateiro» de 1949:
«A exportação dos vinhos de Portugal, que até 1675 se fazia por todos os seus portos,
começou a partir daquela data a praticar-se principalmente pela barra do Douro.
Os vinhos do Alto Douro distinguiam-se, na Inglaterra, em perfeição e em crédito. Come-
çou a reconhecer-se que naquele terreno montoozo e estrepado se abrigava o berço do que ha-
via de ser o nosso mais afamado vinho, um dos primeiros entre os primeiros de todo o mundo.
Os ingleses acorreram a buscar esta riqueza que brotava das alcantiladas vertentes do
Rio Douro, região privilegiada cujo centro devia corresponder ao Peso da Régua. Os vinhos aí
produzidos valiam de 8 até 12 mil réis a pipa.
Assim decorreram vários anos; os nossos vinhos firmaram seus créditos: eram, por na-
tureza, extremamente generosos, estimáveis e conservavant-se firmes, dilatados anos; eram
naturais, puros, criados sem violências e fabricados sem malícia.
Os ingleses, em cujas mãos estava todo este comércio, trabalhavam à comissão. Como
meros e simples comissários das Casas cujas sedes estavam no Reino Unido, compravam para
remeter aos seus constituintes. As ordens que recebiam sempre recomendavam que lhes fos-

216
sem enviados os melhores vinhos e mais puros e portanto sem confeições nem misturas. A co-
missão estipulada era de uma moeda de ouro por pipa.
As casas inglesas que nos primeiros tempos iniciaram este comércio eram em número
de sete; como os seus cabedais aumentassem a olhos vistos multiplicaram-se e em breve exis-
tiam 32, com as quais se constituiu a «Feitoria» inglesa na Cidade do Porto.
Aí por 1740, a ambição dos comissários levou-os a querer maior lucro do que a simples
moeda de oiro, e principiaram a enviar, por sua conta, maior quantidade de vinhos.
Para avanssarem mayor lucro, os comissários recorrem à adição de vinhos inferiores e
às mais singulares confeições.
Compram 100 ou 200 pipas de vinho fino de embarque a 48 ou 60 mil réis, e outras tan-
tas de vinhos ordinários, vindos de Viana, Anadia, etc., que lotam nos seus armazéns. Mais:
praticam falsificações ou errados temperos, como sejam a adição de tibornas, bagas, aguarden-
te, vinhos mudos, etc.
Eis a maneira de proceder dos Comissários! Melhor, no entanto, não procederam os La-
vradores.
Estes, em face dos elevados preços do produto, plantam de vinha os campos que davam
pão, os outeiros cobertos com olival, as encostas onde vegetavam frondosos soutos e até mon-
tes que apenas produziam matos!
Não contentes por levarem a cabo tarefa tão árdua, inventam em quase todo o Pena-
guião, e outras terras em Cima do Douro, um modo de forçar as próprias vinhas: lançam-lhes
estrumes que, suposto agradeçam esse benefício com dobrado fruto, costuma ser delgado e de
pouca durasam.
Assim se obtinham 20 e 25 pipas de vinho em terrenos que naturalmente só dariam 10
e este acréscimo quantitativo fez-se com manifesto e desastroso sacrifício da qualidade. Tal co-
mo procederam os comerciantes, chamam para incubar com os da sua lavra, grande cópia de
vinhos dos altos, como os de Fornelos, da Cumieira, de Fontes, de Lamego e de muitos outros
sítios que só serviam para ramo.
E para fingirem em uns e outros aquela valentia, cor, espírito, corpo e sabor que o vi-
nho fino sem artifício costuma ter, lhes descobriu a indústria, a baga de sabugueiro, a aguar-
dente de borras, canela, pimenta e cravo, pendurada em sacos nos tonéis pelos batoques: o
pau de carvalho verde machucado, camoesas, sal, tinta de cerejas pretas, noz moscada, capar-
rosa, açúcar, passas, campeche, arrobe, melasso e outras muitas drogas de que usam com tal
vaidade que entre muitos é um certo género de capricho ser conhecido por bons boticários,
nome com que são tratados os professores deste novo e prejudicial ofício.
Os vinhos eram tantos que, mesmo em anos de moderada criação, depois de extraídos
os que pela Barra do Douro se exportavam para o Norte da Europa e Brasil, os que consumiam
no País e os que se estilavam em aguardentes, ainda sobejavam muitos de um ano para o outro.
Na realidade, ninguém ignorava que na Alfândega de Londres muitos vinhos frouxos e
prevenidos enviados de Portugal eram ali salgados e destruídos...
Os tempos mudaram, e de igual modo o rumo daquele feliz negócio: os vinhos ainda
que bons por natureza, passaram a maus por arbítrio. E, entretanto, os negociantes da Grã-Bre-
tanha, honra lhes seja, continuavam sempre a pedir os melhores vinhos líquidos e puros das

217
huvas sem outra mistura nem confeição de baga nem aguardente.
Assim se apresentava o panorama da Região por meados do século XVIII. Apesar do
terreno ser o mesmo, o clima não ter mudado, nem as plantas degenerado, o vinho do Alto
Douro perdera toda a reputação de que gozava quando exportado no seu primitivo estado de
pureza. Na Inglaterra onde tanta estimação recebera estava infamado não só como ruim, mas
até como pernicioso.
A decadência do comércio dos mesmos vinhos, que não se podia, evidentemente, atri-
buir à malignidade dos astros ou dos ares. acentuava-se dia a dia até chegar à última ruína.»

Os meninos de Palhavã

Para além de seis fdhos legítimos, um dos quais D. José que veio a ser Rei, D. João V
teve D. Maria Rita. filha de D. Luísa Clara de Portugal que foi monja no Convento de Santos
em Lisboa, ficando conhecida como «Flor de Murta». Mandou educar no Palácio de Palhavã
três meninos dos quais o primeiro, filho de uma francesa. D. António, obteve o grau de Doutor
em Teologia pela Universidade de Coimbra; o segundo D. Gaspar, filho de D. Madalena Máxi-
mo de Miranda, foi Arcebispo de Braga; o terceiro. D. José, filho de Madre Paula, freira de
Odivelas, foi Doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra e Inquisidor Mór em 1758.
D. António e D. José viveram, de 1760 a 1777, enclausurados no Buçaco, por ordem do Mar-
quês de Pombal, que os desterrou.

Uma sociedade corrompida pelo ouro

A leitura de Historiadores ou de documentos relativos à época áurea de D. João V con-


vence-nos do abismo social em que o País se encontrava mergulhado nas vésperas de o Mar-
quês de Pombal se instalar no poder. Basta ver o vivíssimo comentário de Oliveira Martins:
«Os fidalgos ocupavam-se em troças brutais, promovendo tumultos e desordens, em
que havia mortos. Eram falados os bandos e arruaças do duque de Cadaval, dos marqueses de
Marialva e de Cascais, dos condes de Aveiras e Óbidos, que punham Lisboa num estado per-
manente de terror. O próprio irmão do rei, o infante D. Francisco (como D. Afonso VI), de sú-
cia com o Supico e outros, se divertia nessas aventuras e raptos nocturnos que ensanguentavam
as mas da capital. A antiga valentia dos portugueses aparecia transformada em uma brutalidade
grosseira.
O assassinato, a tiro, pelo meio da capital, era coisa comum; e nas casas fidalgas propi-
navam-se bebidas de água-forte, para resolver as questões domésticas. Em Coimbra a desor-
dem era maior ainda: ninguém ousava sair de casa depois do sol-posto, porque a Universidade
se organizara em sociedade de malfeitores. O bando da Carqueja dava brado; e além dos rou-
bos e assassinatos que cometiam, os seus parceiros viviam por todos os conventos de freiras,
de Coimbra e dos arredores, transformados em bordéis.
Os escravos, legado repugnante da descoberta da África e do domínio ultramarino, pu-
nham na sociedade uma mancha torpe, e, na fisionomia das massas, borrões de cor negra pelas
ruas e praças da capital. Tinham-se e tratavam-se como gado. Engordavam-se rebanhos de

218
mulheres para crias; porque um pretinho novo, desmamado apenas, já valia 30 ou 40 escudos.
As pretas, que são fecundas, inçavam as casas de negrinhos e mulatinhos, vivos como
demónios, chocarreiros, ladinos; quem não gostaria deles? E, depois, não eram bem gente, não
havia receios com esses animalinhos. Por isso tinham todas as intimidades, e os mimos das
meninas, que às vezes apareciam grávidas. O preto, o mulato, submisso, escravo mudo, era o
confidente dos amores, e por vezes o amante — por desleixo, fraqueza, ou requinte sensual
dos temperamentos ardentes. Era o escravo, era a escrava, quem punha em contacto a fidalga
ou a rica merceeira com as curiosidades picantes da plebe das ruas. Por seu intermédio vinham
ao gabinete afastado, à tardinha, os namorados e as alcovetas, as ciganas, ermitoas, mulheres
que deitavam cartas e diziam a buena-dicha às meninas perdidas de amores, dessoradas de
beatério. Vinham as adelas e contrabandistas, vendendo garavins e bolotas de cheiro para os
lenços, vendendo doces e confeitos, mais barato do que nas lojas — porque traziam dentro o
bilhetinho dobrado do namorado. Vinham os benzedeiros e adivinhos, chocarreiros, trejeita-
dores, bufões, pregando e arremedando os animais, diante das velhas donas, piedosas, ainda
cheias de esperanças e pretensões. Vinham os que vendiam dixes, águas de rosto, e faziam so-
brancelhas com linhas, punham os sinais, limpavam a pele com vidro: cabeleireiras e perfu-
mistas. Vinham, finalmente, certas mulheres idosas, humildes, pedindo para uma certa missa,
esmolando para amparar uma órfã, contando terrores: as bruxas que chupavam as crianças
recém-nascidas; os lobisomens cumprindo o seu fado, a iuvar como cães, de dia esgazeados,
macilentos, melancólicos sob forma de gente; os ciganos do pinhal da Azambuja. — Medos,
milagres, espantos! Uma freira em S. Elói, à força de exorcismos, vomitara demónios, sob for-
ma de alfinetes! E as meninas e as velhas pasmavam, bendizendo o poderoso Deus; e metidas
com os seus santos davam-lhes torturas para que lhes fizessem a vontade: Santo António, o po-
bre, ia baldeado ao tanque. Nossa Senhora para debaixo da cama, se a velha beata das nove-
nas de S. Roque não trazia a horas o bilhete perfumado do galã.
E as meninas, arrebicadas e pintadas, sensatas e namoradeiras, caçoulas perenes, em vi-
sitas constantes, merendas, jogos, romarias, festas, rodeadas de comadres e amigas, com os
seus papagaios e saguins, os seus cãezinhos felpudos (o Cuidado, o Primor), mestras em ja-
carás e sarambeques, formavam um tipo ridículo e precioso de que resta ainda, desbotada, a
imagem da menina da baixa de Lisboa.»
Era notória a falta de segurança reinante em Lisboa e na província. Historiadores mo-
dernos, como J. Veríssimo Serrão referem que «eram frequentes as cenas de roubo e de homi-
cídios nas ruas da capital, onde o passeio nocturno constituía loucura temerária. Muitas igre-
jas transformavam-se em velhacouto de criminosos, que assim viviam impunes. Nas estradas
viam-se cadáveres abandonados e sem que a justiça interviesse como devia». Quanto à provín-
cia o panorama não era melhor, «no ano de 1751, o Alentejo foi cenário de roubos e ataques
contra a população. Os malfeitores não poupavam os viajantes, levando a audácia ao ponto de
saquearem as casas de agricultura».

O Cacauciro, que produz o «manjar dos Deuses»

Esta maravilhosa planta foi encontrada na América, sendo o fruto aproveitado pelos in-

219
dígenas, designando, os Aztecas, a bebida que fabricavam, «chocolate». Classificada como
pertencendo à família das Estarculácias. recebeu o nome de Theobroma cacau L., o que sig-
nifica «manjar dos Deuses». A introdução do cacau nos hábitos europeus foi difícil pelo que,
durante muito tempo, não adquiriu valor comercial. Quando os piratas capturavam um carre-
gamento de cacau, sentiam-se logrados e deitavam ao mar. No entanto, os portugueses inicia-
ram muito cedo, na Amazónia, a colheita da produção espontânea, sem grande sucesso comer-
cial. A cultura, muito trabalhosa e dependente do trabalho do escravo, alcançou desenvolvi-
mento no Brasil somente no século XVIII, sendo muito recente a sua implantação em S. Tomé,
onde adquiriu grande importância, passando a Angola e Timor, em concorrência com muitas
outras regiões produtoras do Oriente e africanas, promovidas como exploração colonial, pos-
ta ao serviço de uma das mais importantes e requintadas indústrias alimentares do Mundo.

220
27 — O DESPOTISMO «ILUMINADO»

Com a morte de D. João V foi aclamado Rei seu filho D. José I. Empenham-se os Histo-
riadores na tentativa de descobrir quem teria sido, para uns o autor, para outros o culpado, da
entrega que o jovem Rei promoveu, do Poder, a uma figura até aí apagada, que à História de
Portugal veio dar o fortíssimo vulto de Sebastião José de Carvalho e Melo, feito Conde de Oei-
ras e, depois, Marquês de Pombal. Mas, pouco importa se a decisão resultou da influência do
omnipotente Cardeal da Mota, em abandono da política com a morte de D. João V, ou do «tes-
tamento político» de D. Luís da Cunha, que afirmava a D. José: «achará muitas terras usurpa-
das ao comum, outras incultas, os caminhos intransitáveis. A terça parte de Portugal é proprie-
dade da Igreja, que não contribui para a segurança e defesa do Estado: é dos cabidos das dioce-
ses, das colegiadas, dos priorados, das abadias, das capelas, dos conventos de frades e freiras.
Achará que o reino não é povoado». O certo é que Sebastião José foi despoticamente nomea-
do.

O terramoto de 1755

Lisboa foi abalada por cataclismo devastador. Na emergência, D. José obteve do Minis-
tro a histórica resposta que tem o sabor de programa de governo: «enterrar os mortos e cuidar
dos vivos». As tropas da província avançaram sobre Lisboa, a arder. Nas cercanias ergueram-
-se forcas onde eram supliciados os malfeitores e a população foi convidada a promover a re-
moção dos destroços, tomando-se medidas para garantir os abastecimentos. É impressionante
como um cataclismo revela o Político, dando-lhe a configuração de providencial, no julgamen-
to popular. Lisboa seria reconstruída com dignidade e grandeza nunca depois alcançada.

A primeira região vitivinícola demarcada do Mundo

Retomando o estudo do Agrónomo A. Moreira da Fonseca verifica-se que foi o Domi-


nicano Padre Mestre Dr. Frei João de Mansilha quem disse ao grande influente duriense Dr.
Luís Beleza de Andrade, quando discutiam com viticultores a situação angustiosa da região,
que «o sistema melhor era fazer-se uma demarcação das Terras». Depois de aceite a ideia que,
devemos reconhecer, foi pioneira, o Dr. Beleza de Andrade deu «sessenta moedas» do seu bol-
so a Frei João Mansilha para que fosse a Lisboa comunicar o seu parecer ao Ministro Carvalho
e Melo, para reforço de requerimentos enviados por Comunidades Religiosas e Procurador da
Cidade do Porto. Sucede que a ideia de Frei João de Mansilha era sujeita a contestação pelo
Procurador que a julgava impraticável, dando preferência ao monopólio da Feitoria de vinhos
finos e entregue às «vinhas que hoje se acham reduzidas a quintas», excluindo portanto a pro-
dução camponesa, mesmo de alta qualidade. Em réplica, a Câmara pronunciou-se contra o mo-
nopólio das quintas, mas nunca poderá saber-se se foi ou não em resultado da intervenção do
dominicano, duriense apaixonado pela vocação vitivinícola regional, que Sebastião José de

221
Carvalho e Melo ordenou ao Corregedor do Crime o estabelecimento da Companhia Geral de
Agricultura dos Vinhos do Alto Douro. Ficava assim consagrada a primeira região vitivinícola
demarcada do Mundo: «que logo se faça um Registo ou Tombo Geral das duas Costas, Seten-
trional e Meridional, do Rio Douro; demarcando-se nelas todo aquele Território que produz os
verdadeiros vinhos de Carregação, que são capazes de sair pela Barra do sobredito Rio».
A Companhia foi instituída por alvará régio de 10 de Setembro de 1756, com um Prove-
dor, doze Deputados, um Secretário e seis Conselheiros «homens inteligentes deste comércio»
assistidos por um Juiz Conservador e um Procurador fiscal. Pela sua importância ficam trans-
critos três parágrafos do referido alvará:

§. XXIX.

«Devendo-se separar inteira, e absolutamente para o embarque da America, e Reynos


Estrangeiros os vinhos das Costas do Alto Douro, e do seu território de todos os outros vinhos,
dos lugares, que somente os produzem capazes de se beber na terra, para que desta sorte a infe-
rioridade destes vinhos naõ arruine a reputaçaõ que aquelles merecem pela sua bondade natu-
ral: He S. Magestade servido que com a mayor brevidade se faça hum Mappa, e Tombo geral,
das duas Costas Septentrional, e Meridional do Rio Douro, no qual se demarque todo aquelle
território que produz os verdadeiros vinhos de carregaçaõ, que saõ capazes de sahir pela bar-
ra do mesmo Rio: especificando-se cada uma per si, as grandes, e pequenas fazendas deste ge-
nero, e declarando-se por huma estimaçaõ commua, ou media calculada pelas producçoens dos
últimos cinco annos próximos pretéritos o que costuma dar cada huma das ditas fazendas, para
que os donnos delias, nem possaõ vender sem manifestarem á Companhia o que vendem, nem
possaõ ser admittidos a vender mayor numero de pipas á Companhia, ou aos Estrangeiros, do
que aquelle que no dito registo lhes for determinado sob pena de que excedendo nas vendas as
ditas quantidades pagaráõ anoveado o excesso, e ficaráõ inhibidos para mais naõ vendenrem
vinhos para fóra do Reyno.
Das terras que ficarem fóra da sobredita demarcaçaõ se naõ poderá transportar vinho al-
gum para dentro do território delia sem trazer cartas de guia passadas por todo o corpo das Ca-
maras, dos lugares donde os taes vinhos sahirem, as quaes guias declararão a sua destinação;
o uso a que vem dirigidos; o nome do Lavrador, e da fazenda em que se colherem; as pessoas
a quem vaõ remettidos; e o caminho recto por onde se devem transportar; cujas guias na sobre-
dita fórma seraõ apresentadas aos Comissários, que a Companhia tiver nomeado nos respecti-
vos lugares, para conhecerem se com effeito se faz delles o uso a que vem destinados.
Tudo isto debaixo das penas, de que o vinho que for transportado sem guias expeditas
na sobredita fórma, ou que for achado fóra dos caminhos directos, e estradas commuas será
confiscado a favor da Companhia.
E isto para que naõ succeda que os vinhos roins se lotem com os bons para augmentar
a sua quantidade em prejuízo da sua reputaçaõ, e da Companhia, e Estrangeiros que os haõ de
comprar.
E sendo que sucedda acharemse os vinhos inferiores introduzidos em casas naõ appro-
vadas para os receberem pelas Cameras, com consentimento da Companhia, seraõ naõ só con-
fiscados os mesmos vinhos, mas aquellas pessoas em cujas mãos forem achados, serão con-

222
demnadas no tresdobro do seu valor a beneficio da mesma Companhia.»

§. XXXIII.

Para que os Lavradores de vinho, e Compradores delles se possaõ reger sobre princí-
pios certos, sem que a lavoura pertenda tirar das vendas lucros prejudiciaes ao commercio,
nem o commercio no barateyo das compras do genero possa arruinar a lavoura; pagará a Com-
panhia inalteravelmente todos os vinhos que tirar para o seu embarque pelos preços de vinte
cinco, e de vinte mil reis cada pipa, segundo as suas duas differentes qualidades na fórma que
fica declarado pelo §. XIV: de tal sorte, que ainda no caso de haver grande falta dos sobredi-
tos vinhos qualificados, e grande sahida para elles, naõ poderáõ os da primeira qualidade exce-
der o preço de trinta mil reis por cada pipa, e de vinte e cinco mil reis os da segunda.
Os que porém naõ forem capazes de embarque sendo sufficientes para o consumo da
terra seraõ comprados, e vendidos pela mesma Companhia, também por preços certos, e deter-
minados na maneira seguinte.
Os que forem da producçaõ das terras, que jazem do Porto até Amelias, seraõ compra-
dos a razaõ de quatro mil reis por cada pipa, e vendidos, fazendo a Companhia todas as des-
pezas delles por sua conta, a razaõ de dez reis cada quartilho:
Os que forem da producçaõ das terras, que jazem de Amelias, até Bayaõ, seraõ compra-
dos a razaõ de cinco mil reis por cada pipa, e vendidos na mesma fórma a razaõ de doze reis
cada quartilho;
Os que forem da producçaõ de Ansede, e seu districto, que se demarcará logo na sobre-
dita fórma, seraõ comprados a razaõ de seis mil reis por cada pipa, e vendidos semelhantemen-
te a razaõ de doze reis e meyo por quartilho:
Os que forem da producçaõ das terras de Barqueiros, Mezaõfrio, Barrô, e Penhajoya se-
raõ comprados a razaõ de oito mil reis por cada pipa, e vendidos na mesma fórma a razaõ de
quinze reis cada quartilho:
Os outros vinhos maduros dos Altos de sima do Douro, que ficarem fóra da demarcaçaõ
das terras que produzem os vinhos de embarque seraõ comprados a razaõ de doze mil reis por
cada pipa, e vendidos na mesma conformidade a razaõ de hum vintém cada quartilho: fazen-
do o Provedor, e Deputados da Companhia distribuir todos os referidos vinhos pelas tavernas
para serem vendidos ao ramo na fórma estabelecida pelo §. XXV11I, com tal declaraçaõ que
para cada huma das sobreditas especies de vinhos prevenirá a dita Companhia vazilhas marca-
das com fogo, que distingaõ as suas differentes qualidades e preços: e que o taverneiro que al-
terar a referida ordem, ou metendo nas pipas das qualidades superiores os vinhos inferiores,
ou misturando-os, pela primeira vez pagará cem mil reis, perderá todo o vinho que lhe for
achado em beneficio do accusador, e terá seis mezes de cadeya; pela segunda se dobraraõ as
mesmas penas; e pela terceira, além delias, será publicamente açoutado, e degradado para o
Reyno de Angola.
E porque haverá vinhos de taõ má qualidade que só sirvaõ para se queimarem, ou redu-
zirem a vinagre, a Companhia dará promptamente licenças aos donos de semelhantes vinhos
para os reduzirem a aguas ardentes, ou vinagres; e querendo fazer os seus provimentos destes
dous generos os comprará a avença das partes.»

223
Com esta intervenção a influência inglesa, em relação à qual o Ministro não revelava
grande simpatia, ficava impedida de montar no terreno um sistema de produção e de comércio
verdadeiramente colonial. O Autor que nos acompanha afirmou:
«Assim, uma vez averiguado que a ruína do negócio fora devida à grande quantidade e
à inferior qualidade dos vinhos, e que o remédio consistia em que fossem menos e em que fos-
sem melhores, a instituição que se acabara de fundar não perdeu de vista, entre outros, tais pro-
pósitos. À sombra de tão poderosa, opulenta, como quase majestática Companhia, a região vi-
nhateira do Douro conheceu, de novo, o desafogo económico.
E assim "se deu felizmente principio a hum negocio em que portuguezes fabricavaõ o
genero, portuguezes o compravaõ, portuguezes o navegavaõ e portuguezes o vendiaõ e tiravaõ
deite toda a utilidade que podia dar"».
Logo em Fevereiro de 1757, os taberneiros do Porto alertados com os novos regulamen-
tos da Companhia que arruinavam o comércio a retalho promoveram, no largo da Cordoaria,
manifestação pormenorizadamente descrita por Susan Schneider em «O Marquês de Pombal e
o Vinho do Porto». Refere que foi relatado ao Ministro o acontecimento que teria sido mais
grave pelo assalto à residência do Procurador Beleza de Andrade que, estando ausente, resulta-
ria da imprudência de um criado ter disparado uns tiros sobre a multidão. O Ministro conside-
rou a manifestação «crime de lesa magestade» e encarregou Pacheco Pereira de investigar.
Em consequência foram presos 460 acusados, depois de implacáveis perseguições que
duraram muitos meses. Procedeu-se ao julgamento, e foram condenados 375 homens, 50 mu-
lheres e 17 jovens. Receberam açoites, condenação às galés, prisão na província e confiscação
de propriedades 350 réus. Foram desterrados para África e índia 49 homens e 10 mulheres. Fo-
ram condenados à morte 21 homens e 5 mulheres.
Na manhã de 14 de Outubro de 1757 os condenados foram enforcados e esquartejados
«sendo as suas cabeças espetadas em chuços e expostas nas ruas da cidade durante quinze
dias». Pacheco Pereira ordenou que as cabeças «fossem espetadas em altos chuços ao longo
das estradas principais que saíam do Porto: sete na entrada de Lisboa, seis no caminho para
Leça, doze nas margens do Douro», cumprindo desta forma macabra a promessa que fizera a
Carvalho e Melo de que «os castigos seriam tão severos que evitariam outras rebeliões em Por-
tugal durante muitos séculos».

A consolidação do Poder Absoluto

O Ministro, ao fundar no Brasil a Companhia do Maranhão e do Grão Pará, ofereceu


aos detentores de iniciativas de desenvolvimento, novas oportunidades de expansão e de co-
mércio. Tal expansão envolvia a política de apropriação de terras e de comércio de escravos.
Tudo o que se empreendia contrariava programas de evangelização de índios praticados pela
Companhia de Jesus. Efectivamente, o sonho dos Jesuítas de fazer despertar na América do
Sul um País Cristão, assente nas comunidades tribais de ameríndios, apresentava-se impraticá-
vel ou utópico perante o embate brutal da presença de europeus ávidos de riqueza e, também,
da oposição muito forte de escravos negros que nutriam pela população autóctone particular
desprezo. A ambição do Ministro não podia conformar-se com tal programa, condenado a so-

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frer espectacular derrota conjuntural na América, como sofrera em África, na Etiópia, no Ori-
ente, no Japão. Todavia se a episódica ou aparente «expulsão» dos Jesuítas de África e do Ori-
ente, com o martírio de populações que alcançaram cristianizar, imposto por déspotas locais
fanáticos e intolerantes, se apresentava inevitável perante os interesses portugueses, acontecia
agora que, no Brasil, o autor do abandono e massacre dos índios, foi, sem dúvida, o déspota
português.
A sombra de poderes instalados que se projectava sobre as ambições do Ministro não
provinha somente da Companhia de Jesus, mas também da Nobreza que defendia seus víncu-
los e privilégios. O atentado contra D. José serviu de pretexto para desencadear pracesso que
envolveu nobres e seus serventuários plebeus a quem foram arrancadas as confissões necessá-
rias pelos magistrados da Junta da Inconfidência.
Em consequência, foi executada em Belém, publicamente, a ferocíssima tortura dos
acusados, recorrendo-se a incríveis instrumentos de suplício, sendo uns decapitados, outros es-
trangulados ou rodados, depois de quebrados os ossos das pernas, dos braços e do rosto. A po-
pulação pasmou, horrorizada, e não teria aderido ao barbarismo porque os artesãos da Casa dos
Vinte e Quatro sugeriram penas leves para os acusados, como a perda de privilégios e honra-
rias mas, em resposta, viram a sua velhíssima instituição silenciada.
Muitos Padres da Companhia de Jesus foram encarcerados e finalmente expulsos do
País. Do Brasil a retirada foi dramática para os índios que ficaram entregues ao mais feroz
morticínio. Em Lisboa, ficou retido o Padre Malagrida que a Inquisição condenou como heréti-
co à pena de garrote e de fogueira, em auto-de-fé — o último — realizado no Rossio.

Reformas na economia e na vida social

Para além da fortíssima intervenção na região vinícola do Douro, que ficou demarcada
em condições de poder certificar a origem, e defender a qualidade dos seus vinhos, o Marquês
impôs o arranque de vinhas em solos férteis das margens do Tejo, do Mondego e do Vouga,
para que a produção cerealífera retornasse a essas terras. Tal medida teve o significado de es-
forço autárcico em face da carência de trigo, mas não logrou alcançar resultados sensíveis. Foi
proibido o aforamento de baldios o que revela, talvez, ter-se iniciado nessa época a cobiça de
particulares sobre o património comunal das freguesias, que deveria ser particularmente vas-
to. O comércio de vinhos foi objecto de múltiplas regulamentações afigurando-se, no entanto,
que a prosperidade apenas contemplou o Douro, onde os marcos pombalinos ficaram, efectiva-
mente, a desafiar a História. Na crítica de diferentes analistas da obra e vida do Marquês de
Pombal, que foram muitos e competentes, não se esconde a suspeita de que os seus vinhos de
Oeiras tivessem viajado na «carregação» destinada aos ingleses como se fossem «do Porto».
Para um velho Agrónomo, a quem foi dado contemplar a fraude em muitos domínios e oca-
siões, torna-se quase possível encontrar absolvição para o Conde de Oeiras, quando se recor-
da a qualidade dos vinhos de Carcavelos, hoje quase extintos pela expansão urbana.
Tentou o ministro instalar indústrias, retomando manufacturas de sedas, de tecelagem
de algodão, de vidros. A indústria de porcelana foi ensaiada sem êxito por Bartolomeu da Cos-
ta, na fábrica real do Rato, com caulino dos arredores de Aveiro depois de utilizado pela fábri-

225
ca de Vista Alegre. Fundou a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.
Atraiu técnicos estrangeiros e construiu solidíssimos edifícios do Estado que ainda hoje se
conservam. Todavia aconteceu que o esforço industrial pombalino não nasceu apoiado no im-
pulso das grandes invenções técnicas que se aproximavam. Na ausência de vocação empre-
sarial da aristocracia portuguesa, incapaz de estruturar o sector a que hoje se aplica a designa-
ção de privado, o industrialismo de Pombal não passou, talvez, de tentativa frustrada de mobi-
lização de recursos do Estado.
O Marquês foi «cruel, despótico, mas revolucionário», pondo termo ao poder dos Pon-
tífices e dos Núncios, reduzindo-os ao domínio puramente espiritual, ficando o resto concen-
trado no poder do Rei, abrindo caminho às concordatas com Roma. Sem que lhe fosse con-
sentido suprimir a Inquisição, dela se servindo no seu ódio aos Jesuítas, compelindo-a a con-
denar o Padre Malagrida, reformou-a, transformando-a em Tribunal Régio que pôs termo a
métodos impiedosos dos processos inquisitoriais. Aboliu a distinção sinistra entre cristãos-no-
vos e cristãos-velhos, igualando os direitos de todos no serviço público, tal como sucederia nos
lugares celestes. Incapaz de suprimir a escravatura, concedeu a liberdade a todos os nascituros.
Sem ter o rasgo de proclamar a liberdade de imprensa, contrária aos princípios da Monarquia
absoluta, suprimiu a licença da autoridade eclesiástica para publicação de livros que passou ao
Tribunal da Real Mesa Censória. Suprimiu o Index de 1624. o que abriu à circulação as ex-
pressões de pensamento condenadas.
Sem consentir que o Povo reclamasse, ou levantasse qualquer dúvida quanto ao dogma
da soberania do Rei, nunca aceitando a iniciativa popular, porque o Rei tinha o privilégio de
tudo entender, prever e calcular, iluminadamente, introduziu profundas alterações no Direito
Civil português, «para bem do Povo». Nos preâmbulos de decretos refere-se «a alta e indepen-
dente soberania, que o Rei recebe imediatamente de Deus, pelo que manda, quer e decreta aos
seus vassalos, de ciência certa e poder absoluto».
O Marquês reorganizou o exército impondo a disciplina prussiana ao nomear marechal-
-general o Conde de Lippe, e reconstruiu fortalezas, como a de Elvas, segundo o sistema
Vauban. Introduziu no Brasil métodos administrativos apoiados fortemente no poder de gran-
des Companhias, mas não pôde atenuar sequer, no Oriente, a perda de prestígio resultante da
rapina colonial conduzida especialmente pelos nossos aliados ingleses.

Reformas no Ensino

O Marquês de Pombal, que reprimiu impiedosamente o uso e abuso de privilégios da


Nobreza, acabou por conceder à Burguesia a atribuição de Títulos nobiliárquicos abrindo as
portas da aristocracia a artistas e opulentos comerciantes. Levou mais longe a sua desconcer-
tante ou aparente incongruência, facultando à ociosidade de meninos nascidos em berço de oi-
ro, o privilégio do Colégio dos Nobres, cujas exigências literárias e científicas acabaram por
revelar a frustração do elitismo, em estudantes desmotivados para custosas elaborações do es-
pírito.
Mau grado a circunstância de a expulsão dos Jesuítas ter provocado drástica redução do
Corpo Docente, Pombal alcança impor a Coimbra modesta reforma que desenvolve o ensino

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de Matemática e de Filosofia. Foi fundado o Jardim Botânico. A Universidade de Évora não
conseguiu reconstituir o Corpo Docente pelo que deixou de aceitar estudantes, sendo encerra-
da.
Efectivamente, o Marquês de Pombal, neste domínio, apresenta-se como um vencido,
porque não conseguiu ultrapassar a resistência à reforma que a velha Universidade ofereceu,
passando a ser a única durante século e meio. Pombal bem tentou adoptar métodos radicais que
não deixaram depois de ser por outros praticados. Tentou criar «Universidade Nova», esco-
lhendo Torres Vedras. Mas a povoação opôs-se vigorosamente, não consentindo que o seu sos-
sego fosse perturbado pela balbúrdia de estudantes irreverentes quanto a bons costumes consa-
grados. O Marquês ficou vencido e desistiu dos seus propósitos.
Em 1759, talvez com o objectivo de fortalecer a burguesia, o Ministro criara a Aula do
Comércio, considerada nos estatutos da Junta do Comércio. Ao mesmo tempo os Jesuítas fica-
vam privados de exercer o ensino, sendo extintas todas as classes e escolas que mantinham em
funcionamento em mais de quarenta Colégios. Foi mais tarde, em 1772, que D. José aprovou
o «mapa ou plano» de Escolas elaborado pelo Marquês «sou servido de criar todas as escolas
públicas e todos os mestres delas que se acham indicados no referido Plano». Conforme co-
menta Joaquim Ferreira Gomes em «O Marquês de Pombal e as Reformas do Ensino - 1982»,
antes, o ensino competia à Família e à Igreja, sendo a acção do Estado meramente supletiva.
As reformas do Marquês visavam alterar esta orientação sendo criadas 358 Escolas secundá-
rias com mestres de Latim, Grego e Filosofia, o que se afigura abundante, e 479 Escolas pri-
márias com «mestres de ler, escrever e contar», o que era insuficiente, ficando todo o mundo
rural abandonado. Estes mestres deviam «ensinar não somente a boa forma dos caracteres, mas
também as regras gerais da boa ortografia portuguesa e o que necessário for da sintaxe dela,
para que os seus respectivos discípulos possam escrever correcta e ordenadamente; ensinan-
do-lhes pelo menos as quatro espécies de aritmética simples, o catecismo e as regras de civili-
dade em um breve compêndio».
Pode admitir-se que o ensino surge, pela primeira vez planeado e estruturado de forma
a facultar à população o esteio do desenvolvimento intelectual e cívico. Todavia o Plano apre-
senta-se, em comparação com equipamentos depois alcançados, nitidamente insuficiente. De-
ve admitir-se mesmo que não poderia ser mais amplo. O que foi pior é que não chegou a ser
executado e a estrutura humana de apoio desmoronou-se, ou não chegou a ser erguida. Embora
o Marquês afirmasse que o ensino particular e o perceptorado seriam mantidos, obrigava a que
os mestres se apresentassem habilitados para o magistério com exame e aprovação da Mesa
Censória sob penas que chegavam ao degredo para o Reino de Angola. Não admira que a po-
pulação portuguesa tivesse permanecido mergulhada no abismo da ignorância, sem que os seus
olhos se abrissem às «Luzes» que, tudo indica, não obedecem a decisões despóticas, mas a me-
todologias educativas na altura não desvendadas e que não estamos certos de que estejam a ser
praticadas, ainda, no mundo rural português.

Restrições inovadoras quanto a diferentes escravaturas

Por meio de alvarás de 1761 e de 1774 o Marquês de Pombal decretou a liberdade para

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os índios do Brasil e extinguiu a escravatura no território metropolitano, concedendo também
aos naturais da índia os mesmos direitos de que usufruíam os portugueses. Mas o tráfico de
escravos manteve-se nos mares e a escravatura nos domínios ultramarinos, até 1836, altura em
que os Historiadores a consideram extinta.
Estava prestes a encerrar-se um período invulgar da História de Portugal. Tal como ho-
je se imagina ter a Ciência alcançado elevado nível de conhecimento humano depois de con-
cretizadas invenções revolucionárias rapidamente transferidas para a prática, também o termo
do «reinado» pombalino executado em nome do Rei Absoluto D. José, se apresentava como
mundo novo, nunca ultrapassado, cujas «luzes» deveriam ser divulgadas para que despertasse
a multidão mergulhada no obscurantismo. Podemos aperceber-nos do sentimento adquirido
quanto à profundidade e vastidão do conhecimento pelos espíritos iluminados que, pelo me-
nos, sabiam o bastante para reconhecerem as «trevas» em que se abismava o Povo. Serve de
exemplo em Portugal o enciclopedismo da «Recreação Filosófica ou Diálogo sobre Filosofia
Natural, para instrução de pessoas curiosas que não frequentaram as aulas» do P. Theodoro
d'Almeida, dedicado ao Rei e Senhor D. José, assim desenhado: «Príncipe Sábio, dotado de
uma tão clara percepção de entendimento, de uma tão viva, tão pronta penetração de discurso»
que explica o iluminismo da época, mesmo antes de ter sido fundada a Real Academia das
Ciências de Lisboa, o que se deve à sensibilidade e sabedoria da Rainha que sucedeu. Na ver-
dade o Autor afirmava que:
«...nunca em Portugal se viu tão bem estabelecida, e radicada a sã Filosofia, como no
tempo presente. Desde a feliz época deste reinado mudou de semblante a Filosofia, ou melho-
rou de fortuna; eu não sei que nova beleza sua encantou os ânimos dos que dantes a fugiam, e
detestavam, ou que nova força sobreveio a seus argumentos, que os vejo agora mais victorio-
sos. Já não anda escondida, solitária e perseguida, mas aparece em público, com tanto séquito,
e tão pomposo acompanhamento, que mais nos parece que triunfa, do que peleja. Vejo tentar
uma, e outra vez as experiências, vejo manejar as Máquinas com cuidado, vejo consultar as
importantes Leis da Mecânica, vejo em fim formar cálculos matemáticos; e que sobre eles sóli-
dos fundamentos dá prudentes passos o Discurso, quando antigamente se deixava governar pe-
los ímpetos cegos de uma imaginação viva, e solta. Já agora no descobrimento da verdade es-
condida, não se fia o entendimento só da luz da razão, procura à força de repetidos golpes de
experiências, tirar de dentro da mesma natureza uma nova luz, que o alumie, para caminhar
seguro. Tanta é a mudança que em vós vemos, que ainda os que não contam muitos anos, des-
conhecem e estranham os nossos livros, os nossos estudos e as nossas aulas».
É assim que, não somente o Rei mas alguns privilegiados detentores da inspiração das
«luzes», reconhecem a existência das «trevas»:
«Eu vejo que ao povo são ocultas as maravilhas da natureza; vejo que dentro das aulas
com fria avareza se fecha essa pouca luz que podia manifestar-lhes; vejo que muitos engenhos
elevados, nobres, e agudos vivem numa escravidão vilíssima, seguindo, e venerando os erros
que trouxeram do berço, e que adoram com respeito as sombras, porque ainda não tem visto a
luz.»
E, logo a seguir:
«Deus para todos fez; quero dizer, a beleza interior do Universo, que transporta e arre-

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bata o entendimento, com mais força do que o pode fazer aos olhos toda a sua extrema formu-
sura. Não é crime ignorar as línguas extranhas; e quando o fosse, não se devia dar em castigo
outra ignorância: porque a luz da verdade comunica-se como a luz do dia; e não se nega a clari-
dade do Sol ao pobre, ao preso, ao desamparado; nem deve negar-se a verdade a quem se vê
impossibilitado de ir buscá-la a paizes estranhos.»
Sob a influência muito forte «dos enciclopedistas», o Autor conclui, manifestando a sua
límpida e generosa convicção:
«Essas poucas luzes que em mim ha, pareceu-me que seria mais conveniente empregà-
-las em alumiar os que vivem totalmente em trevas, do que comunica-las aos que vivem no
meio do dia claro.»
Talvez fossem estes alguns dos alicerces incompletos, sobre os quais se continua a pro-
curar erguer, em renovados esforços que se afiguram utópicos, sistemas educativos, alargados
a quantos sofrem a «escravatura» de lhes ver recusado o acesso.

229
28 — O TERMO DO DESPOTISMO

O Mundo encontrava o ciclo segundo o qual as liberdades alternam com a opressão dos
déspotas. Nas terras descobertas por Colombo, ocupadas em parte pela rapina dos castelhanos,
ficara aberto o espaço onde colonos, muitos deles refugiados de trágicas perseguições na Euro-
pa, se instalavam transportando, quando o trabalho agrícola era penoso, escravos negros afri-
canos.

Os Estados Unidos da América

Logo em 1607 a Virgínia foi colonizada por Companhia inglesa, chefiando o Capitão
Smith um grupo de protestantes. Mariland foi fundado por Lord Baltimore, católico que de-
clarou a colónia aberta a todas as religiões. A Carolina foi fundada em 1663 por Lord Clare-
don e por Lord Shaftesbury e a Geórgia em 1762 pelo Coronel Oglethorpe. Os ingleses inte-
graram, pela força, colónias holandesas que os haviam precedido, passando Nova Amsterdam
a designar-se Nova Iorque. Guilherme Penn radicou os seus quaquers na Pensilvânia. Nas co-
lónias inglesas tanto se procurava defender a liberdade dos cultos, como a radicação de fana-
tismos, de que o de Connecticut, submetido à estrita obediência à Bíblia serve de exemplo. Na
sua História de Portugal, Pinheiro Chagas relata estes factos comparando-os com os padrões
da colonização portuguesa no Brasil e comenta: «estas colónias, fundadas tão espontanea-
mente sem a direcção nem a protecção da metrópole, tinham cada uma delas a sua constitui-
ção independente, o seu parlamento colonial».
Os atritos de interesses entre a velha e a nova Inglaterra passaram a ser constantes, dan-
do lugar à declaração de direitos expressa no ano de 1775 em Congresso dos Estados Unidas
da América que constitui o prólogo da Revolução que proclama a independência. Jorge
Washington enfrenta, nos arredores de Boston, o primeiro embate da guerra colonial, que havia
de despertar na Europa, particularmente em França, o mais vivo apoio que atraiu combatentes
como Lafayette. Depois de duríssimas campanhas, a independência dos Estados Unidos da
América foi reconhecida em 1783.
Na contradição do que depois havia de ser o pan-americanismo de Monroe «a América
para os americanos» a marcha acelerada para o Oeste esmagara os ameríndios confinados a
«reservas» degradantes, e sucessivamente privados das suas terras e do suporte ecológico dos
seus búfalos. Pouco depois, em França, explodia a Revolução Francesa, tombando os mortos
sob o signo da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
Em Portugal, com o Rei D. José doente, tendo-se o mal agravado, o Marquês chegou ao
Paço. para despacho, encontrando o Cardeal da Cunha a negar-lhe a entrada nos aposentos
reais, dizendo-lhe: «Vossa Excelência já nada tem a fazer aqui». O Marquês retirou recordan-
do quanto fizera em favor de quem lhe assinalava o termo do poder despótico, de que se servi-
ra para alcançar a nomeação cardinalícia e muitas outras honrarias imerecidas. Passada breve
regência de D. Maria, o Rei morreu em Fevereiro de 1777. Logo no dia 1 de Março, o Mar-

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quês de Pombal pediu à Rainha D. Maria I a exoneração dos cargos. A Nobreza exultou de ale-
gria e em todas as classes se instalou a sensação de alívio. A Rainha mandou libertar os pri-
sioneiros: «viram-se então sair das masmorras uma colónia de desgraçados, cuja miséria rege-
lava a vista e indignava o coração». E o pior foi que «os parentes não os reconheciam: os filhos
tinham-se esquecido, e os amigos haviam-nos por mortos».
Começaram a chegar ao Paço as petições de reabilitação dos acusados, movimento a
que o Povo deu o nome de «viradeira». Prudentemente D. Maria soube impedir impulsos de
vingança e. demitido o Marquês, deixou correr múltiplos inquéritos, desterrando o antigo Mi-
nistro para vinte léguas da Corte, onde morreu de morte natural em 1782 nos seus domínios
de Pombal.

A primeira revolta colonial no Brasil

A independência da Colónia inglesa americana não podia deixar de ter reflexos no Bra-
sil. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, reunindo a adesão de intelectuais ilustres co-
mo os Poetas Tomaz António Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, planeou a Revolução que
proclamaria a República independente de Minas Gerais, a que se juntariam as restantes Capi-
tanias brasileiras. Denunciada a conspiração de idealistas, os implicados foram detidos, comu-
nicando-se o facto a Lisboa. D. Maria enviou desembargadores para instauração do processo.
A sentença proferida em 1782 mais se afigura remeniscência pombalina do que o produto da
benevolência de que a Rainha sempre deu prova. Foram condenados à morte 11 implicados,
aplicando-se várias penas a outros, como a infamação dos descendentes, a confiscação de bens,
a destruição de casas e salgamento de alicerces. A pena de morte acabou por ser comutada em
degredo para 10 condenados, mas o Tiradentes foi suplicado no Rio de Janeiro, num campo
onde hoje se vê implantada a Praça da Constituição. Teria sido o primeiro mártir das lutas pela
a independência de colónias portuguesas.

Pina Manique, Intendente da Polícia

Pina Manique, serviu o Marquês de Pombal celebrizando-se quando executou a captura


de desertores acoitados na Trafaria, mandando incendiar a povoação e perseguir impiedosa-
mente os fugitivos. Com a queda do Marquês, D. Maria nomeou-o Intendente Geral da Polí-
cia. A forte personalidade do Intendente, apesar de subordinado a Ministros do Reino, levou
os Historiadores a destacarem a sua acção em dois campos que se afiguram contraditórios: o
da cruel repressão das ideias novas, liberais, e o do empenhamento tecnocrático na resolução
de gravíssimos problemas de atraso da vida colectiva, do primitivismo e da injustiça da vida
humana, da situação angustiante que constituía, afinal, a plena justificação dos anseios de idea-
listas sociais que impiedosamente combatia.
A violência nas cidades e nos campos era incontrolável pelos órgãos da Justiça e vinha
dos tempos de D. João V, com a abundância do ouro, não tendo o Marquês de Pombal conse-
guido dominar o império dos salteadores e assassinos. Para o Intendente o remédio era reforçar
as forças da Polícia, a pé e a cavalo, e dar no terreno combate vitorioso a todas as manifesta-

232
ções de ilegalidade. A luta do habitante pacífico contra o marginal violento, embora tivesse ge-
neralizado perigosamente o uso individual de armas, tinha a dificuldade de decorrer nas trevas
da noite em que ficavam mergulhadas as ruas e as vielas, bem com os ermos dos campos. O
Intendente introduziu em Lisboa a iluminação pública que começava a generalizar-se na Euro-
pa. Vencendo todas as oposições dos cépticos e dificuldades dos burocratas contemplando a
Cidade, em 1780, com 770 candeeiros. No seu plano seriam necessários 2100 candeeiros que
consumiriam 9600 cântaros de azeite, sendo indispensáveis 100 homens para garantirem o
funcionamento do novo serviço público. O Governo não entendeu o pioneirismo do Intendente
não o apoiando e, por falta de verba, Lisboa voltou a ficar às escuras, povoada de fantasmas e
de malfeitores.
Mau grado os esforços do Marquês, as estradas constituíam, por toda a parte, aventura
desmedida, trambulhando nelas as cavalgaduras e as liteiras. Pina Manique ligou Queluz à
Ajuda por meio de carreteira moderna onde circulavam caleches e coches os mais variados e
mandou arborizar com oliveiras muitas vias dos arrabaldes saloios de Lisboa.
A Tecnocracia de Pina Manique foi muito mais longe e chegou a abordar propósitos re-
formistas da agricultura. A decisão pombalina de supressão da escravatura na metrópole
provocou grande alarme no Alentejo onde se propagou a ideia de que seriam irremediáveis as
consequências da falta de trabalho escravo na agricultura. O Intendente assumiu a corajosa ati-
tude de defender a colonização do Sul, promovendo a instalação de populações que emigra-
vam para o Brasil e estrangeiro. Decidiu recrutar nas Ilhas dos Açores, viveiro de gente, 450
famílias, com a totalidade de 2033 colonos aos quais distribuiu terras em Setúbal, Ourique, Be-
ja, Évora e Portalegre.
Em 1781 o Intendente fundou a Casa Pia, aberta para acolher a infância e a juventude
abandonada que não tinha outra alternativa diferente da deambulação ociosa nas ruas. A men-
dicidade mereceu intervenções fundamentais, naturalmente baseadas no espírito da época,
perseguindo, a Polícia, os falsos mendigos que infestavam o País, juntamente com os bandos
de ciganos. Foi organizado o registo dos velhos, dos cegos, dos aleijados a quem era dada li-
cença para mendigar, sob atestado dos Párocos das Freguesias.
A prostituição difundia gravíssimas doenças venérias. Os sifilíticos morriam abandona-
dos ao fim dos piores sofrimentos, sendo a sua presença rejeitada pelas comunidades e veda-
do o acesso aos hospitais. Morriam na valeta das estradas. O Intendente fundou um hospital
especial que facultou protecção caridosa embora insuficiente para tão generalizado mal.
Muitas outras carências de saúde existiam e o Intendente criou a Polícia Sanitária que, nos por-
tos, procurava evitar a entrada de pestes. Foi assim prestigiada a acção do Físico-mor do Reino
e do Cirurgião-mor que vigiavam para que os regimentos de saúde fossem cumpridos.
Entretanto a Revolução Francesa progredia, e o esforço tecnocrático do Intendente não
alcançava atenuar os reflexos na difusão das novas ideias. Por isso colocava esbirros em todas
as esquinas, à escuta das diferentes formas de expressão das notícias volantes. Foi proibida a
circulação de livros «sediciosos», e presos, perseguidos e castigados todos os que se não con-
formavam com as misérias e injustiças reinantes, ficando obrigados numerosos intelectuais a
escolherem o exílio. Em 1803, o Regente D. João demitiu o Intendente a pedido — que seria
uma ordem — de Napoleão Bonaparte. Dois anos depois Pina Manique morreu «angustiado

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com remorsos», permanecendo dúvidas quanto ao significado histórico da sua figura e acção:
simples polícia cruel e obstinado, ou inovador tecnocrático vencido pelo primitivismo do am-
biente social que tornava as suas decisões e ideias, prematuras.

A lógica da formosa Rainha, em tempos tormentosos

Foi no rescaldo do sonho de grandeza pombalino que a Rainha D. Maria I fundou va-
liosas instituições culturais, de que a mais importante é a Academia Real das Ciências de Lis-
boa que abriu as suas portas aos «Imortais» em 1779. A fundação ficou a dever-se ao segundo
Duque de Lafões e ao Abade Correia da Serra. Com licença de Sua Alteza Real, o que signifi-
ca estar a Academia no uso do privilégio de isenção da censura inquisitorial, a nova Instituição
Científica publicou as Memórias Económicas para «adiantamento da Agricultura, das Artes e
da Indústria em Portugal e suas conquistas». Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria, as-
sim se inscreveu na primeira página das Memórias que contêm o «Racional Discurso sobre
Agricultura, e População da Província da Além-Tejo» da autoria de António Henriques da Sil-
veira. De entre outras Memórias cumpre assinalar as de Tomaz António de Villa-Nova Portu-
gal, sobre «Baldios» e «Juros das Terras».
Tendo em conta as necessidades de expansão do Ensino e a impossibilidade de Coim-
bra se auto-reformar. foi fundada a Academia Real da Marinha, a Aula Pública de Desenho e
a Academia Real de Fortificação e Desenho.
Em 1788 a Rainha sofreu duro golpe, ao ver morrer, vítima de varíola, D. José, Príncipe
herdeiro que representaria boa esperança para os partidários de ideias novas, uma vez que o
consideravam aberto às teorias francesas. No ano seguinte chegou à Corte a notícia da toma-
da da Bastilha, abrindo-se a expectativa apavorante da Revolução Francesa. Passado tempo,
Luís XVI e Maria Antonieta eram guilhotinados. Alastrou o Terror, instalado em França. D.
Maria de Portugal não resistiu a tanto e endoideceu. O Príncipe D. João tomou conta da Regên-
cia.

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29 — CULTURAS DE ELEVADO INTERESSE SOCIAL

A cultura da Vinha, do Arroz e do Castanheiro, de introdução muito antiga, nada têm a


ver com a "revolução agrária" provocada pelas Descobertas que revelaram novas plantas culti-
vadas nos Continentes alcançados pelas Navegações. Particularmente a Viticultura, que foi o
principal objecto da política pombalina, acusou acentuado acréscimo no período que estamos
referenciando.

A formação da estrutura agrária duriense

A economia agrária de subsistência apresenta-se necessariamente policultural na de-


pendência das condições ecológicas para tanto favoráveis. No Douro predominam encostas e
cumeadas montanhosas sendo raras as formações aluvionares, embora se apresentem fertilís-
simas no leito do grande Rio torrencial e seus afluentes. Antes de explorado o microclima ex-
cepcional da vocação vitivinícola, o povoamento das terras não teria sido denso. Embora se
não encontre globalmente estudada a dinâmica da formação das estruturas agrárias desta
região, que se revelaria privilegiada do ponto de vista económico para uma produção especí-
fica, parece legítimo admitir que a construção da região vitivinícola do Douro foi lenta na fase
inicial alcançando depois dimensão ciclópica. Nas encostas xistosas ou graníticas o solo onde
se procedia à plantação, de início em socalcos estreitos, era fabricado com rudes ferramentas
de pedreiros. As vinhas, mal servidas de acessos e de caminhos, obrigavam a transportar as
uvas, a dorso em grandes cestos, vendo-se, nas colheitas, filas de vindimadores subindo en-
costas com o penoso sacrifício de trabalho esforçado. No entanto a descoberta da vocação re-
gional não podia ter deixado de ser camponesa, logo estimulada pelos canais do comércio que
visitantes, provadores, organizavam, servindo-se do barco rabelo a navegar no Rio, transpor-
tando os vinhos até ao porto do mar onde era procurado pela sede conhecedora e insaciável
dos marinheiros. No entanto, o essencial das terras não se encontrava em mãos de camponeses,
mas apropriado em grande desde a presúria, pela Nobreza e Comunidades Monásticas. Atraí-
dos pela procura crescente, que aconselhava novas plantações. Senhorios de fora mandaram
construir estruturas produtivas que assumiram a configuração de «Quintas» dimensionadas em
função da capacidade gestionária, dos recursos disponíveis e dos meios de mobilização de tra-
balhadores. Também se apresentaria acrescida a procura de pequenas parcelas para aforamen-
to o que conduziu à partilha de alguns latifúndios. De qualquer modo, a cultura da vinha assu-
miu, no Douro, efeitos revolucionários, alterando-se o sistema agrário antigo, que passou da
subsistência à monocultura de trabalho intensivo e mal distribuído ao longo do ano, incompa-
tível com estruturas tipicamente camponesas. O estímulo comercial era desmedido, depois de
o Douro ter sido descoberto pelos ingleses. Calcula-se que em 1785 a produção de vinho fino
atingisse as 25 000 pipas, na região demarcada, cujo preço, depois de constituída a Compa-
nhia, variava entre 25 a 35 mil réis por pipa, enquanto os outros vinhos não passavam de 3 500
a 10 500 réis apenas. Não admira que nas encostas cobertas de matagais as «Quintas» tivessem

235
proliferado, por iniciativa dos Senhores da Terra, laicos e religiosos, que a vinculavam a múlti-
plos Morgadios ou plantavam bens da Igreja, proporcionando acelerado desenvolvimento re-
gional. Desde Barqueiros até ao Pinhão, encontrando nesta altura limite da navegabilidade do
Douro no Cachão da Valeira, as «Quintas» passaram a constituir o modelo da estrutura agrária
regional, diverso de outros quadros monoculturais, como o do milho, camponês, ou o que ha-
via de nascer com o trigo, latifundiário. As «Quintas» formavam património de aristocracia ru-
ral numerosa e empreendedora, pertencendo as maiores a grandes produtores residentes em pa-
lácios no Porto. Plantavam junto à Casa. sede da exploração, o cipreste que ficou a atestar a
antiguidade da instituição. Dificilmente se compreende o parecer de alguns Historiadores que
apresentam o Marquês de Pombal como inimigo da Nobreza. Quando legislou sobre Morga-
dios aboliu apenas os pequenos vínculos, com rendimento inferior a cem mil réis no Norte e
duzentos mil réis no Sul. fortalecendo assim a grande aristocracia e vibrando rude golpe nas
estruturas agrárias médias rurais, particularmente activas a nível regional. Também o sistema
de crédito praticado pela Companhia acabava por favorecer declaradamente os mais ricos, por-
que o montante dos empréstimos ficava relacionado com as quantidades de vinho produzidas.
Os comerciantes ingleses tinham opinião sobre situações estruturais afirmando que «os
produtores pobres, que são mais numerosos, não usam de artifícios e são os melhores fabri-
cantes de bons vinhos», enquanto «os donos das grandes adegas falsificam e adulteram os seus
vinhos». Importa, no entanto, ter em conta que esta preferência podia resultar também do fac-
to de os pequenos venderem mais barato do que os grandes.

Trabalho migratório no Douro

A tarefa ciclópica das plantações de vinha nas encostas do Douro e afluentes, as cavas,
as podas e as vindimas, não se realizaram nos tempos em que era possível mobilizar, em gran-
de, trabalho de escravos, no sentido efectivo que o termo encerra. Raros seriam os escravos
negros que povoaram ainda a vida doméstica das «Quintas», mandados vir de África. Mas não
se empenharam a construir socalcos ou a grangear as vinhas, cabendo a tareia a valorosos cam-
poneses para o efeito contratados. Mas o camponês local não podia sozinho suportar a gran-
deza da construção do monumento. Por isso, a revolução da vinha, atraiu trabalhadores mi-
grantes que, estacionalmente, vinham prestar concurso e arrecadar escasso prémio. Por meio
de contratos temporários, os camponeses baixavam em grupos capitaneados por manageiros,
sobre o Douro, das choças da Beira, de Trás-os-Montes e do Minho, dormindo a monte nos
cardenhos, sustentados a caldo magro de feijões, pão escasso, que a região não produzia cereal,
e sardinha, vinda de longe salgada, em barricas. O apelo de trabalhadores era tão forte na re-
gião que atraía importante contingente de Galegos, muito apreciados pela conformação de que
davam provas perante as condições mais duras. Verdadeiramente o trabalho rural investido na
construção do Douro, tem o valor de epopeia mais pesada do que a da instalação do regadio
do Milho, por ter acrescentado ao esforço das tarefas, o desgaste moral e psíquico da migração
humana. Quando, em Londres, o cálice de cristal, na mesa, exibia a cor topázio e o aroma de
cálidas primaveras, o Império Britânico não alcançava avaliar o verdadeiro custo do «vinho fi-
no», de que raros consumidores se encontram à altura de merecer.

236
O Arroz, suporte alimentar de meio mundo

O Arroz recebeu a classificação de Oryza sativa L... e teve seu berço no Sudoeste da
Ásia. Depois de propagado ao Oriente, alcançou a Ásia Menor cerca de 400 a.C. A sua ex-
pansão no Mediterrâneo deve-se aos Árabes que, sem dúvida, introduziram a cultura em Por-
tugal. No entanto a cultura encontrou efectivas dificuldades técnicas de instalação, influindo
também na propagação da endemia sezonática porque os alagamentos indispensáveis consen-
tiam a multiplicação do Anofelis, mosquito transmissor da doença.
Embora o Arroz não seja planta aquática, enraizando no solo, a sua vegetação exige
condições de alagamento que, sem artifício de rega, somente se alcançam em terrenos subme-
tidos a cheias ou a fortes e constantes precipitações atmosféricas conjugadas com altas tempe-
raturas necessárias para a vegetação da planta, o que se verifica nos climas tropicais. O Arroz
dito de sequeiro obtém-se onde as chuvas são regulares e abundantes durante a estação quente.
Também é referido o Arroz que, na aparência, é flutuante, uma vez que, enraizado no solo,
alonga o caule no decurso da cheia até à superfície em aluviões inundados, tombando depois
na maturação das panículas, quando o nível da cheia baixa até à secura.
Nas condições ecológicas mediterrânicas a cultura do Arroz somente é possível em zo-
nas apauladas pouco profundas, como as que vieram a formar-se pelo assoreamento de estuá-
rios como o do Vouga, ou recurso a caudais abundantes, o que nem sempre foi fácil ou praticá-
vel. Como no clima português as cheias coincidem com a estação invernal os pauis estivais
não são frequentes, pelo que o Arroz deparou com obstáculos de adaptação ecológica, exigin-
do técnicas de grande artificialismo.
Segundo o Agrónomo Viana e Silva, encontram-se referências à cultura em tempos de
D. Dinis apontadas por Frei Francisco Brandão na «Monarquia Lusitana», em 1650, a partir
de «escrituras autênticas» que referem a cultura de «frutos estrangeiros como o arroz». Mas
poderá presumir-se que, depois, até ao século XVIII. a cultura deixou de ser praticada, por mo-
tivos pouco esclarecidos em documentos escritos, mas que se poderão interpretar como decor-
rentes da dificuldade de implantação do regadio e da endemia sezonática, conforme se referiu.
O problema do abandono em que durante muito tempo se encontravam áreas onde o Ar-
roz acabou por estabelecer o seu solar, como o Sado e o Tejo, pode talvez entender-se ponde-
rando descrições do Agrónomo Paulo de Morais no «Inquérito agrícola — Estudo geral de
Economia Rural de 7.a Região Agronómica» de 1889. Referindo-se à bacia hidrográfica do Sa-
do, comenta:
«E necessário percorrer esta com os olhos de Agrónomo, para bem compreender quão
justificada é a fama que desde os tempos mais remotos sempre gozaram, pela sua admirável
fertilidade, as dilatadas campinas do Sado que, prolongando-se de Alcácer a S. Romão numa
largura média de 750 metros, medem milhares de hectares de superfície, formando lezírias
constantemente enriquecidas pelos nateiros que as cheias nelas depositam. Mas essa invasão
periódica das águas, se por um lado, correndo desordenadamente em todos os sentidos, nuns
sítios depositam nateiros fecundantes, noutros vão associar as melhores terras com aluviões es-
téreis, inutilizando-as de um momento para o outro. Tudo isto é procedido da falta de leito per-
manente para aquela importante via fluvial. Os afluentes principais do rio Sado, ribeiras de

237
Marateca, de S. Martinho e Santa Catarina, acham-se no mesmo caso. carecendo de igual re-
médio. E outro tanto se pode dizer de grande número de ribeiros tributários, daquelas, os quais
apresentam uma rede de pequenas bacias formadas pelos vales confluentes as grandes ribeiras,
e cujas veigas, medindo grande soma de hectares, poderiam na sua totalidade ser regadas não
só pelas águas das próprias ribeiras, como pelas das nascentes que brotam dos flancos das en-
costas, se não estivessem assoreadas ou convertidas em pauis miasmáticos».
Pela descrição, o Sado afigura-se um pequeno Nilo, todavia com problemas sérios de
abandono do seu leito e das ribeiras confluentes. Trata-se de um espaço onde a revolução do
Milho não entrou mercê da barreira oposta pelo latifundismo dominante e da insalubridade. O
mesmo Autor refere este problema:
«A insalubridade daquela importantíssima sub-região é proverbial em todo o País pelas
doenças endémicas que ali grassam e dizimam as populações, imprimindo aos sobreviventes
aquele aspecto anémico que impressiona dolorosamente a quem os observa».
Todavia não teria sido sempre assim, nem nos tempos de Salácia. cidade romana, nem
depois, quando Alcácer foi castelo de Abu Deniz, capitão árabe, e inspirou cronistas muçulma-
nos: «O território desta cidade é fértil e produz em abundância lacticínios, manteiga, mel e car-
ne».
Não oferece dúvida, no entanto, que no século XVIII o Sado era já ou ainda um vasto
deserto insalubre, por se encontrar entregue a latifúndios mal cuidados e, por isso, o Marquês
de Pombal promoveu em Santa Margarida um ensaio de colonização com pretos, que depois
se despigmentaram, dando origem aos «pretos brancos de Alcácer», tema tratado por antropó-
logos.
Mas o País contava ainda com outro pequeno Nilo, bem mais vasto do que o Sado. E
ainda o mesmo Autor que o descreve:
«O vale do Tejo, na sua região inferior, que de Tancos se prolonga até Lisboa com um
desenvolvimento de 130 quilómetros, adquire uma grande largura, formando vastíssimas capi-
nas mais ou menos férteis». E, depois «esses terrenos situados a diversas alturas sobre os ní-
veis das águas nas estiagens, estão todavia sujeitos a serem periodicamente submergidos pelas
cheias, que para eles constituem um grande dano segundo as circunstâncias, ora depositando
nateiros fecundantes, ora exercendo pela acção ruinosa das correntes grandes devastações na
faixa marginal. É este o papel principal e quase exclusivo que as águas de Tejo representam na
indústria rural do País que percorrem, pois que, para o fim de irrigação, apenas os rios e ribei-
ros tributários são parcialmente aproveitados».
As terras de Santarém, que teriam feito parte do celeiro do Império Romano, por se te-
rem mantido latifundiárias, somente muito tarde vieram oferecer à revolução do Milho, na Go-
legã por exemplo, as suas espantosas possibilidades, e mais tarde ainda, à expansão da cultura
do Arroz. O Vale do Tejo viria a celebrizar-se pela viticultura que alcança o milagre de conju-
gar as maiores produções com elevada graduação alcoólica dos vinhos, o que teria dado moti-
vo para que o Marquês de Pombal ordenasse o arranque das vinhas em terras de grande capa-
cidade de produção alimentar, Paulo de Morais descreve:
«É nesta porção do Vale, a juzante de Tancos, que estão situados os afamados campos
da Golegã, Torres Novas, Santarém, Valada, Azambuja, Vila Franca, Chamusca, Almeirim, Be-

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navente e Salvaterra, medindo o fundo do mesmo Vale, desde quatro a dezasseis quilómetros
de largura, e estando calculada a superfície dos campos, com os dos vales secundários, em cer-
ca de 60 000 hectares». Quanto aos afluentes «as ribeiras de Ulme, de Atela, de Mugem, os
rios Sorraia e Almasor e, na vertente direita, os rios Almonda, Asseca e o Alviela», escreve
«são as águas abundantes por toda a parte, emergindo quase sempre de pontos que facilitam a
irrigação; estão sujeitos como aqueles a cheias, que ora os fecundam, ora os esterelizam, pelos
enxurros que procedem das encostas e pela variabilidade do leito das ribeiras, desviadas im-
prudentemente sem ordem para diferentes culturas pelos proprietários marginais. As encostas
encontram-se regularmente vestidas de arvoredo; noutras o desnudamento é quase completo.
Da mesma sorte os pauis abundam na região inferior de quase todos aqueles confluentes do
Tejo».
Álvares da Silva, na sua «Memória Histórica sobre a Agricultura Portuguesa» de 1872,
afirma que nos reinados de D. Pedro II e de D. João V a cultura do Arroz se tinha perdido,
acrescentando ter ressurgido «recentemente». Mas o reaparecimento da cultura dá origem a
constantes atritos entre produtores e população. Esta mobiliza o apoio de autoridade em virtu-
de das culpas atribuídas à cultura do Arroz como causadora de doenças graves, de etiologia
desconhecida na época, mas empiricamente correlacionada com a expansão da cultura. São nu-
merosas as comissões de técnicos nomeados para o efeito de se pronunciarem sobre o proble-
ma. Assim, foram tomadas medidas administrativas que conduziram ao estabelecimento de en-
traves à instalação de arrozais nas proximidades de povoações. Estas medidas tendiam a dimi-
nuir a importância do anofelismo, isto é, da multiplicação do mosquito que veicula, com a sua
mordedura, quando infectado, a doença, mas não neutralizava o sezonismo que permanecia
acantonada nos doentes, mantendo o ciclo da propagação do mal.
A produção nacional apresentava o «arroz da terra», rajado do Vouga e do Mondego,
descascado em moinhos primitivos, com a pedra a rodar sobre a cortiça, como os da ribeira de
U1 que laboraram clandestinos, até muito recentemente nos tempos do condicionamento indus-
trial.
Antes que a produção nacional tentasse corresponder à procura interna, o Arroz era im-
portado do Oriente, passando a fazer parte do consumo alimentar especialmente das popula-
ções do Norte. A cultura foi introduzida no Brasil no século XVII. Progrediu e a Companhia
do Maranhão e do Pará iniciou a exportação para a Europa, em 1760, em competição com ex-
portadores de outras colónias americanas. Os portugueses passaram depois a cultura do Arroz
à África, muito recentemente no Limpopo, em Moçambique.

O Castanheiro, árvore alimentar e de madeira de qualidade

O Castanheiro, do Género castanea Mill, da família das Fagáceas, segundo refere o


Prof. M. Gomes Guerreiro no seu trabalho «Castanheiros», centros de origem na China Cen-
tral e Oriental, no Próximo Oriente e na América do Norte. Este Autor refere que se admite
«que a Península Ibérica teria sido refúgio do castanheiro» no Pleistoceno glaciar, sendo a
Castanea sativa espécie indígena no nosso território. Este Autor faz notar que «o castanheiro
acompanhou muito de perto, durante os períodos geológicos, a distribuição dos carvalhos, em

239
especial o Quercus Pyrenaica e o Q. Robur» tendo, no entanto, «dificuldade em concorrer»
com estas espécies que o dominavam.
É de admitir que somente a acção humana veio libertar o castanheiro desta concorrên-
cia, através do estabelecimento da sua cultura, ao ser reconhecido o valor alimentar do fruto,
que se destacava nitidamente das bolotas dos Quercus. Foi assim que soutos de fruto alimen-
tar e, mais tarde, os castinçais para produção de varas para fabrico de cestos e de madeira de
boa qualidade para tanoaria, marcenaria e construção, se generalizaram, especialmente nas
manchas de melhor aptidão ecológica situadas a Norte do Tejo, nas Beiras, no Minho e espe-
cialmente em Trás-os-Montes.
As primeiras implantações de soutos teriam sido promovidas por romanos, talvez tam-
bém com sementes trazidas de outros espaços mediterrânicos pelo que são considerados intro-
dutores da cultura. Os romanos ocuparam assim áreas onde destruíram a floresta que se opunha
à implantação do seu sistema agrário intensivo. Depois, e especialmente ao longo de toda a
Idade Média, os soutos passaram a constituir, nas regiões do Norte, de ecologia apropriada, va-
liosíssima fonte de produção alimentar e. os castinçais, o apoio de progressivas indústrias e da
mais esmerada construção.
A castanha passou a alimento básico nas regiões para tanto favorecidas. Assada em fres-
co, no carvão ou na fogueira, ou cozida com tempero de erva doce, tem feito o regalo de mui-
tos camponeses, defendendo-os contra a fome, em duríssimos invernos em que os cereais es-
casseavam. Tem servido também para requintes de doçaria, e permitiu inventar refeições no
campo, como o magusto, especialmente no S. Martinho, regado com vinho novo ou água-pé.
Também conservada, seca ou pilada, enriquecia a sopa. Continua a ser matéria-prima de varia-
dos pratos regionais. Como alimento de animais, dá origem a produtos particularmente sabo-
rosos, como o presunto. A castanha não ficou confinada ao ambiente rural, e desceu à cidade,
em carrinhos de mão onde vendedores a preparam assada — «quentes e boas» — segundo pre-
gão de há muito consagrado, tanto nos bairros populares, como nas praças e quarteirões mais
civilizados.
A madeira de castanho serviu para fabrico dos móveis mais antigos e, com a de carva-
lho, permitiu preparar travejamentos e soalhos duradouros. Veio a ser suplantada, depois dos
descobrimentos, por madeiras de alta qualidade, provindas de territórios tropicais ultramari-
nos. Gomes Guerreiro acentua que «a relação entre o culto desta espécie e o homem é tão aper-
tada que, geralmente, o castanheiro rodeia os núcleos populacionais, e a tal ponto que, na Ter-
ra Fria transmontana, o aparecimento do souto indica-nos a imediata proximidade de uma al-
deia».
Em virtude da doença da tinta que, no século passado, alcançou grande incidência, o
País ficou reduzido a 70 000 hectares de cultura do castanheiro, quando dispõe de condições
ecológicas próprias para assegurar a exploração de 250 000 hectares desta utilíssima planta
agrícola e do prado pastoreado, a separar o que se convencionou a ser floresta actual, pronta a
arder quando as labaredas se alimentam do pinhal e do eucaliptal extremes e combustíveis.

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30 — AS INVASÕES FRANCESAS

Com o termo da prosperidade francesa, baseada no crescimento industrial do século


XVII, que entrou em ruína por motivos concorrenciais no comércio e pela falta de algodão re-
sultante das guerras da independência americana, coincidindo com a escassa produção agríco-
la consequente de temíveis acidentes climáticos, a multidão de operários sem emprego formou
maré humana em fúria, juntamente com camponeses sobrecarregados de tributos feudais, na
miséria. Os políticos tentaram o restabelecimento de Estados Gerais, que se transformaram em
Assembleia Nacional e, depois. Constituinte. Mas a Revolução estava na rua e nos campos, e
a multidão tomou de assalto a Bastilha, chacinando guardas e libertando prisioneiros. O terri-
tório e o povo, hoje português, iria sofrer de novo, depois dos quatros séculos de ocupação de
Roma, das antigas migrações germânicas que foram sangue novo, depois do acidente de qui-
nhentos anos de invasão islâmica, o renovado confronto com a Europa, agora vitorioso, mas
particularmente sangrento.

A Revolução Francesa

Com a desilusão quanto à possibilidade de implantar em França, abalada pelo impul-


so revolucionário de 1789, um parlamentarismo monárquico, semelhante ao que fora elabo-
rado em Inglaterra, o Terror mobilizava a hostilidade dos Reinos europeus. Efectivamente, a
França não alcançou produzir estatuto político semelhante ao da Constituição que, historica-
mente, imortalizou a independência americana, na impecável definição dos poderes do Esta-
do, nem elaborou uma Democracia original como a Britânica. A Junta de Salvação Pública
deu lugar a Câmaras Legislativas onde múltiplos interesses se degladiaram e o Directório
executivo, enfrentando a agressividade militar de toda a Europa, acabou por entregar ao Ge-
neral Bonaparte, com vinte e seis anos de idade, o Comando em Chefe do Exército. De posse
desse Comando, o General enfrentou todas as coligações, impondo a paz com a Espanha, a
Prússia, a Holanda, o Piemonte e a Áustria. O General, muito embora contando com a oposi-
ção obstinada e permanente da Inglaterra, fez-se coroar Imperador apoderando-se da Revolu-
ção Francesa que transformou em bandeira dos seus exércitos. Em face da emergência, Por-
tugal tentava a neutralidade mau grado os gravíssimos comprometimentos na infeliz cam-
panha de Roussillon, ao lado dos Espanhóis. Assim, os Camponeses de Portugal teriam de en-
frentar invasão diversa das que constituíram a fatalidade da vizinhança ibérica o que nunca
sucedera ao longo de 700 anos de autonomia vitoriosa. Tinha que ser duríssimo o sofrimen-
to dos que suportavam a passagem e a permanência, até ao momento da expulsão, de crudelís-
simos exércitos de Napoleão Bonaparte, que teria sonhado uma "Europa Unida". Antes, Es-
panhóis invadiram os nossos Campos. Raúl Brandão, em "El-Rei Junot" comenta: "Olivença
rende-se aos primeiros tiros e o Governador prega aos soldados: não façais mal ao inimigo!
Tropas fechadas no quartel de Arronches, deixam os espanhóis à solta. Os campónios matam
alguns a fueiro".

241
A revolta dos escravos negros de S. Domingos

Aconteceu que a Assembleia nascida da Revolução Francesa recusou aos homens de cor
da colónia de S. Domingos os mesmos direitos que reclamava para a plebe francesa. Lamar-
tine, na sua História dos Girondinos, relata que Ogé, deputado enviado a Paris pelos negros,
depois de alcançar adesões de anti-esclavagistas franceses e ingleses, acabou por ser persegui-
do e condenado à morte, invocando, antes de morrer, a Uberdade e a Igualdade, sendo roda-
do, ficando o seu corpo mutilado ao abandono na margem de um caminho. A vingança dos ne-
gros foi terrível: «em uma só noite sessenta mil escravos, armados com archotes e com ferra-
mentas de trabalho, incendiaram todas as habitações dos seus senhores numa circunferência de
seis léguas em torno do Cabo. Os brancos são assassinados. Mulheres, crianças, velhos, nada
escapa à fúria por muito tempo reprimida dos negros. É o aniquilamento de uma raça por outra.
As cabeças ensaguentadas dos brancos, espetadas em canas de açúcar, são s bandeira que con-
duz essas hordas, não ao combate mas à carnificina. Os ultrajes de tantos séculos, cometidos
pelos brancos sobre os negros, são vingados numa noite». A revolta de escravos negros em S.
Domingos, não teve reflexos imediatos no Brasil.

Envolvimento em lutas europeias

Um dos mais complexos períodos da História de Portugal caracteriza o reinado de D.


Maria I, interrompido pelo seu enlouquecimento que deu lugar à regência do Príncipe D. João,
decidida autoritariamente, sem qualquer consulta às Cortes tradicionais de há muito não con-
vocadas. A agricultura acertava os seus passos no esforço de autosuficiência e o mundo rural
sofria as consequências de campanhas ou de guerras frequentes que a diplomacia não evitava,
no acerto ou desacerto da política portuguesa em face das lutas em que intervinham a Inglater-
ra e a Espanha, perante a França envolvida em trágico processo revolucionário. Vacilando en-
tre as atitudes de neutralidade e de sujeição a fortíssimas pressões inglesas, resultantes da velha
aliança, e as ameaças de espanhóis e de franceses, Portugal não lograva afastar o risco de en-
volvimento na guerra que se aproximava, impiedosamente.
Nesta época, a sociedade portuguesa viveu situações originais ou significativas que cor-
responderam ao ajustamento do despotismo ao fortíssimo impulso revolucionário do liberalis-
mo vitorioso, como consequência da independência da América, da Revolução Francesa e das
primeiras revoltas de negros escravizados. A Polícia de Pina Manique e a Inquisição por ele
manobrada, perseguiam impiedosamente as reuniões de intelectuais nas tabernas e os que se
apresentavam com «laços e luvas suspeitos» ou que se destacavam nas artes, nas letras e na
actividade científica. Figuras com Jácome Raton, eram permanentemente vigiadas, Filinto Elí-
sio foi desterrado, Felix de Avelar Brotero obrigado a emigrar, José Correia da Serra, abando-
nou Portugal, Manuel Maria Barbosa du Bocage, perseguido, valeu-lhe as grandes protecções
que a sua forte personalidade despertava.
No entanto, o fermento explosivo das novas ideias fomentava a dedicação a actividades
científicas que, não oferece dúvida, a Rainha apoiou enquanto foi lúcida. José Bonifácio de
Andrade e Silva constitui exemplo de cientista diplomado por Coimbra em Filosofia Natural

242
no ano de 1787, que estudou também no Brasil. Sócio da Real Academia das Ciências percor-
reu diversos países europeus frequentando os principais centros universitários. Foi Mestre em
Coimbra e com as invasões francesas comandou o Corpo Académico constituído para lutar
contra os invasores. Depois de 1819 voltou ao Brasil, vindo a tomar parte activa nas lutas pela
independência, sendo o mais destacado dos fundadores do novo País. Morreu com avançada
idade no retiro da Ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara.

A Corte transferida para o Brasil

Os ingleses aconselharam o Regente português a deslocar-se com a Côrte para o Brasil.


Depois de longas vacilações, o Regente decidiu dirigir ao seu Povo a proclamação em que afir-
mava partir para o Brasil com o fim de evitar ser preso pelos franceses, recomendando que o
exército francês fosse recebido como amigo e nomeando a regência que, em seu nome, gover-
naria o Reino. Tal recomendação sintetizava o parecer de políticos responsáveis que haviam
debatido a atitude a tomar. O Marquês de Pombal, o de Angeja e o de Belas defendiam a decla-
ração de guerra à Inglaterra obedecendo às exigências dos franceses. Somente D. Rodrigo de
Sousa Coutinho propunha, em 21 de Agosto de 1807, que se preparasse o exército para a resis-
tência, cobrindo a retirada possível para outros espaços territoriais portugueses. Com a aproxi-
mação de Junot gerou-se o pânico e o Cardeal Patriarca de Lisboa proclamava: «Não temeis,
amados filhos, vivei seguros em vossas casas e fora delas; lembrai-vos que este exército é de
sua magestade o Imperador dos franceses e Rei de Itália, Napoleão o Grande, que Deus tem
destinado para amparar e proteger a religião e fazer a felicidade dos povos».

O exército de Junot em movimento

Firmado o tratado de Fontainebleu em 1807, a França e a Espanha declararam guerra a


Portugal, que se encontrava mergulhado em neutralidade que atraiçoava a aliança inglesa, co-
mo não defendia do risco da agressão francesa. Os ingleses, a coberto do propósito de garanti-
rem o domínio dos mares, procederam à ocupação da Ilha da Madeira, onde Beresford faria a
primeira instalação do Governo militar britânico em território português. Semelhantes tentati-
vas de ocupação inglesa, ameaçavam os redutos dos territórios portugueses no Oriente, em
Goa e Macau.
Entretanto a esquadra portuguesa do Marquês de Nisa movimentava-se no Mediterrâ-
neo, na esteira da esquadra de Lord Nelson, vitoriosa em Abuquir. Assim, Napoleão entregou
a Junot o comando do Exército de Gironda, de 26 (XX) homens, que em 18 de Outubro de 1808
entrou em Espanha, país amigo e aliado da França, a caminho de Portugal.
Quando Junot transpôs a fronteira portuguesa, somente se lhe opunha a Inglaterra. Para
avaliar esse momento seguiremos Raul Brandão no seu «El-Rei Junot»; «Após a paz de Tilsitt,
só um inimigo resta na frente de Napoleão, a Grã-Bretanha. Para bem compreender a Inglater-
ra é necessário ir vê-la ancorada no oceano, nevoenta e profética, com negros de chapéu alto
a pregar e ao lado tesouros de assombro — quase ridícula e temerosa, negra de fumo e de car-
vão, e capaz de gerar Shakespeare. Mixórdia e contraste: os seus profetas são práticos, os seus

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poetas são os maiores do mundo, os mais deliciosos do mundo... com uma história crua e posi-
tiva... há que tempos que a cisma de sugeitar o mundo a trás sobressaltada e não descansa, não
pode...».
No entanto, antes da Revolução Francesa e da invasão napoleónica, já em Portugal se
vivia profunda inquietação dos espíritos. O Autor citado afirma:
«Não há, porém, peste que se pegue como as ideias... É difícil seguir a infiltração da
liberdade, veio subterrâneo que forceja, através de obstáculos desmedidos e através dos sécu-
los, por romper para a luz. Lê-se muito. Lafões rodeia-se dos espíritos mais esclarecidos dos
seu tempo, e o general Foy afirma que as ideias democráticas fermentam nas classes abastadas
do país».
Mas o percurso das ideias, mesmo das mais valorosas, afigura-se, por vezes, calvário
trágico e grotesco:
«Vêem-se os homens hábeis e polidos na culminância do poder, os artigos discutidos
parágrafo a parágrafo, as conferências, os aposentos solenes, a mesa hirta com os papéis e o
tinteiro em cima — mesuras, relatórios, fardas — não se vê o oiro que corre de bolso para bol-
so, nem a vida secreta... E esta história seca, a dos interesses e dos vícios, é a verdadeira his-
tória dos últimos anos, nervosa, descarnada — diabólica. O exterior é pouco: é necessário aten-
der aos vícios e às paixões. Por trás do pano aparatoso, com o arranjo que cada um lhe desenha
até com sinceridade não cessa o ruído irresistível do dinheiro. Esta gente de negócio, diploma-
tas e traficantes do século XVIII, é materialista e céptica. Acresce a isto que o espectáculo do
mundo é soberbo: um inferno de ideias, de discussões, de filosofias — a revolução — e por
fim, o clarão do incêndio, a guerra, os gritos, os troncos escacados, a Europa a saque, o Bona-
parte de tricorne na cabeça, impondo leis... No fundo, nos recantos obscuros, o oiro corre e ti-
linta. Vende-se — vende-se tudo pelo gozo, pelo oiro, pelas fardas.»
E enquanto, desde a fronteira, nos campos, os rústicos se escondem nas pregas do terre-
no, chorando lágrimas de raiva ao ver passar o exército invasor, em Lisboa decorre o momen-
to histórico que Raul Brandão descreve vigorosamente:
«A 27 embarca-se. E um carvão feito a traços de desespero. Era preciso o lápis de Se-
queira para fixar: 1.° a multidão obscura, a multidão anónima, submissa por séculos e séculos
de ignorância, e no entanto meu Deus! colérica; 2.° as figuras que vão passando, já despidas
de prestígio e pompa, reis, ministros, personagens vexadas; 3.° grupos de fidalgos, de frades,
de damas vaporosas com cólicas de medo; e por fim o redemoinho, os gritos, as sejes, os cai-
xões, a balbúrdia, a tragédia mixórdia. Há um momento confuso, em que de escantilhão aos
encontrões, para chegar mais depressa, correm todos para bordo: corte, ministros e lacaios; há
um momento em que o povo se atreve e cospe-lhes injúrias... Devagar! Devagar!... Do céu
de chumbo todo o dia, toda a noite anterior, a água desabara a cântaros. Manhã, numa interrup-
ção momentânea, vê-se um pedaço de céu, alguns jorros de luz, e logo crescem da barra crepes
sobre crespes de nuvens. Está frio, e vem surgindo da noite a multidão silenciosa, os grupos
esfarrapados e hostis. Primeira claridade ainda dúbia — lama e uma mescla de baús, de cacos
desconexos, as últimas coisas arrancadas à pressa das casas e do País — a prata da Patriarcal,
os quadros de Rubens, de Murillo, de Van Dyck, os móveis frágeis, levados de mistura com
restos de cortinas de damascos e bambínelas rasgadas... Sobre isto ânsia. O povo espera: asso-

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mam das ruas, por entre as trouxas abandonadas, bandos suspeitos. Correm ajoujadas as pre-
tas e os criados, numa confusão medrosa. A lama recomeça a tombar de um céu pegajoso e
baixo. As damas com moscas e o vestido a rasto, abraçam cofres, bagatelas, fardos. E a multi-
dão olha-as com cólera represa. Há-os que choram, há-os que se não contêm e se surpreendem
a falar alto e a vomitar sarcasmos. O ministro Araújo passa: assobiam-no. E um momento, um
segundo, a onda oscila, a onda sobe, a maré salpica as fardas, e vai talvez num repelão despe-
daçar e afundar na lama os caixotes, as seges, a corte, os fidalgos. Tudo se enovela sob a água
que desaba do céu. Gritos. Tropeçam nas arcas de pregaria amarela, empurram e amarfanham
os grupos mais próximos, mas ei-los logo num recuo, prostrados, avassalados, submissos...
Tem medo o ministro que só embarca de noite a ocultas.
Surge a primeira figura. E o Príncipe Regente: acompanha-o o infante D. Carlos. E a
multidão, ao ver esse homem feio, gordo e apático descer estonteado da carruagem, precipita-
-se sobre ele como se quisesse arrancá-lo, levá-lo, impedi-lo de fugir. Rodeiam-no num ímpeto
e hesitam. Ainda — e talvez de propósito... — o conde de Novion não tinha tropa no largo: o
rei e povo acham-se frente a frente, sós, sem ministros, sem baionetas e sem corte. Desatam
ambos a chorar — desatam ambos a chorar! Ele faz um sinal com a mão, arredam-se. Dois sol-
dados lançam pranchas sobre o atoleiro. Ao lado está um montão de madeira e sobre esse trono
improvisado, dá-lhes a mão a beijar: a beiça aumenta-lhe, correm-lhe num trémulo as lágrimas
em fio. Em volta a canalha vocifera. Aperta as mãos que se lhe estendem: Adeus! Adeus! —
Levam-no dois polícias em braços e consegue saltar na galera. A artilharia troa e o clamor
imenso responde-lhe. — Adeus! Adeus! — Nove horas da manhã.»
Os camponeses que certamente se não tinham apercebido da Revolução Francesa aca-
baram por sofrer o seu primeiro e trágico contacto com a invasão napoleónica. Uma geração
rural que conservaria memória de guerras com os espanhóis, cultivando ódios de vizinhança,
receios e despresos recalcados, assistiu, atónita e inquieta, à livre entrada de um exército de
franceses famintos, descalços e esfarrapados, que fora conduzido por Junot, em marchas for-
çadas, através da Espanha, ainda aliada, com vista a surpreender o Rei de Portugal que, entre-
tanto foi visto das praias de Lisboa, já embarcado, rumo ao Brasil.
Enquanto os camponeses pagavam as custas da rapina do exército esfomeado, muitos
portugueses «afrancesados» saudavam e aplaudiam Junot como representante de Napoleão
Bonaparte, senhor da Europa. Nem o povo entendia o que significava a política inglesa que as-
sim abandonava um território aliado dando, no entanto, escolta naval ao Rei, na Atlântico.

A revolta popular contra Junot

Em breve o País mostrou que se não conformava com a dominação estrangeira, inician-
do a revolta popular no Norte que alastrou depois a todo o território. A presença da esquadra
inglesa ao largo, passa a ser constantemente assinalada e estimula a sublevação. Estabelecem-
-se contactos e há notícia de desembarques nas Berlengas e no Bugio. Em Espanha explodiu a
luta contra a ocupação francesa. Em Portugal o ambiente encontra-se carregado e mantinha
fortes raízes rurais que Raul Brandão fixou, com grande rigor:
«Escuta... A noite, nas aldeias (onde vires terra revolvida aí está o homem), à noite jun-

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ta-se ao lume, rezando o terço, a família do cavador. É uma figura séria, de mãos como pedras,
sujo de terra: baixinho a fêmea, que tira o pão da boca para o dar aos filhos, a fêmea encardi-
da, que só vive de dor, diz-lhe: — Trespassaram com espadas o coração da Virgem! — Enegre-
ce o fumo da choça... Do púlpito abaixo, num rodilhão, com sarcasmo — e uma paixão tão
funda que todos morrem por ela — o frade revolve a massa obscura, cheirando a terra e ino-
cente como a terra: — Mata! Mata! morte aos judeus! Morte aos jacobinos! E sacode-os a to-
dos o mesmo ódio quando, estendendo o braço, vocifera: — Calcaram aos pés as sagradas par-
tículas!
É um frade, alto. descarnado, calvo, só osso e cólera. Os gestos são imperiosos e o pe-
queno crucifixo de metal di-lo-eis enorme: pesa-lhe arrobas sobre o peito.
A figura nodosa apronta-se para a morte. Na terra coube-lhe a terra, que o gasta e cor-
rói e lhe dá em troca a fome. Dá-lhe também o amor. Bronco, cascoso e sujo, com a mulher ao
lado, ei-lo prestes... A religião é uma grande verdade de instinto e por isso ele a defende. Im-
porta-lhe a terra que se apoderou de todo o seu ser, importa-lhe sobretudo o céu. Ouçam: cur-
tiu fome; a mulher pariu-lhe entre lages, seus olhos não se despegam do buraco negro do alto.
É um idealista grosseiro e crédulo. E quanto mais sofrimento melhor, quanto mais fome me-
lhor. A desgraça imprime-lhe para sempre as dedadas, sai-lhe das mãos descarnado. Melhor:
mais alma, mais entranhado no sonho. Todo ele vive da única realidade que lhe deixaram. E
um idealista feroz. Sofre, e a terra, só braveza e secura, onde se cria a água, criou-o também à
sua semelhança e apoderou-se de todo o seu ser. E impossível separá-los. Avança aos urros pa-
ra a morte pela mão do frade. Agarra no chuço e põe-se a caminho. Defende a tua terra, defen-
de a tua alma. Eis a única guerra que se admite, que se tolera e se compreende. Defende a tua
alma a tiro. Chacina. Não perdoes aos que se atrevam a calcá-la. Fá-los recuar mesmo que se-
ja de espanto: o resto são regras, preceitos de velhos filósofos sem pêlo na cabeça nem sangue
no coração. Morre e mata mas mata, mata!
O que reage não são os interesses; os interesses acomodam-se. A gente rica é cálculo: a
vida não lhe é indiferente. O outro nem sequer hesita... Por uma ficção? Não, por uma profun-
da realidade, pela única vida com que conta, pela vida futura. O que protesta é o espírito con-
tra a matéria. Vem aí o materialismo que Napoleão encara, e o que nos resta é lama. Acomo-
da-se. Para deparar com energias capazes de reagir, foi preciso ir buscá-las onde se encontram:
ao povo e à desgraça, porque só a desgraça conserva intacta a fonte capaz de todos os heroís-
mos... E foi assim que, primeiro a fé e depois a dor, nos conseguiram salvar.
Junot ordenou expedições punitivas nas áreas sublevadas das quais as mais sanguinárias
tornaram célebres, no conhecimento popular, os nomes dos generais Loison e Margaron, na
Régua, em Leiria, em Beja e em Évora, onde a repressão foi particularmente feroz. No exérci-
to napoleónico «avançam homens de todos os cantos da terra, mescla de inferno, que o grande
imperador, como um mágico, fizera surgir dos bas-fonds da Europa. Desencadeara todas as
paixões. Uns vêm para roubar, outros para matar». E assim, caindo sobre populações indefe-
sas «negros de fumo, ébrios, irrompem pelas casas dentro, no auge do prazer, sentindo o que
tem séculos e séculos, o que parecia morto e recalcado para sempre, outra vez vivo, outra vez
rasgando, uivando, dilacerando. Explêndidos minutos de existência, que nunca mais se esque-
cem! É a desforra dos mortos, do pó disperso, dos afundados num passado de milhares de anos,

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que podem viver um minuto, um só, com exaltação e ferocidade».
Foi particularmente trágico o período de revolta popular inoperante que precedeu o mo-
mento em que os ingleses consideraram, na sua estratégia, ter chegado a altura do desembar-
que em Portugal. Com a esquadra inglesa a rondar o litoral, transportando tropas que somente
se aventuravam desde que ficasse assegurado o reembarque se as coisas corressem mal, o País
passou a ser um dos palcos da luta irredutível entre franceses e ingleses. Num esforço arrisca-
do o Povo reunia as armas desembarcadas pelos ingleses. O Bispo do Porto, corajosamente,
proclamou: «Às armas, Portugueses, para nos Libertarmos de uns ímpios, de uns Facinorosos,
de uns Roubadores que a título de Protecção vêm arrancar as nossas Vidas, e os nossos Bens».
O General Bernardim Freire reuniu em Coimbra 6000 homens equipados com «vara-
paus e fouces». Os ingleses forneceram-lhes 5000 espingardas. Com desembarque britânico as
batalhas da Roliça e do Vimieiro, conduziram à capitulação de Junot que negociou em Sintra,
com Wellington vitorioso, a trégua que o Povo português nunca havia de entender. Apesar da
vitória britânica que no terreno os portugueses haviam preparado com a sua rebelião alastra-
da, Junot obteve dos ingleses, contra o protesto dos Generais portugueses e o espanto popular,
todas as honras e garantias de transporte naval para França de 25 000 homens e de toda a pilha-
gem que os soldados praticaram nos campos e nas cidades. Em breve estes vencidos haveriam
de voltar.

As invasões frustradas de Soult e de Massena

Em face da derrota francesa em Portugal e em Espanha, Napoleão enviou mais de


200.000 homens «das melhores tropas do mundo» na época, contra os insurrectos peninsulares
que haviam facilitado a presença inglesa na Península. A Espanha foi impiedosamente esmaga-
da acabando, Soult, por obrigar, na Corunha, os ingleses a embarcarem, deixando morto no
campo de batalha o General Moore.
Em 1809 o exército francês, depois de tentar atravessar o rio Minho frente a Caminha
e a Valença, no que foi mal sucedido graças à resistência local heróica, transpôs a fronteira de
Chaves onde encontrou as forças do General Silveira sublevadas contra os comandos, de mis-
tura com a revolta popular. Os camponeses fanáticos eram lançados na confusão do ódio a
«franceses» e a portugueses «jacobinos», particularmente quando eram Generais de um exérci-
to que não expulsava o inimigo ou Juízes de Fora que não garantiam a ordem, tudo rotulado
de «traidores» imolados selvaticamente à ira popular, instintiva ou anárquica. Silveira, com
restos de tropa mais disciplinada, procurou refúgio nas montanhas nordestinas e os franceses
avançaram sobre Braga deparando com a mais espantosa anarquia que se propagou ao exérci-
to, culminando com o assassínio do valoroso General Bernardim Freire e de oficiais identifica-
dos como traidores somente por aconselharem retiradas estratégicas de defesa contra um exér-
cito invasor organizado. No entanto a dolorosa tragédia de Braga, não deixou de alcançar seus
efeitos. Afigura-se-nos impressionante o depoimento de um oficial francês, registado por Luz
Soriano na sua «História da Guerra Civil»:
«Depois de ter passado o ribeiro que do lado de Chaves forma a separação dos dois rei-
nos, notamos uma sensível diferença de vantagem para Portugal. Neste País vêem-se casas de

247
campo isoladas: nas choupanas acha-se faiança inglesa, chícaras de porcelana do Japão e chá
verde. Nas casas dos particulares abastados um grande luxo de porcelana, móveis de acajú, de
ébano e das mais belas madeiras do Brasil, e sobretudo, coisa que raras vezes vimos entre os
espanhóis, bibliotecas compostas das melhores obras francesas. Nos combates notou-se uma
coragem extraordinária que nos fez lembrar o carácter altivo e valoroso destes portugueses que
debaixo do mando dos Gamas, Albuquerques. Castros, Ataídes e Sousas, chegaram a subme-
ter as grandes índias, pelos rasgos de heroísmo, que rivalizam com os mais célebres que a his-
tória antiga nos tem conservado. Antes da nossa vitória de Lanhoso, Braga apresentava-se à
nossa imaginação abastecida de tudo quanto se precisava para o exército. Mas qual não foi a
nossa dolorosa surpresa quando, entrando nela, a achámos deserta! Vinte mil pessoas tinham
abandonado em três dias uma cidade que parecia encerrar todas as comodidades da vida! Que
ódio contra a dominação estrangeira! E que funesto presságio para o desfecho desta nossa ex-
pedição!»
Depois os franceses ocuparam Braga abandonada pela população em fúria, marcharam
sobre o Porto que, em completa desordem, não organizou qualquer defesa eficaz, acabando por
se entregar, depois da tragédia da ponte das barcas. Mas toi justamente no Norte onde mais ce-
do eclodira a revolta contra Junot, que Soult, Duque da Dalmacia, tentou ensaiar, com seu tac-
to diplomático que teria conquistado algumas simpatias de portugueses desejosos de ordem, o
seu sonho de implantação de um novo Reino napoleónico. Em breve tal sonho ficou frustrado
quando o General Silveira desceu das montanhas de seu refúgio, caindo sobre Chaves e apri-
sionando a guarnição francesa. A reacção do invasor deu origem a lutas heróicas na ponte de
Amarante que teriam neutralizado o avanço de Soult em direcção a Lisboa, passando o cami-
nho do Sul a ser bloqueado por Beresford que logo avançou sobre Coimbra, donde pressionou
os franceses obrigando-os a abandonar o Porto. E assim o exército de Soult retira, flagelado
em operações de guerrilha nos seus flancos e retaguarda, incapaz de consentir batalha frontal
o que mostra o desastre que sofreram forças habituadas a vencer em memoráveis batalhas onde
foi jogada a sorte de Impérios e de Velhos Reinos europeus. O que foi certo, porém, é que o
mundo rural português, durante a ocupação francesa, participou nas tragédias da luta civil con-
tra o ocupante, sofrendo violências sem par e fuzilamentos de retaliação que permitem a qual-
quer exército instalado dominar episodicamente pelo terror.
Neutralizada a invasão de Soult, inicia-se a reorganização do exército português e a
construção das «linhas de Torres Vedras». Mas a tentativa francesa renova-se em 1810 sob o
comando de Massena para encontrar a derrota no Buçaco, perante um exército luso-britânico
organizado por Wellington.
Mas a vitória militar portuguesa não atenuou sequer o sofrimento dos camponeses.
Quem contemplar o monumento que assinala a «vitória do Buçaco» não deve esquecer o que
ficou contado pelo Conde de Ficalho em «A caçada do Malhadeiro»:
«Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem foi: mas depois,
quando iam na retirada...»

«Aí vêm... aí vêm!


E vinham. Aquilo sorte é que se tinham desviado da estrada, perderam-se e vieram a

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corta mato, direitos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito.»

«A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana muito branca, muito enfiada, veio cá fo-
ra desatar o pai. Ele não falava, e, quando a Mariana me desatou, disse-me só:
— As espingardas.»

Numa volta do vale. ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia adiante, abriu os braços e
caiu de bruços. Os outros passaram; eu apontei bem um, dei ao dedo, e ele caiu redondo.»
«Era quase à queima roupa; caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que res-
tavam ficaram direitos, encostados uns aos outros... Quando atirámos, eu precipitei-me e er-
rei; mas o pai não errou... nem errava! Os três perderam a coragem e fugiram para o mato. Era
já escuro, perdemo-los.»

«Seria meio dia quando os vimos lá muito em baixo, nos areais da ribeira. Tinham ido
à água. Dali a duas horas estavam mortos todos três.
Quando voltámos para a malhada, já os grifos andavam no ar às voltas, às voltas, por
cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.
Meu pai ao entrar em casa não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito tempo
abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha sucedido.»

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31 — DO AUXÍLIO BRITÂNICO À REVOLUÇÃO LIBERAL

Com a retirada, na fronteira portuguesa, dos últimos soldados franceses derrotados, a


História de Portugal ensombra-se no Continente, perante o vulto dos acontecimentos processa-
dos no Brasil. Com a Rainha enferma, o Príncipe Regente D. João, acompanhou na América
do Sul, na mais vasta das parcelas territoriais portuguesas, os últimos momentos da era colo-
nial. Governou localmente população mais numerosa do que os três milhões de almas do Con-
tinente. Segundo Balbi, o Brasil contava nessa altura 3.617.900 habitantes, dos quais 843.000
brancos, 259.400 índios de todas as castas, 426.0(X) mestiços livres, 202.000 cativos e
1.728.000 escravos. O Governo do Príncipe assumia, assim, perspectiva histórica particular-
mente decisiva. Com a abertura dos portos brasileiros ao comércio de todo o mundo, seria ar-
riscado o retorno da Corte ao Continente europeu, arruinado pelo saque dos franceses e ocupa-
do militarmente pelos ingleses, que mantinham no comando do exército o General Beresford.
Estando a Europa apaziguado pelo termo do pesadelo napoleónico, o Brasil constituía Colónia
cuja riqueza imensa não deixaria de proporcionar a cobiça.do Império Britânico vitorioso. Tal-
vez por isso e de acordo com visão política exacta, D. João elevou o Brasil à categoria de Rei-
no, instituindo o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Uma dinâmica autónoma para o Brasil

Com o apoio da Inglaterra, D. João ocupou a Guiana francesa, que foi restituída por
acordo de 1815. Depois tentou ampliar a fronteira do Brasil até ao Rio da Prata, conquistando
o Uruguai que teve de ser entregue por influência inglesa.
No entanto, o programa de autonomia para o Brasil empreendido pelo Regente D. João
sofreu o abalo da revolução de Pernambuco em 1817 que visava a proclamação de uma Repú-
blica independente. Todavia o movimento foi dominado de forma imediata, escolhendo um
dos revoltosos, o Padre João Ribeiro, o suicídio, enquanto outros implicados, foram submeti-
dos à pena capital. Numerosos prisioneiros acabaram por ser indultados quando o Regente D.
João foi coroado Rei no Rio de Janeiro, tendo concedido benesses aos índios que durante a re-
volta se mantiveram fiéis à Coroa. D. João VI visou declaradamente o desenvolvimento do
Brasil, apoiando actividades económicas com a criação do Banco do Brasil e promovendo o
povoamento. As ilhas dos Açores e da Madeira revelavam toda a sua pujança de viveiros hu-
manos instalados no Oceano em pedaços de terra desabitada na altura do descobrimento. As-
sim entregavam aos novos territórios americanos famílias inteiras, prontas a povoar desertos e
a vitalizar aldeias, sob estímulo de isenções várias e da cedência de gado, alfaias e sementes.
No Brasil não deixava, no entanto, de ser impulsionada a miscigenação, intensificando o tráfi-
co de escravos, destinados a tudo e a facultarem trabalho para a agricultura. Simultaneamente
foi fomentada a emigração de estrangeiros, desenvolvendo-se negociações nesse sentido com
a Holanda, a Áustria e a China. Na atribuição de terras mantinha-se a prática da cedência de
sesmarias, à maneira medieval, o que constituía a base do povoamento, assumindo uma forma

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de servidão, a que foi dado o nome de "Colónia".

O chá, misteriosa planta do Oriente

Da família das Teáceas, o Chá. Camellia sinensis (L) O.Ktze, originário do Assão supe-
rior e Manipur, está ligado, segundo refere o Agrónomo Sampaio d'Orey na Enciclopédia Ver-
bo, à lenda de consumo que remonta ao Imperador Chinês Shen Nung, «o curandeiro divino»,
que reinou cerca de 2.737 a.C. No entanto, o mesmo Autor acentua estar geralmente aceite a
tradição da cultura na China, como prática do século IV d.C., tendo passado ao Japão no século
VII.
Embora missionários portugueses tenham referido a cultura e, necessariamente, o uso
do Chá no Oriente, que fazia parte dos rituais da Civilização praticada, o comércio do produto
somente foi desencadeado pelos Holandeses e Ingleses. A aristocracia britânica elevou o con-
sumo de Chá à categoria de culto social, às cinco horas da tarde, sendo pioneira quanto à intro-
dução desta bebida de luxo na Europa, em África a sul do Sará e na América.
Quanto à cultura talvez se possa admitir que os portugueses, nos seus contactos pionei-
ros no Oriente, teriam deparado com severo secretismo por parte de populações que se haviam
especializado em tecnologia exigente no que se refere a poda. colheita e posterior transforma-
ção das folhas que tanto são enroladas em verde, como secadas, depois de fermentação ade-
quada. Por isso, somente muito tarde, quando a cultura encontrou implantação na índia, no
Ceilão e na Indonésia, mercê da iniciativa de colonizadores europeus, sustentando comércio
mundial que não era monopólio português, se procedeu a ensaios no Brasil, e nas ilhas atlânti-
cas.
O Prof. Mendes Ferrão em trabalho intitulado «A cultura do chá em Portugal» que pu-
blicou em «Alimentação», assinala a presença da planta do chá na ilha Terceira em 1801. Mas
constitui ocorrência certa a chegada do Chá ao Brasil quando o Regente D. João VI procedia
às tentativas que assinalámos para desenvolver o povoamento, estabelecendo negociações com
a China. Efectivamente, em 1816, chegou ao Brasil uma embaixada transportando a misteriosa
planta do Chá e. mais importante ou fundamental ainda, os chineses indispensáveis para serem
mestres da preparação tecnológica do aromático produto. Do Brasil a cultura foi transportada
aos Açores, instalando-se em S. Miguel onde veio a alcançar grande prosperidade.
O Autor que citamos refere que em 1855 foram promovidas tentativas de instalação da
cultura no Minho, em Paredes de Coura e Ponte do Lima, que resultaram frustradas. O mesmo
sucedeu quanto a ensaios efectuados no Sul em propriedades da Casa de Bragança e em Sintra,
por iniciativa de D. Fernando. Em época recente, a cultura foi instalada em Moçambique, onde
alcançou assinalável desenvolvimento.

Portugal na penumbra da recuperação europeia

A paz e mesmo o progresso que na Europa se instalara, depois dos últimos Cem Dias
da agonia napoleónica. não contemplou o Continente português, mau grado as «festas litúrgi-
cas, marciais e populares que permitem acompanhar o regozijo nacional». A carência de em-

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prego, a ociosidade dos que abandonaram o exército, constituía severíssimo agravo ao que era
imposto pela presença de grupos de malfeitores armados que se dedicavam ao roubo e assassí-
nio, especialmente no Alentejo e Algarve. Mau grado o Governo militar forte de Beresford, a
administração pública, incapaz de reconstruir o que ficara arruinado pelas guerras, justificava
o descontentamento geral, que tornava propício o alastramento de conspirações políticas de
tendência liberal, ou de oposição à Corte instalada no Brasil, ou à presença britânica. Seriam
múltiplas as forças sócio-políticas envolvidas no processo, recebendo o rótulo de maçónicas
ou jacobinas, apontando-se os patriotas ou os traidores, conforme os pontos de vista dos parti-
cipantes em acontecimentos políticos.
O tacto que assumiu mais destacado vulto foi a «conspiração de Gomes Freire de An-
drade» que, perante a aparente indiferença de Beresford, acabou por conduzir à execução do
acusado em S. Julião da Barra e ao enforcamento de uma dezena de condenados no Campo
que ficou a chamar-se dos «Mártires da Pátria». Afigura-se que tal sucesso não teria raízes po-
pulares, nem encontrou apoio da nobreza ou do clero, acabando por constituir derivativo que
serviu, talvez, para distrair as forças obstinadas que se empenhavam valorosamente nos cami-
nhos da reestruturação da independência nacional e da implantação das liberdades públicas.
De qualquer modo. o sofrimento do povo português não impediu que os políticos fir-
massem o tratado anglo-luso de «aliança e comércio», que se alargava desde o Continente, ao
Brasil e Goa, consagrando «a liberdade mútua de comércio e navegação nos domínios das duas
coroas, com o direito de circulação e residência aos súbditos» dos dois reinos contratantes. Tal
tratado foi favorável à Inglaterra, talvez mais do que o de Methuen, dadas as circunstâncias do
grande abatimento das forças sociais e económicas portuguesas nessa época. Assim, Portugal
sofreu resignadamente efeitos pesados da aliança inglesa, até à Revolução de 1820.

A Revolução Liberal

Em 1818, Fernandes Tomaz fundou no Porto a sociedade secreta de objectivos políticos


designada Sinédrio. Nessa altura a Cidade nortenha revelava progresso regional resultante da
expansão do comércio marítimo, a que não era estranha a importância do vinho do Porto. No-
vos arruamentos se construíram, com seus bairros de vivendas povoadas de burguesia culta,
que assinava gazetas europeias, e se dedicava a leituras modernas que transformavam o mun-
do. Embora se não possa admitir que o Povo sofredor acompanhasse tal ritmo, a Cidade, no
entanto, era reduto de sentimentos profundos de amor à liberdade.
Foi assim que o Sinédrio, agrupamento de início apenas civil, se ampliou, à medida que
se aproximava a hora da acção, integrando também militares. Na madrugada de 24 de Agosto
de 1820, tendo-se ausentado, Beresford, em visita a Inglaterra, o Coronel Sebastião Cabreira
concentrou o seu Regimento de Artilharia 4 no Campo de Santo Ovídio e proclamou aos solda-
dos rurais, talvez ainda ensonados, palavras que exprimiam nexo militar: «santifiquemos este
dia; e seja ele, desde hoje, o grito do nosso coração». Mas, de qualquer modo e efectivamente,
estava iniciada a Revolução Liberal.
O movimento obteve a adesão de todo o Norte dando lugar à instituição de uma Junta
revolucionária. O exército sublevado iniciou a marcha em direcção ao Sul, conquistando a ade-

253
são de Coimbra e, depois, de Leiria até ao momento em que. no dia 12 de Setembro, unidades
militares se concentraram no Rossio. Assim se constituiu em Lisboa um Governo, que se apre-
sentou paralelo à Junta do Porto. Mercê de habilíssima diplomacia dos nortenhos, acabou por
se verificar em Alcobaça o encontro e a fusão dos dois movimentos, o do Porto e o de Lisboa
que envolviam diferentes tendências ou prestígios militares. Ficaram constituídos dois órgãos,
a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e a Junta Provisional Preparatória das Cor-
tes. tudo ficando dependente das futuras deliberações das Cortes soberanas. De momento, en-
contravam-se à margem dos acontecimentos outros territórios do Reino, que incluíam as Ilhas
atlânticas, o Brasil, a África e o Oriente. Foi num ambiente territorial restrito que se anuncia-
ram os trabalhos preparatórios para convocação das Cortes que seriam constituintes.
A Junta foi recebida em Lisboa com delírio popular e pela primeira vez, na História de
Portugal, a Nobreza e o Clero juraram fidelidade a poder diverso do Rei que. no entanto, era
reconhecido na chefia do Estado, na pessoa de D. João VI. Igual fidelidade foi jurada às Cor-
tes. que iam ser convocados, bem como à Constituição que ia ser elaborada. Lisboa viveu mo-
mentos de enorme euforia. Constitui relato com certeza fiel. o do Marquês da Fronteira e
d'Alorna nas suas «Memórias»;
«O teatro de S. Carlos toma-se incómodo, porque as óperas não se representavam, os
cantores não cessavam de cantar os diferentes hinos, e os poetas, nos longos intervalos, canta-
vam em verso o heróico movimento, não se esquecendo de lisonjear os seus padrinhos... Foi
numa dessas noites de grande entusiasmo que, estando na plateia geral, vi pôr-se de pé sobre
um dos bancos um jovem, elegante pelas suas maneiras, de uma fisionomia simpática e toilette
apurada, um pouco calvo, apesar da pouca idade, o qual, pedindo silêncio aos que o rodeavam,
disse: d Liberdade. E recitou uma bela ode que foi estrepitosamente aplaudida, perguntando-
-se com curiosidade, tanto nos camarotes como na plateia, quem era o jovem poeta: foi ele pró-
prio que satisfez a curiosidade, dizendo chamar-se Garrett.»
Sucedeu porém que, entretanto, Beresford foi de Inglaterra ao Brasil, conseguindo obter
de D. João VI a nomeação de Marechal do Exército e a confirmação de amplíssimas funções.
Munido de tais poderes apresentou-se no Tejo, pronto a desembarcar. No entanto, a Junta teve
a coragem de impedir o desembarque, vedando qualquer comunicação com a nau Vengeur em
que o Marechal navegava. Beresford regressou a Inglaterra e a Revolução prosseguiu seu ru-
mo.
Passou a discutir-se o processo de organização das Cortes Constituintes e não deixou de
ter adeptos a convocação imediata segundo a composição tradicional das Ordens, a Nobreza,
o Clero e o Povo. que se não reuniam há mais de um século, durante a vigência do Absolutis-
mo. No entanto, a Junta Provisional discordou e propôs sistema de escolha de deputados às
Cortes baseado em representação individual de cidadãos eleitos por sufrágio alargado a toda a
população. Tal proposta foi largamente discutida, e depois de posta em confronto com a expe-
riência espanhola de Cadiz e de receber parecer conciliatório da Academia das Ciências, con-
testado pelo Juiz do Povo que convocou para o efeito a Casa dos Vinte e Quatro, deu origem
a sublevação militar que ameaçou o desencadeamento imediato de Guerra Civil. No entanto,
foi possível adiar o confronto, adoptando-se a Lei eleitoral que a História de Portugal de «Bar-
celos» afirma ser «uma lei honrada: devolvia à Nação a plenitude dos seus foros, fiava da inte-

254
gridade da magistratura a pureza do escrutínio e não coagia o eleitor com aparatos coercivos
de ordem pública».
Efectivamente, pela primeira vez, a população portuguesa, desde as Cidades às mais re-
motas Aldeias, foi chamada a pronunciar-se quanto aos seus Deputados às Cortes Constituin-
tes. Não pôde ser feito, por dificuldades compreensíveis, recenseamento eleitoral, sendo adop-
tado o recenseamento demográfico de 1801. As eleições foram indirectas, em dois graus. Em
primeira fase foram escolhidos os eleitores, nas Câmaras rurais onde se reuniram os chefes de
família sob a presidência do Juiz de fora e assistência dos Vereadores e, em Lisboa, nas Fre-
guesias, sob a presidência do ministro do Bairro e assistência do Pároco. Talvez porque nas as-
sembleias predominavam esmagadoramente os analfabetos, o voto foi público ou expresso em
voz alta, decidindo a sorte em caso de empate. Os Concelhos de 600 fogos escolheram um elei-
tor, os de 1.200 dois eleitores, e assim por diante na mesma proporção. A eleição dos Deputa-
dos foi feita, em segunda fase, por Províncias, sendo eleitos 100 Deputados assim distribuídos:
Minho 25, Trás os Montes 9. Beiras 29, Estremadura 24. Alentejo 10 e Algarve 3. Na presun-
ção de que o analfabetismo, nesta fase. já não constituiria obstáculo, o voto dos eleitores de
Deputados foi secreto. Os Deputados eleitos encontravam-se, portanto, desligados das Ordens
tradicionais. Segundo a Lei, o Deputado «devia reunir a maior soma possível de conhecimen-
tos científicos, ter firmeza de carácter, religião e amor à Pátria, possuir meios honestos de sub-
sistência, e ser natural ou domiciliado na comarca respectiva, e não os havendo nela poderiam
ser eleitos indivíduos de quaisquer outras comarcas». Quanto à estrutura social dos Deputados,
foram eleitos 39 magistrados e juristas, 21 professores e componentes das profissões liberais,
16 eclesiásticos, 10 militares, 6 médicos, 5 proprietários e 3 comerciantes. Assim, as Cortes
Constituintes apresentavam forte predomínio da burguesia rural, recrutada na camada social
mais culta.
Com esta eleição teve seu termo a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, cu-
jo comportamento a História regista como impecável, nunca tendo legislado, limitando a sua
meritória acção à convocação dos eleitores e à manutenção da ordem pública e aos actos admi-
nistrativos correntes.
No entanto, a institucionalização do Novo Regime não podia deixar de ter reflexos nos
domínios portugueses. Logo a Ilha da Madeira se revoltou, acabando por decidir aguardar as
ordens de D. João VI, não tendo o Governador resistido ao movimento de apoio à Revolução,
demitindo-se e entregando o poder à Câmara. O mesmo não sucedeu nos Açores, onde gravís-
simos motins caracterizaram o confronto entre o Governo local e os adeptos do liberalismo,
muitos dos quais se encontravam deportados no território. A luta sangrenta arrastou-se até ao
momento em que D. João VI definiu a sua posição. Em Angola. Moçambique e índia a Revo-
lução foi recebida sem grande abalo. Porém, no Brasil, o confronto dos tradicionalistas com os
liberais foi naturalmente violento, forçando D. João VI a decidir a sua atitude. Com a ajuda do
Infante D. Pedro alcançou resistir a fortíssimas pressões que o aconselhavam a apoiar a Con-
tra-Revolução, ou a tomar a iniciativa de propor uma Carta Constitucional que o então Conde
de Palmela lhe apresentou para impedir o funcionamento das Cortes Constituintes. Na iminên-
cia de confrontos graves o Rei decidiu, no Brasil, que juraria a Constituição que as Cortes de
Lisboa elaborassem. Por isso foram eleitos Deputados brasileiros que chegaram a vir às Cortes

255
de Lisboa. Mas tal facto não pode significar que ficasse organizada a representação das Cortes
no espaço comunitário português, que porventura tenha estado na ideia de D. João VI quando
criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Foi assim que, aureolado com o juramento da futura Constituição, D. João VI retomou
a Portugal, onde foi entusiasticamente recebido como primeiro Rei Constitucional português.
O Brasil, deixou-o entregue a seu filho D. Pedro a quem segredou palavras proféticas: «Se o
Brasil se separar de Portugal...» não recomendou que fosse leita a Guerra.

256
32 — O PAÍS AGRÁRIO COM O QUAL O LIBERALISMO
SE CONFRONTOU

A Revolução Liberal de 1820 constitui exemplo de feliz conjugação de forças políticas


fortemente empenhadas na salvaguarda da Paz perante a perspectiva da Guerra Civil. No en-
tanto, o tempo haveria de revelar a fragilidade dos apoios desse empenho, na frente do qual se
erguia a Contra-Revolução, emergente de forças telúricas que nada evitaria que explodissem,
tão violentas eram as oposições e poderosos os interesses em jogo.

As petições ou reivindicações dos povos

Efectivamente, a revolta de 24 de Agosto de 1820 não assumira feição de levantamento


popular, constituindo, na aparência, simples pronunciamento militar, ao qual os políticos do
Sinédrio deram o apoio ideológico necessário, figurando Fernandes Tomaz como o intelectual
mais empenhado. Historiadores modernos, como J. S. Silva Dias em «A revolução liberal por-
tuguesa: amálgama e não substituição de classes» esclarecem desenvolvimentos do processo
revolucionário mas, desde já importa acentuar que o 24 de Agosto não deixou de encontrar jun-
to da população rural dominante na época evidente e pronto reflexo, nas ruas e nos campos,
bem como no impulso das reclamações provindas de diferentes quadrantes das forças vivas da
comunidade nacional.
No aspecto agrário o que se encontrava em causa eram as novas ideias revolucioná-
rias que significavam a promessa da Liberdade e da Igualdade na vida social, o alivio do pa-
gamento de pesados tributos, bem como a projecção liberalizante nas actividades económi-
cas, ideias postas em confronto com o Regime Senhorial de há muito reinante, inquinado de
maior prepotência desde que o Despotismo se instalou, invocando o monopólio das «Lu-
zes».
Efectivamente as aspirações do Povo envolvido na contemplação do processo revolu-
cionário eram um facto e julgamos poderem ser identificadas, no caso da agricultura desta épo-
ca, com base em estudos realizados pelo Historiador Albert Silbert que, nos seus trabalhos,
adoptou metodologias científicas muito aperfeiçoadas. Referimo-nos a «Le probleme agraire
portugais au temps des premieres Cortes Liberales» e «Le Portugal mediterranéen a la fin de
1'Ancien Regime XVIII - debut du XIX siecle».
O referido Historiador estudou a documentação arquivada, respeitante às Cortes de
1821-23 que consta de petições ou reclamações dirigidos às Cortes ou a Deputados por Conse-
lhos Municipais, vereadores, grupos de moradores ou cidadãos isolados. Esta documentação
foi reunida por especialidades, tendo-se constituído Comissões para o seu estudo. A Comissão
de Agricultura que foi eleita contou com a presença, aliás efémera dada a avançada idade, de
Felix Avelar Brotero, Botânico ilustre, e também de Francisco Soares Franco, Médico, os dois
Professores de Coimbra.

257
Denúncia do anacronismo dos Forais

Analisando o material reunido, os comentários e as conclusões do referido Autor, veriíi-


ca-se que as estruturas agrárias e o funcionamento da actividade agrícola dominante na econo-
mia portuguesa, determinavam petições a solicitarem do Poder angustiosas intervenções cor-
rectoras ou moralizadoras. Devemos ter em conta que a falta de eficácia dos Governos, de há
muito envolvidos nas guerras napoleónicas e desligados da Corte ausente no Brasil, situava o
País real numa espécie de clamor no deserto ou nas trevas, alargando-se a descrença ou o de-
sencanto, ficando excluída a esperança de socorro para as amarguras da vida. Quanto às recla-
mações mais vivas chegadas às Cortes, avultam as que imploravam a reforma dos Forais que
se configuravam como códigos anacrónicos, sendo os mais recentes quase todos manuelinos.
No entanto, tal reforma apresentava aspectos técnicos extremamente complexos que somente
muito mais tarde puderam ser suplantados. Não oferece dúvida que o problema dos Forais to-
mou. com a Revolução Liberal, posição de primeiro plano. Transformados em símbolos dos
direitos feudais, os Forais passaram a ser vistos somente como cartas senhoriais que diluíam o
valor de cartas municipais que na realidade também constituíam. Quando se tratava de conteú-
do dos Forais, dos mais «bárbaros», o idealismo revolucionário inspirava fortemente as peti-
ções e escrevia-se: «as cadeias do despotismo estão quebradas; nós somos livres; mas sobre
nós continuam a pesar todas as ignomínias do Antigo Regime».
O debate nas Cortes quanto ao problema dos Forais foi longo e difícil não tendo sido
possível alcançar acordo que permitisse decisões de reforma. Assim a Lei dos Forais de 1822
resultou moderada não se furtando ao «labirinto dos Forais» e apenas diminuiu «vexames»,
não tendo a audácia de os suprimir, o que ficaria adiado. Mesmo assim esta Lei foi banida pela
Contra-Revolução logo em 1823.

Súplicas quanto à abolição do regime senhorial

No fundo tratava-se de suprimir usurpações inadmissíveis por motivos humanos ou so-


ciais e entraves à liberdade económica, por coerência doutrinária no âmbito de novas conclu-
sões científicas. Quanto às usurpações estavam em causa direitos realengos ou outros de sujei-
ção ao Senhor, corveias ou censos. Os direitos banais mais correntemente denunciados eram
os do lagar de azeite e o dos monopólios de fornos particulares. Avultam ainda referências a
moinhos senhoriais e a monopólios da venda de vinhos, para além dos direitos pessoais de co-
lheita. de eiradagem, de fogaça, de fogueira ou de fumaça, de jugada, de teiga e de traviscada,
na fertilíssima imaginação feudal de invenção de impostos que somente veio a ser suplantada
pela moderna fiscalidade que é o monopólio do Estado. As Cortes não tiveram a coragem de
suprimir tais usurpações e apenas as moderavam. Mas o Povo respondeu com generalizada
greve de pagamentos.

Pedidos de implantação de um processo gestionário actuante

Fortes reclamações incidiram sobre a existência de livre importação de cereais o que ar-

258
ruinava os preços e dificultava o escoamento da colheita nacional. A solicitação do direito de
protecção para a produção interna apresentava-se angustiosa, não podendo deixar de admitir-
-se que também escondia interesses, particularmente em relação ao trigo, no Alentejo. Os De-
putados deram pronta resposta a estas petições, elaborando leis proteccionistas que acalmaram
os desesperos.
As petições denunciam a existência de grandes dificuldades de escoamento de vinho.
Os Deputados interditaram a importação. Todavia o problema do vinho apresenta aspectos
mais profundos, reflectindo a concorrência inter-regional que resultou de novas plantações.
Regiões produtoras antigas, como o Alentejo ou o Douro, denunciam «os imensos plantios de
vinha por todo o Reino, sem excepção de terras pingue próprias para cereais e que dão vinho
mole, vão aumentar o impacte do vinho e a diminuir o pão e a criação de gados».
Quanto a produtos pecuários foi solicitado o proteccionismo para a produção de lãs na-
cionais e de um modo geral de todos os animais à excepção dos cavalos de raça. A importação
de lã foi proibida e também a de porcos em virtude de se considerar prejudicial a livre entrada
de porcos estrangeiros para «o progresso dos montados». A produção de bovinos ficou excluí-
da do proteccionismo.

Queixas quanto às terras comunais

Não se dispondo de informação rigorosa que permita conhecer dados respeitantes à re-
partição da terra pelas diferentes formas de domínio no período pré-liberal, pode, no entanto,
presumir-se que as terras comunais representavam forte parcela territorial. Teriam representa-
ção importante os bens da Igreja e dos Donatários nobres, cabendo menor parcela à Coroa e
aos camponeses em plena propriedade. Deve ter-se em conta que o mundo camponês se movi-
mentava não somente no seu escasso chão privado, mas apoiava também a vida agrária em ter-
ras comunais que recebiam a designação de baldios, empenhando-se ao mesmo tempo em lar-
ga e variada espécie de contratarão no exercício de actividades produtivas em terra alheia,
fruindo também direitos tradicionais como o de compáscuo ou livre pastoreio.
O património colectivo provinha dos mais remotos tempos, sendo referido por Cícero e
Vergílio, e fora sempre defendido pelos Reis povoadores na repartição da presúria, e respeitado
nos Forais de D. Manuel. O conceito de baldio será aplicado a terrenos que, do ponto de vista
jurídico e no que se refere a propriedade, são de «logradouro comum», isto é, não apropriados
individualmente e cujo disfruto é direito dos povos, regulamentado a nível de Aldeia, Paróquia
ou Município. No conceito popular o baldio será constituído pelos terrenos que ficaram perten-
cendo aos moradores do termo em que estão situados permanecendo em domínio comum, lar-
gamente designado «logradouro do povo».
Tal situação deverá distinguir o baldio ou o logradouro do povo dos «maninhos» que
seriam incultos, em regra reservados por Senhorios ou Donatários de terras que os podiam afo-
rar, emprazar ou arrendar, ou mantidos como «bens do Concelho», que por alguns Forais eram
reservados aos Municípios, como seu domínio privado, não particular mas de autarquia admi-
nistrativa, dos quais muitos foram divididos em sesmarias.
De qualquer modo, talvez em todas as épocas como actualmente, os baldios constituem

259
parcela residual de terrenos comunitários mais vastos, sistematicamente parcelados e transfe-
ridos para a posse privada ou usurpados. Os baldios foram muita vez objecto de orientação ad-
ministrativa compulsiva quanto ao aproveitamento do território, no sentido de serem trazidos
à cultura terrenos incultos ou maninhos que nesses baldios muita vez se encontravam. Esta ten-
dência acentuou-se depois da Revolução Liberal, acelerando-se a partilha e a usurparão de
ocupantes abusivos.
As petições tanto condenavam e exigiam reparação pelas apropriações de terrenos co-
munais alcançados por Donatários mercê de doações régias, como solicitavam partilha que
proporcionasse aos povos o desbravamento ou a cultura das sortes. As Cortes não se apresenta-
ram voltadas para a defesa intransigente dos bens comunais, porque o liberalismo não podia
esconder, corno objectivo, a finalidade da estruturação fundiária baseada na propriedade priva-
da individual. Havia sobejos motivos para fundamentar as dúvidas que tolheram as decisões
dos Deputados das Constituintes nesta fundamental matéria.

A condenação e a defesa do Livre Pastoreio

A liberdade tradicional, muito antiga, de conduzir o gado manadio por todo o terreno
não cultivado, impedindo vedações e deixando abertas as canadas, encontrava-se radicada,
constituindo fortíssima limitação ao direito de propriedade privada da terra, e fundamental
apoio ao pastoreio.
Especialmente os pastores da Serra da Estrela que, no Inverno, faziam deslocar os seus
rebanhos até às campanhas da Idanha ou até Ourique, no coração do Alentejo, não prescindiam
do direito ao uso dos sistema de transumância que, durante o ano, recorria à exploração coe-
rente de ecologias complementares: a Serra, de pastoreio estival, e a Planura, de refúgio inver-
nal. Mas não era somente este amplíssimo sistema inter-regional que revelava a força e o argu-
mento dos Pastores itinerantes, contra os interesses dos Agricultores sedentários. Por toda a
parte o pastoreio se impunha como herança cultural e o gado manadio esmagava as vedações
que se lhe opunham e, faminto, procurava o restolho das searas, as ervas sob coberto dos oli-
vais, ou qualquer renovo primaveril mal acautelado de quaisquer culturas.
Tudo isto tanto justificava a defesa do livre pastoreio como a sua condenação em nome
do direito de propriedade da terra, privado ou exclusivo, para uso intensivo, livre de qualquer
limitação ou obstáculo. Os descendentes do nomadismo pastoril, que se movimentavam em es-
paços onde a propriedade privada da terra ainda não se implantara, apresentavam-se agora aos
olhos dos defensores do domínio privado como «povo (os pastores) que não quer ver-se priva-
do da regalia de ser proprietário sem propriedade». Por isso o livre pastoreio era apontado pe-
los defensores do sedentarismo agrário como «revoltante violação do sagrado direito de pro-
priedade, funesto obstáculo à liberdade do trabalho, sério embaraço ao progresso da agricultu-
ra».
A legislação antiga apresentava-se de aplicação local e contraditória. Em 1614 «os po-
vos da Idanha impugnaram vivamente a subtracção, que ao compáscuo se havia feito, de três
montes que um proprietário possuía nos limites de Oledo». Foi produzido «um alvará termi-
nante, que mandava destruir todos os tapumes, e restituir aos pastos comuns todos os terrenos

260
que se tivessem subtraído a este ónus». Em 1793, D. Maria «atende as repetidas queixas dos
lavradores das vilas de Serpa e Moura, e os muitos e gravíssimos inconvenientes, que resultam
da abusiva prática dos pastos comuns ou compáscuos». A Rainha foi «servida declarar e haver
por extinto, cassado e abolido, o abuso dos referidos pastos comuns... ordenando que os la-
vradores fiquem integrados no livre uso, fruição e domínios das suas terras e pastagens».
Em face das petições, as Cortes de 1820 consideraram que o compáscuo se opunha à
Constituição em discussão que «garantia a todo o cidadão a propriedade individual». No en-
tanto o projecto de supressão absoluta do compáscuo, ficou sempre adiado, acabando por não
alcançar aprovação nesta fase, perante argumentos de defesa de interesses colectivos.

Breve antologia de petições

Aftgura-se-nos que as petições, pela sua índole e natureza, apresentam o País dividido
em duas condições completamente diversas. No Norte predomina o empenho de ver abolido o
senhorialismo em favor da libertação do camponês, pela supressão do servilismo e vexames os
mais variados, de forma a alcançar a consolidação da empresa familiar; no Sul apresenta-se o
campesinato tradicional e altivo, de pastores e cultivadores livres de semearem searas em bal-
dios e herdades, que assistem ao prelúdio da concentração latifundiária que os reduz à dramáti-
ca proletarização nunca antes verificada.
Veio de três freguesias, de S. João de Rei, Verim e Monsul, de Guimarães, berço de Por-
tugal, a seguinte súplica:
«Os suplicantes das ditas três freguesias, que fazem o mencionado concelho de S. João
de Rei, a quem pela maior parte coube a dura e penosa ocupação de lavradores, ou agriculto-
res, penosa sim mas a primeira, a mais necessária, e de todo indispensável na sociedade, o úni-
co termómetro da riqueza das nações a que dá progresso às artes, circulação ao comércio, e gi-
ro a toda e qualquer espécie de indústria além do seu duro e Ímprobo trabalho, em que assidua-
mente se ocupam com o suor do seu rosto, tem-se visto sempre na infame condição de servos
adscriptícios, sofrendo todo o rigor do feudalismo. O suor, o trabalho, a vida penosa tem sido
da sua parte; a .utilidade, o regalo e todo o género de cómodo tem sido dos outros, que como
zangãos costumam aproveitar-se dos trabalhos das abelhas; e depois desse mesmo suor, desse
mesmo trabalho, tem-se visto no meio da pobreza e indigência, sem poderem com a sustenta-
ção das suas famílias e exaurido até de meios para continuarem as suas tarefas. Eles, Senhor,
estão oprimidos e vexados, com os excessivos impostos, que das terras que cultivam pagam ao
Donatário o quarto, o quinto ou o sexto de todo o pão, e o vinho que produzem as terras que
cultivam nas ditas freguesias; e além destes ónus pagam outros sabidos de pão meado, casta-
nha seca, linho, bragal, e até de foguear pagam, vindo de este modo a absorverem estes impos-
tos tudo quanto as terras dos suplicantes produzem, depois de tiradas as despesas de cultura.
Pode haver foral mais oposto ao sagrado direito de propriedade?»
De Santa Maria de Âncora, termo de Vila de Viana, vem o seguinte:
«Dizem os eleitos, por si e como representantes de todo o povo da freguesia, que várias
pessoas, tanto daquela freguesia como fora dela, se tem assenhoreado de todos os montados
maninhos próprios dela, dos quais tiravam todos os moradores os precisos matos, para adubo

261
das suas terras, bem como as águas com que as fertilizavam.»
Os povos de Vila Franca de Arazede protestam contra:
«a avidez, e insaciável ambição dos religiosos de S. Bernardo de Coimbra, em exigir
uma galinha de foro de cada geira destes areais, ração de 8 um de todos os frutos, que produ-
zem, e laudemio de 8 um das compras e vendas que deles se fazem, suscitando para isso com
a maior impiedade demandas injustas em juízos privativos aonde a maior parte dos moradores
não podem por sua pobreza, alegar sua justiça e defender-se.»
Vem de Terena, no Alentejo, o seguinte clamor:
«acontece pretender o recorrido capitão-mor, de aforamento, o sesmo denominado Mo-
trinos, o mais fértil em terreno e arvoredo de azinho de todos os mais sesmos... é o referido
sesmo locado em circuito de uma sofrível aldeia denominada Cabeço de Carneiro que se com-
põe de trinta e sete foreiros, mais dez moradores além destes e três inclinos que habitam o
Monte da Rexiada sito aí mesmo. Todos os referidos habitantes têm cento e cinquenta vacas,
quatro rebanhos de porcos que no referido sesmo têm as suas malhadas, um numeroso reba-
nho de cabras, dois ditos de coelhos. E além disto os moradores da referida aldeia deitam
anualmente à terra trinta e sete arados de bois e vacas, têm treze carretas marcadas e prontas
para o serviço de transporte quando Vossa Majestade o destine. Pelo que parece se tornam dig-
nos de atenção, a fim de que não se conceda o aforamento que projecta o recorrido em ruína
dos recorrentes a quem Vossa Majestade já concedeu aforamento não só do referido sesmo,
mas de todos os dezassete baldios daquele termo, dividindo-se-lhes estes em sortes iguais pe-
los habitantes da referida vila e termo.»
Vem de Arronches outro brado:
«havendo nesta vila um baldio chamado da Serra, composto de mato e pastagens que há
poucos anos antes pertencia o mato ao concelho e os pastos ao povo... aconteceu que um Fran-
cisci Cezareo da Vila de Campo Maior, na próxima pretérita restauração destes reinos de inva-
são francesa, sem mais serviços e méritos que o encarecimento dos seus patronos, os quais, en-
cobrindo a verdade aos pés do trono, a mascararam com o colorido e o enfeite próprio à conse-
cução dos seus fins, obteve do melhor dos Soberanos, o Senhor Rei D. João 6." então Príncipe
Regente, a mercê de meia légua de terra em baldio livre e que esta se verificasse no sobredito
da Serra desta Vila de Arronches.»
Os habitantes da Vila de Cantanhede, apelam:
«aos que hoje compõem o Soberano Congresso da Nação, os pais da pátria, os restaura-
dores dos nossos foros e direitos, os sábios legisladores para promoverem o bem, a glória e a
prosperidade da mesma nação» no sentido de atender às suas «críticas e amarguradas circuns-
tâncias em que tem vivido há longos anos debaixo de um jugo insuportável das mais pesadas
exacções e da mais dura e rigorosa privação da sua liberdade naqueles objectos mesmo que o
Criador do Universo deixou à disposição e gozo do homem». Reclamam os peticinários contra
«os direitos dominicais que nesta vila e seu termo se pagam ao Donatário dela, o Marquês de
Marialva; direitos que sendo sumamente exorbitantes atenta a qualidade do terreno, se tornam
ainda mais pesados pelo abuzo que nos mesmos se tem introduzido e pela forma assaz violenta
com que se cobram».
Finalmente, o exemplo da petição de Linhares:

262
«havia naquele concelho muitos baldios e logradouros dele, destinados de tempo ime-
morial para proveito de todos os moradores; dos quais se utilizavam, cultivando aquelas por-
ções mais próprias para a cultura e deixando incultas e para pastos dos seus gados as outras
que não eram da mesma qualidade e pagando da produção daquelas de onze um para a Alcai-
daria-Mor da mesma vila e 25.000 réis com respeito aos pastos que estas produziam e sustenta-
vam 18.000 cabeças de gado lanígero». E os peticionários acrescentam: «porém, há menos de
trinta anos a esta parte, uns homens ricos e poderosos do mesmo concelho se lembraram de re-
querer emprazamentos de todas estas terras, baldios e logradouros e com o favor do Dr. Corre-
gedor que então servia naquela comarca, obtiveram o que pretendiam por uns pequenos e mui
limitados foros para a mesma alcaidaria». E acrescentam: «os títulos que os enfiteutas conser-
vam daqueles baldios e terras do concelho são nulos, viciosos e injustos. A prepotência dos en-
fiteutas e o favor dos ministros informantes daquele tempo pode tudo contra os desgraçados
moradores daqueles povos que nem foram ouvidos nem puderam até agora fazer valer os seus
direitos.»
O Historiador Albert Silbert comenta este texto afirmando o aspecto «característico» da
atitude da Comissão das Cortes quando, sobre a petição, «decidiu que o assunto, exigindo veri-
ficações, diz respeito aos tribunais competentes. De facto ela não via nenhum inconveniente
quanto ao desaparecimento de terras comuns».

263
33 — TENTATIVAS DE IMPLANTAÇÃO DO REGIME
LIBERAL

Decorre nos domínios da utopia o rasgo que levou as Cortes Constituintes a decretar
medidas avançadas sem ter em conta as restrições dos tempos. Foram extintos os direitos ba-
nais e os de relego, abolidas as coutadas, logradouro de privilegiados a que se opunha de há
muito a reclamação dos povos, bem como as coudelarias nacionais. Tornou-se pertença da Na-
ção os bens da Coroa e foi tentada a restrição a muitas das violências dos forais.

Leis decretadas para além das restrições dos tempos

Destacamos com o merecido relevo a Lei de 1821 relativa aos direitos banais e corveias:
«A Regência do Reino, em Nome de El-Rei o Senhor D. João VI, Faz saber que as Cor-
tes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa têm Decretado o seguinte:
As Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, desejando liber-
tar os Povos das opressões, que lhes resultam, já de Serviços pessoais, já dos Direitos chama-
dos Banais, que formam Privilégios exclusivos contrários à liberdade dos Cidadãos, e ao au-
mento da Agricultura, e Indústria destes Reinos, que sem emulação, e franqueza nunca podem
melhorar, nem aperfeiçoar-se, Decretam o seguinte:
Artigo 1,° Todos os Serviços pessoais feitos pela própria pessoa, ou com animais, fun-
dados em Foral, Graça Régia, Posse imemorial, ou qualquer outro Título de Direito Censual,
Dominical, e ainda Enfitêutico, ficam extintos. Nesta disposição porém não se compreendem
os Serviços dos Cabeceiros, nem os dos Foreiros, que são obrigados a levar os foros a casa dos
Senhorios.
Art. 2.° Ficam pela mesma forma extintos todos os Direitos chamados Banais, que são
os de Fornos, Moinhos, e Lagares de toda a qualidade; e igualmente os Privilégios exclusivos
de Boticas, e Estalagens, sem que por isso fiquem seus donos privados do uso, que, como par-
ticulares. podem fazer das ditas propriedades.
Art. 3.° Ficam também extintas todas as obrigações, e prestações consistentes em fru-
tos, dinheiro, aves, ou corazis, impostas aos Habitantes de qualquer povoação, ou distrito, a fa-
vor de algum Senhorio, pelo simples facto de viverem naquela Terra, por terem nela Casa, ou
Eira, por casarem, por irem buscar água às fontes públicas, ou a elas levarem seus Gados, por
acenderem fogo, por terem animais, ou por outros quaisquer títulos, e denominações de igual,
ou semelhante natureza. E bem assim quaisquer Privilégios graciosos, que obstem à livre nave-
gação dos Rios caudais, e navegáveis, cessando logo os Direitos, que por isso se pagavam.
Art. 4.° O Privilégio chamado de Relego, pelo qual a Coroa, Donatários dela, ou quais-
quer outros agraciados, tinham a venda exclusiva dos Vinhos em certos meses do ano, fica
igualmente extinto.
Art. 5.° Ficam também suprimidos os Privilégios exclusivos, que se têm estabelecido
em algumas Cidades, e Vilas, pelos quais nenhuma pessoa pode vender outros frutos, ou líqui-

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dos, senão os produzidos nos seus próprios Termos, enquanto os houver.
Art. 6.° Os Serviços pessoais, de que se faz menção no Artigo primeiro, adquiridos por
título oneroso, serão indemnizados; ficando à escolha do devedor, ou reunir o Capital, por justa
louvação, ou sub-rogar ao Serviço anual o equivalente com dinheiro, ainda no caso de haver
alternativa estipulada. Exceptuam-se desta indemnização os serviços pessoais, que se devem
prestar à Coroa, ou a seus Donatários.
Art. 7.° A extinção dos Direitos indicados nos Artigos antecedentes, e que actualmente
andarem arrendados, começará somente a ter efeito no primeiro de Janeiro de mil oitocentos e
vinte dois, se antes não findarem os Contratos.»
Ficavam efectivamente banidos os mais salientes dos vestígios do Senhorialismo que
assumia a forma de trabalho servil, de tributo pago pelo habitante ao servir-se do Forno, do
Moinho, do Lagar, da Botica, da Estalagem que pertenciam ao Donatário; ou por colher Frutos,
ter Animais, vender Vinho, matar Porco, acender Fogo, ir buscar água à Fonte, dar de beber ao
Gado ou casar-se. A imaginação senhorial portuguesa tinha efectivamente sido fértil na cons-
trução da rede onde a existência humana se prendia, porque muitas outras obrigações regionais
e costumeiras existiam, tendo nesta lei contemplação ou interdição genérica. Embora os Histo-
riadores reconheçam que o sistema desta forma banido não chegava a alcançar o requinte dos
autênticos feudalismos europeus que despertavam as mais cruéis revoltas camponesas, facil-
mente se compreende o alívio sentido com a sua extinção. Mas não podemos deixar de enten-
der também que a ideia dos autores de lei de 1821 não seria a da libertação do ser humano do
peso dos impostos, mas apenas a correcção do agravo qualitativo, porque não seria perdoada
a transferência dos pagamentos para o Estado, segundo sistemas fiscais não menos complexos,
em que todos ficaram enredados. Talvez fossem alguns mal entendidos que deram vulto a de-
senvolvimentos subsequentes.

Prelúdio do drania florestal português

Foi na sequência legislativa referida que se verificou o acontecimento que, muito justa-
mente, levou Baeta Neves a proferir palavras doridas ao celebrar, em 1965, com seu estudo
«Dos Monteiros-mores aos Engenheiros Silvicultores» o I Centenário da Fundação do Ensino
Superior Florestal: «o decreto que acaba com os cargos de Monteiro-mor do Reino, Monteiro-
mores e menores, Coudeis e todos os mais lugares da sua dependência, por os considerar além
de inúteis, gravosos e opressivos ao público, pôs-lhe um termo inesperado e aparentemente in-
justo».
O mesmo Autor demonstra que, em Portugal, os documentos mais antigos respeitantes
a Monteiros se referem às Serras de Soajo e às matas do Botão, nos tempos de D. Afonso III.
Nas Inquirições os serranos de Soajo são referidos como «monteiros e quando correm monte
por si, dão a el-rei as espáduas dos porcos monteses grandes que matam e se matam urso dão
a el-rei as mãos: e se correm monte sete semanas antes do entrudo e três semanas antes da Qua-
resma não dão ao rei nada do que matam».
Baeta Neves refere depois a nomeação de um Monteiro-mor feita por D. Fernando para
governar matas de dimensão desmedida. O documento citado por Gama Barros é o seguinte:

266
«D. Fernando, provendo em 1381 o cargo de monteiro mor d'uma extensa circumscrip-
ção, cargo que vagara por óbito de quem o ocupava, dá-lhe as seguintes attribuições e regalias:
informava sobre a idoneidade dos pretendentes a monteiros menores ou guardadores, e a infor-
mação era prestada na presença de tabellião em escriptura que este lavrava, e com a qual o pre-
tendente havia de se apresentar na corte: cumpria-lhe, por si e seus subordinados, guardar as
mattas a seu cargo impedindo que alguém se aproveitasse da madeira, porém aos lavradores e
moradores das cabeças das matas era permitido cortar aquela de que precisassem para a lavou-
ra e para construção de suas casas, em sítios das mattas em que o monteiro mor ou os seus
agentes entendessem possíveis os cortes sem as prejudicar: devia obstar a que se corresse mon-
te com qualquer caça, ou se mettessem porcos excepto sendo dos lavradores e moradores dos
arredores em quanto houvesse lande; fora d'este caso, os suínos que fossem encontrados po-
diam ser mortos pelos guardadores. Pôr fogo nas mattas, cortar ou descascar madeira, colocar
ali armadilhas, matar porcos ou bácoros montezes, punia-se com a multa de cinco libras para
o monteiro mor e guardadores, a todos os quais cabia auctoridade de prender quem lhes deso-
bedecesse; os presos eram entregues às justiças, que não os podiam soltar sem ordem do rei e
deviam prestar todo o auxilio necessário para se effectuarem as prisões. O monteiro mor estava
isento de dar pousada, a quem quer que fosse, na casa onde morava, e ninguém podia tirar-lhe
roupa, lenha, palha, victualhas, gados, ou quaisquer outras coisas. Não pagava Fintas nem ta-
lhas, nem era obrigado a contribuir para obras publicas; não tinha parte em nenhuns encargos
do concelho onde residia, e também gozava da isenção do serviço militar, por mar e por terra,
salvo indo o rei pessoalmente.
Nos feitos judiciais, em que ele ficasse vencedor, pertenciam-lhe as custas de cavalleiro,
isto é, quatro soldos e meio em cada um dia. Era o Juiz das demandas que os seus subordina-
dos tivessem entre si, menos das criminaes. Podia andar armado em toda a circumscripção a
seu cargo.
Também os monteiros menores ou guardadores eram excusos da aposentadoria passiva;
do fornecimento de quaesquer coisas suas próprias; de contribuições e serviços, e em geral de
quaesquer encargos municipaes, nos mesmos termos em que o era o monteiro mor. Entende-
mos que pertenciam à classe de peões, porquanto para que aquelle cujo provimento vamos aqui
seguindo não pagasse jugadas nem oitavos, julgou-se necessário dar-lhe expressamente esse
privilegio; e ainda porque se declara que se elle estiver comprehendido na vintena do mar, ou
for besteiro do conto, fica dispensado desses serviços.»
Da leitura do presente texto deduz-se que, nesta época, a defesa da caça seria a tarefa
dominante estando vedado à população «correr monte com qualquer caça» reservando-se e
apenas aos moradores o direito de colher a madeira «que precisassem» em sítios demarcados
das matas «sem as prejudicar», podendo meter nelas os porcos mas somente «enquanto hou-
vesse lande». Isto é, a vegetação teria que ser preservada por ser indispensável como abrigo
das espécies venatórias e o pastoreio não podia reduzir a disponibilidade alimentar para susten-
to das mesmas espécies.
Mas o Monteiro-mor do Reino foi nomeado pela primeira vez por D. João I que lhe deu
poder «sobre todos os monteiros que temos postos pelas comarcas». Depois disto os Montei-
ros-mores começaram a ocupar-se também do governo e defesa das florestas e dos seus produ-

267
tos como as madeiras de construção, as lenhas destinadas a combustível ou carvoaria, o que os
identifica, na época, com os Silvicultores homenageados no referido Centenário.
Para além das Montarias reais existiam vastíssimas Coutadas do Rei e de Nobres que
formavam espaço contra a rapina dos rurais. Tal rapina era motivada pelo impulso do caçador
que a natureza a todos deu para defesa da vida, e também pela necessidade de estabelecer o
equilíbrio alimentar, em face da carência de proteína animal que sempre se apresentou endémi-
ca, ou então para combater a Fome.
Assim, a Montaria do Rei, as Coutadas reais ou da nobreza, os Monteiros-mores, tudo
representa o «desporto» mais vulgar e, indirectamente, o aparelho funcional destinado a en-
frentar o drama da delapidação de recursos naturais que, de outra forma, se alargaria rapida-
mente. Antes, e à margem destas precauções, as agressões praticadas sobre a natureza vulne-
rável, extinguiram espécies animais e vegetais, sucessivamente, sendo recente demais o mo-
mento em que o alarme, quanto à gravidade do processo encontra implantação satisfatória no
mundo das ideias, mantendo-se praticamente ineficaz perante a insensatez do consumo ime-
diato. E, no entanto, a tradição é dolorosa.
Em dependência muito estreita do clima e da orografia, a floresta, servindo de enqua-
dramento de paisagens as mais variadas, conserva, sob incidência das chuvas tropicais, feição
selvagem, na verdura constante de árvores de folha persistente. Noutros climas a floresta des-
pe-se no inverno, ou conserva as folhas na estação chuvosa, perdendo-as na estação quente.
Quando situada no limite dos favores do clima apresenta folhas aciculares sempre verdes. No
seu enquadramento ecológico, a floresta tanto se pode apresentar densa, quando as copas das
árvores se tocam, como aberta, com árvores dispersas que, por vezes, acabam por isolar-se na
tortura e no sofrimento, castigadas pela secura ou pelo vento, o que sugere o prenúncio da mar-
cha do deserto.
A floresta foi consagrada a divindades que presidiam à harmonia nos bosques. Era aí
que os Silvanos habitavam, dedicando-se a diversões que assustavam s viajantes, infundindo-
-lhes indiscritível pânico. Também os Faunos, que velavam pela fertilidade dos campos e pela
fecundidade dos gados, percorriam os bosques.
Para além da mitologias floresta ofereceu sempre aos nossos Avós recantos onde cele-
bravam os seus amores, e refúgio onde curtiram os seus ódios e temores. E, assim, a floresta,
tanto se apresentou como barreira posta ao serviço de defesas vitais, como obstáculo capaz de
esconder feras, inimigos, fantasmas, mistérios. Perante as necessidades de segurança e de con-
sumo, a floresta foi sempre objecto de constantes destruições e recolecções. Manobrando o fo-
go, tanto os pastores como os agricultores abriram clareiras mortais, e depois nunca abando-
naram a rapina dos destroços. Não admira que a defesa medieval dos restos de florestas deter-
minasse reclamações em Cortes contra as Coutadas. Servem de exemplo as de 1498 que Da-
mião de Gois refere: «que o povo recebe muito dano por no reino haver muitas coutadas, e ofi-
ciais delas, pelo que reservando algumas para desporto del-rei, lhe pedem que decoute as ou-
tras ficando guardadas as coutadas antigas das pessoas particulares». El-Rei decidiu com gene-
rosidade que se não pode bem avaliar se é apenas relativa: «As havemos por descoutadas, ti-
rando a coutada da nossa cidade de Évora, de lebres e perdizes, e Almeirim, e Sintra, e Riba
Tejo desde Chamusca, até ao barco das enguias, e do rio de Coina até Azeitão e Sezimbra, com

268
todas as coutadas antigas que há na ribeira de Canha, e Cabrela, e as montarias de Soajo, e Ca-
bril, e todo o termo de Alcácer, com a charneca da Ladeira e assim mesmo as matas, e monta-
rias de Óbidos com todas as outras da serra, e assim ficará o paul de Ota, e todas as outras fi-
quem descoutadas». Não poderá saber-se o que ficou «descoutado» para se avaliar qual foi o
alívio de dano concedido ao povo. No entanto o que ficou defendido constitui domínio particu-
larmente vasto.
Seja como for, no mundo, a montaria e a coutada formavam o cenário das caçadas de
«desenfado» dos reis e dos nobres, sem que deixassem de ser, nos períodos de perturbação so-
cial, a rapina do povo, que se empaturrava. De qualquer modo as peles das peças abatidas abas-
teciam o mercado. O «desenfado» venatório constava de montarias e de altanarias, antes de se
generalizarem armas constantemente melhoradas. A montaria era o desporto nobre e nela, com
o auxílio de cães, se abatiam os ursos, veados e javalis. A altanaria ou falcoaria representava
arte requintada de ensino e treino de aves de rapina como o falcão. O povo usava armadilhas
ou candeio de noite, o que era proibido.
Acontecia porém que as coutadas davam abrigo à fauna selvagem que causava sérios
prejuízos nas culturas da vizinhança, o que também explica as reclamações e os protestos: «os
porcos monteses e os cervos e ursos e perdizes e lebres e outras caças as quais fazem grandes
danos nas lavouras e frutos». Mas as disposições respeitantes a caça apresentavam-se constan-
tes e D. Sebastião estabelece o defeso da caça às perdizes em Março, Abril e Maio, e penas pa-
ra quem tirasse ou quebrasse os ovos. As limitações jurídicas aperfeiçoaram-se e passam a fi-
gurar nas Ordenações, chegando a criar-se o cargo de Caçador-mor que «dava a luva a el-rei,
põe-lhe o falcão na mão e vai a seu lado». Assim a caça, como a pesca, era simultaneamente
recreio, desporto, indústria, complemento alimentar, tudo fortemente enraizado nas tradições
e na vida. Não admira, portanto, que passassem a ser odiados os privilégios que a coutavam
em benefício de poucos. Não admira que. de entre as primeiras leis liberais, figurasse a aboli-
ção das montarias e coutadas, transformando a caça em «res nulius» o que, para animais livres
e selvagens, passaria a representar a extinção ecológica inevitável e absurda.

A Constituição de 1822

No dia 23 de Setembro de 1822 as Cortes deram por concluída a Constituição que, no


dia 1 de Outubro do mesmo ano D. João VI jurou, acrescentando à leitura da fórmula de jura-
mento que lhe deram, significativas palavras expontâneas: «é verdade que assim heide cumprir
e assim o juro e prometo de todo o meu coração».
No Brasil já o Regente D. Pedro jurara as bases da Constituição que Lisboa lhe enviara,
mas o movimento favorável à independência envolvera-o com crescente intensidade. Pouco
antes, em 7 de Setembro de 1822, D. Pedro, nas margens do Ipiranga proclamara o grito his-
tórico de «Independência ou Morte». Ficaria assim consumado o facto único na descoloniza-
ção de grandes espaços dominados, de o colonizador ser o arquitecto da independência, procla-
mando-a no limiar da guerra que se apresentava sem alternativa.
Não pode deixar de se reconhecer que as Cortes nascidas da Revolução de 1820, tive-
ram a sorte de reunir homens generosos e ilustres que, sem submissão a Partidos Políticos, ela-

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boraram a mais notável das Constituições portuguesas, contendo preceitos que se colocaram
muito à frente dos anseios ou das aspirações do Povo amargurado pelo infortúnio de afrontosas
submissões económicas e sociais. Os Historiadores reconhecem que tal Constituição não cor-
responde de perto a figurinos da Revolução francesa, nem coincide com o que poderia signi-
ficar próximo parentesco com a Constituição espanhola de Cadiz. Registam que os seus inspi-
rados autores tiveram largas razões para poderem afirmar que «bem longe de se entranharem
no labirinto das teorias dos publicistas modernos foram buscar as principais bases para a nova
Constituição ao nosso antigo Direito Público, posto acintemente em desuso pelos Ministros
despóticos que lisongeavam os reis à custa do povo».
Teria sido assim que os portugueses viveram a oportunidade de saber em 1822, que «a
liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer
o que ela não proíbe». E mais ainda que «ninguém deve ser preso sem culpa formada»; que «a
casa de todo o português é para ele um asilo»; que «a propriedade é um direito sagrado e invio-
lável»; que «a livre comunicação do pensamento é um dos mais preciosos direitos do homem»;
que «a lei é igual para todos»; que «nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem
absoluta necessidade»; que «toda a pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma passará
da pessoa do delinquente»; que «fica abolida a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os
açoites, o pregão, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis ou infamantes»; que
«todos os portugueses podem ser admitidos a cargos públicos, sem outra distinção que não seja
a dos seus talentos e das suas virtudes»; que «ofícios públicos não são propriedade de pessoa
alguma»; que «o segredo das cartas é inviolável»; que «todo o Português deve ser justo».
Bastam talvez estes exemplos, para entender que a Constituição de 1822 continha a car-
ga ideológica bastante para lhe atribuir a qualidade de mensagem desmedidamente avançada,
em face dos limitados conceitos sociais do tempo. Efectivamente oferecia garantias de que os
portugueses não imaginavam sequer poder dispor-se, ou de que tinham sido desapossados pelo
despotismo iluminado, se acaso e por ventura, alguma vez as viram asseguradas.
A Rainha, D. Carlota Joaquina recusou prestar obediência à Constituição e foi compe-
lido pelas Cortes a abandonar o Reino. Mas apenas deixou o Paço da Bemposta refugiando-se
com a corte na Quinta do Ramalhão.
Em 1823 eclodiu a revolta em Vila Real a que se acrescentou outra, mais grave, em Vila
Franca com a presença do Infante D. Miguel. O Rei, contemporisador por seu feitio ou atitude,
aceitou razões dos conjurados — «quando a maioria de um povo se declara tão aberta e hostil-
mente contra as suas Instituições, estas Instituições carecem de reforma«. Assim, a Constitui-
ção teve, por esta vez e logo à nascença, os seus dias contados, ficando suspensa. Mas D. João
VI recusou a oferta de Poder Absoluto que lhe era feita por D. Miguel e seus partidários —
«eu não desejo nem desejei nunca o poder absoluto, e hoje mesmo o regeito: os sentimentos
do meu coração repugnam ao despotismo e à opressão». Depois da Abrilada o Rei refugiou-se
a bordo de uma nau inglesa e deportou D. Miguel, fixando-lhe residência em Viena de Áustria.
Mas a Constituição estava suspensa e o Rei, com seus poderes restituídos, revogou parte
da legislação liberal das Cortes Constituintes, mantendo o que se referia a direitos banais. Aca-
bou também por reconhecer a independência do Brasil, vendo desmoronar-se o sonho do Rei-
no Unido de Portugal... e outros territórios.

270
Sentindo avizinhar-se a morte, entregou a regência a sua filha a Infanta D. Isabel Maria.
Passado pouco, morreu, e D. Pedro, no Brasil, ao receber a notícia, promulgou a Carta Cons-
titucional que elaborara para pacificação política dos portugueses. Quanto à sucessão, D. Pe-
dro preferiu manter-se Imperador do Brasil, continuando D. Isabel Maria com a Regência, até
que a Filha de D. Pedro, D. Maria, de sete anos de idade, viesse a contrair matrimónio com seu
Tio D. Miguel, sucedendo no trono português.
A Carta Constitucional foi jurada em Lisboa, pela Regente e forças vivas nacionais e,
depois, por D. Miguel, na Áustria.

O desencanto em face do novo regime

Concluída a tarefa das Constituintes, a máquina eleitoral começou logo a povoar o re-
cinto parlamentar com a mais infeliz selecção de Deputados. O terreno encontrou-se aberto à
defesa dos mais desvairados interesses, conduzindo ao desencanto popular do abandono das
melhores esperanças quanto ao futuro nacional. Aconteceu, porém, que à margem desta regra,
em 1822 foi eleito Deputado às Cortes, pelo Círculo de Beja, o Abade Correia da Serra, natura-
lista de grande renome, emigrado nos tempos do Marquês de Pombal, que retornou quando D.
Maria ascendeu ao Trono, para, ao lado do Duque de Lafões, fundar a Real Academia das
Ciências de Lisboa. O seu exílio voltara a repetir-se, quando o cerco do Intendente Pina Ma-
nique de novo o obrigara a correr mundo desde a França à América. A Revolução Liberal atraiu
mais uma vez o Abade quando «era uma verdadeira múmia; vinha acabar os seus dias à pátria»
como descreve o Marquês de Fronteira e D'Alorna. Mas, quando «foi à Câmara veio de lá
completamente desorientado. Foi então que pela primeira vez leu a Constituição e, pelo que
ouviu na discussão e leu, concluiu dizendo que escavamos mais democratas do que nos Esta-
dos Unidos, que instituições republicanas com monarquia era uma experiência muito arriscada
e que lhe parecia que a reaparição do absolutismo era infalível».
O ódio instalava-se a dividir as comunidades e as famílias, na mais sombria bipolariza-
ção política que constitua, sem dúvida, o prelúdio da guerra civil. A regente, Infanta D. Isabel
Maria, não alcançava assegurar a pacificação do Reino, enquanto D. Miguel aguardava a opor-
tunidade de regresso a Portugal, celebrando, em Viena, por procuração, os mais incríveis dos
esponsais com sua inocente Sobrinha, D. Maria, ainda menina.
O desmantelamento das leis vintistas representa a tentativa de recuperação do senhoria-
lismo. Ao longo do espaço rural multiplicam-se os esforços para combater, com auxílio da tro-
pa, a generalizada obstrução quanto ao pagamento dos tributos que as Cortes liberais haviam
reduzido. Declarava-se a «greve das rendas» como manifestação camponesa, raras vezes vio-
lenta, mas constante e obstinada, no comportamento e na forma e letra das petições, firmes e
legalistas. Quanto a este aspecto de suma importância, apresentasse esclarecedor o estudo de
Nuno Gonçalves Monteiro intitulado «Lavradores, frades e forais. Revolução Liberal e Regi-
me Senhorial na Comarca de Alcobaça (1820-1824)». O Autor afirma que «a legitimidade do
regime senhorial é frontalmente questionada por actos e palavras, os direitos senhoriais devi-
dos a um donatário eclesiástico só são cobrados pela força». E realça ainda que «é diminuta a
presença da violência. As poucas acções violentas raras vezes ultrapassam o âmbito da aldeia

271
ou lugar e são escassamente ritualizadas. Ao invés das erupções súbitas, incontidas e violen-
tas de cólera que caracterizam as revoltas camponesas, o movimento parece obedecer a uma
estratégia controlada e persistente de adaptação às circunstâncias, procurando sempre legiti-
mar-se no terreno da lei geral». O Autor afirma que nesta altura tudo decorre assim «apesar do
posterior apoio militante da região ao campo liberal, durante a Guerra Civil de 1832-1834».
Quando, em 1828, D. Miguel finalmente desembarcou em Lisboa, foi recebido com
enorme entusiasmo popular que os Historiadores pretendem explicar destacando motivações
complexas. O Príncipe era dotado da melhor apresentação física que ocultava, por ventura, a
desmedida ambição de Poder que o orientava tornando-o um político cruel, sem dispor de ca-
pacidade ou de preparação intelectual bastante. Para além de tudo, o processo histórico em que
se inseria, dava-lhe lugar no esquema do «sebastianismo» que alimentava a fantasia ou crença
do ovo sofredor e atraiçoado. Talvez por isso foi saudado com a explosão de sentimentos gene-
rosos de sinceridade que caracteriza o fascínio popular — as mulheres afirmavam que o Rei
era bonito, como outro nunca houvera — instalando-se a esperança de ver restaurado o símbo-
lo do Poder «necessário e natural» que se julgava estar perdido.
Depois de jurar, de novo, a Carta Constitucional e a fidelidade a D. Pedro e sua filha D.
Maria, que havia de vir a ser sua Rainha, D. Miguel escolheu Governo que declaradamente se
opunha ao Regime Liberal.
D. Miguel recebeu apoio do Senado de Lisboa e de Autarquias de. muitas Terras por aí
fora. A Universidade de Coimbra enviou delegação a prestar homenagem ao Regente. Mas, por
alturas de Condeixa, um grupo de estudantes assassinou os Lentes, acabando alguns por serem
presos, conduzidos a Lisboa, condenados a enforcamento. Simultaneamente eclodiu revolução
no Porto, chegando a vir de Inglaterra, Palmela e Saldanha no vapor Belfast. Depois de alas-
trar a outras regiões, tudo foi sufocado. Então, D. Miguel convocou as Cortes à maneira tradi-
cional, reunindo no Paço da Ajuda os três Estados, sendo grande a dificuldade para a escolha
dos procuradores do Povo. O Desembargador José Acúrsio das Neves aplaudiu «a sábia e mag-
nânima resolução que Vossa Alteza tomou de firmar o ceptro português sobre as ruinas da re-
volução». As Cortes reuniram de novo e aclamaram D. Miguel, Rei Absoluto de Portugal.

272
34 — DE NOVO A MONARQUIA ABSOLUTA

Afigura-se-nos que a Agricultura, obedecendo ao ritmo estacionar do seu comporta-


mento biológico, acusa grande margem de indiferença perante políticos. Daqui não se pode
concluir que as decisões humanas se não repercutam na construção das estruturas ou no fun-
cionamento de actividades específicas. Mas o que existe e que pretendemos destacar neste
momento, será a grande capacidade natural do sistema para compensar as feridas que no seu
corpo são rasgadas pelos grandes acontecimentos sociais e económicas. Existem mecanismos
providenciais que regulam a Agricultura como instrumento de defesa e conservação da vida.

A prodigiosa «maçã da terra»

Pertencendo à Família botânica das Solanáceas a batata apresenta parentesco com va-
liosas plantas cultivadas, como o pimentão, a beringela, o tomateiro e mesmo o tabaco. Tendo
recebido a designação botânica de Solatium tuberosum, a planta que foi encontrada pelos Espa-
nhóis, em cultura, na América do Sul, foi trazida para a Europa no século XVI. Segundo Artur
Castilho teria sido levada do Peru para a Galiza entre 1570 e 1580, encontrando-se por essa al-
tura referências à cultura a que os indígenas davam o nome de papás. Outros navegadores le-
varam a planta à Irlanda tendo sido também ensaiada nos arredores de Londres.
Porque a rama da batateira contém solanina, um gluco-alcaloide venenoso, que também
se encontra em menor quantidade nos tubérculos, especialmente na casca e nos olhos, a sua di-
fusão e consumo apresenta grandes dificuldades. Nas batatas greladas ou reverdecidas a per-
centagem de alcalóide aumenta até ao ponto de o produto, nestas condições, se tornar nocivo
para a saúde. Refere o Agrónomo J. Sampaio d'Orey na Ene. Verbo que, na Rússia, no tempo
de Pedro o Grande deram o nome de «maçã do diabo» a esta planta nova.
Fortemente vocacionada para se circunscrever a ecologia restrita, sensível ao clima que
prefere temperado, adaptando, no entanto, o seu curto ciclo vegetativo à primavera e verão de
regiões de inverno frio, melhorando com a altitude, a batata encontrou lenta e difícil difusão
europeia, pelas numerosas e diversas variedades que a sua cultura proporcionou, na cor da pol-
pa, na diversidade do sabor, e no comportamento à cozedura. Foi com enorme dificuldade que
esta planta, cultivada na cordilheira dos Andes, acabou por revelar, ao fim de dois séculos de
ensaios noutros climas, o poder revolucionário, que transformou profundamente sistemas
agrários e alimentares europeus e americanos. Na verdade, ao longo dos séculos XVII e XVIII,
o consumo de batata amorteceu muitas Fomes determinadas pela carência de produção de ce-
reais. Mas o aspecto lento da sua expansão pode talvez ser entendido se tivermos em conta que
as variedades se sucederam umas às outras, substituindo-se rapidamente, por caírem no desa-
grado dos produtores em face de outras melhores que as substituam. Muitas, enfraquecidos pe-
la cultura sucessiva, ou susceptíveis aos ataques de pragas, perderam as qualidades iniciais,
sendo substituídas por outras mais resistentes. Terá importância ainda considerar que esta «ma-
çã da terra» dificilmente se conservava, não tendo portanto as qualidades necessárias para ser

273
submetida a armazenamento. Por isso nunca substituiu ou igualou cereais, ou produtos dura-
douros, como o feijão, o vinho ou o azeite, para pagamento de foros, de rendas ou de pensões,
não constituindo portanto produção agrária da simpatia ou interesse dos senhorios ou donatá-
rios.
No entanto a lenta difusão da cultura processou-se nas Ilhas Britânicas, onde foram reu-
nidas as mais ricas colecções de variedades, na Alemanha e França, especialmente. Em França,
o mais conhecido propagandista da cultura foi o Agrónomo Parmentier. no final do século
XVIII, com suas investigações quanto, «a vegetais que nos tempos de fome, podem substituir
os alimentos correntes». Conta-se que Parmentier, em dada altura, tendo obtido uma bela plan-
tação de batata, mandou-a guardar por soldados, a quem recomendou que simulassem dormir
para que as «maçãs da terra» fossem roubadas, manhosamente, pelos camponeses, que se con-
venciam do seu valor por estarem guardadas. Assim a batata deixou de ser produto exclusiva-
mente forrageiro, como durante muito tempo se manteve por falso preconceito, passando a
constituir a base de generalizados regimes alimentares.
Em Portugal a difusão da cultura é recente. Afirma-se que as primeiras batatas «teriam
sido vistas em Trás os Montes, nas provisões dos soldados das invasões napoleónicas». Assim,
refere Artur Castilho que em 1844 «determina a Academia Real das Ciências que seja impresso
à sua custa, e debaixo do seu privilégio, o Manual Prático da Cultura das Batatas e do seu uso
na Economia Doméstica, que lhe foi apresentado pelo seu sócio o Visconde de Vilarinho de S.
Romão».
Foi assim que, muito recentemente, a cultura da batata revelou o seu efeito revolucio-
nário, particularmente em Trás os Montes, Beiras, Minho e na margem esquerda do Tejo.
Quanto ao consumo, o produto apresenta-se hoje nas mais variadas composições culinárias.
Efectivamente a batata tanto tem servido para matar a fome de famílias camponesas, como pa-
ra acompanhar as mais requintadas iguarias.

Ainda o drama florestal português

Exemplares da Família das Fagácias do Género Quercus, reunindo plantas caducifólias


e perenifólias, na dependência das influências atlântica ou mediterrânica que determinaram os
grandes contrastes do clima português, constituíram a imponente Floresta que serviu de berço
e de amparo ao povoamento humano em Portugal. Não somente os frutos — as landes ou bo-
lotas de valor alimentar muito diverso conforme as espécies — mas também a madeira, as cas-
cas, as folhas, a sombra e o abrigo, serviram de apoio à recolecção primitiva e, depois à pasto-
rícia e a múltiplos aproveitamentos industriais. Entretanto a destruição ameaçava a floresta
quando escondia as feras e se opunha ao pastoreio nómada, ou obrigava à abertura de clareiras
de agricultura itinerante. A protecção arbórea só passou a ser respeitada no Sul, quando a sil-
vo-pastorícia se instalou, com cerealicultura sob coberto e quando passou a ter valor a cortiça
dos sobreiros.
O Quercetum caducifólio teve o seu valor no Norte e Centro, revelando maravilhosa
exuberância quando lhe é consentido assento nos sítios mais frescos, de solo não calcário nem
de altitude elevada. Nesse solar destaca-se o Quercus robur, L., o majestoso Roble atlântico

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que se veste na Primavera de gomos tenros e doirados que, no Verão, desabrocham em folhas
de um verde refrescante para, no Outono, novamente aloirarem, acabando por tombar, melan-
colicamente, a fim de as copas se oferecerem, transparentes, ao sol do Inverno.
O monumento vegetal atlântico, enquanto a ocupação humana o consentiu, foi mantido,
vigoroso, pela abundante precipitação atmosférica, embora mal repartidas À chuva vinham
acrescentar-se orvalhos e geadas e tudo ficava envolto no mistério de densos nevoeiros. O
chão, granítico, arenoso, solto, permeável, alimentava copiosas fontes e não oferecia obstáculo
aos rasgos do arado. Solo pobre, quanto à origem, apenas fertilizado pelas folhas mortas da
floresta viva, acumulavam o húmus onde as clareiras do pastoreio e dos granjeies agrários fo-
ram abertas. Em consequência da ocupação humana, com as queimadas e as chuvas abundan-
tes, a erosão desnudou montanhas fazendo aflorar a rocha e assoreou os rios cujas margens fo-
ram galgadas por cheias inclementes. Do Quercetum caducifólio apenas restam alguns resídu-
os no Minho e nas Beiras. As matas mais representativas encontram-se no Parque Nacional da
Peneda-Gerês, sendo muito importante que se mantenham efectivamente defendidas.
No Quercetum perenifólio assume grande importância o Sobreiro, Quercus suber, L cu-
jo estudo J. Vieira Natividade empreendeu no Tratado de «Subericultura». Depois de assinalar
que o refúgio do Sobreiro está circunscrito à região mediterrânica, Natividade descreve a sua
implantação em Portugal:
«O sobreiro, em Portugal, vegeta com inteiro à vontade nos territórios das outras espé-
cies lenhosas, sem obediência às fronteiras traçadas pela fitogeografia. De todas as nossas ár-
vores é a que se encontra mais largamente disseminada no País. Encontramo-lo no Norte, no
solar do castanheira, do roble e do carvalho negral; junto ao litoral, do Tejo ao Minho, luta sem
proveito nem glória com o pinheiro bravo: associa-se ao carvalho português na Estremadura,
à azinheira e ao pinheiro manso no Alentejo e vegeta a par da alfarrobeira nas quentes serras
algarvias.
Se excluirmos a terra fria trasmontana, onde ainda assim o sobreiro nos surge aqui e ali;
se pusermos de lado as cumeadas de algumas serras ou as vertentes mais frias das montanhas
nortenhas, verifica-se que, do Minho à campina de Faro, o sobreiro não só vive em boas con-
dições, por vezes num ambiente tão ingrato que exclui quase todas as espécies lenhosas da nos-
sa flora, senão ainda suporta o descortiçamento exagerado e as brutais mutilações na ramaria,
indicação, segura de que no território nacional encontra o seu óptimo ecológico.
Tudo indica que em remotos tempos o sobreiro ocupou na arborização de Portugal lugar
de grande relevo; e se há que admitir que no Sul, pela acção selectiva do clima, teve sempre
maior desenvolvimento a floresta de carvalhos de folha persistente (sobreiro e azinheira), a tão
marcada distribuição actual não se pode atribuir a uma decidida preferência do sobreiro por
determinadas condições edafo-climáticas, mas antes às múltiplas circunstâncias que. no decur-
so dos tempos, favoreceram ou contrariaram a sobrevivência da floresta de sobro.»
E, mais adiante:
«No Centro do País, e mais particularmente no Alentejo, se bem que lutas frequentes
numa época anterior à constituição da nacionalidade hajam reduzido a área suberícola, a flo-
resta natural, mercê da menor densidade da população, do clima mais árido, da forma por que
se realizou o povoamento, e graças também à protecção dispensada aos arvoredos pelas nossas

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leis agrárias, pôde atravessar, não sem graves danos, minguando, fragmentando-se e degradan-
do-se, um longo período de quase sete séculos. Só a partir do começo do século XVIII a valo-
rização da cortiça revelou que imprevista riqueza constituíam os montados de sobro, e só então
a subericultura portuguesa, verdadeiramente, nasceu.
Nos territórios Entre o Douro e o Minho, mais férteis e já densamente povoados antes
de se constituir a nacionalidade, os núcleos florestais tragmentaram-se corroídos pela cultura
agrícola. O mais intensivo aproveitamento da terra, o incessante parcelamento da propriedade,
expulsam o sobreiro das regiões mais férteis como espécie de pouca valia, e onde aliás ela não
pode competir com as outras quercíneas de mais rápido crescimento e tidas então em maior
apreço. Nas regiões montanhosas e mais agrestes do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira-Alta
e da Beira-Baixa, a floresta natural, abrigo de animais daninhos que ameaçam as culturas, ou
reduto de feras temidas pelo próprio homem, e que dizimam os rebanhos e constituem impedi-
mento ao pastoreio, desaparece a pouco e pouco pela acção destruidora do togo, do homem e
dos gados. Os terrenos baldios, cobertos por uma vegetação pobre que substitui a floresta clí-
mace, estendem-se hoje ainda por centenas de milhar de hectares.
A existência de bosquetes relíquias nas montanhas mais setentrionais do País, como. por
exemplo, nas Serras do Gerês e de Bornes; os minúsculos povoamentos que se nos deparam
um pouco por toda a parte, do litoral às serranias do Marão, da Estrela, do Caramulo, da Lousã
e da Guardunha; a quase prodigiosa regeneração do sobreiral em Trás-os-Montes e no Alto
Douro, consentindo, ainda nos nossos dias e pela simples protecção aos chaparros nascediços,
que se constituíssem as valiosas manchas suberícolas de Mirandela e do Tua — deixam entre-
ver o importante lugar que o sobreiro deve ter ocupado na arborização das províncias ao norte
do Tejo, e que ocuparia ainda hoje se não tivesse sido aniquilada grande parte do avultoso pa-
trimónio florestal de recuadas eras.»
A arborização característica das regiões mais secas é a da Azinheira. Quercus rotundifo-
lia, Lam. que oferece bolota de elevado valor alimentar, mais apreciada do que a do sobreiro.
A floresta de Azinho forneceu madeiras e lenhas, prestando-se ao fabrico de carvão. Como vi-
mos a maior parte do Quercetum perenifólio. de Sobreiro e Azinheira, sofreu os efeitos das
queimadas, transformando-se em charneca desarborizada. No entanto, com a evolução das
técnicas, o maneio de porcos acabou por revelar o interesse dos Montados para engorda ou
acabamento. Assim, muito recentemente esta floresta foi em parte refeita, enquanto os monta-
dos comunitários hoje extintos se prestaram ao pastoreio em comum que no Sul recebeu a desi-
gnação de adua, tal como no Norte se designava vezeira. No caso do Sobreiro, embora a corti-
ça tenha sido motivo de utilização muito antiga, o seu valor industrial somente foi alcançado
em período recente. Não oferece dúvida o interesse pelo Sobreiro e, por isso. Natividade esco-
lheu como pórtico do seu Tratado de Subericultura a ordenação de D. Dinis «...que se não faça
dano, nos soverais» valorizando o profundo sentido da intenção, como atitude profética de de-
fesa, hoje abandonada, do ambiente e do equilíbrio ecológico.
Encontram-se referências de que a cortiça representava matéria-prima para fabrico de
flutuadores dos aparelhos de pesca, tinha aplicação local nos (urros para conservação dos ali-
mentos no Alentejo, e no revestimento de paredes de casas rústicas alentejanas, mercê da apti-
dão da cortiça para garantir isolamentos. O entrecasco era usado na curtimento de coiros e a

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madeira, tal como a de Azinho, tinha múltiplas utilizações e largo emprego nos estaleiros na-
vais. Embora a cortiça já fosse exportada para o Norte da Europa em tempos remotos, somente
passou a ter verdadeiro interesse industrial no século XIX. A este propósito Natividade cita
Sousa Pimentel que, em 1888, escreveu a dolorosa lamentarão «frequentes vezes os incêndios,
que durante dias e semanas vagueavam pelas charnecas, transformavam em imenso cinzeiro
matos e arvoredos... Outras vezes as árvores eram abatidas para aproveitar a casca ou serem
reduzidas a carvão». E comenta que se tal devastação «não logrou fazer desaparecer completa-
mente árvores tão prestadias, como sucedeu com os bosques que em outros tempos cobriam as
montanhas do País, foi devido à extraordinária vitalidade destas árvores». E depois de descre-
ver o drama florestal português nesta época, Natividade afirma: «e se recuarmos até ao alvore-
cer da nacionalidade, o desgaste assume proporções consideráveis; todavia, nunca chegare-
mos. decerto, a saber que parte coube ao sobreiro na grande área de floresta que se sumiu na
voragem dos tempos».

O Mel, o mais antigo dos edulcurantes

A Abelha «doméstica» actual, faz parte da Ordem Heminoptera que, de entre as nume-
rosíssimas Espécies conta a Apidae e, nessa Espécie, o Género Apis, L. onde se destaca a A.
mellifera, L. originária da Ásia tropical. A Abelha ofereceu sempre, na sua existência selva-
gem, ao apetite voraz e guloso de muitos animais, e de homens também, rurais ou ermitões que
se isolavam do mundo. O precioso néctar que, depois de elaborado a partir da flora, armazena
para sustento das suas colónias ou enxames. Mas o mel é sempre defendido pelas obreiras com
picadas de ferrão venenoso, que chega a provocar a morte dos atacantes, alérgicos ou impru-
dentes.
Conhecem-se fósseis de abelhas do Terciário e sabe-sc que o Homem primitivo foi re-
colector do mel, não deixando, o maravilhoso insecto, de figurar em pinturas rupestres. Com
o progresso das Civilizações a abelha selvagem passou a ser domesticada, tornando-se a melis-
sa dos Gregos, a débora dos Hebreus e a ápis dos Romanos. Mas foram os Egípcios que lan-
çaram os fundamentos da apicultura ao conceberem abrigos, simples cortiços em cujo interior
as abelhas constroem os favos que, na altura própria, são roubados em parte ao armazenamen-
to, pelo apicultor, ficando o mínimo de reserva para sustento do enxame. Na América não foi
encontrado insecto semelhante, tendo sido a abelha introduzida pelos espanhóis com os des-
cobrimentos.
A apicultura rudimentar esteve presente, de uma forma generalizada, nos sistemas pro-
dutivos agrários europeus, tanto nas regiões temperadas, como nas montanhas onde o operoso
insecto se adaptava. As malhadas de colmeias eram colocadas estrategicamente em relação às
áreas de «pastoreio». Em resultado da diversidade de pastos onde a abelha recolhe os néctares
florais ou a secreção de plantas, o mel produzido apresenta grande variedade de cor, e de pala-
dar. O mel serviu para preparar bebidas fermentadas sendo também largamente utilizado na
doçaria, fazendo parte das receitas conventuais.
Como edulcurante o mel passou a ser substituído pelo açúcar de cana, que alcançou, co-
mo se referiu, enorme expansão comercial com as navegações venezianas e portuguesas. Mas

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continuou a figurar como alimento presente nas refeições e mezinhas das populações rurais,
que não prescindiam do maneio deste «gado» que procura, ele próprio, o seu sustento sem pas-
tor, mesmo em terras que não pertençam ao dono dos cortiços. Em virtude do alto valor ali-
mentar que o mel representa, pelo sabor requintado e fácil digestão, entrou no comércio aten-
dendo procura constante e generalizada.
No século XVIII progrediram os estudos biológicos da vida e organização «social» das
abelhas e nos meados do século XIX foi inventada a moderna colmeia de quadros móveis e
guarnecidos de folhas de cera moldada com os esboços de alvéolos que as abelhas transfor-
mam em favos, com enorme economia de esforço e grande acréscimo de produtividade. O ex-
tractor centrífugo completou os dispositivos do apiário industrial, onde se procede ao rigoroso
controlo das abelhas mestras, racionalizando as posturas que asseguram o funcionamento e a
renovação dos enxames.
Recentemente, o reconhecimento da acção das abelhas na polinização cruzada das plan-
tas de pomares, aumentou o interesse da apicultura, à qual ficou atribuída nova tunção de
apoio à produção frutícola.

O Governo «miguelista»

Foi duríssima a usurparão miguelista. Por toda a parte voltaram a erguer-se as forcas e
foram mortos e supliciados mais portugueses, do que as vítimas da Guerra Civil que iria ins-
talar-se no Reino. O regime recebeu a designação histórica de «miguelismo» identiticando-se
com a personalidade de D. Miguel de Bragança, irmão do filho primogénito de D. João VI, D.
Pedro, a quem pertencia a legítima sucessão. Não se encontra explicação bastante quanto ao
efeito de implantação social que o «miguelismo» assumiu, mesmo depois da Guerra Civil,
continuando a ouvir-se vivas a D. Miguel em circunstâncias em que se exigia a morte do «ab-
solutismo». Naturalmente, o receio do liberalismo, facultou a D. Miguel a adesão de grande
parte da Igreja que temia programas já experimentados e colocou ao lado do usurpador pode-
rosos representantes da Nobreza, tradicionalistas e receosos da perda de privilégios. O Povo
foi mobilizado nos quadros de numeroso exército, e o prenúncio de tempestades acertou forças
ocultas do banditismo organizado de que serve de exemplo o Remexido, que havia de movi-
mentar-se no Alentejo e no Algarve.

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35 — A GUERRA CIVIL

Era um País doente, Portugal, que se aprontava para sofrer os transes da Guerra Civil.
Em face da situação política criada no Continente. D. Pedro, Imperador do Brasil, abdicou,
passando a considerar-se Duque de Bragança, assumindo o papel de Rei D. Pedro IV. empe-
nhado na defesa dos direitos à Coroa portuguesa de sua Filha D. Maria a quem entregou a su-
cessão de seu Pai D. João VI.

Os preparativos para a luta armada

A revolta liberal eclodiu na Madeira e foi esmagada. Mas saiu vitoriosa nos Açores, o
que proporcionou aos liberais terra portuguesa a servir de refúgio a todos os emigrados. Assim,
a Ilha Terceira voltou a enriquecer a sua História, como baluarte de defesa de interesses nacio-
nais, dando abrigo, de novo, a generosas esperanças. Em 1829, o batalhão de Voluntários da
Rainha, esmagou o desembarque na Praia de 6.000 homens da esquadra enviada por D. Mi-
guel. Acabou depois por proporcionar a D. Pedro a sede da Regência que congregou os libe-
rais perseguidos que receberam homens e material de guerra enviado de Londres pelo Marquês
de Palmela.
Em 3 de Março de 1832 D. Pedro IV desembarcou em Angra de Heroísmo. Oliveira
Martins, em «Portugal Contemporâneo», descreve:
«A Terceira era toda ela um acampamento formigando de gente. Gente de toda a espé-
cie. Liberais vintistas, exaltados e demagógicos, jovens doutores e estudantes, saídos dos ban-
cos de Coimbra, cheios de teoria e de idealismo; escritores e poetas, bafejados ainda pelas
fantasias literárias; veteranos da campanha peninsular, relíquias admiráveis do velho exército
português; voluntários de todos os cantos da Europa, dispostos a tudo pela causa da liberdade;
legitimistas ferrenhos, que viam em D. Maria da Glória o símbolo da legitimidade dinástica;
sonhadores e aventureiros de toda a ordem, catados nas ruas de Londres e Paris e enquadrados
nas hostes guerreiras da rainha fidelíssima.»
Entretanto, fazendo parte deste exército portador de idealismo, de maneira tão forte, tal-
vez nunca igualado por qualquer força armada, encontrava-se na Terceira o mais invulgar dos
grupos de intelectuais portugueses que, este sim, nunca se tinha reunido a discutir reformas es-
truturais. Sente-se ainda, na Cidade de Angra de Heroísmo, nos nomes das ruas, nos jardins,
nos monumentos, no ar que se respira a grandeza e a força do pensamento que aglutinou a
equipa operacional que teria servido de staff ao Ministro da Fazenda José Xavier Mouzinho da
Silveira.
Depois, como se fosse ensaiada a partida à descoberta de um Novo Mundo, fez-se ao
mar a frota composta pela galera onde seguia D. Pedro, uma fragata com a bandeira do Almi-
rante Sertórius, brigues, escunas e embarcações de transporte, num total de quarenta velas, a
maior parte tripuladas por ingleses porque, nessa altura, raros portugueses sabiam marear. No
entanto, a bordo, seguiam 7.500 almas que viriam a inscrever na História de Portugal, o suces-

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so que justamente lhes deu o nome de «bravos do Mindelo».

O desembarque

Em Julho de 1832 os «bravos» desembarcaram na praia do Mindelo e floriram os canos


das espingardas com hortênsias azuis e brancas. O exército miguelista retirou estrategicamen-
te. abandonando a Cidade do Porto, que D. Pedro ocupou. Foram abertas as cadeias e destruí-
das as forcas da Praça Nova. A população atemorizada pela presença próxima de poderoso
exército miguelista que preparava o cerco, saudou timidamente os libertadores desembarca-
dos. Mas, em breve as espingardas queimaram as flores quando soaram os primeiros tiros e
caíram os primeiros mortos. Nessa altura foram escassas as adesões e relata o Marquês da
Fronteira que o Bispo do Porto executou as ordens de D. Miguel e abandonou a Diocese. Mas:
«quando o Reverendo Prelado passava junto ao Convento da Formiga da Ordem dos
Agostinhos reformados, ao retirar-se do Porto seguindo a estrada de Valongo, saía do Conven-
to, na sua liteira, o Reverendo Padre-Mestre Santa Inez, Provincial daquela Ordem, dirigindo-
-se ao Porto para se apresentar ao Regente: era um Frade de setenta anos, cheio de conheci-
mentos e de virtudes, grande partidário da dinastia e da liberdade. Foi logo nomeado Vigário
Capitular e, mais tarde. Bispo eleito. Morreu sem ser confirmado pelo Santo Padre.»
Toda a Revolução autêntica necessita de apoio de ideias, mais do que de soldados ou de
armas. Não resta dúvidas que a Agricultura portuguesa encontrou em Mouzinho da Silveira o
mais generoso e iluminado intérprete da «questão agrária» portuguesa. Mas tanto não bastou
para que encontrasse o seu rumo.

As «leis terríveis» de Mouzinho da Silveira

O trabalho de legislador de Mouzinho da Silveira começou quando D. Pedro entrou a


bordo da fragata «Rainha de Portugal» que o levou de Bell-lsle aos campos de batalha da
Guerra Civil. Sucedem-se os decretos publicados nos Açores, levantando no Reino os seques-
tros de todos os bens, proclamando a amnistia por crimes políticos, reformando as alfândegas
dos Açores.
Afigura-se curioso o decreto n.° 20 de 14 de Maio de 1832 que é comentado da seguinte
maneira por Possidónio Coelho em «Mouzinho da Silveira»:
«na pequena e acidentada ilha do Corvo, a mais insignificante e ocidental do arquipéla-
go dos Açores vivia uma população composta de uns 100 homens, oprimidos pelo despótico
jugo do imposto que eram obrigados a pagar ao donatário da Coroa Pedro José Caupers. Mou-
zinho. impressionado pela situação em que vivia este pequeno núcleo de portugueses, submete
à assinatura de D. Pedro a sua carta de alforria, determinando que os 40 moios de trigo que pa-
gavam ao referido donatário os habitantes desta ilha ficariam reduzidos de futuro a 20 moios.»
Foram notórios os decretos sobre os poderes do Estado, datados de Ponta Delgada e não
deixa de ser curioso que os Frades que nas Ilhas se encontravam em recôndito sossego, tenham
servido de ensaio da legislação destinada a banir Conventos, que foi experimentada nos Aço-
res.

280
Entretanto, na praia de Mindelo não desembarcaram apenas soldados com armas e mu-
nições. Vinham Homens que pensamos nunca saberiam servir-se de uma espingarda como Ale-
xandre Herculano por exemplo e Mouzinho que trazia na mão a pasta onde guardava ainda
«leis terríveis». Logo à chegada o vexatório imposto dos dízimos foi abolido, apresentando
Mouzinho a sua argumentação de que se transcrevem os dois primeiros pontos:
«O primeiro argumento consiste no excesso, e desigualdade da Contribuição: o excesso
é provado a quem contar o custo do que semeia, e o preço do que recolhe; a sua receita, líquida,
é raras vezes igual ao Dizimo. A desigualdade consiste em que toda a Contribuição deve ser
paga por todas as Classes, e os Dízimos são pagos somente pela Classe Agricultora.
O segundo argumento consiste em que não é possível cultivar terras, que dariam, sobre
a despesa da cultura, um ganho líquido de cinco a dez por cento; porque o Dízimo, levando
dez por cento das despesas todas, e do ganho necessário para que exista uma empresa perma-
nente, reduziria o Cultivador a uma perda de cinco por cento, ou a não ganhar; por esta razão
estão incultas muitas terras do Reino.»
Quanto ao conteúdo do decreto de 1832, os artigos mais importantes são os seguintes:
«Artigo 1,° Os Dízimos, que pagavam os Proprietários, os Lavradores, e quaisquer ou-
tras Pessoas dos Reinos de Portugal, e Algarves, dos frutos da terra, e das árvores, das pasta-
gens, montados, e cortes de madeira, dos animais, e dos despojos de animais, e finalmente de
todas as produções, ficam desde já extintos, e não serão pagos.
Art. 3.° As Comendas de todas as Ordens, fundadas em Dízimos, ficam sendo puramen-
te honorárias, salvas as indemnizações mencionadas nos Artigos 7.° e 10.°, e nesta regra geral
são compreendidas as que tinham obtido os mais altos Donatários.
Art. 4.° A faculdade de apresentar Párocos para Igrejas, e Eclesiásticos para Benefícios,
ou de apresentar Justiças, Juízes, e mais Empregos Públicos de qualquer ordem, fica revogado,
e pertence exclusivamente ao Poder Executivo, segundo a Carta».
Um decreto de 4 de Abril de 1832 ordena a «abolição de todos os Morgados e Capelas,
cujo rendimento líquido e livre de toda a pensão ou encargo, e das contribuições directas, não
chegar a duzentos mil reis». Os grandes Morgados são mantidos e vão lutar pela sobrevivên-
cia até 1863.
Durante a luta no Porto o vinho nos armazéns de Gaia constitui valor cobiçado pelos
beligerantes, mas as instalações foram incendiados e o vinho derramado para o rio. Foram ex-
tintas as prerrogativas da Real Companhia e instalou-se a liberdade do comércio.
De seguida e ainda no Porto, com a Cidade cercada e bombardeada por forças muito po-
derosas do Antigo Regime, D. Pedro dispara, como trovão, o decreto ditatorial que feria de
morte a essência das estruturas agrárias portuguesas. No preâmbulo Mouzinho da Silveira es-
creveu:
«Fundado portanto nestes princípios, e na informação do longo desejo dos Povos, já
manifestado em mil oitocentos e vinte, e mesmo antes desse ano, fundado sobretudo no quadro
de horror, que oferece um Cidadão laborioso, quando cheio de fadigas de um ano inteiro vê le-
vantar sua colheita a mil agentes da avidez do Clero, e dos Donatários, e fica reduzido ao mise-
rável resto, que deixa à mendicidade laboriosa, para fazer à porta dos Claustros, e das cochei-
ras alardo daquelas esmolas, com que se alimentam nas Cidades os filhos mendicantes daque-

281
les mesmos trabalhadores, que sem Forais, e Dízimos fariam deles Cidadãos industriosos, e de
bons costumes: fundado finalmente no quadro, em que se mostra como no Porto há gente edi-
ficando, e outrem recebendo vinte e cinco por cento da venda da edificação; proponho a V. M.
I. um Decreto de uma transcendência superior, enquanto às terras dos Forais, ao de trinta de
Julho deste ano, que extinguiu os Dízimos.»
E seguia o decreto que tem interesse transcrever na íntegra:
«Tomando em consideração o Relatório do Ministro e Secretário de Estado dos Negó-
cios da Fazenda: Hei por bem Decretar, em nome da RAINHA, o seguinte:
Artigo 1.° Os Direitos, e Prerrogativas da Coroa estão definidas na Carta Constitucional
da Monarquia; e a Ordenação do Livro segundo, Tít. Vinte e seis = Dos Direitos Reais = foi
revogada pela Carta, e é declarada revogada por este Decreto.
Art. 2.° Os Bens da Nação, tomada colectivamente, são os Bens do uso geral, e comum
dos habitantes, como Portos, Canais, Rios navegáveis. Estradas gerais, e Pontes nelas cons-
truídas, Cais, e Edifícios destinados para a residência do Rei, ou para as Sessões das Câmaras,
Secretarias, Tribunais, Aquartelamentos, Estaleiros, Arsenais, e outros semelhantes. Os Bens
da Nação, adquiridos por títulos de sucessão, e execução fiscal, e não destinados ao uso geral,
e comum, serão regulados pelas Leis da Fazenda, e formarão parte do Tesouro Público dispo-
nível: a nenhuma destas espécies de Bens é aplicável a Jurisprudência dos Bens chamados =
da Coroa =; a natureza destes Bens fica extinta, bem como todas as Leis relativas a eles, e à
sucessão deles.
Art. 3.° As Doações feitas pelos Reis destes Reinos de Bens chamados da Coroa; de
Bens da Fazenda Pública: de Direitos chamados = Direitos Reais = ; do gozo de Bens destina-
dos ao uso geral, e comum dos habitantes; os Forais dados às terras do Reino, ou pelos Reis,
ou pelos Donatários; e os Foros, Pensões, Quotas, Rações, e incertas. Laudémios, Lutuosas, e
mais Direitos, e Prestações de qualquer denominação que sejam, impostas pelos Reis, ou pelos
Donatários em virtude de suas respectivas Doações, ou pelos Forais, ainda que sejam reduzi-
dos a Emprazamentos, ou Subemprazamentos, ou a Censos, são por sua natureza revogáveis.
Art. 4.° As Contribuições, e Tributos pagos pelos Povos, sendo essencialmente destina-
dos para as despesas públicas, não podem fazer o Património de alguma corporação, ou indiví-
duo de qualquer hierarquia que seja: as Contribuições e Tributos serão de sua natureza gerais,
e devem ser repartidas entre todos os habitantes da Monarquia, segundo as Leis gerais. Os Di-
reitos, Foros, Pensões, e mais Prestações enumeradas no Artigo terceiro, e impostos pelos Do-
natários, ou pelos Forais, são verdadeiros Tributos, e Contribuições, que nem todos pagavam,
nem de todas as terras, e não podem continuar a subsistir.
Art. 5o Ficam por conseguinte cassadas, e revogados todas as Doações de quaisquer
dos Bens enumerados no Artigo terceiro, feitas pelos Reis a qualquer Corporação, ou indivíduo
de qualquer hierarquia que seja; e extintos todos os Forais dados às diferentes terras do Reino,
ou fossem dados pelos Reis, ou pelos Donatários da Coroa.
Art. 6.° Ficam extintos todos os Foros, Pensões, Quotas, Censos, Rações certas, e incer-
tas. Jugadas. Teigas de Abraão, Laudémios, Lutuosas, e mais Direitos, e Prestações de qual-
quer denominação que sejam, impostos nos Bens enumerados no Artigo terceiro, ou pelos
Reis, ou pelos Donatários, ou por Contratos de Emprazamento, ou Subemprazamento, ou de

282
Censo, fundados em Doações, ou em Forais, ou em Sentenças, ou Posses, ainda que sejam
imemoriais, ou por outro qualquer título, posto que não especificado.
Art. 7.° Ficam extintos os Prazos da Coroa, os Relegos, os Reguengos os Senhorios das
terras, e as Alcaidarias-Mores, salva a conservação puramente honorária dos Títulos.
Art. 8.° As Terras, e os Edifícios, e demais bens enumerados no Artigo terceiro, em que
estavam impostos os Tributos, e Prestações, e mais Direitos extintos pelos Artigos sexto, e séti-
mo, ficam livres, e alodiais em poder de quem pagava esses tributos. Prestações, e mais Direi-
tos extintos, para poder dispor deles como quiser, em todo, ou partes, ou transmiti-los a seus
herdeiros, e sucessores, e dividimos por eles como seus próprios, ou os houvesse dos Reis, ou
dos Donatários, ou daqueles, que os tivessem havido dos reis, ou dos Donatários.
Art. 9.° Ficam revogados, a benefício dos gravados, todos os Impostos cobertos com os
nomes de Emprazamento, ou Subemprazamento, ou de Censo, ou de Retro aberto, ou de outra
qualquer denominação, feitos sobre os Bens específicos no Artigo terceiro, ou fossem feitos
pelos Reis, ou pelos Donatários, ou por os que deles obtiveram esses Bens por qualquer título.
Art. 10.° Fica revogada a Lei mental, e todas as Leis que ligam a sucessão dos Bens
da Coroa.
Art. 11,° As pessoas, ou corporações prejudicadas pelas disposições do presente Decre-
to, serão indemnizadas por outros Bens, se não se tiverem tornado indignas dessa indemniza-
ção, ou não ficarem indemnizadas pelas regras seguintes: naquela espécie de indemnização
têm lugar as regras estabelecidas para as indemnizações das Comendas pelo Decreto de trinta
de Julho deste ano.
Art. 12.° Os Bens da Coroa, ou alguma parte deles, que ainda estiverem em poder dos
Donatários dela, sem que tenham transmitido a alguma outra pessoa o desfrute deles, ou de
parte deles a título permanente, ficam pertencendo aos Donatários como livres, e alodiais, para
poderem dispor deles como seus próprios, ou em totalidades, ou por partes, se não se tiverem
tornado indignos.
Art. 13.° As terras incultas, que estão na posse imediata da Coroa, e as cultivadas pela
coroa, ou seus Almoxarifes, rendeiros, provedores, ou quaisquer outros Agentes, ficam sendo
Bens Nacionais alienáveis, e serão alienados na forma da Lei anterior, ou aplicados às indem-
nizações tanto deste, como do Decreto de trinta de Julho do presente ano.
Art. 14.° As terras da Coroa incultas, e as cultivadas pelos Donatários, ou Rendeiros de-
les, ou por Lavradores, que faziam a cultura já em umas, já em outras terras, segundo as datas,
que eram feitas pelos Donatários. Rendeiros, ou Procuradores, ficam livres, e alodiais para
sempre em poder dos mesmos Donatários, herdeiros, e sucessores, se não se tiverem tomado
indignos; e se forem indignos, entram na regra do Artigo antecedente.
Art. 15.° As Terras, ou Edifícios, que a Coroa incorporava em seus bens, e que eram
Bens vinculados, ou livres antes de incorporados, e que já se tinham mandado vender por Lei,
ficam permanecendo como estavam; igualmente serão valiosos os usufrutos doados desses
Bens durante a vida do Usufrutuário, salva a nulidade das Doações do mesmo usufruto, em
consequência de se terem tomado indignos os Donatários, e salva a nulidade da antecipação
de Mercês feitas por mais de uma vida, que são usurpações dos Poderes políticos de quem su-
cede na Coroa: serão sempre valiosas, ainda que feitas a indignos, as Doações do usufruto de

283
qualquer Donatário por Alvará de Denúncia.
Art. 16.° De nenhuma pretensão, por mais especiosa que seja, ou pareça, da qual se pos-
sa seguir a menor excepção feita à Sentença geral deste Decreto, que é o acabamento dos Di-
reitos chamados = Reais = doados a alguma pessoa; o acabamento de Contribuições, e Tribu-
tos parciais, e não aplicados para o Tesouro Público; e o acabamento radical dos Forais, e dos
Bens chamados = da Coroa =, e das regras, pelas quais os Donatários sucediam neles, pode ser
tomado algum conhecimento judicial, sem que o Negócio seja levado ao Poder Legislativo, pa-
ra definir que os Bens não tinham a natureza de Bens da Coroa, ou para tornar claras as expres-
sões duvidosas, ou para os declarar compreendidos nas regras das indemnizações, de forma
que em nenhum caso fique resto de Forais, ou da Jurisprudência, e natureza dos Bens chama-
dos = da Coroa =, ou de Contribuições, que não sejam gerais, ou provinciais lançadas até ago-
ra, ou que de futuro se impuserem em Leis gerais, ou em Conselhos gerais de Província para
o bem comum dos moradores.
Art. 17.° As disposições do presente Decreto em nada alteram a Legislação dos Contra-
tos feitos sobre bens Patrimoniais dos Particulares: os Direitos de suceder em certos Bens, que
tinha a Coroa, ficam sendo Direitos de Suceder da Nação; e os Bens provenientes são Bens
Nacionais. As minas de ouro, e prata, e de qualquer outro mineral, são inerentes à Propriedade,
e fazem parte dela, salvas as Contribuições, que se acharem impostas, ou forem impostas sobre
os objectos extraídos das mesmas. Os peixes chamados = Reais =, quando forem pescados, são
do Património dos Pescadores, como qualquer outro peixe.
Art. 18.° Ficam revogados as Ordenações, e Leis em contrário, como incompatíveis
com as disposições da Carta, e como opostas ao máximo bem do maior número, como se de
cada uma delas se fizesse especial menção, porque das disposições de todas se trata neste De-
creto.
O Ministro e Secretário de Estado da Fazenda o tenha assim entendido, e o faça execu-
tar. Paço na Cidade do Porto, treze de Agosto de mil oitocentos trinta e dois.
D. PEDRO, DUQUE DE BRAGANÇA
José Xavier Mouzinho da Silveira»

As leis de Mouzinho, no dizer de Alexandre Herculano estavam destinadas a «alterar na


sua essência melhorando-a, a condição das classe laboriosas e produtoras aquelas em que ver-
dadeiramente reside a força vital da sociedade». Tais leis, diz ainda Herculano, tinham «por
fim principal desmoronar os alicerces do antigo sistema, e tornar impossível a sua restauração.
Era uma ideia grandiosa, implacável como o destino, que presidia à redacção de todas elas;
mas, em quase todas, ao pensamento da lei e às suas provisões ligava-se a ideia de um alívio
ou de um incitamento à quase única indústria do País — a agricultura.»
Mouzinho abandonou o Governo em Dezembro de 1832. Deduz-se da investigação de
Historiadores que D. Pedro foi obrigado a fazer a opção entre o efeito agressivo do Reforma-
dor e a garantia de modificação que os financiadores da Guerra Civil, ainda de desfecho duvi-
doso, efectivamente exigiam em Portugal e no estrangeiro. Ao seu sucessor, Silva Carvalho,
Mouzinho endereçou palavras de profundo sentido histórico que constam de carta publicado
em «José da Silva Carvalho e seu tempo» de António Viana:

284
«eu segui o sistema de pouca justiça e nenhuma injustiça; e de forma alguma saber mui-
to de polícia; tu faz o que quizeres. Quanto ao exército, repeli quanto pude a ingerência; isto
é honesto, mas a popularidade militar vai-se. Em fazenda esqueci-me de dizer que a alfândega
deu em Novembro acima de trinta contos, e que se for arrematada se vai o rendimento possível
do reino; eu não quero o dinheiro à custa do bem geral, tu faz o que quizeres... mas as tropas
transtornaram tudo, e, se as não reprimes, adeus trinta contos; eles querem dinheiro e dão cabo
das fontes.»
Mouzinho nunca mais voltou ao poder. Sua estrela de reformador extinguiu-se, e o resto
da vida proporcionou-lhe não mais do que dificuldades financeiras. Torna-se impossível enten-
der que o seu nome se apresente ligado ao escândalo da criação da Companhia das Lezírias do
Tejo e do Sado. Em obediência ao propósito de antologia afigura-se-nos importante reter, nesta
passagem, o comentário de Joel Serrão no «Dicionário da História de Portugal». Ainda eleito
Deputado. Mouzinho, por carta à mulher que se encontrava em Paris, confidenciava:
«"acabada a sessão não volto mais a este maldito País"; e, referindo-se ao seu filho, es-
perança sua, aconselhava: "[...] ele deve ganhar de comer por fora de Portugal". Logo em
1840 abandona definitivamente toda e qualquer actuação política. Envolve-se então em negó-
cios mais ou menos malogrados, na freima de transmitir ao filho os bens que herdara. "Assim
explicamos todos os seus amigos", conta Garrett, "vê-lo inconsideravelmente envolvido em
questões de grande mas privado interesse que não era o seu, e nas quais, por cegueira de ami-
zade, todavia se lançou além dos limites da sua habitual prudência". Desenganado de obter na
administração de uma fábrica de cortumes e de calçado em Vila Franca os meios que tanto al-
mejava, volta-se, como que num regresso às origens, para as suas propriedade de Castelo de
Vide e de Marvão, por onde se detém mais e mais, com deleite. É o período em que escreve à
mulher: "que belos dias em Janeiro! que País se houvesse justiça e moral!" E, coincidência for-
tuita ou, acaso, mais significativa, é então que Garrett também descobre, quando os barões li-
berais e o seu testa-de-ferro. Costa Cabral, extraem as conclusões das premissas institucionali-
zadas por Mouzinho, "este clima, este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta,
e o mato é de murta". Casmurro, Mouzinho perora no seu estilo desataviado: "plantar arvore-
dos é servir melhor a humanidade do que a serve ordinariamente um homem de estado". E não
se limita, por então, a arborizar as suas terras, escreve também sobre agricultura. Escavava, por
este modo, um caminho de aposentarão cívica nos cuidados agrícolas, pelo qual se precipita-
riam em breve Passos Manuel, Herculano e outros, impelidos por um mesmo destino nacional
que os centrifugava da cidade — e da cidadania —, instalando-os no bucolismo desistente das
fainas e das brisas campestres. Com a morte de Mouzinho (1849), a dois anos do início da Re-
generação, não se conclui, de facto, o esforço tenacíssimo a que dedicara a partir de 1840
salvar para o filho os seus haveres comprometidos. O remate dessa luta vã foi, mais tarde, a
venda em hasta pública de algumas dessas propriedades. Dir-se-ia, assim, que o destino portu-
guês como que se deleitou na implacável vingança ao "morgado" do reformador dos víncu-
los...».
Mas os ensinamentos da História repercurtem-se em palavras de Mouzinho, de que mui-
tos outros políticos viriam a apropriar-se. A afirmação de que «a independência do Brasil é
mais do que a sua descoberta» conduz à dedução correcta de que «Portugal a de realizar no

285
trabalho os meios de vida que tinha nas colónias». É profético também o empenho de «fazer
entrar a nação no grémio da Europa».

A «sombra» dos Mosteiros

Os bens das Ordens Religiosas encontravam-se, no dizer de Borges Carneiro «Isentos


de tributos e encargos civis, e subtraídos ao giro da circulação, como inalienáveis, estavam
mortos para os usos da sociedade civil e para as rendas do Tesouro público». Por isso, desde
as Cortes de Coimbra de 1211, se tomavam medidas para impedir que as Corporações ditas de
«mão morta» acumulassem bens de raiz. Tais restrições dificilmente eram cumpridas porquan-
to os crentes, com o pavor da morte, para sufrágio de salvação das almas, continuavam a vin-
cular terras a responsos perpétuos. Por isso, o Marquês de Pombal comentou que «se chegar
ao caso de serem as almas do outro mundo senhoras de todos os prédios deste Reino». Perante
o figurino liberal que entrava em moda, não podia existir maior anacronismo.

286
36 — PRIMÓRDIOS DA IMPLANTAÇÃO DO REGIME
LIBERAL

A feitura das leis constitui passo necessário e decisivo, mas somente a sua aplicação de-
termina efeitos de desenvolvimento. Nenhuma lei inovadora se furta à presença de resíduos
materiais ou sociais que muitas circunstâncias e estruturas do passado nos legaram. Mesmo de
tudo o que consideramos simples alicerce morto da sociedade viva, e que supomos estratifica-
do e consumido pelo tempo, alguma coisa sobrevive, impregnando os complexos culturais dos
povos e as instituições de uma espécie de viscosidade que traduz a verdadeira tirania da His-
tória.

A extinção das Ordens Religiosas

Foi contra a vontade do Conselho de Estado, depois da Convenção vitoriosa de Évora


Monte, mas com o apoio do Governo de Silva Carvalho que D. Pedro executou o projecto de
extinção das Ordens religiosas que o regime de há muito preparava. Joaquim António de
Aguiar foi o autor da proposta e, por isso, o Povo lhe deu o nome de «mata frades». Por decre-
to de 28 de Maio de 1834 foram extintos em todos os meritórios portugueses os «conventos,
mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, seja
qual for a sua denominação, instituto ou regra». A lei foi nesta altura aplicada aos Frades fi-
cando para mais tarde a extinção gradual dos Conventos de Freiras. Os bens das Ordens Reli-
giosas extintas ficaram pertencendo ao Estado que pagaria aos Frades uma pensão «enquanto
não tiverem igual ou maior rendimento de benefício ou emprego público».
O programa da extinção das Ordens Religiosas, nesta época, não era novo, embora se
apresentasse com especial configuração económica, social e política. Efectivamente não teria
semelhança com a decisão medieval e obscura da condenação dos Templários, a quem os Reis
de Portugal deram abrigo com seus segredos que teriam sido postos ao serviço dos descobri-
mentos marítimos; nem com a expulsão dos Jesuítas, que o Marquês de Pombal baniu, ávido
de Poder.
A questão seria ampla e difusa, filiando-se talvez no anacronismo de muitas das expres-
sões da vida monástica, não desprendida de interesses materiais cujo suporte era garantido pe-
las cobranças junto das estruturas camponesas. Historiadores modernos explicam o problema
de uma forma de que serve de exemplo o exposto por Manuel Braga da Cruz em «As relações
entre a Igreja e o Estado Liberal — do cisma à Concordata (1832-1848)»:
«o primeiro golpe na base material do poder eclesiástico tradicional foi dado ainda antes
da vitória liberal, em 30 de Julho de 1832, por Mouzinho da Silveira, com a abolição dos dízi-
mos eclesiásticos, isto é, dos impostos que gravavam em 10% os rendimentos, e que se desti-
navam à sustentação do clero e da Igreja. Em seu lugar, foi decretada a atribuição de côngruas
vitalícias ao clero e membros das ordens religiosas, no valor igual aos rendimentos dos dízi-
mos, a pagar pelo Tesouro Público, e a fixar posteriormente com a oportuna "divisão eclesiásti-

287
ca do reino" e com o "número de Prelados. Cónegos e Párocos e mais pessoas eclesiásticas ne-
cessárias ao Culto Divino".
Deste modo se pretende começar a pôr cobro ao desmedido crescimento do clero e do
seu poder económico, que o fazia empreender ao lado do Estado, em quase igual importância,
bem como às distorções económicas e sociais que daí provinham, nomeadamente o excesso e
desigualdade de contribuições, a incultura a que estavam votadas muitas propriedades rústicas,
o estrangulamento da concorrência comercial externa, a ociosidade dos privilegiados, o afluxo
por razões não religiosas à vida religiosa, a disparidade de lucros entre os próprios eclesiásti-
cos, etc.
Entre estas razões então invocados por Mouzinho da Silveira ressaltam propósitos de
respeito pelas funções religiosas do clero e pretensões de reforma eclesiástica. Levantou «a
questão das corporações religiosas — é Oliveira Martins quem o sublinha — não por confessa-
da impiedade, mas por utilidade económica: "A nação não pode manter, depois da separação
do Brasil, tão grande número de pessoas que directa ou indirectamente vivam do trabalho
alheio". (Decreto de 3 de Abril). Tal era o pensamento de Mouzinho.
No entanto, não houve qualquer indemnização de dízimos como se prometera, e as côn-
gruas destinadas a manter os membros do clero "decentes e independentes", no desejo expres-
so no decreto, acabariam por não ser definidas senão em 1838 e 1839. Apesar disso, ainda em
1868, "decorridos quase 27 anos, não se tem curado dessa justa dotação" — como alguém na
época se queixava. E o pagamento das referidas côngruas passou também então a ficar a cargo,
não já do Tesouro Público, como de início se planeara, mas sim dos fregueses, na proporção
dos rendimentos que auferiam, e o seu montante incluía descontados os rendimentos paro-
quiais, tais como os dos passais e o chamado "pé-de-altar".
O grande golpe, porém, no poder económico da instituição eclesiástica será dado com
a extinção das ordens religiosas, e simultânea incorporação dos respectivos bens na Fazenda
Nacional, decretada a 28 de Maio de 1834, mediante relatório do então Ministro dos Negócios
Eclesiásticos e de Justiça, Joaquim António de Aguiar. Cerca de quatro centenas e meia de con-
ventos, casas, mosteiros, hospícios e colégios pertencentes às ordens religiosas.»
Do ponto de vista agronómico, voltamos a acentuar que a detenção de propriedades rús-
ticas por parte de Ordens Monásticas desempenhou historicamente função de grande impor-
tância para o progresso da Agricultura. Recordemos o que foi descrito quanto às cercas de cer-
tos Conventos onde militavam Monges Agrónomos, como os da Ordem de Cister, que desem-
penhavam a função de granjas agrícolas de experimentação e ensino, durante muitos séculos
em que outros serviços de difusão de técnicas agrícolas não existiam. Ainda hoje é possível
nas vizinhanças de velhos conventos abandonados, identificar a área dessas cercas, entregues
à posse privada, pelos vestígios de culturas perenes, como as de pomar, pela identificação de
variedades que persistem em cultura local, depois de terem sido introduzidos por iniciativa dos
Frades que as transportaram de uns Conventos para os outros.
Mas a presença dos Frades ter-se-ia apresentado perante a Revolução Liberal, particu-
larmente gravosa quando identificado com o sistema senhorial de cobrança de toda a espécie
de tributos tradicionais. Assim os Mosteiros e as Abadias já não eram alicerce de povoamento
de Coutos ou sequer centros de irradiação do saber, embora conservassem, sem dúvida, biblio-

288
tecas, mas inacessíveis ao conhecimento popular, nem o foco materializado do culto religioso.
Grande distância separava o Mosteiro e o Frade letrado e rico, dos centros funcionais vividos
que as Paróquias constituíam, onde, verdadeiramente, o Pároco cuidava dos fregueses, nos
bairros urbanos e nas mais recônditas aldeias das comunidades agrárias.
Abstraindo, nesta sumária tentativa de análise, do papel histórico sempre discutido, das
Ordens Religiosas em transcendentes emergências políticas, como as tarefas do povoamento,
a evangelização dos territórios descobertos ou o funcionamento dos Tribunais do Santo Ofício,
não poderá deixar de se ter em conta que, no início do século XIX estava bem demarcado a
distinção do Clero em dois grandes grupos: o Clero secular, constituído pelos Bispos, Cóne-
gos, Párocos e Clérigos e o Clero regular integrado nas Ordens Monásticas. Independentemen-
te desta divisão, mas do ponto de vista social seria particularmente sensível a existência de
duas categorias bem marcadas, a privilegiada ao nível dos Bispos e Cónegos e, particularmen-
te, dos Abades e Frades de certas Ordens ricas e, em oposição, o «proletariado eclesiástico»
representado, nas ruas e nos campos, pelos Párocos urbanos e rurais e os Monges mendicantes.
Este último grupo social encontrava-se fortemente integrado na vida, no sofrimento e no secre-
tismo do Povo, participando em confissões, baptizados, casamentos, funerais e chegando a
comprometer-se em amores e ódios escondidos e em exorcismos heréticos de exconjuração de
demónios que se aprisionavam dos corpos.
De qualquer modo, na «ordem» social, o Clero constituía um dos «braços» do Poder e
teve assento nas Cortes, enquanto o absolutismo as não manteve suspensas. Por isso não admi-
ra que o novo regime pretendesse neutralizar, de entre o Clero, núcleo mais forte que seria o
Clero regular, detentor de património que ultrapassava os bens indispensáveis para a prática
do culto. António Viana, no trabalho citado comenta:
«Defrontava-se à dictadura a occasião de demolir o ultimo esteio do velho edifício: che-
gara o momento em que a extincção do clero regular e a desamortisação da propriedade ads-
tricta ao serviço religioso das suas corporações representavam um grande beneficio moral, po-
lítico e economico.
Era uma das reformas implicitamente contida na legislação de Mouzinho; que elle ini-
ciara, reduzindo o numero dos conventos nos Açores e extinguindo os dízimos, e que Silva
Carvalho continuara, acabando com a Commissariaria da Terra Santa, promettendo a criação
de seminários, prohibindo as admissões a ordens sacras e a noviciados monásticos, mandando
despedir dos conventos ou mosteiros todos os indivíduos que se achassem nos noviciados, ex-
tinguindo a Egreja Patriarchal e encorporando os seus bens, e os da Basilica de Santa Maria
Maior, nos proprios da nação, etc.»
Assim, o novo regime respeitou o Clero secular que, aliás, veio a receber nos seus qua-
dros muitos Frades. Nesta época os militantes de qualquer dos grandes partidos opostos decla-
ravam sempre o seu apego à «santa religião» e não rejeitavam a presença do Clero mesmo em
suas hostes mais aguerridas. Manuel Braga da Cruz concluiu:
«As razões do anticlericalismo liberal português devem procurar-se mais no terreno
económico que no terreno político ou no terreno ideológico. Mais do que contra o catolicismo,
a revolução liberal foi feita entre nós contra o poder económico eclesiástico e contra a in-
fluência política que. por ele, a Igreja dispunha no Antigo Regime. E a prova de que o liberalis-

289
mo português não pretendeu erradicar das massas os sentimentos religiosos, nem tão-pouco
afastar a hierarquia católica da esfera do poder de Estado, está no facto de que, quando outros
o pretenderam, se ter apressado a dar o braço à Igreja, para o impedir, tal era a importância
moral e política que atribuía à religiosidade popular e à cooptação do poder com a hierarquia
eclesiástica.»
Afigura-se-nos que o anticlericalismo português só viria a assumir expressão política
com a República e fundamentalmente nos meios urbanos. No século XIX encontram raiz forte
de conteúdo sociológico o «Pároco da Aldeia», de Herculano, ou as figuras rústicas do Clero,
de Júlio Dinis.

O fim dos Monges de Alcobaça, que já nada tinham de Agrónomos

A obra de povoamento, que vinha de longe, e sustentava o cultivo dos Coutos, com a
radicação dos cultivadores, porque a Terra e o Homem representavam, afinal, a mesma força
ou energia, transformava-se em suporte da esplêndida arquitectura do Mosteiro.
Natividade relata:
«A restauração da Pátria, em 1640, traz aos monges de Alcobaça o período da sua maior
prosperidade. Extinguem-se os abades comendatários e criam-se os de eleição trienal. A cadei-
ra abacial é novamente ocupada por um filho da Ordem, e o Mosteiro entra na posse absoluta
das suas terras. Coníírmam-se todas as doações, renovam-se todos os privilégios e isenções.
Entra-se numa fase de prosperidade local que se pode interpretar como de verdadeiro renasci-
mento.
Como outros mosteiros, e como o fizeram algumas catedrais, dá a Abadia de Alcobaça,
para ajuda das despesas da Guerra, uma grande parte do seu tesouro. O abade cai no agrado de
D. João IV, e isto leva a tornar definitivos todos os benefícios assinados no primeiro impulso.
Opera-se um grande movimento de restauração, reforma e ampliação no Mosteiro e na
Igreja. Começa-se a construção do amplo claustro do Rachadoiro, renovam-se altares, projec-
tam-se obras gigantescas, procura-se solucionar graves problemas de feição económica.
As coisas de arte começam a interessar os monges, e surgem então as belas talhas da
charola, da sacristia e do santuário. Sobressai a bela escola dos barristas que modelam as figu-
ras do altar da morte de S. Bernardo, e muitas imagens da charola, presépio e santuário. Pen-
sa-se na organização da Biblioteca, até então bastante ao abandono e quase limitada à preciosa
colecção de códices, hoje celebrados com o nome de Códices de Alcobaça, e a outras obras
manuscritas.
É num crescente entusiasmo de grandeza que se iniciam os primeiros trabalhos, e que
ao século seguinte se transmite o grande plano de reformas. As fartas rendas do Mosteiro, cer-
ca de 40 contos anuais, davam margem para a realização de numerosas obras. No entanto, as
questões financeiras em breve se transformariam em preocupação angustiosa para a adminis-
tração abacial.
Com o século XVIII levantava-se a nova fachada da Igreja, corre-se toda a grande fa-
chada ocidental, com o seu aspecto pautado, e toda a fachada norte, incluindo a cozinha; com-
pleta-se o grande e novo claustro, e, na face sul deste, levanta-se o enorme edifício da Biblio-

290
teca e dos arquivos, e dão-se avantajadas dimensões aos celeiros, às barras, às adegas e a outras
dependências.
Constroem-se os jardins e o obelisco, corri larga riqueza de decoração, como a moda
impunha, e por toda a parte sorriem as flores e se estendem formosos pomares. La Quintinie,
o celebrado jardineiro de Luís XIV, esboçara com tal encanto os grandes jardins e hortos de
Versalhes que, em pouco tempo, a preciosa novidade corria todo o mundo. Ao mesmo tempo,
e explorando uma nova indústria, criavam os monges Cartuxos os grandes viveiros do Luxem-
burgo. A França dava o modelo e as próprias plantas, e foi dessa corrente geral que surgiram,
nas cercas e quintais do Mosteiro de Alcobaça, os belos jardins e os afamados vergéis.
A tudo isto se ligavam as árvores decorativas, e a tudo se deu o mimo dos lagos, das
fontes e das estátuas. É a essa época que pertencem o obelisco, com o seu lago, e as estatuetas
que hoje se encontram no claustro do Cardeal. Enriqueceu-se a livraria com generosa grande-
za; adquirem-se novas alfaias e ricas baixelas; chega-se, pouco a pouco, ao apogeu do fausto
e da grandeza que imprimiam principesca sumptuosidade à vasta propriedade monacal.
A este largo progredir opõe trágica barreira o terramoto de 1755, extremamente funesto
para as terras de Alcobaça: faz baquear uma grande parte das enormes construções, ainda mal
consolidadas, e desapruma outras.»
O terramoto de 1755 provoca grandes destruições no Mosteiro a que se acrescenta a ca-
lamidade das inundações de 1772 que obriga a desviar o curso do Rio. Mas, entretanto:
«o Marquês de Pombal, dá, por sua vez, a mão aos cistercienses de Alcobaça. Era abade
Fr. Manuel de Mendonça, parente próximo do Marquês, um dedicado amigo de Alcobaça, e
para esta chamou a atenção do grande ministro. Renascem então as actividades industriais.
Estabelece-se, dentro das paredes do próprio Mosteiro, enquanto se não fazia a constru-
ção especial, a grande fábrica de lençaria de Alcobaça, que o Marquês protege e auxilia, e que
em progressivo desenvolvimento chegou a ocupar 508 operários. Iniciava-se uma nova fase de
desenvolvimento económico.
A Alcobaça moderna, podemos dizê-lo, nascia então.
Abriam-se os alicerces de uma das importantes indústrias nacionais, e que tanto havia
de prosperar nos primeiros anos do século seguinte. A acção de Pombal estende-se mais longe:
Numa das suas rápidas e enérgicas resoluções, manda fazer o estudo do saneamento dos cam-
pos de Alfeizerão e Valado, com a derivação urgente dos rios, construção das portas de maré,
a forma, enfim, de transformar os grandes pauis em campos de cultura.
Moderna e sã orientação preside a todos os trabalhos, e a ela se pode atribuir o novo pe-
ríodo de prosperidade. Frei Manuel de Mendonça manda construir a grande sala da biblioteca,
organiza esta com método, estabelece o novo Colégio de acordo com a mais sã educação cien-
tífica e literária.»
Mas os sucessos históricos prosseguem impiedosamente:
«A invasão francesa assinala-se tragicamente no Mosteiro e nos Coutos. Essa calamida-
de geral deixou em Alcobaça notas indeléveis. Além do morticínio, que no Bispado de Leiria
se elevou a 29.017 vidas, das quais 209 só na freguesia de Aljubarrota, foram enormes os pre-
juízos materiais.
O Mosteiro foi saqueado, e desapareceram muitas e preciosas alfaias, e objectos de arte

291
e de culto. Na Igreja, os invasores queimaram o belo coro manuelino e algumas capelas, muti-
laram imagens, arrombaram os túmulos, até os mais preciosos. No convento, incendiaram uma
das alas do claustro do Rachadoiro e praticaram actos do mais torpe vandalismo.
Na vila, queimaram a casa da Câmara, com todo o seu arquivo, diversos edifícios parti-
culares e a grande fábrica de lançarias. Em todos os Coutos se repetiram actos de roubo e de
selvajaria, especialmente na Nazaré e nos centros mais populosos. O Mosteiro e os Coutos fo-
ram vítimas durante alguns meses das hordas francesas que aqui e na Nazaré tinham feito quar-
téis.
Este desastre nacional traz ao Mosteiro uma nova crise económica de que não mais se
libertaria.
O Instituto cisterciense estava ameaçado de morte. As aspirações liberais começaram a
materializar-se depois de 1817, e os monges viam aproximar-se a onda que os havia de sub-
mergir. Nas lutas de espírito, que precederam as lutas reais, já era fácil entrever o fim da po-
derosa Abadia.
E foi então que o decreto de 1832, ao extinguir as Ordens religiosas, pôs termo ao poder
monástico que dominou a região de Alcobaça no longo decorrer de mais de setecentos anos.»

E o Povo?

E ainda Natividade quem responde:


«E o povo? O povo continuava como sempre. Fonte principal das riquezas do seu se-
nhor, era espoliado segundo as necessidades.»

A casa rural do «maçónico»

De aldeia escondida na Serra, igual a muitas outras que nos fins do século XVIII estag-
navam em Portugal, um Emigrante partiu rumo ao Brasil, embarcado em navio que da Costa
de Africa levou os porões a abarrotar de escravos. Tempos depois a fugir aos Franceses, a Cor-
te também navegava, com a Loja Maçónica onde o Emigrante viria a ver-se filiado.
Tempos volvidos, ao retornar à Aldeia, sem família, procurando esquecer as amarguras
da vida, o Maçon mandou esculpir na casa rústica onde nascera, símbolos adequados. Na so-
lidão aldeã, eventualmente, vestia-se com aventais, fitas e adornos de diferentes cores. Seus
conterrâneos não alcançavam o sentido ou o simbolismo do ritual que exibia e apenas retive-
ram que o vizinho, cordial e contemporizador, afirmava ser «maçónico». A sua presença em
nada perturbava o ambiente rústico. Andava à pesca pelos ribeiros e era pontual no pagamento
dos consumos.
Um dia, subitamente, finou-se, com a emoção de caçar uma truta, enorme, que serenava
no remanso da corrente. Caiu, de borco, ficando, na aparência, afogado. Ninguém se lembrou
de vasculhar no espólio qualquer disposição escrita e os símbolos das paredes não revelavam
nada. Sem pressas nem carpideiras, fizeram-lhe o velório costumeiro e o «maçónico» foi enter-
rado na Igreja, ao lado dos ossos carcomidos que há muito repousavam no «terreno santo».
Com a Cruz e a Caldeirinha da Água Benta, o Abade acompanhou o funeral, mastigando, indi-

292
ferente, os responsos:
—...«In paradisum deducat te Angeli in tuo adventu suscipiant te Mártires et perducant
te in civitatem sanctam Jerusalem.»...
Em redor do Campanário nada se repercutiu que não fosse a sereníssima paz rural a ce-
lebrar o prólogo das orgias microbianas que processam a consumação dos corpos que assumi-
ram no mundo configuração diversa, corpos de que as almas se libertam de uma só forma. Fi-
cou, existindo ainda, a modesta casa rústica ornamentada com símbolos que no local ninguém
entende, mas o povo deu-lhe nome, que se conserva, de «casa do maçónico».

A Rainha D. Maria II

D. Pedro adoeceu gravemente e foi concedida a D. Maria a maioridade, o que lhe permi-
tiu o acesso ao Trono antes da morte do Imperador-Regente. Durou dois meses o casamento
da Rainha que, viúva, viria a casar em 1836 com D. Fernando de Saxe Coburgo Gotha que de-
sempenhou no País o papel proeminente de Artista e Político de grande envergadura. Foi parti-
cularmente difícil o reinado de D. Maria II que. logo no início, teve de enfrentar o confronto
de Cartistas e Constitucionalistas, que deu origem a constantes conspirações e a golpes de Es-
tado, em que figurava com notável frequência o Herói militar da Guerra Civil, Marechal Salda-
nha. Com a revolução dos «setembristas», D. Maria teve de jurar a Constituição de 1822, lava-
da em lágrimas, até que fossem eleitas novas Cortes Gerais Constituintes que vieram a elaborar
a Constituição de 1838, que pouco durou.

293
37 — AS REFORMAS ESTRUTURAIS AGRÁRIAS
DA REVOLUÇÃO LIBERAL

Não se afigura fácil apreender o planeamento, o alcance e o resultado das reformas es-
truturais agrárias decididas nas complexas emergências sociais, económicas e políticas da pas-
sagem do Velho Mundo a um Mundo Novo, no século XIX, em Portugal.

As reformas iniciais

O primeiro grande acto modernizador da vida portuguesa com incidência particular no


aspecto agrário, foi assumido pelas Cortes Constituintes, ao aprovar o Decreto de 7 de Abril
de 1821 que extinge os «direitos banais e corveias», com o objectivo de «libertar os povos das
opressões» senhoriais ou feudais. Independentemente das circunstâncias que posteriormente
ocorreram e que não alcançaram neutralizar esta medida, ficou assim lançado o desafio da su-
pressão de «privilégios exclusivos contrários à liberdade dos Cidadãos, e ao aumento da Agri-
cultura e Indústria destes Reinos, que sem emulação e franqueza, nunca podem melhorar, nem
aperfeiçoar-se». Sem perder de vista outras decisões complementares, o segundo acto legislati-
vo importante apresenta-se quando a mesma Constituinte decide, em 3 de Maio de 1821, que
«todos os Bens da Coroa, de qualquer natureza que sejam, pertencem à Nação; e se chamarão
consequentemente Bens Nacionais». Ficava assim constituído, economicamente, o Estado,
identificado com a Nação, distinto da personalidade do Rei cujo Património passava a «per-
tença» da mesma Nação.
No entanto, os Forais, que representavam os «códigos» das regiões, muito diversifica-
dos, resistiram às tentativas reformistas que não alcançaram, nesse momento, por motivos téc-
nicos, a elaboração de um «código administrativo» unificado, acabando a legislação por redu-
zir a metade as prestações exigidas aos povos, garantindo o direito de remissão. Tal decisão,
insatisfatória, acabou por ser neutralizada pela Contra-Revolução, do que resultou o efeito ge-
neralizado da «greve das rendas» que mais ou menos se implantou em todo o mundo rural sub-
levado.
Nas primeiras medidas da guerra Civil, Mouzinho da Silveira incluiu no esquema das
suas reformas o Decreto de 13 de Agosto de 1832 designado por alguns Historiadores como
Lei da Revolução Agrária, a que fizemos referência. Se tentarmos entender a ideia de Mouzi-
nho devemos reter algumas das suas afirmações fundamentais: «Não é de minha intenção ar-
rancar a Propriedade a pessoa alguma». Mas, para consolidar e prestigiar a Propriedade priva-
da, individual e livre, considera indispensável expropriar o Rei, ou nacionalizar os bens da Co-
roa. E afirma: «sendo a natureza dos Bens da Coroa na sua origem compatível com o estado
de despovoarão, em que ficou o Reino pelo extermínio dos Mouros; quando o tempo..refez a
Povoação, aquela natureza de Bens que as Leis diziam imutável, não se foi sucessivamente
prestando à influência da civilização, e lhe obstou consideravelmente; e ainda lhe obstaria, se
o tempo não acabasse, tarde ou cedo todos os estabelecimentos humanos, e, se fosse possível.

295
opor algum dique à torrente da mesma civilização».
Não oferece dúvidas que o Reformador se apoiou na ideia de propor Lei cujo:
«espírito é repartir riquezas, e aumentar a fortuna geral, emancipando a terra e reduzin-
do-a a ter indivíduos por senhores, que ou cultivem ou alienem». Isto porque «sem a terra ser
livre em vão se invoca a liberdade política». Mas a «Revolução Agrária» de Mouzinho, quando
se orienta deliberadamente no sentido de liberalizar os Bens da Coroa, mantém intocáveis ou-
tros Bens que se tinham transformado em propriedade privada, embora extensos. Ao eleger os
bens da Coroa como instrumento da Reforma, Mouzinho interroga: «Pôde o Senhor D. João I,
fundado na Lei mental, revogar todas as Doações a bem das necessidades do Estado; e não po-
derá V.M.I. confirmar essas Doações, fazendo livres os Bens a favor de quem de facto os culti-
va, ou fazia cultivar?».
A ideia de consolidar a posse dos bens da Coroa em favor de quem, ao abrigo de contra-
to válido de que paga a respectiva prestação, o cultiva, constitui a essência do sistema reforma-
dor agrário de Mouzinho da Silveira. E assim, consolidadas posse privada dos Bens da Coroa:
«as Terras e os Edifícios... ficam livres, e alodiais em poder de quem pagava esses Tri-
butos, Prestações, e mais Direitos extintos, para poder dispor deles como quiser, em todo, ou
por partes, ou transmiti-los a seus herdeiros, ou sucessores, e dividimos por eles como seus
próprios, ou os houvesse dos Reis, ou dos Donatários, ou daqueles, que os tivessem havido dos
Reis ou dos Donatários.»
Afigura-se-nos muito importante reter a ideia de que a legislação de Mouzinho contem-
plava o cultivador de terras em relação às quais se pudesse encontrar doação régia que legiti-
masse o seu uso. Mas ficavam à margem da Reforma os cultivadores de terras que constituíam
património privado, isto é, terras que não podiam ser consideradas Bens da Coroa. Esta cir-
cunstância, do ponto de vista agronómico, retira, aparentemente, validade ao objectivo genéri-
co de «libertar a terra» visto que existiriam tributos ou prestações resultantes da contratarão
privada, ou respeitante a patrimónios privados que tivessem nascido sem intervenção régia. O
desenvolvimento do penosíssimo processo de aplicação desta Lei vai demonstrar a enorme di-
ficuldade de identificação dos Bens da Coroa em resultado de sentenças dos Tribunais. O De-
creto de 13 de Agosto de 1832 foi, talvez, de todos os de Mouzinho, o mais contestado e, de
entre os comentários que lhe foram feitos tem interesse destacar o de M.A.C, da R. em «A
Questão entre Senhorios e Foreiros» referido por Miriam Halpern Pereira: «os recursos mate-
riais de D. Pedro eram sem termo de comparação inferiores aos do Usurpador: era necessário
suprir a força moral, enfraquecer o exército deste introduzindo-lhe o choque de interesses entre
os Soldados, e os Chefes, e desviar-lhe a massa bruta, composta pela maior parte por Lavra-
dores pensionados. Foram estes os fins do Decreto de 13 de Agosto de 1832». Embora se saiba
que circunstâncias complexas de natureza sociológica tenham permitido que o Usurpador re-
crutasse a melhor parte do seu exército junto de populações que ignoravam a essência do con-
flito em que se viam envolvidas, não oferece dúvida que a Reforma de Mouzinho não se com-
padece com a denúncia de oportunismo específico que esta versão oferece.
Mouzinho visava os Bens da Coroa que seriam os possuídos sem estarem legalmente
alienados, os usurpados mesmo que houvesse doações ou aforamentos do usurpador, os de Do-
natários indignos pelos crimes contra a Carta e a Legitimidade, e todos os que tivessem vagado

296
ou "foram vagando por morte de Donatários. Somente estes Bens da Coroa eram considerados
alodiais e incorporáveis na Fazenda Nacional. Os restantes, doados ou aforados, permaneciam
cativos da transmissão aos cultivadores. Os Bens alodiais da Coroa, não assumiam importância
notória, reduzindo-se fundamentalmente às Lezírias do Tejo e do Sado, e a terrenos que teriam
de ficar à disposição das necessidades de conforto e de dignidade do Rei.

A incorporação dos Bens da Igreja

A extinção das Ordens Religiosas, quando Mouzinho da Silveira se afastou do Governo,


conduziu à incorporação «nos próprios da Fazenda Nacional de património de grande valor
artístico, arquitectónico e histórico, para além do valor económico que tudo representava. Em-
bora se afirmasse que os vasos sagrados e os paramentos seriam «postos à disposição dos Ordi-
nários respectivos para serem distribuídos pelas Igrejas mais necessitadas das Dioceses» e se
ordenasse o inventário de objectos preciosos de Ouro, Prata e Jóias que deram entrada na Casa
da Moeda, bem como de valiosíssimas Bibliotecas, muito se perdeu roubado, no atropelo do
êxodo dos Frades. Quanto aos imóveis ou Bens de Raiz, foi muito diverso o destino dado a tão
valioso espólio. Muitos dos Edifícios, especialmente os urbanos, serviram para insolação de
serviços públicos e outros foram alienados, sendo adquiridos por particulares. Deve ter-se em
conta que os Bens da Igreja que foram vendidos em hasta pública constavam dos patrimoniais,
uma vez que as Doações Régias feitas à Igreja se encontravam envolvidas na legislação refor-
mista de Mouzinho que regulava também os Direitos senhoriais da Igreja constantes dos Fo-
rais. Assim a incorporação de Bens rústicos da Igreja afigura-se-nos limitada aos alódios
patrimoniais, que seriam, fundamentalmente as Cercas dos Mosteiros e Conventos, permane-
cendo intocado o património de Bens enfitêuticos ou foraleiros de que a Igreja era o Senhorio,
mais tarde envolvidos em arrastados processos de desamortização imposta por legislação va-
riada.

Primeira fase de aplicação da legislação agrária

Encontrando-se o País, conforme se acentuou, num «limiar de Reforma Agrária» dado


o anacronismo e as assimetrias das estruturas funcionais da agricultura, seria coerente com to-
dos os princípios invocados desde o início da Revolução Liberal que as terras da Coroa e das
Ordens Religiosas, incorporadas como alodiais nos Bens Nacionais, fossem repartidas de uma
forma equitativa e justa, pela população carenciada de terra como instrumento de trabalho.
Não sucedeu assim e, por isso, a generalidade dos Historiadores refere a venda dos Bens Na-
cionais em hasta pública, como um dos mais indecorosos processos da História da implantação
do Regime Liberal. Basta reter as palavras de Alexandre Herculano quando observa amargura-
damente que acabou por ser «o rico proprietário que conglobou nos seus extensos prédios vas-
tos prédios nacionais», o que «serviu para converter muitos capitalistas em proprietários».
Efectivamente é impressionante a forma precipitada como se operou a venda de Bens Nacio-
nais. Seriam angustiosas as dificuldades financeiras, mas não seria somente essa circunstância
que condicionou as decisões. Veja-se as razões de Silva Carvalho que, logo em 1834. propõe

297
o «leilão» que, sob o rótulo de partilha igualitária resultou em repasto de financeiros famintos
de terra. Depois de assinalar a vantagem da venda para saneamento dos problemas da Fazen-
da, Silva Carvalho argumenta:
«Se dos effeitos deste decreto sobre o credito publico passarmos a examinar os que elle
pode produzir em relação a prosperidade geral, acharemos que, diminuindo por uma parte o
numero das propriedades pertencentes à nação, sem todavia privar do valor d'ellas a fazenda
nacional, e argumentando por outra parte o numero das propriedades particulares, favorecendo
a multiplicação dos pequenos proprietários, oferecendo aos pequenos capitalistas um emprego
seguro e lucrativo de seus fundos, e, finalmente, promovendo por effeito destas circumstancias
todos os progressos da agricultura, deve esperar-se do mesmo decreto um melhoramento sensí-
vel e immediato na situação económica do paiz.»
A referência aos «pequenos proprietários» ou «pequenos capitalistas» antes de consu-
madas as vendas, reveste-se de conteúdo pelo menos demagógico. E adiante acrescenta:
«Passando, emfim, a examinar quaes podem ser os resultados políticos da medida que
tenho a honra de propor a V. M. I„ tenho antes de tudo a ponderar que, sendo certas as suas
vantagens económicas e financeiras, um dos seus effeitos políticos será necessariamente o de
fazer que todos os indivíduos e famílias, cuja sorte for melhorada em virtude d'esta medida,
sejam outros tantos amigos e defensores zelosos da nova ordem de cousas, devendo esta saudá-
vel influencia estender-se, não sómente à classe dos proprietários e lavradores, pela acção im-
mediata desta medida sobre o estado da agricultura, mas sobretudo, e de um modo ainda mais
efficaz, na classe dos jornaleiros e de todos que tiram a subsistência quotidiana do producto
dos trabalhos ruraes — classe interessantíssima pelo seu numero, pela sua utilidade e pelos so-
frimentos que teve de supportar durante a lucta cruel que ensanguentou tão longamente o terri-
tório portuguez.»
A inclusão da «classe dos jornaleiros» de entre os beneficiários agradecidos apresentas-
se particularmente cínica, se tivermos em conta o que se passou com a implantação do capita-
lismo agrário que, nesta altura, preparava o seu evento. O cinismo de Silva Carvalho acentua-
-se quando se refere à «tirania» passada, sem ter em conta que, afinal, não tomava as providên-
cias necessárias para evitar a instalação de renovadas tiranias económicas e sociais:
«fazer passar immediatamente a mãos de proprietários particulares os bens até agora
consagrados à manutenção das instituições sobre as quaes repousava principalmente o edifício
dos antigos abusos, e que eram por sua natureza o mais firme sustentáculo da tyrannia, que V.
M., ajudado da nação portugueza, acaba felizmente de derribar. Não se consolidam revoluções
políticas, sem serem acompanhadas de alterações profundas no estado social, e, entre os ele-
mentos de que este se compõe, o mais importante é a divisão e distribuição da propriedade ter-
ritorial. Foi talvez porque as mudanças políticas, até agora tentadas em Portugal, não fizeram
mais do que alterar ligeiramente a superfície da sociedade, sem produzir um movimento sensí-
vel na massa do corpo social, foi talvez, digo, por esse motivo, que taes tentativas se tornaram
infructuosas. deixando nas mãos dos inimigos das reformas todos os meios que elles tinham
sabido ajuntar para manter a antiga oppressão, e dos quaes não deixaram de aproveitar-se, logo
que as circumstancias lhes foram favoráveis, para esmagar à sua nascença os germens de feli-
cidade publica que se haviam semeado.»

298
Foi assim que Silva Carvalho colocou em praça, a partir de 1934 os Bens constituídos
por Capelas vagas que, segundo valores apurados por Luís Espinha da Silveira, pouco rende-
ram. Em 1835, o Parlamento decide a venda de «todos os Bens de Raiz Nacionais, de qualquer
natureza que sejam, tanto os que pertencem à anta Igreja Patriarcal de Lisboa, à extinta Casa
do Infantado, ás extintas Corporações Religiosas, e ás Capelas da Coroa, como todos os mais
bens que se acham incorporados nos próprios da Fazenda Nacional, compreendendo também
nesta disposição os Bens da Casa das Senhoras Rainhas, e as Fábricas Nacionais de qualquer
natureza que sejam». Foi um repasto de leões ou, melhor dizendo, de «Barões» famintos e an-
siosos de promoção social.
Em 1836 as vendas alcançaram o valor de cerca de 5.000 contos, com a entrega a uma
Companhia de financeiros que para o efeito do negócio se constituiu, das Lezírias do Tejo e
do Sado. Esta última decisão foi na altura considerada escandalosa e somente pôde ser tomada
mercê de legislação especial que permitiu a entrega indivisa de cerca de 30.000 hectares das
melhores terras agrícolas do País a um grupo que ofereceu a quantia de 2.000 contos, aceite
sem consulta a outros eventuais interessados, e furtando-se ao esquema de fraccionamento, ali-
ás aconselhado na legislação geral. O Autor citado apresenta valores variáveis e decrescentes
de vendas até 1841, totalizando quantia próxima de 8000 contos. Ainda o mesmo Autor afirma
no seu estudo que «é a necessidade de arranjar dinheiro que explica a venda e amoedarão dos
objectos preciosos entrados na casa da Moeda e a remissão e venda de foros a partir de 1838».
Não poderá averiguar-se quem teria beneficiado deste desfazer de feira. Quanto aos Bens de
Raiz, pareceres de Historiadores e de Agrónomos confirmam que a venda precipitada favore-
ceu a classe social de maiores recursos financeiros, impedindo o acesso à terra de Campone-
ses ou, de um modo geral, de populações rurais carenciadas. Encontram-se referências que per-
mitem acreditar que as praças se realizaram de forma a facilitar a entrega dos Bens a compra-
dores predeterminados. Quando os agricultores procuravam, com enormes dificuldades, gru-
pos de interessados que reunissem os recursos financeiros necessários para lotes propositada-
mente grandes, a hasta pública era anunciada num local e depois precipitadamente realizada
noutro, de forma a registar a presença exclusiva do comprador privilegiado, que arrematava
por preço moderado. De todas as formas de engano ou de manipulação de Camponeses que a
História de Portugal vai registando ao longo de todos os tempos, estamos convencidos de que
esta foi muito aperfeiçoada, posta em acção por funcionários corruptos que existem sempre.
Não se afigura possível averiguar com rigor qual foi a área de terra agrícola desperdiçado
quanto aos objectivos de correcção das assimetrias de apropriação privada. Sabe-se que «os ri-
cos ficaram mais ricos», como sempre acontece, e os pobres, nestas circunstâncias, talvez na
mesma. Henrique de Barros, em «Mouzinho da Silveira e a sua obra», apresenta um cálculo
baseado no reporte à actualidade de 1936, de valores calculados por Alexandre Herculano, o
que lhe permitiu afirmar que a área dos Bens Nacionais, da Coroa e da Igreja, vendidos «cor-
responderia a 100.000 hectares de terreno». Não oferece dúvida que esse terreno tenha feito
falta aos Camponeses, situados no «limiar da Reforma Agrária» que mais uma vez viram frus-
trada. Mas devemos reconhecer que o desastre da frustração da «Revolução Agrária» de Mou-
zinho da Silveira está muito longe de ser só este, porque foi muito maior quanto a outros aspec-
tos fundamentais, como tentaremos ver.

299
Os desastres da aplicação da «Revolução Agrária» de Mouzinho

Se pretendermos comparar a solução proposta por Mouzinho da Silveira, de entregar


aos cultivadores das terras que, historicamente, o Rei doara, a posse consolidada, com critérios
gerais de acesso à terra que Reformas Agrárias subsequentes perfilharam, não oferece dúvida
que os cultivadores «pensioneiros» de terras patrimoniais, isto é, não régias, caso existissem,
ficariam injustamente excluídos. Embora seja enorme a dificuldade de entender, conforme re-
ferimos, o conceito de Propriedade praticado no período pré-liberal, julgamos certo acreditar
que Mouzinho, perfilhava a ideia, de forte conteúdo histórico, de que toda a propriedade da
terra provinha, em Portugal, da presúria arrancada aos Mouros, que o Rei conquistador sempre
dividiu por seus vassalos e companheiros, Nobres, Religiosos e Peões, nos momentos da eufo-
ria. das vitórias, com a terra semeada de mortos e moribundos. A ocupação ou presúria clan-
destina, de conquistadores que se tivessem imiscuído, furtando-se à vigilância régia, não seria
possível, e correspondia a usurparão mais tarde ou mais cedo averiguada em «inquirições»
apropriadas. Portanto, na ideia de Mouzinho que, aliás atrevidamente acabamos de imaginar,
todo o cultivador português seria, afinal, «pensioneiro», directo ou indirecto, que se encontra-
va a pagar tributo em terras que, historicamente, eram ou tinham sido propriedade do Rei e pe-
lo Rei repartidas por diferentes Donatários. No entanto, viria a verificar-se que esta posição do
legislador determinaria enormes dificuldades de aplicação prática.
Miriam Halpern Pereira acentua que «nenhuma disposição desta lei abrangeu os bens
patrimoniais. Ora a sua aplicação restrita aos bens da Coroa vai constituir uma porta aberta a
uma dinâmica social contrária aos seus objectivos». Efectivamente, a «Revolução-Agrária» de
Mouzinho acabou por ser entregue aos Tribunais que passaram a decidir se a terra era doação
do Rei, ou património adquirido por outra via que, na verdade, não se entendia bem qual fosse.
A este respeito Alexandre Herculano afirma «tememo-nos, porém, dos tribunais; tememo-nos
da magistratura; não porque a julguemos na sua maior parte vehal ou menos bem intencionada,
mas porque a cremos iludida por um demasiado receio de ofender o direito de propriedade, e
falta geralmente das luzes históricas necessárias para se poderem resolver com justiça as ques-
tões que diariamente se alevantam entre os homens laboriosos e os membros inúteis da repú-
blica, sobre matéria de forais e de bens da coroa». E, adiante, narra um facto que bem docu-
menta tudo o que se deve ter passado: «a ré tinha-se recusado a pagar o foro, alegando que,
sendo o dito casal situado dentro do reguengo de Algés e, por consequência originariamente
da coroa, lhe era aplicável o benefício dos artigos 3, 6 e 9 do decreto de 13 de Agosto, que ha-
vendo sido extinto aquele foro à vista desses artigos, tinha cessado para ela a obrigação de o
resolver. Isto parecia evidente, contudo a ré foi condenada, e a sua propriedade, livre pela lei,
continuará a ficar serva». E Alexandre Herculano apresenta o fundamento da condenação que
se afigura constituir bom exemplo do que foi a base do generalizado fracasso da «Revolução
Agrária» de Mouzinho: «os bens reguemos não eram bens da coroa e esta é a opinião de todos
os nossos jurisconsultos sem excepção; porque não estavam sujeitos à lei mental, e os seus
possuidores dispunham deles como verdadeiros senhores, de modo que se podiam vender, alie-
nar e partir sem licença régia, o que tudo se opunha à natureza dos bens da coroa». Quantos
teriam sido os Camponeses que sofreram condenação igual à desta ré abandonando, no deses-

300
pero, as portas dos Tribunais.
O problema dos Forais presidiu também ao laborioso ajustamento estrutural da «revo-
lução Agrária». A aplicação da lei a terras onde os Camponeses estavam sujeitos a prestações
foraleiras decorreu sempre de forma particularmente difícil. Por isso foi publicado a Lei dos
Forais de 22 de Julho de 1846, que substituiu e alterou a legislação anterior. A este respeito
Herculano refere, em 1858, quando lhe era posta a questão da necessidade de revisão legislati-
va nesta matéria: «a lei de 1846 é uma lei reaccionária. E a explosão da guerra oculta feita por
interesses ilegítimos ao grande acto de justiça nacional, chamado o Decreto de 13 de Agosto
de 1832, pensamento talvez o mais grandioso da ditadura do Duque de Bragança, a que só fal-
taram desenvolvimento e provisões, que facilitassem a sua execução, falta que subministrou
pretextos ao espírito de reacção para o falsificar e anular em grande parte. A lei de 1846 não
me inspira só hostilidade; inspira-me indignação. Mas quando uma lei tem actuado durante do-
ze anos sobre o modo de ser de uma grande parte da propriedade territorial do país, quando
tem regulado milhares de contratos, servido de norma a milhares de sentenças, influído em mi-
lhares de sucessões, determinado para mais ou para menos milhares de fortunas, pretender al-
terá-las pode não ser uma grande temeridade, mas requer por certo uma alta força de inteligên-
cia, e uma circunspecção pouco vulgar». Eis aqui o que nos parece ser o aspecto essencial da
frustração dos interesses camponeses, no «limiar da Revolução Agrária» que se deparou com
a Revolução de 1820. Embora o assunto não tenha ainda merecido a atenção dos Historiadores,
de forma a poder-se quantificar os efeitos das sentenças dos Tribunais e de toda a espécie de
enredo administrativo, quanto à forma de aplicação das leis revolucionárias de Mouzinho, en-
tendemos, suplantando a impossibilidade do saber, que a perda de oportunidades de acesso à
terra por parte dos cultivadores «pensioneiros», representa maior prejuízo para a necessária ex-
pansão da propriedade camponesa, na óptica da Reforma Agrária, do que a venda de 100.000
hectares de Bens da Coroa e da Igreja a reduzido número de capitalistas que se empanturraram.
Teriam sido muitíssimos mais os hectares que, na ideia de Mouzinho deviam ser «libertados»,
por constituírem histórica doação dos Reis; hectares que se mantiveram nas paisagens agrárias
portuguesas, propriedade «serva» ao serem definidos como patrimoniais, formando reserva da
Reforma Agrária. Não sabemos avaliar, no entanto, se a rusticidade dos rústicos alguma vez
teve as «luzes» que permitem notar a dimensão do desengano.

A exploração agrícola

Não tem sido fácil a comparação da propriedade rústica actual com o esquema de repar-
tição e uso da terra que, no início do século XIX constituía a herança do sistema senhorial ou
feudal da idade média. Na verdade, custa a entender os efeitos da senhorialização que se oper-
ou na apropriação da produção campesina, ao contemplar-se o envolvimento do homem e da
terra nos escombros das estruturas agrárias romanas — talvez as únicas compreensíveis — de-
pois de assimiladas de maneira caótica pelos bárbaros. Todo o período que precede a invasão
islâmica, que na Europa medieval do Ocidente representa originalidade ibérica, se apresenta
nebuloso quanto ao aspecto estrutural, e somente depois, a partir da reconquista a sul do Dou-
dade sua. Se assim for entendido, no início do século XIX, somente a norte do Douro se pode-
riam encontrar recantos que se tivessem furtado à senhorialização que o Rei mais ou menos
governou, onde a propriedade se encontrasse consolidada na rapina de terras e usurpações que
não ofereciam dúvidas como esteio alodial de camponeses ou de nobres. Quanto ao resto esta-
ria presente, embora diluído e deformado pela erosão dos tempos, o Couto atribuído em regra
a Ordens Monásticas, confirmado em cartas de privilégio a Nobres ou em foral de Concelhos,
bem como as Honras concedidas pelo Rei por natureza ou sangue, por pendão, quando o Rei
as mandava demarcar, ou por carta ou foral quando assim deixava assinalados os limites do
seu favor.
Supomos constituir problema difícil de esclarecer com suficiente rigor e na sua efectiva
dimensão, a existência de bens patrimoniais, dotados de alodialidade, que se furtavam ao go-
verno régio e que a Revolução Liberal nem tentou nacionalizar, envolvendo o património da
Igreja em arrastada desamortização. Muitas das estruturas agrárias se encontravam apoiadas
em Forais, ordenados pelos Reis, mas também concedidos por Donatários eclesiásticos ou lai-
cos, fazendo lei os usos e costumes ancestrais. Também o larguíssimo poder do Rei podia criar
situações excepcionais e os Donatários dispunham de privilégios de que serve de exemplo o
de poderem honrar os sítios onde moravam as camponesas que serviam de amas dos filhos de
nobres, beneficiando de honras de amadigo.
Mas no aspecto estrutural agrário, a posse da terra não representa, por si só, o motor da
agricultura, mas o enquadramento social, decisivo quanto a aspectos económicas ou funcio-
nais, da aplicação da força de trabalho de que as populações são exclusivas detentoras. O tra-
balhador libertasse, sem dúvida, quando alcança a posse da terra, mas a História demonstra que
o trabalho não deixa de se submeter à prepotência, para defesa da vida, quando a terra se apre-
senta configurada com a teia da escravatura ou da servidão. É por isso que importa ter em con-
ta como funcionavam no início do século XIX as estruturas agrárias de produção, independen-
temente da partilha da terra, como bem fundiário. Somente assim se poderá entender a essência
da Revolução Liberal na agricultura.
Se prosseguirmos na utilização das conclusões dos Historiadores como instrumento da
nossa tentativa de análise agronómica importa assinalar Virgínia Rau em «Estudos sobre His-
tória Económica e Social do Antigo Regime». Independentemente das justificações ecológicas
que a referida Historiadora adianta para além da sua especialidade, julgamos particularmente
elucidativa a seguinte posição:
«Mas, não obstante faltarem os estudos de pormenor ou de conjunto, parece-nos possí-
vel afirmar que, mesmo nas chamadas grandes propriedades — e recordemos que algumas or-
dens religiosas possuíram terras que totalizavam 40.000 hectares, como o Mosteiro de Alco-
baça —, Portugal desconheceu, até meados do século XIX, a grande exploração agrária. E a
razão afigura-se-nos residir não só nos condicionalismos já indicados, mas também na forma
tradicional como os possuidores da terra foram garantindo o seu cultivo. Isto é, como os pro-
prietários, com pouco capital e escassos recursos técnicos, conseguiram obter, mediante certas
convenções agrárias, uma ocupação efectiva e um cultivo diligente da terra de que lhes provi-
nham rendimentos e prestações.»
Tem particular interesse a descrição que segue:

302
«De facto, a enfiteuse permitiu ao proprietário territorial, sem alienar, em principio, o
que era seu, fomentar um alargamento económico-agrário dos seus bens, e propiciou, também,
uma "desconcentração" da grande propriedade. Praticada em relação às terras seculares e ecle-
siásticas, aos bens da coroa e dos municípios, revestindo, nuns casos ou noutros, forma perpé-
tua ou temporária — podendo ainda os prazos ser hereditários ou de nomeação —, a enfiteuse
promoveu o aproveitamento de terras que, sem tal instituto, teriam talvez permanecido incul-
tas e ermas, ou pelo menos pouco produtivas. Numa palavra, dividiu as áreas territoriais per-
tencentes aos grandes terra-tenentes em múltiplas unidades de exploração agrária médias ou
pequenas, ao mesmo tempo que deu "mobilidade" ao cultivo das terras presas e imobilizadas
pelas instituições vinculares.
A enfiteuse recorreram a Ordem de Cristo, o Mosteiro de Alcobaça, a Casa do Infante,
e quantas casas nobres e senhoriais, durante os séculos XV a XIX, não faltando nos seus fun-
dos arquivísticos os numerosos e volumosos livros de registo de prazos ou aforamentos.»
O que se referiu fica complementado com o comentário:
«Outra convenção agrária, mais ou menos contaminada pela enfiteuse e de influência
posterior no tempo, o arrendamento, veio reforçar o tipo de pequena ou média exploração
agrária que já delineámos. Eram os foreiros e os rendeiros que garantiam, no século XVIII, o
cultivo das herdades da Casa de Bragança no termo de Olivença e no Alentejo; e, também, dos
casais, das quintas e das herdades de um dos maiores proprietários territoriais de Portugal, o
Duque de Cadaval, em Linda-a-Velha, em Anobra, na Golegã, em Estremoz, em Alcochete, em
Olivença, bem como dos Morgados do Maranhão e de Évora e das Abitureiras. Em 1752, o
Duque de Cadaval arrendava por um ano, ao terço e ao quarto, nada meros do que vinte e uma
"cortes" nas suas terras de Muge, além de terreno para meloal, para tremoço e para culturas de
feijão e de milho grosso (maiz) por determinada porção dos respectivos produtos.»
Afigura-se importante a conclusão:
«De tudo quanto acabamos de referir, legítimo se torna aceitar a hipótese que formula-
mos de que os grandes proprietários territoriais portugueses, laicos ou eclesiásticos, e também
os soberanos, não promoveram grandes explorações agrárias, mas possuíram sim, e curioso é
sublinhá-lo, grandes administrações onde se concentrava a contabilidade e o recebimento dos
foros e das rendas que cobravam das suas terras, e donde partia a distribuição e colocação dos
seus rendimentos em géneros e em dinheiro.»
Entretanto, a posição da referida Historiadora, naturalmente reconhecida como correcta
em termos genéricos, não se adapta a regionalismos, como o do Alentejo que em Portugal, as-
sume grande importância. Assim, Albert Silbert, que aprofundou de forma notável o estudo
agrário de Portugal mediterrânico, afirma o que apresentamos traduzido: «não pode aceitar-se
a assimilação que desta forma é feita entre a enfiteuse do Alentejo e a do Norte de Portugal. A
identidade jurídica esconde uma grande diferença real. O enfiteuta (no Alentejo) raramente é
agricultor quando se trata de herdades e o número de enfiteutas não dá a ideia verdadeira do
número de explorações».
Efectivamente os dados estruturais encontrados por Silbert revelam a existência nas
vésperas da Revolução Liberal, de um povoamento concentrado em aglomerados urbanos, mas
todavia rurais no aspecto funcional, em cuja vizinhança se formaram pequenas unidades agrá-

303
rias, como as hortas e os ferregiais, encontrando-se os campos divididos normalmente em her-
dades, e em courelas resultantes de partilhas periódicas de bens comunais ou de contratos enfi-
têuticos que dividiram herdades. Quanto à exploração agrícola, não é assinalada, neste perío-
do, a presença activa do grande proprietário de herdades, que seria o donatário laico ou de Or-
dens Religiosas, em regra militares, nem a do enfiteuta, que confirma a posição assumida pela
Historiadora Virgínia Rau. Todavia, a presença de lavradores que, arrendando herdades, esta-
belecem contratos com seareiros e jornaleiros, parece contrariar tal posição, levando a admitir
a existência de empresas agrícolas de dimensão média e, por vezes, grande. Mas tudo gira em
torno de conceitos subjectivos de grandeza ou dimensão.
O lavrador representa, sem dúvida, regionalismo alentejano mas, nesta fase, não alcan-
çou a dimensão e o poder social que depois obteve quando instalado o capitalismo agrário. Pe-
lo contrário, pode entender-se que, nesta altura, o lavrador alentejano atravessava a crise resul-
tante da abolição da escravatura em 1773. Silbert cita a forma como em 1777 o município de
Almodôvar se dirigia à Rainha: «A primeira reacção dos escravos foi a de partirem, de abando-
narem voluntariamente as casas onde tinham nascido, ou onde haviam sido educados; eles en-
tregaram-se à vagabundagem desprovidos de recursos, mendigando de porta eia porta, insta-
lando-se em casas de aluguer, recusando sobretudo servirem os que os tinham até então guar-
dados, apesar das solicitações repetidas».
Assim, a maior parte dos lavradores «que tinham cinco, dez ou quinze homens e mulhe-
res» passaram a enfrentar a falta de mão-de-obra para os trabalhos dos campos e para os ser-
viços domésticos. Documentos de 1822 reflectem ainda a saudade dos tempos da escravatura
no Alentejo: «os lavradores tinham às suas ordens uma manada de escravos que, desde a infân-
cia, eram destinados a pastores, que se ensinavam sem dificuldade porque viviam com seus
pais».
Se os lavradores formavam realidade estrutural do Alentejo, constituindo uma espécie
de «burguesia camponesa» destituída de terra, que estabelecia a ligação com os proprietários
no fluxo dos rendimentos, o mais importante seria a base que constava de outras situações so-
ciais, também de originalidade alentejana: os seareiros, os abegões e os ganhões.
Silbert recorda que «na época antiga a unidade de capital de exploração era o arado, ou
o instrumento de trabalho e a sua junta de bois. A posse de uma destas unidades é suficiente
para definir o seareiro. Graças a essa posse, ele pode oferecer os seus serviços nas herdades
ou candidatar-se à cultura dos bens comunais». A condição de seareiro em região de cultura
cerealífera dominante e extensiva fica correctissimamente assinalada na seguinte passagem de
que fazemos tradução, um pouco livre, que julgamos tornar-se mais esclarecedora:
«o pequeno agricultor caracteriza-se menos pela terra que cultiva do que pela posse de
um capital constituído por animais de trabalho, graças aos quais se entrega a actividades com-
plementares: contratação do uso de uma courela, arroteia de uma parte de herdade, participa-
ção na repartição periódica de terras comunais, transporte de mercadorias». Esta realidade atri-
bui ao seareiro alentejano o estatuto de camponês livre e altivo, o que basta para se não desbar-
retar como um servo, que nunca foi, o que havia de perdurar ao longo de penosas emergências
que se aproximavam em seu desfavor.
No Alentejo, o paralelo com o camponês nortenho é encontrado por Silbert no «horte-

304
Ião que, pelo contrário, é um verdadeiro cultivador... sendo difícil separar completamente a
horta do ferregial». E mais ainda «o cultivador de uma courela de uma dezena de hectares está
mais próximo do lavrador do que o seareiro que possui apenas e à justa o arado e os animais
com o auxílio dos quais ele alcança uma colheita nas terras comuns da aldeia. Quem sabe, por
ventura, se o seareiro deste último tipo não é apenas um trabalhador agrícola que pediu em-
prestado ao seu patrão, por exemplo, o material ou os animais de que necessitava».
Em relação ao Alentejo persiste a referência constante à raridade de jornaleiros. Embora
as avaliações demográficas desta época se apresentem esclarecedoras quanto a aspectos quan-
titativos globais, as indicações qualitativas são escassas, não podendo saber-se o que represen-
tava o estrato dos trabalhadores assalariados. A contratação a jornal é muito antiga e já se en-
contra. como vimos, largamente referida na Lei das Sesmarias. O que é periódico e frequente
é a tentativa de fixação ou tabelamento de salários, mesmo depois de atenuada a contratação
compulsiva ou o combate à vadiagem. De qualquer modo, tudo indica que no Alentejo, muito
para além do reduzido estrato de proprietários, o grupo formado pelos lavradores, seareiros,
hortelões e coureleiros, constituía minoria privilegiada, sendo dominantes os trabalhadores ou
ganhões.
O magnífico estudo de José Cutileiro «Ricos e Pobres no Alentejo» confirma, na fregue-
sia de «Vila Velha», o quadro geral que ficou esboçado. Em 8.904 hectares de terra, 17 por
cento era a área de dois baldios ainda existentes em 1820. Quanto ao restante:
«havia herdades pertencentes à Casa de Bragança, a nobres absentistas e a mosteiros.
Alguns proprietários locais, que também tomavam de arrendamento terras pertencentes a
membros daqueles grupos, detinham a posse de um pequeno número de propriedades rústicas.
Em volta das aldeias existiam grupos de pequenas propriedades cujos donos eram aldeões lo-
cais. Um desses grupos resultou de partilha de terras pertencentes à Casa de Bragança verifica-
do no século XVI. A terra dessas propriedades é relativamente fértil. Um segundo grupo de pe-
quenas propriedades, que se estende por parte da terra mais fértil da freguesia deve igualmente
ter sido resultante de uma divisão sistemática, o que se pode inferir dos seus contornos alinha-
dos e geométricos e de descrições que lhes dizem respeito em livros de contabilidade da Mise-
ricórdia. Não me foi possível fixar a data em que se terá verificado a divisão, mas encontrava-
-se certamente concluída antes de 1820.»
A área de pequena propriedade, antes de 1820 que o Autor não pôde avaliar por falta de
informação, seria escassa. Para a actualidade, os dados de Cadastro, que utilizou, revelaram
que as propriedades com menos de 10 hectares representavam 11 por cento da área total inte-
ressando a 83 por cento dos proprietários. Em contrapartida as grandes e muito grandes pro-
priedades. dominavam 68 por cento da superfície sendo desigualmente repartidas por 15 pro-
prietários.
Em relação ao Norte a concordância com a conclusão da Historiadora Virgínia Rau é
completa. Podemos documentá-la, por exemplo, com referências ao campesinato minhoto do
Visconde illarinho de S. Romão no «Minho e suas culturas», ou no «Velho Minho» de San-
f Anna Dionísio quando escreve: «ao longo dos pequenos ribeiros sucedem-se as quintas, re-
catadas e velhíssimas, afogadas em folhagem, algumas dos tempos dos afonsinos, outras talvez
contemporâneas de S. Martinho de Dunie ou de Trajano». E, por isso, «subindo aqui um mon-

305
te. descendo além um vale, o caminheiro terá ocasião de conhecer um sem-número de fecun-
das várzeas, de agros de estimação, de recatados hortejos de ensombrados arroios e ribeiros,
cortados de mil carneiros, portelos, pontilhões, calçadas e barrocas».
Por tudo isto chamamos a atenção do leitor para outras passagens do nosso relato onde
afirmámos que as vilas romanas passaram a constituir, até à actualidade «reminescência vaga
e confusa» no dizer de Alberto Sampaio. Assim, as estruturas agrárias de 1820 revelam-nos no
Norte a vila romana transformada em freguesia onde o povo se apropriou e dividiu parcelas
agrárias menores e, no Sul, configurada com a herdade que nunca foi parcelada por ter sido a
gente arredada pela presença maometana. Alberto Sampaio afirma:
«as nossas vilas (as do Norte), posto que haja algumas intactas, na maioria serviam para
identificar os prédios desmembrados do tronco principal». E depois «as vilas foram proprie-
dade em todo o rigor da palavra; a freguesia é uma espécie de comuna sem carta, que se forma
em volta do campanário. Precisar a data em que uma deixa de existir e começa a outra, é im-
possível; ao lado da instituição moribunda vai despontando a nova, ora balbuciante ora quasi
na juventude, até se efectuar a evolução por completo». E, finalmente, «apesar da divisão do
senhorio, das lutas com o estrangeiro e discórdias internas, os lavradores não cessam de tirar
da terra nunca inerte o sustento de cada dia e o custeio das despesas públicas: os dirigentes des-
cem pela maior parte ao nível popular».
Era extremamente complexo o edifício social, económico e político da Agricultura do
Antigo Regime, erguido sobre partilha fundiária onde tanto figuravam os interesses privados
de laicos — grandes, médios e raramente pequenos — como de comunidades religiosas ou pa-
roquiais, estas detentoras dos baldios dos Concelhos, e ainda o Poder muito forte do Rei. Sobre
esse edifício apoiava-se a exploração agrária funcional camponesa. Destruir as peças carcomi-
das do edifício, em obediência aos princípios da arquitectura liberal, extremamente exigentes
quanto a valores humanos, era tarefa que havia de arrastar-se por muitos anos, com a perspecti-
va de nunca mais se encontrar consolidada na justiça social.
Na legislação de Mouzinho encontramos uma passagem que embora aplicada em senti-
do concreto, também pode encerrar valor simbólico: «os peixes chamados Reais, quando fo-
rem pescados, são do Património dos Pescadores». Que peixe foi pescado? Quem foram, afi-
nal, os pescadores? Eis a dúvida que se apresenta quando tentamos analisar o decisivo e reno-
vado «limiar da Reforma Agrária» no século XIX.

A regionalização

Na região o essencial perdura, mesmo quando tudo muda, embora seja desmedida a re-
sistência à mudança. Na sedimentação de factos e acontecimentos criam-se raízes ou paisagens
a demarcarem fronteiras a que se prendem vidas. No entanto, não se imagine que tal resistência
defende, patrimónios podendo, pelo contrário, destruí-los, como se apagasse má memória e
abrisse renovadas esperanças. As forças sociais actuam sob impulso dos mais variados estímu-
los constituindo, a região e os seus valores, riqueza acumulada. Nas lutas que formam a cons-
tante da História, os vitoriosos apoderam-se de quinhões logo repartidos em favor de novos se-
nhorios, enquanto os vencidos sonegam o mais que podem. Assim, a prática administrativa as-

306
sume expressões que tanto adoptam a violência opressora, como defendem a liberdade — o
uso e o abuso do Poder centralizado alterna com as vitórias do contra-Poder a que talvez se
possa aplicar a designação hoje corrente do «poder local».
Na certeza de que a regionalização constitui produto histórico de confrontos, em regra
violentos, de forças que tanto submetem como libertam, importa reter o significado e o efeito
dessa luta de consolidação política no sistema forte do enquadramento agrário que nessa altura
dominava a essência do sistema ecológico. A regionalização tem alicerce antigo, como noutro
passo referimos, e ultrapassou incólume o reformismo pombalino o que atesta o seu valor bási-
co. Acabou por enfrentar a Revolução Liberal, voltando a impor o peso da sua tradição no pri-
meiro embate. A Constituição de 1822 reconheceu que o território na Europa, era constituído
por dois Reinos, o de Portugal com cinco Províncias — o Minho, Trás-os-Montes, Beira, Es-
tremadura e Alentejo — e as Ilhas, e o Reino do Algarve, autonomamente designado.
No entanto tais regiões não podiam permanecer o couto de privilegiados e, por isso, a
Constituição preceituou a adopção de novas unidades administrativas regionais designadas
Distritos, a cargo de um Administrador Geral nomeado pelo Rei e assistido por uma Junta Ad-
ministrativa onde estivessem representados os Concelhos. Os Distritos não foram demarcados,
estipulando-se que «a Lei designará os Distritos». Antes de promulgada a Constituição já fora
aprovada a reforma das Câmaras Municipais, sua composição e modo de eleição. Segundo re-
fere Marcello Caetano em «Os antecedentes da reforma administrativa de 1832» as ideias re-
formistas nesta matéria figuravam naturalmente nas preocupações da Regência instalada nos
Açores. Almeida Garrett teria acedido «com muita repugnância» à tradução de algumas pági-
nas do Abrégé des Príncipes d'Administration de Bonnin. Soares Franco, ao discutir nas Cor-
tes Ordinárias que seguiram às Constituintes o primeiro projecto de reforma administrativa, re-
fere largamente o exemplo francês sem que propusesse a sua simples adopção. Sucedia que a
Comissão de estatística que apresentou o projecto confessava que «encontrou os concelhos na
mais considerável desigualdade de superfície, uns, como quasi todos os coutos e honras, muito
pequenos; outros, pelo contrário, muito grandes; e quasi todos em uma configuração suma-
mente irregular e monstruosa, chegando a haver vilas, e lugares, dos quais umas ruas perten-
cem a um concelho e outras a outro». A citação apresentada por José António Santos em «Re-
gionalização. Processo Histórico» fica completada, quanto ao quadro da grande dificuldade de
demarcação regional com a referência a «outro muito poderoso motivo para se diferir a nova
formação dos concelhos, e é para se fazer ao mesmo tempo, e em combinação as das fregue-
sias, de maneira que uma freguesia não fique repartida por dois ou três concelhos, como ac-
tualmente está sucedendo em muitos casos». Quanto à capacidade administrativa do «poder lo-
cal» o estudo da Comissão é Concludente «as câmaras não estão no momento presente, ao me-
nos pela maior parte, em estado de satisfazer as obrigações que a Constituição lhes incumbe.
Há algumas em que os vereadores nem ler sabem e não têm o mais pequeno conhecimento dos
negócios públicos. De mais as paixões e os patronatos já têm invadido as aldeias, como as ci-
dades; a um corpo efectivo não à fácil exigir a responsabilidade e em lugar de um fazem-se
uns poucos de culpados nos casos raros de se poder verificar a culpa». Deve reconhecer-se que,
mesmo ressalvando a relatividade das situações, o quadro referido mantém grande actualidade.
A proposta da Comissão de Estatística de onze Províncias — Alto Minho, Baixo Minho,

307
Trás-os-Montes, Beira Marítima, Beira Alta, Beira Oriental. Alta Estremadura. Baixa Estrema-
dura. Alto Alentejo. Baixo Alentejo e Algarve — subdivididas em vinte e duas Comarcas. A
discussão do Projecto foi interrompida mercê da Contra-Revolução desencadeado em Vila
Franca, que levou à suspensão da Constituição em Junho de 1823.
Depois da morte de D. João VI, estando em vigor a Carta Constitucional, o Parlamento
foi eleito em 1826. Foram designadas duas Comissões, uma para o estudo do Código Adminis-
trativo e outra para o da Divisão do Território. Em 1827 foram propostas sete Províncias no
Continente e duas nas Ilhas. As Províncias eram as seguintes: Minho, Trás-os-Montes, Beira
Alta, Beira Baixa, Estremadura, Alentejo e Algarve. As Províncias seriam divididas em dezas-
sete Comarcas no Continente, e a Comissão de Divisão do Território «pondera que havia 228
concelhos com menos de 200 fogos onde difícil seria formarem-se câmaras efectivas e que me-
lhor fora suprimir anexando-se os seus territórios a outros. Em compensação, alguns dos maio-
res poderiam ser divididos». Este Projecto, de correctíssima estruturação geográfica quanto às
Províncias, não chegou a ser discutido porque D. Miguel dissolveu a Câmara dos Deputados
em 1828, convocando as Cortes à maneira tradicional.
A Revolução endureceu e transformou-se em Guerra Civil. Mas, no desembarque no
Mindelo, Mouzinho da Silveira trazia consigo o Decreto n.° 23, publicado em Ponta Delgada,
em 1832. Esta Lei ditatorial esmagava o passado regional: «ficam abolidas todas as divisões
tradicionais de qualquer natureza que sejam, não obstante qualquer privilégio dos mais altos
donatários». As regiões tradicionais iriam ficar banidas para sempre, embora Mouzinho pro-
curasse modificar a essência das situações sem alterar por vezes os nomes das coisas. Por isso
o Decreto n.° 23, embora criasse oito Províncias Administrativas, aproveitando designações
tradicionais — Minho, Trás-os-Montes, Douro, Beira Alta, Beira Baixa, Estremadura, Alentejo
e Algarve — impunha, naturalmente, inteiramente nova administração liberal. O esquema
criou a Província do Douro que não tinha tradição, o que seria homenagem à Cidade escolhida
para desembarque do Exército Liberal, e ampliava de forma desmedida o território do Algarve
que passava a englobar todo o Baixo Alentejo.
Como se referiu, a figura de Mouzinho apagou-se politicamente, antes do termo da
Guerra Civil, e em 1835 Rodrigo da Fonseca Magalhães, interpretando à letra a Constituição
de 1822, fez aprovar o Decreto de 18 de Julho de 1835 que moldou de forma absurda, do ponto
de vista Histórico e Geográfico, a regionalização administrativa liberal. As Províncias e as Co-
marcas foram banidas estabelecendo-se que «os Reinos de Portugal e Algarve e Ilhas adjacen-
tes são divididos em Distritos Administrativos. Os Distritos subdividem-se em Concelhos e os
Concelhos compõem-se de uma ou mais Freguesias». De uma só penada, o Governo «num am-
biente profundamente perturbado, de efervescente tensão militar, eleitoral e política» demar-
cou dezassete Distritos de limites arbitrários, designados pelos nomes das respectivas Capitais:
Viana, que mais tarde viria a ser do Castelo. Braga, Porto, Vila Real, Bragança, Aveiro, Lame-
go, Guarda, Coimbra, Castelo Branco, Leiria, Santarém, Lisboa, Portalegre, Évora. Beja e Fa-
ro. O esquema, que se manteve, difere do actual no caso de Lamego que cedeu o lugar de Capi-
tal a Viseu, e do décimo oitavo Distrito criado recentemente em Setúbal à custa do território
antigo de Lisboa que englobava a margem sul do Tejo. Em breve os Distritos viriam a consti-
tuir a estrutura regional de diferentes serviços, como os de agricultura.

308
38 — A REVOLTA CAMPONESA

Não tinha lógica uma Revolução Liberal sem Revolta Camponesa, em Portugal. Em
1820, os rurais portugueses apenas serviram de soldados que os oficiais de profissão reuniram
em concentração nas praças e conduziram depois em marchas, de terra em terra ou de serra em
serra, chegando ao ponto de os comprometerem nas barricadas, de um lado e do outro, em his-
tóricas batalhas. Muitos morreram sem saberem porquê. A Revolta Camponesa é outra situa-
ção. Nasce da Terra, embora, depois, muitos se ocupem da liderança, não se podendo nunca
avaliar quando e como a Revolta acaba por morrer.

O vazio da expulsão dos Frades

O Povo nunca soube a razão pela qual os Frades foram exilados. O Povo conhecia
os Frades. Andou com eles a desbravar os matagais. A seu lado viu-os espadeirar os Mou-
ros. Levou-os embarcados nas Caravelas. Ao morrer na fogueira, teve-os na sua frente, em-
punhando o Crucifixo a darem quanto mais não fosse, a Absolvição. Ouviu-os, Missio-
nários, debruçados sobre o púlpito, a revelarem com voz de trovão as glórias do Paraíso e
os horrores do Inferno. Ajudou a erguer Mosteiros e Conventos, habituou-se a vizinhanças
e a dar-lhes jovens noviços que mais não voltava a ver. Não entendeu porque depois tudo
havia de ficar sem Frades. Vendo os Mosteiros abandonados, faminto e carenciado, sa-
queou-os e ocupou-os, instalando nas celas onde rezaram Santos as suas misérias. Noutros
casos assistiu à chegada de novos donos, o que nem foi contestado. Quanto aos edifícios,
o que continua a impor-se é não somente a arquitectura como a escolha dos sítios, o que
veio a ficar inscrito em paisagens raras que, por vezes, parece resistirem aos estragos do
tempo.
Por sorte, foi-nos dada a oportunidade de avaliar, talvez, os sentimentos que estamos
a atribuir à condição popular quando, sendo escoteiro, escolhíamos para acampamento o
Convento da Arrábida. Nesse tempo, a ausência de estrada, facultava-nos subir a Serra, par-
tindo de Azeitão, por um carreiro que fora o itinerário dos Frades. No alto, quando se des-
cobria a deslumbrante paisagem sobre o mar, havia um monte de pequenas pedras, para ali
arremessadas, que contavam os padre-nossos rezados pelos Arrábidos quando chegavam à
vista do Convento. Nós, sem o merecermos, fazíamos o mesmo, e depois era-nos deparada
a Serra, inviolada de estradas, sem vivalma, com as Ermidas abandonadas, desperdiçado o
mel silvestre, as raízes e os bolbos de que os Eremitas se alimentavam. O Convento, deserto,
bem conservado graças aos cuidados da Casa Palmela, revelava-nos serenos recantos e a es-
tátua de Franciscano, crucificado, olhos vendados, tapados os ouvidos, a boca amordaçado
e fechado, a cadeado, o coração. A Cerca do Convento, inculta, onde no húmus ainda vivo
palpitava o calor de raízes de plantas de há muito abandonadas, depois de terem sido amo-
rosamente cultivadas, de forma a consentir a absolvição de qualquer Frade. Ao procurar
abrigo recordamo-nos de ter encontrado uma cela donde se via o mais esplendoroso dos lua-

309
res de prata a reflectir-se no Oceano. Foi aí que Santo António se deteve a meditar no Ser-
mão que, um dia, desiludido com os Homens, pregou aos Peixes. Temos a certeza que lá pas-
sou o Santo... temos a certeza porque o Santo ainda lá estava. Para Santo António de nada
serviu a expulsão dos Frades.
Recordamo-nos também que nessa altura ainda não tínhamos lido as «Viagens na Mi-
nha Terra», de Almeida Garrett, onde viemos a encontrar o trecho muito conhecido mas que,
dado seu valor, não resistimos à tentação de o inscrever na nossa antologia:
«Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século,
como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente
falando.
No ponto de vista artístico porém o frade faz muita falta.
Nas cidades, aquelas Figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pi-
torescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecas de casaquinha
esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europeia — cortavam a mo-
notonia do ridículo e davam fisionomia à população.
Nos campos o efeito era ainda muito maior: eles caracterizavam a paisagem, poetiza-
vam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras
eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel não é já o mesmo.
Além disso o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, da-
vam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra
de poesia e de solenidade.»
E mais adiante Garrett desenha o quadro de flagrante actualidade:
«E se não digam-me: onde estão as universidades, e o que faz essa que há, senão dar o
seu grauzito de bacharel em leis e em medicina? O que escreve ela, o que discute, que princí-
pios tem, que doutrinas professa, quem sabe ou ouve dela senão algum eco tímido e acanhado
do que noutra parte se faz ou diz?
Onde estão as academias?
Que palavra poderosa retine nos púlpitos?
Onde está a força da tribuna?
Que poeta canta tão alto que o oiçam as pedras brutas e os robres duros desta selva ma-
terialista a que os utilitários nos reduziram?
Se exceptuarmos o débil clamor da imprensa liberal já meio esganada da polícia, não se
ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando contos de reis.
Dez contos de reis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um antigouri!
Cinco mil contos para isto, dez mil contos para aquilo!
Não tardam a contar por centenas de milhares.
Contar a eles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel — a terra e a indús-
tria (...)»

310
As reformas «setembristas»

O movimento popular desencadeado em 1836 conduziu ao restabelecimento da Consti-


tuição de 1822, e à eleição de novas Constituintes. O movimento ficou conhecido na História
do Liberalismo português por «setembrismo» a que corresponderá a ascensão ao poder da ala
esquerda do sistema político. Afigura-se que, nesta altura o aparelho militar encontrou dificul-
dades no controlo dos acontecimentos, enquanto grupos civis conseguiram armar-se. Todavia
novos Governos se constituíram e, neste transe, destaca-se a figura íntegra do Marquês de Sá
da Bandeira, herói do cerco do Porto, «o português mais ilustre do seu século» como o desig-
nou Herculano, a impor o termo da escravatura portuguesa pela proibição do tráfico de escra-
vos a Sul do Equador. É notável a tentativa do Militar-Político de estabelecer em Angola, pelo
povoamento dos planaltos, a construção de um novo Brasil.
É nesta fase que Passos Manuel empreende a reforma do Ensino Liceal e Sá da Bandei-
ra revela a sua inconformação com a resistência oposta pela Universidade de Coimbra à mo-
dernização do Ensino Superior, mantendo a defesa intransigente dos seus bacharelatos e licen-
ciaturas tradicionais que não favoreciam o sentido útil ou aplicado da preparação científica e
técnica. Foi por isso que Sá da Bandeira, não tentando sequer reformar Coimbra, melhorou o
ensino de Engenharia na Escola do Exército e de Veterinária na Escola da Luz, e fundou, em
1837, a Escola Politécnica de Lisboa e a Academia Politécnica do Porto. Estava assim vibrado
o golpe definitivo na unicidade da Universidade de Coimbra, com a consciência expressa de
que o Ensino Politécnico auxiliaria «as carreiras do Exército e da Marinha» mas também as de
«outras profissões científicas». Também a assistência hospitalar apresentou ao «setembrismo»
necessidades prementes que os Médicos formados em Coimbra já não podiam atender. Foram
por isso criadas as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto. Com a mesma preocupa-
ção de modernização do Ensino, foram também criadas as Academias de Belas Artes de Lisboa
e do Porto.
O movimento popular urbano que o «setembrismo» teria representado no decurso da
agitação política desta época, sofreu golpe mortal quando os «arsenalistas», que constituíam o
mais forte núcleo do povo armado, exibindo barbas a servirem de expressão ideológica, foram
encurralados no Rossio e massacrados a tiro por forças do Exército.

O Governo de Costa Cabral

A Constituição de 1838 que representou miscelânea do texto de 1822 com as disposi-


ções moderadoras da Carta, teve curta duração, dando lugar, de novo, à Carta Constitucional
que recebeu o apoio de Costa Cabral, ao dar a cambalhota que o levou do «setembrismo» ao
cartaz da restauração da ordem e da eficácia do serviço público do seu sistema regenerador
embrionário.
Entretanto, a reforma do sistema tributário, instituindo o cadastro da propriedade rústica
determinou reflexos muito profundos da população dos campos. O mesmo sucedeu quanto à
imposição de medidas resultantes da criação de serviços de saúde que impediram os encerra-
mentos nas Igrejas, obrigando à construção de Cemitérios higiénicos. Com o Código Adminis-

311
trativo de 1842 e a reforma dos Municípios, Costa Cabral apresenta-se na área rural como Go-
verno forte, agressivo e interventor, mesmo violento, que em breve terá o seu termo, sem tem-
po para tirar proveito de programas «de aberturas de estradas» nos meios rurais, defendidos
pela barreira do analfabetismo. Para Oliveira Martins, Costa Cabral formou «a maior de todas
as clientelas políticas do liberalismo português» assumindo as proporções de «um tirano no
meio da anarquia». O «tirano» associou à sua política seu irmão José Bernardo Cabral, o Zé
dos Cónegos, que tinha «maneiras repugnantes», como confessava o Marquês da Fronteira, ca-
bralista. Por isso, Cyrne de Castro refere em «A Patuleia no Alto Minho» que a imprensa opo-
sicionista escrevia que «os Cabrais são o protótipo da indecência!». Costa Cabral contou com
a protecção da Rainha que, morrendo cedo, não teve tempo de ver substituído o sistema ditato-
rial desta época, pelo cinismo tecnocrático dos «barões» enriquecidos pela aquisição dos Bens
da Coroa e da Igreja, quando se instalaram no poder, sem quererem saber das amarguras dos
Camponeses. De qualquer modo Costa Cabral era um rústico, melhorado pela Universidade de
Coimbra que sustentava com galhardia a função de fabricar políticos. Todavia ao bandear-se
do «setembrismo», passando a defender a moderação da Carta, não contou com os riscos da
«Revolta Camponesa».

A Maria da Fonte

É particularmente difícil encontrar, na versão dos Historiadores, a visão serena e cientí-


fica quanto aos sucessos a que foi dada a designação de «Maria da Fonte». Talvez o aspecto
insólito de uma «Revolução» se ter furtado à regra nacional de rebentar na Cidade, tenha in-
fluído no abandono a que o tema foi votado por parte dos Historiadores. Que o assunto é «Ru-
ral», não se oferece dúvida, bastando para tanto ter em conta a atenção que lhe prestou Camilo,
embora manifestasse em carta ao Padre Casimiro a sua predilecção por uma Maria da Fonte
«mais romântica do que histórica». Mas, de qualquer modo, esta «Revolução», continuará a
pedir o estudo de novos investigadores.
É notório que certas Revoluções, mesmo autênticas, nos são apresentadas em sincronia
com gestos e decisões de grandes figuras como, por exemplo, D. Afonso Henriques a procla-
mar a nossa independência, ou então D. João 1 a consolidar o País, e mesmo os Conjurados de
1640, reunidos no Terreiro do Paço, com o Duque de Bragança escondido em Vila Viçosa, a
aguardar os acontecimentos. Noutras circunstâncias a origem de factos importantes permanece
nebulosa, deixando dúvidas quanto ao foco do efeito motor. Encarando as coisas apenas do
ponto de vista sociológico, devemos reconhecer que teve muita força e, por ventura, originali-
dade, o sucedido em 1 de Abril de 1846, com gente simples, na Póvoa de Lanhoso. Aconteceu
que em resultado de decisões tomadas em Lisboa, acabara de ser construído, em Fonte Arcada,
um Cemitério. Ocorrendo na aldeia a morte de uma pobre, teve lugar o funeral que, pela pri-
meira vez, se deslocaria da choça humilde onde se finara a aldeã, para o Cemitério que, sem
pompa, ia ser inaugurado. De entre os acompanhantes figurava uma tal Maria que não gostou
do que estava a acontecer. Quem poderá saber se a Maria da Fonte teria ou não as suas razões,
porque há pouco, no local, tinham enterrado os restos do cadáver de um jumento, meio comido
pelos cães, para que não fedesse no arrabalde aldeão. É certo que fora do lado de fora do muro.

312
Mas, para mais, era sabido que o repouso no chão sagrado da Igreja constituía meio caminho
andado para alcançar o Paraíso. E nem o Juízo Final se compadecia com Almas donas de cor-
pos abandonados em qualquer lado. Foi por isso que, num rompante, olhos em fúria, a tal Ma-
ria foi ao telheiro, empunhando a foice do trabalho, a apontou ao gasganete do Pároco para que
levasse a pobre à Igreja e lhe rezasse os responsos sobre sepultura de Cristãos. Sem custo o
Abade obedeceu, não pelo medo que não tinha mas por concordância que recebeu a aclamação
do Povo. Em face de tão insólita ofensa às «medidas de saúde», as autoridades mandaram exu-
mar o cadáver para o repor no local apropriado mas, quando tudo se preparava, os sinos toca-
ram a rebate e os executores da ordem abalaram apavorados, sentindo em risco as malfadadas
vidas. Acalmado o burburinho, à traição, foram presas três Marias em Fonte Arcada. Mas, num
repente, um grupo de amotinados foi arrombar o cárcere e libertar as prisioneiras. Nesse grupo,
Maria da Fonte «vestia um vestido vermelho» e, «por dar na vista» ficou «no rol das culpadas
do arrombamento».
Havia no Povo outro recalque mal contido pelo que constava a respeito das «papeletas».
Ainda se contava, porque era coisa de que se não perdia a memória, da euforia da libertação
dos vexames feudais, dada, de mão beijada, pelos de Lisboa, em 1821. Mas tinha validade a
suspeita de que se tentava o regresso ao senhorialismo. Afinal não estavam extintos todos os
foros como se anunciara. E o pior dos males é que se procedia à montagem de sofisticada in-
formática dos rendimentos dos Camponeses que, uma vez inscritos nas «papeletas», permiti-
riam a cobrança da «décima», que tresandava a tributo morto e ressuscitado. Assim, nas costas
do Povo, instalara-se a «Fazenda», escondida ao pé do Município. A Matriz Predial passaria a
ser, nessa altura, o «Cérebro», que informava o Verbete, permitindo programas de reconstitui-
ção de tributos cuja invenção escapara ao mais insaciável e imaginoso direito senhorial — tri-
butos que a utopia revolucionária dera ao Povo a ideia de que o fogo a incendiar a Fazenda e
as Papeletas, os tornaria para sempre extintos. Daqui as estratégias que precedem os motins es-
pontaneamente organizados sobre sugestões lançadas ao vento que toma a força do temporal.
Da mesma forma como se desenham no céu as trovoadas, um bando de Marias em fúria assal-
tou, em Vieira do Minho, a administração, destruindo os arquivos que ficaram incendiados.
Estamos certíssimos de que a Revolta Camponesa a que foi dado o nome de Maria da
Fonte só oferece autêntica genuinidade de relato, enquanto observada no seu berço porque, lo-
go a seguir, tudo perde o encanto da rusticidade, ou da lógica camponesa que defende o Mundo
contra o que a Cidade inventa «para perdição das Almas» e poluição da Vida. É na fase da tal
Maria, que se não sabe quem foi, embora lhe tenham erguido dois monumentos, figurando de
pistoleira, e das outras Marias que se lhe juntaram, levando, de seguida, os homens, aos encon-
trões, que o processo adquire toda a grandeza, não revelando mais do que o instinto, ou a atitu-
de empírica e justiceira, ferida da ingenuidade de não valorizar o Poder, ao contrário de qual-
quer «Sinédrio», ou mesmo da esperança não confessada de um «Padre Casimiro».
Parece que o Padre Casimiro viu Maria da Fonte. Era irmã de um sapateiro de Simães,
freguesia de Fonte Arcada, que o procurou a dizer que sabia do chapéu do Padre «que havia
ficado no fogo de Sanf ana». O Padre Casimiro deixou escrito este retrato: «era uma mulher
trigueira, de estatura mediana, robusta, desembaraçada e nova, entre os vinte e os trinta anos».
Tanto basta para entender e explicar a origem, e a força, da Revolta Camponesa, no Minho, em

313
1846.
É para reter estes aspectos básicos que tem valor a investigação regional de que é bom
exemplo a de Cyrne de Castro que sintetiza relatos da imprensa: «no dia 16 de Abril (o enterro
na aldeia foi a 1 de Abril), seriam três horas da tarde, entraram pela ponte da Vila dos Arcos,
500 a 400 homens armados de chuços, foices encabadas, machados, choupas e algumas espin-
gardas. Iam queimar todos os papéis da administração do concelho e os impressos da décima.
Depois de efectuada a incineração quiseram ir aos cartórios dos escrivões de Direito fazer o
mesmo, mas pessoas cordatas da Vila dissuadiram-nos disso e até os convenceram a retirar an-
tes de cair a noite». Ao Alívio, chegaram os do Soajo decididos a tudo «mui bem armados e
dizendo que se haviam confessado e fizeram testamento antes de saírem de suas casas». Não
se entende bem a força que atraiu os Soajeiros a Braga, ao assalto do quartel de Infantaria 8.
Antes, sem comando, logo no dia 14 de Abril, centenas de homens munidos de armas reunidas
de improviso, acorreram a Braga, atacando a Infantaria 8, dando morras aos «Cabrais» e à Rai-
nha e vivas a D. Miguel. A situação foi dramática, porque fora e dentro do Quartel se encontra-
vam Pais e Filhos, Irmãos, Parentes, Vizinhos da mesma aldeia. Companheiros da mesma Dor.
Talvez tivesse sido o instinto de solidariedade que deixou suspensa, na indecisão da maré hu-
mana dementada, a desgraça do confronto. No entanto, depois, as guerrilhas atacaram brava-
mente os destacamentos militares enviados do Sul e, estes, em réplica, foram impiedosos na
repressão.
A movimentação popular de que estes relatos servem de exemplo, alastrou rapidamente
e passou a ser integrada em diversas lideranças, como as «guerrilhas levantadas por setembris-
tas como, no Minho, a do Cónego Francisco de Monf Alverne, comandante das Forças Popu-
lares de Macade ou Batalhão de Segurança Social, os Serzinos fardados de ganga e estopa e
a de Bento José, mas a quase totalidade dos guerrilheiros era, abertamente, por D. Miguel, tor-
nando-se famosos o Padre Casimiro José Vieira, o general Defensor das Cinco Chagas que,
segundo ele afirma, chegou a comandar trinta mil homens, e o mais valente de todos, o último
a depor as armas, João Baptista Rebelo Pereira, o célebre Padre João do Cano», que não era
padre, embora tenha estado no Seminário. Muitos Padres chefiaram os seus bandos, como An-
tónio Teixeira das Quitas de Montalegre, José das Taipas, Gomes do Prado, Joaquim da Costa
e o Abade de Priscos.
Embora Costa Cabral comunicasse ao Parlamento, com particular desprezo pela força
da «Revolta Camponesa», os acontecimentos, assegurando que tomaria as medidas repressivas
necessárias, tudo desabou quando o General Visconde de Vinhais decidiu a adesão do Exército
de Trás-os-Montes, consentindo a criação da Junta Governativa de Vila Real. Costa Cabral
«caiu» e foi chamado o Duque de Palmela que, juntamente com o Duque da Terceira tentaram
apaziguar os Camponeses revogando as «leis da saúde» e a «reforma tributária». Foi usada a
estratégia política da promessa falsa: nunca mais haveria Cemitérios, nunca mais se pagaria
Impostos. Mas de nada valeu o recurso ao engano.
As Juntas Governativas multiplicaram-se, em evidente e espantoso cerco rural a Lisboa,
onde não acontecera nada. Rapidamente, foram proclamados Governos «independentes» em
Santarém, Alcobaça, Caldas da Rainha, Porto de Mós, Nazaré, Batalha, Leiria, Braga, Viseu,
Lamego, Évora e Coimbra. Os Estudantes de Coimbra avançaram sobre Figueira da Foz to-

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mando de assalto o forte e aprisionando os soldados. Juntando-se em Cantanhede a amotinados
de Aveiro, formaram um corpo de 700 combatentes que atacou Coimbra. Com outros grupos
de Poiares e Miranda do Corvo em breve se contavam 5.000 homens armados. A guarnição mi-
litar, refugiada na Universidade, abandonou a Cidade, apupada pelos revoltosos.

A Patuleia

Entretanto, a «Maria da Fonte», profanada pelos guerrilheiros setembristas e miguelis-


tas. perdeu-se de todo, degradando-se depois pela infiltração de militares de profissão e de di-
plomatas estrangeiros. Efectivamente, a Maria da Fonte, que tinha nascido como «os lírios dos
campos», não podia ser. Ninguém entendia que os Camponeses, ao darem vivas a D. Miguel,
estavam num «nevoeiro» que escondia a promessa de El-rei D. Sebastião. Isto somente podia
ser imaginado pelos intelectuais e pelos artistas. O esquema que se afigurava exacto era o de
arrumar os combatentes em dois grandes grupos: os «cabralistas» e os «patuleias», de socie-
dade, quando muito, com os «setembristas», não havendo lugar para os «miguelistas», bárba-
ros e cruéis, bem como para os ideólogos teorizantes e inofensivos.
No campo de batalha os Generais entendiam que somente eles valiam, e o Conde das
Antas, que já ganhara títulos e medalhas quando, antes da Maria da Fonte, fora com o seu
Exército à Galiza, espingardear os irmãos Camponeses que, cheios de razões iguais às dos nos-
sos, se encontravam sublevados. Por tudo isto se tinha de acomodar Portugal, porque assim o
exigia a Europa civilizada. Quando, no Porto, o Conde embarcou com a tropa, direito a Lisboa,
no mar, uma esquadra inglesa aprisionou a expedição que entrou cativa nas águas doces do Te-
jo. Entretanto o Exército espanhol ocupava Bragança, Valença, e depois Elvas, Estremoz, Por-
talegre, Marvão, não tardando a entrar no Porto, levando na sua frente os guerrilheiros que re-
colhiam às choças e aos buracos das montanhas, resmungando pragas e alguns mortiços vivas
a D. Miguel. Na Áustria, o Rei proscrito, e os ingleses na Inglaterra, ao que se dizia, recebiam
a notícia da morte do escocês MacDonell, em Vila Pouca de Aguiar, na confusão de um massa-
cre de guerrilhas miguelistas.
A 28 de Junho de 1847 tudo estava apaziguado, sob o peso da intervenção estrangeira,
com a assinatura da Convenção de Gramido. Formou-se novo Ministério onde figurou pela
primeira vez João Fontes Pereira de Meio. O Conde de Antas, num desespero de heroísmo
frustrado, quis voltar ao mar, com seus soldados. Os navios da Inglaterra não deixaram. Houve
eleições e os «patuleias» foram vencidos, mas não ficaram convencidos na confusão das «cha-
peladas». Saldanha fez voltar Costa Cabral que governou mais um pouco, até que Saldanha,
executando ideia manobrada na sombra por Herculano, expulsou Costa Cabral, definitivamen-
te, em 1851. O País estava maduro para se recriar sob o signo da «Regeneração».
As incursões monárquicas passaram nos Arcos. Contaram-nos que «depois da Repúbli-
ca» chegaram tropas, de noite, que somente encontraram facilidades de abastecimento numa
taberna cujo dono se chamava Oeiras, situada na calçada que, junto à cadeia, liga o Trasladário
à Praça da Câmara. O taberneira apenas dispunha de barracas de sardinha salgada, o que cons-
tituiu o rancho dos soldados, regado com vinho tinto. O oficial que os comandava não se iden-
tificou, mas, no fim, deixou debaixo do prato um bilhete onde escreveu: «Aqui passou Henri-

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que de Paiva Couceiro» e assinalou o dia. O bilhete perdeu-se. mas a tradição ficou para a His-
tória. É de todo provável que se tratasse de uma das incursões de 1911 ou 1912. Não se trataria
da debandada do termo da monarquia do Norte, em 1919, que teria proporcionado a Paiva
Couceiro outra forma de exílio.

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39 — A REGENERAÇÃO

Desde que, nesta fase, Saldanha tomou conta do Governo, as remodelações ministeriais
eram constantes. Entretanto, em 1853, faleceu de parto do seu décimo primeiro filho, a jovem
Rainha, com 34 anos. O primogénito, D. Pedro, tinha dezasseis anos e, por isso, sucedeu seu
Pai D. Fernando, a quem D. Maria dera, quando nasceu o Herdeiro, o título de Rei. O reinado
de D. Fernando II foi breve e durou até à maioridade de D. Pedro V. Nestas circunstâncias tal
reinado poderia ter sido neutro, mas representou, sem dúvida, a protecção do Rei facultada às
artes, às ciências e à vida intelectual. Por influência de D. Fernando alguns dos portugueses li-
bertaram-se da servidão ao dinheiro que nessa altura imperava desmedidamente nas classes
burguesa e nobre, em confronto chocante com a miséria popular.

A Instrução

Como vimos foram escassos os resultados das reformas pombalinas que não se repeti-
ram até aos esforços, que estavam em curso, de Passos Manuel. Mas aconteceu o facto extraor-
dinário de Feliciano de Castilho, com a Maria da Fonte revoltada nos campos e a Patuleia à
solta, à revelia dos acontecimentos, convidar o Povo amotinado à prática de «exercícios de lei-
tura» pelo método, que difundiu, de «leitura repentina». Naturalmente os combatentes não en-
tenderam o Patriarca e voltando-lhe as costas, às suas venerandas barbas, mantiveram a igno-
rância das letras muito radicada, o que constituía a base de todos os infortúnios.

O estádio da mudança. O arranque da inovação

Não oferece dúvida que o meado do século XIX proporciona em Portugal mudanças so-
ciais e económicas efectivas, resultantes da presença no Mundo de inovações científicas e tec-
nológicas, que se imiscuíam a custo nas nossas fronteiras.
As coisas iam acontecendo, e já em 1742, com o País a abarrotar de ouro e de diaman-
tes, a Família real assistiu em Belém à demonstração inaugural de uma máquina a vapor apre-
sentada por Bento Moura Portugal, superintendente e conservador das fábricas reais de fundi-
ção de artilharia da comarca de Tomar. Bento de Moura ficou na História da Indústria portu-
guesa, como introdutor de inovações fundamentais na máquina pela qual se apaixonara mas,
nos últimos estertores da Santa Inquisição, acabou por ser considerado herético. Por ordem do
Marquês de Pombal foi encerrado na Junqueira, em 1760, onde morreu louco, depois de seis
anos de cativeiro.
O desmoronamento das rotinas tradicionais agrícolas constitui o quadro mais evidente
nesta fase. Formou-se, no entanto, o dualismo no desenvolvimento, coexistindo avanços com
arqueismos, a todos os níveis e nos espaços regionais, antes que se alcancem sempre renova-
dos ajustamentos. A charrua de ferro começa a substituir o milenário arado de madeira. Toda-
via a sementeira de cereais terá que aguardar soluções mecânicas, permanecendo consagrado

317
o «gesto do semeador» a entregar a semente à terra, que havia de ser mobilizada rapidamente,
para evitar a rapina dos pássaros e das formigas. Também, por largo tempo ainda, a ceifa dos
cereais vai manter-se manual, colocando-se os ceifeiros em longa fila, alinhados lado a lado,
em competição no esforço e na eficácia dos golpes de foice, a tombarem punhados de plantas
maduras, ao sol inclemente. A debulha continua a ser feita «a sangue», nas eiras, com o piso-
teio dos animais, a «trilho de rolos», ou a «mangual» na malha do milho. Acontece assim em-
bora se avizinhe a introdução da locomovei a vapor, traccionando a debulhadora, que depois
se apetrechará com novos motores. Operações de colheita, como a ceifa dos cereais, as vindi-
mas, a apanha da azeitona, ou de granjeio, como as cavas, as lavouras, as mondas, mobilizam
grupos de entreajuda camponesa mas, nos campos do Sul, vão surgir «ranchos» contratados
por manageiros, migratórios e estacionais, ou de trabalhadores escolhidos entre os que se ofe-
recem nas «praças» de assalariados.
A pressão demográfica altera o equilíbrio dos factores de produção, introduzindo acer-
tos em toda a tradição contratual. A terra torna-se escassa, chegando-se ao ponto de haver «fo-
me de terra», quando muitos a procuram encontrando-se cativa nos vastíssimos incultos. Por
isso, as heranças aldeãs comunitárias, mantidas desde os tempos célticos nos baldios, cedem
ao liberalismo que as partilha em «sortes» ou são visadas por usurpações selvagens. Os domí-
nios senhoriais, quando libertos da sujeição dos vínculos vão deixar de ser inalienáveis e indi-
visíveis e ficam livres para quaisquer especulações fundiárias no mercado das terras. O afora-
mento já não constitui o único meio de obter rendimento sem trabalho, como sucedia no tempo
em que os Morgados procuravam encher tulhas e capoeiras com o foro dos Camponeses que
se não sujeitavam a parcerias ou arrendamentos. Estava exausto o mecanismo enfitêutico de
estruturação da propriedade fundiária familiar, mecanismo pelo qual Alexandre Herculano
ainda vivia apaixonado, quando o desenterrou da História, desde a primeira dinastia, depois da
origem romana. Mesmo o arrendamento, com a procura estimulada por Camponeses que não
encontravam terras para aforamento, vai deixar de ser feito por uma, duas, ou mais vidas o que
significa a eternidade, a valer tanto como a venda. O prazo começara a ser cada vez mais en-
curtado. De 99 anos passará a 29, depois a 9, até chegar ao ano, ou menos, uma colheita, e de-
pois despedimento, ou novas exigências para renovação do acordo. Quanto aos contratos de
trabalho, salário ou ajuste, começa a diminuir a componente em espécie — comedoria, partici-
pação nos produtos ou habitação — passando a avultar a parte monetária. Seria desta forma
que a Revolução Liberal transformaria em úteis e efectivos consumidores, os rurais. Poderá re-
conhecer-se que se assistia, portanto, nessa época à alvorada do que viria a ser o triunfo da
«Sociedade de Consumos».
Inicia-se o recurso a adubos químicos, especialmente os fosfatados, abrindo-se cami-
nho a novas perspectivas de rompimento de matagais incultos, o que ficará a constituir o su-
porte técnico de políticas e regimes cerealíferos desenvolvidos depois, no fim do século, sem-
pre na ilusão de garantir o abastecimento nacional e sem ter em conta os custos da erosão dos
solos.
Penosamente, desde Costa Cabral, que chegou a ter veleidades pombalinas, rompe-se o
isolamento das comunidades rurais com o início da abertura de estradas. Os transportes cons-
tituem tema «oitocentista» largamente analisado por Joel Serrão que afirma não ter ido longe

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a estrada Lisboa-Porto que se deteve em Coimbra, vindo a ser ultrapassada pelo caminho-de-
-ferro. A via-férrea Lisboa-Carregado inaugurada em 1856 foi em breve prolongada e a má-
quina a vapor chegou a Gaia em 1864 e, passando a Ponte D. Maria, alcançou o Porto em 1877.
O telégrafo, a partir de 1856 começa a adiantar-se nas comunicações, transportando notícias
por montes e vales.
Quanto à indústria, no princípio do século, o Barão do Sobral construíra no Barreiro um
moinho de vento que, segundo documentação reunida por Joel Serrão, não tinha «semelhante
em Portugal e talvez não haja em outras nações», o que alertou os moinhos e azenhas dos ar-
redores e os magnates comerciais do Terreiro do Trigo. Revela depois o referido Autor que Já-
come estudava, desde 1809, a construção em Portugal de uma moagem a vapor o que, em
1818, deu origem ao «privilégio de instalação» concedido a seu filho Diogo Ratton. O Barão
de Sobral reclamou e com ele todos os moleiros e também o Administrador do Terreiro do Tri-
go. Este afirmou, peremptoriamente, que ficava «a porta aberta para um monopólio triste», o
que se afigura ser previsão largamente confirmada por tudo o que viria a suceder em relação à
Indústria da Moagem na vida económica e política portuguesa. A Revolução Liberal interrom-
peu o processo de criação do «privilégio» mas, em 1835, foi instalada finalmente a primeira
máquina industrial a vapor, depois de decorridos 75 anos sobre o encarceramento do pioneiro
Bento de Moura Portugal.
Por esta altura as cidades tentavam libertar-se das trevas da noite, iluminando a azeite
algumas ruas urbanas. Em 1848 surge a inovação do gaz que se expande, lentamente rua a rua,
chegando ao uso doméstico. A máquina de costura Singer era inventada em 1850, e alcançava
um mercado praticamente exclusivo instalando-se, mercê de técnicas de crédito inovador, nas
mais recônditas aldeias, nas choças das camponesas. Nenhuma outra marca de aparelho de
equipamento doméstico, viria a ter posição no mercado tão alargada e exclusiva, constituindo
o amparo de muitas necessidades de complemento de receitas, e de trabalho de famílias sobre-
carregados com pesadíssimas tarefas.
Após a introdução da máquina a vapor na navegação do Tejo e da carreira Lisboa-
-Porto inaugurada em 1823, a eficácia do fontismo tomava-se espectacular nos transportes,
abrindo novas perspectivas às comunicações. Os comboios movidos a vapor iriam consti-
tuir o sistema de circulação e de transporte desenvolvido em muitos países. Embora com di-
ficuldade, os receios populares que se opunham à passagem das carruagens fumegantes a
«andarem sem burros», seriam atenuados. Algumas das estações ficaram arredadas dos po-
voados, sem outro motivo que não fosse o receio dos riscos. Construíram-se entroncamen-
tos em desertos, porque ninguém os queria. Naturalmente a via determinou induções que
atraíram actividades industriais e de comércio, criando-se novas povoações junto aos fluxos
vitais de circulação como o Entroncamento e Pinhal Novo. A construção da rede ferroviária
mobilizou prodígios de Engenharia, erguendo pontes, cavando túneis e rompendo platafor-
mas de assentamento de linhas em escarpas de montanhas. Tão grande inovação nos trans-
portes não eliminou e antes estimulou o movimento afluente que se arrastava nas estradas
de macadame ou de simples terra batida. Somente muito mais tarde o motor de explosão
havia de impulsionar viaturas que substituíssem os tradicionais meios de transporte. Embo-
ra muito cedo a navegação tivesse adoptado a máquina a vapor, nas viaturas terrestres a so-

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lução nunca se generalizaria, fora da via-férrea. Nestas condições, nas estradas, continua-
vam a circular as diligências, os coches, os carros e as carroças, as seges, as liteiras, os ca-
valos e as mulas de almocreves e recoveiros, penosamente, mas na plena tranquilidade e se-
gurança da auto-suficiência energética. Ao acelerar o motor vivo, com o estímulo do chi-
cote, com os animais amparados pela ração das favas, o condutor nem imaginava o que va-
lia o seu equipamento em termos de independência individual e nacional. Não se previa o
que futuro reservava aos transportes, na subordinação escravizante à energia importada e,
mais ainda, monopolizada pela assimetria da distribuição geográfica dos mananciais dispo-
níveis.

O capitalismo instalado

A instalação do novo regime corresponde, no dizer de Manuel Villaverde Cabral em «O


Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no século XIX», a «quarenta anos de progresso
material no decurso dos quais a sociedade se libertará suficientemente da sua estrutura tradi-
cional para ir caindo progressivamente sob a lógica nova das relações de produção capitalis-
tas». O mesmo Autor demonstra que, ao contrário «de ideia demasiado simples e espalhada»,
a Regeneração ou o Fontismo não se reduziu «à construção de algumas estradas e alguns qui-
lómetros de vias-férreas». Na nossa óptica também estamos certos de que muito ocorreu de
fundamental fio que respeita à agricultura, sendo evidentes as influências induzidas na indús-
tria e no comércio, não sendo fácil explicar se existem influências que determinaram a presen-
ça da «geração de 70».
Do ponto de vista político tem interesse notar que tudo irá decorrer em termos de «Rota-
tivismo», balanceando, com a alternância dos Governos a posse dos cargos públicos entre Re-
generadores e Progressistas, sendo este último rótulo que adoptaram os Historiadores. De acor-
do com a consisão de Hermano Saraiva, durante este período «não era quem ganhava as elei-
ções que subia ao poder, mas sim quem subia ao poder ganhava as eleições». Os Camponeses,
como população rural dominante, executavam disciplinadamente este teatro, sob comando dos
Caciques, que Hermano Saraiva explica ser «palavra que através da Espanha nos veio das Ca-
raíbas onde tinha o sentido de chefe de aldeia indígena». Eram eles que à entrada da assem-
bleia eleitoral colocavam os boletins de voto na mão calosa dos eleitores, depois do «carneiro
com batatas», da «isenção das sortes» que lhes livrava os filhos das «correias às costas», de
variados compadrios nos meandros das Justiças e da Fazenda, juntamente com enganadoras
promessas que alteravam as lideranças. Apesar disso, Hermano Saraiva, Historiador, conclui e
diagnostica muito justamente que «o aparelho político não tinha rais popular e o país popular
não tinha expressão política». Nesta altura, as Marias da Fonte, traídas pelos Homens que emi-
gravam deixando-as sem sonho nem promessa, ou mesmo viúvas de companheiro suposto vi-
vo no sertão brasileiro, contratavam-se como «creadas de servir» nas casas nobres e burguesas
do Porto e de Lisboa. Correndo-lhes nas veias sangue alimentado por eflúvios campestres, na-
turais e, por isso, saudáveis e amorudas, mais tarde ou mais cedo, quando se não perdiam nas
vielas, retomavam à aldeia a parir os «filhos da mãe» que estragavam a raça de que as mães
provinham. Esses «filhos da mãe» formavam as bases e, em regra, os quadros dos Partidos Po-

320
líticos onde, talvez por isso, se acentuavam as «dissidências». E assim acabou por alterar-se
tudo porque o «bipartidarismo converteu-se em pluripartidarismo tornando impossível o
funcionamento do sistema rotativo».
De qualquer modo, com os Regeneradores no Governo ou Progressistas, as relações ca-
pitalistas de produção aprontavam-se para instalar-se nos interesses camponeses, tanto nas
choças dispersas dos microfúndios do Norte e do Centro, como nas aldeias dormitórios de
«seareiros» e «ganhões» do Sul e nas Casas de Lavoura que dominavam os latifúndios. Deve-
mos reconhecer desde já que tal instalação se apresentava fatal, isto é, inevitável, e, em larga
medida, desejada por ser tentadora, embora se revestisse de aspectos sombrios, resultantes da
circunstância de se poder pensar que, ao fim, a «liberdade» não era mais do que um sonho cada
vez mais distante.

Á alienação dos bens de mão morta

A amortização era a faculdade de conservar a posse de bens que não podiam ser aliena-
dos. Tais bens mantinham-se imobilizados, ou de «mão morta» particularmente quando consti-
tuíam património de pessoas morais perpétuas como as Ordens Religiosas ou as igrejas.
Com a legislação de 1861 a Nova Ordem Liberal inicia a desamortização, dos bens da
Igreja que têm de ser imperativamente alienados. Generalizado o esforço de ampliação da alo-
dialidade, o mesmo regime é sucessivamente aplicado a Corpos e Corporações administrativas
e a Misericórdias.
Em simultaneidade com estas medidas foi decidida a abolição dos Morgadios de qual-
quer dimensão, depois de várias tentativas pombalinas e de Mouzinho da Silveira. A partilha
dos bens vinculados passou a ser igualitária em relação aos filhos, ficando submetida às nor-
mas do Código Civil.

O Ensino Agrícola

Quando, no Governo, a agricultura corria pelo Ministério das Obras Públicas, Comér-
cio e Indústria, sendo titular interino o Ministro da Fazenda Fontes Pereira de Melo, foi subme-
tido a referendo de D. Maria II, em 16 de Dezembro de 1852, um decreto que determinava a
criação de três graus de Ensino Agrícola. O primeiro, mecânico, isto é, prático e sem desenvol-
vimento científico seria ministrado em quintas de ensino a estabelecer em propriedades priva-
das, de acordo com contrato do Governo com proprietários. Dessas quintas sairiam formados
abegões, maiorais e quinteiros. Esperava-se constituir uma quinta em cada um dos distritos
administrativos.
O segundo grau, designado artístico, ministrava ensino teórico e prático, nas cadeiras
das escolas e na quinta exemplar que haveria em cada Escola. Previa-se a criação de três Esco-
las regionais, respectivamente situadas em Viseu, Lisboa e Évora, contando-se com as Casas-
-pias onde se recrutariam os estudantes. Destas Escolas sairiam diplomados os lavradores, ao
fim de três anos, e os abegões, com dois. Nestas Escolas se estabeleceriam viveiros experimen-
tais de plantas e haveria anexa, uma Escola de Arte Veterinária.

321
O ensino do terceiro grau era cientifico e seria administrado em Escola Superior e ao
mesmo tempo regional que recebeu a designação de Instituto Agrícola de Lisboa. Este Institu-
to era destinado a aperfeiçoar e desenvolver a agricultura pelo ensino e pelo exemplo ou expe-
riência. A parte doutrinal era professada nas Cadeiras e a exemplar nos campos de cultura
aperfeiçoada. A formatura era de agrónomo tendo o curso a duração de quatro anos no âmbito
superior. Anexo funcionava o segundo grau, regional.
Logo na primeira reforma de 1855, foi incorporada no Instituto Agrícola a Escola Vete-
rinária Militar que funcionava na Rua do Salitre desde 1845, passando o Instituto a diplomar,
também, veterinários. O Instituto Agrícola foi instalado, em 1853, no Palácio da Cruz do Ta-
buado, situado onde se encontra a Escola Superior de Medicina Veterinária, na Rua Gomes
Freire, em Lisboa. Ficou, anexa, a Quinta da Bemposta, que constituía vasto espaço rústico,
destinado a ensino prático em terrenos partilhados com a Escola do Exército, hoje totalmente
urbanizados.
A decisão fontista de organizar o Ensino Agrícola no momento em que pretendia lançar
a «Regeneração» apresenta-se revestido de forte significado político. Embora o Ensino Agrí-
cola fosse tradição antiga, encontrando-se apoiado, nessa altura, na velha Universidade de
Coimbra, sucedia que se encontrava inserido de forma pouco adequada às necessidades do de-
senvolvimento. A Universidade de Coimbra poderia ter melhorado o ensino de Agricultura,
mas não o fez em resultado da atitude até então assumida em relação às «especialidades técni-
cas». Efectivamente a Revolução Liberal veio encontrar a Universidade de Coimbra insensí-
vel ao correr dos tempos por parte dos seus Mestres, porque os Estudantes, para além do deba-
te das ideias, nunca recusaram pegar em armas. A Universidade continuava amarrada à refor-
ma pombalina, sem capacidade para se auto-reformar na medida necessária. Por isso, como re-
ferimos, Sã da Bandeira criou «Universidades paralelas». No que se refere à agricultura, a Uni-
versidade de Coimbra apenas em 1791 criou, na Faculdade de Filosofia, a Cadeira de Botâni-
ca e Agricultura. Embora esta Cadeira pertencesse a Avelar Brotero que publicou os «Princí-
pios de Agricultura Filosófica» foi necessário aguardar a reforma de 1836 para ver em Coim-
bra, isolada, uma Cadeira de Agricultura, Economia Rural e Tecnologia. No entanto esta Ca-
deira acabou por ser suprimida em 1885, para dar lugar à de Antropologia, Paleontologia Hu-
mana e Arqueologia Pré-histórica.
Entretanto, em 1852, José Maria Grande, Médico pela Universidade de Coimbra, Dou-
torado em Lovaina enquanto emigrado das lutas liberais a quem foi dada a Torre e Espada,
Lente de Botânica da Escola Politécnica, ao inaugurar o Instituto Agrícola de que foi primeiro
Director, afirmava: «a criação do Ensino Agrícola veio satisfazer uma necessidade social; veio
marcar uma nova era à nossa indústria rural. Retardar por mais tempo a realização deste belo
pensamento, continuar a deixar por mais tempo no abandono, e entregue a si mesma a arte. que
nutre e abriga os homens, fora um imperdoável desleixo».
Efectivamente, o Instituto Agrícola de Lisboa foi, para além da atenção prestada à agri-
cultura pelos intelectuais mais cultos nas «Memórias Económicas» da Real Academia das
Ciências, caminho novo que logo integraria, dando-lhes prestígio e conteúdo social, as profis-
sões de Agrónomo, primeiro, e depois, em 1855, de Veterinário para, um pouco mais tarde,
consagrar também a de Silvicultor.

322
A emigração e a escravatura

Numa Europa dividida segundo profundas clivagens políticas, religiosas e étnicas, as


populações, escorraçadas por ferozes perseguições, ou alertadas pelo fascínio de novos e pro-
missores Continentes descobertos, entregavam-se a intensos movimentos migratórios. Dos
velhos portos de activo comércio marítimo, partiam com destino à América, à Austrália e
Ilhas ao Pacífico, à Africa, India e China, impelidos também pelo industrialismo nascente, eu-
ropeus dispostos a europeizarem o Mundo mantido em reserva ainda por abrir. Efectivamente
a emigração assumia as proporções de um êxodo, que não era somente urbano mas alargada-
mente rural. Esvaziava a agricultura das melhores reservas camponesas. Mas o abandono dos
campos não era novo, e ocorrera sempre que cresceram as cidades e se descobriram novos
territórios. Incluindo o Brasil independente, no século XIX, as terras de além-mar eram he-
ranças dos portugueses. Mas já não havia escravos a compensarem o vazio dos que partiam.
Escasseava quem ocupasse o lugar abandonado. Ia muito longe o tempo que cativos da guer-
ra ou aprisionados da costa de Africa substituíam camponeses que tomavam caravelas a po-
voar ilhas atlânticas, praças fortes e reitorias africanas, das costas do Brasil e do Oriente. Es-
tava extinta nas fontes a escravatura e dificilmente se encontrava contrapartida demográfica
para o abandono rural. Nos mares, impedido o tráfico negreiro, os barcos substituíam a car-
ga humana, transportando o rebanho dos emigrantes, junto com toda a espécie de aven-
tureiros. Demandavam o Brasil, uns, angariados para o lugar de escravo negro que rareava e,
outros, empenhados na busca da riqueza, como na aventura da índias. Os primeiros formavam
massa anónima exausta da miséria e os outros eram filhos segundos de Morgados, rebeldes à
Tropa ou ao Seminário, ou vendedores de heranças de leiras de regadio e de juntas de bois
barrosos de camponeses ricos ou remediados. Partiam de torna viagem, desembarcados no
Brasil com a aspiração insaciável de mineiros. Iam dispostos a morrer nos pântanos de Ma-
naus ou na Selva de seringueiros, se o comércio lhes não consentisse o retorno triunfal dos
brasileiros.
A emigração era ferozmente discutida, em duríssimas polémicas. Contestada não so-
mente por reformistas que apontavam a colonização do Alentejo, como também por interessa-
dos no capitalismo agrário que começava a instalar-se no Sul. Herculano identificou a crítica
à emigração com o desejo de «obstar a ela só para obter salários baratos para a agricultura».
O êxodo, cinicamente defendido por economistas que acentuavam as vantagens das remessas
de emigrantes, dava lugar a construções doiradas a atenuarem a tragédia da decisão de partir.
A rota da emigração não era africana. Para a «costa de África» iam deportados os criminosos
e despedidos os marginais e as prostitutas. O degredo, já extintos os velhos coutos de homisia-
dos, era o desafio de esperança oferecido à reabilitação impossível de alcançar nos ferros dos
presídios. Como vimos, deve atribuir-se ao «setembrismo», com Sá da Bandeira no poder, as
mais deliberadas medidas legislativas que visavam a abolição da escravatura. Desde 1836 o
processo de emancipação evoluiu penosamente, com grandes dificuldades e oposições, culmi-
nando somente em 1869, com a libertação dos escravos nos domínios ultramarinos portugue-
ses. Numa das visitas que fizemos a Angola ainda tivemos oportunidade de ver um velho, mui-
to velho, que afirmava ter sido liberto da escravatura.

323
O banditismo organizado

Entretanto, o mundo rural, abalado pelas lutas liberais debatia-se com a instabilidade
que permitia a sobrevivência de diferentes manifestações de banditismo. A Maria da Fonte de-
ra lugar à constituição de milícias populares e a Patuleia permitira a integrarão de muitas des-
sas milícias em maquinações que caracterizaram a barafunda dessa guerra. Com a pacificação
imposta por forças estrangeiras, grupos treinados na luta viram-se compelidos à prática de pro-
cessos e comportamentos sociais clandestinos. Como sucede sempre que se recorre à violên-
cia, contra códigos morais de qualquer valor, os maus actos necessitam de justificação supos-
tamente ética. Assim, os quadrilheiros de maior fama e projecção como o Remexido, José do
Telhado, João Brandão e muitos outros, menores, que se movimentavam em pequenos espaços
regionais, construíram sua auréola ou fama em torno da ideia da função justiceira que pratica-
vam, numa sociedade inclemente, «tirando aos ricos para dar aos pobres». Tal atitude determi-
nava liderança e uma espécie de aceitação dos povos, colaborante, nas mais aventurosas cir-
cunstâncias da repressão do poder público.
O pior é que os bacamartes em boas mãos de salteadores de estrada e de quadrilheiros
organizados, representavam poder efectivo que permitia cobrar, em sigilo garantido pelo ter-
ror, tributos de segurança, custos de vinganças pessoais e comprometimentos nas intervenções
políticas. Mas o reconhecimento da presença e do poder dos quadrilheiros nem sempre repre-
sentava compromisso colaborante. O pagamento do custo da «segurança» era tributo normal-
mente praticado. O Morgado da Brejoeira, em Monção, contratou com a quadrilha local a defe-
sa dos seus haveres em face de outros salteadores. Recordamo-nos de ter visto na mão de Cole-
ga transmontano, um belo anel que seu Bisavô usava, como salvo-conduto, válido para que o
respeitassem, quando a diligência em que se deslocasse fosse assaltada na curva da estrada on-
de era habitual pedir «a bolsa ou a vida». Outras vezes eram nebulosos os comprometimentos.
Sabemos de uma Casa que foi assaltada na confiança de se não encontrar gente. Mas um cria-
do, escondido, resolveu defender a tiro, bravamente, o edifício à sua guarda. No dia seguinte
foram encontrados no terreiro cadáveres de pessoas que ninguém imaginava que pudessem es-
tar presentes. Os tempos eram difíceis e qualquer desvio da regra ou o costume determinava,
como na «mafia» siciliana ou universal, maus encontros ou assaltos acidentais, a acrescenta-
rem-se aos normais na estrada da Falerra, no pinhal da Azambuja, nos ermos de Pegões, per-
corridos pela «estrada da palha», ou nos atalhos da Serra da Ossa, onde cruzeiros assinalam
mortes de má sorte ou de atrevimento.
Por vezes era misteriosa a personalidade e a origem dos chefes quadrilheiros. Um deles,
que encontrou refúgio na Serra da Peneda, Tomaz das Quingostas, depois de comandar guerri-
lhas na Patuleia, ficou nas brenhas, de acordo tácito com os montanheses, que cumpriam a
obrigação que lhes impôs de manterem abastecido o «penedo do tabaco». Um dia, teve encon-
tro com o Marado, o Homem mais forte e valente das Serras em redor, que, no adro do Santuá-
rio de Nossa Senhora da Peneda, o enfrentou. Quando caminhavam um para o outro, tal como
na mesma hora faziam os pistoleiros do Far-West, dramaticamente, Tomaz das Quingostas bra-
dou: «Tem-te Marado!... tem-te!». Mas, contam os serranos à lareira, «o Marado não se teve»
e caiu varado com bala certeira que partiu disparada não se sabe donde. Tomaz das Quingostas

324
acabou por ser traído e preso. Quando seguia, com escolta, para Melgaço, os soldados, quando
descansavam, simularam dormir para que o prisioneiro tentasse a fuga. Quando se afastava si-
lenciosamente, traiçoeira descarga fuzilou-o pelas costas, caindo de bruços sobre as pedras da
calçada. Cumprindo ordens de D. Maria, os soldados decapitaram-no, levando a cabeça do
morto, aos tombos, num saco, para Lisboa. Depois de vista pela Rainha, que chorou, ninguém
deixou escrito a quem, a cabeça, esquálida e mumificada, havia pertencido em vida. Tinha que
ser assim porque há bem pouco tempo, a Rainha tivera a decisão magnânima de abolir a pena
de morte para crimes políticos.

325
40 — OS VOLANTES DO CAPITALISMO AGRÁRIO

A decadência e morte do Antigo Regime impunha como condição irrevogável a implan-


tação do Capitalismo. Como é evidente, a índole do presente trabalho não consente a tentativa
de renovar teorizações sobre o assunto, nem permite referência pormenorizada a valiosas teo-
rizações já feitas. A simples contemplação de factos, de decisões políticas e de reacções dos
interesses instalados, mostra bem que as mudanças, as grandes e fundamentais mudanças, te-
riam inflexivelmente que processar-se.

A interdição do livre pastoreio

A Regeneração encontrou ainda em vigor o sistema tradicional dos «pastos comuns»,


muito antigo. Sucedeu assim porque os interesses dos Povos impuseram aos legisladores, que
temiam a tomada de decisão de suprimir o livre pastoreio que iria cercear rendimentos campo-
neses, em favor da consolidação da propriedade privada na sua configuração de latifúndio.
A Península Ibérica oferecia, de há tempos imemoriais, o quadro de amplo pastoreio
transumante. Os rebanhos percorriam, entre os agostadoiros e as inverneiras, distâncias de
muitas centenas de quilómetros, ao longo de canadas que não eram somente caminhos de per-
curso, mas larguíssimos espaços de pastoreio. Segundo refere Orlando Ribeiro no seu estudo
do «Pastoreio na Serra da Estrela», acontecia que «atravez dos campos de Castela, nos incul-
tos, poeirentos e desertos, chegaram a transhumar quasi três milhões de ovelhas merinas». Este
pastoreio não respeitava fronteiras e foi D. João III quem proibiu «a passagem de rebanhos de
Espanha a Portugal e vice versa».
No entanto, a transumância não alcançou em Portugal a desmedida expressão que repre-
sentou em Espanha, mas caracterizou o maneio de grandes rebanhos no aproveitamento de
pastagens estivais na Serra da Estrela e em muitas outras montanhas menores, e as de Inverno
nos campos da Idanha, Alentejo, Ribatejo, Mondego e outras planuras de mais reduzida impor-
tância. A presença de gados de pastores transumantes constituía efeito perturbador para os
agricultores sedentários e dava origem aos maiores conflitos. Por isso, em 1861, o Bacharel
formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Manuel Adelino de Figueiredo, afirmava
com desembaraço em «Estudos d'Agricultura» ser «revoltante violação do sagrado direito de
propriedade, funesto obstáculo à liberdade do trabalho, sério embaraço ao progresso da agri-
cultura, em nenhuma razão plausível assenta ele (o pasto comum) a essência. E todavia aí o
vemos nós a vigorar, a despeito dos ditames do bom senso, e das lições do tempo». Mas não
haviam de durar muito porque, em 1867, o Código de Seabra baniu os «pastos comuns».
A partir daí, segundo refere Orlando Ribeiro, aconteceu que «por toda a parte os largos
espaços abertos à marcha dos rebanhos se vão tornando cada dia mais escassos. Levantam-se
tapumes, cerrados, tapadas, terras cercadas de muros, e plantações de árvores novas que se
resguardam da voracidade do gado miúdo». E o referido Autor conclui o seu trabalho comen-
tando: «a concepção do liberalismo agrário acabou por triunfar. A terra, liberta hoje das servi-

327
dões tradicionais, concentra-se nas mãos de poucos proprietários, que dela dispõem a seu ta-
lante. Os pastos que dantes eram comuns, são hoje arrendados. Os gados transhumantes dimi-
nuíram muito por causa dos arvoredos: olivais, montados de sobro e de azinho».

O desmantelamento dos baldios

Defendiam as Ordenações que «nem tomem maninhos nem os ocupem só por dizerem
que sendo maninhos lhes pertencem porque tais maninhos são para pastos, criações e logra-
mentos dos lugares e não devem ser tirados senão para se darem de sesmaria para lavoura».
Esta seria a sábia doutrina antiga que zelava pela reserva fundiária colectiva, posta à disposi-
ção da dinâmica de apropriação individual coordenada com o crescimento demográfico e o
acréscimo da procura alimentar. Verificamos a existência de costumes que regulavam a apro-
priação privada de baldios, legitimada quando necessária. Um dos casos mais típicos respeita
à Serra de Aire onde se consentia a plantação de oliveiras, ficando a posse da árvore assegura-
da ao plantador, mantendo-se o solo baldio. No entanto, o acesso à terra onde se plantara a ár-
vore tornava-se depois possível com a construção de um muro orientado para englobar a plan-
tação. Quando o muro ficava concluído aguardava-se para ver se, de noite, alguém vinha de-
molir toda ou parte da vedação. Se não, extraía-se o efeito de que estava por todos consentido
ou aprovada a apropriação. Este será o exemplo de costume elaborado na dependência da plan-
tação de arvoredo, mas outros melhoramentos como os ligados à exploração pecuária estão na
base das tapadas ou vedações de baldios muito frequentes e visíveis. Também os forais ma-
nuelinos permitiam o desfrute individual de baldios, pelo pagamento de jugada na dependên-
cia da semente semeada ou de ração ou quota da produção obtida. O desfrute prolongado con-
feria a posse permanente da parcela.
No relatório que precede o «Reconhecimento dos Baldios no Continente» da Junta de
Colonização Interna pode ler-se que «desde D. Manuel até à carta de lei de 1850, numerosas
e contraditórias leis extravagantes consideravelmente alteraram os princípios estabelecidos e,
no meio do complexo caos, difícil ou quasi impossível seria averiguarmos com segurança a re-
gra que em qualquer época presidia à administração e fruição dos maninhos de logradouro co-
lectivo».
De qualquer modo parece legítimo concluir-se que a luta pela usurpação de baldios não
teve trégua, opondo-se, no entanto, as leis, aos abusos mais evidentes e denunciados pelos Po-
vos. Por outro lado manobravam-se enredos para alcançar decisões régias que proporcionavam
doações, muitas vezes executadas como facto consumado mercê de maior ou menor arbitrarie-
dade. Assim se depreende das petições a que nos referimos, apresentadas às primeiras Consti-
tuintes liberais.
A defesa do logradouro dos povos afigura-se uma constante, embora se depreenda que
o baldio sobrante se encontrasse entregue à dinâmica da apropriação privada. Legislação de
1815 defende que «sempre que os baldios existentes se mostrem desnecessários ao logradouro
dos povos, caso em que serão demarcados, continuarão a aforar-se nos termos dos alvarás de
1776 e de 1804». Acontecia que as consequências das guerras denunciavam as terras incultas,
de entre as quais se encontravam os baldios. Os incultos eram referidos como causa de gravís-

328
simas carências alimentares. A lei de 26 de Julho de 1850 definiu a natureza dos baldios, paro-
quiais e municipais, e mostrou «que o Governo se preocupava com os numerosos e graves ca-
sos de usurpação de baldios».
Entretanto, a Regeneração ordenou em 1861 a alienação dos bens de mão morta, mas
excluiu «os terrenos que constituam logradouro comum de municípios ou paróquias», quando
mandou aplicar a desamortização aos bens dos corpos e corporações administrativas, em 1866.
Entretanto o Código Civil de 1869, considerou extensiva aos baldios a desamortização fican-
do, ainda, excluída «a parte necessária ao logradouro comum do município e da paróquia»,
competindo às administrações a tomada de decisão. Ficou assim elaborada a doutrina liberal
aplicável aos baldios que autorizava a venda ou a enfiteuse na dependência de resolução dos
corpos administrativos.
Tendo em conta que o pensamento liberal não tinha nem podia ter simpatia pela proprie-
dade colectiva, aconteceu que, a partir desta altura, teve início o desmantelamento legal dessa
propriedade, considerada inútil e anacrónica para muitos dos munícipes e paroquianos. So-
mente onde as aldeias mantinham a vida comunitária como suporte das actividades agrárias, o
baldio se conservou. Em regiões agrárias de individualismo dominante, como seriam as dos
«seareiros» do Sul, os baldios foram repartidos, umas vezes em sortes igualitárias, e outras ve-
zes em parcelas vendidas em hasta pública. A arrematação coube a quem mais deu, ou a quem
melhor manobrou as coisas. A sorte ficou propriedade privada, inteiramente livre. De entre os
«beneficiários» ou compartes da divisão de muitos logradouros, uns alienaram por verificarem
dificuldades ou impossibilidade de cultivo, ou ausência de interesse, e, muitos, especialmente
no Sul, desiludiram-se depois das courelas ficarem erosionadas pelo trigo sobre trigo, venden-
do-as «por um copo de vinho». Tanto bastou para que os velhos logradouros comuns, baldios,
se transformassem em herdades nas mãos de raros compradores.

Nos campos de Portugal era livre fazer-se o que se fizesse

Os dois volantes principais da instalação do capitalismo agrário — que outros houve de


força não menor como veremos — visavam necessariamente a consolidação da propriedade
individual privada. Actuando sobre um País dotado de fortíssima assimetria estrutural herdada
com as doações régias, feitas ao longo de arrastada presúria de muitos séculos, foi diverso o
efeito nas diferentes regiões, de Norte a Sul.
A interdição do livre pastoreio em quase nada afectou os Camponeses do Norte onde a
pequena propriedade ou exploração não estava sujeita a servidões dessa espécie. Nas zonas de
montanha o baldio continuou a assegurar o pastoreio de pequena transumância, movimentan-
do-se o gado entre as alturas no Verão e as terras ribeirinhas, inverneiras, na estação fria. Fora
das montanhas a expansão do regadio do Milho já tinha feito substituir o pastoreio pela estabu-
lação do gado.
Na Serra da Estrela a abolição do livre pastoreio teve, naturalmente, seus reflexos. O
pastoreio que era livre passou a ficar subordinado ao preço ou custo de pastagens utilizadas pe-
los rebanhos. O Pastor deixou de ter espaço gratuito para alimentar o gado, tendo de. adoptar
a norma capitalista segundo a qual os encargos e os rendimentos condicionam os lucros. Fez-

329
-se empresário, gerindo factores de produção, perdendo a qualidade de recolector, por meio de
gado, dos produtos da Natureza, ou entregou-se à condição de empregado ou «servo» adscrito
de empresas capitalistas nascentes.
Orlando Ribeiro refere no seu estudo do pastoreio na Serra da Estrela que:
«Em Maio vão os maiorais pelas feiras da Terra Chá combinar com os donos de gado o
número de ovelhas que hão-de trazer para a Serra e a paga, à volta de um escudo por cabeça
em toda a temporada. Pelo S. João (24 de Junho) povoam-se as alturas dos gados de fora: vêm
principalmente das fardas da Serra e das terras baixas ao Norte (Paranhos, Oliveira do Hospi-
tal, Santa Comba Dão, Tábua, Nelas, Gouveia, Arganil. Fornos de Algodres, etc.). Do lado Sul
vêm muito menos: alguns da Cova da Beira e das terras xistentas pobres das margens do Zê-
zere. Também para o têrmo da Covilhã têm vindo, às vezes, gados do Campo (ao Sul da Serra
da Gardunha). Um pastor do Sabugueiro citou-me, como extraordinário, o facto de um ano ter
vindo gado do Rosmaninhal, onde, porém, rebanhos da Estrêla costumam ir passar o inverno.
É o apogeu da pastorícia na Serra: juntam-se todos os gados, em rebanhos de mil e qui-
nhentos, duas mil, três mil cabeças, guardados por pastores serranos.
Cada dono, além do seu gado, tem assim à sua guarda mais alguns centos de ovelhas,
pelas quais recebe um tanto, que constitue, durante o verão, a parte principal dos seus ganhos.
Por todas as povoações que circundam a Serra há gente que se dedique a êste mester; onde,
porém, êle é mais geralmente seguido é no Sabugueiro, a aldeia mais tipicamente pastoril da
região. Os rebanhos são guardados à razão de um homem e de um cão para quatrocentas ou
quinhentas ovelhas.
O mais vulgar é formarem-se rebanhos de mil ou mil e quinhentas cabeças, guardados
por dois ou três pastores e outros tantos cães. Ou então um só pastor, com um ou dois zagais
ou ajudas, que são muitas vezes os seus próprios filhos, e dois ou três cães, guarda para cima
de um milhar de reses.»
E acentua depois que:
«A tendência actual é para reduzir cada vez mais o número de transhumantes. Pastores
velhos falaram-me de rebanhos de alguns milhares de cabeças, que hoje já não se viam. Dizem
que no Sabugueiro se chegou ajuntar, num ano, um rebanho de 7.500 cabeças. Outrora, o gado
da Terra Chã vinha todo para a Serra. Hoje já por lá fica muito, que os donos alimentam como
podem nos seus lameiros. Os pastores de Alvoco da Serra, por exemplo, já não guardam senão
o seu gado, que andará por dois milheiros de reses, mais cabras do que ovelhas.
Isto não se pode atribuir à deminuição de reses, pois que, como se viu, de 1870 para cá
o número delas cresceu consideravelmente. Dois motivos se conjugam, provavelmente, para
produzir êste resultado: um, de ordem agrária — o aumento dos pastos regados, que acompa-
nha o progresso geral das culturas de regadio; outro, de ordem social — a decadência do espí-
rito de comunidade e os progressos do individualismo agrário. Ao proprietário que levanta mu-
ros em tôrno da sua leira, onde cultiva o que quere e quando lhe apraz, desagrada separar-se,
por uns meses que seja, do seu gado e vê-lo juntar-se com o de outros donos. Assim, prefere
ir criando o vivo melhor ou pior junto das culturas. Grandes rebanhos, que precisavam de espa-
ços largos e incultos para pastarem e se moverem, são substituídos gradualmente por peque-
nos, mas numerosos, que se acomodam facilmente a qualquer pascigo. Assim, a vida pastoril

330
vai perdendo dia a dia a sua fisionomia própria.»
A Sul da Serra da Estrela também o pastoreio, que era livre, passou a ficar subordinado
ao custo das pastagens utilizadas pelos rebanhos. Assim, a perda de liberdade de pastorear fa-
voreceu a propriedade que deixou de ficar cativa da servidão que lhe era imposta, ficando o
proprietário habilitado a decidir se arrenda ou vende os pastos, ou se os vai explorar em seu
exclusivo proveito, dedicando-se a pastoreio com gado próprio. De qualquer modo, deve reco-
nhecer-se que os pastores, que seriam potencialmente quaisquer camponeses sem terra, fica-
ram expropriados de uma fonte de rendimento acessível, ou de um suporte gratuito do exercí-
cio de actividade tradicional, encontrando-se, assim, mais pobres. Esta será a realidade nua e
crua que justifica a forma arrastada segundo a qual se desenvolveu o debate do problema do
livre pastoreio, cuja supressão era essencial para que se implantasse o capitalismo agrário. Por-
que o livre pastoreio se expandia especialmente no Sul, foi no Alentejo que a sua supressão
consolidou o latifúndio conferindo-lhe, sem qualquer espécie de servidão, os atributos de ex-
clusividade no uso da propriedade fundiária. Na mesma óptica, pode entender-se que a supres-
são dos pastos comuns transferiu os respectivos rendimentos potenciais da posse, ou melhor,
do usufruto da comunidade (os pastores) para o direito individual e exclusivo do dono da terra
que lhe dava origem (o proprietário).
Não se nos afigura possível medir a dimensão económica desta transferência verificado
no aparelho económico vigente. Mas podemos talvez visionar o que significou, do ponto de
vista humano e social, se tivermos em conta que os camponeses alentejanos, especialmente,
passaram da situação, digamos, natural, de pastores livres e autónomos, à de trabalhadores pro-
fissionais contratados em empresas capitalistas nascentes, sem outra alternativa. Tecnicamen-
te, a actividade de pastoreio manteve-se. acrescida e, com certeza, modernizada. Mas o pastor
passou a ser, ao serviço da Herdade ou da Lavoura, remunerado pelo salário, enquadrado co-
mo boieiro, almocreve das mulas, ganadeiro das ovelhas, cabreiro, porqueiro, conforme a sua
especialidade ou função e, quanto à hierarquia, podia ser maioral ou ajuda. Ligados à explora-
ção pecuária também havia roupeiros que se ocupavam do queijo. No início do capitalismo, o
salário era muito pouco monetário, correspondendo a ajustes complexos onde figurava o pol-
vilhai que era o direito de integrar no rebanho ovelhas próprias ou de fruir parte das do Lavra-
dor, e comedorias, com leite de cabra à discrição de que compartilhavam os cães.
Não oferece dúvidas que tudo isto representava, em relação ao passado pré-capitalista,
muito duro, sem dúvida, mas pleno de recantos livres, o desabar de um Mundo. Talvez a vida
não fosse, antigamente, um constante negócio contratual, mas uma maneira de existir, livre,
embora arriscada.
O problema dos efeitos regionais do desmantelamento dos baldios apresenta-se ainda
mais complexo. No Norte, a função do baldio voltava-se mais para o pastoreio, embora a pro-
priedade colectiva correspondesse historicamente à reserva entregue à dinâmica privada. O
baldio de montanha apenas oferecia retalhos disperses de utilidade agrícola, e apresentava-se
apropriado ao sustento estival do gado que, na vezeira, isto é, com pastor escalonado na aldeia
comunitária, sustentava o gado dos paroquianos reunido em rebanho. Nos casos mais típicos
ou funcionais, nada aconselhava a sua divisão, porque tal divisão contrariava o sistema ecoló-
gico do maneio pecuário. Isto explica o facto de ter sido a norte do Tejo que ficou o, resíduo

331
de 400.000 hectares de baldios que chegaram até à actualidade.
Muitíssimos baldios do Norte e do Centro foram divididos em sortes, ou alienados em
parcelas vendidas em hasta pública, ou usurpados, em vastas parcelas onde se construíram
Quintas, ou em minúsculas Tapadas. Mas, da leitura de trabalhos monográficos não se depre-
ende abalo social profundo da transformação verificado quanto a este tipo de propriedade, du-
rante a fase de implantação do capitalismo agrário. Quase se pode afirmar que o baldio se man-
teve nas localizações próprias, de montanha, tendo sido partilhado nos espaços em que as par-
celas se integravam no microfundismo regional, sem grande perturbação económica e social.
Estamos convictos que se deve ter em conta que a partilha de muitos baldios, especialmente
em todo o espaço beirão e estremenho de mediana altitude, conduziu à formação de numerosa
propriedade camponesa. Esta estrutura agrária talvez se possa encontrar imbricado nos resulta-
dos estruturais da aplicação das leis de Mouzinho em vastos domínios das doações régias, ou
da aplicação das leis de desamortização dos bens de mão morta.
Embora se não disponha de informação cadastral suficiente, é impressionante a presen-
ça na Beira do microfúndio hoje florestal que forma a vastíssima mancha de pinhal que serviu
de «mealheiro» dos Camponeses que tende a ser substituída pelo eucalipto. Não podemos dei-
xar de registar neste passo a experiência pessoal que recolhemos no terreno. A construção de
linhas de transporte de energia eléctrica abre, ao longo do País e em diferentes direcções, fai-
xas de protecção onde foi indispensável proceder ao corte de arvoredo florestal. Ao acompa-
nharmos os trabalhos de cálculo de indemnizações a pagar aos proprietários onerados com a
servidão, foi organizado um cadastro predial na referida faixa. Tomamos consciência de que
tal cadastro tem o valor de «amostragem», todavia de representatividade desconhecida. Regis-
tamos, no entanto, dois aspectos que se nos afiguram importantes. Nas linhas do Norte e do
Centro são muito numerosos os proprietários afectados, o que permite concluir que a proprie-
dade florestal, talvez mais do que a agrícola (porque os solos são mais pobres) se encontra
muito dividida. Isto coincide com o parecer de Silvicultores, quando gestionários produtivis-
tas, que se lamentam do microfúndio florestal português que recusa a integral mecanização da
vastíssima mancha florestal beirã. No Sul, o cadastro referido assume aspecto totalmente di-
verso, registando-se quilómetros de linhas dentro da mesma propriedade. Outro aspecto, mais
surpreendente, é revelado quando, nas faixas de protecção das linhas se procede ao corte de
arvoredo florestal, especialmente pinheiros e eucaliptos, árvores que representam risco para a
segurança das linhas, mantendo-se outra vegetação. A observação de muitas das faixas de pro-
tecção situadas na proximidade de zonas povoadas, especialmente, quando «limpas» de árvo-
res florestais, revela resíduos de flora perene agrícola (oliveiras, figueiras, outras fruteiras, vi-
deiras) mostrando que a floresta corresponde à reconversão de aproveitamento agrícola ante-
rior que, nalguns casos, foi avaliado em cerca de cem anos. Efectivamente, como veremos, foi
há um século que teve início a formação da referida e vastíssima mancha de pinhal.
Quanto ao Sul, o panorama do desmantelamento dos baldios é completamente diverso.
No Alentejo, o baldio estava presente em toda a extensão do território e fortemente integrado
no sistema agrário e na vida comunitária camponesa. Desempenhava a função de apoio essen-
cial ao Camponês desprovido de terra, uma vez que as doações régias tudo haviam partilhado
em grande, na tardia presúria arrancada aos mouros. Como vimos, o «seareiro», detentor ape-

332
nas da junta de animais de trabalho e do arado, recorria à sua parte do baldio onde estabelecia
a sua seara, em conjugação com os contratos feitos com lavradores. Todos os trabalhos mono-
gráficos alentejanos referem o facto de terem existido baldios que na fase de instalação do ca-
pitalismo agrário e seu desenvolvimento foram divididos, transformando-se a posse colectiva
em privada. E particularmente sugestiva e bem documentada a referência feita aos baldios por
José Cutileiro em «Vila Velha». Os factos, em resumo, são os seguintes:
«Havia dois baldios, o da Coutada e o da Maxoa. As respectivas áreas, de acordo com
a avaliação realizada aquando da sua repartição, eram 517 e 1.035 hectares (17% da área da
freguesia). Haviam sido doados ao povo da paróquia pela Casa Real de Bragança, e eram ad-
ministrados pelas autoridades locais. Entre o fim do ancien régime e 1874, os baldios parecem
ter sido usados das seguintes maneiras: parte destas terras eram reservadas pelos habitantes da
freguesia para pastagens destinadas ao gado miúdo (ovelhas e cabras). Reservavam-se também
muitas vezes folhas, que eram distribuídas pelos residentes, os quais tinham de arrotear a terra
antes de poder lavrá-la e semeá-la. Tais distribuições de terras baldias eram frequentes, mas
não necessariamente periódicas. Num dos baldios —a Coutada — os habitantes da freguesia
eram autorizados, mediante determinado pagamento em géneros, a levar as suas cabeças de ga-
do grosso (vacas e éguas) a pastar em áreas demarcados para cada família. Os ramos de oli-
veira enxertados em zambujeiros eram pertença de quem havia procedido à enxertia e não da
comunidade. Todavia, durante as décadas que precederam a divisão dos baldios, assistiu-se a
uma progressiva usurparão dos direitos públicos, usurpações estas que se traduziam por vezes
em conflitos entre lavradores ricos e camponeses e trabalhadores. A primeira usurparão resul-
tou do aforamento de pequenas porções de terra a particulares, o que aconteceu desde, pelo
menos, 1814. Estas porções de terra tornavam-se, por conseguinte, propriedade privada para
todos os efeitos». O desmantelamento legal dos baldios desenvolve-se por meio de aforamen-
to:
«Em 1872, 204 chefes de família residentes na freguesia assinaram uma petição dirigida
à Câmara requerendo que, dado que os baldios tinham sido reservados para o exclusivo uso do
povo da freguesia desde tempos imemoriais, os ditos baldios fossem divididos pelo povo numa
base estritamente equitativa. Cada um dos baldios foi dividido em 410 courelas. A cada um
dos chefes de família coube uma courela em cada baldio. Houve courelas que passaram das
mãos de seareiros e trabalhadores rurais para a posse de lavradores, os quais foram paulatina-
mente consolidando a posse da terra dividida. Em 1907 o latifundiário mais rico tinha já, regis-
tadas em seu nome, 166 courelas dos baldios. Por volta de 1914 restavam apenas 69 das 820
courelas originais. Ainda em 1930 um dos lavradores locais comprou algumas courelas que
restavam da divisão dos antigos baldios. Os trabalhadores haviam assim perdido as suas terras,
ao mesmo tempo que deixavam de usufruir das vantagens que os baldios outrora lhes tinham
proporcionado. A gente de Vila Velha diz muitas vezes que os ricos roubaram a terra aos po-
bres.»
Em conclusão, o Autor sintetiza os inconvenientes resultantes da divisão dos baldios,
acentuando a influência que teve na concentração fundiária, no desemprego periódico que au-
mentou depois da divisão dos baldios, na perda de rendimento para a Junta de Freguesia, nos
valores e atitudes que permitem reter o prejuízo dos pobres em relação às vantagens dos ricos.

333
Não oferece dúvidas que o desmantelamento dos baldios, conjuntamente com a supres-
são do livre pastoreio, condenou os Camponeses do Sul a sofrerem total proletanzação nunca
verificado no antigo regime. Na ausência de propósito de estabelecer confronto de valores
quanto à qualidade de vida campesina em duas épocas, o que interessa neste passo destacar é
o quadro de mudança. Na Freguesia de Cuba. em 1934, Henrique de Barros encontrou e regis-
tou na Monografia elaborada para o Inquérito Económico Agrícola de Lima Basto, numa pop-
ulação de 6.010 habitantes, 734 pequeníssimos proprietários, possuindo 1.192 hectares que re-
presentavam 11 por cento da superfície, em oposição a 11 grandes e muito grandes proprietá-
rios que detinham 8.807 hectares, representando 79 por cento da área agrícola. O capitalismo
agrário liberal instalara, triunfante, escasso número de Lavouras, manobradas à base de Feito-
res, Criados de lavoura e concertados, ganhões, hortelões, para além de trabalhadores da ex-
ploração pecuária já referidos. Estes quadros profissionais eram assistidos, na estrita medida
das necessidades estacionais ou de tarefas, por jornaleiros, que viviam em aldeias dormitórios
e pagos, em parte com comedorias. O regime alimentar não seria farto, mas teria impulso ener-
gético à base do trigo, cereal-rei do Sul. No fim das fainas, a adiafa, que lembra costume gre-
go, era um jantar com borrego, durante o qual a empanturrarão com saborosas proteínas fazia
esquecer, por momentos, todas as misérias da vida.

O «limiar da Reforma Agrária» que a Revolução Liberal desprezou

Não oferece dúvida que as estruturas agrárias existentes no momento em que a Revolu-
ção Liberal se implantou impunham que a partilha da terra nacionalizada e também o acesso
à propriedade régia, previsto por Mouzinho, dessem lugar a novas estruturas agrárias equili-
bradas e justas. Não foi assim que sucedeu e as terras alodiais da Coroa e da Igreja depois de
nacionalizadas e vendidas, ficaram mal repartidas; as terras realengas foram largamente consi-
deradas patrimoniais mantendo-se os cultivadores no pagamento dos tributos sem se tornarem
proprietários; a desamortização dos bens de mão morta fez-se em favor de poucos; os baldios,
quando divididos, especialmente no Sul, deram lugar à concentração das sortes ou foram usur-
pados por meio de aforamentos privilegiados ou ocupações ilegais.
Todas estas situações se encontram descritas e analisadas por diferentes especialistas.
Todavia não foi possível encontrar informação quantificada quanto ao conjunto das situações
estruturais e suas alterações no decurso da revolução liberal. Não é fácil aceitar esta impossibi-
lidade e julgamos ser útil elaborar, como hipótese de trabalho, dois padrões de estruturas agrá-
rias baseados na interpretação actual de vestígios encontrados no terreno, sob diferentes teste-
munhos e até na linguagem das paisagens humanizadas, e na informação parcial e diversa que
foi possível recolher em diferentes contribuições e documentos. Embora, preceitos fundamen-
tais de rigor científico recusem a apresentação de valores que possam ser considerados por lei-
tores menos prudentes, como rigorosos, afigura-se-nos que a observação de cenários ou de pa-
drões teóricos, oferece indiscutíveis vantagens, quando o domínio em análise é particularmen-
te complexo e nebuloso. De qualquer modo deve reconhecer-se que as deduções conducentes
à ideia de que, por exemplo, no período medieval, algures, os domínios senhoriais eram «vas-
tos», ou que era notória a presença da «pequena propriedade» camponesa, se baseiam, natural-

334
mente, em juízos de valor de algum modo quantificados. A questão está em que as medições
e contagens rigorosas não são frequentes, e raras vezes se apresentam globalizadas. Mas isso
nunca impediu que diferentes observadores ou analistas de territórios nos descrevessem, por
meio de expressões diversas como o cálculo percentual, a pequenês ou grandeza de estruturas
ou situações com que deparam. No entanto, tudo depende também, e naturalmente, da imagi-
nação do cronista, ou do seu jeito de avolumar aquilo em que se encontre empenhado.
E este o caso da propriedade fundiária, presente como Antiquíssima herança do Antigo
Regime, e produto de adaptação tumultuária à modernidade capitalista que. na ideia de refor-
mistas como Mouzinho, deveria fragmentar-se em função da «alodialidade» que lhe era facul-
tada. A nossa convicção de Agrónomo é a de que a propriedade, embora se possa confundir
com unidades de exploração agrícola de não proprietários, deixa marca na paisagem, ficando
amarrada a «fósseis» que uma «arqueologia agrária» pode interpretar ou entender: num lati-
fúndio, nunca se construiu um socalco, se fertilizou ou regou, nem o sobreiro ou a azinheira
se encontrará, em cobertura densa, na courela.

ESTRUTURA AGRÁRIA DO ANTIGO REGIME


COM QUE A REVOLUÇÃO SE ENFRENTOU

PAÍS NORTE SUL


1.000 ha. % 1.000 ha. % 1.000 ha. %
Terras realengas e patrimoniais:
de Leigos 2.700 36 1.000 29 1.700 43
da Igreja 1.300 17 400 11 900 23
Propriedades camponesas 380 5 310 9 70 2
Baldios 3.000 40 1.750 50 1.250 31
Terras da Coroa nacionalizadas 50 1 50 1
Terras das Ordens Religiosas extintas,
expropriadas 70 1 40 1 30 1
Total povoado 7.500 100 3.500 100 4.000 100

DEPOIS DA IMPLANTAÇÃO CAPITALISTA AGRÁRIA LIBERAL

PAÍS NORTE SUL


1.000 ha. % 1.000 ha. % 1.000 ha. %
Grande propriedade 3.700 50 400 11 3.300 83
Média propriedade 1.880 25 1.280 37 600 15
Propriedade camponesas 1.490 20 1.400 41 90 2
Baldios 400 5 400 11 — _
Matas nacionais 30 20 10
O mesmo total 7.500 100 3.500 100 4.000 100

O quadro anterior não comporta comentário. Eventualmente servirá de apoio à tomada

335
de consciência quanto às características da «reforma agrária» ocorrida ao longo de um atribu-
lado século de História.

336
41 _ ADAPTAÇÃO AO LIBERALISMO POLÍTICO
E ECONÓMICO

Inflexivelmente, a agricultura, de Norte a Sul, executava a adaptação, penosa sem dúvi-


da, aos condicionalismos políticos e económicas que se lhe deparavam. Assim se operava a
mudança que ficava registada no tecido humano que formava a sociedade global e agrária e se
inscrevia nas técnicas e nas paisagens agrárias, muito diversificados.

A viagem de D. Pedro V ao Alentejo

Tem particular interesse registar a descrição feita por Fialho de Almeida em «O Castelo
de Alvito»;
«A viagem deste Príncipe hamlético ficou célebre, e toda a ternura plebeia fundiu suas
doçuras de cão por junto às plantas do ídolo, que, pela primeira vez, depois duma quase invi-
sibilidade de três séculos, lhe corporizava a ideia religiosa de Rei numa diáfana figura d'ado-
lescente alemão, de cabelos doirados e olhos azuis de miosótis. D. Pedro V, por estes sítios, foi
alvo duma quebreira sentimental em que, ainda hoje, os velhos falam, insistindo na melancolia
poética do pobre moço, que merecia as açucenas de Sant'António e seduzia pela pulcridade
estranha dos instintos.
Camponeses e povoléu miúdo, de Cuba e cercanas terras, que tinha vindo de véspera, à
passagem do Rei, acamparam de roda dos muros da quinta e eram duares imensos de carros e
bestiolas, foguetaria e lumes de comesaina e, nas clareiras fechadas pelos carros, gentuza can-
tando ao som d'adufes e trebelhos, tanta e tão viva que o mesmo D. Pedro V, depois de ceia,
andou pelas ranchadas, até tarde, não faltando vivório e expansões de cândida borracheira,
nem troveiros silvestres, que a som de viola, lhe seleassem boas-vindas.
No dia seguinte, depois d'almoço, a cavalgata partiu pela estrada de Beja, atravessando
as terras do morgado, que iam de Cuba até mui perto da cidade; e aí o Barahona, que era, ao
tempo, um pujante e orgulhoso arador de searas quilométricas, mandara estender aos dois la-
dos da estrada, em ordem de batalha e coberta de flores, toda a instrumental da sua casa de la-
voira: os arados apeirados nas cangas, as pesadas charruas bíblicas de três e quatro juntas, toda
a criadagem de couteiros, lavradores, semeões, mantieiros, escaméis, moços de alavão e rou-
paria, bem firmes nos seus postos, com seus apetrechos de faina, e logo os rebanhos de lã, que
eram profusos, zagaletes, pastores e cães de gado, num formigueiro de pupilas luzentes e de
cornos... Esta foi, talvez, a primeira ideia de cortejo rural e exposição agrícola sugerida em
terra portuguesa, e curioso seria seguí-la na evolução mental decorativa, que algumas dezenas
danos deitou de si o tão apregoado préstito do centenário camoniano. A multidão, que teimava
em acompanhar o Rei, era tão espessa, que a cavalgata houve de moderar o andamento, para
que as mulheres das aldeias e dos montes, que erguiam os filhos pedindo que S. Real Majesta-
de lhes deitasse a bênção, pudessem, enlevadas, gravar bem a fisionomia triste do Príncipe, e
a poeira das correrias não sufocasse os jornadeantes, impedindo-os de ver a exibição das char-

337
ruas e dos gados. Pedro V, educado pelo romântico Herculano à moda antiga, considerava o
mistér de Rei, não pelo lado pròpriamente político e diplomático, como mais tarde seu sobri-
nho D. Carlos, que disso foi vítima, mas como uma espécie de munificente pastor talhado em
patriarca, intervindo pessoalmente nas leis, distribuindo ele mesmo as graças e a justiça: e, por
isso, se comprazia na exibição destes demorados convívios populares (...).»
Mais adiante, o mesmo Autor faculta-nos expressiva descrição do Alentejo nesta época:
«Logo, no primeiro aro de terras, excêntrico ao povo, hortejos que verdejam com pin-
tas brancas de casas, pedaços de vinha em quadros, farejais pelados de restolho, tudo isto dese-
nha como um tapete flamengo já mui velho, donde o contacto dos pés raspasse as bordaduras,
deixando à trama de baixo, aderente, um que outro montículo de lanúgem verde-palha. E, aqui
e além, figueiras da índia sinalam vagos vaiados, ou são renques de piteiras hirsutas donde, a
espaços, rompem falos verdes, encabeçados d'estranhas florescências.
Estendo mais o meu raio pupilar, fora do aro da propriedade pequena, para entrar na zo-
na das herdades quilométricas, das savanas largas como estados; e, assim, tenho, lá abaixo, já
na planura do vale, uni ponto à esquerda, a estação do caminho de ferro, que parece um brin-
quedo, um alvo branco; logo uma linha de barranco, que é a ribeira d'Alvito, onde se perfilam
choupos verdes e um espelho de charco caustica ao sol canicular... Após, no sector de que esse
raio é eixo, a Herdade e Horta de Maria Dona, a Herdade das Assentes, e, já no fundo do hori-
zonte, Malcabrã, muito além da ribeira, onde há ruínas de muros e alicerces extensos, e se diz
que foi uma cidade mourisca ou mosárabe. Este sector me serve de ponto de partida, e vou cir-
cuitando o olhar, da esquerda para a direita, té fechar roda, o que me permite abranger um ma-
pa circular de grandes campos, num grandioso raio de três a quatro léguas.
E, assim, passam: São Bento da Serra, Cidrão, Lúzios, direito aos campos de Cuba; San-
ta Luzia, Cágado, na flecha de Vil'Alva e Vila Ruiva; após Manacha, Gamito, Ponte, Sesma-
rias, Mascarra e, já no extremo-horizonte, Água dos Peixes, onde um solar dos Cadavais com
restos góticos... Aí vêm Manachinha, Moinho do Marquês (curvejando sempre o olhar da es-
querda para a direita) e os outeirões da Serra de Viana, estirando o espinhaço em dorso de bur-
ro... Herdades de Vila Nova da Baronia, Tapadas do Marquês e Zambujal do Conde, que fo-
ram da casa d'Alvito e contam por milhares de pés as oliveiras; e, nas quedas do Zambujal, as
florestas druídicas da Quinta do Duque, léguas e léguas de sobreiros e azinheiras, pertencentes
à Casa Cadaval. Terra da Quinta dos Mártires em cujos alicerces foi o convento beneditino de
Mondarém, ou mongedarém, fundado, como o de São Cucufate, de Vila de Frades, aí pelas al-
turas do século oitavo, ou nono, ou décimo... Terras de Zambujosa e Monte Ruivo, que se
abaixam no vale em restolhos pelados, repregos, conchas, ondeando até os barros de beja, da
Beja vazia, da Beja morta, cuja casaria branca figura como uma exclamação de tédio, ferida
pelo acento-agudo da imensa torre de menagem.
Nesse imenso circuito dominam florestas de boleta e alândea entre as Herdades de Mal-
cabrã e Vila Nova da Baronia, meio-circuito, quase, do aro formidável. E, aí, a paisagem tem
tonalidades severas e misteriosas profundezas, léguas e léguas duma carapinha crespa, verde-
bronze, cerrada e devorando repregos e dobras do terreno, onde uma ou outra pinta caiada de
monte dormita, sai em palmeira uma ou outra coluna de fumo, grasna um ou outro corvo
exaustinado. O céu, mui alto, dum azul cruel d'agulhas candentes, a produzir cegueiras instan-

338
tâneas, o refocilar da floresta pelas raízes e folhas, na seiva escassa do meio cósmico, as gran-
des terras peladas do aro cerealífero, dum amarelo fulvo, onde, espalhados, algum cálido ar-
busto ou árvore agonizam, o catastrófico silêncio onde cada qual pode ouvir o seu próprio pul-
so.»

As novas estruturas agrárias do Norte

Mas também o Norte se submetia à dinâmica da transformação de velhas estruturas se-


nhoriais em Quintas, para a época, modernizadas. Para documentar este aspecto julgamos ter
interesse registar o relato de Aquilino Ribeiro quando descreve a constituição, em velhíssimos
domínios de um dos mais antigos aristocratas portugueses, o Visconde de Vila Nova de Cer-
veira, da Quinta e «Casa Grande de Romarigães» em Paredes de Coura:
«— Que rica quinta aqui se fazia! — tornou a dizer para consigo, filho revesso de cam-
pónios, a quem a patena e o cálice não haviam obliterado o sentido da terra.
Quando chegou o seu primo Baltasar Canedo de Fróis, da Casa do Freixieiro, com uma
perdiz suspensa pelo gasnete, não se conteve que não dissesse:
— Que rica quinta aqui se fazia, primo Fróis! Tudo o que se avista é do »Bisconde...
Parece-me bem que é homem para aforar...
— Aforar não digo. É contrário lá à sua pragmática. Mas para vender. O primo apresen-
te-se comprador...
E se bem o pensou, melhor o decidiu. No dia seguinte botou-se pela serra —cavalgada
de três horas — a Vila Nova de Cerveira, onde por aquela altura estanciava o importante se-
nhor. Os seus privilégios de fidalgo de pendão e caldeira eram ilimitados. A casa tinha poder
igual ao do rei para nomear oficiais em todo o Couto de Fraião. Um alvará rezava assim: Por
se achar vago o lugar de meirinho no meu concelho de Coira, hei por bem fazer mercê do car-
go a Alonso Ruiz-..
— Não obstante a extensão latifundiária do domínio, as rendas eram parcas e cobradas
tarde e a más horas. Alguns rendeiros tiravam de suas terras mais rasas do que lhe mediam nas
tulhas. Quem poderia crer que uns anos por outros não trouxesse dali em rendas, foros e dízi-
mos, contados com a mão esquerda, menos que dois mil alqueires? Tinha porém lá os seus
acontiados, gente brava para a guerra, capaz de rilhar uma fraga com os dentes, e apresentava
curas e abades em quase todas as freguesias, afora as que revinham aos herdeiros do Dr. Ga-
briel Pereira de Castro e aos Barbosas de Lima, não incluindo S. Miguel das Porreiras com as
duas paróquias que dependiam da vigairaria da Mitra. Na de Romarigães, também, a jurisdição
repartia-se entre o abade de S. Paio de Agualonga e o arcediago da Labruja. Era além do mais,
por tradição, posses e prestígio, o fidalgo mais temido da comarca de Entre Douro e Minho. A
sua vontade sobrepusera-se mais de uma vez a do Monarca, como se viu na temível altercação
que sustentou com os vizinhos de Ponte de Lima que não tiveram outro remédio senão aceitá-
-lo como alcaide.
O Bisconde, além de parente do licenciado Gonçalo da Cunha, era seu amigo. Quando
soube da requesta, que este amenizara sob color de gostar de ter coutada própria de caça, o vis-
conde atalhou:

339
— Eu mando coutar para si, reverendo primo.
— Podia ser que me tentasse também a arrotear... — observou com timidez.
— Se é para isso dou-lhe um conselho: não me peça para aforar aqueles chavascais,
compre-mos. Eu vendo. Para o primo vendo de olhos fechados.
— Está dito.
— Entenda-se com o mordomo.
E assim fez. Em boa e devida forma, com a firma do Visconde, adquiriu por tuta-e-meia
o grande tracto de terras — com todos os seus outeiros, arroios, matos e arvoredos, livres e
alodiais — que iam, a nascente, da Portela Pequena da Labruja, serra dos Matacões fora, boa
parte do ribeiro dos Ermos, até à intersecção, a sul, do vale e do sopé da serra da Cabração no
caminho de S. Martinho de Coura pelo norte, todo o arco de montes que se debruçavam sobre
a estrada velha que levava de S. Roque a Ponte de Lima e fechavam a poente no reguengo da
Freita.
— Nem um condado! — diziam-lhe as letras vermelhas do missal, ao ler a epístola, no
santo sacrifício de Domingo Terceiro.»

A abolição da «Pena de Morte»

Guilherme Braga da Cruz, na sua resenha histórica intitulada «O movimento abolicio-


nista e a abolição da Pena de Morte em Portugal», começa por destacar o «lugar proeminente»
que a Pena de Morte sempre ocupou no «quadro da repressão criminal» da generalidade dos
países. No que se refere a Portugal, o referido Autor revela a importância de decisões ocorridas
a partir dos séculos XII e XIII em que o poder real assume o seu papel interventor. E diz: «cha-
mando a si o direito de punir, o poder político prestava ao progresso e à paz interna dos povos
um serviço de altíssimo relevo, pondo cobro às antigas formas de auto-defesa, dominantes na
alta Idade Média, de que eram expressões acabadas a vingança privada e a perda da paz».
Para além da grande diversidade de crimes que pediam vingança, ou pena exemplar em
lugar público, a arte de executar condenados à morte adquiriu os mais variados requintes que
aumentavam o sofrimento quando a morte era precedida de torturas, mutilações, esquarteja-
mento, incineração e toda a espécie de atrocidades. Não admira, portanto, que a «publicização
do jus puniendi», no dizer do Autor citado, se possa considerar um progresso, mas «essa tarefa
meritória não ultrapassava, no entanto, os limites duma simples transferência para as mãos do
Estado do direito de represálias, até aí encabeçado na própria vítima ou na comunidade ofendi-
da». As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas mantiveram «sob alçada da pena de
morte um avultado número de infracções», preceituando a execução na forca — «moira po-
rem», «morra por isso» — ou, o que era pior, deixando ao arbítrio dos Juizes as mais inimagi-
náveis encenações da crueldade.
Assim foi durante longos séculos, até ao momento em que, já no século XVIII, das lu-
zes, quando o Marquês de Pombal praticava a mais violenta aplicação das leis cruéis, surgiu
em Itália, no ano de 1764, o Livro de Beccaria, «Dei delitti e delle pene», a abrir ao Mundo a
alvorada do Abolicionismo. Mas foi com a Ideia já lançada que se viveu o Terror, durante a
Revolução Francesa, tendo fracassado tentativas de abolição feitas no fim do século na Tosca-

340
na e na Áustria.
A Constituição portuguesa de 1822, não condenou a pena de morte e apenas — o que
talvez seja muito — proclamou ficar abolida «a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os
açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis e infamantes».
Todavia, o Autor em que nos apoiamos revela que, D. João VI, ainda Príncipe Regente, em de-
cretos de 1801 e 1802 atenuou a condenação à morte, comutando-a quando os réus não hou-
vessem cometido «crimes enormíssimos», em pena «de Galés perpétuas ou temporais para os
trabalhos públicos da Cidade de Lisboa». Para reter o panorama da época e talvez as angústias
em que se debateria D. João VI, tem interesse registar que, este, ao decretar a sua decisão de
atenuar o rigor estabelecido em velhas Ordenações, tomou a precaução de escrever: «sou servi-
do declarar que a sobredita comutação não terá lugar nos crimes de roubos feitos nas ruas da
Capital, e seus subúrbios e estradas de Meus Reinos, nas mortes, e furtos em casas praticados
com violência, e disparando-se armas de fogo, ou contra Carruagens, ou outros quaisquer deli-
tos, cuja qualidade agravante os fez sujeitos às saudáveis e providentes disposições das mes-
mas Leis».
No entanto, e na prática, perto do termo do governo do Marquês de Pombal, no ano de
1772, depois de ter sido degolada em 1759 a Marquesa de Távora, foi executada pela derra-
deira vez uma mulher, em Portugal... «para despedida, executada com todos os requintes de
crueldade ao tempo ainda em uso: atenazada com ferro em braza, cortadas as mãos, garrotada
e queimada». Mas, para bem entender a grandeza de Alma que era necessário ter para estar ao
lado do Abolicionismo, importa reconhecer que tão bárbara era a morte da condenada, quando
fora sinistro o crime de que era acusada: «Chamava-se Luísa de Jesus, tinha 22 anos e foi con-
denada por matar com suas próprias mãos trinta e três expostos que há meses ia buscar à roda
de Coimbra, uns em seu nome, outros em nomes supostos, para se utilizar do enxoval e de 600
reis em dinheiro, respectivos a cada um deles». A última execução por crime civil ocorreu em
1846 na cidade de Lagos. Decorreram depois 21 anos, ao longo dos quais a pena de morte, na
prática, se encontrou abolida em Portugal. Mas foi no ano de 1867 que «Portugal toma neste
ponto uma posição de vanguarda, porque é a primeira grande nação da velha cepa europeia a
enfrentar sem medo o problema da abolição». Ao ser banida a pena de morte por decisão dos
Deputados, segundo refere ainda Braga da Cruz, Vítor Hugo escreveu a Eduardo Coelho, pala-
dino do abolicionismo, dizendo: «Portugal dá o exemplo à Europa. Desfruta de antemão essa
imensa glória... Morte à Morte! Guerra à Guerra! Ódio ao Ódio! Vida à Vida! A liberdade é
cidade imensa, da qual todos somos cidadãos».

O Campesinato e os Senhorios envolvidos no capitalismo agrário

Eça de Queirós reteve e relatou, aspectos fundamentais do conflito entre poderes senho-
riais decadentes e interesses camponeses vitais, no arrendamento de terras disputadas pelos
rendeiros em feroz competição liberal. E o que se pode ler na «Ilustre Casa de Ramires»;
«O carro lento passou. E logo atrás surdiu um homem, esgrouviado e escuro, trazendo
ao ombro o cajado, donde pendia um molho de cordas.
O Fidalgo da Torre reconheceu o José Casco dos Bravais. E seguia, como desatento, pe-

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la orla do pinheiral, assobiando, raspando com a bengalinha as silvas floridas do vaiado. O ou-
tro, porém, estugou o passo esgalgado, lançou duramente, no silêncio do arvoredo e da tarde,
o nome do Fidalgo. Então, com um pulo no coração, Gonçalo Mendes Ramires parou, forçan-
do um sorriso afável:
— Olá! E você, José! Então que temos?
O Casco engasgara, com as costelas a arfar sob a encardida camisa de trabalho. Por fim,
desenhando das cordas o marmeleiro que cravou no chão pela choupa:
— Temos que eu falei sempre claro com o Fidalgo, e não era para que depois me faltas-
se à palavra!
— Gonçalo Ramires levantou a cabeça com uma dignidade lenta e custosa — como se
levantasse uma massa de ferro:
Que está você a dizer, Casco? Faltar à palavra! em que faltei eu à palavra?... Por causa
do arrendamento da Torre? Essa é nova! Então houve por acaso escritura assinada entre nós?
Você não voltou, não apareceu...
O Casco emudecera, assombrado. Depois, com uma cólera em que lhe tremiam os bei-
ços brancos, lhe tremiam as secas mãos cabeludas, fincadas ao cabo do varapau:
— Se houvesse papel assinado, o Fidalgo não podia recuar!... Mas era como se houves-
se, para gente de bem!... Até V. S.a disse, quando eu aceitei: "viva! está tratado!...". O Fidalgo
deu a sua palavra!
Gonçalo, enfiado, aparentou a paciência dum senhor benévolo:
— Escute, José Casco. Aqui não é lugar, na estrada. Se quer conversar comigo, apareça
na Torre. Eu lá estou sempre, como você sabe, de manhã... Vá amanhã, não me incomoda.
E endireitava para o pinhal, com as pernas moles, um suor arrepiado na espinha —
quando o Casco, num rodeio, num salto leve, atrevidamente se lhe plantou diante, atravessan-
do o cajado:
— O Fidalgo há-de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua palavra!... A mim não se
me fazem dessas desfeitas... O Fidalgo deu a sua palavra!
Gonçalo relanceou esgazeadamente em redor, na ânsia dum socorro. Só o cercava soli-
dão, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara, sob um resto de tarde, o carro de lenha, ao
longe, chiava, mais vago. As ramas altas dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e re-
moto. Entre os troncos já se adensava sombra e névoa. Então, estarrecido, Gonçalo tentou um
refúgio na ideia de Justiça e de Lei, que aterra os homens do campo. E como amigo que acon-
selha um amigo, com brandura, os beiços ressequidos e trémulos:
— Escute, Casco, escute, homem! As coisas não se arranjam assim, a gritar. Pode haver
desgosto, aparecer o regedor. Depois é o tribunal, é a cadeia. E você tem mulher, tem filhos
pequenos... Escute! Se descobriu motivo para se queixar, vá à Torre, conversamos. Pacata-
mente, tudo se esclarece, homem... Com berros, não! Vem o cabo, vem a enxovia...
Então de repente o Casco cresceu todo, no solitário caminho, negro e alto como um pi-
nheiro, num furor que lhe esbugalhava os olhos esbraseados, quase sangrentos:
— Pois o Fidalgo ainda me ameaça com a justiça!... Pois ainda por cima de me fazer a
maroteira, me ameaça com a cadeia!... Então, com os diabos! primeiro que entre na cadeia lhe
hei-de eu esmigalhar esses ossos!...

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Erguera o cajado... — Mas, num lampejo de razão e respeito, ainda gritou, com a ca-
beça a tremer para trás, através dos dentes cerrados:
— Fuja, Fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo Mendes Ramires correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito, pu-
lou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, numa carreira furiosa
de lebre acossada!»
Embora se não possa afirmar que os Camponeses do Norte tivessem alcançado qualquer
estádio social e económico que se parecesse com suficiente autonomia, talvez se apresente le-
gítimo pensar que a exigência do José Casco dos Bravais, de ver cumprida a palavra dada pelo
Fidalgo, não era somente moral, mas o produto da revolta por o Fidalgo ter acedido, interessei-
ro, à oferta mais vantajosa de outro candidato a rendeiro concorrente, que lhe roubou, no jogo
dos interesses capitalistas, o negócio. Efectivamente, nessa altura, a especulação pecuária en-
contrava-se florescente, e ninguém já sobrepunha a palavra honrada às misérias dos interesses,
de nada valendo sequer as fidalguias.
A exportação de gado vivo para Inglaterra que se iniciara cerca de 1847, que não se po-
de aceitar que fosse a resposta, mesmo muito tardia, ao tratado de Methuen, estava em curso.
Mais de 30.000 cabeças de bovinos representam o máximo de procura anual britânica de bois
barrosos, recriados nos verdes campos, socalcados, fertilizados e regados pelos Camponeses
da «revolução do Milho». Em troca, quando embarcados, as libras victorianas tiniam a desen-
volver no Porto a indústria da ourivesaria que ourava as Camponesas e o Folclore com a auten-
ticidade de pesadas arrecadas e corações massiços e de filigrana. O manancial havia de extin-
guir-se ao fim de quarenta anos de entesouramento do valor do gado exportado, mas não servi-
ra para suporte de arranque industrial bastante. A exportação de gado acabou justamente por
falta de apoio industrial, quando as frotas rotineiras de transporte de gado vivo se confrontaram
com o progresso tecnológico da frigorificação e, depois, da congelação da carne expedida pela
América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, rumo a Liverpool. Perante a concorrência, o
País não correspondeu com solução técnica capaz de competir com a inovação que assim ex-
cluiu do mercado a exportação portuguesa de produto de alta qualidade. Nunca tivemos, nem
temos ainda, matadouro industrial que evitasse a incapacidade de exportação pecuária, feita de
acordo com exigências modernas. Todavia os bois barrosos continuam a frequentar as feiras,
vendidos e revendidos com a ajuda de copos de vinho, pelos contratadores de gado. Imponen-
tes e pacíficos, alguns dos descendentes de exemplares que baixaram do Barroso, ainda podem
ser vistos nas bouças que vão resistindo aos eucaliptos junto a socalcos e veigas, a ruminarem
nostalgias do comércio europeu frustrado que, por culpa de negociadores ineptos, cada vez se-
rá mais deles do que nosso.
O Campesinato encerrava nesta altura a problemática de sempre e corria de mão em
mão «O Pároco da Aldeia» que Alexandre Herculano arrancara à vida rural portuguesa em pro-
digiosa interpretação:
«Então que historias são essas da Bernardina, sô velhaco da conta benta? Sabe o que
fez, grandesissimo tratante? Aonde foi você aprender isso? (esta pergunta era asnatica). E a
doutrina que eu lhe ensinei em pequeno? De que têm servido os exemplos da modéstia e honra
que lhe dá seu pae? De ser um vadio, um seductor, um... Deixe estar: a cadeia não se fez para

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as aranhas, e elrei nosso senhor (o bom do parocho puxava em politica para a eschola histórica)
ainda não mandou queimar a nau de viagem...»
«Eu, padre prior... como lhe ia dizendo» — interrompeu atarantado o saloio, coçando
na cabeça e procurando atar o fio das suas idéas inteiramente confundidas.
«Calle-se; não me responda — proseguiu o velho parocho, achando, talvez, pouco fazer
cinco perguntas para ouvir uma resposta. — Diga-me: que tenções eram as suas enganando
uma rapariga honesta?»
«Eu...»

Sob o signo da Morte

O País foi seriamente abalado pelas epidemias de cólera-morbo e de febre amarela. Por
esta altura a existência humana era estatisticamente breve. A morte prematura, insondável
quando infantil, assumia presença endémica, tornando-se impiedosa e agressiva quando epidé-
mica. Assim foi até à alvorada da Medicina pasteuriana e a «foice» não distinguia vítimas, le-
vando pobres, ricos e Reis, na mesma ceifa. Para muitos, na alvorada da vida, os sinos, nos
campanários, «abriam sinal» e, depois, «dobravam a finados» na orquestração do bronze a ce-
lebrar o ritual dorido da despedida. Pasteur não veio a tempo de salvar D. Maria II, da febre
puerperal, aos 34 anos, nem D. Estefânia, aos 22. Mas a morte de D. Pedro V, logo depois, aos
24 anos, não tem outra explicação que não seja a razão de um grande Amor que o ligava à Rai-
nha que se finara, com a enorme amargura popular. Foi aclamado Rei seu irmão D. Luís.

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42 — PENOSA ESCALADA DA MODERNIDADE

Na dinâmica inflexível da mudança, mau grado as resistências sempre deparadas, a mo-


dernidade procura instalar-se com a abertura de espaços rurais isolados proporcionada pela
construção de estradas e de vias-férreas.

O esforço de regionalização prossegue

O País real mantinha recantos de anacronismo dramático em pequeníssimos Concelhos,


por vezes de notável tradição histórica, que se encontravam abandonados. Por isso, o «Setem-
brismo» levou Passos Manuel a apresentar o Código de 1836 que abalou profundamente as raí-
zes do País regionalizado, conduzindo à decisão, efectivamente revolucionária, de extinguir
498 Concelhos velhos e de criar 21 novos. Custa a entender como foi possível proceder a tão
dolorosa cirurgia regional, a não ser que se tenha em conta o estado caótico que nessa altura
vigorava. Efectivamente, o Povo, que depois se viu envolvido na Maria da Fonte e os políticos
na guerra da Patuleia, nas revoluções de Saldanha e no Rotativismo, parece terem esquecido a
Regionalização administrativa durante 36 longos anos. Os Distritos tiveram tempo mais do
que suficiente para se radicarem nas intrigas, ódios e alianças de líderes locais. Afiguravam-se
micro-regiões adequadas para manobras eleiçoeiras, compadrios e brigas de caceteiros. Numa
óptica talvez severa mas, com certeza, exacta, os Distritos representavam espécies de colónias
burocráticas, multiagrupando os portugueses de forma que esquecessem as suas regiões, num
esforço homogeneizante de cidadania abstracta que chega a ter semelhança com o que alguns
pretendem que seja a integrarão na C.E.E. — esquecendo o que verdadeiramente está em cau-
sa, para além do comércio, a «Europa das Regiões e das Pátrias». Mas o processo histórico era
efectivamente impiedoso porque a regionalização distrital imposta, ou a colonização referida,
pretendiam fazer esquecer aos «minhotos» que eram do Minho, aos «beirões» que tinham seu
berço nas Beiras, ou aos «algarvios» que tinham a tradição do Reino do Algarve. Quando se
trata de fazer esquecer, até parece que tudo é possível, porque nessa altura os minhotos já se
sentiam feridos quando os tratavam de Galegos e não se poderia também lembrar a um Alente-
jano que era Mouro. Mais ainda, somente os intelectuais sabiam, e o Povo ignorava, que uma
«Varina» era Fenícia e um «Saloio» era Persa, Assírio ou Egípcio.
No entanto o país real era tão rico que a Regeneração passou a incentivar o trabalho de
Técnicos interessados na modernização administrativa. Nessa linha. Martens Ferrão apresen-
tou um projecto de reforma que foi transformado em Lei de 26 de Julho de 1867. Tecnicamente
bem fundamentada nas conclusões do I Censo Demográfico, a proposta considerou onze Pro-
víncias assim repartidas: Minho, Trás-os-Montes Inferior, Trás-os-Montes Superior, Douro,
Beira Alta, Beira Central, Beira Baixa, Estremadura, Alto Alentejo e Algarve. Esta proposta
constitui certamente o primeiro trabalho organizado segundo metodologias de regionalização
que se podem considerar modernas, pelo recurso a dados demográficos pormenorizados. Teve
a aceitação das Câmaras legislativas mas, logo em 1868, uma revolta popular chamada «Janei-

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rinha», atirou com tudo ao ar, repondo o Código anterior. As tentativas de demarcação regio-
nal não prosseguiram e, em 1878, os Regeneradores, no poder, promulgaram Código novo que
não alterou os micro-Distritos de 1834. Tudo estava aparentemente consolidado na euforia do
telégrafo, das estradas e dos caminhos-de-ferro a romperem os isolamentos e, com o gás e a
electricidade, a iluminarem as ruas das cidades, os salões de festas, os teatros e a distraírem os
espíritos, enquanto os rurais eram mantidos abandonados.

A qualidade da vida rural

Quando o livre-cambismo se acomodava em Portugal, poucos se haveriam apercebido


de que Bastiat, ao morrer em 1850, confessara aos seus discípulos: «é preciso tratar a econo-
mia política do ponto de vista do consumidor». Tal recomendação não se afigurava alvorada
de uma ideia nova. O consumidor de Bastiat era uma das faces do «Homem Económico», mero
comprador, no mercado, a movimentar-se de acordo com as necessidades e o poder aquisitivo.
Sendo assim, na Regeneração, o consumidor que reinava em Portugal era detentor de fraquíssi-
mo poder de compra. Para mais, o rural, quando camponês, era auto-suficiente, gestionário de
microeconomias de escambo ecológico, voltadas para o consumo de produções por ele produ-
zidas e aquisições nas feiras de escassos artesanatos em troca de magras sobras de gastos e de
pequenos excedentes de colheitas. Nas vastidões capitalistas do Sul, nos «montes», os Perma-
nentes, os contratados e os assalariados praticavam «ajustes» de «pegulhais», de «forras» e de
«comedorias», onde figurava dispicienda parcela monetária. Em todas as regiões a força de
trabalho oferecia-se nas «feiras dos creados», ou nas «praças de trabalhadores», quase pelo
preço do alimento. O auto-abastecimento regional dominava, quase em absoluto, todo o espa-
ço agrário. Nas aldeias o pão que se comia vinha da tulha ou da arca, segundo estreita aliança
entre o forno caseiro e o moinho dos ribeiros ou do vento, com o moleiro a transportar, num
burro, as «fornadas». A verdura vinha da couve céltica, a proteína do feijão mouro, do porco
de «chiqueiro» ou do «vivo» que pagava tributo em festas e nas doenças. Do mar, os pescado-
res, enviavam pelos «peixeiros», o pescado fresco que abastecia o litoral e, depois de curado,
transpunha encostas e chegava às alturas serranas. Tinha enorme importância a floresta, os
soutos que forneciam castanha, e os matagais onde as abelhas sugavam o mel com elas parti-
lhado nos cortiços.
Apenas os consumos urbanos seriam motivo do desastre económico da importação do
trigo farinado na indústria de moagem e transformado em pão nas padarias. Quanto ao resto,
estruturas moçárabes de «saloios» dos arredores, transportavam em carroças hortaliças acama-
das segundo as qualidades, e traziam às portas vacas leiteiras que na rua eram mungidas, ou
então as forragens para os estábulos das «leitarias» dentro de portas. Nas praças, nas avenidas
e nos becos, o pregão das «varinas» fenícias misturava-se com o dos «aguadeiros» galegos,
dos «azeiteiros» beirões e dos vendedores de novidades estacionais: «figos de capa rôta» ou
«quentes e boas». Ao lado, carregados, passavam, negros de fuligem, os «carvoeiros» que, das
serras vinham atafulhar nas caves armazéns de combustíveis. No fundo, mantinham-se provin-
cianas e rurais, cidades como Lisboa onde, por toda a parte verdejavam «hortas» com nespe-
reiras. Não havia, portanto, lugar para sonhos industrialistas.

346
No decurso dos últimos cem anos, foi preciso que a Humanidade se confrontasse em
duas grandes guerras mundiais para que o apelo de Bastiat aos seus discípulos assumisse ver-
dadeiras proporções. Mas foi somente no termo da II Guerra Mundial que se instalou na econo-
mia política o reinado do «Homem Social».
O consumidor de Bastiat passou a representar a procura potencial, dimensionada e elás-
tica, no quadro da solvabilidade, determinando níveis de satisfação padronizados que signifi-
cam contornos da qualidade da vida, expressos em indicadores da saúde, da habitação, da ins-
trução e do bem-estar social. E por esta altura que a literatura técnica se apresenta enriquecida
com novas conclusões. Os Organismos internacionais inventam o «subdesenvolvimento». Jo-
sué de Castro, em 1946, denuncia a «conspiração de silêncio em torno da Fome». Afirma que
tal «silêncio» não é acidental, mas premeditado. Por isso a Fome, embora temida como a Peste
e a Guerra, era efectivamente desconhecida nos seus aspectos técnicos e científicos. Para Josué
de Castro o que se temia era a fome global que determinava a morte pela carência total de ali-
mentos. Era parte integrante da vida a fome específica de um, de vários e, às vezes, da maio-
ria dos alimentos indispensáveis à nutrição humana. Ignorava-se a causa de carências alimen-
tares como o beribéri, a pelagra, o escorbuto, a xeroftalmia, o raquitismo, a osteomalácia, o
bócio endémico e as anemias. Verdadeiramente, a economia alimentar teria nascido em 1936
com cientistas como John Boyd Orr. O tema foi levado ao âmbito internacional na Conferência
de Hot Springs, em 1943, de onde resultou a criação em Quebec, em 1945, da FAO (Organiza-
ção das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Sendo assim, não nos devemos
admirar quanto à dificuldade de definir o quadro alimentar da população portuguesa no século
XIX. Sabe-se que a Fome generalizada, catastrófica, perdera a sua agressividade no decurso
deste século. Assinalam-se Fomes ligadas às invasões francesas e, talvez, no século que alguns
historiadores designaram maldito, as últimas Fomes se apresentem na base das gravíssimas
epidemias da febre amarela e da cólera morbus de 1856-57. No entanto, mantêm-se obscuros
aspectos da fome específica, sabendo-se a importância que o escorbuto assumir entre marean-
tes, sendo assinalada a implantação da pelagra e do bócio endémico em certas regiões rurais.
O Raquitismo e outras carências alimentares ofereciam, sem dúvida, um quadro mais ou me-
nos generalizado.
Todavia, o regime alimentar português não podia ser satisfatório. A macroanálise revela
que cada habitante teria à sua disposição 0,4 de hectare cultivado. A importação, mau grado o
peso relativo do trigo, pouco acrescentava à base nacional do abastecimento alimentar. Como
referência teremos agora, com o dobro da população, 0,6 hectare cultivado por habitante e uma
importação alimentar que ultrapassa o que consumimos da produção interna. A análise de do-
cumentos e a observação de edifícios antigos mostra, sem dúvida, a presença de cozinhas mo-
numentais em Conventos. Sabe-se o que esses equipamentos, que não eram só para os Frades,
representariam quanto ao apoio dado a viandantes ou ao socorro eventual de generalizadas ca-
rências. Todavia, os Conventos, depois da Revolução Liberal, estavam entregues à posse pri-
vada e, portanto, encerrados. Idênticas cozinhas, tulhas e celeiros amplos, se encontrariam em
Casas Grandes, senhoriais, minhotas, transmontanas, beirãs ou estremenhas, ou em montes
alentejanos. Então a abundância regulada por calendários religiosos, ou ocasional de bodas,
baptizados e funerais, vertia naturalmente as sobras em favor da indigência, saciando fomes

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endémicas, logo retomadas depois da festa ou do encerramento. Por vezes as cozinhas grandes
eram funcionais, como nos montes alentejanos, e preparavam comedorias ajustadas em troca
do trabalho, ou desperdiçados na passagem dos malteses, como nos descreve com rigor Silva
Picão em «Através dos Campos». Nas aldeias de camponeses, ao cair da noite, seria mau pre-
núncio se o fumo das lareiras se não escoasse, nas Choupanas, pelo colmo ou telha vã, a anun-
ciar o caldo ao lume, a aferventar as couves e os feijões adubados com um fio de azeite. Nas
vilas, as Misericórdias asseguravam a sopa dos mendigos quando estes, velhos, aleijados,
doentes ou abandonados, não encontrassem caridade que os socorresse. Eram tempos em que
a «roda» oferecia secretamente o berço a vidas «expostas» e famílias não planeadas adoptavam
«postiços» a partilharem a fome de que se alimentavam. Estava instituída a «esmola» ao ser-
viço de bandos de pedintes que semanalmente baixavam das tocas aos portões das quintas, exi-
bindo, depois, nas feiras, nas romarias, nos adros das Igrejas, dores e mazelas simuladas ou
reais. A Fome espreitava, impiedosamente, às portas de camponeses quando atraiçoados pelas
perspectivas das colheitas, pelas surpresas da vida ou chamamentos da morte. Torturava os que
sem eira nem beira não encontravam monda ou ceifa em que se empenhassem, verdadeiramen-
te sem saberem porquê.
Apesar de reconhecida a pobreza, como reverso da riqueza, inevitável na montagem dos
cenários sociológicos da economia clássica, algumas comunidades rurais logravam elaborar
com êxito a sua gastronomia regional. Na diversificação do património etnográfico não se en-
tende que a civilização alimentar seja produto apenas de cozinhas sumptuárias. E evidente que
existem receitas declaradamente conventuais como os «papos de anjo» ou as «barrigas de frei-
ra». Não faltam outras ensaiadas, com largo fundamento empírico, em mesas dos «passais»
dos Párocos, como o «pudim do Abade de Priscos». Não custa visionar que privilégios senho-
riais de caça permitissem «assar no espeto» animais de montaria, de falcoaria ou, simplesmen-
te, espingardeados; ou a posse de pastagens e de rebanhos reservasse os melhores exemplares
das reses criadas, novilhos, vitelas, borregos, cabritos ou leitões, para deliciosos cozinhados.
Todavia as comunidades rústicas nunca deixaram de tentar competição com tais privilégios pa-
ra libertação de situações de penúria ou, quem sabe, celebração de «rituais» ou festas. Ao en-
frentarem severíssimas penalizações, que chegavam à «pena de morte», os rurais usavam das
vantagens do conhecimento do terreno, das armadilhas ou das ratoeiras. Por isso, muito existe
como resultado da inspiração popular, mercê do estreito conhecimento ecológico de popula-
ções agrárias de cultivadores, de caçadores e de pescadores. Muito se descobriu nas fontes da
produção e se seleccionou na qualidade dos produtos naturais dotados de grande diversidade
regional. Os rústicos teriam sido os primeiros a experimentarem nas brasas da fogueira, no po-
te, no forno do pão, o «assado», o «cozido», a «caldeirada», a «chanfana», o «ensopado», a
«açorda», as «migas», os «rojões», as «papas», as «sopas» e os «enxidos», antes, muito antes,
que os feudalismos inventados e reinventados pilhassem tudo, transformando o melhor em tri-
buto, em renda, em imposto e, com o desenvolvimento da industrialização e comercialização,
em produto enlatado, congelado ou frigorificado. Acompanhando o repasto, para matar o «bi-
cho da fome» ou esquecer as amarguras da vida, uma agricultura essencialmente vitivinícola
abriu caminho ao alcoolismo com o produto das adegas e dos alambiques. De outras bebidas
alcoólicas não se guardaria memória rural, assinalando-se o uso de cervejas de fabrico urbano

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de inferior qualidade. Os produtos vínicos fundamentavam o que chegou a designar-se a «civi-
lização do vinho», realidade antiga como a divindade de Baco ou a inspiração das Musas. Li-
gado a tudo isto andava, desde o século XVIII, o tabaco que, de planta medicinal, se transfor-
mou em rapé, de mascar e de fumar, alargando consumos, embora severamente condenado.
Seu companheiro era o café que alcançou grande penetração popular, embora com mistura de
cevada para atenuar o custo da Importação. O chá apenas dera entrada nos salões aristocráticos
e burgueses, ficando o povo ligado à tradição de infusões e tisanas muito para além da farma-
copeia ou das fórmulas de hervanários, estimulantes ou curativas.
Tudo isto não se encontra, nesta altura em inquéritos sociológicos que ninguém fez, mas
conclui-se de arquivos e da literatura, ou surpreende-se ainda na memória popular e nos costu-
mes tradicionais que sobrevivem à homogeneização que se difunde ameaçadoramente. É a
grande aventura da vida, diversa da situação paradisíaca raramente encontrada por Geógrafos,
quando descobrem, em ilhas do Pacífico, populações isentas do risco da fome. A dependência
de um clima inseguro e variável é condição natural do território português que sempre se ofe-
receu aos habitantes. Mesmo com o apoio de sistemas agrários evoluídos as colheitas consen-
tem apenas abundâncias primaveris, de que servem de exemplo as cerejas ou as favas, e fartu-
ras outonais em épocas de grandes safras, frutícolas e cerealíferas. Fazem parte de velhos cos-
tumes regionais os direitos de respigo ou de rebusco, ou de apropriação de tudo o que perma-
neça abandonado, para assegurar a boa gestão dos recursos disponíveis. Todavia, tais garantias
e liberdades não colmatavam a dureza dos invernos chuvosos, nem a severidade dos estios se-
cos, quando a carência dos alimentos se acrescentava à penúria de meios para ter acesso a
quaisquer mercados.
Embora a Economia Política liberal, se não sensibilizasse preferentemente com análises
de microsituações sociais, afigura-se notável o registo de um estudo laboratorial de «géneros
alimentícios» efectuado no Instituto Geral de Agricultura pelo Professor de Química, Ferreira
Lapa, no ano de 1873. O estudo intitulado «tabela e considerações acerca do regime alimentar
médio português» faculta a resposta técnica possível para a época, às preocupações pioneiras
do Director-Geral do Comércio e Indústria, Morais Soares, quanto ao «estado da nossa alimen-
tação pública média». Esta investigação, conduzido nesta época no Instituto Geral de Agricul-
tura, é tanto mais importante quanto será certo que as preocupações de serviços públicos e, su-
pomos também, de investigadores isolados são ocasionais ou pontuais e mais tardias. Em regra
as «fomes» eram sofridas em silêncio, quando se não transformavam em fermentos de tragédia
e de revolta.

O luso-tropicalismo em África

Com a Regeneração em pleno desenvolvimento, o luso-tropicalismo, entrado na Histó-


ria Universal depois do lançamento dos alicerces do Brasil, tentava sua sorte em África, onde
a presença portuguesa, desde Ceuta, apenas se firmava agora em praças fortes e, teimosamen-
te, em escassas amarras litorâneas. Apesar de tudo, a atitude que o País se via condenado a as-
sumir, no século XIX, em África, era bem diversa da tradição das «navegações e dos descobri-
mentos». Estava abandonado o Reino do Congo, ligado ao Reino de Portugal desde o início

349
dos «descobrimentos».
Tal tradição apagava-se perante o utilitarismo da expansão colonialista europeia, de bri-
tânicos, de franceses, de alemães, de holandeses e de belgas, com os quais era essencial com-
petir, para não perder um Mundo que foi, por força do destino, por portugueses «descoberto».
Todos este sonho de implantação de Civilizações autonómicas, alicerçadas na propagação da
Fé Cristã em simultânea expansão da cultura e do comércio, estava desfeito, em 1884, à mesa
da «Conferência de Berlim». Perdidas também se encontravam as sempre difíceis relações de
degradados e aventureiros com Monomotapas moçambicanos. Para além de tudo, a cultura e
cristianização ultramarina portuguesa ficara comprometida no século XVIII com o exílio da
Companhia de Jesus no período pombalino. Tudo se aprontava para confrontos políticos com
interesses britânicos, em simultâneo desenvolvimento de campanhas militares heróicas mas
desmedidas para os recursos nacionais e a instalação de comércios majestáticos, sob a forma
de Companhias e Concessões de enorme dimensão também. Em toda a Africa decorriam parti-
lhas territoriais alheias aos interesses dos autóctones, e demarcações de «propriedade» basea-
das em discutíveis direitos de «descoberta» e de «ocupação» dos «civilizados», o que deu ori-
gem a violências sem nome. No entanto, perdido o domínio dos mares, Portugal conservava,
no que respeita às Ciências Geográficas, capacidade de competição.
Em 1883 foi nomeada a Comissão de Cartografia que havia de dar origem à Junta de
Investigações Científicas do Ultramar, organismo ainda mantido com a designação actual de
Instituto de Investigação Científica Tropical. Assim, neo-exploradores de territórios mal co-
nhecidos, como Levingston, eram igualados por Serpa Pinto e outros que percorriam o interior
do continente africano em busca das nascentes dos grandes rios e das rotas do comércio e das
migrações de nómadas bantos guerreiros. Em 1884, Capelo e Ivens empreenderam a expedição
científica que os levou «de Angola à Contra-Costa» servindo de justificação ao «mapa cor de
rosa» que daria origem a uma das grandes contradições da multicentenária aliança inglesa: o
ultimato. Tudo isto corresponde ao relançamento do impulso ultramarino na segunda metade
do século XIX, desfigurado sob a forma de um colonialismo português, que seria breve, talha-
do à imagem do figurino imposto pelo industrialismo europeu. Todavia, Portugal, nos últimos
cem anos, não dispondo de indústria a solicitar mercados, mobilizou ainda energias bastantes
para radicar cultura europeia e língua portuguesa no solar de povos detentores, em regra, de
cultura tribal e sertaneja muito avançada, mas politicamente diminuídos por não disporem de
expressão escrita, encontrando-se divididos por múltiplos dialectos na expressão oral. Povos
que hoje constituem Nações Novas devem à presença portuguesa fronteiras segundo as quais,
até agora se autonomizaram, na complexa «balcanização» africana em curso de doloroso ajus-
tamento político, sócio-cultural e económico.
Em Portugal, instituições do Ensino Superior voltadas para a Ciência de Brotero, como
a Universidade de Coimbra e a Escola Politécnica de Lisboa, interessaram-se por Jardins Bo-
tânicos que lá vão resistindo à poluição e especulação urbana. Mas o Jardim Colonial foi ins-
talado apenas em 1906, com a criação de Cadeiras coloniais no Instituto de Agronomia e Vete-
rinária de Lisboa. Foi assim que, em tempo impressionantemente escasso, o Ensino Superior
Agrário preparou Técnicos que vieram a constituir valiosíssimo quadro de especialistas tropi-
cais, na Agronomia, na Silvicultura e na Medicina Veterinária. É particularmente notável o tra-

350
balho efectuado pelos referidos Técnicos nos âmbitos do conhecimento agrícola dos territórios
tropicais e da investigação científica ligada a problemas agrários locais. Mercê da sua acção,
as economias regionais assumiram novas proporções no que respeita à exportação de produtos
agrícolas, contribuindo do mesmo modo para a correcção dos regimes alimentares tradicionais,
recorrendo a técnicas de combate a pragas e de defesa contra os efeitos de endemias graves na
pecuária. Esta referência ao procurar assinalar a indiscutível presença de progresso técnico e
científico, não pretende esconder as limitações impostas ao progresso humano pelo sistema co-
lonial, quando se encontra, como era este o caso, implantado.

Caminho aberto ao latifundismo

Os Políticos, tanto Regeneradores como Progressistas, incluindo também os Republica-


nos, como se verá, assumiam a incapacidade de concepção e de lançamento de «reformas es-
truturais» que proporcionassem a modernização da agricultura. No consenso geral instalara-se
o vazio resultante do desencanto pelas conquistas efectivamente alcançados pela Revolução
Liberal, e generalizava-se o recurso a oportunismos proporcionados pelo descrédito nas
instituições que servem de apoio à arte de governar. A Revolução Liberal havia desmantelado,
apenas, e não substituído, os instrumentos tradicionais que regulavam a posse e o uso de bens
fundiários, num propósito de instalação de uma alodialidade sem limites, espécie de reacção
contra privilégios antes assegurados a escassa parcela das estruturas sociais. Efectivamente, a
propriedade tradicional assentava em dois pilares: por um lado, a defesa da indivisibilidade,
não só pela manutenção do património da Coroa, cuja importância variava em função das libe-
ralidades do Rei e da dureza das penas aplicadas aos actos de traição, como também dos coutos
das corporações de mão morta que impediam o fraccionamento ou concentravam legados pie-
dosos e, ainda, pelos vínculos que asseguravam o domínio, privilegiado e inalienável, dos mor-
gados; por outro lado, impedida a especulação fundiária pela inalienabilidade dos bens vincu-
lados, a alternativa para obter rendimento de vastos domínios era a enfiteuse. Esta permitia ao
senhorio manter o domínio directo cobrando anualmente o foro, beneficiando ainda do laudé-
mio nas transacções subsequentes, e facultava aos foreiros o acesso ao domínio útil, perpétuo
e transmissível, sem investimento de compra, apenas com o ónus de uma prestação anual em
géneros ou em dinheiro. A enfiteuse e a sub-enfiteuse constituíam, sem dúvida, um estímulo à
divisão fundiária do domínio útil que, a seu tempo, com as transformações da economia e da
vida social, daria lugar à posse plena ambicionada pelas comunidades camponesas. Em função
da procura das populações rurais, assim as parcelas de vastos domínios senhoriais vinculados
eram aforadas, com maior expansão onde a população crescia implantando novos casais na
terra tornada acessível. O sistema edificou o mundo rural e camponês do Norte e do Centro,
mas estiolou o do Sul, onde o deserto demográfico consentiu que o aforamento se fizesse com
a dimensão de herdades, ficando as courelas e ferregiais apenas confinados nos arredores das
aldeias concebidas como aglomerado de casas homogéneas, tal como homogénea era a socie-
dade rural.
Como em diferentes passos deste trabalho acentuámos, afigura-se mais do que evidente
o facto de, ao longo da história da agricultura, a conquista individual da terra concentrada em

351
vastos domínios senhoriais comportar duríssimas sujeições das populações que apenas dispu-
nham da força do trabalho. O feudalismo constitui a síntese de múltiplas situações caracteriza-
das por inimagináveis condições de servilismo. Todavia, na contratação social, o poder resva-
la, por vezes, de uns para outros dos intervenientes. Assim, o poder senhorial quanto ao solo
agrícola atenua-se quando os camponeses que procuram aplicar na terra o seu trabalho, encon-
tram alternativas que determinam o processo migratório no território nacional ou no mundo.
Quando uma população pode optar por perspectivas diversas das que o local do nascimento
oferece, torna-se naturalmente migrante, procurando libertação embora acabe, muitas vezes,
por cair noutras formas de servidão.
Esta referência pretende recordar que, nas vésperas da Revolução Liberal, o «feudalis-
mo» português constituía uma forma atenuada de esquemas de servidão da gleba tradicionais
na Europa. Assim, os Morgados nortenhos, ao lado dos Abades, dos Bacharéis e dos Boticá-
rios, meros convivas da mediania rural, quando procuravam melhorar a qualidade da existên-
cia, não conseguiam aforar parcelas dos seus vínculos por mais do que um par de galinhas
«que não fizessem pi nem cró», isto é, que não fossem frangas nem estivessem chocas, para
garantirem a qualidade da canja. É por isso que a ironia dos críticos das leis liberais, afirmava
que a libertação visava, afinal, apenas um «feudalismo de capoeira», inócuo e decadente. Mes-
mo no Sul latifundiário, os baldios davam sustentação e suporte a aldeias de Seareiros, donos
de juntas de bois e de parelhas de muares, e de Pastores que percorriam com seus rebanhos os
restos do «openfield» ainda não substituído por redutos privados em que se transformaram as
herdades, quando foi suprimido o compáscuo ou livre pastoreio.
No entanto, o problema essencial era o da existência de vastíssimos incultos possuídos
em moldes que asseguravam a indivisibilidade, bloqueando efectivamente o efeito dos meca-
nismos liberais de adaptação estrutural expontânea. Por isso, as leis de Mouzinho da Silveira
visavam a alodialidade que facilitava a consequente divisibilidade das terras concentradas, o
que liberalizaria a posse fundiária. Todavia, depois de nacionalizados os bens da Coroa e das
Corporações religiosas, o abalo desencadeado pela nova ordem foi tão grande que afastou os
idealistas sinceros e abriu terreno aos oportunistas interessados no saque do espólio e indife-
rentes quanto a soluções válidas para o futuro. Assim, o processo de liberalização da terra en-
traria em crise arrastada de incapacidade de ordenamento por meio de «reforma estrutural».
A desamortização colocou, finalmente, em praça os domínios das Corporações religio-
sas e da Coroa, transferindo em grande para a posse privada bens fundiários que ficaram, desta
vez, livres de qualquer restrição quanto à defesa da indivisibilidade. Em 1860 e em 1863 aca-
baram por ser extintos os Morgados e Capelas, enquanto o Código Civil consagrava a partilha
igual do património, limitando a enfiteuse e proibindo a subenfiteuse. Ficava, efectivamente,
a Terra transformada em objecto, considerada Capital Fundiário, dotado de valor de mercado,
servindo para investimento e especulação. Domínios antigos do Rei, de Donatários — Ordens
Religiosas ou Morgados e Titulares — tradicionalmente consignados a objectivos, praticados
ou não, de povoamento e de desenvolvimento, passaram a constituir o alicerce do Latifúndio
capitalista privado. Tais domínios, fora do alcance dos camponeses, passaram a ser governados
por novos Senhores. No círculo social dos Lavradores Alentejanos e Ribatejanos os nomes so-
nantes e aristocráticos que uns séculos antes tinham vindo do Norte, começavam a misturar-se

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com alcunhas nascidas das «searas» e do «pastoreio», ou dos negócios de feiras. Assim, os Do-
natários das terras e os Frades, depois de exautorados pelo liberalismo, foram substituídos pe-
los «Barões» que deram largo motivo a críticas quanto ao que viria a ser o reinado social dos
grandes detentores de fortunas que se apresentavam como escravos detentores do Dinheiro. De
nada serviu a doutrinação de Herculano ao afirmar que «o sistema da enfiteuse parcelária seja
o meio mais eficaz e talvez único de chamar as classes humildes à propriedade». Efectivamen-
te, a Regeneração no poder manteve-se indiferente à convicção do grande reformista da Revo-
lução Liberal: «a enfiteuse contrapõe-se do sistema dos latifúndios alodiais». Inibido do idea-
lismo indispensável para o lançamento de «reformas estruturais» o Fontismo abriu, efectiva-
mente, caminho ao «latifúndio» como suporte do capitalismo agrário a instalar-se no Sul.
Sem dúvida, a Revolução Liberal e a guerra civil haviam abalado de forma definitiva
estruturas sociais e económicas decadentes, até às mais recônditas aldeias. A legislação de
Mouzinho da Silveira não foi remendo a tapar buracos de acontecimentos da rua. Foi instru-
mento revolucionário lucidamente premeditado, de tal forma que mereceu a Almeida Garrett
a mais justa das avaliações: «seja qual for o ponto de vista de que se considerem, forme-se o
conceito que se formar delas, é inquestionável que as leis de 16 de Maio, de 30 de Julho e de
13 de Agosto de 1832 são um grande monumento, são o termo onde verdadeiramente acaba o
velho Portugal e onde começa o novo». No declínio da Regeneração com estradas e vias-fér-
reas, não restava dúvida que, embora suprimidos os maiores «vexames feudais» verberados
por Herculano e visados implacavelmente pela legislação de Mouzinho, subira ao trono o
«Capitalismo Agrário», perante o pasmo e o desencanto dos Camponeses. Ficara robustecido
o latifúndio, como nunca acontecera em Portugal agrário dos Reis absolutos que por vezes o
submetiam a «inquirições»; estava defraudado o baldio que facultava aos deserdados da fortu-
na, a viúvas e aos inválidos, terra não possuída mas livremente usada; fora suprimido o direito
das canadas e dos pastos comuns que assegurava aos camponeses do Sul o livre pastoreio nas
herdades não vedadas; instalara-se na matriz predial o Verbete que reconstituía tributos que pa-
reciam extintos.
A lúcida doutrinação de Herculano, as teses do genial reformista agrário, ficavam esma-
gados pelo destino dado às terras da Coroa e das Corporações Religiosas, nacionalizadas e de-
pois entregues a detentores da maior capacidade financeira destituídos da criatividade campo-
nesa de inspiração humana e ecológica. Perdiam-se no vazio do egoísmo colectivo e da incom-
preensão dos políticos as razões de Alexandre Herculano quanto à defesa do aforamento dos
latifúndios que, desde a primeira dinastia dos Reis Lavradores e Povoadores, sempre fora a gé-
nese da expansão e consolidação das estrutura familiares da propriedade camponesa. A Rege-
neração no poder, consolidada por força intelectual da doutrinação de Herculano, a justificar
a espada do Conde, Marquês e Duque de Saldanha, acabara por banir dos programas políticos
o reformismo agrário, desiludindo o doutrinador, condenado ao isolamento hostil ou desespe-
rado. Nestas condições, Fontes Pereira de Melo, arquitecto, sem dúvida, da modernidade ins-
trumental da vida portuguesa no limiar do século XX, apresentava no seu activo a atitude tec-
nocrática de privilegiar, para a agricultura, soluções que provocam apenas o seu arrastamento
no processo de crescimento económico, na insensibilidade quanto a exigências de desenvolvi-
mento social. A agricultura arrastada, crescia, sem dúvida, mas conservava as características

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de estrutura que. de há muito, geravam tensões sociais transformadas em sucessivos e fracassa-
dos limiares de Reforma Agrária. O Fontismo rasgara quilómetros de estradas, construíra qui-
lómetros de vias-férreas, instalara correios, telégrafos, gás, electricidade, enfim, meios de pro-
gresso material, em livre câmbio, indiferentes ao déficit da balança comercial e ao endivida-
mento externo. Para a agricultura o pior seria a expansão do latifúndio, porque o resto se resol-
veria com a ajuda de Deus, que se diverte a desvalorizar o Dinheiro, e do Povo que ia suportan-
do os impostos, participando na emigração que, nessa altura, abria diques e, pela remessa de
divisas, compensava, em milagroso fluxo de invisíveis, a angústia das dificuldades financeiras,
às quais os feiticeiros da administração pública já davam o nome de «crise».

Máquinas agrícolas e ferramentas

Veríssimo de Almeida, em crónica escrita para a Exposição Agrícola de 1884 afirma o


seguinte: «não vai longe a época em que a alfaia agrícola destinada à lavoura, era quase exclu-
sivamente de fabricação nacional. Caracterizava-se pela abundância de madeira e quase com-
pleta ausência de ferro; e tanto que a relha, única peça importante que daquele metal se vê no
arado, ainda hoje é conhecida como o simples nome de ferro do arado». Tudo o que constitui
hoje mostruário de museus etnográficos permitiu que Veríssimo de Almeida acentuasse que «o
carpinteiro da aldeia» resolvia todos os problemas da mecanização, concluindo com evidente
sentido das realidades, que o sistema «era primitivo, mas era fácil e barato».
Todavia o mercado começava a ser favorável à modernização dos equipamentos. Assim,
Veríssimo de Almeida ainda comenta: «se o mercado não fosse favorável, nem as casas cons-
trutoras estrangeiras teriam em Lisboa agências de máquinas». E mais adiante acrescentava
que nem a indústria nacional tentaria o fabrico de «verdadeiras imitações». De qualquer modo,
os agricultores portugueses, no fim do século XIX ainda dispunham do apoio eficaz do «car-
pinteiro da aldeia», mas tudo concorria para que a modernização dos equipamentos lhes não
permitisse que viessem a contar, depois, com a assistência de mecânicos da aldeia, acabando
por ver neutralizada a auto-suficiência tradicional.
Nos campos todo o movimento provinha do trabalho humano e da tracção animal. O
motor inanimado que se inventou primeiro foi, como vimos, o de vapor. Tão grande era a im-
portância da agricultura no século XIX que, no momento em que o vapor ainda se aprontava
para o arranque da industrialização em grandes espaços do Mundo, facultou, de forma pioneira
o uso da locomovei na agricultura, que accionava especialmente mecanismos de colheita, co-
mo as debulhadoras de cereais. Quanto às lavouras as crónicas da Exposição referem que, em
1884 «já em três pontos do país se observa a lavoura a vapor». Tudo se encontrava, nessa altu-
ra, no limiar de grande transformação tecnológica progressiva porque, em 1886, Benz obteve
a primeira patente de motor para automóvel a gasolina. A realidade, porém, reduzia-se à con-
dição de, para além da grande inovação do caminho-de-ferro, os transportes e a tracção cons-
tituíam o domínio do «motor vivo» que tinha de ser bem alimentado e tecnicamente assistido
e mantido. Os animais «de tiro» e «de sela» tinham de ser cuidadosamente ferrados, o que jus-
tifica a importância dada na Exposição aos equipamentos designados «Ferragens — ferraduras
e cravos». Recebeu medalha de prata a colecção apresentada por João Pedro Corrêa, de 32 fer-

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raduras para equídeos e bovídeos «de tipos e fins diversos, higiénicas, correctivas e patológi-
cas». Indústria que apoiava os ferradores de aldeia, hoje praticamente extinta, estaria entregue
aos cuidados técnicos do laureado que era «um dos Veterinários clínicos mais considerados»
e tinha sido o primeiro chefe do serviço siderotécnico do Instituto Geral de Agricultura. O Ins-
tituto apresentou também uma colecção de ferraduras e «diversos instrumentos e utensílios
empregados na ferração dos animais». Recebeu medalha de cobre o representante da fábrica
Uddeholms Ahticbolag, da Suécia, pela sua colecção de cravos para a ferração de equídeos.
Segundo descrições, o cravo sueco era inoxidável e consentia grande economia de tempo na
ferração, porque «não precisava de ser atarracado» e daí a sua vantagem económica na oficina
da aldeia, na exploração agrícola, e nas estradas percorridas pelas Diligências, Mala-Posta,
carroças, galeras, tréns e animais de sela e de carga.

A Agricultura e a Instrução sem Ministérios

No decurso do século XIX, a Agricultura, embora constituísse actividade dominante,


não contava com o apoio de um Ministério que zelasse especificamente pelos seus negócios.
Nunca o tivera ou, talvez, desde D. Dinis que além de ser Rei foi «Lavrador». O Ministério
que lhe dava governo era o das Obras Públicas, Comércio e Indústria. A Direcção-Geral por
onde corriam negócios agrícolas era a do Comércio. Embora se afigure extravagante esta situa-
ção num país reconhecido como «essencialmente agrícola», sucedia que outros domínios, sem
dúvida importantes, também não tinham Ministérios. É o caso da Instrução. A Regeneração,
ou melhor, o Fontismo, também não deu à Instrução categoria de Ministério. Durante séculos
a Instrução era matéria da Universidade de Coimbra e. Pombal, quando retirou à Companhia
de Jesus a direcção do ensino público, localizou-o na Real Mesa Censória. Sem Ministério
continuou ficando até que D. António da Costa, em 1868, defendeu nos seus escritos a «neces-
sidade de um Ministério de Instrução Pública» com o que o Fontismo não concordava. Porém,
um Governo ditatorial de Saldanha que durou 69 dias, em 1870, transformou D. António da
Costa no que julgamos ter sido o primeiro e um dos mais efémeros Ministros da Instrução Pú-
blica. Depois, o complexo mecanismo do Ensino, que hoje dispõe da burocracia mais povoada
e de vultoso encargo orçamental, continuou partilhado pelos Ministérios do Interior que trata-
va de problemas genéricos nos diferentes graus de ensino, das Obras Públicas que zelava pelos
edifícios, do Fomento que se ocupava de Escolas do Comércio, da Agricultura e da Veterinária,
da Guerra que cuidava da engenharia, das ciências politécnicas e das carreiras militares. A au-
sência de Ministérios específicos para a Agricultura e para a Instrução não significava porém
alheamento da vida colectiva em relação a estes dois grandes e fundamentais domínios das ac-
tividades económicas e sociais. A Agricultura dispunha da sua orgânica estrutural e submetia-
-se à dinâmica dos mecanismos do mercado, através da actividade contratual no trabalho e nas
transacções nas feiras. As ordenações governamentais, as modificações, as leis, os decretos, os
regulamentos e as normas, obrigavam os agricultores ou vinham em seu socorro, sem que se
averiguasse o foco de onde partiam. Quanto aos mecanismos da Instrução a Agricultura, como
o Comércio e a Indústria dispunham do seu sistema de difusão de conhecimentos, difusão que
se operava ao ritmo imposto pela natureza dos canais por onde as inovações caminhavam, sen-

355
do adaptadas ou rejeitadas, conforme as circunstâncias. Nas unidades de produção, no comér-
cio ou na indústria artesanal, estava presente o «Mestre», ou o «Chefe de Família», conhecedor
da rotina do ofício e os «aprendizes» que penosamente se especializavam ascendendo a «ofi-
ciais» na carreira profissional. A Instrução tinha assim ambientes próprios, familiares ou ofici-
nais, e tanto podia passar de pai a filho, como assumir forma colegial mais alargada. Nas estru-
turas do trabalho o ofício assimilava as rotinas técnicas. Em outros domínios culturais a Ins-
trução era, sem dúvida, elitista, contemplando apenas alguns privilegiados, em Coimbra. A
Agricultura era o quotidiano da vida, o trivial. Era a paisagem, o movimento para além do ter-
mo ou do arrabalde urbano. Para muitos constituía o berço e a campa, quando se não desenrai-
zavam e, para todos, sem o avaliarem, era, pelo menos, o sustentáculo do metabolismo da vida
biológica, à hora das refeições.

A perspectiva internacional

Portugal vivia, mesmo sem o querer, a permanente e dolorosa memória de problemas


de vizinhança com Espanha confinados em renovadas hipóteses de «união ibérica». Contem-
plava a consolidação do pan-americanismo de Monroe — «a América para os americanos» —
e sofria as perturbações na Europa resultantes do expansionismo germânico.
Alguns políticos e intelectuais ibéricos, insensíveis à indiferença popular, alimentavam
propósitos federalistas. Escolhiam a via da história comum, antes do Conde D. Henrique, ou a
argumentação tecnocrática, de forma a promover que um pequeno espaço peninsular indepen-
dente deixasse de oferecer «insólita» resistência ao domínio de Castela. Tal como em Portugal,
Espanha processava os efeitos da Revolução Francesa, todavia agravados pelas guerras colo-
niais americanas e da sucessão de Fernando VII. Nas vésperas da morte do Monarca, legisla-
ção inovadora tornara herdeira sua filha Isabel, sob contestação de Carlos, seu Tio, que, invo-
cando a Lei tradicional que lhe daria o Trono, se exilou em Portugal. Na menoridade de Isabel
foi Regente sua Mãe Maria Cristina de tendências liberais, o que reacendeu as lutas entre libe-
rais ou «cristinos» e realistas ou «carlistas». A Revolução de Setembro, obrigando Isabel II a
refugiar-se em França, deixou a Espanha sem Rei, embora a Constituição de 1869 permane-
cesse monárquica. Os políticos, procurando um Rei, sugeriram D. Fernando, viúvo de D. Ma-
ria II, ou mesmo seu filho D. Luís I Rei de Portugal. Perante o nulo entusiasmo por parte destes
dois «candidatos» os negociadores espanhóis abordaram sem êxito Leopoldo de Hohenzollern
e Amadeu de Sabóia. Todavia em 1870, Isabel II abdicou em seu filho Afonso que, em 1875,
desembarcou em Espanha assumindo o comando da luta contra os «carlistas». Estes aconteci-
mentos despertaram, sem dúvida, sonhos de «união ibérica», embora o Povo se mantivesse
tranquilo e confiante. De qualquer modo, cada País peninsular independente tinha seu Rei que,
reciprocamente, se visitavam em cortesias bastantes. Em 1882, Afonso XII veio a Lisboa e, em
1883, D. Luís I retribuiu, indo a Madrid.
Nas terras «descobertas» por Colombo, feita a assimilação de emigrantes predominan-
temente europeus, e sem a integrarão de índios autóctones e africanos negros escravizados, a
guerra da independência havia posto termo ao domínio colonial britânico. Embora com estas
restrições fundamentais, a Constituição dos Estados Unidos da América apresentou-se ao

356
Mundo como um evento historicamente contemporâneo da Revolução Francesa, o que se afi-
gura notável. As colónias espanholas alcançariam, depois de lutas violentas, a independência.
Portugal, mais afortunado pela presença da Família Real no Brasil, encontrou a via de uma
«descolonização» original, assistindo à aclamação de um Imperador na pessoa de um Príncipe
português que não obteve depois o uso simultâneo da Coroa de Portugal que, por direito, viria
a herdar. Nos Estados Unidos da América a independência não resultou pacífica e a nova Na-
ção federada logo se confrontou na guerra da Secessão que opôs o Sul esclavagista ao Norte
industrial e abolicionista. Também o avanço dos colonos em direcção ao Oeste, acabou por es-
magar a resistência dos índios, confinados a escassíssimas «reservas». Todo este drama da
aculturação sócio-política do Yankee conduziria ao isolamento dos Estados Unidos da Améri-
ca, face à evolução política da Europa. Todavia, a economia americana que no período colo-
nial sustentara a riqueza de poderosíssimos Impérios voltou-se contra os antigos Senhores,
pronta a concorrer de forma agressiva no mercado mundial, especialmente de cereais. A oferta
de produtos obtidos em novas condições de produtividade, provocou profundas alterações nos
sistemas arcaicos em que se apoiava a agricultura europeia, incapaz de competir quanto a pre-
ços. Na Europa, sob as ruínas do sonho napoleónico, havia de nascer o predomínio prussiano.
Perante a neutralidade de velhos Impérios decadentes, a Prússia acabaria por esmagar a Fran-
ça, na guerra de 1870. As consequências do confronto franco-prussiano, desenrolado perante
a indiferência, britânica, russa e austríaca, dominaria as preocupações portuguesas de há um
século no quadro internacional. João de Andrade Corvo, Professor de Ciências Económico-
-agrárias e Sociais no Instituto Geral de Agricultura, escrevia em «Perigos» o seguinte: «Qual-
quer que seja o resultado último da luta corpo a corpo das duas grandes nações, não pode ela
deixar de ser já um desses sucessos que abalam profundamente o mundo civilizado, que trans-
forma o modo de ser da Europa, e abrem mais ou menos imediatamente um período novo na
história. As origens remotas e próximas do conflito; as questões a que a guerra vai talvez dar
uma solução; o carácter desastradamente violento e sanguinário das batalhas, resultado das no-
vas armas; os revezes da França verdadeiramente assombrosos; a queda do Império e a procla-
mação da República; e, mais ainda, essa agitação dos povos, essa fermentação das paixões, es-
sa dolorosa elaboração das ideias democráticas — falseadas pela demagogia — que se observa
mesmo no meio do fragor dos combates; tudo está mostrando que uma nova era de provação
e de angústia se vai abrir para a Europa». Esta visão profética de Andrade Corvo seria comple-
tada com o enunciado de uma esperança firme que, apesar de tudo o que sucedeu depois, per-
manece ainda viva: «A luz virá mais tarde dissipar as trevas dessa cerração que acompanha a
tormenta; a liberdade, a justiça, a razão acabarão por vencer e salvar a Humanidade. Mas antes:
quantos perigos ameaçam a civilização? Quantas tiranias, quantas violências virão pesar sobre
as nações? Quantas lutas cegas e bárbaras farão correr em rios caudais o sangue dos povos?
Por que transformações arbitrárias passará a Europa? De quantos reinos, talvez, ficará unica-
mente o nome na História, para recordar um grande desastre ou memorar uma atroz injusti-
ça?».

357
43 — O RURALISMO TRIUNFANTE

Na preocupação de Homens geniais que o século XIX viu nascer em Portugal encontra-
-se a constante de acompanhar tudo o que de belo, forte e, sem dúvida, imensamente exacto,
o mundo rural esconde e guarda.

Herculano e Camilo. Vale de Lobos e S. Miguel de Seide

Desde 1877 que, no cemitério de Azóia de Baixo, em «campa da Misericórdia», Hercu-


lano repousava. Tinham que decorrer onze longos anos para chegar a consagração nacional,
nos Jerónimos.
Entretanto, os rurais da Azóia, como preito de saudade e de gratidão, cobriam com ra-
mos de oliveira a sepultura de seu irmão-camponês. Este gesto demonstra a integrarão rural de
quem viera da Cidade, à procura do Campo, sem título algum, nem Comenda ou, sequer. Ba-
charelato de Coimbra, que justificasse o tratamento de «Senhor Doutor». De capote, ou «gabão
de picotilho», podava a vinha e, nas fainas do lagar, assistia ao decantar do azeite seguindo
amorosamente preceitos de Ferreira Lapa, seu Amigo e «professor». Discutia o tempo, as pra-
gas, o comércio, os impostos, as maleitas de familiares e amigos, as preocupações aldeãs. Nas
pausas do trabalho de escritor, que teria sido o principal motivo do seu refúgio, contemplava
os horizontes, até ao infinito, na mágoa de quem julgou, a mensagem liberal, para sempre
atraiçoada.
Talvez, os camponeses da Azóia tivessem entendido, melhor do que ninguém, aquela
presença em seu mundo, que fez de Vale de Lobos símbolo de retorno a raízes abandonadas,
mas não traídas.
Por esta altura, Camilo, em dificuldades financeiras, levava a leilão a biblioteca privada,
de mais de 4.500 volumes. Ana Plácido estava gravemente enferma, os filhos amarguravam-
-no, morrera-lhe uma neta: «a morte da minha neta dessangrou-me todas as lágrimas». Vai
aceitar o título de Visconde de Correia Botelho, sendo dispensado do «pagamento dos emo-
lumentos e direitos legais de mercê e selo de viscondado». Tudo se encaminha para que o pro-
digioso intérprete da vida rural e camponesa das «Novelas do Minho», cego e pobre, nem pos-
sa encontrar conforto no verde refúgio da mansão de S. Miguel de Seide, hoje museu. Da ja-
nela, os olhos doentes de Camilo ou, por eles, o coração exausto, não podiam ver nos campos
a promessa do milho nascediço, disputando a leiva às ervas concorrentes, pedindo sacho que
vale mais do que a rega. Estava escrito que o dia trágico de 1 de Junho de 1890 havia de ama-
nhecer.

O ruralismo na Literatura e na Arte

Para além de simples profissão, a agricultura não é somente sustento, muito menos co-
mércio, ou produção industrial programada. A agricultura é vida, é mecanismo biológico, ex-

359
pontâneo, em constante actividade. Esta certeza coloca a rotina agrária em constelação multi-
disciplinar perante a Ciência, situa as estruturas camponesas em versão específica face à Lite-
ratura e oferece na paisagem rural o desafio para as mais autênticas e audazes das interpreta-
ções das Artes. Sempre assim foi e não admira que a «geração de 70», em criações originais
de influências de Renan, Michelet, Vítor Hugo ou Balzac, nos tivesse legado páginas imortais
do ruralismo de sempre. Esta descoberta do mundo agrário tinha antecedentes próximos no
«Pároco da Aldeia», de Herculano, em «Viagens na Minha Terra», de Garrett, nos romances
de Júlio Dinis ou nas «Novelas do Minho», de Camilo, por exemplo. A «geração de 70» have-
ria de nos dar o confronto de opções, hoje vulgarizado por ecologistas, que «A Cidade e as Ser-
ras», de Eça de Queirós oferece; o convite à etnografia, ao folclore e à paisagem para que se
submetam ao ritmo da Europa que «As Farpas», de Ramalho Ortigão proporcionam; a anato-
mia científica do mundo rural minhoto que a «Comédia do Campo», de Teixeira de Queirós
representa; «A Província» que Oliveira Martins usou como ferramenta política. Facilmente se
entende que, para além da interpretação literária do dramatismo da vida rural, o Campo tendes-
se a ser instrumentalizado na esteira de finalidades ideológicas ou de sujeições sectárias. As-
sim haveria de suceder em muito do que veio a representar a «crítica social» contemporânea.
Todavia, tal discurso deslizante pôde, nesta época, assumir expressões inconfundíveis, e fir-
mes, de testemunho da vida campesina dotada da mais pura das genuinidades artísticas.
Para além da Literatura, a Arte teria também «destino social» camponês. Depois das
Conferências do Casino, quando o romantismo cedeu o lugar ao realismo, Ramalho Ortigão
enaltecia o «Enterro na Aldeia», de Bordalo Pinheiro, como expressão de mensagem moderna.
Silva Porto imortalizara «A Charneca de Belas», a «Seara» e a «Salmeja» e Malhoa a «Seara
Invadida» e o «Viático ao Termo». Columbano pintava o «Grupo do Leão» e, pouco antes, Ra-
fael Bordalo Pinheiro inventava o «Zé Povinho». Como refere José-Augusto França, no termo
da Regeneração, «Zé Povinho» entregava, esquelético, a pele ao Fontes, para pagamento do
«último imposto» na presença insegura de El-Rei e, atenta, do seu «Comandante Municipal, o
Macedo-berloque», de espada. Por esta altura também o «passeio público» de Lisboa, de gran-
des tradições burguesas, deu lugar à Avenida da Liberdade, para desafogo da Baixa pombalina,
com protesto saudosista de janotas ou peraltas e também de Ramalho Ortigão, n'«As Farpas».
As ligações da agricultura com a vida nacional no século XIX, no que respeita especialmente
às manifestações artísticas, são extremamente complexas. No entanto, encontram-se lapidar-
mente interpretadas por José-Augusto França, de cuja síntese, com a maior consideração nos
socorremos: «nos costumes rurais devemos, todavia, deter-nos para o entendimento mais glo-
bal da odisseia rústica nacional que Malhoa pintou (Fialho), e vemos então encadear-se uma
série enorme de quadros, num discurso contínuo, que informa sobre os trabalhos e os dramas
do campo, as suas alegrias meio pagãs, as suas tristezas sentimentais ou oriundas das suas mi-
sérias endémicas». Noutro trabalho recente, José-Augusto França conclui de uma forma que
melhor seria não fosse profética: «a diferença está em que, de 1870 para 1900-1930, o compro-
misso urbano se acentuou e, com ele, a incapacidade de o assumir. A um terço do século XX,
porém, a cidade será inevitável — e o mundo rural de Malhoa, solarmente idealizado, mas do-
cumentado também no seu dramatismo humano, foi o último sobressalto de citadinos ainda de
próxima raiz rústica, nostálgicos dela e aterrorizados por um futuro urbanizado».

360
A Exposição Agrícola de 1884, na Tapada da Ajuda, em Lisboa

A Junta Geral do Distrito de Lisboa, em 26 de Maio de 1882, resolveu promover uma


Exposição Agrícola. O certame ficou previsto para 1883 mas, em virtude da complexidade das
obras, acabou por ser adiado para 1884. A Revista da Exposição acrescenta que, «para obter
completo êxito», a Junta procurou «apoio moral» da Real Associação Central da Agricultura
Portuguesa e do Governo. Embora a participação financeira da Junta fosse importante, o Go-
verno suportou a maior parte das despesas tomando a seu cargo a construção dos edifícios prin-
cipais. De acordo com o regulamento, a direcção da Exposição foi entregue à Real Associação
Central da Agricultura Portuguesa, tendo sido considerados oito temas: o primeiro foi dedica-
do à viticultura; o segundo respeitava aos produtos alimentares, seguindo-se o terceiro referen-
te a animais domésticos; os equipamentos da agricultura ficavam incluídos no quarto tema dos
motores e máquinas agrícolas e no quinto, os adubos; o sexto tema era o das construções ru-
rais, figurando, no sétimo, a cultura florestal. Em último lugar, dada a sua importância, cons-
tava o oitavo, tema respeitante à instrução agrícola.
A Exposição foi aberta não somente a concorrentes do Distrito de Lisboa, como também
aos de outros distritos e do estrangeiro. Os serviços públicos reconheceram o interesse nacio-
nal do empreendimento, sendo gratuito o transporte de géneros e de gados expostos e a deslo-
cação de expositores nos caminhos-de-ferro do Estado, tendo redução de 50 por cento nas con-
cessionárias. Era gratuita a correspondência postal trocada com a comissão executiva da Expo-
sição.
O regulamento atribuiu grande importância ao mostruário de vinhos, à presença de efec-
tivos pecuários, e ao maquinismo agrícola e industrial-agrícola nacional e estrangeiro. Insis-
tindo no carácter positivo e prático da Exposição, o Regulamento previa ensaios de todos os
equipamentos expostos.
Na ideia dos promotores tratava-se do que consideravam a terceira exposição agrícola
de Lisboa. A primeira realizara-se em 1852, em condições precárias, debaixo das arcadas do
Terreiro do Paço, e a segunda em 1864, no Campo das Freiras, mais amplo, em Belém. Como
local para a nova Exposição, D. Luís ofereceu a Real Tapada da Ajuda que, nessa altura, era
administração agro-florestal da Casa Real desde que, em 1841, ficara extinta a caça. A Tapada
não servia somente de recinto venatório. No «alto da casa branca» existira o «antigo observa-
tório» e, em 1861, D. Pedro V inaugurou, no sítio chamado da «eira velha» as obras do novo
observatório astronómico que começou a funcionar em 1878 e se mantém em actividade. Nes-
sa altura a Tapada já era santuário da natureza situado no antigo concelho «rural» de Belém,
na vizinhança de velhas zonas urbanizadas de Lisboa, como Alcântara. Os cronistas da época
referem que «a população ávida de ar puro e oxigenado... ali concorre a gozar as belezas ex-
cepcionais do sítio».
A Tapada da Ajuda iria servir de cenário à versão portuguesa das grandes exposições
europeias da época. Era o caso da Exposição do Palácio de Cristal de Londres, de 1865, do
Champs de Mars de Paris, de 1867, ou do Trocadero, de 1878. O magnífico Pavilhão agora
restaurado, da autoria do Arquitecto Pedro de Ávila, é o testemunho material que chegou aos
nossos tempos, tendo sido demolidas outras construções provisórias.

361
Sem dúvida a Exposição Agrícola de 1884 foi mostruário de produtos agrícolas, incenti-
vo à elaboração de estudos técnicos e informativos, ponto de encontro de responsáveis da vida
intelectual, económica e política. Concebida para revelar à Cidade o Campo, vencendo com-
plexos de isolamento e situações de mútuo afastamento, não teria alcançado completamente tal
finalidade. Tão grande era a distância e, na ausência de comunicação social eficaz, o certame
não teria, apesar de todos os esforços, logrado diminuir, sequer, o fosso que separava a Vila
Urbana da Vida Rural.
Não esteve aqui, na Tapada, o «minhoto» que o Visconde Vilarinho de S. Romão afirma
ser «o melhor habitante do país, pela sua doçura, jovialidade, frugalidade e valentia, a ele de-
vendo seus êxitos as revoluções nacionais, e os partidos sua força à atitude da população do
Norte». Aqui também não vieram os «ratinhos — beirões, estremenhos, algarvios — que, esta-
cionalmente, dos seus refúgios baixavam sobre o Alentejo, nas ceifas. José da Silva Pição des-
creve-os: «parecem simplórios mas não o são. A ingenuidade boçal que apresentam é a másca-
ra com que procuram ocultar a perspicácia. Perspicácia e malícia bem notória, embora a quei-
ram disfarçar com as doçuras do palavreado». Do mesmo modo não vieram os «sem-terra»
alentejanos, proletários descendentes, sem o saberem, de camponeses romanos, árabes, medie-
vais. Nas aldeias-dormitório onde os confinaram, aprontavam-se, nessa altura, para viverem o
sonho empresarial dos «seareiros». Mas, depois de romperem os matagais do Sul, veriam, na
«planície heróica», o seu esforço por outrém apropriado.
Efectivamente, esteve ausente na Exposição, até mesmo a imagem do vigoroso sócio-
sistema agrário do mundo rural português, de riquíssimo conteúdo ecológico e dramático, com
sua gente a pisar trilhos de caminhos paralelos; caminhos diversos das séries cronológicas
quantificadas dos valores estatísticos, diferentes das avenidas onde desfilam figuras sócio-eco-
nómicas estereotipadas, distintos dos relatórios convencionais do tecnicismo burocrático. Ca-
minhos paralelos que sempre foram veredas de refúgio da vida campestre e serrana ameaça-
da. Vida que fica à margem dos acontecimentos citadinos — revoluções ou festas — por insen-
sibilidade e ignorância do mundo urbano e por instintiva reacção dos rurais, consciente, caute-
lar e manobrada como arma de resistência, ou de defesa da aliança natural entre a Terra — re-
dentora e o Homem — humano. Não estavam presentes estes valores sociais e históricos no
dia 4 de Maio de 1884. Não nos admiremos. Ao fim de um século de luta, de sofrimento e de
esperança, o que resta de um mundo rural abandonado também não poderia estar presente na
Tapada, naquele lugar, agora.
No dia 4 de Maio de 1884, na Real Tapada da Ajuda, El-Rei D. Luís inaugurava a Expo-
sição Agrícola de Lisboa. A sua chegada o hino real foi musicado por duas bandas; uma de um
regimento de infantaria e, outra, do colégio de «regentes agrícolas» da quinta regional de Sin-
tra.
Estavam presentes, D. Fernando, Presidente de Honra da Exposição, a Família Real e
figuras proeminentes da política, tendo à frente Fontes Pereira de Melo, Presidente do Conse-
lho de Ministros, Hintze Ribeiro, Ministro da Fazenda, António Augusto de Aguiar, Ministro
das Obras Públicas. Figuravam aristocratas de nome e tradição, titulares, tais como poucos Du-
ques ou Marqueses, alguns Condes, muitos Viscondes e Barões, como era típico da sociedade
«democraticamente fidalga» assinalada pelos cronistas da época. Finalmente viam-se Profes-

362
sores do Instituto Geral de Agricultura, Agrónomos, Silvicultores, Veterinários, Doutores de
Coimbra ou Bacharéis, Cirurgiões, Militares, Comendadores, Escritores, Lavradores, Finan-
ceiros, Expositores, Maiorais, Tratadores do Gado e espectadores anónimos. Diluíam-se na
multidão os Estudantes, que não passavam de escassíssimas dezenas.
D. Fernando, Presidente de Honra da Grande Comissão da Exposição, ao jeito de artis-
ta, pronunciou o discurso inaugural: «(...) sempre pensei e penso, que a agricultura e o seu
aperfeiçoamento devem ser um dos nossos primeiros e desvelados cuidados». Depois, funcio-
nalmente, o Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em nome de D. Luís, deu a
Exposição por inaugurada. Diz a Revista da Exposição Agrícola que foi o «director do comér-
cio e indústria», quem deu «cientificamente as explicações do estilo» ao grupo inaugurante.
O Instituto Geral de Agricultura não estava ainda instalado na Tapada da Ajuda, mas
prestou ao certame a mais efectiva e dedicada das colaborações. No dia da inauguração, na Re-
vista, João Inácio Ferreira Lapa, diplomado pela antiga Escola Veterinária Militar e, então,
prestigioso Director do Instituto Geral de Agricultura, de que era Professor de Química e Tec-
nologia, «Mestre dos Agrónomos portugueses», escrevia: «Inaugura-se uma exposição do tra-
balho, tão nobre e doce quanto rude e fadigoso, com que o homem abençoado pelo seu creador
e com ele associado prepara as primeiras condições de vida, o seu sustento, e o seu agasalho».
Traduzindo, talvez, a posição do Instituto Geral de Agricultura face à atitude dominante
quanto ao problema agrário nacional. Ferreira Lapa, baseado na história da agricultura, subs-
creve vigoroso comentário: «a agricultura era o boi gordo das festas carnavalescas» (...) «mui-
to adornada e vistoriada para o sacrifício sangrento». Depois, recordando um passado que tei-
mava em ser presente e que se instalou no futuro, acentuava: «Foi na verdade um longo viver
de agonias para a agricultura» e, ao gosto da época romântica que não deixava de influir na li-
teratura técnica, insistia (...) «que agrilhoou o espírito, encandeou a razão, algemou o pensa-
mento, tolheu todas as faculdades, calcou todos os direitos do homem livre» (...) «cevando no
seu corpo extenuado a fúria insana da bronca ignorância e da cruel perversidade». Depois, Fer-
reira Lapa encontrava ainda nas reservas sentimentais de cientista dedicado à causa agrária, a
ingenuidade bastante, feita de esperança, para concluir: «Afagamos a ideia que da exposição
poderá enfim sair um apelo a todos os homens de valor, soltar-se da sua eloquente mudez a pa-
lavra que gravará uma data gloriosa nos destinos da nação, palavra que seria a legenda de uma
nova fórmula de administração: a regeneração económica pela regeneração agrícola». No en-
tanto, a Regeneração que, periodicamente, vem à superfície da política portuguesa, personifi-
cada, nesta altura, pelo Fontismo, esperança e voto de Ferreira Lapa, estava prestes a afundar-
-se ingloriamente.
Fontes Pereira de Meio, ainda presente na inauguração do certame agrícola, viria a fale-
cer passado três anos. Mas, para além desta circunstância irremovível, o ministério que chefia-
va sobrevivia a custo, no rotativismo, perante a contestação dos Progressistas, aos quais Oli-
veira Martins emprestava a força de argumentação demolidora. Oliveira Martins encontrava
alicerces para a luta política na «Província», na vida rural estagnada, na agricultura abandona-
da: «somos democratas porque 1820, 1836, 1846 foram obra do povo levantando-se contra a
gente anafada e cheia de oligarquia burocrática da capital — os desembargadores dos tempos
antigos, os chamorros e devoristas, de 1835, os cabralistas de 1846 — a todos os quais suce-

363
deram hoje em dia, os fontistas. E somos progressistas porque os homens que fizeram a revolu-
ção de Setembro eram continuadores dos vintistas, primeiros democratas portugueses, e tive-
ram por sucessores os valentes de 1836 e de 1846. Somos filhos genuínos dos patuleias». Efec-
tivamente, podemos entender que os patuleias talvez tivessem sido, quem sabe, se a derradeira
das explosões do ruralismo em fúria.

Jaime Batalha Reis, Professor de Agronomia

O Instituto Geral de Agricultura viu o seu Corpo Docente valorizado com a nomeação
de um Professor, o Agrónomo recém-formado Jaime Batalha Reis. O novo Docente, nomeado
para a Cadeira de Fitopatologia, acabou por substituir João de Andrade Corvo nos seus impe-
dimentos, na regência das Disciplinas de Economia, asseguradas desde a criação do Instituto
Agrícola em 1852. A posição do jovem Professor não seria fácil, como sucede em regra no âm-
bito desta especialidade. É o próprio Batalha Reis quem define, ironicamente, a paisagem po-
lítica da época:
«havia já então em Lisboa e em Portugal muitos descontentes políticos: Médicos, Pro-
fessores de Escolas, Literatos, alguns Empregados públicos pensavam no modo de interromper
fundamentalmente a série banal constituída por um «fontes» permanente e "braam"bispos de
camps", Viseu", e "ávilas" variáveis, todos de acordo em manter os mesmos deficits, e em re-
petir os mesmos empréstimos. Havia então já, também, sem dúvida, muitos rapazes novos,
mas eminentemente práticos, que desde os 18 anos aspiravam generosamente a ter um Partido
político, e a ser, em sucessivas fases de dedicação patriótica, administradores de Concelho, de-
putados influentes, oradores imaginosos e ministros argutos. Mas havia, ainda, uma mocidade
alimentada, pelo idealismo das revoluções francesas de 89 e de 48 que só podia interessar-se
pela política, se ela se manifestasse em movimentos apaixonados e pitorescos. Para esta última
os Estadistas portugueses eram sobretudo odiosos pela sua extensa mediocridade literária, pela
sua enfática nulidade retórica, e pela sua absoluta chateza artística. Estes visionários descon-
tentes de uma política, com efeito, sem finanças, mas escandalosamente sem estética, reuniam-
-se em diferentes cafés, em tipografias de jornais pouco lidos, e em lojas maçónicas empres-
tadas, e discutiam, vagamente, toda a sorte de ideais políticos e administrativos. Em torno dos
ingénuos grupavam-se os especuladores e os espiões (como muitas vezes soubemos) dos dife-
rentes Partidos da Política oficial.»
Efectivamente, as atenções políticas agitavam-se, no sentimento popular, pelo efeito an-
gustiante da Comuna de Paris e, entre os intelectuais, sob influência do Socialismo utópico de
Proudhon, tudo transposto para a rua nos esforços de Fontana a despertar e a sustentar o movi-
mento operário. Um grupo de intelectuais reunidos em torno de Antero de Quental decidiu, em
1871, promover uma série de «Conferências Democráticas» no Casino Lisbonense. A iniciati-
va foi um êxito mas, uma vez escutadas com entusiasmo as intervenções de Antero de Quental,
Augusto Soromenho, Eça de Queirós e Adolfo Coelho, o Governo do Marquês, que viria a ser
Duque, de Ávila e Bolama, resolveu suspender a série anunciada. Ficava, assim, o público pri-
vado de ouvir «Os historiadores críticos de Jesus», de Salomão Saragga e o «Socialismo», de
Jaime Batalha Reis, bem como as intervenções não programadas de Manuel de Arriaga, Teófi-

364
lo Braga, Oliveira Martins, Vieira Meyreles e Guilherme de Azevedo. A proibição assumiu as
proporções de escândalo anti-constitucional, mas foi irrevogável.
Sucedeu, porém, o que pretendemos destacar neste relato, que Jaime Batalha Reis, se-
gundo refere num dos seus escritos, decidiu proferir «exactamente a mesma Conferência que
o Marquês de Avila proibira no Casino» numa das primeiras Lições de Professor do Instituto
Geral de Agricultura. Se alcançarmos visionar um pequeno grupo de Estudantes de Agrono-
mia, porventura atentos e certamente surpreendidos, podemos concluir que no velho Instituto,
ainda na Quinta da Bemposta, uma Aula curricular proporcionou o direito de ouvir o pensa-
mento de um Professor sobre tema vivo, escaldante e controverso. Quanto a esse pensamento.
Batalha Reis confessa:
«foi Antero de Quental quem, quando o conheci — tinha eu uns 19 anos —, me fez ler
Proudhon e me sujeitou por algum tempo à influência do indubitavelmente grande escritor e
incomparável polemista. Quando, entretanto, eu me propunha a falar nas Conferências do Ca-
sino, havia já começado a pensar por mim e a discutir criticamente, o "Proudhonismo" de An-
tero de Quental e Oliveira Martins que já então preparava a "Teoria do Socialismo" publicado
em 1872. A minha Conferência do Casino teria sido assim, apenas, a exposição crítica dos di-
ferentes sistemas socialistas — principalmente de P.-J. Proudhon, Karl Marx e Engels.»
Foi por via de todos estes sucessos que o Instituto Geral de Agricultura teria tido o privi-
légio de servir de palco à Lição que, nessa altura, não teria identidade com outras proferidas
em Escolas portuguesas. Em boa paz, e no respeito quanto às exigências do trabalho científico,
talvez tivesse sido abordado o tema, hoje banal, da «sociedade sem classes», ou discutido
«Qu'est-ce que la propriété?» ou, ainda, pela primeira vez no Ensino em Portugal, um comen-
tário ao recentíssimo «Das Kapital», de Karl Marx. Tudo isto foi há cem anos e dentro dos mu-
ros do Instituto Geral de Agricultura, em liberdade.

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44 — A MARCHA DA ECONOMIA AGRÁRIA.
UMA SÓ POLÍTICA

A agricultura, como esteio de necessidades vitais, tem ritmo próprio quando o sistema
produtivo se baseia em objectivos de autosuficiência que confere a segurança compatível. Mas
responde, sem dúvida, quando na sua frente se desdobra uma política que assegure o funcio-
namento de um mercado e o nível dos preços. Será assim e, tanto, quanto mais os factores de
produção se integrem nos mecanismos do sistema capitalista. Mas nem todas as políticas ser-
vem para garantir a defesa das harmonias agrárias. No final do século XIX o que estava, de
novo, em causa era o trigo, o que vinha, agora, ainda mais, ferir as exigências básicas da pro-
tecção ecológica e social da comunidade portuguesa.

O aproveitamento agrário do território

Gerardo Pery, Engenheiro militar, que outros não havia no século XIX, executante de
levantamentos geodésicos, cartográficos e estatísticos, escrevia no ano de 1875 em «Geografia
e Estatística Geral de Portugal e Colónias» que, em Portugal, tinha sido «progressivo o arro-
teamento dos matagais e o desbravamento dos terrenos incultos». Mas, embora optimista, con-
cluía que apenas 28 por cento do território estava cultivado. A existência de quatro milhões de
hectares de incultos explicava a preocupação dos economistas do século XIX quanto ao atraso
da agricultura. Todavia Pery afirmava que «há quarenta anos a superfície cultivada seria a terça
parte da actual», acentuando que «hoje são caríssimos os matos em localidades onde, não há
muitos anos, se caçava o javali e o gamo».
Acompanhando Pery na referência ao passado verifica-se que, quarenta anos antes, no
termo da guerra civil liberal, as reformas de Mouzinho contemplavam um País onde os terre-
nos incultos e desarborizados pelas queimadas do pastoreio e a rapina de lenhas, consentiam
não mais do que 10 por cento de área cultivada. Assim, o cenário das trágicas invasões france-
sas e da guerra civil liberal teria sido o da mais alargada aridez da paisagem rural, em toda a
parte onde não estivesse implantado o regadio do milho. No Sul, a degradação seria maior do
que a das sesmarias fernandinas onde, quatrocentos anos antes, charnecas também incultas, fo-
ram campo de malfadadas lutas com castelhanos, cemitérios de pestes e de fomes, e estrada de
deambulação de vagabundos desprendidos de qualquer economia funcional. Se tivermos em
conta que a agricultura portuguesa mobiliza hoje, bem ou mal, 85 por cento da superfície terri-
torial não é difícil avaliar o que significava o abandono, no termo do século XIX, de um terri-
tório com o espaço cultivado de 30 por cento, apenas. Era muito grande a reserva de incultos
que o Fontismo, sem programa agrário, efectivamente desprezou.

A agricultura no comércio externo

Crónicas publicados na Revista da Exposição Agrícola apresentam valores de comércio

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externo, expressos em 1.000 reis que se resumem no quadro seguinte, referidos ao triénio de
1881-83:
Importação Exportação Saldo
Valor % Valor % Valor
Produtos agrícolas 8.725 25 16.825 74 + 8.100
Produtos não agrícolas ... 27.072 75 6.047 26 - 21.047
Total 35.797 100 22.872 100 - 12.925

O panorama é grave, para não dizer ruinoso mas, a agricultura, «pobre» ou «rica», o que
pouco importa considerar neste caso, constituía o salvatério indiscutível do desastre económi-
co nacional. Embora acabasse por impor pesada importação que representava 25 por cento do
total, devido à carência tradicional de trigo, acabava por exportar quase o dobro do que impor-
tava, mercê do vinho que representava 60 por cento. Ficava assim atenuado o desequilíbrio do
comércio externo global. Como é evidente, o apoio dado pela agricultura à economia nacional
era determinante das margens para consumo de produtos industriais, de equipamentos e de lu-
xos provindos do estrangeiro, mau grado o fardo negativo que a importação de trigo represen-
tava.
Para além de tudo, a agricultura valia como suporte do consumo interno, mais no que
se refere a bens industriais do que alimentares, num quadro funcional que se aproximaria forte-
mente de uma economia agrária e artesanal de grande frugalidade autárcica. Esta posição eco-
nómica da agricultura, registada no triénio de 1881-83, enfrentava, no entanto, ameaças efecti-
vas que outros sectores da economia não podiam de momento compensar. Sucedia assim quan-
do os preços internacionais do trigo baixavam com a oferta concorrencial americana, compe-
tindo com a produção nacional, desamparada de subsídios. Também a exportação de vinhos
para lotar em França, enfrentava a concorrência da produção crescente da Argélia. E, mais ain-
da, a importação de gado em Inglaterra aumentava as exigências de controlo sanitário e impu-
nha a entrada de gado abatido, frigorificado ou congelado, o que estava a grande distância das
nossas capacidades tecnológicas. O futuro era sombrio e a competitividade da agricultura por-
tuguesa só poderia ficar garantida se viesse a ser possível registar progressos técnicos nos do-
mínios da produção, da industrialização e do comércio.

A viticultura, sob a incidência de calamitosas pragas

A primeira grande ameaça à economia vitivinícola ocorreu em 1852, justamente no ano


da criação do Instituto Agrícola, com o oídio da videira. Foi debelada, depois de grandes pre-
juízos, com a generalização dos tratamentos com enxofre. Todavia, pouco depois, em 1868, a
imprensa francesa divulgava o aparecimento da filoxera de forma «assustadora», nas vinhas
do Ródano. Em Portugal a filoxera teria surgido pela primeira vez no Douro, em 1863, numa
quinta do concelho de Sabrosa. Lançado o alarme por Ferreira Lapa, em 1871, seguem-se anos
de luta antifiloxérica, com a nomeação de comissões diversas, que procedem a estudos que
conduziram primeiro ao tratamento com sulfureto de carbono e depois à enxertia. Na altura da

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Exposição Agrícola, a filoxera arruinara praticamente a região do Douro e alastrara à generali-
dade das regiões vinícolas, onde se depararam raras manchas resistentes por via dos solos e
das raízes profundantes. O tratamento com sulfureto de carbono, pouco eficaz, foi finalmente
abandonado quando os serviços agrícolas difundiram a técnica de enxertia em cepas america-
nas, largamente distribuídas aos agricultores. Assim se encontrou solução para um dos mais
grave problemas sociais e económicos da agricultura portuguesa, atenuado quando foi empre-
endido o esforço heróico de replantação. No Douro, a replantação nunca pôde ser alargada às
encostas mais difíceis onde permanecem os «mortórios» a assinalarem antigos limites da velha
região dos vinhos generosos. A Região do Douro, monocultural, sofreu gravíssimo abalo com
a destruição das vinhas. Foram procuradas culturas de substituição como o tabaco, mas o aban-
dono das Quintas foi dramático até ao momento em que se iniciou a replantação. As destrui-
ções provocados pela Filoxera em França obrigaram este país a recorrer à importação de vi-
nhos para assegurar compromissos do seu comércio exportador. A exportação portuguesa lu-
crou com esta procura que teve aspectos negativos por não proporcionar estímulos de qualida-
de essenciais na vitivinicultura.
A recordação do drama que destruiu as vinhas portuguesas perdurou. Em 1895, Henri-
que de Mendia, traduzia de forma incisiva, a catástrofe que havia de mobilizar numerosas e
dedicados equipas de técnicos:
«Fecharam-se muitas adegas, a indústria colonizadora por excelência viu diminuir os
povoados que a sua expansão e o seu bem estar construíram, em muitas lareiras se extinguiu
o fogo, o trabalho escasseou, depreciou-se, e a miséria entrou pelas portas de muitas casas, não
só remediadas, mas mesmo ricas, no dia em que o terrível inimigo transpunha destruidor e sem
combate os valados da vinha.»

O Crédito Agrícola e o Associativismo

No final do século XIX, quando a agricultura portuguesa ainda acertava o passo com o
capitalismo, estavam extintas velhas instituições tais como as das Casas dos Vinte e Quatro
que disciplinavam corporativamente o exercício profissional, ou a Real Junta do Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação que regulava a actividade económica. Encontravam-se
marginalizados, pelo menos por preceito ideológico, os Celeiros Comuns, Monte-Pios Agríco-
las ou Montes de Piedade Agrária. Sobreviviam as Misericórdias, as Confrarias, as Irmandades
que, toleradas, mantinham seus mesários, eleitos por confrades e irmãos.
Aprovada a Constituição, logo em 1822, nasceu o Banco de Lisboa, precedendo timida-
mente a proliferação bancária que, segundo o figurino da época, mais tarde viria a verificar-
-se. Em 1858, em plena Regeneração ainda se contavam somente 3 Bancos, mas, em 1865, já
eram 12, para, em 1874 serem 36 e, finalmente, em 1880, funcionarem os balcões de 44. Mui-
tos deles eram pequenos Bancos regionais, como o de Coimbra, o da Covilhã, o de Barcelos
ou o de Chaves. Foi necessário que decorresse largo tempo para que se encontrassem soluções
de substituição para as instituições tradicionais extintas ou marginalizadas. Eram todas muito
antigas como os Celeiros Comuns fundados por D. Sebastião de que ainda existiam cerca de
50, especialmente no Alentejo, Trás-os-Montes e Algarve.

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A autonomia destes celeiros durou séculos, surgindo a decadência com as tendências
centralizadoras expressas nos sucessivos códigos liberais que acabaram por entregar, a admi-
nistração dos Celeiros aos Municípios. D. Luís de Castro afirma que «a gerência das câmaras
municipais foi o golpe de misericórdia para essas velhas instituições». Efectivamente, a refor-
ma de 1864, criou as condições para que à custa de velhas instituições destinadas a servir os
agricultores «se executassem trabalhos vários nas cidades, vilas e aldeias, quartéis, estradas,
chafarizes, campanários». E, assim, «desnaturada nos seus fins, miserável material e moral-
mente, chegou a vetusta instituição de 1576 aos nossos dias». Podemos avaliar, com D. Luís
de Castro em 1911, que assim estariam no fim do século XIX.
Em 1498, D. Leonor, Rainha viúva de D. João II, fundou a Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa que foi a primeira de muitas outras Misericórdias instaladas como centros de bene-
ficência e de socorro mútuo. Ao longo de 300 anos de funcionamento destas instituições manti-
nha-se a oposição da Igreja à cobrança de juros. O crédito oneroso era praticado na sombra por
judeus «Onzenários» o que dava origem a frequentes reclamações nas Cortes. Somente depois
da Encíclica de Bento XIV. em 1745, esclarecida a distinção entre empréstimo para consumo
e para investimento, o alvará régio autoriza a Misericórdia de Lisboa a celebrar contratos de
crédito em «proveito especial da Lavoura» que se destinassem «à abertura de terras incultas e
paúis, em benefício público e aumento particular daqueles que tais obras fizessem». Em 1834
Silva Carvalho promulga legislação que permite a criação de Bancos Rurais; em consequência
o Celeiro Comum de Serpa converte-se em Banco Rural. Por esta altura assume significado
histórico a decisão de Alexandre Herculano que, presidindo à Câmara Municipal de Belém, ap-
resenta em 1854 um projecto de Caixa de Socorros Agrícolas, como ideia pioneira. Em 1866
e 1867 Andrade Corvo promulga legislação que autoriza as Misericórdias, Hospitais, Irmanda-
des e Confrarias a formarem Bancos de Crédito Agrícola e Industrial com área de acção limita-
da ao concelho ou concelhos a que as referidas instituições respeitassem. Ao abrigo desta legis-
lação apenas se fundaram três instituições bancárias. O Banco Agrícola e Industrial Viziense,
que ainda existe nacionalizado, o Banco Agrícola e Industrial Vianense e o Banco Agrícola In-
dustrial Farense. Há referências também a um «modestíssimo» Banco de Vila Pereira, nos ar-
redores de Coimbra. João Ulrich refere outras instituições bancárias privadas constituídas na
época visando o apoio à agricultura: a Companhia Crédito e Progresso Agrícola de Portugal
(1870), a Sociedade Agrícola e Financeira de Portugal (1873) liquidada logo à nascença por
desastrosas operações, o Banco Agrícola e Industrial da Estremadura (1875), e a Companhia
Auxiliar de Crédito Agrícola e Industrial (1882) do Porto. Como instituição bancária, sólida e
duradoura de âmbito nacional, havia sido criada em 1863 a Companhia Geral do Crédito Pre-
dial Português.
Quanto ao Associativismo agrícola estava-se no limiar do seu desenvolvimento. Em
1884 tinha sido promulgada em França legislação respeitante a Sindicatos Agrícolas. A legisla-
ção portuguesa sobre esta matéria viria dez anos mais tarde, em 1894, tendo sido promovida
por Carlos Lobo d'Ávila.
Não se poderá afirmar que, nesta altura, o país agrário beneficiasse do estímulo de um
capitalismo empreendedor e, muito menos, de um associativismo profissional consciente e ac-
tivo. Pelo contrário, as 44 instituições bancárias, mesmo que se lhes acrescente as casas de

370
câmbios onde se comercializava o dinheiro, pouco representavam em face de outros países li-
berais europeus ou dos Estados Unidos da América do Norte. A revolução industrial, de que o
país andava ausente, impunha a proliferação bancária, fortemente implantada mesmo nas mais
isoladas comunidades regionais. É certo que em área importante do mundo rural português
permanecia o tradicionalismo marginalizado pela «bíblia» do sistema político vigente, a Cons-
tituição e a Carta Constitucional, alternando, quando não suspensas pelo recurso a ditaduras.
Permanecia, sem que se entenda como nem porquê, ainda vivo o rol, a união, o compromisso,
o acordo, a sociedade de socorro pecuário, a mútua indemnizadora, exercendo actividade se-
guradora de gados com uma eficácia e uma honestidade que nunca viria a ser igualada pelas
modernas instituições do género. Existia a vezeira a pastorear em comum no baldio o gado de
montanheses isolados em Vilar da Veiga, Soajo, Gralheira ou Rio de Onor e, mesmo no Sul,
na adua da Granja de Mourão. Mantinha-se em comum o boi do povo de Covelães, Cambezes,
Buços, Covide ou S. João do Campo. Em boa harmonia rural aquentava-se colectivamente o
forno do povo, rodava o moinho do povo, secavam cereais na eira do povo, malhava-se ferro
na forja do povo. Tudo isto representava talvez caminho certo da vida comunitária tradicional,
o que bem poderá um dia ser entendido pelas expressões contemporâneas do movimento coo-
perativo. Os celeiros comuns, esses, debatiam-se na decadência que lhes fora imposta pela le-
gislação de Lisboa, de 1864.
De qualquer modo, quanto a Crédito e Associativismo, sentimo-nos inclinados a imagi-
nar que o mundo rural português, no fim do século, se debatia com um vazio que era, simulta-
neamente, o resíduo de instituições vitais decadentes, e a promessa de inovações que nunca vi-
riam a ser alcançadas. O crédito agrícola mútuo estava prestes a ser lançado, com a importa-
ção de ideias do estrangeiro, mas as limitações que lhe foram impostas por sistemas de tutela,
reduziram-lhe os horizontes. O processo veio a culminar com a instalação da usura tecnocrá-
tica que hoje ultrapassa limites históricos de prestamistas sem alma, conferindo actualidade ao
conhecido conceito de Luís XIV: «o crédito sustenta o agricultor como a corda o enforcado».
O Associativismo que se aprontava a seguir a via livre e sindical, viria a ser aguardado por ou-
tros caminhos, incluindo o obrigatório e corporativo, passando a perder cada vez mais o senti-
do profissional e a identificação com a vida das comunidades aldeãs. O que se aproximava era
uma escalada muito dura, em relação à qual se não descortina o fim, quando se renovam orga-
nizações associativas que, em nome dos interesses de agricultores, ocultam fantasmas agrários
ultrapassados ou tentativas de dominação política do campesinato não hipotecado a servidões
reinventadas.

A política do Trigo

A política cerealífera, especialmente a que recebia a designação de «problema do trigo»,


era largamente debatida. A questão era comum à Europa fragmentada em múltiplos países dos
quais alguns estavam longe da estabilidade quanto a fronteiras. Mas todos dificultavam quanto
podiam a importação de trigo estrangeiro. No entanto, sempre que a produção interna escas-
seava, o consumidor reclamava a proibição de saída e a liberdade de entrada. Era assim, no de-
sespero de que o pão não faltasse, o pão que era a base do regime alimentar e cujo preço cons-

371
tituía o aferidor popular da eficácia dos Políticos. Autores da época designavam a política re-
sultante desta exigência do consumidor, como «legislação de torneira». A manobra da «tornei-
ra» mantinha sempre situações de insegurança, tanto a nível das estruturas de produção como
do consumo, tão graves afinal como a incidência das variações climáticas que, aliás, comanda-
vam sempre os mecanismos do mercado. Poucos se lembravam de armazenar, como se fazia
com os celeiros faraónicos, e a ideologia do mercado comunitário vinha muito longe. O livre
cambismo fontista abriu simplesmente a «torneira» e passou a colocar a economia dos portu-
gueses na dependência dos preços externos. A Rússia constituía a mais forte ameaça no quadro
da competitividade na exportação de trigo. Todavia, mesmo com terras negras no Cáucaso e
vastíssimas extensões territoriais, a concorrência da Rússia não afectava grandemente os inte-
resses dos latifundiários alentejanos. Porém, depois de 1879, a América do Norte apresentou
no mercado europeu produções obtidas em terras virgens, com o esforço de «escravos» meca-
nizados, batendo os trigos europeus em preço e em qualidade. Foram tempos de festa em casa
dos pobres, mas os Lavradores e os absentistas a viverem de rendas, não suportavam a concor-
rência e exigiam o agravamento de direitos de importação para que os preços internos se resta-
belecessem. Os governantes, com a «torneira» aberta, também registavam desequilíbrios no
comércio externo — a importação chegou a 150.000 toneladas em 1887 — e, assim, acabaram
por fechar a «torneira», subindo os preços do pão a ponto de o Povo, na sua sabedoria instinti-
va, chamar a tudo isto «lei da Fome».
Assim se consolidou a política que Elvino de Brito desenvolveu, fortemente apoiado pe-
los latifundiários do Sul que assim mantiveram e fortaleceram as estruturas básicas do capita-
lismo agrário. No Norte, com a expansão da cultura regada de milho e o largo consumo de
«broa», a produção de trigo diminuía, e o proteccionismo era indiferente. Entretanto, como o
preço do pão de trigo, no Sul e nas Cidades era básico, sucede que, nesta altura, foi inventado
o «Pão político», subsidiado.
Quanto a metas de produção, a esperança programática era a de ver a seara nacional de
trigo alargada, a estancar o caudal da importação. Era a luta contra o inculto, onde o fogo fazia
parte das rotinas do pastoreio. Nesse tempo, estacionalmente, tudo ardia em labaredas ateadas
pelos pastores. O brazeiro que à noite tingia de vermelho o horizonte não era nomeado incên-
dio mas simplesmente queimada a estimular nas charnecas e nas montanhas o renovo das pas-
tagens naturais. A floresta praticamente não existia, confinando-se a «santuários» de protecção
como o dos Carmelitas do Bussaco que, sem a agressividade ideológica dos ecologistas mili-
tantes, de há muito excomungavam os inimigos dos arvoredos. Restavam ainda as reservas dos
montanheses do Soajo e do Gerês e reconstituíram-se Parques, alguns exóticos como o de D.
Fernando, artista, casado, agora, em segundas núpcias, com a Condessa de Edla, que o ajudava
a plantar o arvoredo no Parque da Pena, em Sintra. Mário de Azevedo Gomes publicou, no ano
de 1960, a «Monografia» que presta homenagem a esta bela iniciativa florestal, que se encon-
tra esquecida ou, pior ainda, fora de moda.

Novas estruturas espontâneas de produção

Os Morgados rústicos do Norte e do Centro, alferes ou capitães de milícias, excluindo

372
os Grandes de Portugal que viviam nas Cidades, viam-se. nesta fase, envolvidos em lutas parti-
dárias onde não se encontrava ainda de toda excluída a hipótese do Rei Absoluto, embora tu-
do rodasse normalmente entre Regeneração e Progressismo, que só se entendia bem o que era
quando se falava em nomes de Políticos, bons e maus. Os Morgados rústicos, fruidores ainda
de Morgadios já extintos, sentando à lareira os Curas e os Abades e dando também audiência
a outros líderes de comunidades aldeãs, decidiam penosamente a adesão política. Inclinavam-
-se ainda, umas vezes para o Miguelismo, tradicionalmente experimentado, e outras vezes sen-
tiam o Liberalismo a tocar-lhes a dureza do ouvido com os acordes agressivos das frases de
Rousseau ou das estrofes e prosas de Vítor Hugo que abalavam as mais santas consciências. O
retrato de Vítor Hugo contemplava este pequeno mundo, pendurado nas paredes, enigmático
e severo.
Tais Morgados das vilas e das aldeias já não estavam prisioneiros dos terrenos vincula-
dos, inalienáveis e transmissíveis somente ao primogénito. Não estavam obrigados a aforar a
terra para abastecerem as Casas Grandes de galinhas, frangos, ovos, milho, feijão, bons servi-
ços e algum dinheiro. Podiam arrendar, ou mesmo vender parcelas aforadas ou arrendadas por
vidas, o que fez nascer e proliferar casais implantados nos ermos como estaca de marmeleiro
que logo enraíza e dá folhas, flores e frutos.
O Alentejo assistiu também ao desfazer dos vínculos, mas o que se tinha aforado não
eram parcelas que fossem o sustentáculo da subsistência camponesa, salvo nas hortas de arra-
balde ou ferregiais. Estavam aforadas herdades, em contratos celebrados, à socapa, em Lisboa,
onde igualmente se firmaram arrendamentos e vendas com Lavradores. Foram estes, os Lavra-
dores, que vieram à superf ície, manobrando o trigo, a manada e o rebanho e, depois, a cortiça,
dispostos a implantarem, a sério e em grande, o capitalismo agrário. Com um impulso que hoje
diríamos tecnocrático e uma orientação fabril que não souberam, aliás, praticar na indústria,
organizaram as herdades com seus quadros de trabalho e repartição de funções e de tarefas.
Toda a estrutura empresarial ficou dependente do contributo dado pelos «jornaleiros» estra-
nhos à empresa, massa proletária de assalariados que viria acudir, das aldeias onde dormiam
ou se acoitavam nos dolorosos períodos de desemprego, às tarefas de granjeio e de colheita,
por meio do contrato ao dia, à semana ou de empreitada, feito na «praça» à vista do músculo,
da idade e de outros atributos para o trabalho. À margem do sistema industrial, de comando
centralizado, havia contratos paternalistas com «seareiros», de parceria, em que o resultado de
uma colheita se dividia em quotas que se atribuíam, em repartição variável, à terra e ao traba-
lho. As parcerias vigoravam também em operações de colheita como a da azeitona e no pasto-
reio do gado.
No entanto a capacidade interna das herdades, bem como o recurso aos proletários das
aldeias, não bastava para as tarefas de extensificação do sistema em áreas não exploradas. O
despovoamento dos grandes espaços a desenvolver, determinado por causas históricas, era um
obstáculo permanente. O problema já se revelara em tempos do Marquês de Pombal, que não
descobriu outra forma de tentar o povoamento das margens desérticas do Sado que não fosse
a de implantar colónias de africanos, em Santa Margarida e Alcácer. A solução parece ter sido
experimental e os colonos fixados, quase todos se despigmentaram, formando agora um resí-
duo que interessou cientistas como «os pretos brancos de Alcácer».

373
O País respondia aos efeitos de uma outra política de abertura de espaços isolados feita
pelos meios de comunicação e de transporte construídos pelo Fontismo. Todavia, as assime-
trias do desenvolvimento regional impunham à população a mobilidade que se traduzia na des-
locarão para Lisboa e Porto, bem como na participação em migrações estacionais ligadas à ac-
tividade agrícola. No período pombalino, o Douro, monocultural vitícola, atraía estacional-
mente ranchos de transmontanos, de beirões e mesmo de minhotos que baixavam das monta-
nhas e planaltos sobre os socalcos marginais do grande Rio, a empenharem-se nas cavas e vin-
dimas dormindo, a monte, nos cardenhos das Quintas, comendo sardinha salgada e escasso pão
centeio. Para arroteamento dos incultos do Sul e intensificação cultural nas searas, olivais e
montados, a população local não bastava nos períodos de grande intensidade de granjeios. Por
isso havia que contratar em Aveiro e Coimbra os caramelos, em Viseu e Castelo Branco os ra-
tinhos e na Serra do Sul os algarvios que chegavam para as mondas e ceifas do trigo e colheita
da azeitona, retomando em seguida às tocas das regiões povoadas. O Ribatejo, policultural,
movimentava da charneca para o campo, os gaibeus que também vinham de Leiria ajudar a
colher a fartura criada nos nateiros depositados pelas cheias.
Tudo isto significava que, no Norte e no Centro, mau grado a multiplicação de arrenda-
mentos e de parcerias que deveriam consolidar a figura social do caseiro como camponês em-
presário familiar, os recursos das regiões montanhosas e mesmo do litoral sobrepovoado não
tinham utilização bastante para garantir o pleno emprego do que se apresentava, por inércia do
desenvolvimento, como excesso de trabalhadores. Embora a emigração para o Brasil atenuasse
a pressão demográfica, o País notava a presença do «maravilhoso deserto do Sul» mantido, pe-
lo latifúndio, na esterilidade demográfica. Para os migrantes, o Sul era a promessa de rapina
de algum pecúlio, amealhado em trabalho árduo, mal compensado pelo salário sobrante, mas
favorecido pelos complementos alimentares gratuitos, que alcançavam entreter o bicho da fo-
me. No Sul, o liberalismo prático, aplicado selvaticamente, desfizera os restos de um campe-
sinato de poderosíssima adaptação ecológica, dando os baldios e as pastagens exclusivamente
aos grandes. E, assim, no transe da mais profunda mutação social, as populações ficaram con-
denadas à mais dura das proletarizações, encurraladas em aldeias dormitórios de assalariados,
submetidas a emprego estacionai em competição com os ranchos migratórios compostos de
subgente desprezada pela moderação quanto a aspirações salariais. Somente raros alentejanos
conseguiam postos de trabalho nos montes e nos rebanhos, nos quadros organizados das la-
vouras-, a nova espécie de empresas industriais agrárias, com seus feitores, manageiros, ade-
gueiros, quarteleiros, carreiros, maiorais, ajudas, beneficiando do emprego permanente ofere-
cido pelo capitalismo agrário, como excepção à regra impiedosa da contratação temporária na
praça ou feira de trabalhadores.
Todavia, o desbravamento dos incultos não se compadecia com a falta de população
presente em áreas que haviam sido, não há muito, coutos de homisiados e eram ainda ermos
onde não entravam as justiças e se refugiavam salteadores, nem com as dificuldades e incer-
tezas do recrutamento de caramelos, de ratinhos e de algarvios. Por isso, José Maria dos San-
tos teria sido o pioneiro de uma breve e escassa neo-colonização de territórios metropolitanos
portugueses desde o final do século XIX até ao início do século XX. Em 2.000 ha. de um dos
seus latifúndios de 16.000 ha., instalou colonos beirões, cerca de 400 famílias, que fizeram ca-

374
sa em glebas de 4 a 6 ha. Assim a Exposição Agrícola de 1884, ao atribuir o Prémio de Honra
ao Lavrador Margiochi, pela sua «modelar» exploração agrícola Monte das Flores, levou o júri
a comentar: «não se pode deixar de mencionar os relevantes trabalhos executados desde Pinhal
Novo até à Herdade de Palma e bem assim os não menos notáveis da Barroca de Alva, levados
a efeito pelo distintíssimo lavrador Ex.™° Senhor José Maria dos Santos, como sendo os mais
importantes e proveitosos para o desenvolvimento do Distrito de Lisboa, iniciando a coloni-
zação do Alentejo». O sublinhado é nosso, mas deve notar-se que não pode haver analogia com
povoamentos anteriores cuja memória se perde na noite dos tempos. Em pleno arranque do ca-
pitalismo agrário, com a propriedade fundiária livre de quaisquer restrições, transformada em
simples meio de investimento lucrativista, as normas dos Romanos, dos Árabes ou da primeira
dinastia dos Reis povoadores e colonizadores não tinham razão de ser. Não havia memória das
vilas ou dos quinteiros, nem mesmo das liberalidades concedidas à peonagem na partilha da
presúria, confirmadas nos Forais mas, até a mais recente enfiteuse se apresentava ultrapassada
não servindo os interesses dos agrários, vivendo, no entanto, na tradição dos rurais. Oliveira
Martins escreve no Projecto de Fomento Rural: «o foro, esse grande moralizador da terra, na
frase de Herculano, está vivo ainda no coração das nossas populações». Embora não estivesse
morto, apresentava-se instrumento desnecessário perante o esquema moderno e tecnocrático
do plano de colonização capitalista da herdade de Rio Frio. Os colonos, analfabetos, assinaram
de cruz não mais do que simples contratos de arrendamento, com a liberalidade enganadora de
um longo prazo. Por isso. Oliveira Martins comenta: «os colonos de Rio Frio não acreditam
que a pensão que pagam seja uma renda: crêem que é um foro e seria talvez um dia angustioso
aquele em que o proprietário quisesse exercer a evicção». Esse dia chegou, cerca de 1950, para
outras colonizações semelhantes como as de Cabanas e Fernão Ferro, o que forçou a promul-
gação de decreto excepcional que evitou, na última hora, os despedimentos. Na verdade, o
exemplo de José Maria dos Santos frutificou no Sul e alguns núcleos de populações deslocados
do Norte foram fixados em courelas residenciais, de dimensão que somente permitia, além da
casa, pequena horta e pomar, consentindo assim que larga margem de trabalho familiar ficasse
obrigatoriamente disponível para assalariamento temporário nas empresas agrárias nascentes.
Caramelos, ratinhos, gaibéus encontraram alternativa para a migração estacionai e, em vez de
demandarem o Brasil, povoaram com espantoso poder de adaptação ecológica, manchas de
charneca pobre que receberam a designação popular de foros, sem que efectivamente o sejam,
em regra. Tal povoamento não é vasto nem numeroso como os antigos aforamentos do Norte
e do Centro que consolidaram a ruralidade camponesa depois acrescentada pelos arrendamen-
tos e parcerias de caseiros, mas constitui habitat bem implantado e característico, encontrando-
-se em Salvaterra de Magos, em Marinhais, na Glória, à volta de Coruche, no Couço, em Santa
Justa, em Santana, em Lavre, em Fernão Ferro, em Cabanas, em Vendas Novas, em Cabrela,
em Alcácer e Grândola, entre Melides e Vila Nova de Mil Fontes, em Maria Vinagre. Predo-
minando nas areias pliocénicas o sistema penetrou timidamente no Alentejo interior, baseado
também no parcelamento de courelas que seareiros compravam com dinheiro obtido ao quei-
marem o montado no fabrico de carvão. Assim se fixaram raros «viveiros humanos» na Ama-
releja, nas Herdades do Montinho e da Gramacha, em Évora, e na Torre, em Vidigueira.
A «limpeza» das Herdades cobertas de matagais cerrados não era tarefa fácil porque

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exigia grande coragem e determinação. Recordamo-nos de ter inquirido no local, no Concelho
do Redondo, as condições em que foi feita por José Maria dos Santos a limpeza dos montados
de sobro da Defesa da Pedra Alçada, Herdade de cerca de 6.000 hectares que lhe pertencia e
desbravou. À medida que as lavouras avançavam, procedendo-se à queima dos matos, os sal-
teadores que nesses matos se acoitavam, vinham reivindicar e defender os seus domínios. Por
isso, os caramelos e ratinhos que José Maria dos Santos arrebanhava, defendiam-se com ar-
mas na mão, barricando-se nos carros que os transportavam, como se resistissem a investidos
de índios. Finalmente, quando a Herdade se transformou em Montado limpo, cresceu a povoa-
ção próxima, de casas Novas de Mares, onde os bandidos se instalaram vivendo vida nova.
Não sabemos se Casas Novas hoje é Cidade, mas não há dúvida que Vendas Novas é Concelho
e julgamos que a origem foi semelhante, noutros matagais.

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45 — O ENQUADRAMENTO DO PAÍS RURAL

Não se afigura fácil entender como um País, rural e pequeno alcança, por vezes, desme-
dida dimensão. Talvez melhor se compreenda se notarmos que o valor não tem medida, quando
a inspiração se baseia em forças a que não devemos recusar o conteúdo de tradição e, muito
menos, de cultura. Não oferece dúvida que um País somente existe enquanto possa manter, se-
ja o que for, do muito ou pouco, mas essencial, que tenha consolidado o facto natural de ter
nascido.

A escravatura no Brasil

O Brasil, edificado com a participação activa dos escravos africanos, vivia, no termo do
século XIX, difíceis ajustamentos sociais, o que tinha reflexos na solidariedade portuguesa. A
Revolução Liberal portuguesa, que não revelara sensibilidade perante a participação do País
no tráfico de escravos e na escravatura em territórios ultramarinos, ficou redimida apenas no
Setembrismo, com Sá da Bandeira no poder, em 1869. Em 1881, o Deputado brasileiro Joa-
quim Nabuco, chefe do Partido Abolicionista, foi saudado de forma eloquente, na Câmara dos
Deputados, por António Cândido, «águia do Marão».
O Orador homenageou «o Político que procura desfazer no seu país a mácula mais he-
dionda que um povo pode ter em si: a mácula da escravaria!». António Cândido fez vibrar, no
hemiciclo, a esperança do Chefe abolicionista brasileiro que, a partir de 1878, desencadeara o
generoso movimento humanista:
«restituir a milhares de consciências a soberania do pensamento; restituir a milhares de
corações a dignidade dos seus afectos; garantir a milhões de braços a propriedade do seu tra-
balho; libertar uma raça inteira que tem direito a viver, a progredir, a experimentar a luta da
existência como a experimentam homens, e não como a provam e padecem as espécies infe-
riores; acabar de vez com o degradante espectáculo do interesse sobre a justiça, da força sobre
o direito, de uma educação pervertíssima atrofiando cérebros para que não pensem, de uma
opressão brutal esmagando vontades para que não protestem, do azorrague infame retalhando
as carnes de desgraçados, cuja vida é uma maldição sem termo e um martírio sem nome.»
Joaquim Nabuco, descendente de «Senhor de Engenho» da antiga colónia portuguesa,
redimido pelo empenhamento na luta contra os esclavagistas, teve honras de entrada triunfal
no «recinto parlamentar» português, com aplausos unânimes dos Deputados, de pé, entusiasti-
camente. Decorreriam sete anos até ao momento em que palavras como as proferidas pelo De-
putado português, seriam entendidas no Brasil em toda a sua grandiosa expressão. Em 1888,
na ausência do Imperador Pedro II, a abolição da escravatura viria a ser assinada pela Regente
Isabel, a Redentora. No acto da assinatura, o político esclavagista Barão de Cotegipe declarou
à Princesa Imperial: «Vossa Alteza redimiu uma raça, mas perdeu o seu Trono». Efectivamen-
te, logo de seguida, o Brasil proclamava a República e bania o Imperador e a Regente, expul-
sando-os do território.

377
Retorno a África

O fascínio do Brasil, as guerras e os sofrimentos no Solar europeu, fizeram com que fi-
casse em África e no Oriente, o que viria a ser raízes, todavia solidíssimas e perenes. Na apa-
rência, a implantação dos portugueses em África encontrava-se fixada no litoral, mas eram ex-
tensas, profundas e muito antigas as relações com povos do interior. Tais relações, quando as
contemplamos, agora, à distância, encontravam-se, sem dúvida, feridas da «mácula da escra-
varia», como lhe chamou António Cândido. Mas, ser escravo era condição humana fortemente
institucionalizada não só em África como em muita outra parte e, no grande e misterioso Con-
tinente, os portugueses seriam, nesse ponto, não piores do que tantos que se aproximavam. As
relações antigas tinham, porém, largo significado e respeitavam poderes locais, desde a Etiópia
ao Congo, passando pelos reinos Monomotapas. Também os grupos tribais eram contactados,
mantendo-se o governo de seus Sobas e Régulos. O Zaire, Luanda, Benguela, Moçâmedes, fo-
ram posições no litoral sempre mantidas e, no Indico, a ilha de Moçambique e, com enorme
dificuldade, o Sul do Save. Tivemos ocasião de referir que a Revolução Liberal teve escassos
reflexos nos territórios africanos. Mas o Setembrismo, com Sá da Bandeira no Governo, mani-
festou renovado interesse pelo estabelecimento de europeus em África, tentando desviar cor-
rentes que se orientavam exclusivamente para o Brasil. Facilmente se compreendia que a Afri-
ca não se poderia manter como forma de alívio de marginais ou de lugar de degredo. A «Cos-
ta de África» foi sentença de Tribunais aplicada a João Brandão, José do Telhado e outros qua-
drilheiros. Embora muitos dos criminosos do Continente recuperassem no convívio com as es-
truturas humanas existentes, a África oferecia-se como vastíssimo campo de investigação geo-
gráfica, que os progressos científicos exigiam. Foi por isso que o simples lançamento de co-
lonos no litoral não se apresentava como solução bastante, havendo que explorar o interior
apenas abordado com espírito científico pela curiosidade de alguns raros pioneiros como Silva
Porto em 1853 e José de Anchieta, naturalista, que desde 1866 vivia nos sertões de Angola.
Talvez se possa entender que o Setembrismo, com Sá da Bandeira, teria iniciado em Angola a
fase colonial ao aperceber-se que essa era a tendência de poderosos países industriais europeus
que procuravam no vasto Continente inexplorado matérias-primas e mercados. No decurso de
uma das visitas que fizemos a Angola, julgamos ter tido a sorte de nos apercebermos de situa-
ção que caracterizou a fase pré-colonial das relações entre portugueses, situados no litoral, e
autóctones do interior, no século XIX. Portugueses fixados em Moçâmedes, por terem sido
obrigados a abandonarem Pernambuco, mantinham relações de comércio com as tribos do in-
terior, que viviam em perfeita autonomia. Tais relações assumiam larga importância funcional
e proporcionavam impecável equilíbrio político. A consulta a documentos de campo, elabora-
dos por serviço da Missão de Inquéritos Agrícolas do Ultramar, revelou-nos descrições que
não resistimos à tentação de reproduzir de memória, na convicção de que tais documentos fo-
ram destruídos ou se perderam. Partindo de Moçâmedes deparava-se o deserto, ao fim do qual
o imponente degrau da Serra constitui o suporte do imenso planalto continental, celebrado por
seu clima ameno. As comunidades tribais do planalto, inquiridas, relataram que, em tempos,
quando os portugueses se encontravam junto à costa, em Moçâmedes, com seu comércio, se
organizavam caravanas que venciam o penosíssimo percurso transportando produtos agrícolas

378
do interior que eram trocados por utilidades e luxos que davam infinito prazer aos pretos. Com
as importações se adornavam as pretas. As pulseiras e os colares muito valorizavam os pentea-
dos besuntados e extravagantes. Aconteceu que o filho de um Soba, homem poderoso mas não
tanto que tivesse mão no tratante, virou bandido e assaltava as caravanas produzindo grande
estrago e sacrifício de vidas inocentes. Por isso foi resolvido fazer queixa aos portugueses que
enviaram, a acompanhar as caravanas, força armada que aprisionou o bandido e o enviou para
Luanda, deportado. Mas, como o criminoso era filho de Régulo grande, em breve se libertou,
voltando aos assaltos de estrada. Resolveram as vítimas renovar a queixa e os portugueses en-
viaram nova força que voltaria a prender o quadrilheiro. Levado para Moçâmedes, desta vez,
«meteram-no numa barrica e atiraram ao mar». As caravanas voltaram a descer e a subir o mo-
numental degrau, e nunca mais faltaram as bugigangas para enfeitar as pretas.
Foi depois deste convívio que chegaram ao litoral os Madeirenses. Viram logo, ao lon-
ge, a Serra, para além do deserto. Fizeram a escalada que os levou a paragens onde descobri-
ram semelhança ecológica com a Ilha onde nasceram. Ainda nos foi dado ver, junto a Sá da
Bandeira, os surpreendentes regadios da Chibia, feitos à imagem da Ilha da Madeira, em parce-
las estruturais de áreas que, em África, se afiguravam minúsculas. Era impressionante a dispo-
sição das regadeiras e a forma como o trigo era regado. Era perfeito o ordenamento dos cam-
pos e a disposição dos socalcos. Embora nos tivessem instalado num acampamento no mato,
foi possível assistir à Missa na povoação rural. Metade da Capela tinha bancadas e observámos
a arrumação dos assistentes segundo a coloração da pele. Os brancos ficaram à frente. Os mu-
latos, com diferentes gradações de cor, que um Regente Agrícola, nosso Guia, nos classificou
à saída, ainda ficaram sentados. Atrás, a monte, em pé, acumulavam-se os pretos, indiscrimina-
dos.
Foi em 1875 que foi fundada em Lisboa a Sociedade de Geografia por iniciativa de Lu-
ciano Cordeiro. Nessa altura, Instituições Científicas de outros países voltavam-se para a Áfri-
ca. Tudo indicava que o vasto Continente iria ser submetido ao assalto, e partilhado em múlti-
plas Colónias. Apenas a Etiópia, guardando vestígios antigos de presença portuguesa, havia de
ver a sua independência nessa altura respeitada. Um dos programas mais importantes da jovem
Sociedade de Geografia portuguesa foi o da pesquisa das relações existentes entre as bacias hi-
drográficas do Zaire e do Zambeze, que repartiam as águas centro-africanas entre o Atlântico
e o Índico, respectivamente. Aprontaram-se para os estudos Serpa Pinto, Roberto Ivens e Her-
menegildo Capelo que, em 1877, embarcaram para a África. Serpa Pinto, partindo de Benguela
explorou territórios do interior dirigindo-se para Sul, acabando por chegar a Pretória. Em
1884, Capelo e Ivens, partindo de Moçâmedes, alcançaram Quelimane, em Moçambique, rea-
lizando a viagem pioneira de Costa a Costa. Estas expedições permitiram elaborar o «Mapa
Cor de Rosa» onde Angola e Moçambique formam um único território.
Em 1884 morreu D. Luís e foi aclamado D. Carlos. Reuniu-se a Conferência de Berlim
que ficou na História como a base de partilha do Continente Africano por europeus interessa-
dos. Sentem-se aí efeitos de expedições científicas promovidas por Levingstone, Stanley,
Grant e Raker. A África foi repartida por Ingleses, Franceses, Alemãs e Belgas. Portugal este-
ve presente, mas registou forte oposição dos Belgas que se apropriaram de vastíssimas áreas
do Congo, tradicionalmente contactadas pelos portugueses. Os ingleses levantaram dificulda-

379
des em Moçambique que vieram a ser resolvidas por negociação e não consideraram o «Mapa
Cor de Rosa».
Todavia o «Mapa» firmava-se em argumentos históricos de valor que serviu para que
os portugueses instalassem algumas administrações. Mas impedia a construção britânica de
um Império africano com ligação territorial contínua do Egipto ao Cabo. Tanto bastou para que
a Inglaterra, indiferente à velha Aliança, decidisse um Ultimato, em 1890, que impediu qual-
quer solução de acordo. Os Progressistas, no poder, tentaram defender o «Mapa», mas venceu,
pela força, o corredor britânico, e o Governo demitiu-se, voltando ao poder a Regeneração. Os
Republicanos, na oposição, defendiam o «Mapa Cor de Rosa», utópico perante a força do Im-
pério Britânico, e aproveitaram para culpar do desastre a Monarquia. Alfredo Keil compôs «A
Portuguesa», a estátua de Camões foi envolvida em crepes, D. Carlos devolveu as condecora-
ções inglesas, Junqueiro deu a público o Finis Patriae. Afírmou-se, julgamos que pela primei-
ra vez, que «as Colónias são parte integrante da Nação portuguesa».

O Gungunhana

A presença portuguesa em Moçambique era contrária aos interesses ingleses. No com-


plexo mosaico das tribos locais, o Gungunhana era manobrado pelos britânicos nos seus pro-
pósitos de revolta. Por isso as forças militares portuguesas se viram obrigadas a sustentar bata-
lhas que ficaram célebres pelos seus Quadrados defensivos, perante os quais, em ondas suces-
sivas, os guerreiros eram fuzilados. Importa reconhecer que, neste momento, se precipitavam,
de zagaia em punho, ao ataque, não para defenderem qualquer Pátria, mas para morrerem, sem
o saberem, pelo Império da Rainha Vitória que, da mesma forma, também os fuzilaria. Marra-
cuene, Mogul, Coolela, são exemplos de angústia de soldados, camponeses duros e disciplina-
dos, que se batiam em condições severas de isolamento e de incerteza, na presença de multi-
dões treinadas nas lutas tribais, em exercícios de Morte, a que os ingleses impunham o sacrifí-
cio de vidas. Foi no Chaimite, em 1895, que Mouzinho de Albuquerque, com reduzido grupo
armado, surpreendeu de forma atrevida e fulminante, Gungunhana que se deu por vencido, na
presença do seu exército, paralisado de espanto. Foi aprisionado e transportado para Lisboa
onde desembarcou no Terreiro do Paço, perante multidão que o aguardava entusiasmada.
Numa carruagem aberta, o Gungunhana, exemplar de guerreiro do sertão africano, se-
guia, apavorado. A carruagem subiu a Rua Augusta, depois de passar o Arco e com as janelas
apinhadas de gente vestida à maneira da «belle époque». O povo, nas ruas, parecia alucinado
de alegria e espanto. Noutra carruagem seguia o Harem do Senhor Feudal africano, que havia
de o acompanhar no degredo que lhe foi imposto nos Açores. O cortejo passou o Rossio e o
Gungunhana, preso, nunca teria percebido que a caminho do Forte de Monsanto, desembocou
na Avenida da Liberdade.

O cemitério dos Boers

Houve notícia de que chegou à Huíla um desfile de carros boers, pesadões e atrelados
a várias juntas de bois, em lenta e voluntariosa caminhada migrante provinda do Cabo. Dentro,

380
camponeses de cabelos loiros, alfaias, ferramentas, armas, animais domésticos e provisões va-
riadas. Vinham para ficar, o que se via nos olhos com que contemplavam a fértil paisagem do
Planalto. Os pretos, ao verem o quadro insólito, correram aos portugueses a darem a nova. Não
foi muito pormenorizado o relato que nos fizeram quanto ao que sucedeu depois. Apenas nos
foi dado ver «o cemitério dos Boers» em espaço reservado, a campas rasas. Vimos exemplares
de carros boers inconfundíveis que se mantinham copiados por serem robustos e úteis. Tam-
bém falámos com um ou outro, de cabelos loiros, que se exprimiam, naturalmente, em portu-
guês.

A guerra dos Mocubais

Dizem que uns pastores vieram contratar a venda de parte de um rebanho pastoreado no
Sul de Angola. A enorme estatura dos Mocubais, mercê do abundante consumo de proteína
animal, torna-os inconfundíveis e distintos dos comedores de cereais. Têm fama de muito rigo-
rosos na lisura dos contratos. O comprador pretendeu fazer a escolha, mas foram-lhe negados
os melhores animais que ficariam a garantir a qualidade da reprodução, sendo apartados. Feito
o negócio o comprador forneceu vinho em abundância e os pastores, não acostumados, entra-
ram em profundo sono. Então, os compradores juntaram no rebanho com que partiram, os re-
produtores cuja venda tinha sido recusada. Ao acordarem, os Mocubais, viram-se enganados e
seguiram a pista até encontrarem o rebanho. Não soubemos bem o que fizeram para além de
se apossarem dos animais roubados. Nas comunidades de pastoreio há justiças sumárias que
se aplicam aos ladrões de gado. De qualquer modo correu notícia de «revolta dos Mocubais»
e a tropa, quando chegou, roubou a vida a todo o Mocubal adulto, ficando mulheres e crianças.
Quando por lá passámos, havia apenas aramados de novos fazendeiros e esta história.

Os Mucancalas

Os Bosquímanos do Sul de Angola que receberam a designação local de Mucancalas


andavam escorraçados nos espaços mais desérticos e pobres. Um Cipaio do Posto do Hoque
levou-nos a vê-los, ao fim de longo percurso. O Cipaio, que devia ser descendente de Banto
invasor do território, reservava para os Bosquímanos, autóctones, as mais severas críticas, não
entendendo porque não pagavam «imposto de palhota». Quando contemplámos uma «aldeia»,
de abrigos improvisados, foi-nos dado ver um grupo humano magnífico, na sua origem étnica
de asiáticos que se instalaram muitíssimo antes da invasão Banto, segundo interpretámos da
informação de especialistas. O grupo, ao que nos disseram, já adoptara rudimentos de lingua-
gem que adaptou à expressão elementar de sempre. Caçadores itinerantes, já se encontravam
ameaçados de passagem à fase agrária, porque se notava a presença de ferramentas simples, o
que denunciava a fatalidade de aculturação que os levaria não se sabe onde. Viemos a saber
que a Guerra Colonial os usou como pisteiros, levando-os a revelar o esconderijo ou refúgio
de homens perseguidos, segundo as técnicas em que se especializaram na perseguição de ani-
mais de caça. Também observámos um caso que, pelo menos na altura, mereceria comunica-
ção a Congresso. Um Agrónomo responsável por um Posto de investigação, encontrou um Mu-

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cancala que se afastara da tribo. Era não mais do que um Bosquimano despaizado, não tendo
outro remédio senão pedir emprego como assalariado. Consciente do que se passava, o Agró-
nomo não hesitou um momento e firmou contrato que envolvia salário monetário e comedorias
fornecidos, de uma vez, para a semana. Entregues as comedorias, o Bosquimano levou a presa
para um recanto do mato e devorou tudo, paulatinamente. Depois, dormiu sono profundo. O
caso despertou a atenção do Agrónomo, inquieto. Mas, com surpresa ou sem ela por conhecer
o meio, o Agrónomo verificou que o Bosquimano se apresentou depois ao trabalho, cumprin-
do, sem comer, toda a semana, as condições do contrato. No fim, voltou a caçar nova presa, e
reconstituiu as forças que teriam sofrido natural desgaste. Não sabemos se outro branco, além
deste Agrónomo, português, teria alcançado a adesão de um Bosquimano ao sistema de assa-
lariamento capitalista que avassalou e escravizou o Mundo civilizado.

Os «brasileiros»

O Brasil apresentou-se aos portugueses como o Paraíso onde a «árvore das patacas»
proporcionava colheita abundante, bastando sacudir os generosos ramos que se desfaziam em
ouro. No entanto, era falsa esta imagem que escondia os sofrimentos dos emigrantes, mais do
que comprovados. Eram muito raros os afortunados que regressavam às origens, portadores do
título popular de «brasileiros». Não sendo possível dispor de informação estatística quanto ao
destino reservado aos portugueses que emigravam para o Brasil, deve admitir-se que enorme
maioria deixou seus ossos abandonados no sertão ou sepultados em cemitérios feitos de impro-
viso em povoações nascentes. Fizeram o Brasil que ainda reservou muitos sofrimentos para os
filhos e os netos.
Pondo de parte figuras que alcançaram, no processo histórico da independência brasi-
leira, prestígio social autêntico, foram poucos os que regressaram ostentando fortuna, embora
a sua presença em Portugal fosse de grande importância. Será possível considerar duas situa-
ções completamente diversas. A dos nobres, em geral «filhos segundos» das famílias dos Mor-
gados, que partiam em missão de soberania, ou se lançavam na aventura, em busca de fortuna.
A segunda situação corresponde aos plebeus ou burgueses que emigravam, logrando alguns
enriquecer passando a alinhar entre os novos-ricos, quando regressavam. Do primeiro grupo
social foi muito importante o retorno de endinheirados, que refizeram fortunas abaladas, ou
juntaram larga ostentação à riqueza existente. Reconstruíram Solares decadentes que ainda
lhes restassem ou edificaram-nos de novo quando os haviam perdido. Os segundos davam en-
trada triunfal nas Aldeias, dispostos a construírem Casa e Quinta, tudo de novo.
Os aristocratas enriquecidos no Brasil têm história sociologicamente específica, ali-
nhando nas ondas altas e baixas da fortuna privada, umas vezes pelas cristas elevadas e outras
nos abismos dos fundos. O Brasil teria facilitado a sobrevivência social de tradições do passa-
do. Os que partiram rústicos e alcançaram fortuna traziam, depois da independência da Coló-
nia, títulos nobiliárquicos concedidos pelo Imperador brasileiro, ou recebiam-nos por atenção
em troca de serviços prestados ao Vaticano, ou ainda das generosas mãos da Rainha D. Maria
II, magnânima e liberal. Muitos não alcançaram tanto e ficavam-se pela Comenda de beneme-
rência, em geral.

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Assim, os afortunados «brasileiros» marcaram significativa presença nas Aldeias portu-
guesas, no século XIX quando, feitos Comendadores, Barões, Viscondes e, mais raramente.
Condes, resolviam o regresso às raízes, na fase madura da vida de canseiras. Em seu redor for-
mava-se a Corte dos familiares e amigos, que à sombra da Casa original e da Quinta moderna
edificadas, procuravam fazer esquecer o passado escravo que, há muitos anos, motivara a par-
tida, havendo ainda muito para esquecer da vida que tudo mudara.
Raras vezes a partida dos emigrantes deixa história na comunidade, ficando o desgosto
circunscrito a lágrimas de Mãe, de Pai, de Irmão, de Namorada e raras vezes de amigos, en-
quanto o sentimento geral, rapidamente tudo esquece. Recordamo-nos, no entanto, de algumas
ocasiões em que assistimos a despedidas que seriam iguais a muitas da História que estamos
narrando.
Tone Bicha era um rapaz, muitíssimo magro, do nosso tempo, que não chegou a procu-
rar emprego ou profissão, frequentando eventualmente a Escola, enquanto andava «aos pássa-
ros» com «fisga» e a rapinar nas Quintas a fruta, sempre da melhor. Um dia chegou o Tio do
Brasil, com anéis nos dedos, e resolveu para o Tone Bicha o seu destino. Em manhã quente
das férias grandes demos ao Tone Bicha o nosso comovido abraço e vimo-lo subir para a ca-
mioneta que arrancou depois levantando o pó do macadame. Recordámos sempre o aceno da
sua mão nervosa e, em terra, as lágrimas da Mãe. Ficámos longamente, ao lado dela, na estra-
da, com os pés amarrados ao chão. Mais ninguém se despediu, que o Tone Bicha não teve Pai,
nem Irmãos, porque a Mãe ficou fiel a quem a enganou de uma só vez. Nunca mais vimos o
Tone Bicha, nunca mais...
Outro foi o Cachez. Era da Serra e acompanhava os caçadores. Nunca soubemos o que
fazia fora da época. O certo é que não frequentava a Escola. Levava às costas os farnéis e trata-
va da comedoria dos cães. Nesse tempo a Serra somente era acessível a cavalo. Dois compa-
nheiros muito mais velhos, um Doutor em Leis, Administrador do Concelho e. durante algum
tempo, enquanto esteve na terra, o Juiz de Direito, levavam-me às perdizes no Natal. Num ano,
ficámos aboletados na Casa da Mesa do Senhor da Paz de Adrão. Quem tratava de tudo era o
Trinta, que tinha uma «venda» na Aldeia. Na primeira ceia desta caçada, o Administrador, ao
provar o vinho, exclamou horrorizado:
— Este vinho é uma peste!... trazem-no aos trambolhões nos odres e fica uma zurrapa.
Ó Trinta, o vinho não presta, manda buscar à Vila em garrafões.
Era uma ordem, e um montanhês foi mobilizado para partir, antes de raiar a madrugada,
de caminhada, para voltar à noite sem falta nenhuma.
— Este sim. Trinta amigo, é de estalo!... boa pinga.
Entretanto o Magistrado, de poucas falas, insistia que o seu cão, um Pointer de raça pu-
ra, fragilíssimo ao lado dos perdigueiros portugueses, a que dera o nome de «Coral», nome so-
nante, como era necessário, para se repercutir nas encostas da Serra quando o chamava, era um
«biqueiro». Então nas caçadas «faltam-lhe os mimos de minha Irmã, não come nada». E acres-
centava, «por isso lhe trago latas de atum que mando dar com batatas cozidas». E perguntava:
— Cachez, o cão comeu?
— Comeu, Senhor Doutor, até já dorme de barriga cheia.
E, às escondidas, o Cachez mostrava-nos no seu bolso, escondidas, as latas, segredan-

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do, «comeu e muito bem o mesmo que os outros, farinha cozida e ossos dos frangos. Atum!...
não queria mais nada!».
O Cachez conhecia os melhores recantos da Serra. Enquanto os nossos companheiros
se entretinham a espingardear as perdizes, andávamos com ele a visitar as «brandas», desertas
em Dezembro, quando os montanheses tinham regressado às «inverneiras». O Cachez entrava
nas choças que tinham as portas abertas e revolvia tudo só para ver, que não tirava nada. No
ano seguinte voltámos, mas o Cachez não estava na caçada. «Emigrou», disse-nos o Trinta
com desprezo.
Muitos anos depois, talvez quarenta, deparámos na Serra com o fio da história, nessa al-
tura desmeado:
— Sou o Cachez, não se lembra?
Na nossa frente só nos apercebíamos que se encontrava um homem. Saudámo-nos co-
movidamente. Passado pouco o Cachez morreu e deparámos, no jornal da terra, com notícia
dorida e o seu retrato.
Na altura do regresso, em tempos mais antigos havia, por vezes, vaidades feridas. Foi
este o caso de um «brasileiro», feito Visconde, que emigrara com a profissão de pedreiro. No
regresso encontrou um antigo companheiro e amigo que ficara com a mesma profissão. Sau-
daram-se efusivamente e seguiram os dois em passeio pelos caminhos da Aldeia. Em certa al-
tura estacaram em frente a um muro impecável no recorte de solidíssimas pedras. Foi então
que o pedreiro que ficou na Aldeia, motivado por irresistível recordação, exclamou:
— Lembra-se Senhor Visconde, fomos nós que o fizemos!
Contaram-nos que o Visconde nunca mais perdoou a graça.
Outra figura típica da emigração, cuja tradição encontrámos, foi a de um «brasileiro» a
quem era dado o tratamento de Coronel, com certeza de milícias do Brasil, porque o Exército
português nunca lhe deu patente. Construiu na Aldeia uma bela Casa no estilo inconfundível
da época em Quinta desafogada e farta. Sensibilizado com o analfabetismo reinante, cujo com-
bate estava sendo conduzido por Passos Manuel em Lisboa, tardando a chegar à Aldeia, cons-
truiu também uma Escola, magnífica para a época, ladeada de residência para o Professor e
Cantina para Estudantes. Como nos primeiros anos nunca chegou o Professor do Estado, o Co-
ronel manteve Mestre contratado que evitou que muitas centenas de crianças entrassem na vida
analfabetas. Da Casa do Coronel, resta hoje a pedraria que ficou de um incêndio ocasional. A
Escola está abandonada porque se não adaptava à Rede Escolar que foi programada. Entretan-
to, na Igreja Paroquial, ainda se pode ver, na sacristia, o retrato do Coronel, que talvez se iden-
tifique, para quem o possa entender, com um sonho generoso ou, se formos impiedosos e, tal-
vez, injustos, de arrependimento amargurado.

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46 — O ARRANQUE NOVECENTISTA
PARA A MODERNIDADE

A luta pela modernidade na agricultura deve menos à acção dos políticos do que ao im-
pulso de ideólogos bem formados. Os políticos, nos postos de decisão, encontram-se compeli-
dos a obedecer à pressão de interesses instalados que alcançam influir nos ventos da mudança.
Assim, historicamente, o lugar ocupado por intelectuais independentes, apresenta-se funda-
mental, embora os êxitos que alcançam dependam de longos prazos exigidos pela radicação
efectiva de ideias novas. Nos meados do século XIX, ficaram assinalados em favor da moder-
nização da agricultura, pioneiros obscuros de que daremos exemplos ao referir transformações
nos campos, e intelectuais de grande vulto de que se destaca Alexandre Herculano que sempre
se bateu em favor dos camponeses, até ao fim da vida no exílio criativo de Vale de Lobos. Para
além de escritor, Herculano nunca deixou de ser agricultor, chegando a colocar no mercado
azeite da melhor qualidade. Nesta época destaca-se também a figura do Economista Oliveira
Marreca, ligado ao Ensino, que muito influiu pela palavra, sendo escassos, mas valiosos, os
seus escritos. O ruralismo literário ficou imortalizado por Escritores como Camilo Castelo
Branco e Júlio Dinis. No entanto, entre intelectuais, avulta de forma singular, a figura patriar-
cal de António Feliciano de Castilho, que soube não esquecer a agricultura.

«Felicidade pela Agricultura»

Com outros pensadores, Castilho alinhou na defesa do «campesinato» tendo em conta


os riscos que se avizinhavam com a implantação dominadora do capitalismo liberal. Usou, po-
rém, mais com sentimento, que abre de par em par as portas à verdade, do que argumentos téc-
nicos, de cujo domínio não poderia dispor. Neste ponto, Alexandre Herculano, autodidata de
grande envergadura, demonstrou cientificamente quanto a enfiteuse se prestava a exercer efei-
to moralizador na apropriação privada da terra, pondo ao serviço dos camponeses, detentores
apenas da força de trabalho, o suporte fundiário indispensável. Efectivamente, se os propósitos
de reforma baseassem na exigência de os camponeses ascenderem de imediato à plena proprie-
dade, outros esquemas apresentavam-se impraticáveis por serem onerosos, dada a carestia da
terra. O foro era pago pela força do trabalho, em contrato de uso perpétuo, transmissível e re-
mível.
Para Oliveira Marreca, a defesa da pequena propriedade camponesa constituía o ponto
fundamental das suas ideias agrárias. Como esquema estrutural aconselhava «o predomínio da
propriedade pequena e média, a distribuição dos nossos terrenos incultos por famílias laborio-
sas, a desacumulação daquela parte dos nossos prédios rurais que pode justamente desacumu-
lar-se». Professor do Instituto Industrial de Lisboa, Oliveira Marreca defendeu o «industrialis-
mo» harmonizado com o desenvolvimento da agricultura, propondo «associar a indústria à
agricultura», profetizando ideias de integração funcional que haviam de vir muito mais tarde.
Castilho, argumentou de forma diversa, embora as suas ideias se encontrem de acordo

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com o rigor científico de que teve pressentimento filosófico: «qualquer Ciência, qualquer Arte,
suprimida, deixaria uma falta, mais ou menos para sentir; mas a falta da Agricultura desataria
de repente a Sociedade, e dentro em pouco extinguiria o próprio homem». Castilho confiou ili-
mitadamente nas conquistas do ensino e da formação cultural. Reconheceu que, no fundo, o
mundo rural dispõe de capacidade para se entregar a uma dinâmica progressiva:
«O rusticíssimo horror das inovações agrárias, esse ridículo espantalho milenário de to-
das as ideias úteis, não se destruiu, porque não pode destruir-se; mas vai recuando para dentro
dos limites de uma prudente e cautelosa expectativa; isto é: a curiosidade moderada, que não
dá passo sem primeiro palpar o terreno, mas que, apenas o sente sólido, adianta e assenta o pé
para não retroceder, ocupa já o lugar do empirismo intolerante e indomesticável.
Não se instruiu ainda o camponês; a tarefa de séculos não cabe em dias; mas fez-se-lhe
entrever a sua ignorância; é uma grande passada no caminho do Progresso. Fez-se-lhe conjec-
turar, por factos sensíveis, que havia, fora da sombra do seu campanário, e mesmo dentro nas
cidades, amigos seus e da terra, habilitados pelos estudo para mestres e guias; que os livros
não eram todos sonhos vãos de Charlatães, e que de muitos deles saíam raios, luminosos, como
os do sol, que fertilizavam a terra largamente; que não havia sacrilégio em trocar a enxada de
Adão pelo instrumento só de ontem inventado, mas que multiplica as forças, as horas, os fru-
tos, as moedas, os ócios inocentes, e os prazeres.»
Mas acentuou a injustiça da condição rural em presença da Cidade e, por isso, lançou a
ideia de umas «Cortes de Agricultura» com representantes muito bem escolhidos para melhor
decidirem:
«Os filhos dos campos, qualquer hierarquia, educação, ilustração, que aliás lhes supo-
nhamos, têm, em toda a parte, em presença dos filhos das Cidades, um não-sei-quê de pudor
e timidez, que parece ser fruto indígena da solidão. Como as crianças e as mulheres, perdem
eles metade das suas forças e recursos naturais, logo que sentem que são observados. A dúplice
desconfiança, em que estão, por uma parte, da sua rudez, por outra, da superioridade e malig-
no escárnio dos bem falantes, lustrosos, e regalados moradores das cidades, onde eles só en-
tram como fornecedores e servos, quebra-lhes metade da sua energia varonil. Criados com o
falar sóbrio, chão, e sem atavios, não só a eloquência dos fazedores de frases os deslumbra,
mas até a verbosidade estéril os enleia e os sofisma; esgrimindo com arrogância, se os não con-
vence, muitas vezes lhes desarma o bom senso, só forte da sua força intrínseca. Finalmente, a
táctica e estratégia parlamentar, ciência oculta que se não aprende em poucos dias, por mais
predisposição que se tenha para desleal e ruim, hão-de sempre trazer o pobre aldeão sincero
como vendido, romper-lhe as fileiras no fervor do combate, voltar-lhe as armas contra si; pre-
cipitá-lo em ciladas, converter-lhe a miúdo a vitória ganha em derrota, endoidecê-lo, desgostá-
-lo, e pô-lo em fuga para o seu campo amado, que o conhece, e que é dele conhecido, e para
entre os seus vizinhos, cujos enganos ele sabe antever e iludir.
É por tudo isto que, se o número os não afoitar, eles serão sempre derrotados; e o bene-
ficio, que à Pátria poderiam fazer, se malogrará a despeito das suas consciências, sãs como os
seus ares, e das suas razões, robustas, mas informes como os seus troncos.
Estas Cortes levariam ainda muitas outras vantagens a quantas para aí se nos têm feito
em nosso nome. As províncias, pelo trato mútuo dos seus representantes, ficar-se-iam conhe-

386
cendo, fraternizariam, aprenderiam, umas com as outras, com que adiantar ou aperfeiçoar as
suas culturas.»
Nos braços da «utopia» que sempre considerou ser sua, Castilho revelou a versão lite-
rária do mais integral dos conceitos de reforma agrária, ligado à legitimidade finita da posse
da terra, perante os imperativos do seu uso:
«— O que a deixar dois anos de poisio, perdê-lo-á, para ser dividido pelos pobrezinhos
da freguesia, ou do concelho, que não tiverem terra.
Meus amigos, se alguém lá por fora nos impugnar o alvitre, que é bom e santo, e que,
adoptado, aumentaria de repente o trabalho, a riqueza dos particulares, e os recursos nacionais;
se alguém, digo, no-lo vier assoviar à porta e injuriar-nos sandiamente, pô-los-emos tão claro,
que até esses o entendam; e ainda o acrescentaremos com algumas indicações sobre prédios
urbanos, que são também um dos usos, e podem ser um dos abusos, da terra.
Adquiri eu uma terra por qualquer título legal; é minha, não há dúvida. Posso arrendá-
-la, posso doá-la, vendê-la, emprestá-la, edificar nela, cultivá-la a meu sabor, etc.
E corrente.
Mas posso eu porventura, por ser minha, deixá-la estar improdutiva?
O senso comum, quanto a mim, responde instantaneamente que não.
E porquê?
Porque haveria nisso lesão de terceiro, que é a sociedade, para cujo benefício extra-na-
tureza, senão contra a natureza primitiva, se instituirá e santificara esse direito.
O avarento poderá ainda ter as suas preciosidades em inércia, e portanto perdidas; por-
que em realidade o oiro e a prata, posto que fecundantes, não são natural e essencialmente pro-
dutivos. Mas o torrão, que Deus fez para nos trazer, nos albergar, e nos alimentar! o torrão, que
por si reverdece todas as primaveras, que as nuvens e o sol andam regando e aquecendo todo
o ano! o torrão que é parte do solo pátrio! o torrão ficar dando ortigas e silvas, por indolência
de um homem estúpido, quando à roda dele muitos braços carecem de trabalho e muitas bocas
pedem pão sem o obter! Eis aí o que, por mais velha que seja a posse, nunca jamais poderá
chegar a ser bom direito.
Folgará de explanar convosco este ponto, que é tão fácil e abundante em considerações,
quão momentoso para felicidade comum; mas levar-nos-ia longe.
Seria pois a Lei, que eu propozesse, substancialmente isto:
— O proprietário que passar um ano sem cultivar algum dos seus terrenos, pagará de
multa três vezes o valor do fruto que esse terreno, bem tratado, houvesse podido produzir.»
E no auge do desencanto utópico quanto aos riscos ou efeitos da modernidade, ameaça-
dora e forte, Castilho subscreve o comentário que representa, sem dúvida, a mais firme das ex-
pressões de radical conservantismo, discutível mas, todavia, enigmático quanto ao futuro:
«Demais, a ocupação agrícola para um povo nem sequer é desabrida. Se tem espinhos...
verdura, flores e frutos lhos disfarçam. Se a sua lida é contínua, a variedade a acompanha; se
lhe chamam canceira, ela é saúde; se pobreza, ela a fonte de todos os haveres; se obscura e hu-
milde, ela a menos dependente; se rude, ela a mais cheia de conhecimentos práticos, a mais vi-
zinha do Criador, e, como tal, a mais fecunda em inspirações.
Acrescentemos que para Portugal não há já hoje outra ocupação possível.

387
A conquista! não. Os descobrimentos? não. As minas? não. A indústria? não. As nossas
conquistas, os nossos descobrimentos, as nossas minas, a nossa indústria, é o solo da Pátria. É
o único mister para que ainda nos restam braços, instrumentos, forças, e liberdade. E o único
lavor, em que nenhumas invejas estrangeiras perigosas hão-de vir perturbar-nos.
O ceptro de D. Afonso Henriques, e o de D. Manuel, perderam-se; o de D. José que-
brou-se. Ceptro, e não escárneo, só pode ser hoje no Trono Português o de D. Sancho I, e o de
D. Dinis.»

O projecto de Lei de Fomento Rural de Oliveira Martins

Oliveira Martins deixou a independência, aderindo ao Partido Progressista. Seus biógra-


fos afirmam que procurava, logicamente, a Pasta da Fazenda ou da Agricultura se fosse desta-
cada das Obras Públicas. Mas, como em política não se encontra a lógica, depois da vitória
eleitoral, ficou simplesmente Deputado. Alguns comentadores referem que. Oliveira Martins,
gravemente ofendido, se vingou, apresentando à Câmara, em 1887, o «Projecto de Lei de Fo-
mento Rural». Se acaso o Projecto significasse apenas vingança, muito perderia de tudo o que
efectivamente representa quanto a significado histórico. Estamos certos de que Oliveira Mar-
tins elaborou o seu Projecto com a alma de Sociólogo, Economista e Historiador atenta à misé-
ria em que se debatia a vida rural e camponesa, abandonada de instrumentos válidos de política
agrária inovadora. Ficou escrito no preâmbulo do «Projecto»; «... nada se adquire sem esfor-
ço. A natureza não dá, oferece: é mister que o homem escolha e tome». Quanto à «escolha»
Oliveira Martins ultrapassa a sua época ao encarar a emigração como resultante da «pletora»
no Norte, sem que o Sul, «deserto», ofereça mecanismos de translação interna, julgados mais
vantajosos do que a miragem da atracção exterior. No que respeita à «tomada» de recursos na-
turais, Oliveira Martins aponta o aproveitamento dos incultos que dominavam mais de metade
do território agrícola e florestal, que poderiam ser «declarados vagos e integrados no domínio
do Estado». Como forma de povoar desertos preconiza a colonização. Os incultos do Estado
e dos Municípios seriam base das colónias que radicariam os agricultores por meio do afora-
mento, sempre defendido por Herculano. O «Projecto» prevê larga cópia de medidas de políti-
ca de que servem de exemplo o combate ao fraccionismo de prédios rústicos, a reorganização
do crédito agrário, a drenagem dos terrenos pantanosos e a construção de albufeiras, a arbori-
zação das dunas, encostas e cumeadas, o associativismo de proprietários. O «Projecto» de Oli-
veira Martins determinou a hostilidade das forças políticas de todos os quadrantes e não che-
gou sequer a ser discutido. Ficou, no entanto, a figurar no património histórico como lúcido e
fundamentado projecto no limiar frustrado da «Reforma Agrária» que a Revolução Liberal re-
presentou, conduzindo a renovado abandono dos interesses camponeses.

Sindicalismo agrário

A extinção pura e simples, em 1834, do Juiz do Povo e Procuradores do Povo, Mesteres,


Casa dos Vinte e Quatro e Grémios dos diferentes Ofícios, embora representasse um corte com
toda a tradição contestada pela Revolução Liberal, constituiu um colapso perturbador de todo

388
o sistema funcional dos problemas do trabalho. Só em 1894 se legislou quanto à constituição
de Sindicatos Agrícolas e entretanto poderosas forças se confrontaram perturbando todos os
mecanismos da representatividade da vida rural. A constituição de Sindicatos Agrícolas ficou
muito aberta: «é permitida aos agricultores e indivíduos que exerçam profissões correlativas à
agricultura a fundação de associações locais, com a denominação de sindicatos agrícolas, ten-
do por fim principal estudar, defender, e promover tudo quanto importe aos interesses agríco-
las gerais e aos particulares dos associados».
Ao implantar-se a República existiam 77 Sindicatos Agrícolas que o regime não contes-
tou. Pelo contrário, estes Sindicatos multiplicaram-se, mantendo o carácter de associações de
proprietários e lavradores. Na altura da sua extinção em 1935, contavam-se 390 Sindicatos
Agrícolas. Foram substituídos pelos Grémios da Lavoura de inscrição obrigatória e extensiva
a todos os proprietários rústicos.
A legislação de 1894 atribuiu aos Sindicatos Agrícolas a faculdade de, além da coloca-
ção dos produtos dos associados e da compra de adubos e alfaias, concederem empréstimos,
com os seus capitais, aos respectivos sócios, com a garantia pessoal e com o penhor de colhei-
tas, gados e alfaias. Os Sindicatos Agrícolas não deixavam de encarar problemas do trabalho,
mas apoiavam, pode dizer-se, exclusivamente, os interesses dos agricultores enquanto traba-
lhadores, não dando abrigo a questões de assalariados. Foi somente depois da implantação da
República que o movimento sindical urbano, laboral, tentou ramificações rurais, realizando-se
vários Congressos de Trabalhadores Rurais, sendo o primeiro efectuado em Évora no ano de
1912 com a presença de alguns Sindicatos Agrícolas. O movimento de greves agrárias desen-
cadeou, durante a República, 70 greves de trabalhadores rurais entre 1910 e 1925. A dissolução
dos Sindicatos Livres em 1935 suprimiu todas as tentativas de sindicalizarão de assalariados
rurais, durante a época a que nos estamos referindo. Depois de 1935 foi facultada aos trabalha-
dores assalariados, bem como aos camponeses, a Casa do Povo, entregue à gestão paternalista
dos proprietários, a quem era dada a designação de sócios-contribuintes, a título obrigatório.
Ainda tivemos ocasião de contemplar na Câmara Corporativa e assistir a intervenções de um
«latifundiário» a representar os interesses dos «assalariados».

A evolução do problema florestal

A barreira oferecida pelos Monteiros-mores à destruição do património florestal, como


vimos, foi extinta quando as Constituintes liberais suprimiram as Coutadas. Mas, de seguida,
fez-se a entrega da vigilância de tão preciosos recursos a «Administradores das Matas do Rei-
no» de formação militar. Assim foi até ao momento em que a extinção da «Administração Ge-
ral» abriu caminho aos Silvicultores que, formados no estrangeiro, se colocavam ao serviço do
País. Constituem exemplo, José Maria Magalhães e Bernardino Barros Gomes que se empe-
nharam no trabalho científico de revelar o valor da floresta como sistema de protecção do am-
biente e de defesa da água nas diferentes condições ecológicas do território nacional. Depois
de estudos empreendidos em visita a escolas florestais europeias pelo Dr. Venâncio Augusto
Deslandes, o Ministro das Obras Públicas, João Crisóstomo de Abreu e Sousa, criou o Curso
de Silvicultura no Instituto Geral de Agricultura, em 1864.

389
Este será o ponto de partida para a abertura da nova fase no estudo científico do proble-
ma florestal português, que deu origem à formação de profissionais conscientes da função da
floresta na defesa do solo, da água e da vida rural e camponesa. Todavia no período mais criati-
vo do alastramento da mancha de pinhal privado, do litoral ao interior das Beiras, a floresta
progrediu como «mealheiro» de entesouramento camponês, tomando o lugar das queimadas
do nomadismo pastoril. Estas deram lugar à floresta de produção que deu garantias de abaste-
cimento de consumos múltiplos ligados ao desenvolvimento regional e de indústrias de serra-
ção ao serviço da construção civil, das vias-férreas, da carpintaria, e da marcenaria de mobi-
liário e de viaturas.

As últimas cabras do Gerês

De um livro intitulado «Caça», de autor anónimo e publicado em Lisboa em 1900.


transcrevemos:
«tradições... tão bem contadas como eu as ouvi falavam dos ursos que ali houvera, co-
mo hoje falarão das cabras que já não haverá talvez: bichos que tanto se harmonizavam com
aquelas regiões alpestres, para maior atractivo da natureza, recreio do espírito, alimento da ina-
ta poesia da alma e cultura do esforço nativo do homem.»
[...]
«Corria o mês de Junho de 1871... Quis o acaso que as batidas a furto, nos coutos de
Espanha, mais frequentes com o chamamento dos carabineiros da raia à guerra civil, tivessem
feito refugiar em Portugal o único e dizimado bando de cabras, que naquelas paragens restava
de maior quantia. Eram sete; andavam contadas, e a sua cabeça, por assim dizer, a preço. Mas
defendiam-se as infelizes, e bem, com os recursos de que a natureza é pródiga para prolongar
até ao preciso a existência das embora condenadas vítimas.»
[...]
«Apressavam-se os aprestos, em Braga, de uma caçada para seu extermínio. Soubemo-
-lo por acaso, em casa do Conde de Bretiandos, e da boca do próprio Conde, parente ainda,
creio, do meu companheiro. Tanto bastou para, nos confins da Pátria, ver-me logo. na imagina-
ção de volta com esses ibéricos bichos!»
[•••]
«Em Brufe, aldeia da encosta fronteira — a um tiro de espingarda das alturas, mas dis-
tante pelo vale profundo em que corre o Homem — é que vivia o verdadeiro caçador dos sí-
tios, o padre Gayo; esse sim, caçador de gema. Alto, esguio, quase só a pele e o osso, mas de
aço as canelas. Bom atirador; mata-as no ar, diziam dele, a propósito de cabras. Mandara uma
por ele morta a D. Pedro V; e a do museu de Coimbra parece-me dele também (...) discutiu-
-se em conselho a questão magna: se deviam ser combatidas primeiro as cabras, se os corsos.
O corso é mais vagabundo, a cabra mais pressentida. Os tiros da caçada anterior podiam preju-
dicar a imediata. Como mais certos de encontrar os primeiros, e mais próximos, prevaleceu ser
a esses dedicado o dia seguinte (...) Nas portas morrera, com duas balas, um corso, logo leva-
do de presente a Braga (perto dali léguas!), pelo próprio que o matara, ao Conde de Bretiandos.
Outro foi ferido, morrer a Espanha, de onde, no dia seguinte, pouco mais do que os ossos se

390
trouxeram. Tinham-no devorado os lobos, com a ajuda de um podengo branco, que o seguira
e que disso trazia denúncia pelas manchas de sangue na pelagem.»
[...]
«O dia estava claro, abrasador. Nem uma aragem. Havia o silêncio, não o da morte, o
da vida que nos cercava: o dos entes que se não percebem quase e que vão vivendo sem querer,
uma folha caída, uma pedra a deslocar-se, a água que desliza em murmúrio; tudo sussurros que
silêncio eram, serenos, eternos, que lá estavam, e lá ficaram. Viam-se árvores vencidas pela
pedra, que domina ali e parece crescer; rasteiros zimbros, carvalheiras raras, de troncos retorci-
dos, abatidos e curvos; e naquelas cumeadas por além fora, vagas, como no mar, tanto para os
lados de Portugal como para os da maior, mas não mais bela Espanha, a perderem-se de vista
no horizonte! Estava no ponto mais culminante, no mais elevado de toda a serra, em gozo inde-
finido que dilata a alma, com um pé na terra e outro no céu, no infinito, com a entremeado vi-
são, que poderia em breve ser realizada, de uma... de uma? de várias cabras, uma delas morta
— e porque não duas? ou mais! ali, aos meus pés. Visão de triunfo! vaidades humanas, peque-
nezas... E tanto se demoraram, que adormeci, para continuar sonhando.»
[...]
«Acordei ao som e ao eco repetido da voz do amigo Marcel, que dava a caçada por fin-
da... ouviam-se já passos e vozes dos que retiravam, como nós, dos seus postos. Teriam sido
mais felizes? Não ouvira eu tiros, presságio certo de mau êxito.»
Mas este «mau êxito» não evitou que, passado pouco, as cabras do Gerês fossem dadas
como extintas.

O Primeiro Congresso Agrícola

Em Fevereiro de 1888 realizou-se em Lisboa o Primeiro Congresso Agrícola promovido


pela Real Associação Central da Agricultura Portuguesa. O Congresso constou de seis secções
assim designadas: Cereais, farinhas e legumes; Gados, lãs e pastagens; Vinhos, álcoois, azeites
e óleos; Tarifas e serviços de caminhos-de-ferro; Matrizes prediais e tributos, seu lançamento
e cobrança; Recrutamento, emigração, polícia rural e crédito agrícola.
A Comissão executiva constava de 21 individualidades que se reconhece pertencerem,
de forma esmagadora, ao grupo sócio-político dos agrários alentejanos e ribatejanos, figurando
um minhoto, o maior proprietário regional, com terras arrendadas no Vale do Lima a centenas
de «caseiros». Neste Congresso não se descortina a presença de Técnicos, e o Instituto Agríco-
la de Lisboa, ou melhor, seus Mestres, que haviam participado largamente na Exposição Agrí-
cola de 1884, mantiveram-se ausentes. Por mera coincidência, ou talvez não, o Congresso rea-
lizou-se quando Oliveira Martins tinha apresentado para apreciação parlamentar o Projecto de
Lei do Fomento Rural que nunca chegou a ser discutido. Vivia-se portanto um momento agrá-
rio «quente» e sobre o assunto o Congresso tomou posição sumária, mas significativa:
«Entre as propostas apresentadas ultimamente ao parlamento figura um projecto de co-
lonisação das províncias do Alemtejo e Algarve. Envolve esse projecto, alem de um perigo
enorme para a economia rural d'aquellas regiões, um verdadeiro attentado contra o direito de
propriedade, pois considera terrenos incultos, e portanto sujeitos à expropriação por utilidade

391
publica, para o estabelecimento das projectadas colonias todos os terrenos que permanecerem
sem cultura por espaço de cinco annos.
É geralmente sabido que os gados manadios de todas as especies constituem a principal
riqueza da agricultura transtagana. Por meio d'elles se exploram vantajosamente as importan-
tes e vastíssimas pastagens naturaes d'aquella região; sendo mais vantajoso para ella e outras
do paiz, nas mesmas circumstancias, continuar a utilisar a natural aptidão pascigosa d'esses
terrenos, do que transformal-os total e immediatamente em terras lavradias.
Todos sabem quanto é grave e arriscado alterar súbita e impensadamente as condições
culturaes de uma região qualquer. As praticas longamente adquiridas têem por si a experiência
de largos annos, e ás vezes de muitas gerações. Atacal-as a esmo, de frente, e pretender subs-
tituir-lhes um regimen economico inteiramente diverso, não nos parece exequível nem pruden-
te na actualidade.»
Efectivamente o Congresso não reservou lugar para qualquer debate sobre estruturas
agrárias, mas é sintomático que tenha assinalado o «perigo enorme» do «projecto de colonisa-
ção» do Sul que Oliveira Martins acabava de propor, baseado em pareceres insistentemente
apresentados ao País, como os de Herculano de que talvez ainda se guardasse memória. Para
o Congresso a questão principal era a dos Cereais e, por isso, o tema foi apresentado em pri-
meiro plano, subordinado a «uma grande e indiscutível verdade» anunciada pelo «Sr. Fontes»
como rótulo da política cerealífera regeneradora de 1856:
«Se reflectirmos que os cereaes são a base da alimentação dos povos, teremos dito assás
para concluir que este ramo de cultura merece que se empreguem todos os esforços para o pro-
teger e tornar florescente.»
Esta «indiscutível verdade» de fazer parte da linguagem dos políticos em emergências
agrárias, mas não era melhor nem pior do que outras «verdades» que sempre foram anuncia-
das. Nesta altura o Congresso, preocupado ou alarmado com o trigo alentejano, clamava:
«pouco mais de uma dezena de fabricas de moagem, que de portuguezas só têem o no-
me, poderam, sob a protecção do estado, substituir-se aos milhares de compradores de cereaes
nacionaes, que espalhados por todo o reino fomentavam nas differentes localidades a industria
cerealífera; substituir-se aos milhares de moinhos de vento e azenhas, que n'essas mesmas lo-
calidades reduziam a farinha os cereaes panifícaveis: e collocar sob a sua immediata influencia
e dependência os industriaes, que nas mesmas localidades fabricavam o pão; para, assentes as-
sim os fundamentos do mais feroz monopolio que tem havido em Portugal, declararem guerra
de morte aos cereaes nacionaes, pretendendo substituil-os em todo o paiz pelos cereaes estran-
geiros, com ruina, em grande parte consummada já, dos proprietários das terras cerealíferas,
dos donos dos moinhos e azenhas, e dos proprios consumidores, a quem dão hoje por preço
exaggerado pão palhinha, em vez do precioso pão dos trigos, milhos e centeios nacionaes, ti-
dos e havidos sempre como excedentes entre os melhores de todo o mundo.
Senhor! — Destruir esse monopolio injusto e anti-patriotico é o primeiro dos pedidos,
que o congresso agrícola eleva a Vossa Magestade.
Mas o congresso julga indispensável que, por uns ou por outros meios, o estado fulmi-
ne, quebre e destrua desde já para sempre o monopolio estabelecido contra os cereaes nacio-
naes, porque são estes os que devem formar a base da alimentação do povo.

392
E confia plenamente em que Vossa Magestade, providenciando, como cumprir, para es-
se fim, evitará por um lado a injusta ruina de mais de um milhão de proprietários, agricultores
e trabalhadores agrícolas; e pelo outro defenderá a industria cerealífera contra a guerra, que es-
trangeiros ou estrangeirados lhe estão fazendo em proveito dos cereaes estrangeiros.»
Efectivamente a Indústria de Moagem aprontava-se para conquistar as posições tradi-
cionais da moagem artesanal que se apresentaria incapaz de suportar, aparentemente, a concor-
rência das tecnologias, na altura, modernas. Tratava-se efectivamente da instalação «do mais
feroz monopolio que tem havido em Portugal» na óptica do Congresso inteiramente correcta,
como mais tarde o poder económico e político da «Moagem» havia de confirmar.
A gravidade do problema agrário era efectiva e o Congresso colocava-se numa posição
correcta quando afirmava que «convém destruir os erros e refutar as insensatas asserções, com
que se tem querido justificar o estado actual». Apresentam grande actualidade comentários co-
mo o seguinte:
«Diz-se que, se a lavoura nacional se não acha em estado de luctar com a produção
estrangeira, se deve isso á ignorância dos nossos lavradores, que, em vez de se queixarem, de-
veriam antes instruir-se e aperfeiçoar-se.
Mas do mal de que se queixam os nossos lavradores, queixam-se também os lavradores
de todas as nações da Europa: em nenhuma d'ellas a producção nacional tem podido competir
com a importação cerealífera da America e da índia.
Extensas campinas virgens são ali successivamente arroteadas com o auxilio das machi-
nas mais aperfeiçoadas; e a sua extraordinária producção é trazida, por preços minimos de
transporte, aos mercados europeus, por preços muito e muito inferiores aos que se calculavam
em 1865.»
Quanto ao panorama interno, o Congresso esclarece:
«Tanto mais que, monopolisado o commercio dos trigos pelos donos das fabricas de
moagem, que interessam mais em moer os trigos americanos do que os nacionaes, o lavrador
portuguez nem por baixo preço acha muitas vezes quem lhe compre os seus trigos.
Antigamente cada padeiro, nas cidades, nas villas e aldeias, comprava o trigo de que ca-
recia para a sua industria, fazia-o moer no moinho ou azenha mais próxima, e d'elle fazia o
pão que vendia. Eram portanto milhares de compradores de trigo nacional, que pelo seu nume-
ro nunca podiam constituir monopolio.
Estabelecidas porém as fabricas de moagem, começaram ellas a fornecer a farinha aos
padeiros, que lh'a acceitaram facilmente para se dispensarem de ter depósitos de trigo e de fa-
rinha com maior ou menor empate de capital; os moinhos e as azenhas foram por isso ficando
abandonados; os padeiros viram-se dentro em pouco dependentes e recebendo completamente
a lei das fabricas de moagem; e estas, porque são poucas e poderosas, estabelecem de facto o
mais atroz monopolio de que ha memoria.
As estradas e caminhos de ferro, que para os lavradores serviram de lhes augmentar os
jornaes e os impostos, não lhes servem para trazer os seus trigos aos centros populosos, porque
as fabricas de moagem lh'os não querem; mas servem para estas levarem, e até com portes re-
duzidos, as farinhas dos cereaes estrangeiros aos últimos recantos das províncias.
Já se não contentam com expulsar dos mercados os trigos nacionais; vão substituindo

393
pelos trigos palhinhas os milhos, e diligenciando por substituir também os centeios.»
Todavia o argumento da protecção a «milhares de moinhos de vento e azenhas» afigura-
-se mero complemento da defesa de outros objectivos, visto que a moagem tradicional não
constituía actividade integrada na produção agrícola que aos agrários convinha defender. Tra-
tava-se de actividade artesanal que tinha sido libertada de vexames feudais com a Revolução
de 1820, quando foram banidos os direitos sobre a moagem de cereais ao abrigo dos quais os
donatários cobravam tributos nos seus domínios. O sector artesanal iria, sem dúvida, travar lu-
ta de morte, ou de vida, com a grande indústria moderna nascente. Os agrários não poderiam,
nesta altura, aperceber-se do problema que iria ser colocado em causa neste domínio das estru-
turas industriais e, principalmente, da energia, opondo a autosuficiência regional a crescentes
dependências externas ou de recursos não renováveis. Não poderia estar em causa a problemá-
tica industrial moderna, mas apenas o monopólio da importação de cereais que iria cair nas
mãos dos industriais, o que era muito importante, sem dúvida, e o oligopólio que se formava
também na compra da produção nacional, com a destruição da procura atomizada e concorren-
cial de «milhares de compradores de cereais nacionais» que os moinhos e azenhas representa-
vam, com vantagem para os produtores de cereal. Mas interessa registar que o Congresso dos
agrários não soube encontrar para propor qualquer modalidade integradora da industrialização
de cereais na actividade agrícola, de forma a evitar que a Indústria nascente se apropriasse de
valores acrescentados. Quanto à solução cooperativa apenas se regista uma proposta de «crea-
ção de cooperativas de crédito agrícola concelhio».
Assim, o combate ao «mais feroz monopolio» da Moagem deu origem a propostas utó-
picas de protecção fiscal a unidades industriais que se dispusessem a laborar cereais de produ-
ção nacional, chegando mesmo a ser aconselhada a via nacionalizante da construção de uma
grande Fábrica «do Governo». Mas, vejamos o que as propostas acrescentam aos pedidos que
podemos considerar normais de protecção aduaneira:
«Acresce que, averiguado como está, que o trigo nacional dá pelo menos 80 por cento
em farinha, o direito d'esta não deve ser superior ao do trigo, e forçar os moageiros a preferi-
rem os trigos nacionaes aos palhinhas, que provavelmente lhe não dão aquella percentagem.
A pequenez do direito differencial, junta com o augmento do direito do trigo, e com a
impossibilidade em que as fabricas se vejam de augmentarem o preço do pão, fará com que el-
las tenham interesse em comprar e moer de preferencia trigos nacionaes, que em igualdade de
peso lhes fornecem maior e melhor quantidade de farinha.
Alem d'este meio directo, propomos outro indirecto, mas não menos efficaz. É o da pro-
tecção fiscal a todas as fabricas, estabelecidas ou que se estabelecerem, que se obrigarem a
moer só cereaes nacionaes.
Essa protecção deverá conceder-se indistinctamente aos moinhos de vento, ás azenhas,
e ás fabricas movidas por vapor, sitas em qualquer ponto do paiz.
E consistiria na isenção de direitos de importação do machinismo aperfeiçoado para
moagem e peneiração; e na isenção, durante dez annos, da contribuição industrial e seus addi-
cionaes.
Procuraríamos assim, por um lado, multiplicar por todo o paiz os postos de compra,
moagem, e panificação dos cereaes, proprios para esse effeito; e pelo outro, habilitar as novas

394
fabricas a resistir á guerra e concorrência das fabricas de moagem de cereaes estrangeiros.
O proprio governo deverá ser o primeiro a dar o exemplo, montando quanto antes uma
fabrica de moagem pelos mais aperfeiçoados processos modernos, com capacidade sufficiente
para moer o trigo e o milho nacional necessário para o inteiro fornecimento, não só do exercito
e armada, senão também dos demais estabelecimentos dependentes do estado, e ainda de
quaesquer padarias municipaes, que em odio do monopolio fosse mister estabelecer no caso
de se augmentar o preço do pão.»
O Congresso assume posições quase dramáticas;
«Não pedimos, porém, que se prohiba a importação de cereaes; nem isso seria possível
no estado actualmente definhado da cultura nacional; o que pedimos por ora é que se eleve o
direito de importação, de modo que se torne efficazmente protector.»
Mas parece evidente que o Congresso teme a «lei da fome»;
«Mas porque ha de elevar-se o preço do pão? Antigamente, quando o trigo se vendia a
600 e 700 réis por alqueire, o arratel de pão de família vendia-se de 30 a 35 réis, e o pão fino
de 40 a 45 réis, o que corresponde, tomados só os preços máximos, a 76 réis por kilogramma
do primeiro, e a 98 réis por kilogramma do segundo.
E hoje, que o melhor trigo palhinha, com os direitos pagos, custa 450 a 470 réis; e é
moido e peneirado pelos processos modernos; vende-se o kilogramma de pão de família a 80
réis; e o pão fino, dividido em pães de 100 grammas, a 150 réis. Isto é espantoso.»
Não oferece dúvidas que os agrários do século XIX não descortinavam para a gestão
dos latifúndios que haviam herdado ou concentrado em resultado de manobras de especulação
financeira e política, outra solução que não fosse o Trigo, entregue ao gigantismo capitalista,
monopolizador da terra e proletarizador da população rural que não encontrava, para a sua mi-
séria, alternativa diferente da angústia da emigração.

395
47 — AS GRANDES INDÚSTRIAS AGRÁRIAS

Esquecidas as tentativas pioneiras do Conde da Ericeira, ultrapassados os esforços pom-


balinos para alcançar eficaz implantação industrial, somente muito tarde se modernizaram in-
dústrias que, mau grado a dependência de matérias primas agrícolas e florestais, sempre se co-
locaram na posição absurda de pretenderem fundamentar seus lucros, na exploração desmedi-
da das fontes que se encontravam minguadas na agricultura.

A indústria de Moagem de cereais

São antiquíssimos os dispositivos destinados a proceder à moagem dos cereais. Para


além do pilão rudimentar que procede a simples esmagamento, os Etnógrafos classificam os
aparelhos de moagem em três categorias:
A sangue, quando as mós são accionadas pelo homem o que sucede desde a pré-histó-
ria, ou por animais que traccionam dispositivos diversos que recebem o nome de atafonas.
A água, com roda hidráulica horizontal ligada à mó por um veio, ou roda vertical ligada
por engrenagem ao veio da mó o que se encontra nas azenhas. A energia hidráulica também
pode ser captada por moinhos na passagem para reservatórios que se enchem e esvaziam com
o fluxo das marés.
De vento, movidos pela energia eólica por meio de velas montadas em eixo que roda
em tejadilho rotativo, ou movendo-se todo o edifício face ao vento.
Estes dispositivos constituíram ao longo dos séculos o equipamento artesanal que mais
apoiou as necessidades de preparação de alimentos para o homem e também para os animais.
Todos os cereais beneficiavam de preparação tecnológica que fornecia produtos de moenda,
simplesmente triturados ou transformados em farinha.
Em período recente, com o lançamento das bases da moderna indústria, a moenda dei-
xou de ser prática rudimentar de trituração de cereais «para se tornar operação complexa de
trituração e peneiração com alta selecção de produtos, tratados em múltiplas operações dife-
renciadas consoante a sua natureza para chegar a um perfeito aproveitamento do cereal, e ter-
minar com a obtenção de farinha e subprodutos completamente separados», assim refere Joa-
quim de Sousa Machado em trabalho intitulado «Indústria de Moagem» do II Congresso da In-
dústria Portuguesa.
Os avanços tecnológicos que assinalam a passagem do artesanato à indústria proces-
sam-se com a transformação do moinho que passa a constituir equipamento complexo e bas-
tante pesado que exige novas formas de energia. A adopção da máquina a vapor marca o pri-
meiro passo da industrialização da moagem, e vem lançar o alarme, conforme noutras passa-
gens do presente trabalho se referiu, entre os moleiros largamente disseminados no espaço ru-
ral e arrabaldes das cidades. Efectivamente os moinhos faziam parte ou estavam integrados re-
gionalmente nas próprias estruturas de produção cerealífera. Mas o facto desta produção, parti-
cularmente a do trigo, ser deficitária para abastecimento nacional, conduziu a sistemática im-

397
portação de trigo exótico através dos portos marítimos mais importantes como Lisboa e Porto.
A chegada a esses portos de trigos americanos que, a baixo preço vieram competir com os tri-
gos nacionais, determinou a instalação junto aos portos da moderna indústria de moagem,
pronta a arrecadar boas margens de transformação com cereal barato, desinteressando-se do
trigo nacional que não encontrava procura no interior.
Perante os protestos dos produtores nacionais, Elvino de Brito legislou em 1899, de for-
ma a impor às moagens «cotas de rateio do trigo de produção nacional só lhes sendo permitido
importar trigo exótico depois de terem recebido o cereal nacional que a respectiva cota de ra-
teio lhes fixava». O preço da farinha foi tabelado «entrando-se assim em franco regime de con-
dicionamento com a creação de uma taxa de moagem». Neste quadro a indústria de moagem
enfrentou a luta de concorrência entre industriais o que conduziu à formação de unidades in-
dustriais poderosas. Com a I Grande Guerra, o poder da grande Moagem acentuou-se, o que
levou à criação da União dos Moageiros, em 1922, que procurou «opor-se ao domínio da gran-
de moagem».
Em 1926 o Governo proibiu a montagem de novos moinhos. Mas a Campanha do Trigo
de 1929 veio colocar o País em face de problemas de excesso de produção nacional que a Moa-
gem instalada não tinha interesse nem capacidade de armazenamento bastante para resolver.
Por legislação de 1933, na euforia da Campanha, foi incentivada a instalação de novas fábricas
de farinhas espoadas o que aumentou a capacidade de produção instalada.
Em 1934 procedeu-se à organização corporativa do sector fundando-se a Federação Na-
cional dos Industriais de Moagem, sendo reorganizada a indústria com a expropriação de «108
fábricas e incorporadas 18 cotas» pela emissão de obrigações para pagamento de indemniza-
ções. Organizada a indústria o monopólio do comércio de trigo foi entregue à Federação Na-
cional dos Produtores de Trigo que o adquiria à produção, encontrando-se a importação condi-
cionada.
Ao longo da história recente a indústria de Moagem tem sido objecto de tentativas, cer-
tamente utópicas, para que se integre, efectiva e desinteressadamente, em objectivos de políti-
ca de Pão nacionais. O mais vivo dos debates resulta das opções que importa enfrentar para
que a protecção da produção nacional se apresente compatível com as potencialidades agrá-
rias, dadas as características do produto — o Trigo — no quadro da segurança do abastecimen-
to do País. Em face das dificuldades sempre registadas no que se refere a objectivos de autosu-
ficiência de trigo, o Pão tem sido objecto de estudos aprofundados, tendo sido criado organis-
mo especializado como o Instituto Nacional do Pão, no sentido de se alcançarem «incorpora-
ções de cereais secundários, como o milho, centeio, cevada, trincas de arroz e até mesmo fécu-
la» para que fossem obtidas farinhas destinadas ao fabrico do que já recebeu o nome de «Pão
português».
Modernamente todo este caminho sofreu o desamparo de ideologias autárcicas que não
têm em conta o problema da qualidade dos cereais produzidos no Mundo. Os tipos de farinhas
fabricadas pela moderna indústria apresentam-se cada vez mais variados constituindo maté-
rias-primas tanto quanto possível da melhor qualidade. Cada vez mais, nas sociedades moder-
nas, o Pão deixou de ser a base da alimentação, perdendo a qualidade de «pão político» desti-
nado a manter a miséria humana em menores proporções. Na grande diversidade dos seus ti-

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pos, o Pão difunde-se, dando carácter a regionalismos muito antigos e a novos aperfeiçoamen-
tos, e as farinhas servem também de matéria-prima para fabrico de massas e de bolachas que
alcançam níveis de grande luxo. Sendo assim, importa reconhecer que a época do condiciona-
mento industrial e dos regimes cerealíferos teve seu termo, embora se não deva esquecer a im-
portância do Pão na vida de grande parte da Humanidade, em regiões onde se encontram culti-
vados os cereais panificáveis. Tendo em conta os riscos que ameaçam a segurança alimentar
dos povos, os cereais, seu armazenamento e transformação industrial, constituem domínio que
não pode ser abandonado pela gestão prudente.

A poderosa indústria do papel

Palavras leva-as o vento" a menos que se abriguem nas Lendas, antes de gravadas na
Escrita ou em audio-visuais modernos. Não oferece dúvida que a Tradição oral tem servido de
cimento da Cultura a formar o alicerce de Civilizações. Mas, "quem conta um conto acrescenta
um ponto" e, por isso, as Comunidades, e mesmo Deus como vamos ver, reconheceram a im-
portância de gravar o que foi dito e deve ser lembrado. Para o fazer tornou-se indispensável
fabricar "suportes" da palavra gravada o que, recentemente, deu motivo à invenção de indús-
trias e à montagem de negócios que geram potentados multinacionais, a promoverem tecnolo-
gias, mobilizando matérias primas, de entre as quais o Eucalipto.
De entre os testemunhos arqueológicos, interessa-nos destacar aqui o que foi encontra-
do, logo no Paleolítico, sob a forma de insculturas, gravuras de sinais geométricos de impossí-
vel leitura, bem como representações de animais e figuras humanas. No Neolítico são vulgares
autênticas expressões de Arte em pinturas rupestres e ornamentos de vasos e outros utensílios.
O que importa a esta referência, é o facto de o Homem ter começado a gravar ou pintar em
"suportes" não concebidos para tal fim, bastando-lhe uma rocha ou parede de caverna.
Especialistas da linguagem escrita, referem-nos a evolução da pictografia no sentido da
ideografia que culmina na fonografia, formando o silabário e o alfabeto. São múltiplas as ex-
pressões escritas da linguagem e da palavra encontradas desde o Mediterrâneo ao Oriente. Ad-
mitem alguns que a mais antiga terá sido imaginada nos anos 4.000 a 3.000 a.C. pelos Sumá-
rios para registo de operações comerciais, o que representa realidade utilitária e prosaica. Os
Egípcios desenvolveram a escrita hieroglífica a partir de 3.500 a.C. sendo-lhes atribuída a in-
venção dos princípios do alfabeto há 5.000 anos, o que depois veio a ser adoptado por Fenícios
e desenvolvido por outras Civilizações. Os Egípcios legaram-nos prova do transcendente valor
da Escrita, gravando na pedra apaixonantes inscrições de filosofias que, ao fim de milénios,
faz pena não corresponderem ainda a praticas actuais. Serve de exemplo o "Discurso do Cam-
ponês Eloquente" ao afirmar que os funcionários do Estado têm as seguintes obrigações: "agir
como pais dos orfãos, maridos das viuvas e irmãos dos abandonados; prevenir o roubo e prote-
ger o miserável; executar a punição dos que a merecerem; julgar imparcialmente e não afirmar
falsidades; promover um tal estado de harmonia e prosperidade que ninguém possa sofrer fo-
me, frio ou sede". Assim a Escrita adquiriu transcendente prestígio, e podemos observar teste-
munhos raros, ou transcrições asseguradas por Povos que conheceram os originais perdidos.
Um dos mais antigos exemplos da palavra fundamental gravada é o Código de Hamurabi, de

399
1.600 a.C.. de que o Museu do Louvre guarda um exemplar escrito em pedra monumental. Te-
ria sido pouco mais tarde, no século XIII a.C. que "depois do Senhor ter acabado de falar a
Moisés no monte Sinai, entregou-lhe as duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas
com o dedo de Deus". Assim foi porque Javé disse a Moisés: "sobe até Mim. ao alto do monte,
e fica ali para que eu te dê as tábuas de pedra com as leis e os preceitos que nelas escrevi para
lhos ensinares". E foi com tão pesado fardo que Moisés desceu o monte de Sinai, a enfrentar
o "Bezerro de Oiro" entretanto preparado e venerado, que seria a simbólica previsão de todos
os complexos industriais e comerciais que haviam de chegar mais tarde, como veremos, a po-
luir os ares e as águas e endeusando o Eucalipto.
Há 5.000 anos foram inventadas folhas onde os Escribas do Velho Egipto desenhavam
os hieróglifos, folhas que depois corriam a transmitir a outrem ou à posteridade, mensagens,
notícias, ideias, a dar resposta a muitos sofrimentos e porventura também a esperanças e ale-
grias. O Papiro foi a matéria prima, planta espontânea na África tropical, em solos húmidos
das margens dos cursos de água ou inundáveis. A recolecção desta planta foi alvorada a abrir
ao Mundo novos horizontes, mas não colocou em risco os equilíbrios naturais, nem mesmo a
cultura a que foi submetida. O mesmo aconteceu com a tecnologia de fabrico. Apenas desfazia
em tiras o caule celulósico, tiras que, depois de cruzadas, eram submetidas a simples pressão
e secagem. Seria impecável a inoquidade do processo e a "industrialização do Papiro ao longo
de 3.000 anos não veio criar problemas ambientais. Enquanto os peixes e as aves se multiplica-
vam, bem como as plantas convertiam a luz do Sol em clorofila, diversas Civilizações do Me-
diterrâneo celebrizavam o Papiro gravando nele conceitos filosóficos profanos, estrofes imor-
tais e testemunhos sagrados. Em consequência das guerras foram queimados preciosos Papiros
em Bibliotecas incendiadas como a de Alexandria. Pesquisas arqueológicas recentes permiti-
ram salvar dos efeitos do estrago do tempo, raros exemplares.
A cultura do Papiro tinha exigências climáticas que não permitiram a sua difusão em re-
giões temperadas e frias, ao contrário do que sucedeu com o Eucalipto. Estamos convencidos
que a sua cultura nunca chegou a ser tentada no território hoje português, circulando, talvez.
Papiros na mão de Fenícios, com registos de minérios de cobre que obtinham por escambo.
Julgamos que não teria chegado qualquer Papiro escrito por Homero. Admite-se que, depois,
no Império Romano a escrita se fazia em tábuas, placas de cera ou tijolos. As 12 "Tábuas" da
mais antiga Lei escrita romana, datam do século V a.C., de madeira de carvalho, constituindo
a fons omnis publici privatique juris segundo Tito Livio. Não nos foi possível encontrar notícia
da existência no Império de qualquer indústria de suportes de Escrita de madeira ou de outros
materiais, podendo talvez admitir-se a existência de fabrico corrente artesanal. De qualquer
modo, o Papiro importado tinha larguíssimo uso. As "Tábuas" romanas também não consumi-
ram florestas. Teria sido muito pior o pastoreio e as queimadas dos Bárbaros que, antes de se
aculturarem, deixaram mais tradições de "vandalismo" do que documentos escritos, mergu-
lhando o seu tempo na penumbra da História.
Foi no século II a.C., na magnificiente e industriosa Cidade helénica de Pergamo, na al-
tura aliada dos Romanos, que se iniciou a preparação de peles de vitela, cabra, ovelha, ou cor-
deiro que, depois de curtidas, desengorduradas e raspadas se transformavam em Pergaminho.
Assim se divulgaram folhas, cuja designação era um certificado de origem, mais duradouras.

400
cujo uso generalizado se manteve até ao século XIII. O fabrico do Pergaminho ficou depen-
dente da indústria dos cortumes, que provinha dos mais remotos horizontes da História, acom-
panhando o Homem na prática do uso das peles. Embora a indústria dos cortumes possa ser
culpada da poluição dos cursos de água onde debita os seus efluentes, o certo é que a produção
de matéria prima para o novo "suporte" da Escrita não teria agravado o efeito ambiental, pelo
menos em larga medida. A matéria prima do pergaminho provinha do maneio pecuário normal
e de animais da fauna selvagem. Mas o produto acabado é bem diverso do coiro, da sola ou de
peles destinadas a múltiplas utilizações que exigem texturas resistentes não servindo para Per-
gaminho. Havia preferência pelos animais jovens, mesmo dos resultantes de morte intra uteri-
na. Não havia portanto concorrência com utilizações anteriores. Quanto a animais selvagens
as notícias de massacres apresentam-se muito mais ligadas ao comércio de peles para vestuário
e adornos em época recente. Os Pergaminhos resultaram valorizados com a escrita de Ordena-
ções régias. Honras e Mercês nobiliárquicas. Textos religiosos. Diplomas universitários, Escri-
turas e Termos de contractos, só começando a ser compilados em Livros, alguns enriquecidos
com preciosas iluminuras, depois do século XII. A Aristocracia manteve-se sempre muito ciosa
"dos seus Pergaminhos" guardados em Tombos quanto possível defendidos.
Porém, enquanto o Pergaminho era consumido, sem causar aparente prejuízo ambiental,
preparava-se um concorrente sério, inventado na China à base de "pasta celulósica" resultante
da moenda do Bambú. Este facto não representou simples episódio tecnológico, mas o retorno
à Celulose trabalhada de forma diversa da que foi usada para o Papiro, consagrando a "pasta
mecânica" que somente viria a ser substituída pela "pasta química". O Bambú, tal como o Pa-
piro, não revelou capacidade de expansão económica alargada. Foi por isso que os Árabes en-
contraram no Médio Oriente, a indústria do papel instalada com base na moenda da fibra do
Algodão. Não nos foi possível averiguar se nalguns locais e em determinadas épocas a cultura
do Algodão foi praticada com a finalidade exclusiva de abastecer a moenda da "pasta celulósi-
ca". Nestas circunstancias e tendo em conta as características desta cultura, muito exigente
quanto a trabalho humano, o que permite classificá-la como escravocrata, não poderá admitir-
-se que o fabrico do papel com esta matéria prima, tenha determinado agravamento de proble-
mas sociais, impondo mais dura servidão humana. As referências que se encontram respeitam
à importância que a cultura do Algodão assumiu para a indústria de fiação e tecelagem, poden-
do naturalmente dar origem a sub-produtos destinados a outros fins industriais. Quanto a sub-
-produtos acentue-se que as palhas de cereais, particularmente de arroz, têm sido matéria pri-
ma da «pasta celulósica».
De qualquer modo, o Algodão, como a Lã e o Linho corriam Mundo, fiados e tecidos,
no florescente comércio da Panaria. Na Península os Árabes não dispunham de Algodão em
cultura e, por isso, ensaiaram para fabrico de papel a moenda do "Trapo", isto é, pano velho e
fora de uso. Como o Trapo ibérico era muito rico no que respeita a Linho, obtiveram folhas de
alta qualidade. Foi Árabe a primeira fábrica europeia que laborava no século XIII, em Xativa,
na Espanha. Sabe-se que o Pergaminho, em França, dominava no século XII, e que o uso de
papel de trapo somente se generalizou no século XIV. Em Portugal, João Pedro Ribeiro des-
cobriu no Mosteiro de Pendurada o primeiro documento escrito em papel pela Rainha D. Bran-
ca, em 1334. Viterbo, em "Artes Industriais e Indústrias_Portuguesas — o Vidro e o Papel" re-
fere que o primeiro moinho de papel, onde se amassava e depois secava o "trapo velho" teria
sido construído no Rio Liz, em Leiria, no ano de 1441. Os moinhos de trapo progrediram de
forma lenta. Armando de Castro assinala o segundo em 1514 na Batalha e o terceiro, em 1527,
em Fervença, nos Coutos de Alcobaça. Os moinhos de Alenquer surgem em 1565 e somente
em 1716, sob protecção de D. João V se constrói o moinho que viria a ser o alicerce da Fabrica
de Papel da Lousã. Outros moinhos São instalados em Vila da Feira, nos arredores de Braga e
em Lisboa. Estes moinhos de que existe apenas memória, visto que alguns deles deram origem
a fábricas, tendo os restantes sido entregues a outras formas de aproveitamento da energia hi-
dráulica ou abandonados, eram base de uma tecnologia mais complexa do que a moagem de
cereais, por exemplo. Eram susceptíveis de provocar efluentes poluidores, embora os compo-
nentes residuais fossem biodegradáveis. Para obter papel pelo mais antigo sistema mecânico
europeu procedia-se à molhadura e moenda do trapo que, depois de branqueado pela diluição
na água turva, era colocado em moldes onde a massa celulósica coava e secava na operação
de colagem.
A indústria de papel de trapo, em Portugal, nunca teve capacidade suficiente para suprir
as necessidades nacionais pelo que o recurso à importação foi sempre acentuado, o que justifi-
ca as intervenções régias de que há notícia. Quanto ao abastecimento de matéria prima, esta
indústria constituía a razão de ser dos "trapeiros", que tinham o mérito de limpar o País do lixo
dos "trapos velhos" o que representa uma realidade da defesa ambiental. Em período mais re-
cente vieram a manter-se, como assinala Armando de Castro numerosas fábricas de pasta de
trapo na Zebreira, em Torres Novas, em Ponte do Sotão, no Prado, no Tojal, em Tomar, em
Serpins, na Lousã. Em 1852 existiam 27 instalações e em 1863, laboravam 52 fábricas de pa-
pel, e em 1911 eram 47 as oficinas em actividade, utilizando já pasta celulósica importada.
Mesmo assim, os efeitos ambientais desta indústria de moenda de trapo e de fabrico de papel
com pasta importada, não seriam sensíveis. Tanto quanto nos foi possível averiguar na Lousã,
na ribeira de S. João que escoava os efluentes dos moinhos, não foram angustiosas as reclama-
ções dos agricultores regantes das belíssimas terras marginais, nem as dos vizinhos que se
queixassem da pureza da atmosfera. Para resolver querelas que exigiram arbitragens, bastava
que a fabrica escalonasse as suas descargas, para que as águas perdessem a turvação, recupe-
rando a limpidez necessária ao regalo das hortas.
No entanto, neste País que cultivou a vaidade de se dizer "essencialmente agrícola", a
primeira ameaça de alteração das coisas ocorreu em 1802 com o alvará de instalação da Fábri-
ca da Cascalheira, nas margens do Vizela. O Engenho construído por um Engenheiro inglês
destinava-se à produção de pasta de madeira de Choupo. Segundo refere J.L. Ferreira da Silva
Dias, em 1808 a Fábrica encerrou em virtude das invasões francesas. Talvez por isso os chou-
pais não cresceram, mantendo-se apenas em recantos como no Mondego, onde se ouvia os tri-
nados dos rouxinóis e o Fado cantado por Estudantes.
Foi na Exposição Universal de Paris, em 1866, que esteve presente a primeira máquina
plana que permitia o fabrico de folha em contínuo, utilizando a "Pasta de Madeira". A inova-
ção foi decisiva e, dai em diante, o fabrico mecânico difundiu-se em numerosas unidades fa-
bris de países industrializados que passaram a consumir cada vez maior parcela da produção
florestal. No entanto, em Portugal, embora as fábricas de papel se equipassem com máquinas

402
modernas, durante muito tempo dependeram da importação de pasta celulósica, o que manteve
a tranquilidade nas florestas que cresceram para atender à procura de múltiplas Serrações que
produziam materiais para a construção civil, embalagens e travessas de linhas dos caminhos
de ferro fontistas.
Somente no ano de 1926, segundo refere J. Silva Dias foi construída "uma unidade fa-
bril especialmente equipada para a produção de pasta química a partir de madeira, a qual pas-
sou a utilizar justamente o lenho de Eucaliptus Globulus. Um Engenheiro sueco, C. D. Ekman,
foi o primeiro a dar-se conta da potencialidade desta espécie de rápido crescimento como ma-
téria-prima de papelaria. A fábrica portuguesa a que estava associado iniciou a produção de
pasta bio-sulfitica a partir daquela essência por volta de 1926 tendo sido a primeira a utilizar
no Mundo o eucalipto no fabrico de pasta celulósica para papel". O referido Autor assinala que
foram promovidas "plantações próprias nas propriedades da fábrica que alimentaram inicial-
mente as suas exigências em matéria- prima". Isto esclarece que, nesta altura, a floresta portu-
guesa não estaria equipada para abastecer desta forma a nova unidade industrial. Esta unidade
instalada nas margens do Caima, manteve-se a única a funcionar no País ao longo de mais de
25 anos. Com produção que não ultrapassava as 5.000 toneladas por ano, os efluentes dos tra-
tamentos químicos dos eucaliptos colhidos na pequena plantação vizinha, teriam sido facil-
mente arrastados pelas águas do Rio que mais tarde havia de ser condenado à poluição desen-
freada. Podia afirmar-se que, nessa altura, a indústria da celulose não existia no País, embora
estivesse presente a do papel, e foi por isso que o Prof. Ferreira Dias, em 1945, na "Linha de
Rumo" afirmava: "quem souber que em Portugal há perto de 3 milhões de hectares de floresta,
dos quais 40 % são de pinhal, e verificar a importação que se faz de papéis e pasta de papel
achará um desequilíbrio difícil de explicar. Isto me levou no encalço da indústria da celulose,
e do desfiar persistente desta meada nasceram uma sociedade e uma licença".
Efectivamente, em 1942, Ferreira Dias, na sua passagem pelo Governo como Sub-se-
cretário de Estado da Indústria, licenciou a Companhia Portuguesa de Celulose que, depois de
várias dificuldades e reclamações de empresas papeleiras e do Grémio da Imprensa Diária que
receavam o acréscimo dos preços de importação pela protecção à indústria nacional, acabou
por instalar em 1954 a fábrica de Celulose de Cacia, nas margens do Vouga, perto de Aveiro.
Ferreira Dias afirma que a licença "compreendeu como um conjunto indivisível" as seguintes
actividades: "fabricação de pasta química (celulose) a partir do pinheiro"; bem como a "fabri-
cação de papeis finos de Ia qualidade"; e ainda a "fabricação de pasta mecânica e papel de jor-
nal".
Não se encontra nos textos de Ferreira Dias que reflectem a sua posição de industrialis-
ta pioneiro, qualquer referência aos riscos de poluição ambiental que a indústria da celulose na
altura determinava. De qualquer modo deve reconhecer-se que o problema não era vivido na
época, e a matéria prima prevista era abundante, uma vez que o licenciamento de Ferreira Dias
destinava a esta indústria um consumo estimado em "70.000 toneladas por ano" de madeira de
pinheiro num País onde se calculava serem produzidos "cerca de 4 milhões de toneladas", vi-
vendo-se a esperança de estarem em curso desde 1938, sementeiras de pinhal em "10.000 hec-
tares de dunas e 420.000 hectares de serras" nos baldios. De qualquer modo, o "industrialista"
confiava na abundância de matéria prima e, naturalmente, nas técnicas de defesa ambiental

403
presentes nos regulamentos que deveriam ser cumpridos, embora não beneficiassem de experi-
ência bastante. Alguns anos depois de concedida a licença, a nova Fábrica, sem respeitar as
condições do licenciamento no que se refere ao fabrico de papel, substituindo a madeira de pi-
nheiro como matéria prima pela de eucalipto e, mais grave ainda, sem dispor dos equipamen-
tos necessários para defesa contra a poluição ambiental, foi instalada em Cacia sob a forma de
oficina de produção de celulose das mais selvagens. Sem que os portugueses se alertassem o
bastante e com a cumplicidade dos Serviços Públicos, a nova instalação provocou o primeiro
desastre ecológico português a poluir as águas e os campos de um dos mais belos Rios do nos-
so Património geográfico e agrário, que bem revelou até que ponto se apresenta perecível. Fi-
cou assim marcado o tom da abertura à poluição da atmosfera e das águas, em largo espaço
em torno das Celuloses de cuja presença passámos a aperceber-nos, mesmo a grande distância.
Para o consumo do Eucalipto já não bastou a produção de plantações feitas em quintas pró-
prias, como no Caima em 1926. A matéria prima passou a circular em estradas velhas, quasi
caminhos, abertas ao trânsito de camions abarrotados de toros cortados em plantações que fi-
cam arrazadas, enquanto não vêm os rebentos para novas razias. Os toros são empilhados em
horrorosos estaleiros, à margem das estradas rurais, em verdadeiras agressões paisagísticas.
Logo depois de Cacia, sem que fosse tida em conta a disponibilidade de matéria prima, sem
preocupações de defesa ambiental, ou de ordenamento da exploração de recursos naturais,
muitas outras unidades foram licenciadas, ao arrepio das políticas de países florestais indus-
trializados, que punham reservas prudentes que os povos subdesenvolvidos não adoptavam.
Por essa altura o País já reconstituíra em parte a Floresta que ao longo da História per-
dera, deixando de ser o descampado que era um século antes. Efectivamente as avaliações de
1875 apontavam 370.000 hectares de Montados, 210.000 de Pinhal e 60.000 de Matas diver-
sas, não se encontrando o Eucaliptal discriminado porque havia sido introduzido umas dezenas
de anos antes. A área florestal era estimada em 640.000 hectares o que representava 7 por cento
do território nacional. Cerca de 1954, quando arrancou Cacia, os Montados do Sul estavam
cuidados ocupando mais de 1.100.000 hectares, e o Pinhal cobria muito vastas áreas do Norte,
desde o litoral ao interior das Beiras, dominando cerca de 1.200.000 hectares. A área de Euca-
liptal não apresenta estimativas válidas nas estatísticas mas era reduzida, e a superfície flores-
tal representava 30 por cento do território. Sem se poder considerar que esta florestação fosse
correcta, pode admitir-se, no entanto, que o País se encontrava honestamente florestado, com
os Pinhais a servirem de "mealheiro" dos Camponeses, e os Montados de Sobro e de Azinho
a produzirem Cortiça e a prestarem-se ao pastoreio de varas de Porcos que, depois de mantidos
com as bolotas, dormiam sonos brutos e indolentes, que lhes aromatizavam as carnes e os tou-
cinhos de alta qualidade. O "uso múltiplo" florestal que os melhores Silvicultores apontam co-
mo sistema de defesa do solo e da água, circunscrevia-se ao Parque da Pena, na Serra de Sintra,
que o Rei D. Fernando, Artista, mandou plantar, e onde, muito depois, o Prof. Azevedo Gomes
animou estágios de Estudantes a aprenderem os nomes e os encantos dos mais belos arvoredos;
às Matas do Buçaco que os Monges Silvicultores amorosamente imaginaram, excomungando
os inimigos da Natureza; e aos restos de maravilhosa Selva de Quercus caducifólio, nas Mon-
tanhas do Gerês e da Peneda.
Quando veio a Celulose, já o Eucalipto se encontrava instalado no País, em toda a sua

404
pujança de exemplares que rapidamente se transformavam em monumentos vegetais. Compu-
nham recantos de velhas matas, davam madeiras estimadas para muitos usos, marginavam es-
tradas e caminhos, sombreavam Parques e, mesmo nas Cidades, nos mais altos ramos, as cego-
nhas, audazes, ainda nidificavam. Foi esta quasi "Sequoia" de vida efémera pelo rápido cresci-
mento que, depois de haver despertado, em 1926, a atenção do Engenheiro sueco, como referi-
mos, havia de revelar nas contas de cultura dos melhores Técnicos, depois de 1954, a perspec-
tiva que se oferecia aos abastecedores de matéria prima para Indústria da Celulose, Indústria
aprontada para executar o forte contributo para a poluição dos Rios e dos Ares portugueses.
Não oferece dúvida que ideólogos do industrialismo como Ferreira Dias, contemplaram so-
mente a vastidão do Pinhal português que julgaram capaz de fornecer, sem qualquer problema
ambiental, a matéria prima necessária. Mas não avaliaram que outras potencialidades concor-
rentes poderiam ser exploradas como a plantação de Eucaliptos em talhadia de curta rotação,
fornecendo cortes de produtos com a dimensão que as fábricas preferiam. Como se viu, euca-
liptais famintos e sedentos como estes não existiam. Nada se mostrava capaz de produzir em
vida dos plantadores, lenho tão prontamente transformável em dinheiro. Ficou prestigiada des-
ta forma, para produção de matéria prima, a selvajaria de plantações extremes a ondularem ao
vento, com um verde pardo e triste. É certo que estas plantações eram feitas sem a pretenção
de serem Floresta, mas ao gosto da melhor economia. A sensibilidade dos rústicos, mais do que
o cinismo dos proprietários absentistas, não deixou de gerar atitudes instintivas contra "a praga
dos eucaliptos", como várias vezes nos foi dado ouvir, e complexos de culpa atenuados pela
honesta confissão: "o que é preciso é o dinheiro".
Ao fim de pouco mais de três decénios de firme campanha de produção, as estatísticas
de aproveitamento do território passaram a denunciar a presença de cerca de 450.000 hectares
deste eucaliptal que, mesmo assim, parece não bastar para acudir ao sonho mal sonhado da vo-
racidade do sobreequipamento nacional com Celuloses poluentes. No mercado da matéria pri-
ma as Empresas apresentaram-se unidas, inebriadas com a mais valia da transformação primá-
ria de um produto florestal apresentado em oferta atomisada, dominando livremente o mono-
pólio do comprador. De qualquer modo, a dramática campanha promocional funcionou e o
"impacte" foi desmedido. No entanto, depois de desencadear nebulosos movimentos de opi-
nião e literatura "pro e contra o Eucalipto", onde a paixão naturalmente se baralha com os inte-
resses, um Grupo de Cientistas da especialidade tentou, justamente, a avaliação dos "impactes
ambientais e socio-económicos do eucaliptal em Portugal".
Embora os trabalhos científicos, como este, se escudem nos complexos de dúvida e de
prudência indispensáveis, não deixam de constituir contributo fundamental ajustável a meto-
dologias de análise, também científicas, que não enjeitam o recurso a sugestões do sentimento.
O carácter naturalmente inconclusivo, em termos práticos, do único Estudo sobre este tema
realizado em Portugal que, em nossa opinião, se apresenta fundamentado, não permite extrair
informação bastante para esclarecer tudo o que nos embaraça neste escrito. Estamos conforma-
dos com esta situação e pretendemos esclarecer que o facto natural de nos termos servido do
texto, não significa que se tenha pretendido respigar citações com o propósito de servirem de
escudo para as nossas deduções meramente pessoais.
Sempre se nos apresentou a dúvida quanto à validade da definição de capacidades de

405
uso dos solos que separam o "agrícola" do "florestal". Embora os agricultores se encontrem
obrigados a decisões na implantação das culturas que praticam, parece indiscutível que uma
filosofia agronómica imensamente válida obriga a considerar a existência de capacidades natu-
rais ou adquiridas, quanto a solo, água e luz solar, para produção de biomassa. Já nos foi dado
ver cachar uma "bouça", "soutos" que foram "terra que deu uvas", "hortas" implantadas em
dunas, "socalcos" embutidos em rochas, "eucaliptais" em aluviões de regadio. Por tudo isto,
nada nos surpreende ou desilude perante o impulso do "trabalho" humano, ou da "ambição" e
do "egoísmo". Por isso a forma de utilizar as potencialidades de um território, depende de cir-
cunstâncias particularmente complexas e mutáveis. Não estamos certos de que haja vantagem
em reduzir a esquemas simplificados essas circunstâncias que nunca serão especificamente
agrícolas ou florestais. Temos o sentimento de que o uso depende fortemente não só da finali-
dade de subsistência vital, mas também do propósito de fruir egoisticamente recursos naturais.
Qualquer das duas atitudes se revela capaz de conduzir à prática do saque desses recursos, por
vezes perecíveis a curto prazo. Nestas circunstâncias a experiência histórica demonstra que a
capacidade de produção de biomassa tem sido usada de forma muito diversa não só nos apro-
veitamentos agrícolas como nos florestais. Encontram-se na História Agrária de Portugal siste-
mas muito antigos de saque de biomassa, concretamente no sobrepastoreio, ou na cerealicultu-
ra com o Trigo. Não admira que aconteça alguma coisa de semelhante com exóticas florestais
de rápido crescimento.
Se tiver validade a ideia, que para os fanatismos produtivistas será absurda, de que as
potencialidades naturais de produção de biomassa podem ser submetidas a técnicas intensivas
que os projectos económicas lucrativistas admitem como objectivo essencial, a consideração
do saque de recursos talvez se perfile com grande pertinência. Afigura-se-nos preocupante a
estimativa apresentada no Estudo a que fizemos referência que, em nosso parecer, ajuda a es-
clarecer o que referimos. O eucaliptal instalado em 450.000 hectares do nosso território, repre-
sentando 15 % da cobertura florestal, origina produção anual de material lenhoso próxima da
que se atribui à área de Pinhal, que representa cerca de 40 % da área florestal. Os Tecnocratas
(no pior dos sentidos deste termo) fascinam-se com este "produtivismo" glorioso que, expres-
so em produção por hectare e ano poderá variar entre 3 e 40 metros cúbicos de material lenho-
so, na dependência das condições ambientais, das fertilizações e da rega. Não oferece dúvida
que, para o Agrónomo, apoiado em testemunhos históricos e não em interesses imediatos, os
riscos de saque de água e de solo não podem ser arredados no caso do Eucalipto, como não se-
riam se, a seu tempo, tivesse sido objecto de investigação científica o Pastoreio com queimada
do coberto vegetal, ou se fossem tidos em conta os avisos que foram expressos em relação à
"Campanha do Trigo" quanto à erosão que, sem dúvida, desencadeou.
Importa, no entanto, não esquecer que o problema em análise não é específico de Portu-
gal e que o Eucaliptal português instalado em duas ou três dezenas de anos, se encontra natu-
ralmente integrado, economicamente, na conjuntura internacional. É muito importante ter em
conta que os industrialistas pioneiros, como Ferreira Dias. não perdiam de vista a moderniza-
ção da velhíssima indústria do papel em Portugal, para que se tomasse apta a abastecer o mer-
cado interno e a competir depois na exportação, se os potentados multinacionais o consentis-
sem. Para tanto, teria lógica confiar na produção de pasta celulósica nacional, tendo em conta

406
a existência de largos recursos florestais para o efeito. Supomos que não estava no esquema
destes industrialistas devotados ao interesse nacional, uma política de equipamento da indús-
tria destinado exclusivamente à produção de pasta celulósica para exportação. Com prejuízo
dos recursos nacionais e aprovação dos sectores mais cínicos da C.E.E., essa política terá ser-
vido, talvez, para o desenvolvimento da indústria do papel nos países importadores dessa pas-
ta. Ela vai sendo devolvida a Portugal transformada em papel que a nossa indústria não tem
produzido, sacrificando a "mais valia". Talvez se possa ver que nos levam a pasta em troca de
papel. E, talvez também, os compradores tivessem encerrado a indústria suja, conservando a
limpa e, por isso, nos vão pedindo, enquanto o preço lhes convier, pasta e mais pasta, agravan-
do o saque agrário que o eucaliptal português pratica, e que despertou sensibilidades variadas
pelo "impacte" que o referido Estudo analisa em profundidade. Com toda a lógica, como afir-
mámos, este Estudo deixou para o leitor a tarefa, aliás ingrata, de extrair as conclusões de or-
dem prática, no que se refere utilização dos recursos hídricos, aos solos, à fauna de vertebra-
dos, à flora, às modificações na paisagem e aos aspectos socio-económicos.
De há muito que foi dito que Portugal era o "solar da vinha, da oliveira e do sobreiro".
Não haverá motivos para concluir que passou a ser também o "solar do eucalipto". O saque da
Floresta tropical desde a Africa à Amazónia, encontra-se apenas iniciado e, por isso, a exporta-
ção de pasta celulósica portuguesa que os Tecnocratas (repetimos, no mau sentido) saúdam
quando analisam o Comércio Externo, encontrará cada vez maior concorrência. Mais pesada
ainda é a perspectiva que se oferece à indústria de Celulose portuguesa de a legislação moder-
na de defesa do Ambiente exigir o aumento da eficácia de Serviços Públicos na imposição das
técnicas de segurança. Os equipamentos indispensáveis vão obrigar a vultuoso investimento,
o que retira à pasta celulósica exportada grande parte do poder competitivo, perante a oferta
tropical que se avizinha. Afigura-se-nos que, finalmente, a indústria instalada irá acabar por
cumprir a parte essencial do licenciamento que respeita à produção de papel com pasta celu-
lósica nacional. Assim se alcançará reduzir o volume da importação deste "suporte" da escrita
em relação ao qual se não vislumbra quebra de consumo, mesmo com a difusão simultânea da
gravação audio-visual da palavra. Por isso, é de prever que, em Portugal, a cultura do Eucalip-
to em talhadia de curta rotação já tenha ultrapassado o limite do seu "impacte", dizemos agora,
político. O eucaliptal irá ficar confinado aos locais adequados produzindo, certamente em par-
te, a matéria prima de que a indústria de papel modernizada vai carecer, como estava na ideia
correcta dos pioneiros do industrialismo português. Mas, de qualquer modo, a "História do Eu-
calipto em Portugal" não fica encerrada, nem se torna num "Conto de Fadas". Esta quasi "Se-
quoia" majestosa hade continuar a expandir seus ramos, onde voltarão a nidificar cegonhas au-
dazes, nas Florestas de "uso múltiplo" que os Portugueses do Futuro vão contemplar e fruir,
impedindo que o Património Florestal seja saqueado ou devorado por incêndios que natural-
mente se alimentam com combustíveis.

A indústria de lacticínios

O homem, por ser mamífero, encontra no leite materno, ao nascer, o alimento natural
adequado à primeira fase da existência, para além da qual alcança a autonomia, tornando-se

407
omnívoro. O consumo de leite materno é instintivo mas, na luta pela sobrevivência, o nascitu-
ro não rejeita o leite de outros mamíferos. O facto encontra-se transformado em lenda, como
a da Loba que amamentou os fundadores de Roma, ou comprova-se na alternativa do leite ma-
terno que se encontra em leites de diferentes animais, sendo o leite de Burra o mais semelhan-
te.
Para além da garantia de sobrevivência de nascituros privados de Mãe ou de Ama, o
consumo de leite de animais domesticados entrou muito cedo em uso sendo muito elevado en-
tre povos pastores que se movimentam em boas pastagens. O consumo elevado de leite e carne
dá origem a raças agigantadas mercê do valor proteico destes alimentos. No entanto estas raças
ficam por vezes marcadas por carências energéticas resultantes da falta de cereais na dieta. Por
outro lado, os povos cerealícolas, de pecuária escassa, apresentam reduzida estatura, chegando
a ser, no limite, pigmeus, embora tirem partido do valor energético dos hidratos de carbono de
que se alimentam.
O leite é consumido em fresco ou transformado em preparados fermentados, ou coalha-
do, como o queijo, sendo também extraída a gordura sob a forma de manteiga. Tal transforma-
ção é muito antiga e baseia-se em tecnologias empíricas que tinham como objectivo a prepa-
ração de produtos alimentares duradouros, uma vez que o leite fresco rapidamente se altera por
constituir meio ideal para o desenvolvimento da vida microbiana.
Excluindo o caso de certos povos pastores, o leite, como produto alimentar, nunca teria
sido básico. Os agricultores, e mesmo os pastores de regiões de pastagens pobres ou de, pro-
dução média, dificilmente se decidiam na alternativa do consumo, roubando o leite às crias, o
que comprometia o seu desenvolvimento. Somente em condições apropriadas de abundância
forrageira se conseguiram raças pecuárias especializadas na produção leiteira, particularmente
de bovinos, caprinos e ovinos. Sem dúvida a vaca leiteira representa a grande conquista nos
domínios da selecção de animais que produzem leite, muito para além das necessidades das
crias.
Durante muito tempo, o abastecimento das populações urbanas era difícil, estabelecen-
do-se a opção de aproximar os animais dos centros de consumo, na impossibilidade de vencer
as dificuldades de transporte e de distribuição de leite. Segundo refere Alexandre Furtado de
Mendonça em "Indústrias de Leite e Lacticínios", trabalho apresentado ao II Congresso da
Indústria Portuguesa, «foram os progressos verificados em várias ciências no século passado,
tanto nos domínios da bacteriologia como nos da química e da física, a par da mecânica —sin-
tetizados na descoberta feita em 1878, pelo sueco Lavai das centrífugas ou desnatadeiras de
leite que revolucionaram o fabrico da manteiga. A microbiologia leiteira, aproveitando os estu-
dos e investigações de Pasteur (1860-1865) e do seu sucessor Duclaux, os de Koch (1881),
Storch (1890), von Freudenreich (1895), Osla Jansen (1906), Thoni, etc., transforma a técnica
das indústrias do leite em muitos países onde, em substituição dos métodos arcaicos, se er-
guem autênticas fábricas com instalações cada vez mais importantes, laborando massas de lei-
te cada vez maiores. É a moderna indústria que surge: o lavrador deixa de entregar o leite di-
rectamente aos consumidores e vê o fabrico dos lacticínios emancipar-se, sair do quadro da ex-
ploração agrícola para passar a ter vida própria e metamorfosear-se numa indústria que se ocu-
pa de todas as utilizações do leite, desde o abastecimento dos centros urbanos à sua transfor-

408
mação em variadíssimos produtos lácteos: queijos de diferentes tipos, manteiga, natas, «ice
cream», leites acidificados, "yoghourt", leites condensados e em pó, farinhas lácteas e produ-
tos dietéticos, valorizações dos subprodutos em caseínas, lactose, ácido láctico, etc.
A Indústria de Lacticínios entrou em dificuldade em Portugal. Os esforços de Emídio
Navarro, em 1888, para desenvolver a tecnologia leiteira com base em Escolas de Santarém,
Viseu, Aveiro e Quintas Regionais dos Serviços Agrícolas, entraram no esquecimento. Por isso
Mota Prego insistia na sua doutrinação escrevendo "A Leitaria da Rosalina" contando que a
sua heroína rústica construiu uma "fábrica", concluindo depois que a melhor maneira de servir
a sua aldeia seria a de a gerir como Cooperativa: «no fim de um ano de laboração, ao lucro da
venda dos produtos, subtraiem-se as despesas de fabrico e o lucro assim obtido divide-se pro-
porcionalmente por todos os fornecedores segundo a quantidade de leite entregue por cada um
na fábrica».
Segundo referência de M. Rodrigues de Moraes no seu artigo sobre «Les industries du
lait» publicado em «Le Portugal au point de vue Agricole», 1900, que traduzimos, «antes de
1877 a manteiga de mesa ou susceptível de ser comida em natureza, que se consumia no país,
era quase totalmente importada da Inglaterra sob a etiqueta geral de manteiga inglesa, apesar
de ser normanda, holandesa ou dinamarquesa». Este Autor assinala a existência de raros pro-
dutores nacionais que vendiam os seus produtos, como a Quinta da Gandarinha, a Quinta Re-
gional da Granja do Marquês, em Sintra e a do Visconde de Villar de Allen, no Porto. Existia
produção para consumo local em Viana, Barroso, Trás-os-Montes, Coimbra e Beira Alta e nos
Açores. O Autor referido dá notícia de que a primeira fábrica foi montada em Paredes de Coura
pelo Conselheiro Miguel Dantas, em 1891, logo seguida de outra em Nandufe, perto de Tonde-
la. As fábricas cuja instalação depois foi promovida localizaram-se em Âncora, concelho de
Caminha, em 1894, em Aboim, do concelho de Arcos de Valdevez, em 1895, em Estorãos, de
Ponte de Lima, em 1898. Logo outras se seguiram desde o Minho à Estremadura. Estas fábri-
cas dispunham de energia de máquinas a vapor e mantinham anexas criações de porcos, pelo
aproveitamento do soro, que também era vendido nas vizinhanças.
Até 1924 a Indústria de Lacticínios desenvolveu-se, ou não se desenvolveu, livremente.
Todavia, em 1928, foi «estabelecido a obrigatoriedade do licenciamento de todos os estabele-
cimentos desta indústria, dentro de princípios de higiene. Em 1938 encontravam-se registadas
255 fábricas e 477 postos de desnatação no Continente, passando a matéria-prima a ser dispu-
tada numa concorrência desordenada que acabou por acarretar o aviltamento dos preços». Em
1939, com a criação da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, foi empreendida a fusão de pe-
quenas empresas e a constituição de agrupamentos industriais. Conforme noutras passagens
se refere, daí em diante, estabeleceu-se luta de competição muito activa entre Industriais, Cen-
trais leiteiras municipais para o tratamento de leite para consumo urbano e pioneiros do Movi-
mento Cooperativo que mobilizou os produtores mais esclarecidos. Tal luta foi particularmente
dura e conduziu à formação de Uniões de Cooperativas de Lacticínios que acabaram por criar,
ao lado de Industriais bem equipados, estruturas industriais modernas que integram, pela via
cooperativa, os produtores. Pode afirmar-se que, finalmente se alcançou a laboração industrial
de produtos lácteos de alta qualidade que se encontram em condições de abastecer o mercado,
sem necessidade efectiva de recurso ao comércio externo.

409
Com base na informação facultada por Manuel Belo Moreira em "L'economie et la poli-
tique laitiere au Portugal (1926-1981). La production laitiere dans le minifúndio". Verifica-se
a importância que, nos anos 20, a criação da vaca turina da região saloia assumiu não somente
para a preparação de estrumes necessários à horticultura das vizinhanças de Lisboa, como tam-
bém na produção subsidiária de leite que passou a encontrar no mercado consumo regular. O
mesmo sucedeu quanto a pequenos produtores "do litoral, do centro e do norte do País, sobre-
tudo nas proximidades das aglomerações mais importantes". As Indústrias leiteiras instalaram-
-se preferentemente no Distrito de Aveiro.
Entretanto, conforme noutras passagens do presente trabalho se refere, as condições sa-
nitárias do leite produzido e tratado em instalações primitivas, eram muito deficientes. O leite
passou a ser identificado como veiculo da propagação da tuberculose e o problema só pôde ser
atenuado e depois resolvido, com campanhas de diagnóstico de vacas doentes que passaram a
ser sistematicamente abatidas quando apresentavam reacção positiva à tuberculinização. Foi
nos anos 30 que se verificaram as primeiras intervenções do Estado através de diplomas que
ficaram conhecidos como "lei dos leites" que estabeleceram regulamentações "completas do
ponto de vista sanitário" de forma a proporcionar a "transformação industrial do leite" em cen-
trais de pasteurização obrigatória. A defesa sanitária da população em geral foi tentada, mas
talvez o mais importante tenha sido o auxílio que novos produtos lácteos facultaram ao comba-
te à mortalidade infantil. Embora existisse a produção nacional de farinhas lácteas, como a
Cister, foi a instalação industrial da Nestlé que proporcionou os melhores produtos dietéticos
do leite. O Prémio Nobel da Medicina Egas Moniz, natural de Avanca, foi impulsionador deste
progresso para a região natal que muito amava.
No entanto, os efeitos mais generalizados na modernização da indústria leiteira vieram
a ser obtidos quando foi possível iniciar a racionalização dos circuitos de comercialização do
leite, reduzindo o número de intermediários. Belo Moreira refere que o ponto de partida para
nova situação do mercado "corresponde à posição que chamamos ruralista, preocupada com a
má qualidade dos produtos que se ofereciam ao consumidor, em grande parte devidos à acti-
vidade de intermediários, e sobretudo pelo desiquilibrio entre uma indústria forte e concentra-
da, em face de uma agricultura minifundiária que era indispensável proteger". O comentário
deste autor pode ser resumido segundo a ideia de que "as pequenas unidades poderiam ser pre-
servadas sob condição de serem protegidas contra o apetite dos intermediários, por um lado, e
0 gigantismo industrial, por outro". Assim, a reorganização industrial que concentrou as indús-
trias, coincidiu com a formação de cooperativas de produtores que eliminaram os intermediá-
rios. Todavia, o associativismo de produtores que mais se veio a impor depois de 1926 foi o
corporativo, apoiado nos Grémios da Lavoura de inscrição obrigatória, estabelecendo-se bar-
reira ou dificuldades para a instalação de novas cooperativas de produtores livremente organi-
zadas. Acontece, porém, que a solução corporativa não destruiu o minifúndio que se manteve
a caracterizar dominantemente a produção leiteira, podendo os produtores defender a sua lógi-
ca da agricultura familiar, que corresponde a uma falta de lógica económica, quando mantêm
1 ou 2, talvez 3 vacas leiteiras, a garantirem também a estrumação de pequenas áreas hortíco-
las, existentes de Norte a Sul do País.
De qualquer modo, as cooperativas leiteiras acabaram por organizar-se e, em face de di-

410
ficílimas relações com industriais, ou intermediários, alcançaram um movimento de concen-
tração de que serve de exemplo a UCAL (União das Cooperativas Abastecedoras de Lisboa).
Entretanto, a organização corporativa facultou às Federações dos Grémios da Lavoura a possi-
bilidade de montarem instalações industriais para tratamento do leite por meio de pasteuriza-
ção. O mesmo sucedeu com as cooperativas do Norte e do Centro que se bateram pela criação
de agrupamentos regionais que procuravam instalar indústria de higienização e transformação
do leite. Foi assim que o problema ficou entregue a múltiplos organismos de intervenção, tais
como a Direcção Geral dos Serviços Pecuários, serviço público do Estado, a Junta Nacional
dos Produtos Pecuários, organismo de Coordenação Económica, as Federações dos Grémios
da Lavoura, organismos corporativos regionais, as Cooperativas de Produção, como expressão
do associativismo livre, e os Municípios, que lutavam pela manutenção de Centrais Leiteiras
de higienização e, finalmente, a Indústria Leiteira que adquiria a matéria prima junto da multi-
dão de pequenos produtores. A Indústria Leiteira deu lugar à reorganização industrial que con-
centrou unidades inviáveis, dando origem à formação de Empresas como Martins e Rebelo que
impulsionou a produção de queijo muito influindo na redução de importações. As unidades in-
dustriais das Cooperativas associadas, as de Federações de Grémios e Centrais de Municípios,
visavam especialmente o abastecimento da população urbana em leite em natureza, pasteuri-
zado, engarrafado e empacotado, depois esterilizado pelo método UHT.
Simultaneamente a Indústria desenvolveu a produção de leite condensado e em pó, mes-
mo granulado, susceptível de longa conservação. Verificou-se também grande incremento da
produção de queijo de leite de vaca de diferentes tipos, sendo mais frequente o dito "Flamen-
go". A indústria de lacticínios passou a apresentar no mercado leite aromatizado com chocola-
te, e com diferentes doseamentos de gordura, desde o gordo ao magro. Em termos de organiza-
ção empresarial da Indústria manteve-se o sector privado, e as Cooperativas que, durante largo
tempo, foram tuteladas até 1974, no que respeita aos corpos directivos, deixaram de ser con-
frontadas, nesse ano, com as Federações dos Grémios da Lavoura que foram extintas. Quanto
à recolha do leite da multidão de produtores, vigoraram demarcações regionais de exclusivos
de recepção em postos de classificação de qualidade. De qualquer modo a indústria e o comér-
cio de lacticínios tendem para modalidades liberais, podendo ver-se produtos com a simples
indicação do Supermercado que os vende, a preços de concorrência, sem indicação de origem
e apenas de prazo de validade.
Presentemente, as batalhas concorrenciais do leite que são antigas, permanecem no con-
fronto, concorrencial das marcas que se degladiam, organizando sorteios de automóveis e de
outros prémios sugestivos de menor valia. De qualquer modo afigura-se que prolifera a "re-
constituição" de um líquido branco ou colorido a que se chama leite, posto à margem de sufi-
ciente fiscalização do Estado. Sabe-se que as indústrias alimentares, como outras, facilmente
enveredam pelo caminho das fraudes, mais sofisticadas do que aquelas que caracterizavam o
fadário do leite nas mãos de múltiplos intermediários que chegavam a misturar-lhe urina que
a fiscalização municipal não identificava porque apenas atendia densidade da mistela que os
leiteiros mediam às portas dos fregueses. Hoje é misteriosa a "reconstituição" do leite, com
água que se deseja bacteriologicamente pura a diluir o pó, que serviu para armazenar o leite,
de que se extraiu a manteiga superabundante, sendo acrescentada gordura que, Deus queira.

411
seja sã, não sendo difícil imaginar outras misturas.

O industrialismo novecentista

Tal como outros investigadores modernos, Maria Filomena Mónica firma em documen-
to de Concurso do Gabinete de Investigações Sociais que «a industrialização portuguesa foi,
como se sabe, um processo lento e tardio. Em 1850, os trabalhadores ocupados na indústria
eram umas escassas dezenas de milhar, enquanto os camponeses excediam o milhão. Sem fer-
ro, sem carvão, sem outras matérias-primas essenciais nesta fase de arranque, a industrializa-
ção do país defrontava-se com inúmeros obstáculos.
Na verdade a primeira metade do século foi, como se referiu, perturbada por aconteci-
mentos tão graves que não houve lugar para iniciativas de inovadores que marcassem à econo-
mia portuguesa o ritmo de transformação industrial. O País permaneceu predominantemente
agrícola, insensível ao reparo, mesmo insistente, de comentadores europeizados que explora-
ram, em críticas as mais variadas, o ruralismo retrógrado onde, de qualquer modo, descortina-
vam vigorosa aculturação. Tal ruralismo não deixou de beneficiar, em certa fase do livre cam-
bismo. do apoio de rendimentos agrícolas gerados na exportação de vinhos e de animais vivos,
produtores de carne de alta qualidade. A Revolução Liberal e, com ela, Mouzinho da Silveira,
preocupou-se mais em destruir os "vexames feudais" do que em introduzir as peças essenciais
para que vigorasse novo sistema tecnológico a impulsionar a economia doente. Efectivamente,
o desmantelamento da tradição apresentava-se tarefa tão desmedida, que só foi possível vê-lo
assegurado por meio de guerra civil. E não bastou a vitória militar, para fazer cessar o confron-
to político de posições ideológicas diametralmente opostas.
A Regeneração, com Fontes Pereira de Melo, ao estimular o País com dinamismos pro-
porcionados pelo fluido da comunicabilidade dos caminhos-de-ferro e das estradas, teria acti-
vado a agricultura, que se viu liberta de isolamentos mortais. Foram proporcionadas aos cam-
poneses oportunidades de comercialização de produtos até então destinados à subsistência e
fortalecidos os fluxos do comércio já instalado. Tal circunstância deu origem ao enriquecimen-
to rural que permitiu entesourar libras inglesas, até ao momento em que a exportação portu-
guesa sofreu, como se referiu, a competição de concorrentes industrializados.
Os políticos, regeneradores ou progressistas, tal como, depois, os republicanos, deram
constantes e sucessivas provas de incapacidade quanto ao lançamento de «reformas estrutu-
rais» e, por isso, os grupos de pressão agrários, tradicionais, fortalecidos pela implantação do
capitalismo protegido, puderam manter o comando político, colmatando todas as fendas do ve-
lho edifício económico, por onde pudesse infiltrar-se a semente do industrialismo. Os Agrá-
rios, acomodados pelo proteccionismo cerealífero, não necessitavam de tentar qualquer esfor-
ço inteligente de adesão à indústria. Por isso a evolução das unidades industriais que figuram
no Inquérito Industrial de 1881 é excessivamente lenta:

Antes de 1800 14
1800-1840 .. 26
1840-1850 .. 41

412
1850-1860 93
1860-1870 76
1870-1880 191

A Autora citada esclarece:


«Os pedidos de proteccionismo tornaram-se insistentes. Sem mão-de-obra especializa-
da, sem capital, sem matérias-primas, e sobretudo sem poder usufruir de economias de escala,
não se vê como teria Portugal podido, como alguns contemporâneos reclamavam, lançar-se na
produção de bens de equipamento. De facto não o fez: as máquinas e as grandes obras, pontes,
locomotivas, carris e máquinas têxteis, continuarem a vir de fora, quase sempre de Inglaterra».
A «geração de 70» não se conformou, no entanto, com os atrasos do Portugal agrário e
rural. Servirá de exemplo Eça de Queirós, na «Cidade e as Serras». Jacinto, para quem, no di-
zer de João Fernandes «a ideia de Civilização não se separava da imagem da Cidade, de uma
enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu
supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e
de mercados onde se despejam os vergeis e lezírias de trinta províncias; e de bancos em que
retine o ouro universal; e de fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de biblio-
tecas abarrotadas, a estalar, com a papelada de séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas,
por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gazes, de canos
de fezes; e da fila atroante dos onibus, tramways, carroças, velocípedes, calhambeques, pare-
lhas de luxo; e de dois milhões de uma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da Po-
lícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo — o homem do século XIX pudesse sabo-
rear, plenamente, a delícia de viver!».
A defesa romanceada do industrialismo exigia o ataque severo, mais romanceado ainda,
ao ruralismo reinante. Depois de o Zé Fernandes exclamar «Caramba!» prosseguia o seu relato
das ideias do Jacinto:
«ao contrário, no campo, entre a inconsciência e a impossibilidade da Natureza, ele tre-
mia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão. Estava aí como perdido num mundo que
lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse... De que
servia, entre plantas e bichos — ser um Génio ou um Santo? As cearas não compreendem as
Georgicas... Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a bestialidade. Nes-
ses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e
a procriadora. Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de
pastar... a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha, uma fagulhazinha es-
piritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria.»
A Autora referida desencantou a duríssima crítica n'As «Farpas», em 1876, que esmaga
os industriais da época:
«Uma vez enriquecido, o industrial procura tornar-se capitalista, homem de negócios,
influente político, visconde, director de bancos, gerente de companhias. E considera a fábrica
um desdouro, uma mesalliance, um ganha pão subalterno, com a vantagem principal de repre-
sentar em cada eleição um peso de duzentos votos, a troco dos quais ele procura colocar-se sob
a protecção do Estado e sob o favor dos Governos.»

413
Entretanto, a pressão dos tempos, vai alterando o panorama e a referida Autora admite
que «em 1890, Portugal já não era o país rural de meados do século. As cidades cresciam, as
chaminés das fábricas alteravam as paisagens urbanas». O confronto de indicadores demons-
trava que «em 1852 existiam apenas 70 máquinas a vapor, com uma potência de 938 c.v. con-
centrados nos sectores têxtil, moagem, papel e tabacos. Em 1881, já eram 328 e a sua potência
subira para 7.025 c.v. e aos sectores tradicionais, juntava-se agora a metalurgia». Quanto a in-
dustriais refere excepções, citando como exemplos os nomes do Conde Daupias nos lanifícios,
da família Graham na indústria têxtil algodoeira, de José Pedro Colares na fundição, de Pinto
Bastos em investimentos na porcelana e na metalurgia, dos Britos e Formigais na moagem, de
António Centeno na estamparia, de Henry Burnay em várias indústrias e de Alfredo da Silva
na C.U.F. O industrialismo fica. assim, configurado num friso de pessoas, o que é importante,
talvez mais do que num complexo de equipamento de fábricas. Tal friso encontrava-se natural-
mente inserido nos meandros da política onde se debatiam contratos de tabacos em 1890, leis
dos cereais em 1889, a pauta em 1892, a Campanha do Trigo em 1929. Durante a Regenera-
ção, alguns self-made men conseguiram acumular dinheiro rapidamente. Não os poupou o Au-
tor de «As Farpas» em «dos tamancos aos arminhos», visando as suas mãos «ordinárias, gor-
das, papudas» assim como o «horrendo alfinete de gravata e a pomada na cabeça a cheirar a
lucialima». Eram «novos ricos» que constituíam o alvo facílimo para a crítica mordaz de quem
se escudava em velhos pergaminhos. A Autora que nos acompanha nesta digressão pela passa-
do chama a atenção ainda para «o dono da pequena oficina, o antigo sapateiro, alfaiate ou cha-
peleiro que, a certa altura da vida, se conseguia estabelecer por conta própria» e afirma que al-
guns destes pequenos patrões «eram antigos dirigentes sindicais» que, «vítimas de persegui-
ções» actuaram destacados «durante conflitos laborais». E acentua que se mantinham «abertas
as fronteiras entre o que é operário e patronal» uma vez que este friso humano se encontrava
«exactamente na confluência entre estes dois mundos».
Importa ainda registar que tudo se movimentava num fervilhar de «reivindicações pro-
teccionistas» e que os industriais manifestavam o possível interesse pelas Colónias onde, neste
período, os consumidores seriam «uns 20.000 brancos em Angola e Moçambique, aos quais
haveria a acrescentar um número desconhecido de pretos, que ocasionalmente compravam os
panos coloridos que os brancos para lá mandavam». Mas, «perante a crise de sobreprodução
que assolou a indústria da década de 1880, qualquer coisa era melhor do que nada». Com o
Ultimato de 1890 «todo o país se voltou para a África» e não somente os industriais e os viti-
cultores. António Enes foi Governador Geral, e tomou-se possível sustentar duríssimas campa-
nhas militares africanas. Assim, de acordo com os meios disponíveis «as Colónias passaram a
fazer parte intrínseca da estratégia do capitalismo nacional».
As frustrações da indústria reflectiam-se no pensamento político da época. A Autora que
acompanhamos neste passo apresenta Anselmo de Andrade e o seu «Portugal Económico» co-
mo símbolo de retorno a ideias que defendiam a exclusiva vocação agrícola do País, da sua po-
pulação e dos seus recursos, perante a carência de meios onde se pudesse apoiar a indústria.
Anselmo de Andrade afirmava: «onde as matérias-primas faltam, onde o carvão de pedra não
existe e onde a hulha branca é ainda um problema, as indústrias só podem medrar à sombra de
protecções caras».

414
Este retomo político, obrigava a encarar o facto temível de ser grande a carência de ce-
reais que constituíam a base de alimentação, o alicerce do sossego nas ruas e da tranquilidade
nos lares. Assim, os incultos eram amaldiçoados e acreditava-se que era muito vasta e fértil a
terra ocupada ainda por baldios, que constituíam terrenos comunais que seria bom transformar
em propriedade privada. Esta ideia acompanhou os políticos do fim do século XIX, e deu en-
trada triunfal no século XX, constituindo breviário dos economistas da República. Anselmo de
Andrade («não se deve pensar em fazer de Portugal um país de indústrias que nunca poderão
competir com as dos países estrangeiros») deu suporte intelectual a esta ideia que, segundo
analistas da vida nacional contemporânea, inspirou o «Problema do Trigo», de Oliveira Sala-
zar, e a «Campanha» que, em 1929, promoveu, na imprudência de comprometer, com a erosão
dos solos, valiosos recursos agrícolas nacionais.

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48 — PROGRESSOS AGRÍCOLAS REGIONAIS

Depois de quase permanente estagnação demográfica em Portugal, pelo constante êxo-


do migratório para diferentes parcelas do Mundo, passam a registar-se, a partir da segunda me-
tade do séc. XIX, saldos fisiológicos particularmente importantes que possibilitaram o acrésci-
mo, em cerca de meio século, de mais de 1,5 milhões de habitantes, sobre uma base de 3,5 mi-
lhões de portugueses resultantes do lento crescimento ao longo de séculos. O processo inseriu-
-se no quadro mundial da «explosão demográfica» e o suporte alimentar ficava historicamente
ligado à «revolução do Milho» que passou a ter o seu natural reflexo na exploração intensiva
de diferentes recursos regionais, o que colocou a agricultura portuguesa a par das mais pro-
gressivas agriculturas europeias, nesta época.
Embora, como noutros passos deste trabalho se referiu, a acção dos políticos no sentido
de desencadearem «reformas estruturais» tenha resultado sistematicamente bloqueada pela
reacção dos latifundiários, o esforço camponês foi tão forte que algumas paisagens agrárias se
transformaram, sempre que a "fome de terra" alcançou ser minorada pelo aforamento, pelo ar-
rendamento de leiras e courelas, pela divisão de baldios em sortes, criando-se estruturas fami-
liares onde se desenvolveu a milagrosa gestão da subsistência, que chega a dar resposta a ape-
los do mercado, quando as carências são imperiosas.
Tudo foi possível enquanto a emigração continuava a marcar o destino de numerosos
rurais, particularmente no que respeita ao povoamento do Brasil. Com enorme vitalidade de-
mográfica, Portugal mantinha-se o «viveiro» de numerosas comunidades que asseguravam a
expansão da cultura e da língua portuguesa.
Sem qualquer plano e sem intervenção de política agrícola, não foram, porém, as terras
férteis que se ofereceram ao esforço e iniciativa dos camponeses. Foram as areias desprezadas
pelos latifundiários, mantidas como baldios ou resíduos de velhos parcelamentos moçárabes,
que deram motivo à mais activa das intervenções técnicas que as tornaram produtivas. A trans-
formação operou-se desde o litoral nortenho ao Algarve, passando pela «Outra Banda», frente
a Lisboa.

A Aguçadoura

A Junta de Colonização Interna publicou em 1944 um estudo sobre o aproveitamento


das dunas do litoral compreendido entre Esposende e Póvoa de Varzim, que recebe a designa-
ção genérica de «Aguçadoura», uma das suas povoações mais típicas, representando a área to-
tal de 1.850 hectares.
Esta área do litoral tem sua história que o referido trabalho documenta com um texto do
Padre Domingos Basto:
«Grandeza à maneira do tempo de então já a houve na região do Rio Alto. Êsse lugar
da freguesia de Estela foi outrora não citânia mas vila romana. É facto histórico e não mera hi-
pótese ou conjectura. Chamava-se Vila Menendiz ou Vila de Mende e foi couto de Tibãis, jun-

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tamente com Santa Maria de Estela. Não se sabe ao certo a extensão que tinha a Vila de Men-
de. mas é tradição local que era situada entre os limites de Apúlia e os de Estela, que tinha um
pôrto pesqueiro e nas imediações uma localidade, que seria talvez a Apúlia primitiva. A Vila
de Mende conferiu foral D. Afonso Henriques. É ainda tradição local que o pôrto pesqueiro foi
assoreado e que os habitantes da Vila de Mende se retiraram para o sul a estabelecer nova mo-
rada e a procurarem a vida pelo trabalho.»
A Vila romana e as construções que se seguiram mantiveram-se até que a invasão das
areias, ocorrida a partir de época difícil de determinar, tudo sepultasse em enorme duna estéril.
O texto refere que «a acumulação destas areias tem causa idêntica à de outras ao longo do li-
toral; transportada pelos rios, as ondas marítimas atiram-nas constantemente para terra, acu-
mulando-as a sul da sua foz em maior ou menor extensão e largura. Aqui, o carreamento dever-
-se-á sobretudo ao rio Cávado, na faixa da Aguçadoura e da Apúlia, e ao Neiva, na que a pro-
longa para norte».
Tudo confirma a afirmação do Padre Domingos Basto, inclusivamente escavações re-
centes:
«houve no Rio Alto a vila romana de Menendiz ou de Mende, que as areias inundaram,
obrigando a população a retirar-se para o sul. A população teria sido de lavradores-pescadores,
a quem a vida pelo trabalho se tornou impossível, porque as areias inutilizaram ao mesmo tem-
po o pôrto pesqueiro e as terras de granjeio. Tudo isso e talvez a maior facilidade de se estabe-
lecerem a sul, sobretudo em melhores condições de faina da pesca, concorreu para o abandono
do Rio Alto e para os seus terrenos ficassem absolutamente entregues, sem qualquer defesa, à
acção das areias.»
A terra fértil foi «grandeza» do Rio Alto, sepultada pelos carrejos da erosão de monta-
nhas do interior submetidas, durante muitos séculos, ao fogo e pastoreio, havia de ser «desco-
berta» por camponeses industriosos pressionados pela «explosão demográfica».
«Por volta de 1880 alguns lavradores, principalmente Joaquim Gomes Loureiro, Ma-
nuel Gomes Loureiro, Manuel Fernandes de Oliveira (já falecidos) e Joaquim Fernandes Lino
(ainda vivo, com 85 anos e cego), começaram a fazer escavações mais profundas.
Como os novos terrenos se encharcavam no inverno, a fim de os enxaguar estabelece-
ram regueiras, que reuniam numa só, denominada sangradouro, destinada a escoar a água para
o exterior; estabeleceu-se assim o sistema de sangração.
Nos anos poucos chuvosos podia fazer-se já a cultura permanente nos talhos rebaixados.
Desde que foi possível êste aproveitamento, começaram a generalizar-se as culturas e
foi aparecendo a batata com magníficos resultados.
Como fertilizantes usava-se o estrume e também o sargaço, que já tinha largo aproveita-
mento nas terras pretas.
Pela necessidade de fixação das areias removidas e acumuladas tentou-se, na base dos
moios, a plantação de vides, cujos braços se estendiam, rastejando pelas encostas. As videiras
desenvolviam-se ràpidamente, fixavam as areias, mas produziam pouco; as uvas, por isso, ape-
nas eram aproveitadas para a alimentação.
Poucos anos depois de iniciada a cultura da videira verificou-se que a sua fraca produ-
ção era devida à "queima" da uva em contacto com areia muito quente. Assim, Manuel Fernan-

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des Lino fez a tentativa de levantar a vinha sôbre estacas, do que resultou maior produção. Rà-
pidamente foi imitado, começando o fabrico do vinho.
No entanto, até cêrca de 1900, estes aproveitamentos ficaram muito restritos, sendo ape-
nas cêrca de quinze os proprietários que os faziam; mas, em face da abundância das produções
e dos preços mais remuneradores, de 1900 em diante começaram verdadeiramente a generali-
zar-se.
De comêço os "campos" não tinham a configuração regular que hoje apresentam, por-
que eram só cultivados os terrenos mais baixos, aproveitando as elevações dos medos naturais
para abrigo e fazendo só um ou outro "valo".
Reconhecendo-se o grande valor da vinha nos "valos", surgiram aproveitamentos contí-
guos, com os "valos" cuidadosamente preparados.
Assim se foram apropriando as areias, com exclusão dos terrenos cuja escavação fôsse
além de 0™,80 e 1 metro.
Esta apropriação à cultura hortícola intensiva e à vinha é conhecida na região pela de-
signação feliz de — descoberta do terreno.»
A «descoberta» do solo fértil escondido pelas areias das dunas, nunca assumiu aspectos
de «obra pública», nem beneficiou de protecção de Crédito ou Financiamento, ou de imperati-
vo de Plano de Fomento. No isolamento da vila aldeã, a «descoberta» era celebrada com uma
festa, mantendo o atributo que ninguém lhe tira de projecto espontâneo de desenvolvimento:
«Normalmente, no dia em que termina a obra da descoberta, é uso fazer o "Ramo de
obra": a colocação, pelo empreiteiro e seu pessoal, na parte mais alta dos valos, de um grande
ramo de pinheiro (quási um pinheiro inteiro), enfeitado com papéis de côres.
O serviço, gratuito nesse dia, principia de manhã a fim de terminar ao meio dia. Con-
cluído o trabalho, são lançados alguns foguetes anunciadores.
O proprietário oferece uma merenda, quási sempre constituída por castanhas para um
magusto, figos, vinho e, por vezes, também bacalhau cozido com batatas.
Durante a merenda há grande animação e algazarra e de tempos a tempos é lançado um
foguete; segue-se um baile com música de harmónio e violas, que dura por vezes até à noite.
Todos os jornaleiros que trabalharam na obra, mesmo que fôsse apenas duas ou três tar-
des, vêm à festa e, se o ano foi abundante em vinho, serve-se à discrição até à noite.
O ramo fica no campo até apodrecer, pois ninguém o tira.»
Mas, para além da festa, o aproveitamento representava, no fim do século XIX e início
do século XX uma técnica hortícola especialmente aprimorada. As colheitas a que deu origem
atenuaram fomes que, de outra forma, poderiam ter sido maiores com as duas Grandes Guerras
mundiais.

A Gafanha

A ria de Aveiro é considerada pelos Géografos «de formação mais recente do que se nos
afigura». Amorim Girão, na sua «Geografia de Portugal» refere que «os próprios mapas dos
século XVI [...] podem dar-nos a mesma impressão do mais acentuado recorte da zona costei-
ra e do menos pronunciado avanço no sentido Oeste. Algumas ilhotas que existiam outrora jun-

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to à costa, como vedetas, vieram a ser com os tempos incorporadas na terra firme pela consi-
derável obra de sedimentação marinha e fluvial; eram portos marítimos muitas localidades que
agora estão afastadas do mar, como sucede a Mira; e a navegação do curso inferior dos rios,
bem menos assoreados do que hoje se nos apresentam, devia fazer-se então em muito maior
escala». Concretamente, em relação à Ria de Aveiro «em certos mapas dos séculos XVII e
XVIII, pode ver-se representado um antigo litoral ainda bastante retraído, mas onde o cordão
das areias aparece já formado em parte e avançando do Norte para Sul». E, mais ainda: «por
grandes vicissitudes tem passado a zona lagunar, mesmo dentro dos tempos históricos, diver-
sas devendo ter sido as soluções de continuidade no cordão litoral que marginava a ria, e diver-
sos também os pontos onde nela desembocava o Rio Vouga. Por várias vezes a acção combina-
da das ondas marinhas e dos ventos com os aluviões do rio chegou mesmo a destruir completa-
mente qualquer comunicação da laguna com o mar, fazendo decair a cidade de Aveiro, inca-
paz então de receber embarcações, e tornando insalubre a região. Para assegurar essa comuni-
cação com o mar e impedir a mudança da barra, várias obras se têm feito por isso em diversas
épocas.»
Nesta laguna encontra-se a Gafanha, antiga duna que se espraiava para o Sul, desde a
barra actual da Ria de Aveiro até aos areais do concelho de Mira, limitada pelo canal de Ílhavo
a Vagos e pelo canal de Mira. A Gafanha mede cerca de 26 quilómetros de extensão, com lar-
guras variáveis que diminuem de Norte para Sul, ocupando a superfície aproximada de 300
quilómetros quadrados. São três as Gafanhas designadas da Nazaré, de Vagos e da Encarnação,
situadas nos concelhos de Ílhavo, Vagos e Mira.
Teria sido a formação recente do referido cordão de areias litorâneo que intensificou a
sedimentação de nateiros, depositados a diferentes profundidades das áreas hoje agricultadas.
As águas subterrâneas são abundantes encontrando-se mananciais a dois ou três metros de pro-
fundidade. Área deserta, por se encontrar submetida a constante alteração morfológica lagunar
e pela mancha impiedosa das areias que formavam as dunas, acabou por oferecer, muito recen-
temente, as condições de povoamento que a transformaram numa das mais ricas regiões de
agricultura intensiva de Portugal e do Mundo.
Manuel Sieuve Afonso, em Relatório Final de Curso de Engenheiro Agrónomo, afirma
que «marcar a época de início de povoamento da Gafanha é assunto de extrema dificuldade».
No entanto, documentos que reuniu demonstram claramente que o processo de colonização te-
ria sido desencadeado sobre terrenos da mata nacional que foi parcelada em meados do século
XIX. Tem, no entanto validade a hipótese que apresenta de que o aproveitamento agrícola de
areia nesta zona é contemporâneo das obras de abertura da actual Barra Nova de Aveiro que
decorreram cerca de 1808. Trabalhadores oriundos de terrenos de constituição arenosa, idênti-
cos aos da Gafanha, como os de Mira, ter-se-iam fixado na parte mais setentrional, no decurso
dos trabalhos.
Porém, o referido Autor registou a versão popular, que no local também, nos foi conta-
da, de que a Gafanha teria o seguinte «princípio»: António Cardoso, natural de Cacia, casou
com Luísa Gramata, de Ílhavo. O casal estabeleceu-se, por não ter outro torrão, nos areais da
Gafanha, hoje conhecida pelo nome de Gafanha da Encarnação. Deste casamento nasceu uma
filha, Joana de Jesus Gramata que, em virtude do seu desembaraço e capacidade de iniciativa,

420
passou a ser marcada pela alcunha de «Maluca».
A Joana «Maluca» casou com José da Graça que apareceu não se sabe de onde e teve
numerosos filhos e filhas. Teria sido esta Mulher que se lembrou de fertilizar a areia das dunas
com o moliço arrancado à ria e com os nateiros nela depositados, regando as culturas com a
água elevada de poços pouco profundos que logo encontravam o lençol freático. Nessa luta
empenhou toda a família. Entretanto ficou viúva, mas casou de novo com António da Encarna-
ção, e continuou a acrescentar a numerosa prole. A iniciativa de cultivar das dunas com moliço
e nateiro atraiu novos povoadores que dividiram o baldio. Mas o planeamento familiar da Joa-
na Gramata, a «Maluca», resultou fundamental, porque lhe deu a descendência que, em 1896,
a rodeava, na Encarnação, de 146 netos. Hoje são muitos os que na Gafanha e no Mundo usam
o nome de Gramatos. Conta ainda o Povo que a Gramata chegou a muito velha e que fumou
cachimbo até morrer.
Os primeiros agricultores da Gafanha iniciaram os trabalhos agrícolas nas areias situa-
das mais próximo das «praias de estrume» onde, a pequena profundidade, se encontravam os
nateiros ou lamas os quais, incorporados com as areias do solo conjuntamente com o moliço
da ria e estrume da praia, punham à disposição das plantas os indispensáveis elementos fertili-
zantes para o seu natural desenvolvimento. Só mais tarde a área agricultada foi alastrando para
o interior da região, mercê do trabalho duríssimo do moliceiro que, colhendo os moliços do
fundo da ria os entregava às areias estrumando-as abundantemente. Simultaneamente as cavas
profundas atingiam por vezes as camadas do sub-solo, fabricando-se assim o solo fértil. Uma
das dificuldades da instalação e funcionamento do regadio era a grande permeabilidade dos re-
gos de areia para a condução da água captada nos poços. A argila, em suspensão, uma vez de-
positada, impermeabilizava a conduta reduzindo as perdas por infiltração.
Egas Moniz, em «A nossa casa» descreve a sua terra pela qual nutria grande paixão:
«Passa um barco moliceiro, cheio de preciosas algas que nascem no fundo da Ria, exce-
lente adubo que, de areias improdutivas, fez terras férteis onde se cria excelente milho, batata,
feijão. Vai com a borda a roçar na água, devido ao peso da carga, mas os marinhões aumentam-
-na com as falcas e lodo e seguem tranquilos colocando os ancinhos da apanha, nas peças late-
rais do barco. Só são tirados quando, cheios de limos, vêm completar a carga de moliço que
vai vender-se na ribeira onde a embarcação atraca ao cais.»
Na modernidade novecentista, nenhum plano governamental se ocupou da Gafanha. Tu-
do ocorreu em «economia paralela», partilhando-se o baldio na indiferença, talvez, do que ao
mesmo tempo se passava em Lisboa, quando Oliveira Martins lutava para que o Parlamento
discutisse o Projecto de Lei de Fomento Rural, o que foi frustrado. Trata-se, verdadeiramente
de um bom exemplo de projecto expontâneo, popular, em cujo conteúdo específico não falta a
figura lendária da Joana Gramata, a «Maluca», autora de numerosos Portugueses, a povoarem
a Gafanha, sobrando ainda para se fixarem nos mais recônditos cantos do Mundo.

A «Outra Banda»

Antes de se lançar ao mar o Tejo forma um amplo estuário, situando-se a cidade de Lis-
boa na margem direita, em frente da qual se encontra a «Outra Banda». Efectivamente, na mar-

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gem esquerda desenvolve-se caprichoso recorte da beira rio que Maria Alfreda Cruz estudou,
apresentando um trabalho designado «A Margem Sul do Estuário do Tejo». A referida autora
descreve:
«onde o povoamento é aglomerado e hierarquizado em vilas, em aldeias e em quintas
correspondentes a grandes explorações, trata-se, na verdade, pois que todas estas células são
dependentes do rio de uma região litoral, uma Borda de Água aparentada ao actual Ribatejo.
Em compensação, no termo de uma vila urbana de antecedentes remotos — Almada — geram-
-se alguns lugares litorais, de função predominantemente marítima, mas sobretudo, no interior,
lugarejos ou povoações semi-dispersas, casais e quintas de veraneio; define-se mais do que
um povoamento misto, um povoamento híbrido: concentrado no litoral e disperso no interior.
Assim se difundiu a Outra Banda de Lisboa, réplica, ao sul do Tejo, da periferia saloia da ci-
dade, embora temperada por características específicas. Entre ambas estende-se uma área — a
do esteiro de Coina — com características menos definidas, sob o aspecto considerado, embo-
ra a área limítrofe do Barreiro possa, em função dos elementos apontados, identificar-se com
a orgânica da região de Almada.»
Os aspectos históricos da evolução desta «margem sul» do estuário do Tejo são variados
e a referida Autora resume-os da forma seguinte:
«A organização rural e a veiculação dos seus produtos foi conduzida, embora com duas
fisionomias segregadas, por todos os povoados da Margem Sul do Estuário do Tejo. Paralela-
mente desenvolvem-se funções litorais, independentes do arranjo da terra mas em relação com
o contexto regional: pesca, transporte de gente e de mercadorias extra locais (passagem) e ain-
da, como actividade induzida pela navegação de um e outro tipo no rio, a construção naval.
Algumas delas terão ajudado a originar povoações novas: o Barreiro e o Seixal foram póvoas
de pescadores das velhas vilas do Lavradio e de Arrentela que significam busca de situações
mais favoráveis, na costa do Mar da Palha, para o exercício das suas actividades. Acresce que,
no século XVI, com a instalação no Vale do Zebro, perto de Coina, dos estaleiros navais da
Coroa — a Ribeira das Naus — se intensificou a disseminação de outros estaleiros pelo litoral
vizinho; sobretudo entre o Seixal e o Alfeite, onde, no final do século XIX, se instalou o Arse-
nal da Marinha de Guerra Portuguesa. Entretanto, tal como o transporte de produtos florestais
para Lisboa se distribuiu irregularmente no espaço, as funções litorais autónomas também se
desenvolveram apenas em determinados sítios. Em relação à pesca, foram eles os de Almada,
Arrentela, Seixal, Barreiro e Aldeia Galega do Ribatejo. Em relação à passagem, com fortuna
e alcance diversos, foram Cacilhas, Coina e Aldeia Galega, por um lado, Seixal e Barreiro, por
outro.»
A enorme extensão de matos coutados, conforme se referiu noutros passos, justifica que
a margem sul tenha assegurado o abastecimento de Lisboa de lenha e de carvão. O desenvol-
vimento dos pinhais é recente, dando origem a novos produtos florestais que interessaram ao
consumo de Lisboa. Documentos do século XVIII assinalam a vastidão das áreas florestais que
«esmagavam» a área agrícola, alternando com charnecas incultas. No entanto a proximidade
de Lisboa assegurou a manutenção do comércio de vinho e de sal. Relatos de várias épocas as-
sinalam mesmo a «euforia» de novos plantios de vinha na margem sul, euforia que chegou à
plantação do século XIX da maior vinha do mundo feita em Rio Frio, no concelho de Alcoche-

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te, por José Maria dos Santos. Esta decisão do maior agricultor da época, sugere a realidade
da presença do mercado de Lisboa, que procurava «vinho barato» prescindindo, nas tabernas,
de vinhos de qualidade, de outras origens. No entanto, o grande Lavrador não confiou na pe-
renidade ou viabilidade do gigantismo empresarial vitícola em que se empenhou, tendo semea-
do bolotas de sobreiro na monstruosa vinha, o que veio a dar lugar a um magnífico montado,
perfeitamente alinhado. Este caso não exclui a realidade de se encontrarem bons vinhos na Pe-
nínsula de Setúbal.
A presença do mercado de Lisboa acabou por demonstrar às populações da «Outra Ban-
da» que seria possível intensificar a produção agrícola fertilizando as areias de que dispunham
como solo agrícola, ocupado pelas charnecas, com as lamas e os lixos de Lisboa «tomados co-
mo estrume» o que assumiu «grande importância nas novas colonizações dos areais». Em Lis-
boa, «as varreduras dos bairros altos eram removidas para os vazadouros que estavam estabe-
lecidos perto da cidade e as dos bairros baixos eram conduzidas às pontes nos cais do Tejo e
de S. Paulo e transportadas em duas barcas para sul do Tejo».
Particularmente em Montijo assumiu grande importância a engorda de porcos nascidos
fora da região, de que se aproveitam grandes quantidades de estrume, o «bornico». Desde os
meados do século XIX que chegavam a Aldeia Galega, através da estrada da palha do Alente-
jo, suínos subtraídos ao encabeçamento da montanheira nas herdades, e que eram retidos na
povoação para serem engordados em chiqueiros dispersos pelas fazendas, antes de serem ven-
didos para Lisboa. Tais engordas baseavam-se no consumo de frutos que não alcançavam cota-
ção comercial, como os figos, e depois, os excedentes de produção de batata. Com a instalação
da indústria de salsicharia o pequeno fazendeiro desinteressou-se da engorda em grande e sur-
giram industriais que construíram grandes malhadas. Na engorda do porco alentejano foi utili-
zado largamente o milho, primeiro nacional e depois colonial. A peste suína africana que se
instalou em 1957 veio não só aniquilar a criação de porcos nos latifúndios do Sul, como tam-
bém a engorda nas malhadas tradicionais da Outra Banda. Todavia, o desenvolvimento da in-
dústria das farinhas para alimentação pecuária, permitiu a reinstalação da produção suína em
termos industriais modernos com raças importadas, de carne menos gorda adaptada às novas
exigências da indústria da salsicharia. A produção de «bornico» aumentou e assistiu-se à cria-
ção de nova dependência entre a horta e a pocilga, no domínio das fertilizações.
Outra das características do desenvolvimento da produção agrícola na Outra Banda foi
a de se manter o carácter rudimentar do apetrechamento mecânico. Os trabalhos fundamentais
continuaram a ser feitos com a charrua, a enxada e o sacho. As regas desenvolveram a abertura
de furos artesianos onde se instalaram bombas elevatórias, mas permaneceu «o cabaço com
que se eleva a água das valas e a tapadoira, com que se orienta a das regadeiras». Tal facto per-
mitiu afirmar há pouco tempo que «embora as máquinas agrícolas já não sejam desconhecidas,
são ainda raras». A criação de fertilidade nas areias constitui a verdadeira inovação do horticul-
tor e é nesta circunstância que reside o verdadeiro carácter da transformação operada. Na ver-
dade, os solos da Outra Banda, pouco mais são do que o suporte físico de elevadas fertilizações
orgânicas de que os lixos urbanos constituem o mais forte dos contributos.
No que respeita à formação de nova paisagem agrária generalizou-se rapidamente a
plantação de vinhas onde a nota de intensificação cultural se encontra na cultura hortícola in-

423
tercalar. Intensiva passou a ser a cultura da batata, cuja produção «nova» era presente muito
cedo no mercado de Lisboa. E assim a Outra Banda se transformou rapidamente, no fim do sé-
culo XIX e desde o início do século XX numa «área de culturas de mercado urbano», abaste-
cendo não somente Lisboa, como também as populações que se estabeleceram na região em
resultado do desenvolvimento industrial. Os campos hortícolas especializaram-se na produção
de «novidades» que se apresentam no mercado depois dos primores algarvios e precedem as
produções serôdias das terras saloias húmidas. Maria de Lourdes Pereira estudou as origens do
abastecimento da cidade de Lisboa concluindo que a região saloia alcança a primeira posição
quantitativa fornecendo alfaces, espinafres, couves, grelos, nabiças, nabos e cenouras. A se-
guir, a Outra Banda fornece couves, principalmente lombarda, tomate e vagens e, finalmente,
o algarve envia vagens, tomates e cenouras. São estes os produtos comuns, apresentando-se
agora o abastecimento, cada vez mais diversificado.
De notável, na Outra Banda, foi portanto a importância técnica do recurso aos lixos de
Lisboa para fertilização das areias, o que deu origem a comércio monopolístico de quem o ar-
rematava em hasta pública, que levou ao aparecimento de um «rei do lixo», no dizer do Povo.
Este, transformado em potentado económico, lançou-se na construção de Palácio, que entre-
tanto ficou inacabado, passando a servir de «pardieiro habitado pelos trabalhadores mais mise-
ráveis". De assinalar também o facto de os transportes rodoviários terem passado a levar a ba-
tata, a couve-flor, o repolho e a couve lombarda da Outra Banda às regiões que em certas épo-
cas são concorrentes, servidas pelos «pracistas» do Porto, de Aveiro, de Coimbra, ou pelos cir-
cuitos comerciais do Algarve, «quando as produções algarvias são exíguas ou se extinguem».
A expontaneidade desta «coordenação» agro-comercial é notável, desenvolvendo-se ao arrepio
de normas administrativas que pretendem defender os caminhos-de-ferro, sem que estes se
adaptem às necessidades de bem servir, ou alcançar objectivos fiscais que se desenvolvem bru-
talmente, às cegas, na ilusão de tributarem rendimentos invisíveis.

Primores do Algarve

A tradição autonómica do Algarve provém da longa ocupação islâmica. A conquista de


D. Afonso III não a interrompeu, mantendo-se até ao século XIX muito dos atributos do gover-
no próprio. Essa autonomia permitia distinguir, para um só Rei, os Reinos de Portugal e do Al-
garve. Tudo mudou quando o Reino dos Algarves passou ingloriamente à categoria de Distrito
de Faro. No entanto, as relações económicas apresentavam-se diversificadas, desde o «além-
-mar em África» aos fluxos marítimos euro-mediterrânicos que tocavam seus portos, sem que
os percursos de almocreves na Serra do Caldeirão estivessem vedados. Carminda Cavaco, no
seu «Algarve Oriental» acentua que o antigo Reino se individualiza
«hoje vigorosamente em relação ao restante território português, pela disposição do seu
relevo, em anfiteatro exposto ao sul; pelo carácter temperado e moderado do clima, com ex-
cepção da costa ocidental e da ponta sudoeste, já temperado oceânico apesar da latitude medi-
terrânica e das influências continentais, ibéricas e africanas; pelos elevados valores médios
anuais da humidade relativa; pela precipitação anual, em geral insuficiente e sempre escassa
no período estival; pela feição essencialmente mediterrânica da cobertura vegetal; e no que

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respeita às terras baixas pelas culturas promíscuas, campos arborizados, hortas e pomares, tra-
dição de um intensivo povoamento rural e suas formas modernas de dispersão, activa vida cos-
teira, abertura comercial da economia camponesa e litoral, urbanização ligada ao mar, estrutu-
ração dos hinterlands portuários, e muitas heranças do prolongado domínio muçulmano, no-
meadamente no património de plantas cultivadas, nas técnicas de cultivo, nos utensílios e nas
construções; estas foram avivadas pelas conquistas no Norte de África e pelos contactos que
sempre se registaram entre populações do golfo luso-hispano-marroquino.»
Ainda, segundo a referida Autora, há um século
«a dominante paisagem correspondia ao pomar de sequeiro, e sobretudo ao figueiral,
com campos intercalares cultivados anualmente. As excepções reduziam-se a poucos tipos: vi-
nhas estremes; várzeas sem arvoredo, pela má drenagem; campos concelhios cultivados à ra-
ção, ilhas de charneca; sapais, dunas, formações cascalhentas do Pliocénico, de colonização
agrícola tardia, embora com base naquelas plantações». Acentua-se que «a frequência das fi-
gueiras justificava-se, como nos séculos anteriores, pelo valor comercial do figo, pelo seu pa-
pel fundamental na alimentação da população camponesa mais humilde e na engorada dos suí-
nos domésticos e ainda pela regularidade da produção, pouco afectada pelos valores climáticos
extremos do Inverno e da Primavera, ao contrário do olival e das amendoeiras.»
No século passado a cultura da vinha sofreu as consequências das pragas do oídio, do
míldio, e da filoxera, não tão intensas como noutras regiões, mas sensíveis. A importância do
olival manteve-se, acusando dificuldades económicas na produção, em época recente. No sé-
culo XX assistiu-se à instalação de alfarrobeiras e de amendoeiras nos pomares de sequeiro.
As novas plantações foram feitas nos intervalos das anteriores, ou substituíram plantas cadu-
cas. Não se organizou plano regional ou nacional de desenvolvimento, e a iniciativa apenas
respondeu a solicitações do mercado, correndo o risco de produções mais aleatórias como são
as da amendoeira.
Entretanto, a cidade de Lisboa, tradicionalmente abastecida pelos horticultores saloios,
passou a ser centro de consumo disputado por outras regiões abastecedoras. O caminho-de-fer-
ro, primeiro, e depois a camionagem, vieram alargar a influência do mercado, chegando a al-
cançar a região distante do Algarve. No entanto o Algarve beneficiou de «rendas diferenciais»
resultantes do privilégio de colocar produções hortícolas muito cedo, com as características de
«primores». Carminda Cavaco descreve:
«muitas produções meridionais eram desvalorizadas pela sua menor frescura, ao mesmo
tempo que os preços correntes não compensavam as despesas inerentes ao transporte e à co-
mercialização com intermediários. Daí a orientação para os primores naqueles mercados, e de
cultivo favorecido pelas condições climáticas regionais. Tal orientação fora aliás seguida ante-
riormente nas hortas do Levante espanhol, cujas produções se vendiam por bons preços no vi-
zinho mercado de Ayamonte, frequentado habitualmente pela população da região de Vila
Real. O conhecimento da experiência espanhola e a abertura do mercado lisboeta apoiaram al-
gumas iniciativas que depressa se multiplicaram.»
O caminho-de-ferro não facilitou o transporte de produtos hortícolas a Lisboa. As horas
pouco ajustadas de embarque, a lentidão da marcha dos comboios pelo Alentejo, a passagem
do rio feita muito a montante da cidade, constituíram obstáculo invencível. Somente depois da

425
I Grande Guerra, o aparecimento da camionagem veio alterar o problema. No entanto, a pro-
tecção aos caminhos-de-ferro feita pela proibição do transporte em camioneta de mercadoria
de mais de um produtor, só foi removida com a solução da venda simulada dos produtos ao ca-
mionista, o que passou a processar-se correntemente. Nestas circunstâncias a cultura de primo-
res no Algarve desenvolveu-se rapidamente: «areias finas, esbranquiçadas, sem matéria orgâ-
nica, instáveis e sujeitas à invasão de novas areias transportadas pelos ventos que percorriam
as dunas quase despidas de vegetação, ofereceram medíocres condições para o desenvolvi-
mento de uma agricultura tradicional, mesmo autárcica... terras matosas e de pequena cultu-
ra». No fim do século XIX encontravam-se, no entanto, ocupadas e
«tal ocupação agrícola pressupôs, por um lado, a fertilização das areias e, por outro, a
utilização das águas subterrâneas na rega, dada a extrema permeabilidade do solo e a sua fraca
capacidade de retenção de água útil; a vila forneceu lixos e guanos; a toalha aquífera de cober-
tura dunar, a água de rega, abundante e superficial mesmo em Agosto. Contudo, nos primeiros
decénios do século XX, as hortas eram ainda pouco extensas segundo a recordação dos antigos
e as matrizes.»
As condições locais e o desenvolvimento dos transportes «convidaram à especialização
nos primores particularmente temporãos, sem concorrência nos mercados por parte de outras
regiões mais produtivas e de cultura mais fácil», como refere ainda Carminda Cavaco em rela-
ção às hortas de Vila Real de Santo António. E acrescenta:
«a opção fez-se sem hesitações no primeiro pós-guerra, em muitos casos por investi-
mento de poupanças originárias da pesca e da indústria conserveira de Vila Real e da costa es-
panhola vizinha. Abriram-se poços, instalaram-se engenhos metálicos e alguns moinhos de
vento, adaptaram-se as parcelas ao regadio, mas quando tal não foi possível cultivaram-se pri-
mores nas terras de sequeiro regadas a caldeiro. Das culturas conhecidas elegeram-se as de to-
mate, feijão verde, pepinos e pimentos.»
E a seguir:
«as expedições escalonavam-se dos fins de Março aos de Junho; as de tomate regista-
vam-se sobretudo em Maio, pois as de Junho sujeitavam-se à concorrência das ofertas de Luz
de Tavira e de Albufeira; as de feijão verde concentravam-se em Abril e Maio, mas neste mês
começavam as expedições das hortas de Tavira e da campina de Faro-Olhão; em Maio e Junho
vendiam-se os pepinos e pimentos. Os preços eram suficientemente elevados enquanto se não
fazia sentir a oferta de outras importantes áreas produtoras algarvias e mesmo do sotavento.»
As dificuldades de obter lixos e guanos conduziram ao empobrecimento das terras, os
nemátodos invadiram as terras de tomateiros, apresentando-se a necessidade de se procurar no-
vos rumos a partir dos anos 60. Desenvolveram-se culturas «outrora secundárias, nomeada-
mente de fava, batata, cebola, bersim e outras forragens. No caso da fava jogou a valorização
das ofertas muito temporãs, e no da luzerna, a expansão da pecuária leiteira. O grande incre-
mento da cultura da batata verificou-se sobretudo na de Verão». E a Autora citada afirma que
nos últimos anos se verifica «a maior precocidade das produções; difusão de novas culturas,
expansão dos citrinos; fixação de população não agrícola». E, depois «das culturas novas so-
bressai a das flores, de início limitada a craveiros em vasos... e adaptada a estufa a ao mercado
algarvio (unidades hoteleiras) e lisboeta». E, finalmente.

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«a par destas experiências desenvolvem-se outras, afectando pequenas áreas mas reves-
tindo-se de carácter francamente inovador e ousado, de que destacamos as culturas ao ar livre
de espargos e beringelas... outras parcelas foram desviadas para o cultivo de forragens... em
relação com o desenvolvimento da pecuária leiteira... a transformação agrícola mais signifi-
cativa... corresponde ao abandono das culturas hortícolas em favor de pomares de citrinos».
Mas assiste-se «ao esgotamento progressivo das reservas de água de rega não salobra, corres-
pondentes à toalha dunar, pela sua utilização intensiva (agrícola e urbana) e pela insuficiente
alimentação nos períodos de seca». E, ainda mais «tal evolução desenvolveu-se em paralelo
com a redução da área agrícola provocada pelas construções residenciais».

Mudança cooperativa no Oeste

O Concelho da Lourinhã, situado no Distrito de Lisboa, com 21.245 habitantes, dispon-


do de uma estrutura agrária particularmente favorável para a inserção de um processo de de-
senvolvimento, constitui hoje exemplo flagrante do efeito da adesão dos agricultores ao asso-
ciativismo cooperativo integrador das actividades industriais e comerciais. Baseamo-nos em
comunicação apresentada por Carlos Cabral a uma «reunião de trabalho sobre cooperação
agrícola» promovida em 1967, comunicação que se subordina ao título de «Mudança da Agri-
cultura. Mudança Cooperativa».
O processo de «mudança» decorre ao longo de trinta anos, sendo posterior aos que fi-
caram neste capítulo assinalados. Assiste-se, na Lourinhã, em período recente «ao abandono
de formas de agricultura de subsistência para formas de agricultura totalmente dominadas pelo
mercado». O processo envolve cerca de 4.000 explorações agrícolas, e decorre com a redução
de 17 por cento da população residente, entre 1960 e 1970, verificando-se a recuperação de 11
por cento em 1981, em relação ao Censo anterior. No entanto, a população activa agrícola acu-
sa a redução de 57 por cento entre 1960 e 1981. Afigura-se surpreendente, em face dos concei-
tos geralmente firmados, que o arranque do desenvolvimento agrícola se apresente compatível
com o peso esmagador de 9.060 analfabetos que representam 42,4 por cento da população.
Sem que nos seja possível afirmar que é este o caso, sucede que uma população analfabeta po-
de apresentar-se fortemente aculturada, superando deficiências resultantes da falta de frequên-
cia escolar.
As produções agrícolas tradicionais eram o trigo, a batata e o vinho. A viticultura ocupa-
va grande parte das terras cultivadas. Das culturas hortícolas tradicionais destacava-se o repo-
lho e a couve coração de boi, enquanto «várias pequenas hortas destinavam os seus produtos
ao abastecimento da casa de cada um». Quanto à fruticultura cuidava-se da pereira e da maciei-
ra, esta restrita à freguesia de Reguengo Grande.
A transformação operou-se sobre a estrutura agrária de muito pequena, pequena e mé-
dia propriedade dominante, com 71,4 por cento das explorações agrícolas inferiores a 3 hecta-
res e 97,0 por cento com menos de 10 hectares. Sem que existisse qualquer imposição «pom-
balina» ou Plano de Reconversão ou de Ordenamento mesmo indicativo, os agricultores arran-
caram vinhas e, no seu lugar, procederam à plantação de pomares de prunoideas e, especial-
mente, de culturas hortícolas para exportação de ervilha, fava, espinafres, bróculos, couve-flor.

427
couve chinesa, tomate, feijão verde, morango e melão. Carlos Cabral afirma que «a inovação
está também patente nos processos técnicos, de cultivo, a utilização de sementes selecciona-
das, no recurso aos fíto-fármacos e até na exigência de acompanhamento técnico o que leva as
Cooperativas da região a disporem dos seus próprios técnicos agrícolas».
Efectivamente, o arranque do desenvolvimento operou-se depois da constituição das es-
truturas cooperativas. O Concelho contava desde 1912 com a Caixa de Crédito Agrícola Mú-
tuo da Lourinhã e promoveu a instalação da Adega Cooperativa da Lourinhã em 1957, com o
apoio da Junta Nacional de Vinho. No entanto, a cooperativização de outros domínios da acti-
vidade agrícola foi a causa determinante do estilo de desenvolvimento que se instalou.
Em 1967, com o apoio da Junta Nacional das Frutas, foi criada a Lourifruta Cooperati-
va, que imprimiu forte impulso à fruticultura regional. Com a liquidação do Grémio da Lavou-
ra, 1974, foi criada, em substituição, a Louricoop, Cooperativa de apoio a serviços do Conce-
lho, com 4.230 associados que, segundo Cabral, «desempenha hoje um papel muito importan-
te, quer como fornecedor de factores de produção, quer como prestadora de serviços, dentre os
quais se realça o de apoio técnico aos agricultores».
No entanto, foi muito importante o desenvolvimento da Lourifruta que ficou assim co-
mentado por Carlos Cabral:
«Nascida em 1967 e entrando em funcionamento em 1971 como estação Fruteira tradi-
cional, por iniciativa de 24 agricultores produtores de fruta, em breve a Cooperativa se viu na
necessidade de dar resposta às produções hortícolas tradicionais, couves, repolho e coração de
boi, começando por isso a comercializá-las em fresco para os mercados de Lisboa e Porto. A
partir daí e tendo em conta uma estratégia de substituição de importações planeou uma fábrica
de congelação e ultra-congelação que entrou em funcionamento em 1974. A partir da existên-
cia de uma instalação agro-industrial, que no campo da fruta conserva em câmaras de refrige-
ração, e no campo das Hortícolas permite a congelação e ultra-congelação, a influência da
Lourifruta na mudança da agricultura da região torna-se enorme. Dispondo desde 1977 de téc-
nicos próprios, é a Cooperativa que se lança na difusão de novas culturas, distribuindo semen-
tes aos agricultores e dando-lhes o apoio técnico necessário à transformação dos seus sistemas
de produção. Com o acréscimo da produção conseguido, a Cooperativa ficou em condições de
exportar os seus produtos, e em 1981 inicia com sucesso a penetração no mercado externo,
vendendo hoje nos principais mercados da C.E.E. e ainda para o Japão, Canadá e Brasil».
Talvez o que tem maior interesse registar, quanto à «mudança cooperativa» da agricul-
tura da Lourinhã é o carácter de expontaneidade que caracteriza este exemplo. A «mudança»
ocorre em período recente, tem a mesma imagem de outros casos de «progresso agrícola regio-
nal» mais antigos, que antes foram apresentados neste trabalho. Devendo reconhecer-se o efei-
to do apoio facultado ao equipamento cooperativo pela Junta Nacional do Vinho e Junta Na-
cional das Frutas, acontece que não se encontra qualquer espécie de integração em política
agrícola que não existia no seu desdobramento regional. A micro-região encontrou, sozinha, os
meios indispensáveis para operar o desenvolvimento, em evidente autonomia de processos e
de decisões. Ou teria existido qualquer sistema motor que não se encontra identificado. Carlos
Cabral, com a «versão provisória» que, no seu dizer, caracteriza a sua comunicação, propõe-
-se efectuar o estudo, que nunca foi feito, deste caso exemplar: «A Lourifruta tem proposto.

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nos últimos anos, um modelo de desenvolvimento e/ou especialização para a região onde está
inserida. As condições que o modelo trará no quadro da adesão plena à C.E.E., não estão ainda
estudadas. Torna-se assim urgente recorrer a metodologias que permitam testar as possibilida-
des do modelo proposto e as consequências da aplicação total da Política Agrícola Comum na
região». Daqui talvez se possa concluir quanto é grande a distância que separa situações con-
cretas, dos esquemas de intervenção elaborados nos Gabinetes de Bruxelas. Isto, em princípio,
não significa que os esquemas possam encontrar-se inadequados. A «distância» é que será o
problema e se não for rápida e correctamente encurtada por competentes e honestos intervento-
res no processo de implantação estrutural, pode, efectivamente, gerar-se desperdício de muitos
dos auxílios, mesmo quando impecavelmente programados. Vem isto a propósito da oportuni-
dade de focar aspectos fundamentais da «deontologia do desenvolvimento» que, neste caso,
será a «deontologia» da adaptação ao «Mercado Comum», que estamos certos, anda muito
abandonada.

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49 — A REPÚBLICA IMPLANTADA

Os Historiadores encontraram dificuldades em procurar raízes do republicanismo portu-


guês. Tais raízes não serão rurais e encontram-se em influências externas que os intelectuais,
os estudantes de Coimbra e as camadas burguesas e operárias captaram, ao longo da atribulada
radicação do liberalismo, formando agregações ideológicas como as de «vintistas» e de «se-
tembristas». Teria sido importante a influência do fim da Patuleia, quando a Rainha, apoiada
pela Espanha e a Inglaterra proporcionou o desfecho da Convenção de Gramido. Os estudantes
de Coimbra sentiram o desastre e o terreno preparou-se para que a Escola Coimbrã desse lugar
à Geração de 70, com a «ideia nova» de Antero. O republicanismo explodiu com o Ultimato
de 1890 e veio à rua para ser massacrado pelos Municipais, na Cidade pioneira do Porto, com
a revolução frustrada de 31 de Janeiro de 1891. O alheamento rural do processo de desgaste
do regime monárquico, acentuou-se no fim do século. Já nada poderia levantar forças como as
que gritavam «morras aos Cabrais» em simultâneo com «vivas à Rainha e a D. Miguel», o que
revelava extrema fidelidade, e cega, à Monarquia. Na alvorada do século XX, a cidade, com
os seus meandros de sociedades secretas, suas intrigas políticas e alguns fanáticos a proferirem
arrastados «vivas à República», preparou o terreno para o regicídio. Em carruagem descoberta,
sob protecção de escolta insuficiente, os conjurados executaram o Rei D. Carlos e o Príncipe
Herdeiro D. Luís Filipe. A Rainha enfrentou os tiros, brandindo um ramo de flores, lavada em
lágrima de desespero. Decorria o ano de 1908. Os assassinos foram logo massacrados, na rua.
Lisboa viveu horas de ansiedade e de pavor: «mataram D. Carlos...».
O filho segundo sucedeu no trono com o nome de D. Manuel II. O reinado foi breve e
a Revolução republicana aventurou-se, desta vez em Lisboa, em 5 de Outubro de 1910, não
deparando com resistência armada séria. Sem que os Camponeses contribuíssem para tanto foi
proclamada a República da sacada do Município, perante escassa multidão urbana. Durante
muito tempo, nas aldeias, figuras destacadas do novo regime eram confundidas com os Reis
de sempre, em quem se depositava a esperança, «sebastianista», de salvatério que nunca che-
gava, perdido nas brumas do «nevoeiro» histórico, cada vez mais adensado. A Monarquia ain-
da se arrastou pelas fronteiras do Norte, arvorada nas «incursões de Couceiro», tendo depois
retorno efémero sem o apoio de Rei que se manteve ausente. O mais importante foi que a Euro-
pa se encontrava em vésperas da I Grande Guerra mundial. Na Flandres e em Africa, alguns
milhares de rústicos iriam morrer, sem saberem por quê, mobilizados.

A morte de um dos maiores naturalistas portugueses

Estava implantada a República. Enquanto intelectuais ilustres aderiam ao novo regime,


o delírio da multidão anónima despertava nas ruas os piores instintos que emergiam da histó-
ria, reactivados pelas mais tenebrosas raízes. Sousa Costa em «Páginas de Sangue» descreve,
depois de comentar que «as classes na véspera adversas lavavam as suas mãos», a legitimarem
a vitória como expressão da vontade nacional. E o referido Autor afirma: «pode jurar-se aos

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quatro ventos que a República viera à luz por obra e graça do clero, nobreza e povo». No en-
tanto a Revolução estava destinada a cumprir a tradição de imolar vítimas inocentes:
«Todos os edifícios públicos e centos de casas particulares hasteiam a bandeira verde-
-rubra. Os regimentos recolhem a quartéis entre salvas e vivas.
A Policia esconde-se nas catacumbas do medo. A Guarda Municipal alaparda-se em asi-
los citadinos e suburbanos. A autoridade constituída entrega a cidade à vigilância de revolucio-
nários militares e civis. Pelo que. proclamado o novo regimen, ministérios, legações, bancos e
casas bancarias teem por sentinela soldados sujos de pó e mascarrados de polvora. populares
armados de carabinas, muitos dêles sem gravata, alguns mesmo sem sapatos.»
O problema religioso encontrava-se muito vivo:
«A casa dos Lazaristas é em Arroios, no Palácio Linhares. Ao correr a noticia da im-
plantação da República, logo a populaça do bairro, desde ha muito exercitada no odio aos con-
fessos de S. Vicente de Paula, afirma que os padres teem municipais e policias escondidos no
convento, que do convento fizeram fogo sobre os populares, que no convento ha mulheres se-
questradas para gôzo dos padres.
Um marinheiro e um popular revolucionários, ouvidos tantos testemunhos, batem à por-
ta da residência. Aberta a porta, entram no edifício, procedem a uma busca — e deixam os pa-
dres em paz, certos do perjúrio das gentes exaltadas.
Mas as gentes exaltadas não esmorecem. Antes mais se exaltam com a cordura dos re-
volucionários — que atribúem a peita ou suborno. Continúam a jurar a existência de munici-
pais, policias e mulheres no colégio monástico, e os tiros disparados sobre o povo em regosíjo.
A multidão vai engrossando em frente do edifício. Vai crescendo as imprecações e
ameaças — êste a excitar-lhe em cóleras com as culpas divulgadas no comicio, aquele a acir-
rar-lhe os impulsos com a certeza dos tiros disparados, das orgias sensuais.
Mas falta o cabecilha que dirija e dinamise os instintos cegos e os brutos impulsos em
efervescencia. O cabecilha aparece no momento proprio — o sol a baixar no poente.
Visinho dos padres, impõe-no a estatura vigorosa e ao ar sinistro, carregado pelos bigo-
des negros caídos aos cantos da bôca.
— É preciso castigar os malandros! — clama, a plenos pulmões, agitando um revolver.
— É preciso assaltar o cóio! — grita aos excitados parceiros, apontando-lhes o convento. E no
refluir de cóleras e impulsos um soldado arremete para o edifício e bate com a coronha da es-
pingarda ao portão.
São dez os padres professos da escola Apostólica de Arroios. Dez padres professos, as-
sistidos por seis irmãos coadjutores, com a ajuda de alguns mestres leigos e o serviço de quatro
criados — sendo trinta os alunos do internato.»
O assalto ao Convento apresenta-se inevitável:
«O machado a alçar-se pronto a fender a porta rebelde e a porta subversiva a franquear
o assalto à multidão — aberta de dentro por um popular que rebentara os vidros de uma janela
e saltara ao pátio interior.»
O Superior do Convento, para defesa, não exibe mais do que um Crucifixo:
«O homem do machado em riste e dos bigodes em funeral toma alento. E apontando a
lamina ao crucifixo, rouqueja, galhofeiro:

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— Deita isso fóra! Calca-o aos pés!
Uma gargalhada espessa glosa a bruta intimação.
— Nunca! — replica altivamente o Superior.
Um golpe de machado corta o crucifixo ao meio. A turba aplaude. O Superior inclina-
-se no proposito de apanhar do chão o fragmento caído. E ao levantar a cabeça soam dois tiros
de revolver — que o atingem no peito, e o abatem, fulminantemente.
Desvairada pelo sangue da vítima, a turba arrasta o cadaver ainda quente, calca-o aos
pés, flagela-o às coronhadas, torna-o irreconhecível na transfiguração.
Aos gritos de triunfo, aos rugidos de vindicta, abatido e massacrado o Superior, penetra
de roldão na sala da biblioteca.
A penumbra mal deixa distinguir os moveis na vasta quadra monástica. Mas distingue-
-se, nítida, como fresta de luz no escuro de subterrâneo, a cabeça de arminho do padre Barros
Gomes — mantem-se de joelhos, mãos postas, no seu porte de inocente.
A jolda entra afadigada, na pressa de executar a vindicta à luz do dia. Descobre a cabeça
alva do septuagenário.
— Mais um! — apontam os executores. Estala um tiro. E o corpo esguio do velhinho
tomba para a frente — sem uma palavra, sem um murmurio, a alva flor da sua cabeça a bran-
quejar no escuro do soalho.
— Este já está pronto! — anotam cinco, dez brados jubilosos.»
Estava consumado o drama. Acabava de ser assassinado, mercê de um simples acidente
revolucionário que nem regista o nome do executor, um cientista formado em Filosofia pela
Universidade de Coimbra, que completara a sua formação alcançando novos títulos na Acade-
mia Florestal e Agrícola de Thorand, na Saxónia. Barros Gomes deixou valiosíssimos Estudos
florestais e ecológicos que serviram de suporte a investigações subsequentes.
Nas suas «Páginas de Sangue» Sousa Costa revela a forma como a imprensa procurou
lavar a nódoa, na tentativa de a esconder para a História:
«Ao outro dia os jornais noticiam, lacónicos:
— Entraram no Necrotério mais dois cadáveres, o do P.e Fragues e um outro, por terem
resistido contra as forças armadas.»

Ezequiel de Campos, Deputado

Pouco depois de implantada a República, na Assembleia Nacional Constituinte, em ses-


são de 27 de Julho de 1911, o Deputado Ezequiel de Campos apresentou o «Projecto de Lei
de utilização dos terrenos incultos». A lógica desta proposta encontra-se nas primeiras pala-
vras: «Toda a nação que tem terra arável inculta, ou apenas desbravada, e que importa pão e
exporta párias, está profundamente desequilibrada». Tratava-se da herança da tradição de Eco-
nomistas do século XIX que viam nos «incultos» a causa de todos os males nacionais, como
se essa realidade não fosse efectivamente em efeito das estruturas agrárias dominantes. Para
o Engenheiro-Economista do século XX a condenação do País que «importa pão e exporta pá-
rias» envolve o voto numa economia autárcica no que respeita a subsistências e a crítica à emi-
gração, a consumir a força de mão-de-obra capaz de expandir a «terra arável», tornando-a

433
produtiva.
Cheio de razões para alertar a Constituinte, o Deputado escuda-se no Programa Repu-
blicano que adoptava a liberalização total, propondo a «extinção das últimas formas senhoriais
da propriedade, no sentido de a tornar perfeita, como foros, laudémios, luctuosas, por uma lei
sobre remissão forçada». Seguia fielmente a proclamação eivada do espírito da Lei das Sesma-
rias, distante da História, que o Partido Republicano ressuscitava, com expropriação mais pu-
nitiva do que reformista: «arroteamento obrigatório de todos os incultos ou a sua expropriação
por utilidade pública».
No entanto, a grande dificuldade que o Deputado enfrentava era a da definição de «in-
culto». No artigo 2o do Projecto afirma-se: «consideram-se incultos os terrenos que não produ-
zem rendimento útil para seus donos, e ainda os de pousio em que as sementeiras se façam com
intervalos superiores a dez anos». Afigura-se evidente a fragilidade de definição de «inculto»,
primeiro porque se não separa a qualidade de cultivável da condição de incultivável, depois
porque se não reconhece «pousio» como expressão das técnicas de rotação de culturas e de
afolhamento de áreas cultivadas, sendo arbitrária a condenação, pura e simples, de «intervalos
superiores a dez anos». Embora se deva reconhecer não ser essa a intenção do Autor do Projec-
to, pode deduzir-se que entendia útil e ajustada às condições naturais da agricultura portugue-
sa, a intensificação cultural, feita somente pelo encurtamento dos pousios, na indiferença pe-
rante os riscos da erosão. Não correspondia à realidade a ideia de que todo o «inculto» se pode
transformar em «terra arável» e de que o «pousio de mais de dez anos» tem o significado, só
por si, e para os níveis técnicos da época, de incúria do proprietário.
Adiante, o Projecto ordena que:
«o ministro do fomento mandará fazer com toda a brevidade a planta cadastral das terras
alentejanas... os terrenos (nas condições referidas) serão declarados incultos para aplicação
desta lei». E depois: «qualquer indivíduo maior ou colectividade, pode requerer na estação
agrária correspondente aos terrenos incultos pertencentes a particulares o arrendamento por
utilidade pública, por tempo não inferior a cinco anos, nem superior a dez, de um lote não infe-
rior a 10 hectares, nem superior a 50, se os proprietários dos terrenos se recusarem a arrendar
ou fazer parcerias de exploração agrícola naqueles terrenos em condições toleráveis.»
O Projecto prevê que «os terrenos incultos do domínio nacional e aqueles que pelo cum-
primento desta lei a ele forem passando, que não sejam susceptíveis de irrigação dentro do pra-
zo de dois anos depois de declarados incultos, serão parcelados em lotes que não podem ter
menos de dez, nem mais de 130 hectares, de acordo com o plano de exploração agrícola, para
serem vendidos». O Projecto contém a minuciosa regulamentação da referida venda.
Esta proposta do Deputado Ezequiel de Campos representa a primeira abertura de polí-
ticos do regime republicano, resultante de uma Revolução praticamente sem programa agrário,
perante os gravíssimos problemas que se arrastavam nos campos. Depois do presente o Projec-
to à Assembleia Constituinte, tudo entrou no esquecimento.

A «Mobilização Agrícola» de Lima Basto, Ministro do Trabalho

A República mantinha a incapacidade de abordagem do problema agrário em toda a sua

434
realidade e extensão. Os incultos, permanentemente referidos como causa de dificuldade de
produção e nunca como efeito de situações estruturais, constituíam herança da Monarquia que
se não alcançava esclarecer de acordo com novas concepções técnicas, económicas e sociais.
Não se descortina qualquer intenção política de intervir através de «reformas estruturais» que
combatessem a grande concentração fundiária no sul e a submissão dos Camponeses do Centro
e do Norte a condições contratuais de arrendamento extremamente pesadas que se reflectiam
nas dificuldades de existência. Assim, o inculto continuava a apresentar-se como causa das ca-
rências de produção quando seria, a final, o efeito da inacessibilidade da terra às íorças de tra-
balho que preferiam emigrar, rejeitando manter-se em subemprego institucional dominante. Os
políticos, insensíveis aos aspectos fundamentais da função social da propriedade fundiária,
voltavam-se para os Baldios, cuja extenção, ignoravam por nunca ter sido possível proceder a
avaliações da sua área, considerando-os reserva que livremente poderia ser mobilizada, desde
que nesse esforço participassem os Corpos Administrativos que os possuíam. Tem interesse re-
gistar a importância que era dada às formas de associativismo, sendo frequentes as referências
a Sindicatos Agrícolas e Caixas de Crédito Agrícola Mútuo. Devem destacar-se propostas de
intervenção do Estado, em que assumia papel de produtor agrícola, o que não tinha nenhuma
tradição, na hipótese do alheamento dos agricultores, que sempre se verificou, perante os au-
xílios oferecidos, isto é, «quando a iniciativa particular não corresponda às facilidades e incen-
tivos». Assim, o Estado poderia arrendar «terras de alqueive, incultos e pousio pertencentes a
particulares» e mesmo «requisitar» essas terras. Mantinha-se a crítica ao «alqueive», ao «in-
culto» e ao «pousio», no subentendimento de propósitos de intensificação que somente pode-
riam ser obtidos por mudança estrutural, de forma contínua e estável, nunca admitida como es-
teio da acção política.
Compreende-se que a I Grande Guerra, que surpreendeu o Regime logo em 1914, tenha
determinado medidas que assumem o aspecto de «Mobilização Agrícola», destinada a colma-
tar as brechas do edifício em que se apoiava a produção de subsistências. As carências de pro-
dutos alimentares essenciais eram notórias e determinavam frequentes distúrbios nas cidades,
onde a população desesperada assaltava mercearias saqueando as escassas reservas que nos
seus armazéns eventualmente se encontravam.
Foi justamente em 27 de Novembro de 1917, quando o País vivia as incertezas da pre-
sença dos seus soldados em França, depois do desastre de 9 de Abril em que muitos morreram,
que Lima Basto, Ministro do Trabalho, com base em legislação timidamente reformista de
1915 e 1916, subscreveu um Decreto de que extraímos as determinações principais:
«Enquanto durar o estado de guerra e até dois anos depois de assinado o tratado de paz,
incumbe ao Ministro do Trabalho:
a) Organizar uma activa propaganda do aumento das culturas, junto dos agricultores,
dos sindicatos agrícolas e das caixas de crédito rural;
[... 1 c) Pôr à disposição dos agricultores que disso careçam para aumentarem a sua cul-
tura, gados, máquinas, especialmente motores, e alfaias por meio de aluguer;
[...] i) Promover agrupamento de agricultores para, com os mesmos incentivos e ga-
rantias das alíneas anteriores:
Io Cultivarem terrenos baldios de acordo com os respectivos corpos administrativos

435
e com a garantia de exploração por um prazo julgado conveniente, sem ou com pagamento de
renda módica;
2o — Cultivarem em condições análogas, por prazos a fixar, terrenos de alqueive, incul-
tos e de pousio pertencentes a particulares;
Arrendados pelo Estado quando os seus proprietários não querem explorar directamen-
te:
ou requesitados pelo Estado quando se verifique que os seus proprietários não querem
utilizar para a sua cultura os auxílios que o Estado lhe proporcione nem mesmo os queiram ar-
rendar;
[...] I) Alargar e intensificar a cultura, como recurso extremo, por conta directa do Es-
tado, quando a iniciativa particular não corresponda às facilidades e incentivos oferecidos;
m) Proporcionar todos os meios de manter e desenvolver a exploração pecuária;
n) Proporcionar todos os meios de desenvolver os povoamentos florestais;
[...] É criada no Ministério do Trabalho, dependente da Direcção-Geral de Agricultura
uma Repartição provisória, que se denominará Repartição de Mobilização Agrícola [...].»
O desfecho deste esforço legislativo foi o pronunciamento militar de 5 de Dezembro de
1918, que levou ao poder Sidónio Pais, transformado em «ídolo» da população desiludida com
a República, que o aclamou nas ruas e em frequentes paradas militares. O Consulado de Sidó-
nio foi breve, porque o Presidente morreu assassinado na Estação do Rossio, no início de mui-
to anunciada viagem triunfal ao Porto.
O «sidonismo» constitui um fenómeno político e social que não tem despertado, entre
os Historiadores, a atenção que talvez mereça por constituir uma forma muita vez renovada de
mobilização popular O «sidonismo» instalou-se nas cidades, mas também chegou às aldeias,
determinando a esperança de ver concretizada, sem o anúncio de qualquer programa específi-
co, a segura e forte administração pública, para salvar o País das trevas que periodicamente o
ameaçam. No entanto, de uma forma típica da época, o «sidonismo» foi atalhado por um pisto-
leiro que desconhecidos aliciaram, que eliminou do número dos vivos Sidónio Pais, Presidente
em quem o Povo, instintivamente, confiou. O Povo sofreu a dor, sem avaliar bem porquê, e a
República prosseguiu à espera de nova liderança carismática, que não tardaria a chegar, embo-
ra revestida de contorno muito diverso, de um civil enigmático, rural ou provinciano, austero
e quase monástico, aureolado pela Universidade de Coimbra, que prometia o termo do descala-
bro financeiro e a sebastiánica salvação do prestígio nacional.

O Casal de Família

A unidade da orgância social é a família que, nas estruturas agrárias camponesas, coin-
cide com a unidade da orgânica do trabalho de cooperação, formando também comunidade de
consumo. Consideram os Historiadores, nos seus esquemas de evolução, que, antes de conso-
lidada a posse privada, a terra colectiva era dividida pelas famílias da comunidade aldeã, sendo
a partilha sujeita a revisão periódica para ter em conta as alterações da estrutura familiar. De-
pois de consolidada a posse privada da terra, o património familiar ficou sujeito a partilhar en-
tre herdeiros. Numa comunidade em crescimento, a partilha igualitária surge como factor de

436
empobrecimento da unidade estrutural familiar, a menos que possa ser compensada com a ex-
ploração de reservas de solo que reconstituam as unidades técnicas de produção antes existen-
tes.
Daqui a génese de propósitos de indivisibilidade da propriedade fundiária que assume
o aspecto de suporte da vida familiar, a acrescentar-se a restrições que defendem a inalienabi-
lidade por parte dos seus episódicos detentores, enquanto vivos. O propósito seria geral, para
qualquer património mas, naturalmente, assumiu importância maior para os grandes patrimó-
nios que constituíam o apoio económico das famílias aristocráticas, detentoras do poder. Assim
foi imaginado o vínculo a fundamentar a figura do Morgado, a que noutro local deste trabalho
fizemos referência. Todavia o morgadio acabou por não determinar simpatias a descendentes
que ficavam privados dos seus quinhões, mantendo dependências do primogénito, difíceis de
tolerar. Mas o instinto vincular tornou-se forte, e o Marquês de Pombal no seu combate a cer-
tos redutos da aristocracia, apenas logrou banir pequenos morgados, tendo que manter os gran-
des. Naturalmente, fazia parte dos planos legislativos de Mouzinho da Silveira a abolição de
morgados e capelas mas somente em 1860 a abolição foi decretada, primeiro também para os
pequenos, até que, em 1863, chegou a vez dos grandes, com exclusão da Casa de Bragança.
António Pedro Manique, em estudo intitulado «O casal de família — reflexão em torno
da sua origem e fundamentos político-ideológicos», analisa o problema da «fragmentação ex-
cessiva da propriedade» assinalando que «já na segunda metade do século XIX, vultos como
Alexandre Herculano e Oliveira Martins, para quem as medidas liberais de desvinculação e de-
sarmotização da terra, bem como os preceitos do Códico Civil relativos a partilhas em casos
de herança, constituíram factores directamente responsáveis pela ruína dos pequenos proprie-
tários e consequente estagnação da agricultura». O Autor referido assinala que Oliveira Mar-
tins no seu projecto de Lei de Fomento Rural propõe a instituição do «casal contínuo», indivi-
sível e somente alienável na totalidade. E informa que Elvino de Brito (1899) e Moreira Júnior
(1910) «elaboraram projectos de lei criando o casal de família em que a indivisibilidade e a
inalienabilidade da terra eram os traços fundamentais».
Parece não haver dúvida que o antigo morgadio extinto em 1863 não deixou saudosistas
nem defensores quando aplicado a bens fundiários aristocráticos. Mas os propósitos de defesa
da «pequena e média propriedade», abandonada ao uso egoísta de donos interessados apenas
na especulação económica do seu valor, ou simples garantia visada pela usura escondida no
crédito, inspiraram ideólogos do primado da família e da função social e espiritual do respecti-
vo património, considerado o melhor suporte da sobrevivência institucional. Foi assim que Xa-
vier Cordeiro, presidente da Junta Central do Integralismo Lusitano, apresentou na Associação
dos Advogados, como refere o Autor citado, em 7 de Fevereiro de 1914 «uma memória sobre
o problema da vinculação».
Depois, a implantação do sidonismo proporcionou a Xavier Cordeiro a oportunidade
para tentar a legislação sobre a matéria que tanto o apaixonava. Lutou com dificuldades e foi
ele próprio, depois de eleito Senador, que apresentou no Senado, em 8 de Janeiro de 1919, um
projecto de lei «de sua iniciativa». Por ter falecido logo de seguida, muito novo, Xavier Cor-
deiro não assistiu à publicação do Decreto 7.033 de 16 de Outubro de 1920 que, sem qualquer
referência ao projecto apresentado pelo Senador, adopta a essência do seu ideário. Todavia, o

437
casal de família não encontrou qualquer espécie de adesão prática.
Com o advento do Estado Novo, a ideia de Xavier Cordeiro foi retomada, com expressa
declaração preambular do Decreto 18.551 de 3 de Julho de 1930. Tal como desde 1920 qual-
quer chefe de família passou a poder instituir um casal de família, indivisível e inalienável, não
susceptível de penhora, compreendendo a casa, as dependências necessárias ao exercício de
qualquer ofício, uma ou mais glebas agricultadas sob administração directa. Em 1942, Lima
Basto em «A Propriedade Rústica» escreveu que «o relatório do Decreto 18.551 de 1930 diz
que o Decreto 7.053 de 1920 é um diploma desconhecido inteiramente de prática judicial. Ti-
nham passado quase dez anos sobre o Decreto 7.053; estamos convencidos de que o mesmo
ou quase se pode afirmar hoje do Decreto 18.551, tendo passado sobre ele mais de onze anos».
E, no entanto, o casal de família chegou a figurar na Constituição de 1933.
A instalação de casais agrícolas promovida em baldios e em Pegões pela Junta de Colo-
nização Interna veio levantar o problema do regime jurídico da fruição desses casais por parte
dos colonos. Por isso foi publicada a Lei 2.014 de 27 de Maio de 1946 que instituiu o casal
agrícola que se destinava a transformar-se em casal de família logo que os colonos entrassem
na posse definitiva. A sucessão de acontecimentos que neutralizaram a acção da Junta acabou
por alterar as soluções jurídicas que estavam previstas.
Nestas circunstâncias, o casal de família não passou em Portugal das tentativas de deli-
neamento que a prática não adoptou. Não existindo legislação especial que regule as partilhas
de patrimónios agrícolas, nem dispositivos jurídicos que se assemelhem ao homestead ameri-
cano, bien defamille insaisissable francês, asile de famille suíço ou erbhof alemão, a lei portu-
guesa procura obstar à fragmentação predial através de dispositivos de Decreto 16.731 de 13
de Abril de 1929. Segundo este Decreto foram declarados indivisíveis os prédios rústicos de
menos de um hectare, e outros de que, na altura de partilha judicial ou extra-judicial, resultem
parcelas de área inferior a meio hectare.
Entretanto, e à margem de todo o debate sobre o interesse da defesa de património fami-
liar, as «Terras da Maia» praticavam o costume ancentral das «doações para casamento». Mar-
celino Pereira da Rocha estudou este costume, em 1954, elaborando o seu Relatório de Fim de
Curso de Engenheiro Agrónomo intitulado «Sobre alguns problemas da propriedade rústica —
doações para casamento em Terras da Maia». Depois de analisar aspectos introdutórios do seu
estudo e de apresentar as «Terras da Maia» que se distribuem pelos concelhos da Maia, Mato-
sinhos, Vila do Conde, Porto, Valongo e Gondomar, assinalando que nos tempos visigóticos se
denominava Maia a região «dês Doyro ataa Lima», Marcelino Pereira da Rocha apresenta-nos
o quadro camponês regional com a expressiva afirmação de que «o lavrador da Maia está mui-
to longe de ser um simples explorador da terra, para ser antes um enamorado dela». E, depois,
«é frequente encontrar veneráveis casas transmitidas indivisas ao longo de gerações, cujo nú-
mero se perde no nevoeiro dos anos, aguardando confiadamente o futuro, graças ao sistema de
doação para casamento, o qual nos propormos estudar seguidamente».
No trabalho em referência não foi possível esclarecer a origem histórica do costume re-
gional, nem a forma como se processava a sua prática no período anterior aos Códigos moder-
nos, em domínio regulado por estatutos jurídicos gerais, como os da vinculação de morgados
e capelas. Fazendo notar a existência de antigos aforamentos a donatários religiosos e laicos e

438
a existência de poucos morgadios, o Autor apresenta o costume na sua expressão actual, intei-
ramente adaptada ao Código Civil em vigor. Assim, o mecanismo da indivisibilidade que a
«doação para casamento» desencadeia, processa-se na perfeita legalidade actual. O sistema
consiste na doação da quota disponível feita pelos Pais a um dos Filhos, imediatamente antes
do casamento deste, ficando os doadores como reservatórios vitalícios do usufruto. Seguem-se
mais três negócios jurídicos, a saber:
1 — Os doadores arrendam o usufruto ao Filho que escolheram para donatário, o «Filho
da Casa».
2 — Os desposados estabelecem a convenção ante-nupcial que em regra é de separação
de bens, com comunhão de adquiridos a título oneroso. Nessa altura a noiva entrega ao doador
o seu dote como «entrada» para se adicionar às economias domésticas na formação dos dotes
dos seus outros filhos.
3 — Faz-se a conferência ou colacção de bens, entre o donatário e os co-herdeiros, seus
irmãos, que pode ser antecipada, isto é, na data da doação, ou na altura do óbito do doador, o
que é menos frequente pela experiência de se tornar mais facilmente litigiosa.
A escolha do Filho donatário pelos Pais doadores constitui problema delicado, sendo
dada preferência ao Filho mais velho. No entanto a escolha parece subordinar-se também à
identificação da vocação ou do gosto pela actividade agrícola por parte dos herdeiros. Os co-
herdeiros excluídos conseguem, por vezes, com o seu dote, a «entrada» noutra exploração
agrícola pelo casamento. Outros afastam-se da agricultura, escolhendo novas profissões ou
emigrando. Assinala-se também que irmãs solteiras permanecem, por vezes, na «casa» ajudan-
do em tarefas agrícolas e domésticas. Reconhece-se que o casamento pode reflectir aspectos
de interesse quanto ao dote da noiva. Não são raros, na tradição, os casamentos «negociados»
pelos Pais. o que na altura do estudo já parecia pouco frequente.
Não será fácil admitir a perenidade deste costume. Estamos certos de que se lhe não po-
de reconhecer somente virtudes ou exclusivamente defeitos, afígurando-se inevitáveis os pro-
blemas em face do que tem sido referido como «arremetidas» do liberalismo. De qualquer mo-
do avulta o voluntariado do costume. Por nosso lado, apenas nos recorda que, numa das passa-
gens que fizemos pelas fertilíssimas terras da Maia, nos foi dado a deparar com um Pai doador,
muito velho, esquecido pela Morte, a pedir esmola, rogando pragas ao Filho donatário, rico la-
vrador, que lhe pagava, em correctíssimo cumprimento contratual, a renda «que não valia na-
da», pela desvalorização da moeda em que havia sido fixada, há muitos anos, no arrendamento
do usufruto de que o mendigo era detentor. Noutro aspecto, em análises tecnocráticas de gabi-
nete, não deixava de sorrir ao ver que os indicadores da estrutura agrária nas terras da Maia,
se apresentavam os melhores para os outros critérios respeitáveis.

Ezequiel de Campos, Ministro da Agricultura

Num dos Ministérios meteóricos da República, Ezequiel de Campos foi Ministro da


Agricultura. Durou dois meses e meio esse Ministério e, segundo o Ministro descreve num dos
seus escritos, ainda teve tempo de apoiar Sir Murdoch MacDonald, Engenheiro com longa prá-
tica de rega no Egipto, na elaboração do Plano de rega de 10.000 hectares na Lezíria, que o

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Ministro seguinte deixou frustrar. E afirma também: «por entre o bulício ruidoso e estéril do
Terreiro do Paço e de S. Bento, consegui iniciar as actividades mais necessárias como prelimi-
nares da correcção da vida portuguesa. O mandibular famélico da parasitagem e a insciência
dos ministros que vieram, abafaram, por certo, logo a iniciativa por mim começada». E, final-
mente: «por despedida e de má vontade retoquei os decretos 9.843 e 9.844 dos baldios, incul-
tos e charnecas, que saíram no Diário do Governo com os números 10.552 e 10.553, para que
algum Ministro da Agricultura mais cuidadoso possa retomar, com mais liberdade de acção, a
tarefa de acordar a opinião dos políticos e da grei para a questão rural». O primeiro dos decre-
tos referidos estabelece no seu Artigo Io que:
«Os baldios que têm vindo sendo aproveitados em logradouro comum e que sejam sus-
ceptíveis de cultura arvense ou arborícola podem ser dispensados desse logradouro se dois ter-
ços, pelo menos, dos moradores vizinhos, de maior idade, da freguesia ou freguesias cujos po-
vos os tenham fruído assim o declararem aos corpos administrativos que regulam o modo de
fruição desses baldios.»
A Lei define depois a forma de aproveitamento:
«Os baldios de que trata o presente decreto serão divididos em glebas que tenham capa-
cidade produtiva equivalente ou suficiente para a sustentação de uma família de cultivadores,
no caso da instituição do Casal de Família, nos termos da legislação em vigor [...].»
O plano de divisão dos baldios será apresentado à reclamação dos interessados e o aces-
so às glebas regulado por sorteio.
O segundo Decreto referido estabelece no seu Artigo Io:
«A Junta de Fomento Agrícola incumbe promover e orientar o aproveitamento dos ter-
renos incultos e de charneca no mais curto espaço de tempo, servindo-se dos meios para quem
tem poder e capacidade jurídica, inclusive o da expropriação [...].»
Os proprietários ficam livres da intervenção se venderem ou arrendarem os terrenos, ou
procederem à sua exploração directa. O Artigo 1 Io estabelece que:
«Os terrenos incultos e de charneca expropriados ou que transitaram para a posse e ad-
ministração da Junta de Fomento Agrícola, nos termos dos artigos anteriores poderão ser pela
mesma Junta:
a) Cultivados por seus próprios meios ou por comparticipação em qualquer empresa ou
iniciativa particular;
b) Vendidos ou arrendados;
c) Destinados a povoação ou aforados;
§ único. Sempre que seja possível tem preferência o objectivo da colonização
agrícola.»
O único resultado que conhecemos de recurso a esta legislação, foi o requerimento dos
compartes do baldio dos Milagres, em Leiria, que levou ao início do estabelecimento da pri-
meira «colónia agrícola», antes da criação da Junta de Colonização Interna, conforme se refe-
re neste trabalho mais adiante.
Mas o Ministro pretendia ir mais longe e no dia 12 de Janeiro de 1925 apresentou na
Câmara dos Deputados uma Proposta de Lei de Organização Rural, proferindo um discurso
que terminou com as seguintes palavras a que atribuímos valor de antologia agrícola:

440
«De há muito nos dividimos em dois grupos: os da proveniência do Estado, e os da ini-
ciativa individual. Estes — os melhores — são explorados por aqueles. Pela minha proposta
de lei, pretendo dar o predomínio às famílias rurais de trabalho bemfazejo à colectividade, em
cerceamento do espírito de exploração comunitária.
O que não há é terra disponível para novas famílias cultivadoras. A multidão enorme de
dezasseis mil pessoas da Beira que todos os anos vai ao Alentejo não se fixa por lá, porque o
grande proprietário do Sul nem vende, nem arrenda, nem aforra em condições de se construí-
rem por lá novas casas agrícolas, onde se vão integrando as canseiras, as economias, as ale-
grias e as dôres, as esperanças... para o futuro dos descendentes. Só a posse individual, fami-
liar, da terra poderá fazer o milagre de transformar a desolação bravia do Alentejo em ermo na
alegria dos casais e dos campos em cultura regular.
Facultem a terra ao camponês da Beira, até só a terra, sem mais nada, que veremos o
herói da charneca transformar em poucos anos a esteva e os sergaços em searas. A horta e as
árvores de fruto alegrarão trechos de regadio, graças aos poços.
Nenhum agrupamento contra a povoação do Sul é válido sem a experiência: nem a in-
gratidão do clima, nem a pobreza do solo, nem a falta de meios de comunicação, nem as impo-
sições do feitio da região, nem a falta de água no descampado que deixa morrer à sede os gados
e os passarinhos... Nenhum argumento colhe contra a nossa experiência multi secular do po-
voamento do Alentejo, justamente pela agricultura de sequeiro na terra de verão árido, como
foi toda a que se efectuou desde D. Afonso Henriques até hoje.
Facultem a terra ao camponês da Beira por uma reforma agrária, e verão desmentidos
todos os precalços anunciados não raro por aqueles que até hoje foram incapazes de uma cultu-
ra regular das suas terras.
A legislação frumentaria de 1899, porque foi incompleta, não resolveu o nosso abasteci-
mento de trigo até 1914. A intervenção tumultuária do Govêrno na lavoura, durante a Grande
Guerra e até agora não encaminhou a nossa suficiência de alimentos fundamentais. O proble-
ma da resistência à morte pela fome no caso de uma guerra está pôsto a Portugal duma forma
aterradora.
E por outro lado a nossa população decresceu em todos os distritos do Norte menos do
Porto e Aveiro, e crescendo tam pouco nos outros, que no total ficara quási estacionária, isto
é, acusava um decréscimo de perto de quatrocentas mil pessoas entre os dois últimos anos para
a marcha normal do aumento da população.
Infere-se que não é só um problema de produção agrícola; é também um problema de
arrumação da gente o que perturba e amesquinha a vida de Portugal. E êste problema demo-
gráfico envolve todos os demais na economia, na educação no valor e no destino da nação.
Não, nunca houve o cuidado, desde Afonso II até hoje, de resolver a questão agrária
portuguesa!
Apoiados.
Ela nunca foi posta diante de nós, porque tivemos sempre a proa dos vapores, a seguir
à das caravelas, para mandar para fora de Portugal a nossa melhor gente, deixando apenas cá
ficar aquela que conquista as secretarias do Estado e o quartel pelo assalto ao Orçamento.
Apoiados.

441
A questão agrária portuguesa é originária da partilha do solo pátrio: "Quando os augus-
tos predecessores de vossa majestade imperial faziam conquistas e descobertas, as doações que
faziam aos grandes e a outras pessoas que os cercavam precediam o trabalho das terras; e a fa-
diga não tinha começado, e já o seu presumido resultado estava erigido em direito a favor de
um particular", escreveu Mousinho da Silveira.
É ainda o mal de agora.
Direitos dos grandes domínios que não cumprem a obrigação de nos dar o que falta para
o sustento da nossa gente.
Assim se tem vivido por séculos.
Assim iremos à ruina.
Por isso quero dar aqui o primeiro grito de alarme a favor da paz, da justiça, da bondade
e da inteligência da gente de Portugal.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem. Muito Bem.
O orador foi muito cumprimentado.»
A Câmara não encontrou oportunidade para discutir a proposta de Ezequiel de Campos,
tal como acontecera nos tempos de Oliveira Martins. No entanto a Proposta não ficou ignora-
da e determinou a resposta de Pequito Rebelo que proporciona assinalável interesse.

A Reforma e a Contra-Reforma

A proposta de Ezequiel de Campos apresenta-se fundamentada em pormenorizado rela-


tório preambular. O Ministro recorre à História para apoiar os seus argumentos: «A estrutura
agrária de mais de metade do país vem defeituosa desde o tempo da submissão do sarraceno,
em que o rei, o bispo, o cabido e as ordens militares talharam à larga os seus reguengos, coutos
e herdades nas amplas campinas do Alentejo». A análise subsequente ressuscita depoimentos
que vão desde as sesmarias fernandinas a Severim de Faria, até aos cientistas da Academia das
Ciências. Avulta Mouzinho da Silveira, como inspirador do Político que se apoia também em
Herculano e Oliveira Martins. A informação do estrangeiro oferece aspectos panorâmicos es-
senciais, com referências a Reformas Agrárias contemporâneas da I Grande Guerra. Finalmen-
te, o Alentejo constitui para o Ministro o quadro agrário visado:
«Basta reparar que as cidades e vilas alentejanas foram estabelecidas nas elevações por
motivos de guerra, e que à volta de todas elas se alastram hortas e campos bem cultivados de
pequena propriedade feliz; que em todos os terrenos, desde o plioceno sáfaro até aos barros
fortes, a pequena casa agrícola encontra favor natural quando se proporciona condições agrá-
rias para se constituir: Pinhal Novo, Grândola, Marinhais, arredores de Évora e de Estremoz,
etc., etc. E não há dúvida nenhuma de que nunca nem as leis portuguesas, nem os costumes e
as tendências dos grandes proprietários, foram favoráveis à instalação efectiva em larga escala
da propriedade média e pequena.»
E nesse ano de 1925, Ezequiel de Campos clamava: «No próprio Alentejo há muita gen-
te ansiosa de terra». E citava Fialho de Almeida nas Memórias de Raul Brandão: «No Alentejo
não há republicanos, há ódios. O pobre não pode ver o rico. É uma gente roída de invejas e de

442
rancores, que passa anos e anos de vida a cobiçar um campo».
Com base em bem elaborada fundamentação o Ministro propôs o articulado que se resu-
me:
Artigo Io — Entrarão sucessivamente no domínio do Estado, por utilidade pública ur-
gente, os quinhões de terras pousias, nos concelhos cuja densidade média de população, pelo
censo de 1920, seja inferior a quarenta habitantes por quilómetros quadrado, para serem desti-
nados à povoação e valorização agro-florestal, até:
Io — Metade das terras naquelas condições de cada um dos portugueses com mais de
1.500 hectares, que residam no estrangeiro há mais de um ano à data desta lei;
2° — A terça parte das terras naquelas condições de cada um dos proprietários com mais
de 1.500 hectares, que estejam registadas por título gratuito àquem de 1914;
3o — A terça parte das terras naquelas condições dos restantes proprietários com mais
de 800 hectares, obtidas por título oneroso àquem de 1914;
4o — Um quarto das terras naquelas condições dos outros proprietários com mais de
2.000 hectares.
§ Io — Tem preferência na apropriação pelo Estado os quinhões dos domínios maiores
que estejam pior cultivados, considerados em conjunto por proprietário, mas tendo em atenção
o artigo 3o.
§ 2o — O preço do lote em apropriação pelo Estado será determinado, em cada caso,
pelo produto do rendimento colectável normal de 1914 por vinte vezes, reduzido a ouro pelo
câmbio de 1 de Julho daquele ano. A avaliação do rendimento colectável normal será feita pela
média dos rendimentos colectáveis de dez prédios da mesma região que tenham carácteres de
grandeza e agro-económicos sensivelmente aproximados dos do quinhão a expropriar.
Art. I°-a — Serão isentos de apropriação pelo Estado os terrenos abrangidos pelo arti-
o
go I , se os seus proprietários começarem a dar execução aos planos de parcelamento, apro-
vados pela Junta de Fomento Agrícola, dentro de seis meses depois desta aprovação, e se os
executarem dentro dos prazos fixados naqueles planos.
«§ único — No caso da inobservância total ou parcial deste artigo, será feita a propria-
ção pelo Estado e o parcelamento da área não povoada.
Art. 2o — Também entram em plano de partilha, segundo o melhor sistema agro-social
e, sempre que seja possível, em casais de família, para imediato povoamento, as terras aráveis
dos baldios e maninhos, e demais de uso comum, ainda não apropriadas legalmente por culti-
vadores, as quais por esta forma passam a bens do Estado, com os terrenos florestais da mesma
natureza que sejam necessários para a boa economia agrícola das novas casas de lavoura, ou
parcelas agricultáveis.
Art. 3o — De todas as categorias referidas nos artigos Io e 2° devem ser apropriadas pelo
Estado, em primeiro lugar, as terras mais vizinhas dos povoados, e as que oferecerem maiores
facilidades de povoação.»
É referida depois a forma de utilização das terras submetidas às disposições da Lei:
«Art. 6o — As terras apropriadas pelo Estado e as baldias e maninhas que passarem a
bens nacionais pelo artigo 2° desta lei, serào divididas em lotes, cada um bastante para a acti-
vidade desafogada duma família cultivadora, segundo um plano regular, e abertas à povoação.

443
recorrendo-se para esta à venda dos lotes, sempre que seja possível.
§ Io — No caso de venda, as terras terào o valor da apropriação, acrescido da cota parte
relativa às obras que tenham sido realizadas para o seu aproveitamento agrícola, e deverão ser
pagas em anuidades, em número maior que 12 e menor que 30, começando o pagamento, cuja
conclusão pode ser antecipada, no sexto ano depois da venda.
§ 2o — No caso de arrendamento, êste será por praso não inferior a 10 anos, sem per-
missão de sub-arrendamento, e deverào as rendas ser pagas anualmente a partir do segundo
ano, sendo determinadas em relação ao custo da apropriação pelo Estado, e às benfeitorias.
§ 3o — O Govêrno pode fazer o arrendamento colectivo de vários lotes nas mesmas
condições dos arrendamentos individuais.
§ 4o — Nenhum proprietário com mais de 100 hectares de terra nos concelhos das terras
apropriadas pelo Estado terá direito à aquisição de terra partilhada.
Ari. 7o — Têm preferência na aquisição e arrendamento dos lotes:
Io — Os militares que entraram nas guerras da Europa e da Africa depois de Julho de
1914, sendo-lhes concedida a reduçào de metade dos encargos;
2o — Os diplomados pelas escolas de agricultura e de medicina;
3o — Os agricultores e trabalhadores rurais que sejam pais de família e nào tenham terra
suficiente para a sua manutenção;
4o — As viuvas dos militares, agricultores e trabalhadores, se tiverem, pelo menos um
filho;
5o — Os que, pela reorganização dos serviços do Estado, civis e militares, e das autar-
quias locais, deixem de ser funcionários daquele ou destas e possam dedicar-se à lavoura;
6o — Os emigrantes portugueses de retorno ao seu país.»
A proposta considera o interesse do regadio:
«Ari. 10° — São classificadas, para os efeitos desta lei, como obras de rega de valor re-
gional as grandes obras de rega da iniciativa do Govêrno; como obras de rega de valor local
as que possam regar mais de 50 hectares e devam ser de iniciativa local; e como obras de inte-
resse individual as que regarem menos de 50 hectares, embora as terras pertençam a mais um
proprietário.»
As garantias de povoação e de equilíbrio rural ficam assim fixadas:
«Ari. 14° — O comprador de terras partilhadas não poderá vender o seu lote emquanto
não tiver arrotiado tôda a parte aravel, não houver nele casa de habitação e não tiver pago o
preço de compra. Nem o arrendatário poderá sublocar o arrendamento.
§ único. A terra adquirida por cada cultivador constituirá, ipso facto, um casal de família
que não poderá ser partilhado entre herdeiros.
Ari. 16° — É proibida a cultura de vinha por uma superfície maior que um vigésimo do
terreno arável de cada lote aberto à povoação. É também proibido derrubar os maciços flores-
tais que forem declarados e demarcados como úteis no plano de cada parcelamento, sem deli-
beração da Junta do Fomento Agrícola.»
O apoio aos colonos no que se refere a capitais de exploração fica assim garantido:
«Ari. 18° — O Govêrno fará aquisição, em escala suficiente, de máquinas e instrumen-
tos agrícolas adequados à cultura mais rendosa das terras nas diferentes regiões do país, e pro-

444
moverá a generalização do seu emprêgo por uma propaganda metódica, e mediante descontos
e facilidades de pagamento.
§ único. Simultâneamente favorecerá a indústria do fabrico de máquinas e utensílios
agrícolas, quando esta fôr organizada em normas de produção vantajosa.»
Em face dos conceitos de reforma estrutural agrícola que dominavam entre os políticos
da República, o reformismo de Ezequiel de Campos manifestava-se mais avançado do que o
usual, sendo, no entanto, moderado. Na verdade, a generalidade das disposições legislativas
posteriores a 1910 marcava como objectivo de intervenção os incultos, a que era dada também
a designação de pousios, evidentemente longos, e os baldios. A propriedade privada do solo
agrícola, mesmo nos casos de concentração latifundiária, não dava motivo a contestação fron-
tal, incidindo a generalidade das críticas nos aspectos da intensidade do seu uso. Os baldios,
cuja importância ou extensão permanecia desconhecida, ofereciam a esperança de poderem vir
a ser a base de colonização agrícola. Pode reconhecer-se, pela leitura do preâmbulo do Projec-
to Lei de Ezequiel de Campos, que as suas ideias agrárias justificariam mais profundo inter-
vencionismo do que o constante articulado da proposta. Particularmente, as afirmações profe-
ridas no dia 12 de Janeiro de 1925, na altura da apresentação da Proposta, são violentas para
a tonalidade ideológica da Câmara. Mas encontraram eco fora do hemiciclo, causando o alar-
me entre os defensores das velhas estruturas agrárias. Foi dos redutos do Integralismo Lusita-
no, particularmente hostil à República, que se destacou Pequito Rebelo em artigo de fundo
d'«0 Século», logo publicado em 15 de Janeiro, com referência à «Lei de Povoação e Valori-
zação Agrária — critica ao projecto do Sr. Ezequiel de Campos». Este artigo foi seguido de
outros que deram origem a um texto mais elaborado, cuja publicação ocorreu em 1931 sob o
título de «O desastre das Reformas Agrárias».
Da trincheira declaradamente tradicionalista, que não escondia a defesa intransigente da
inviolabilidade do direito de propriedade privada, Pequito Rebelo, no uso de efectivas qualida-
des intelectuais e literárias, desencadeou o ataque directo aos propósitos reformadores do Mi-
nistro: «o senhor Ezequiel de Campos acaba de apresentar à Câmara dos Deputados um projec-
to lei sobre organização rural, cujo comentário se nos impõe com urgência, por tratar-se de
um problema interessante, decerto o problema português do futuro, e parece-me que não do
presente, dada a inviabilidade técnica e politico-social de que infelizmente vem revestida a so-
lução agora proposta».
Pequito Rebelo comenta depois do texto preambular da proposta de Ezequiel Campos
e regista observações tecnicamente correctas quanto ao significado do «pousio» na agricultura
portuguesa do Sul, assinalando os inconvenientes da sua especificação nas leis existentes. É tí-
pica, no entanto, a defesa do latifúndio:
«Aqui aparece o preconceito, que não é preconceito de escola, mas antes um desvio
quase natural da observação, considerando o latifúndio causa quando se deverá considerar
efeito das causas anteriores que o próprio autor aponta.
A cobiça de acumulação de herdades é uma tendência natural e humana, é a óbvia conti-
nuação do instinto da propriedade; essa cobiça vai tendo ensanchas para se efectivar emquanto
o condicionalismo económico vai tornando viáveis formas cada vez mais vastas de apropria-
ção; o regímen do pousio, aperta-se ou alarga-se, não conforme o capital do dono, mas confor-

445
me o capital social existente; porque o dono não o tendo, pode pedí-lo; e se o não pede, com
lucro cessante de capitalização agrícola em que poderá empregá-lo, mais cedo ou mais tarde é
levado a vender a sua terra a quem a valorize. De resto, quem compra mais uma herdade, dis-
põe de capital para isso; e se era livre de o empregar na valorização das propriedades já possuí-
das, é porque nisso encontraria menos lucro, devido às condições gerais.
Não consideremos, pois, o latifúndio e a cobiça do latifúndio, mais do que as formas ex-
tremas que tomam em excepcionais condições, por causas que lhes são anteriores, a instituição
da propriedade, com tôdas as suas vantagens sociais, e o instinto da posse, com todo o seu ca-
rácter natural e humano.»
Na argumentação tradicionalista de Pequito Rebelo em relação a conclusões extraídas
por Ezequiel de Campos dos clássicos da doutrinação agrária portuguesa como Severim de Fa-
ria, avulta a posição concordante do intelectual quanto à «orientação tradicional da coloniza-
ção» apoiada na «propriedade» e «nos processos suasórios e indirectos», mas a recusa do inter-
vencionismo praticado pelo «Estado» moderno. Esta será a grande divergência intelectualiza-
da que confere ao debate um sentido, digamos, de concordância meramente filosófica, mas de
discordância quanto a aspectos de aplicação prática. Vejamos uma das passagens:
«O projecto Ezequiel de Campos afasta-se consideràvelmente, pois, do que possa haver
tradição nas opiniões agrárias de Severim de Faria: aceita-lhe o ponto de vista erróneo, da
grande propriedade considerada como causa do mal agrário, ponto de vista por êle aliás ex-
presso incidentalmente quase, e combinado com outros aspectos, que muito corrigem a sua ex-
clusividade; e põe de parte o fundo do seu pensamento, que é a orientação tradicional da colo-
nização, baseado na instituição da propriedade e confiando mais do que tudo nos processos
suasórios e indirectos.»
Depois de citar pormenorizadamente a sequência da argumentação de Ezequiel de Cam-
pos baseada nos esforços reformistas de Mousinho da Silveira, frustrados, o comentário do Es-
critor Pequito Rebelo adquire o vulto que lhe confere direitos de citação alongada:
«Fechada esta longa, mas necessária citação, eu não vou fazer a crítica da obra de Mou-
sinho, emprêsa que não cabe nas colunas de um jornal, demandando escrupuloso cuidado, so-
bretudo no meu caso pessoal, em que o respeito pela sua memória se acresce de certas obriga-
ções, de que ele é meu crèdor, como meu hóspede. Como quase hóspede, com efeito, o consi-
dero; porque neste mundo, que é pequeno, veio a suceder que a sepultura de Mousinho, por
determinação sua, veio a abrir-se na pequena povoação da Margem, entre gente que, vivo êle,
"se atrevera a mostrar-se para com ele reconhecida". E, sendo assim, o belo busto de mármore
do sarcófago, em meio do adro da pequena igreja, fita vagamente por cima do casario a ondula-
da charneca onde eu tenho lavrado; e quase me parece surpreeder nêle uma expressão interro-
gativa, como se a mim me perguntasse pelos resultados das suas leis. E fica-me sempre um
grande desejo de responder-lhe, não à ligeira, mas compulsando, como é mister, as interminá-
veis estatíticas, os volumosos alfarrábios e sobretudo esse livro maior, que são as realidades
que sobrevivem ao curto labor do homem.
Eu bem desejaria dar-lhe uma resposta formal, embora ela fôsse a condenação da sua
obra de estrangeirismo racionalista, só grandiosa na destruição, porque no fim de tudo sempre
em Mousinho da Silveira poderia reconhecer amor pelo povo, civismo austero e fidelidade ló-

446
gica às más ideias em que todos acreditavam, sem a coragem igual de as deduzir.
Assim, tenho de calar-me diante do seu busto — que me dá a vaga ideia do seu meio-
-corpo, soerguendo-se dos escombros circunjacentes, — e guardo para mim a condenação dos
críticos, abanando tristemente a cabeça às comezinhas realidades que lhes confirmam os juí-
zos. Realmente, se Mousinho revivesse, julgaria ter marchado ao envés do tempo, tão rodeado
se encontrando de medievalismos, muitos dos quais tão radicalmente decepou: imposto ad va-
lorem ressuscitando com nome latino as alfândegas municipais, tributos multíplices, vexató-
rios, onerosos e atrabiliários excedendo os dízimos, uma quebra da moeda com balancetes pe-
riódicos, e a terra, que êle libertou, depois de ter premiado aventureiros e alimentado esbanja-
mentos, por aí jazendo vasta e podre, entre duas servidões: a de um regímen de inércia de pro-
dução, acompanhando de longe as necessidades da abastança pública, e da tutela perigosa dos
reformistas e dos revolucionários, querendo levá-la, contra a lição de Mousinho, à aventura fi-
nal da liquidação...»
O sentido da crítica de Pequito Rebelo parece residir no confronto que estabelece entre
o que se pode entender como propriedade aristocrática que se entregará, por definição, a «al-
tas» finalidades sociais e espirituais, e a propriedade democrática destinada a servir necessida-
des correntes da existência, o que o crítico despreza ideologicamente. No fundo, o que magoa
a sensibilidade do Integralista Pequito Rebelo será o propósito de democratização da Terra que
o Engenheiro Ezequiel de Campos defende razamente. Por isso se exprime deste modo:
«Assim como Mousinho viu erroneamente o bem público na supressão violenta de rela-
ções sociais e vínculos jurídicos, que podiam ser anacrónicos, abusivos ou perfectíveis e por-
tanto deviam tão somente ser transformados, substituídos ou reintegrados no seu espírito so-
cial, vindo afinal a entregar a riqueza à tutela indefensável da oligarquia anónima ou do Estado
omnipotente, — assim também Ezequiel de Campos se engana tràgicamente, quando pretende
criar uma nova forma de propriedade sapando o princípio fundamental da instituição, abrir a
terra à gente de longe, entregando-a primeiro à posse parcelada e portanto ferozmente exclusi-
vista da gente local, e operar uma rápida, violenta e anti-económica divisão agrária que os fac-
tos inexoràvelmente revogariam em poucos anos, restituindo a propriedade à forma que estiver
na natureza das cousas, pagando a grei a formidável conta dos prejuízos!»
Os reparos do doutrinador tradicionalista acusam, no entanto, falta de sinceridade quan-
do é proferida a afirmação de que:
«Herculano e Oliveira Martins, com os seus projectos de valorização agrícola baseados
no aforamento, enfileiram-se por êsse lado na verdadeira tradição do povoamento à arroteia de
terrenos incultos, num sistema muito diferente do proposto pelo sr. Ezequiel de Campos.»
Estamos certos de que, se este debate decorresse no século XIX, tendo por objecto o
Projecto de Oliveira Martins, o pensamento de um Pequito Rebelo não seria diverso do que foi
no século XX. Mas devemos reconhecer também que a Contra-Reforma na política agrária
portuguesa, nunca mais voltou a ter o brilho que o Integralista Pequito Rebelo lhe emprestou.

O sonho da protecção às Aves

A tradição infantil rural, com o acordo de muitos camponeses, admite e cultiva a arte de

447
«ir aos ninhos» e de usar a «fisga» contra toda a espécie de Aves. Modernamente a juventude
privilegiada dispõe de armas como as de «pressão de ar» ou de cartucho tipo «Flaubert». Não
carecem de licença, o seu uso é livre, servindo de treino ou de escola a futuros caçadores.
Acontece que, na vida rural e agrícola, os pássaros são temidos quando se abatem sobre
as sementeiras ou frutos maduros. Para combater a sua verocidade, de há muito foram inventa-
dos os espantalhos, as taramelas movidas a vento, as crianças a baterem latas e, modernamen-
te aparelhos de alarme mais sofisticados. No entanto tais dispositivos valem pouco, porque a
fome dos animais os obriga a vencerem os maiores terrores que possam ser imaginados.
Os pássaros não merecem, portanto, a simpatia dos lavradores e por isso se consentem
autênticos massacres. As tabernas urbanas servem, como petisco, fritos, os «passarinhos». Tal
negócio é objecto de periódicas repressões tendentes a preservar, no período «defeso», coinci-
dente com a procriação, o interesse ecológico de muitas aves. Sistematicamente, os Naturalis-
tas averiguam o que se encontra no papo das diferentes espécies, para esclarecerem as cadeias
tróficas. Concluem que existem Aves insectívoras e outras cerealívoras, sem qualquer dúvida,
como os pardais, que em muitas regiões onde. imprudentemente, foram introduzidos, consti-
tuem praga. As primeiras merecem simpatia científica e fazem parte do grupo de predadores
de insectos perigosos, que zelam pelos equilíbrios ecológicos favoráveis às plantas cultivadas.
Deveriam sempre ser defendidos, e conservadas as sebes onde constróiem os ninhos e se multi-
plicam. Mas as outras espécies são objecto de reservas, embora se não possa entender as razões
porque voam no Mundo.
Tudo isto é a tradição, que não deixou de justificar que um Engenheiro, Ezequiel de
Campos, dotado de espírito positivo, quando Ministro da Agricultura, tenha proposto a Lei se-
guinte:
«Em nome da Nação, o Congresso da República decreta, e eu promulgo, a lei seguinte:
Artigo Io Todos os estabelecimento oficiais dependentes do Ministério da Agricultura
ficam obrigados por esta lei a fornecer aos agricultores das regiões onde êsses estabelecimen-
tos exerçam os esclarecimentos indispensáveis para o conhecimento perfeito de todas as aves
úteis à agricultura, seus meios de protecção e sôbre a maneira fácil de construção e colocação
de ninhos artificiais para cada espécie de aves.
Art. 2o Em todas as escolas de ensino primário elementar serão formadas sociedades
escolares destinadas a promover, nas classes escolares, o amor pelas aves úteis e a fazer-lhes
conhecer por processos simples quais as aves merecedoras de protecção.
Art. 3o A Direcção Geral da Instrução Agrícola deverá organizar, dentro de sessenta
dias, a partir da publicação desta lei, os modelos de estatutos por onde se deverão reger essas
sociedades escolares.
Art. 4o Fica revogada a legislação em contrário.
Os Ministros da Instrução Pública e da Agricultura a façam imprimir, publicar e correr.
Paços do Govêrno da República, 14 de Fevereiro de 1925. — MANUEL TEIXEIRA GOMES
— António Joaquim de Sousa Júnior — Ezequiel de Campos.»

Não foi possível averiguar se a Direcção-Geral da Instrução Agrícola, hoje extinta, or-
ganizou os «modelos de estatutos» ordenados pelo legislador «no prazo de sessenta dias». Não

448
sabemos também se alguma «sociedade escolar» foi constituída nos campos para desmobili-
zação da «fisga» e dos bandos que «iam aos ninhos». Não podemos avaliar se ficou melhor
garantida a liberdade das Aves na colheita de alimentos e na primaveril orquestração dos cânti-
cos de acasalamento que precedem a institiva arquitectura dos ninhos.

449
50 — ENTRE AS DUAS GUERRAS MUNDIAIS

Os Historiadores consideram normalmente a Ia República que vai da Revolução de


1910, que deu origem à nova Constituição, até ao Movimento Militar de 28 de Maio de 1926,
que suspendeu a referida Constituição, instituindo fase ditatorial que se desenvolve depois
com o referendo da Constituição de 1933 e factos subsequentes. A Revolução de 28 de Maio,
encerra um período atribulado da vida política, de escassos desenvolvimentos no que se refere
a medidas agrícolas, como verificámos. Vem, no entanto, abrir perspectivas que, ainda os His-
toriadores, identificam como acontecimentos de transcendente importância verificados na Eu-
ropa, especialmente a implantação do regime Fascista na Itália e Nazista na Alemanha, aconte-
cimentos que estiveram na base da II Guerra Mundial. Sem preocupações de registar diferen-
ças ou analogias com o que sucedeu nas vizinhanças, tendo ocorrido, muito próxima, a Guerra
Civil espanhola, estamos convencidos de que as decisões portuguesas se encontravam impre-
gnadas de ideologias e modelos administrativos em voga, o que não será inédito na História
de Portugal. Nasceu assim, como base do salvatério nacional, aliás necessário, um apelo à Or-
dem Nacionalista, «Tudo pela Nação, nada contra a Nação», e uma espécie de entronização da
Obra Pública. Mas não podemos imaginar que tudo vinha de fora, uma vez que faz parte da
tradição portuguesa o Pombalismo e a Regeneração fontista, por exemplo. O que talvez seja
novo, e influído a partir da Itália de Mussolini, será a Organização Corporativa, no aspecto em
que se apresenta como forma de contestação da «luta de classes», quando afirma substituir
campos opostos por terreiro amistoso e colaborante. Não é fácil, talvez, encontrar na tradição
portuguesa, nas Corporações medievais, analogia que permita identificar as orgânicas que fo-
ram criadas, com outras que tivessem existido ao lado do Poder do Rei, e muito menos na selva
do liberalismo triunfante. Estas referências pretendem apenas servir de abertura à apresentação
de aspectos específicos da agricultura, com exclusão de análises de situações de outro tipo, res-
peitantes, por exemplo, ao enquadramento constitucional das liberdades humanas. Os campo-
neses viveram, sem dúvida, penosas dificuldades, como as que Aquilino Ribeiro reteve ao des-
crever o que se passou nas florestas «quando os lobos uivam». Sempre lhes foi negada a esco-
lha de Deputados, de Autarcas do Município ou da Freguesia, de Representantes nos Grémios
da Lavoura, nas Federações e na Corporação da Lavoura, se acaso alguma vez a praticaram,
em vez de serem paternalmente tutelados. Foi-lhes recusado o passaporte e, por isso, passaram
a fronteira «a salto», entregando-se na mão de engajadores que provinham da mesma cepa que
sugavam. Mas, de qualquer modo, devemos reconhecer também que, historicamente, os Cam-
poneses estavam habituados e não perdiam o engenho de, por seus próprios meios, se embre-
nharem nas veredas «paralelas» ou «subterrâneas» do regime que lhes foi dado, sem qualquer
espécie de consideração ou de consulta prévia.

O Inquérito Económico Agrícola de Lima Basto

Acabara de ser fundada, em 1930, a Universidade Técnica de Lisboa e logo o seu Con-

451
selho Universitário, presidido pelo Reitor Doutor Azevedo Neves, tomou a resolução, em
1931, de entregar ao Professor Lima Basto, do Instituto Superior de Agronomia, o encargo de
«dirigir um inquérito à situação económica da agricultura portuguesa». Tal decisão revela não
somente quanto a agricultura era desconhecida na vida económica da época, como também a
abertura da nova Universidade para a prestação de serviços à comunidade em áreas sociais
mais carecidas de auxílio para desenvolvimento e progresso.
O Professor Lima Basto organizou o programa do Inquérito declarando ter utilizado um
trabalho feito na Divisão de Estudos Económicos da Estação Agrária Central pelo Engenheiro
Agrónomo Henrique de Barros. Foram promovidos inquéritos regionais às freguesias de Cuba,
Santo Ildefonso de Elvas e Santo Tirso, publicados em 1934. Com base nesses inquéritos, o
Professor Lima Basto redigiu o IV volume com o subtítulo de «Alguns aspectos económicos
da Agricultura portuguesa», editado em 1936.
Naturalmente, a indagação económica e social agrícola tinha suas tradições em Portu-
gal. Mas raras vezes foi metodologicamente globalizante, procurando caracterizar o conjunto
do País. Foi esta orientação que Lima Basto imprimiu ao seu estudo, pelo que apresenta, neste
aspecto, as características de estudo pioneiro.
Lima Basto, no IV volume do seu Inquérito sentiu a necessidade de caracterizar a eco-
nomia portuguesa através de um indicador, hoje mais do que vulgarizado, que tentou elaborar
e a que deu a designação de «Produto nacional». Efectivamente apresentou uma estimativa de
«produção industrial» de 2 milhões de contos em 1936. Quanto à agricultura chegou aos se-
guintes resultados:

Produtos agrícolas — cereais panificáveis 1.460.000 contos


— cereais, legumes e frutas 2.151.000 »
Produtos florestais 441.000 »
Produtos animais 1.185.000 »
Total 5.237.000

Amaro Guerreiro, quando apresentou, em 1950 o primeiro cálculo do Produto Nacional


refere que as mais antigas estimativas de que tem conhecimento, uma serão elaboradas no es-
trangeiro como a de Michel Mulhal, de 1870 a 1896, e a de Vandelós relativa a 1814-18, e ou-
tras correspondem a estimativas apresentadas em trabalhos relativos ao Imposto como a de
Bento Carqueja de 1898 e a de Barros Queirós de 1917. No entanto a metodologia utilizada
por estes autores é sempre indirecta: determinação de efectivos demográficos e atribuição de
rendimentos individuais, o que leva a obter um resultado global contraditório, visto que inte-
ressa medir o Rendimento Nacional nas suas origens, independentemente das capitações a que
dá lugar. No caso das estimativas de Lima Basto, são notórias as deficiências dos cálculos do
que chamou «Produção Industrial», que não engloba actividades fundamentais como as de
construção, e a ausência da estimativa de Serviços. Mas afigura-se inovadora a metodologia
da utilização das produções multiplicadas pelos preços unitários. Naturalmente, esta metodo-
logia corresponde ao que veio a ser adoptado no cálculo do Rendimento ou Produto Nacional,
por sugestão dos «Statistical Papers» das Nações Unidas e dos questionários da O.E.C.E. cerca
de 1950.

452
Constitui outra particularidade do Inquérito, a revisão a que o Professor Lima Basto
procede do aproveitamento do território, baseando-se nos cálculos de Pery em 1874, de Sertó-
rio do Monte Pereira em 1902, de Joaquim Rasteiro em 1929 e da Direcção-Geral da Acção
Social Agrária de 1931 e de 1933.
Afígura-se também de grande interesse o capítulo designado «a produtividade da agri-
cultura e os meios de a aumentar» que se subordina ao título «Caminhos de Progresso». Ter-
mos que hoje são banais, foi Lima Basto desencantá-los no «Final Report» do «Agricultural
Tribunal of Investigation» de 1924. Com base na produção da terra apresentava-se calculada
a «produtividade agrícola para alguns países europeus», como a Bélgica, a Dinamarca, a Ho-
landa que caminhavam muito à frente da média europeia. Lima Basto calculou a produtividade
agrícola de Portugal e concluiu que o respectivo índice era de 82 para 100 da média europeia.
O mais notável, porém, é que Lima Basto com a sua «produtividade» agrícola referida à terra
cultivada, tomou consciência da Produtividade do trabalho, revelada quando escreve: «como
dizem Sir Wm. Ashley e o Prof. Adam, a prosperidade da agricultura é a prosperidade das
pessoas e não dos hectares, não devendo tomar-se a produtividade como a única medida do
melhor uso possível da terra».
Outro aspecto importante do Inquérito é a tradução que o Prof. Lima Basto apresenta da
nomenclatura de rendimentos, encargos e resultados adoptada pelo XIV Congresso Internacio-
nal de Agricultura sob proposta do Prof. Ernest Laur. Tal nomenclatura passou a ser corrente-
mente adoptada em Portugal até à introdução de alguns novos conceitos depois de o Centro de
Estudos de Economia Agrária da Fundação Gulbenkian ter promovido trabalhos de Gestão da
Empresa Agrícola a partir de 1959. Ao abordar o «custo de produção» Lima Basto enfrenta e
discute a incongruência aparente de se aspirar a menor custo dos produtos com maior remune-
ração do factor trabalho. Por isso serve-se da teoria da produtividade marginal do trabalho de
Dummeier Heflebower, empenhando-se na discussão da eficiência do trabalho e da direcção
que incentivaria a produção, e envolvendo-se na problemática da diminuição do trabalho ne-
cessário, o que conduz aos caminhos do êxodo rural. O Inquérito termina com um capítulo in-
titulado «A comercialização dos produtos» com referência ao cooperativismo, seguido de ou-
tro respeitante à «acção do Estado» na «investigação científica e económica», na organização
do comércio, na educação e na «política da alimentação».
Com base em informações facultadas pelos inquéritos regionais, Lima Basto escreveu
uma Conferência que proferiu em 1935 no Instituto Superior de Ciências Económicas e Finan-
ceiras, subordinada ao título «Níveis de vida e de custo da vida — o caso do operário agrícola
português». Nesta Conferência, o Autor apresenta-se com os atributos do Sociólogo, inato ou
intuitivo, difundindo conceitos pouco divulgados e definindo-os com precisão científica: ní-
veis de vida, custo da vida, salários reais, níveis de emprego, cabaz das compras — tradução
do panier de provisions do Bureau International du Travail. Será pioneira a apresentação da
metodologia de análise dos orçamentos familiares e da repartição das despesas mostrando,
atrevemo-nos a supor pela primeira vez perante grandes auditórios em Portugal, o significado
social da forte percentagem da despesa em alimentação na despesa familiar total. Em Portugal,
nessa altura, a maior parte dos rendimentos era absorvida pela alimentação e esta era constituí-
da por número reduzido de produtos e baseada essencialmente em cereais, com escasso consu-

453
mo de proteína animal o que é característico dos países pobres. A análise do «poder de com-
pra» revelava que, nessa altura, Portugal era «entre 16 países aquele em que o poder de compra
é menor, apesar de ser aquele em que mais barato se podem adquirir os géneros necessários ao
sustento».
Na óptica que nos propusemos seguir na indagação histórica, os trabalhos referidos de
Lima Basto apresentam-se basilares e impulsionadores do desenvolvimento da investigação
agronómica em Portugal. Constituíram Escola que foi seguida por outros investigadores que
tentaram clarificar muitos dos aspectos que ensombravam a ruralidade penosamente vivida por
fortíssima percentagem da população portuguesa em aldeias isoladas. Mas teria ficado por des-
cobrir o mistério segundo o qual, essa população, marginalizada na terra de nascimento, ape-
nas revelava a sua energia inovadora e a sua força criativa, quando arrancava para a emigração
ou para o êxodo urbano.

A utopia de Mário de Castro

Mário de Castro constitui exemplo de intelectual português que, vivendo intensamente


os anos 30, em que as preocupações de mudança social determinavam, para alguns, a inquie-
tação do espírito, marchava no sentido da descoberta de caminhos da inevitável intervenção
política. Advogado, detentor de cultura geral marcada pela formação jurídica e o conhecimento
histórico, proferiu no Grémio Alentejano uma série de Conferências que publicou sob o título
de «Alentejo, Terra de Promissão — linha geral de um pensamento agrário». A leitura dessas
conferências revela a força do «problema agrário» que Mário de Castro, alentejano, vivia in-
tensamente, expondo os seus múltiplos aspectos de forma sempre generosa e, tanto quanto
possível, exacta. É sua esta expressiva confissão, plena de sinceridade: «o que nós líamos sem
entender, o que nós líamos sem sabermos que viria acontecer».
Nessas Conferências, Mário de Castro apresentou-se consciente de que, no Alentejo, a
concentração da propriedade «sendo causa de profundas desigualdades sociais, é por isso, e
como todas as injustiças, uma fonte de revolta e de desordem». Por isso, «o que se pretende é
estender o benefício da propriedade a um maior número de pessoas». Afirmava então com de-
sassombro, no Grémio Alentejano, «com a reforma agrária, tem-se em vista integrar Portugal
no nosso tempo, pô-lo a par da evolução política, jurídica e económica que se desenha no mun-
do actual, sem o que será um país perdido». E, mais adiante: «ou se realiza a bem, por uma re-
organização cuidadosa, ou virá pelo mal de uma revolução trágica».
Depois de largo debate sobre as circunstâncias históricas em que se baseava a sua pro-
blemática e de ter em conta «obstáculos de ordem jurídica ou moral que se lhe oponham», Má-
rio de Castro acaba por moldar o seu empenho reformista, a uma concepção inteiramente pes-
soal, generosa, sem dúvida, mas, de certo modo, ingénua, de intervencionismo do Estado. A
primeira ideia corresponde ao reconhecimento da necessidade da «administração directa do
Estado» em relação a bens fundiários, que viriam a ser sucessivamente transferidos da posse
privada em que se encontram, sem violências jurídicas e morais. Depois, afirma: «serve-nos
admiravelmente o regime de concessão de serviço público» que regularia a exploração da terra
agrícola. E sugere: «é preciso criar, enfim, a Junta Autónoma de Reorganização Agrária, com

454
meios próprios, que lhe vêm da dotação orçamental, das doações particulares, dos títulos de
dívida que emitir, correspondentes às aquisições que fizer, e das percentagens que lhe coube-
rem sobre os rendimentos das concessões que for fazendo».
Mas os seus propósitos apresentam-se sempre moderados: «a hipótese que prevemos é
a de uma reorganização agrária e não a de uma revolução, isto é, procuramos solucionar o pro-
blema por meios pacíficos, ou seja, modificando a constituição social sem perturbar o seu fun-
cionamento, como que por evolução de si mesma e em harmonia com os princípios que cons-
tituem a sua infraestrutura jurídica». E mais adiante: «nesta ordem de ideias, a nossa Junta não
poderá converter ao domínio público as terras do domínio privado, por meio de uma medida
violenta, declarando pura e simplesmente pertença do Estado certas propriedades que excedam
determinado limite». E não pode, porque «não é a terra que há-de obedecer à lei, mas sim a lei
à terra». Eis uma afirmação que se nos afigura dotada de expressão original, assumindo signi-
ficado muito expressivo em face dos condicionalismos da natureza.
Como proceder, então? A Junta, em relação a certas herdades e em certos casos «propõe
a sua expropriação por utilidade pública, da mesma forma que hoje se expropriam prédios, me-
diante indemnização razoável e por meio de processo expedito. Desde que a herdade se paga,
não há lesão de direitos adquiridos». E, mais: «não há, igualmente, lesão de direitos nem per-
turbação económica se a Junta, tendo estudado os domínios de um indivíduo que morre, hou-
ver dos herdeiros, em pagamento do imposto sucessório, em vez de dinheiro, uma dada super-
fície territorial, suficiente para nela instalar uma exploração agrícola». E, ainda mais: «não há
subversão alguma se a Junta requerer a adjudicação de propriedades penhoradas em execução
por dívidas ao Estado».
Mas o reformista Mário de Castro acaba por denunciar a sua utopia quando, finalmente,
confessa que, «isto, sobretudo, não se poderia fazer se à frente desta Junta e a governá-la se
puserem amanhã burocratas encanecidos; é uma obra que requer energias estralejantes, que
exige mocidades voluntariosas, que precisa de personalidades a estuar de vida; que tenham,
sim, lucidez e bom-senso, mas que, além disso, possuam ainda nervos e esta força indominada
e indómita que é o segredo das obras que assinalam, no mundo, a grandeza do homem e abre
a todo o momento novos horizontes à vida: a alma».

Hidráulica agrícola

Em complemento de captações antigas, de águas públicas ou «comuns» como eram di-


tas, cujo uso era regulado por costumes ancestrais, sendo decididos os conflitos por decisões
régias, a Hidráulica Agrícola do século XIX recebeu a orientação legal dos Códigos Adminis-
trativos, depois de se ter gerado um complexo direito privado com a exploração intensiva de
águas para sustentar a «revolução do Milho». Eram correntes os acordos que estabeleciam o
«rol de águas», por vezes escrito, para ser cumprido por consortes que promoveram ou herda-
ram os mananciais. Vejamos um exemplo, de 1803, anterior, portanto, aos Códigos liberais. O
documento, muito minucioso, começa assim:
«Rol das aguas que pertencem nas partilhas de verão: das possas da Merelha; da Fonte
e da do Sabugueiro, cujas partilhas prencipião no dia 29 de Junho anoute de cada anno, e fin-

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dão no de 8 de Sbro, em que decorrem nove andadas no anno de Outeiro Singelo, enodobra-
do somenteoito.
Os cazais emque há partilhas são os seguintes:
Cazal de S.Fins que he oprimero, entra a taparse logo anoute do dia 29 de Junho, e du-
ra o dia 30 domesmo mes anoute em que setapa o segundo cazal que he:
Cazal da Rainha que dura outro tanto tempo, de noute, edia, eseguese,
Cazal de Cação que dura noute e dia,
Cazal João de Faquelo, e Gonçalo Afonso, que dura noute e dia,
Cazal de Gonçalo Enes que dura noute e dia
Cazal do Outeiro que no anno emque se chama Outeiro Singelo, como he neste anno de
1803, dura noute e dia, e noanno em que he Outeiro dobrado dura duas noutes edous dias, co-
mo hade ser no futuro anno de 1804,
Cazal de Fernam Rodrigues que dura noute e dia
Acabada de correr aprimeira andada decadahum destes Cazais torna a entrar o Cazal de
S.Fins que he segunda andada, esevão seguindo os mais pela mesma Ordem que foi na primei-
ra andada,
Eacabada a segunda entra aterceira, eassim sevão seguindo as mais athe findarem no dia
8 de Setembro: Eporesta forma fica explicado omodo porque hão de correr as ditas partilhas,
Quem houver de partir estas aguas, deve fazer Rol, carregando cadahuma quando en-
traeacaba, para que não haja engano nos dias emque cada Andada nos pertence, nem com a
conta das mesmas andandas.»
O documento respeita ao uso da água de três poças que represam água de duas minas
abertas na encosta e de uma fonte, para rega de campos-prado de cultura de Milho em Arcos
de Valdevez. No ano de 1700 estes campos ainda eram descritos em inventários com referência
a alqueires de trigo de produção e terras de vinha e lameiros. Foi a «revolução do Milho» que
dramatizou o regadio durante a segunda quinzena de Junho, os meses de Julho e Agosto e a
primeira quinzena de Setembro. Nos restantes dias do ano era usado o sistema do «tape-tape»,
para rega dos prados de lima. Tal sistema permite que o comparte use a água das poças enquan-
to a «guarda», perdendo o direito quando se retira, dando o lugar a outro.
O sistema de repartição das águas era muito complexo porque os consortes tinham di-
reitos diferentes em relação a cada uma das poças, desigualmente repartidos. Este era o caso
mais generalizado pelo que se gerava conflitos que, por vezes, culminavam em tragédia de sa-
crifícios de vidas, e noutros casos arrastavam querelas nas Justiças.
O uso de «águas comuns» geralmente obtidas a partir de levadas de rios e ribeiros, obe-
decia a rigorosos regulamentos de consortes, presidindo, muita vez, à repartição, um «juiz» de
águas para o efeito escolhido e nomeado.
Foi o Código Civil de 1867 que reuniu as disposições legislativas respeitantes ao uso
das águas. Luís Veiga da Cunha e outros em «Fundamentos de uma Nova Política de Gestão
de Aguas em Portugal» reúne os princípios gerais desta legislação:
«— liberdade de utilização de quaisquer águas públicas, desde que se conformasse com
os regulamentos administrativos;
— direito de preferência dos proprietários de montante sobre os de jusante no que res-

456
peita à utilização das águas correntes, não navegáveis nem flutuáveis, que atravessassem os
respectivos prédios, não podendo, no entanto, os primeiros impedir o livre curso das águas não
utilizadas;
— direito de utilização da água necessária aos gastos domésticos por parte dos proprie-
tários dos prédios vizinhos dos que marginavam quaisquer correntes de água, não podendo es-
tes últimos impedir os primeiros de usufruir esse direito enquanto não existisse fonte pública
para abastecimento de água das pessoas que dela necessitassem;
— proibição de poluir as águas correntes, causando prejuízos a terceiros, sendo os tra-
balhos, tanto de saneamento como de conservação, resultantes do não cumprimento deste prin-
cípio, executados à custa dos responsáveis, sem prejuízo da eventual aplicação de indemniza-
ções e multas;
— reconhecimento da existência de águas particulares com quase total liberdade de uti-
lização por parte dos seus proprietários.»
Estas disposições passaram a ser regulamentadas com a criação dos Serviços Hidráuli-
cos em 1892. Transcrevemos do referido trabalho os aspectos que se nos afiguram mais impor-
tantes da legislação promulgada:
«— faz-se a classificação das águas públicas, comuns e particulares e definem-se as
margens das correntes e lagos a incluir no domínio público para protecção, serventia e utiliza-
ção das referidas águas por parte dos serviços hidráulicos;
— estruturam-se os serviços hidráulicos, dividindo o País em duas Circunscrições Hi-
dráulicas, respectivamente com sede em Lisboa e no Porto, e definem-se as suas atribuições
que são a execução de estudos, projectos e obras para o melhoramento e aproveitamento co-
mercial, agrícola ou industrial dos lagos, lagoas, rios, valas, correntes, etc., a regulamentação
da sua utilização e a sua conservação e polícia, e definem-se também as suas fontes de receita;
— permite-se, nas correntes de água de uso comum em que a água exista em excesso,
o emprego do excedente de água para utilizações domésticas, industriais e agrícolas, depois de
satisfeitos os direitos dos proprietários dos terrenos marginais, direitos estes consignados no
Código Civil de 1867 como já foi assinalado;
— embora mantendo o princípio contido no Código Civil de 1867 de que as águas resi-
duais provenientes de actividades agrícolas ou industriais não podem ser inquinadas de subs-
tâncias nocivas, abre-se, porém, excepção para os casos em que o Governo considere uma in-
dústria de excepcional importância, permitindo-se o lançamento dos seus efluentes nos cursos
de água naturais ficando, no entanto, a cargo dos industriais indemnizar o Estado, corporações
ou particulares que por esta concessão sejam considerados lesados;
— estabelecem-se os prazos para proceder à demarcação e classificação, em cada bacia
hidrográfica, das águas públicas e das respectivas margens, bem como das zonas que devem
ser objecto de tratamento por meio de arborização, arrelvamento ou cultivação em socalcos e
ainda das zonas que podem interessar aos proprietários confinantes, quer para aproveitamento
e esgoto das águas, quer para a sua colmatagem, quer para a irrigação, prevendo-se a possibi-
lidade de rever periodicamente estas classificações e demarcações;
— regulamentam-se o ordenamento e custeamento das obras hidráulicas para aproveita-
mento, conservação e controle dos recursos hídricos das bacias hidrográficas, nomeadamente

457
as que se destinam à agricultura, navegação, indústria, abastecimento e saneamento de aglo-
merados populacionais;
— regulamentam-se as expropriações e servidões a estabelecer;
— definem-se as normas de polícia e jurisdição das águas e das obras hidráulicas a exe-
cutar.»
Com a proclamação da República foi publicada a «Lei de Aguas» de Maio de 1919, a
que o trabalho citado se refere da forma que segue, começando por transcrever parte do seu
preâmbulo:
«— sendo as águas das correntes, dos lagos e lagoas, bem como as fluviais e subterrâ-
neas, um dos mais importantes factores da riqueza nacional, cujo desenvolvimento ao Governo
cumpre auxiliar e fomentar;
— atendendo a que a legislação reguladora do uso das mesmas águas se encontra dis-
persa por vários diplomas, alguns dos quais, baseados em princípios que os progressos da ciên-
cia moderna condenam, carecem de ser reformados e outros, mais recentes, incluem disposi-
ções cujos inconvenientes, revelados pela prática, importa prover de eficaz remédio;
— sendo de maior urgência promover desde já o aproveitamento agrícola e de energia
eléctrica das águas das bacias hidráulicas dos nossos rios, a fim de diminuir quanto possível a
importação das subsistências e combustíveis, intensificando e valorizando ao mesmo tempo o
trabalho português;
— considerando que, pela diversidade das disposições naturais em que se apresentam
as águas terrestres, pela multiplicidade e interdependência das suas aplicações, e ainda pela va-
riação do regime legal a que estão sujeitas, muito convém reunir e sistematizar todas as dispo-
sições aplicáveis ao uso das águas num único diploma, redigido no espírito progressivo que
hoje inspira neste assunto todas as legislações cultas (...).»
«A promulgação desta Lei marca pois um dos pontos mais altos da legislação portugue-
sa relativa a águas publicada num passado recente apontando já para alguns princípios funda-
mentais de uma adequada política de gestão, tais como a consideração dos recursos hídricos
como factor de riqueza nacional, a adopção da bacia hidrográfica como unidade básica de ges-
tão e o carácter interdependente da utilização dos diversos recursos hídricos.
A Lei de Águas revogou praticamente toda a legislação sobre águas vigente à data da
sua publicação incluindo grande parte do pertinente articulado do Código Civil de 1867, em-
bora, no essencial, os princípios gerais deste Código Civil tenham sido mantidos.
No que respeita à propriedade das águas, estas são classificadas em públicas e particula-
res, desaparecendo a designação de águas comuns.»
Com o termo da I Grande Guerra e de acordo com as lúcidas preocupações que atraiam
os espíritos mais clarividentes quanto ao «problema dos abastecimentos», o regadio passou a
ser considerado instrumento de segurança e recuperação da economia nacional. Em «Confe-
rências de Extensão Universitária Agrícola e Florestal» proferidas por Técnicos Agrários do
Ministério da Agricultura no Instituto Botânico da Universidade de Coimbra na ano lectivo de
1925-26, o Professor Ruy Mayer do Instituto Superior de Agronomia apresentou «O problema
da água na agricultura portuguesa». O clima português foi caracterizado da seguinte forma:
«Um clima de chuvas abundantes, mas mal distribuídas; desigualdade marcadíssima na repar-

458
tição das chuvas, copiosas no inverno e primavera, escassas e até raras no verão; uma irregula-
ridade desconjuntante, como disse Sertório do Monte Pereira, fazendo variar oscilações da
produção cerealífera do simples ao quíntuplo\ chuvas de grande intensidade, isto é, caindo
num reduzido número de dias, portanto pouco aproveitadas pelas plantas que, para utilizarem
bem a água, precisam de a receber com lentidão; a par disto uma intensa radiação solar, uma
elevada energia calórica mantida durante muitos meses, e uma evaporação que, ao contrário
do que sucede com as chuvas, é de uma constante e implacável regularidade».
A concluir, o Prof. Ruy Mayer apresentou o seguinte relato que registamos como docu-
mento digno de antologia, para que possa ser meditado:
«Durante o curto período em que esteve à frente do Ministério da Agricultura um técni-
co, o Sr. Prof. Azevedo Gomes, do Instituto Superior de Agronomia, propôs-se êle dar os pas-
sos necessários para que algumas das obras de Hidráulica que se encontram em estudo, e de
preferência a que fôsse salutar sôbre a nossa economia, entrasse prontamente em execução. Pa-
ra êsse fim, seguiu o caminho que noutros países (a Espanha entre êles) se adoptou em circuns-
tâncias semelhantes: — Convidou a estudar os planos de trabalho existentes um técnico de rep-
utação mundial, autor de obras de grande responsabilidade, para que désse sôbre êles o seu pa-
recer, e aconselhasse o Governo quanto aos melhores processos a seguir para atingir o seu ob-
jectivo. O técnico convidado para esta alta missão foi o Engenheiro Sir Murdoch Mac Donald,
Chefe das Obras Públicas no Egito durante muitos anos, a quem se devem obras célebres, co-
mo o alteamento do Dique de Isba, a defeza do Dique de Assuan, e o projecto do Dique de
Sennar e sistema de rega correspondente, obra colossal que domina um milhão e meio de hec-
tares.
Tendo percorrido o País, examinado os locais das obras projectadas, e estudado, sob o
ponto de vista das suas aptidões agrícolas, as várias regiões a beneficiar, Sir Murdoch Mac
Donald elaborou um Relatório, em que aconselhava que fôsse executada em primeiro lugar a
rega de cêrca de 10,000 hectares de terreno no Ribatejo, entre Santarém e Vila Franca, segundo
o projecto dos Srs. Engenheiros Prof. Raul de Mendonça e Ribeiro de Almeida. As principais
razões em que o ilustre Engenheiro Consultor baseava a sua opinião eram as seguintes: Ser a
região comparativamente adeantada, e fácil por isso a conversão do regime de sequeiro ao re-
gime de regadio; — tratar-se de terrenos férteis, onde a água imediatamente produziria um
efeito sensível; — estar a região às portas de Lisboa, vasto mercado de consumo e bom ponto
de saída para os produtos exportados; — e, finalmente, ser a obra fácil de realizar, requerer um
capital relativamente deminuto, e prestar-se, pela sua simplicidade, ao adestramento do pes-
soal que construísse as obras e à educação dos primeiros regantes.
Prevê Sir Murdoch Mac Donald uma despesa de cêrca de 20,000 contos com a obra do
Ribatejo, despesa bem pequena se a compararmos com os resultados que se alcançariam. Mos-
tram os trabalhos da 4." Secção da Estação Agrária Nacional, Secção que eu tenho a honra de
dirigir, que, em anos tão sêcos como o de 1924, só a rega permite salvar a cultura de milho
dum desastre; e, em anos húmidos, como o de 1925, em que por acaso as chuvas foram muito
bem distribuídas, a rega trouxe ainda ao milho um benefício líquido de 250 a 500 escudos por
hectare!
Segundo o projecto perfilhado por Sir Murdoch Mac Donald, a água do Tejo, elevada

459
por meio de bombas accionadas por máquinas a vapor (e de futuro por motores eléctricos,
quando a energia do Tejo fôr captada) será encaminhada, a partir de Santarém, por um canal
que segue, na primeira parte do seu traçado, ao abrigo do Dique das Onias, para depois inflectir
na direcção da Azambuja, e acompanhar mais ao menos a linha férrea até Vila Franca. No per-
curso, por intermédio duma rêde distribuidora, irá regar 2,800 hectares de trigo, outros tantos
de milho, 1,000 hectares de leguminosas. 1,000 hectares de pastagens, 2,000 hectares de vi-
nhas. A zona dedicada a pastagem irá perdendo pouco a pouco essa aplicação, à medida que
se vá propagando o hábito de estabular os animais. Por outro lado, é fora de dúvida que as zo-
nas de cereais irão sendo gradualmente invadidas pelo alastramento das hortas que hoje se es-
tendem até Sacavém, e pela cultura dos géneros de exportação, como a cebola, o tomate, etc.
Feita a obra inicial de rega no Ribatejo, outras se seguiriam, pois não faltam as zonas
onde os melhoramentos hidráulicos poderiam operar uma proveitosíssima transformação. E o
que sucede, por exemplo, nos campos do Vouga, onde, como já há tantos anos notava Andrade
Corvo, se conseguiria facilmente, com o auxílio da água, criar forragens suficientes para mui-
tos milhares de cabeças de gado grosso; na Lagôa de Fermentelos, cuja dissecação traria uma
vasta superfície à cultura orizícola; nos campos do Mondego, onde urge salvar 16,000 hectares
de culturas, e em que seria possível atingir o tríplice objectivo de defender as terras das cheias,
enateirá-las e regá-las; nas campinas da Idanha, terras leves, altamente próprias para as regas,
que se abasteceriam com a água armazenada numa albufeira que não seria difícil instalar; nos
campos da Golegã, e da margem Sul do Tejo, que conviria proteger das cheias e regar, e onde
se viria a empregar largamente para todos os fins agrícolas, a energia captada ao Tejo em Bel-
ver; nos campos do Sorraia, que se projecta regar com a água dum canal derivado do Raia, sen-
do a sua alimentação durante o período de estiagem assegurada por duas albufeiras, a do Ma-
ranhão e a de Pavia, obras estas que permitiriam a conversão de 36,000 hectares de charneca
pobríssima em fartas terras de cereais e de forragens, como a que resultou para o Piemonte da
abertura do Canal Cavour; na grande zona, onde as águas subterrâneas são fáceis de explorar,
que se estende da Marateca até Alcácer; nos campos do Sado, admiràvelmente adaptados para
a cultura do arroz, em que quási não há a recear a degenerescência das sementes, e onde é pre-
ciso instalar um sistema de enxugo eficaz; em várias zonas do Baixo Alentejo e do Alentejo
Litoral, em que são acessíveis as águas freáticas e artesianas; em toda a costa Sul do Algarve,
emfim, onde não abunda a água, mas em que ela permite, mesmo em pequena quantidade, que
se obtenham maravilhosos resultados.»
A posição assumida pelo Prof. Ruy Mayer reveste-se de grande significado que já po-
demos designar de histórico, dado que decorreu mais de meio século, tendo a rega em Portugal
originado numerosos pareceres e determinado decisões essenciais para o esclarecimento do
problema. O convite feito pelo Ministério da Agricultura, cerca do ano de 1920, sendo Minis-
tro Azevedo Gomes, corresponde a uma tentativa séria de fomento, mais tarde renovada com
outras intervenções técnicas.
Sir Murdoch Mac Donald aconselha a rega de «cerca de 10.000 hectares de terreno no
Ribatejo» «[...] por meio de bombas accionadas por máquinas a vapor», emitindo parecer que
se baseava em estudos de Técnicos portugueses, os Engenheiros Prof. Raul de Mendonça e Ri-
beiro de Almeida. Ao longo dos seis ou sete decénios que decorrem até à actualidade, episó-

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dios como este repetem-se várias vezes com consultores da O.C.D.E., do Banco Internacional
de Reconstrução e Desenvolvimento, do «Stanford Reserch Institute» de Menlo-Park Califor-
nia, da C.E.E., por exemplo.
Não pretendemos aqui descortinar motivos, mas apenas nos interessa revelar contradi-
ções e estas surgem ao longo das conclusões do Prof. Ruy Mayer quando refere hipóteses de
regadio que apresenta como prioritárias e ainda hoje aguardam decisão. Será o caso dos «cam-
pos do Vouga» já referidos, como afirma, por Andrade Corvo — a Lagoa de Fermentelos — e
«várias zonas do Baixo Alentejo e do Alentejo Litoral, em que são acessíveis as águas freáti-
cas e artezianas».
Para além deste documento que, pelo menos, se presta à meditação quanto a decisões
que posteriormente foram tomadas, são de notar os movimentos regionais solicitando às «ins-
tâncias oficiais» obras de regadio. Outras vezes, nalgumas áreas, o quadro de abandono era por
demais evidente, revelando potencialidades naturais desprezadas. Sucedia assim no Paul da
Cela onde a maior parte das quatro centenas de hectares de terrenos que vieram a ser regados,
se encontrava inculta, notando-se no Verão algumas regas feitas a cabaço ou à picota, com as
águas retidas em velhas valas de drenagem medievais.
Na Lezíria de Loures as áreas mais elevadas encontravam-se ocupadas com hortas de
grande nomeada saloia, que já haviam abastecido Lisboa árabe, sendo os outros terrenos inun-
dados pelos transbordamentos de cursos de água cuja drenagem antiga se encontrava ao aban-
dono. Esta situação determinava constantes pedidos de intervenção do Estado em cerca de 700
hectares que vieram a constar de projecto. A rega da centena e meia de hectares dos Campos
de Burgães, em Vale de Cambra, resultou do propósito de melhorar o regadio de Inverno em
terras de lima, a partir de uma albufeira construída no Rio Caima.
Os lavradores de Santo António de Alvega, pequenos proprietários de terrenos situados
no concelho de Abrantes, na margem esquerda do Tejo, solicitaram a obra de rega que foi ini-
ciada em 1935, abrangendo quatro centenas de hectares. Na Veiga de Chaves, em cerca de
1.000 hectares que foram beneficiados, regava-se a partir de centenas de poços abertos há mui-
tos séculos. A alternativa proporcionada pela obra foi a da construção de um açude, de alvena-
ria, no rio Tâmega e respectiva rede de rega.
A rega dos Campos do Liz constituía problema antigo, mau grado a existência de gran-
des dificuldades técnicas que a obra acabou finalmente por resolver em parte. Aspiração antiga
era também a rega da Campina da Idanha que, encarada por diferentes técnicos, deu origem a
estudos pormenorizados. Esta obra apoiou-se na construção da primeira grande barragem er-
guida em Portugal, e a área dominada ou a dominar, variou entre a previsão na optimista de
20.000 hectares na primeira estimativa, e 6.740 hectares na óptica mais prudente de outro pro-
jecto. De qualquer modo, valores, aspirações ou estimativas de rega contemplaram, no Norte,
anseios de Camponeses. As obras executadas permitiram melhorar concretamente estruturas
agrárias adaptadas ao regadio. Mas, no Sul, tudo acabou por ficar bloqueado, em face das du-
ríssimas realidades das estruturas agrárias latifundiárias, onde os proprietários declaradamente
se opunham à transformação do sequeiro em regadio.
Em 1930 foi criada a Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola e em 1935 foi
entregue definitivamente à Junta a direcção dos estudos e obras de aproveitamentos hidroagrí-

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colas por se considerar chegado «o momento de ajunta exercer acção técnica e social traduzi-
da em obras que obedeçam a um plano geral de conjunto e assegurem, nos seus resultados,
maior desenvolvimento de cultivos de exportação e, acima de tudo, de abastecimento do País
em condições de preço que sejam estímulo do aumento da capacidade do mercado interno».
Outras razões aduzidas na legislação publicada adivinhavam ser necessário criar «interesse dos
que amanham, vivem e amam a terra, pela redução ao mínimo das contingências da produção»,
e de que «tal resultado só pode ser obtido com a rega, pela riqueza, paz e bem estar moral e
social que assegura aos que a praticam, razão que coloca o problema da política hidráulica na
vanguarda dos problemas de fomento instantes e prementes na hora presente em todos os paí-
ses cultos». Foi nestes termos que a tecnocracia hidráulica portuguesa do Ministério das Obras
Públicas de 1935 anunciou que a «área total a regar no País fora computada em 400.000 hec-
tares, e em 168.585 hectares a susceptível de melhoramento hidroagrícola para já».
Este programa grandioso foi apresentado sem que tivesse sido dada qualquer espécie de
audiência aos Camponeses de Portugal. E, no entanto, estes eram os descendentes obscuros
dos que adaptaram ao regadio 500.000 hectares, sem qualquer espécie de auxílio específico,
na «revolução do Milho». Sem dúvida o Plano da Junta integrou os regadios solicitados por
comunidades vivas e autarquias, acrescentando a tudo, naturalmente, soluções técnicas nunca
previstas noutras épocas.
No Plano de 1935 foi dada prioridade à realização de 16 aproveitamentos com a área
total de 83.117 hectares, em que sobressaíam as seguintes obras:

Vale do Sado (1" parte) 5.304 Ha.


Idanha 6.740 »
Campos do Ribatejo, incluindo Muge e Salvaterra 12.000 »
Vale do Sorraia 27.000 »
Campos do Mondego 18.000 »
Vale do Sado e Campilhas 5.000 »

Em 1938 foi aprovado o Plano de Fomento Hidroagrícola, que incluía obras já em início
de construção:

1 — Paul de Magos 700 Ha.


2 — Paul de Cela 441 »
3 — Campos de Loures 700 »
4 — Campos de Burgães 181 »
5 — Vale do Sado inferior (Ia parte) 5.304 »
6 — Vale do Sado inferior (2a parte) 3.085 »
7 — Campos de Alvega 438 »
8 — Campina da Idanha (Ia parte) 1.250 »
9 — Veiga de Chaves 1.070 »
10 — Campinas de Silves, Portimão e Lagoa 1.900 »
11—Campos do Mondego 18.000 »
12 — Vale de Campilhas 1.840 »

462
13 — Campina de Faro 750 Ha.
14 — Vale de Sorraia e Lezíria de Vila Franca 39.000 »
15 — Vale da Vilariça e Sabor 700 »
16 — Campos do Ribatejo 12.700 »
17 — Campos de Tavira e Vila Real de Santo António 3.000 »
18 — Vale do Sado inferior (3a parte) 6.291 »
19 — Vale do Sado superior 3.160 »
20 — Campina da Idanha (2a parte) 5.490 »
106.000 »
Para além das obras constantes deste Plano, de que foram seleccionados aproveitamen-
tos para entrarem em construção, há que considerar ainda as obras do Vale do Liz (2.145 ha.)
e as dos Campos do Alvor (1.820 ha.) simultaneamente empreendidas.
Em 1957, quando foi apresentado o Plana de Valorização do Alentejo — rega de
170.000 hectares, estavam concluídas ou em curso de construção as seguintes obras:

Paul de Magos 534 Ha.


Paul de Cela 454 »
Campos de Loures 737 »
Campos de Burgães ] 68 »
Vale do Sado (curso inferior) 9.613 »
Campos de Alvega 422 »
Campina da Idanha 8.090 »
Veiga de Chaves 1.049 »
Campinas de Silves, Portimão e Lagoa 1.900 »
Vale de Campilhas 1.935 »
Vale do Sorraia e Lezíria de Vila Franca de Xira 26.634 »
Vale do Liz 2.145 »
Campos do Alvor 1.820
55.501 »
O Plano de Rega do Alentejo previa:

Aproveitamento do Rio Mira 14.000 Ha.


Aproveitamento do Rio Ardila 15.000 »
Sistema do Baixo Alentejo, Ia fase, Roxo 81.200 »
Aproveitamento do Caia 8.900 »
Sistema do Alto Alentejo, Ia fase, Crato-Alter 42.600 »

Nos domínios da realidade, ou da utopia por se considerar a rega obra de barragem e


canais, sem estruturação agrária capaz de fixar o empenhamento camponês, os estudos e reco-
nhecimentos efectuados na altura admitiam que as obras de rega a realizar pelo Estado, abran-
giam a área de 320.000 hectares, incluindo o Plano de rega do Alentejo. Por origem da água a
utilizar a descriminação era a seguinte:

463
Rios Vez e Castro Laboreiro 4.000 Ha.
Rio Lima 4.700 »
Rio Cávado 10.000 »
Rio Vouga 18.000 »
Rio Sabor 2.400 »
RioCoa 6.000 »
Outros afluentes do Douro 3.200 »
Rio Mondego 50.000 »
Alto Zêzere e Alto Mondego 5.000 »
Rios Tornada e Alfeizerão 1.000 »
Rio Tejo 75.000 »
Cabeceiras do Sorraia 13.000 »
Rio Caia 8.900 »
RioArdila 15.000 »
Rio Guadiana 70.000 »
Rio Sado e afluentes 12.000 »
Rio Mira 14.000 »
Ribeiras de Odeleite, Foupana, Beliche, Almargem e Oudelouca. . 7.400 »
320.000 »

Esta avaliação prospectiva não contava com os efeitos da poluição das águas que, na
altura, se vislumbravam e que vieram materializar hipóteses de carências, porque fortes me-
didas técnicas não forem tomadas. Assinalava, porém, o que recebia o nome de «paradoxo»
do território português: «as reduzidas possibilidades de alargamento dos regadios são devi-
das à circunstância de faltar a terra em condições de ser irrigada nas regiões em que abun-
dam os recursos hidráulicos, e de estes serem escassos onde sobram as terras». Devemos re-
conhecer que esta situação nada tem de «paradoxal», resultando das condições naturais do
armazenamento de água em dispositivos orográficos e geológicos. Se os Técnicos das
«obras públicas» se impressionaram com o facto desesperante de a água nem sempre se en-
contrar ao pé do solo que se idealizava, tal situação foi bem sentida pelos Camponeses da
revolução do Milho». Ao procurarem instalar o regadio viram-se compelidos a construir so-
calcos e a nivelar as terras, a abrir regos e levadas para transporte da água desde os seus ma-
nanciais, à terra «construída» e fertilizada por adubações copiosas susceptíveis de sustenta-
rem as exigências deste cereal esgotante. Sem esta obra monumental toda a água que fosse
mobilizada nos locais possíveis resultaria, por si só, inútil, por ausência de acção comple-
mentar de outros factores. Ao contrário do que sempre foi a essência do regadio tradicional,
baseado na forte conjugação da água, do solo, da fertilização e do trabalho humano, o drama
da recente «obra pública» consistiu na falta de acerto entre a Barragem ou Albufeira, o canal
e a área a beneficiar, em relação ao qual acerto se não executava o complemento estrutural
e técnico agrário, isto é, humano ou social indispensável para que o sequeiro se transformas-
se em regadio.

464
Os projectos de rega de iniciativa pública

Por tudo o que se referiu talvez se entenda que a «revolução do Milho», no Noroeste e
nas Beiras, foi a alavanca da implantação de um vastíssimo regadio camponês, suporte da «ex-
plosão demográfica». Entretanto, na alvorada do século XX, no Sul, os portugueses ainda so-
friam o estigma dos matagais e charnecas do latifúndio, de lezírias periodicamente inundadas
por águas sem governo, pauis, charcos, veigas submetidas a rotinas milenárias, possuídas em
grande por donos ausentes.
Foi neste quadro que se desenvolveram ideias, estudos e projectos de hidráulica agríco-
la de que se não via outra forma de execução que não fosse a iniciativa do Estado. Com o pro-
pósito de aprofundar razões e factos que teriam acompanhado o desenvolvimento das obras
executadas, vamos basear-nos em dados reunidos por Fernando de Oliveira Baptista que orga-
nizou uma compilação de informações de diferentes fontes no seu Trabalho intitulado «Política
Agrícola (anos trinta - 1974)». Tentamos assim avaliar sumariamente resultados da iniciativa
do Estado, agrupando as obras concluídas e em exploração da forma que nos parece mais ade-
quada.

A — Obras cuja finalidade se encontra submetida a novas situações envolventes:

Campos de Loures
A Lezíria de Loures que desde a ocupação árabe se encontra entregue a intenso apro-
veitamento hortícola «encontra-se numa fase crítica de sobrevivência», segundo relatório ofi-
cial de 1975, em virtude da «falta de revestimento florestal na sua bacia hidrográfica» do «ex-
traordinário aumento dos caudais afluídos à área integrada na obra, dada a intensa urbanização
porque passa grande parte dos terrenos circundantes». Em vez de revestimento florestal a obra
debate-se com a Floresta de Cimento Armado, e com o «desaparecimento das bacias de amor-
tização das cheias, nomeadamente Odivelas, Olival Basto, Póvoa de Santo Adrião, etc.» e ain-
da por se agravar o problema das «cotas dos terrenos bastante baixas em relação aos leitos das
linhas de água». Nenhuma solução se vislumbra para a gravidade das ameaças que impendem
sobre os Campos de Loures. A Lezíria está em vias de perder-se, entregue a uma ocupação sel-
vagem, caótica.

Campos de Burgães
A área beneficiada de 168 Ha. encontra-se na vizinhança da Vila de Vale de Cambra pe-
lo que, em parte, já está ocupada pelo parque desportivo e pelo recinto da feira de gado. Segun-
do relatório recente «a urbanização desenfreada e desordenada que se está a verificar na peri-
feria da Vila de Vale de Cambra é feita em prejuízo de uma área agrícola». Um problema como
este é hoje frequente em vários regadios privados. Não se lhe furta o regadio do Estado.

Veiga de Chaves
Com 1.040 Ha. beneficiados, a área regada corresponde ao seguinte aproveitamento, em

465
hectares:

Área regada Batata Milho Horta Feijão Forragens


1949-58 827 498 141 59 49 70
1959-68 840 489 201 29 16 84
1969-75 918 436 230 33 8 87

A disponibilidade de água para rega constitui problema, afirmando-se num relatório re-
cente que «a situação geográfica do aproveitamento, junto da fronteira com a Espanha, coloca-
-o na posição de só dispor de caudais que transpõem a fronteira no período das regas. Não dis-
pondo a obra de uma albufeira com águas represadas, o seu açude derivador possibilita apenas
a regularização diária dos caudais para evitar e rega durante a noite. Por outro lado em Espanha
crescem as bombagens do Tâmega, mobilizando apreciáveis caudais. Assim a intensificação
das bombagens vai acentuando e ampliando o período de escassez de água». E verdadeiramen-
te sombrio o futuro da Veiga de Chaves.

B — Obras realizadas sobre estruturas agrárias de pequena e média propriedade cam-


ponesa:

Paul de Cela
A obra entrou em exploração em 1940 e, quanto à utilização, evoluiu da forma seguinte,
em hectares:

Ar. Regada Milho Repolho Forragens Feijão Arroz Tomate Vinha Pomar
1941-43 173 126 — x x — — 26
1948-50 293 178 39 x x 1 — 28
1951-55 293 122 39 15 8 62 — 28
1956-60 267 116 63 23 10 20 — 27
1961-65 321 97 121 30 25 — 4 24 1
1966-70 369 67 152 34 26 — 23 15 13
1971-73 366 37 147 52 33 — 23 7 42

A utilização afigura-se normal, notando-se a redução da cultura do milho, o que se não


deve à obra, compensado por um crescimento da utilização hortícola. O arroz apresenta-se co-
mo cultura talvez ensaiada e logo posta de parte. A implantação de pomar tem um acréscimo
recente.

Campos de Alvega
O esquema de utilização dos 335 Ha. de área beneficiada tem sido o seguinte, expresso
em hectares:

Área regada Milho Horta Forragem


1939-40 262 235 25

466
1958-59 330 239 53 —
1961-65 327 209 60 34
1966-69 305 190 38 37
1970-73 260 128 30 52
Depois de ter sido alcançada praticamente a plena utilização em 1958-59 a área rega-
da diminuiu, «por falta de mão-de-obra» em, período recente. O uso para forragem aumen-
tou em detrimento da cultura de milho que se manteve, no entanto, mais do que noutros re-
gadios.

Campos do Lis

As obras do Lis visaram como objectivo a área beneficiada de 2.145 Ha. No entanto as
dificuldades técnicas de obtenção de caudais suficientes foram-se acumulando, de forma que
a área regada tem sido a seguinte, em hectares:

Área regada Milho Arroz Tomate


1955-57 1.784 1.455 244 —
1959-64 1.316 1.231 237 —
1965-69 1.558 935 147 311
1970-73 1.413 720 112 268

A redução da cultura do milho constitui realidade e a do arroz parece irreversível pela


carência de caudais bastantes. A introdução da cultura do tomate resulta da presença de unida-
de industrial agrícola que, aliás, não obteve implantação satisfatória.

Campos de Silves, Lagoa e Portimão

O objectivo previsto era a rega de 1.900 Ha. O aproveitamento conduziu aos seguintes
resultados expressos em hectares:

Área regada Arroz Milho Horta Pomar


1959-64 1.508 331 337 142 621
1965-69 1.503 255 138 36 887
1970-73 1.598 275 70 39 1.080

Os objectivos parecem alcançados sendo de notar o acréscimo de cultura de pomar


o que está de acordo com as vocações regionais. A cultura do arroz não estava prevista e o
regadio não alcançou toda a área beneficiada porque as vinhas velhas não foram arranca-
das pelo interesse económico mantido pelas entregas de uvas à Adega Cooperativa de La-
goa.

Sapais do Alvor

A área beneficiada prevista era de 1.800 Ha., apresentando a área regada os seguintes
valores em hectares:

467
Área Regada Arroz Milho Horta Forragem Pomar Relva e Pov.
Florestal
1962-65 1.239 411 589 38 40 117
1966-69 1.088 152 358 51 99 203 124
1970-73 1.044 130 182 48 176 309 138

A utilização apresenta-se muito diversificada, com arroz — cultura não prevista no pro-
jecto — e milho em declínio, aumentando o pomar e mesmo a relva com povoamento flores-
tal. Segundo relatórios oficiais «os caudais da ribeira de Odeaxere, em ano médio, são inferio-
res às necessidades para a rega da área beneficiada». Pensa-se melhorar a rega com «águas de
outras origens» para que deixe de haver «falta de água em grande número de anos».

C — Obras realizadas sobre estruturas agrárias de propriedade latifundiária beirã:

Campina da Idanha
Para além das previsões utópicas, a área beneficiada que oficialmente se considerou te-
ria sido a de 8.000 Ha. O regadio implantou-se rapidamente na parcela de estrutura agrária
camponesa do Ladoeiro. Na parte dominante, latifundiária, deu-se um arranque destruidor que
logo estagnou. Os números globais, expressos em hectares são os seguintes:

Área Regada Milho Tomate Forragem


1956-59 3.904 3.257 2 159
1960-64 3.955 2.785 4 436
1965-69 3.629 1.415 286 797
1970-73 2.887 565 364 873

Do quadro anterior se deduz o que foi na Idanha, por iniciativa de rendeiros «capitalis-
tas» e proprietários inconscientes, na parte latifundiária, a rapina da fertilidade do solo em re-
pouso, pela cultura do milho que rapidamente esgotou a reserva existente. Se pretendermos
identificar o sucedido com a alvorada no sítio de tardia «revolução do Milho», devemos notar
que estavam ausentes camponeses, que noutras regiões e noutras épocas estiveram presentes a
garantir as técnicas de fertilização dos solos. A frustração deu lugar a tentativas de introdução
da cultura do tomate e ao alargamento da utilização que recebe o rótulo de forragens.

D — Obras realizadas sobre estruturas agrárias de propriedade latifundiária ribatejana:

Paul de Magos
Trata-se, como já se referiu, da primeira obra de hidráulica agrícola promovida pela
Junta Autónoma de Obras de Hidráulica Agrícola em 1933. A área beneficiada era de 535 Ha.
dos quais 80 por cento faziam parte de um latifúndio ribatejano, a Companhia das Lezírias.
Embora no projecto se tenha previsto a instalação de estruturas camponesas, a monocultura do

468
arroz foi o destino da obra.

Vale do Sorraia
A maior das obras de fomento hidroagrícola dominando a área de 15.365 Ha. apresenta
a seguinte evolução de aproveitamento, expressa em hectares:

Área Regada Arroz Tomate Milho


1960-64 7.682 5.344 679 576
1965-69 10.222 5.400 2.659 614
1970-73 12.318 6.843 3.017 565

A região foi equipada com complexo agro-industrial e evoluiu segundo dinâmica pró-
pria no sentido de exploração baseada em culturas de interesse capitalista, como o arroz e o to-
mate. Deverá admitir-se que uma relativa eficácia económica para as estruturas empresariais
existentes, coincide com escasso efeito social que manteve generalizadas situações de assala-
riamento, no enquadramento tradicional. A propriedade latifundiária foi mantida e a mais-valia
da obra foi locupletada pelos proprietários das áreas beneficiadas.

Lezíria de Vila Franca de Xira


Até cerca de 1959, as obras na Lezíria tiveram objectivos predominantemente de defesa
e de enxugo. No entanto «devido à entrada em exploração de grandes albufeiras criadas na ba-
cia do Tejo e seus afluentes e às consequentes regularizações de caudais e diminuição de salini-
dade das águas daquele rio» a rega desenvolveu-se por captação e elevação de água nas valas
de enxugo. As obras empreendidas beneficiaram 10.880 Ha. de grande propriedade com pre-
domínio da Companhia das Lezírias. Em 1973, a área regada era de 5.000 Ha. quase exclusiva-
mente de arroz, com algum melão e tomate de arrendamentos sazonais.

E — Obras realizadas sobre estruturas agrárias de propriedade latifundiária alenteja-


na:

Vale do Sado
Como área beneficiada era prevista a rega de 9.613 Ha. No entanto, nesta área estavam
incluídos 3.442 Ha de sapais que nunca foram adaptados ao regadio. Nestas circunstâncias, a
área regada evoluiu da forma seguinte, em hectares:

Área Regada Arroz Tomate Outras culturas


1950-54 3.618 3.440 — 178
1955-59 4.432 4.142 — 290
1960-64 4.485 4.191 110 184
1965-69 5.084 4.442 248 394
1970-73 5.371 4.818 229 324

O destino desta obra foi, esmagadoramente, a cultura do arroz, de economia competiti-

469
va, mas de escassa influência social na região. A estrutura agrária manteve-se, tendo sido intro-
duzida mais recentemente a cultura do tomate que, todavia, não acusa grande expansão. A dis-
ponibilidade de caudais tem-se mantido satisfatoriamente.

Vales de Campilhas e de S. Domingos


A área beneficiada por esta obra é de 1935 Ha. O aproveitamento tem sido o seguinte,
em hectares:
Área Regada Arroz Tomate Milho
1955-59 1.090 904 2 151
1960-64 1.455 1.140 227 55
1965-69 944 569 300 20
1970-73 1.231 882 257 49

O destino desta obra foi também o arroz, embora esta cultura, pelas suas necessidades
de água, determinasse problemas de disponibilidade de caudais de rega. A cultura do tomate
também se instalou e a do milho decaiu por não poder «garantir maiores lucros», segundo rela-
tórios de serviços oficiais «observou-se o aumento das características hidromórficas da várzea,
agravadas pela expansão da cultura do arroz». E, assim, «ao fim de poucos anos de cultura do
arroz a terra encontra-se degradada devido à má drenagem e à salinização, o que pela repetição
a torna imprópria para a cultura». Relativamente ao tomate afirma-se que «as sucessões inin-
terruptas sobre as mesmas terras tornam-nas inviáveis para a cultura devido às infestações e à
degradação da estrutura do solo».

F — Obras da primeira fase do Plano de rega do Alentejo:

Divor
A área beneficiada totaliza 488 Ha. A área regada, em hectares, evoluiu da forma se-
guinte:

Área Regada Arroz Tomate Forragem Outras culturas


1965 117 59 29 29
1966-69 396 297 32 9 58
1970-73 335 294 20 12 10

Esta obra constitui uma «antecipação da execução de um elemento da obra do sistema


de rega do bloco do Alto Alentejo. Os caudais armazenados que não podem ainda ser corrigi-
dos com a integração referida, são partilhados pela rega com o abastecimento de água à cidade
de Évora, a Arraiolos e a outras povoações». Como o regadio passou a ser monocultural e ba-
seado no arroz, cultura exigente quanto a caudais, não pôde ser mais alargado.

Caia
A área beneficiada é de 7.400 Ha. O aproveitamento apresenta a seguinte evolução, ex-

470
pressa em hectares:

Área Regada Arroz Tomate


1969 4.450 907 2.440
1970 4.150 1.724 1.360
1971 4.349 1.745 1.614
1972 4.824 1.734 1.843
1973 5.277 1.569 2.274

Embora em cerca de 4 Ha beneficiados se encontrem numerosas courelas dos Foros da


Godinha, com cultura hortícola intensiva, o restante, de propriedade latifundiária evoluiu niti-
damente no sentido da exploração capitalista, proletarizadora do trabalho rural, neutralizando
a esperança que, em certa fase, foi depositada nesta obra.

Roxo
Em primeira fase esta obra beneficiou, a partir da albufeira do Roxo, 4.960 Ha. Em se-
gunda fase, com água bombeada do Alqueva, se vier a ser construída esta albufeira, a área be-
neficiada alcançaria 12.000 Ha. O aproveitamento desta obra, de propriedade nitidamente lati-
fundiária, evoluiu em total contradição com as previsões do projecto, no qual se chegava mes-
mo, com grande ingenuidade, a prever a entrada tardia, mas triunfal, da «revolução do Milho»:

Área Regada Arroz Tomate Milho Culturas diversas


1969 1.966 469 1.359 107 31
1970 2.411 1.208 1.013 113 77
1971 3.099 1.970 962 78 89
1972 2.598 1.662 827 46 63
1973 1.703 148 1.429 44 82

Estes escassos resultados são consequência da instalação da cultura do arroz que agra-
vou a falta de disponibilidade de água. Num relatório oficial pode ler-se «a estagnação econó-
mica da Obra de Rega do Roxo resulta fundamentalmente da falta de água para rega», o que
corresponde a uma visão parcial do problema.

Mira
Este aproveitamento é um dos mais importantes em extensão até hoje construídos e o
«mais complexo» da primeira fase do Plano de Rega do Alentejo, prevendo uma área benefi-
ciada de 12.000 Ha. Expressa em hectares, a evolução da área regada tem sido a seguinte:

Área Regada Milho Arroz Tomate


1970 1.821 736 667 207
1971 2.987 986 1.287 104
1972 3.543 1.459 1.236 147
1973 3.021 1.120 996 167
A obra construída sobre solos arenosos com escasso fundo de fertilidade, repartidos se-

471
gundo estrutura fundiária de predominante latifúndio, não encontrou naturalmente resposta,
senão na parte reduzida das pequenas e médias propriedades, que expandiram a cultura do mi-
lho. O «pequeno fundo de fertilidade» e outras limitações do solo e clima, não permitiram se-
quer a expansão de culturas de especulação capitalista, como o arroz e o tomate. E extrema-
mente sombria a perspectiva desta obra, entregue a si própria.

Alto Sado
Este aproveitamento que entrou em exploração em 1972, prevendo a rega de 3.713 Ha.
revelava a seguinte tendência de aproveitamento, expressa em hectares:

Área Regada Arroz Tomate


1973 1.733 481 1.111

O carácter recente do aproveitamento não permite qualquer comentário que confirme a


escolha que parece ter sido feita pela estrutura agrária latifundiária dominante, das culturas do
arroz e do tomate, contra as habituais previsões do projecto.

Odivelas
Esta obra faz parte do Sistema do Baixo Alentejo do Plano de Rega do Alentejo e prevê
três fases: a primeira de 3.800 hectares beneficiados com a albufeira de Odivelas, a segunda,
que alcança os 7.300 hectares com o reforço da albufeira do Alvito e a terceira, de 12.000 hec-
tares, dependente de caudais bombeados do Alqueva. A barragem de Odivelas somente ficou
concluída em 1973 pelo que se não dispõe de dados de aproveitamento.
Em resultado da análise a que se procedeu pode concluir-se que as obras de rega promo-
vidas com destino a servirem estruturas agrárias camponesas não apresentam dificuldades de
aproveitamento. Pelo contrário, sempre que se trata de obras destinadas a regar latifúndios on-
de as culturas de sequeiro constituem a tradição, só pode esperar-se que a rega se pratique des-
de que o latifúndio seja parcelado e as parcelas entregues a colonos que pratiquem a arte de
regar.
No caso português a legislação básica previa a expropriação do latifúndio para coloni-
zação e rega. Todavia essa colonização nunca se praticou, generalizando-se a ideia de que bas-
tava promover a obra de construção de barragens e canais para que a rega surgisse exponta-
neamente, em explorações agrícolas bem dimensionadas e bem geridas por populações que se
instalavam sem se saber quando e como. Alguns Técnicos aceitaram a ideia falsa de que «a
água divide» em resultado de encontraram coincidência entre áreas regadas tradicionais e em-
presas camponesas em actividade, sem terem em conta que o regadio antigo da «revolução do
Milho» se instalou sempre que. em face de potencialidades efectivas de rega, a empresa cam-
ponesa previamente constituída, se dispôs a mobilizar a água, o estrume, as sementes e o traba-
lho, para regar. Pareceres agronómicos sempre demonstraram que os Planos de rega portugue-
ses ficaram frustrados porque faltou a instalação de camponeses no latifúndio pela via da colo-
nização. Assim a rega era apresentada, com o apoio e a concordância dos grupos de pressão
agrários, como processo expontâneo que a presença da água nos canais desencadeava, compe-
tindo esse milagre a feitiçaria de Agrónomos, o que era inadequado, como é fácil ver.

472
Nunca foi consentida a Colonização em áreas beneficiadas pelas Obras de Fomento Hi-
droagrícola. Logo que ficou concluída a primeira grande Obra, a da Idanha ambicionada a ní-
vel regional como alavanca de progresso, o bloqueio da aplicação das leis começou. As coure-
las do Ladoeiro festejaram a água, regando, mas nenhum Colono foi instalado no latifúndio a
regar. A rapina de grandes rendeiros esgotou, com milho regado, os solos de fertilidade acumu-
lada. As rendas foram arrecadadas e nada se transformou. Depois, quando os responsáveis, em
inaugurações festivas de barragens a que eram dados nomes, ordenavam, «a regar, a regar» as
águas corriam para arrozais não previstos nos Projectos, onde os ranchos migratórios se junta-
vam e, depois, para o tomate de seareiros de arribação, flutuantes e incertos, que logo se afas-
tavam, perante os estragos da monocultura e da implantação das pragas. Nenhum Colono, ne-
nhuma Aldeia, nenhuma Comunidade humana renovada, nasceu até agora nos regadios do Sul.
E tais regadios representavam o investimento de vultuosos recursos nacionais para que contri-
buíram todos os portugueses. Muitos proprietários venderam terras beneficiadas, locupletan-
do-se, sem iniciativa, com mais-valias, outros cobraram rendas acrescidas, quando o arroz pô-
de ser instalado. Nada do que foi o sonho, a esperança, o projecto de interesse social de Enge-
nheiros da Hidráulica foi alcançado. Todavia não podem ser acusados de simples projectistas
e construtores de barragens e canais, como temos ouvido insinuar. Podemos testemunhar, ao
fim de tempo que não perdoa, quanto em alguns havia de ideal sincero. Não sabiam é certo,
na altura, avaliar a força do egoísmo e do interesse que se lhes opunha, o que os absolve do
que deixaram escrito em muitos documentos.

Colonização Interna

Conforme acentuámos em diversas passagens, a colonização tem antiquíssimas tradi-


ções em todo o Mundo. Registámos, por exemplo, a implantação de colónias fenícias no litoral
do território hoje português. Mas não deve perder-se de vista que, paralelamente, a ocupação
praticada em massa por invasores, não conduzia à submissão de populações autóctones, como
também à instalação de novos povoadores que se aculturavam. Talvez, somente nos casos em
que os núcleos instalados em territórios de escassa cobertura demográfica obedeciam a forte
espírito comunitário, a ocupação assumia a forma de colónia, mantendo analogias com o berço
original. Assim, depois da formação dos Impérios mediterrânicos, ultrapassadas as avassala-
doras migrações de bárbaros, a penetração de que a Península foi objecto por parte de povos
semitas, seguidos de conquistadores islamizados, deu origem a núcleos coloniais típicos, para
além de populações profundamente miscigenizadas. A reconquista cristã, ao progredir no sen-
tido do Sul, praticou a consolidão de Reinos, por meio de colónias de populações instaladas.
Depois da independência do Reino de Portugal, a comunidade portuguesa lançou-se nos
Descobrimentos e, por sua vez, estabeleceu colónias, não somente em Ilhas atlânticas desertas,
como também em diferentes locais povoados dos velhos continentes africano e asiático, e nos
novos continentes contactados pelas navegações. Os Reis de Portugal celebravam as Desco-
bertas acumulando títulos de Conquista (os Algarves de aquém e além-mar em África, etc.) en-
quanto obrigavam outros povos à submissão da vassalagem. Mas, a designação de Colónia, no
sentido actual, ou de Colónias, aplicada a territórios ultramarinos submetidos, afigura-se con-

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ceito do século XIX, consolidado à mesa da Conferência de Berlim. Antes, os territórios sub-
metidos ao Rei de Portugal apresentavam a feição de Vice-Reinos, Praças Fortes, Capitanias,
encontrando-se, no entanto, necessariamente colonizados pela presença activa do ocupante.
Nestas circunstâncias o facto universal da colonização, encontra-se na raiz do povoamento do
território continental português, mas depois foi largamente praticado pelos portugueses em ter-
ritórios exteriores ou externos, muitos dos quais descobertos pelos portugueses. Assim se ex-
plica a origem da designação de Colonização Interna, aplicada nos séculos XIX e XX a inicia-
tivas de povoamento territorial praticadas no território continental português.
Com a implantação do capitalismo agrário, os latifundiários do Sul, instalaram, confor-
me se referiu, populações do Norte em pequenas parcelas agrárias, para que se transformassem
em assalariados das empresas que promoviam. Demonstrámos que durante o período liberal
ficaram frustradas todas as tentativas de reforma estrutural capaz de melhorar, pela coloniza-
ção a condição camponesa. Acontece, porém, que justamente no termo da 1 .* República, em
Fevereiro de 1926, portanto em vésperas do «28 de Maio», os Decretos n.o 10.552 e 10.553
preceituavam a divisão em glebas dos baldios susceptíveis de cultura arvense ou arborícola e
aproveitados em logradouro comum «com o fim de elevar ao proprietariado da terra pelo arrei-
gamento rural, famílias de cavadores pobres».
Em 1926, a Junta de Freguesia dos Milagres, do Concelho de Leiria, requereu que a
«charneca dos Milagres» sua propriedade baldia, fosse entregue aos Serviços de Baldios e In-
cultos da Direcção-Geral do Fomento Agrícola do Ministério da Agricultura «para estudo, di-
visão e aproveitamento».
O Engenheiro Agrónomo Mário da Cunha Fortes elaborou o ante-projecto de coloniza-
ção da charneca dos Milagres concluindo que «2,5 a 3 hectares da melhor terra da charneca
bastariam à sustentação de uma família de cultivadores sempre que, comulativamente com o
produto da aplicação do trabalho na própria gleba, auferisse o que lhe faltava no produto do
salário em terra alheia». Parece verificar-se, nestas circunstâncias, que o critério do Serviço de
Baldios e Incultos, não diferia do que fora praticado por José Maria dos Santos e outros latifun-
diários, nas chamadas colonizações expontâneas.
No entanto, a leitura atenta dos trabalhos, indiscutivelmente pioneiros de Cunha Fortes,
mostra que este Técnico, depois de 1932, formulou «o plano de instalação duma colónia — de
tipo de individuação para cooperação, tendo ficado assente então que noutros lugares do país
se ensaiassem os tipos de colonização partindo da cooperação para a individuação e um de
colectivismo agrário ou de exploração colectiva». Tem particular interesse a afirmação do Au-
tor, proferida em 1932, de que «urgia ensaiar, criar e produzir em conformidade com os mais
recentes princípios de sociologia rural para que, quando tocasse o país qualquer reforma agrá-
ria, se aquilatasse do valor e do alcance dos sistemas individuais, colectivos ou mistos».
A recomendação profética de Cunha Fortes não veio a concretizar-se e a Colónia dos
Milagres, depois de dez anos de penosa existência, acabou por ser entregue, para reorganiza-
ção, à Junta de Colonização Interna, criada em 1936. Deve reter-se que o projecto de reorgani-
zação da Colónia dos Milagres apresentado pela Junta optou pelo dimensionamento de unida-
des económicas capazes de «bastar às necessidades de uma família rural, que nelas se empre-
gue exclusivamente e que seja composta por quatro unidades de consumo e duas de trabalho».

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Entretanto o novo regime político havia lançado, como se referiu, a Política de Hidráuli-
ca e a Lei n.° 1.914 de 1935 permitia a expropriação, para colonização, de áreas beneficiadas
«sempre que as condições económicas e sociais o aconselhassem». Tendo em conta que os pro-
pósitos de «colonização interna» antes formulados em diferentes circunstâncias visaram terre-
nos incultos e baldios, a Lei de 1935 veio legitimar a intervenção em novos espaços de pro-
priedade privada. Com as Obras de Fomento Hidroagrícola passavam a ser visadas as áreas
beneficiadas por iniciativa e encargo do Estado.
Teria sido o impulso de uma tradição reformista agrária, mas talvez mais o gravíssimo
condicionalismo das crises dos anos 30 que conduziram à criação da Junta de Colonização In-
terna em 1936. Embora a Junta tenha adoptado como divisa a citação de Severim de Faria «por
meio das colónias teve a povoação do Reino princípio», não ficou livre das críticas de muitos
comentadores que a identificam com modas mussolinianas na política agrária. Entre outras
atribuições deste Organismo ficou a competir-lhe a instalação de casais agrícolas em «terre-
nos beneficiados pelas obras de hidráulica agrícola» promovidas pela Junta Autónoma das
Obras de Hidráulica Agrícola, e também em «terrenos baldios do Estado e dos corpos adminis-
trativos, tendo em atenção a natureza dos terrenos, a sua extensão e as regalias dos povos no
que respeita à sua fruição» e ainda terrenos que fossem «propriedade do Estado, ou que este
viesse a adquirir com o objectivo da colonização interna».
Como vimos, a Junta foi herdeira da «Colónia dos Milagres» instalada pela Divisão de
Baldios e Incultos do Ministério da Agricultura nessa altura extinto ou integrado no Ministério
da Economia, e de um «estudo agronómico, económico e social do baldio do Sabugal», promo-
vido pela Direcção-Geral de Acção Social Agrária, também extinta, do mesmo Ministério da
Agricultura.
Entretanto, a Junta de Colonização Interna, apresentou em 1937, o Plano de Acção de
que constava, em resumo:
Reconhecimento e reserva de terrenos baldios.
Projecto de aproveitamento do baldio do Sabugal.
Reorganização da Colónia dos Milagres.
Estudo das principais colonizações expontâneas.

Foi empreendido, logo de início, o Reconhecimento dos Baldios do Continente, ficando


esclarecida uma das temáticas que mais ocuparam os Economistas do século XIX, ligada à
questão dos incultos e ao conhecimento efectivo da extensão da propriedade comunitária, cujo
cômputo diversas vezes tinha sido ordenado, sem êxito. Em 1938 os baldios não reservados
pela Junta para efeitos de colonização deram origem ao Plano de Povoamento Florestal, logo
iniciado. Em resultado de trabalhos de campo extremamente árduos, a Junta localizou, cerca
de 400.000 hectares de baldios, divididos em 7.860 parcelas. Todos os Distritos dispunham de
baldios, mas os patrimónios mais vastos situavam-se nos Distritos de Viana do Castelo (27%
da superfície do Distrito), Vila Real (25%), Viseu (15%), Coimbra (9%), Leiria (6%) e Guarda
(5%). Quanto aos restantes Distritos os baldios apresentavam área diminuta, particularmente
os do Sul. Deste resíduo de tempos passados, a Junta reservou para futura intervenção 80.000
hectares nos quais foi reconhecido «interesse agrícola», sendo o restante considerado de «inte-

475
resse florestal».
No que se refere a terrenos do Estado para colonizar, a Junta não deparava com efecti-
vas possibilidades. Acontecia que a República era imensamente pobre, talvez tanto como El-
-Rei D. João II que se lamentava das liberalidades de seu Pai D. Afonso V. Como o Rei dos
Descobrimentos, o Estado republicano tinha as estradas, as praias do litoral e as fortalezas.
Mas as muralhas dos castelos estavam em ruínas, abandonadas, e nelas encaixadas as constru-
ções clandestinas. Mais do que o Rei, a República tinha os quartéis e os hospitais instalados
em grandes imóveis que haviam sido bens da Igreja, algumas matas monásticas, como a do
Buçaco, antigos Palácios Reais e alguns Museus. O Fisco arrecadava, para pôr em praça, espó-
lios abandonados quando não havia herdeiros e, eventualmente, legados de beneméritos como
a Herdade de Pegões. Foi justamente esta Herdade que, integrada no Património, foi cedida à
Junta de Colonização Interna para efeitos de colonização. Mas a Herdade tinha a sua história.
Com a República foi iniciada a construção de uma grande Maternidade em Lisboa a que seria
dado o nome de Alfredo Costa. Dificuldades financeiras vieram suspender a construção e já
nos anos 20, Rovisco Paes. provavelmente impressionado com o abandono da obra, procurou
os Médicos que apoiavam o empreendimento e, timidamente, pedindo sigilo, entregou um che-
que solicitando que promovessem o necessário para que a assistência hospitalar fosse melhora-
da. A Maternidade foi concluída com novos recursos postos à sua disposição e a doação de Ro-
visco Paes, que incluía a Herdade de Pegões, mais tarde integrada no Património do Estado,
foi ainda aplicada na construção da Leprosaria que veio a receber o nome do Benemérito.
Foi por este motivo que o Estado passou a dispor de uma propriedade rústica que foi
destinada a colonização. A Herdade foi objecto de um projecto de parcelamento e colonização
logo executado, no coração da mancha pliocénica onde ainda persistem os maiores latifúndios
portugueses, representados pelas Herdades de Rio Frio, de Palma e da Comporta.
Com a finalidade de se documentar para elaboração de planos de actividade e de projec-
tos, a Junta de Colonização Interna empreendeu o estudo das principais colonizações expontâ-
neas levadas a termo no Sul. Conforme se referiu noutra passagem do presente trabalho, no
fim do século XIX e início do século XX, seguindo na esteira de José Maria dos Santos que
instalou em courelas demarcadas na Herdade de Rio Frio os primeiros colonos rendeiros, vá-
rios proprietários procederam a iniciativas idênticas ou, simplesmente, parcelaram Herdades
para obterem maior vantagem na venda de parcelas. Assim, foram estudados os casos de colo-
nização de Herdades promovida por meio de alienação em courelas, aforamento e arrendamen-
to a longo prazo. Merece registo a série de estudos empreendidos: H. da Torre, na Vidigueira
e H. da Craveira do Norte, H. da Agualva de Cima e Pinheiro Ramudo, H. da Afeiteira, H. do
Monte Branco, H. da Agualva de Cima e Pinheiro Ramudo. H. do Forninho, H. das Tapadas
de Cima, Foros do Infante, Foros da Lamegaça, do Lau e do Poceirão, Lagoa do Calvo, H. da
Asseiceira e H. da Fonte da Barreira.
Foi com base nas conclusões destes inquéritos que foi organizado o projecto de coloni-
zação da Herdade de Pegões, única obra realizada em terrenos do Estado, em 4.700 hectares,
dos quais 4.283 de capacidade agrícola e 407 de aproveitamento florestal, foram instalados
205 colonos em casais com a área média de 18 hectares, dotados com habitação e instalações
agrícolas, obras de rega e vias de comunicação. Os colonos formaram comunidade em torno

476
de centro social bem equipado, que deu origem a Freguesia nova que escolheu como Patrono
Santo Isidro.
Em terrenos baldios foram instalados 160 colonos assim distribuídos: 12 no Baldio dos
Milagres, em Leiria; 36 na Colónia de Martin Rei, no Sabugal, 57 nos baldios de Boticas e
Montalegre; 24 no Alvão, em Vila Pouca de Aguiar; 10 na Boalhosa, em Paredes de Coura; 22
na Gafanha, em Ílhavo. A área de baldios utilizada para efeitos de colonização foi de 4.355
hectares. Cerca de 9.000 hectares de baldios foram divididos em glebas.
Na política de colonização interna, a escolha de colonos constituiu problema dos mais
complexos. João de Castro Caldas estudou o «perfil do colono-tipo», seleccionado pela Junta
de 1936 a 1974. Concluiu poderem ser caracterizados três colonos-tipo. O primeiro correspon-
de ao período de 1940 a 1946, respeitando às Colónias dos Milagres, reorganizada pela Junta,
e de Martin Rei, no Sabugal. Os casais destas colónias foram concebidos para «bastar às neces-
sidades» da família, e os colonos provinham das freguesias vizinhas e dos estratos de assala-
riados ou pequenos rendeiros. Contou 39 colonos deste tipo. O segundo colono-tipo, com
maior representação, entrou para as colónias, de 1947 a 1962, «o seu perfil reflecte a indefini-
ção e o debate em torno da política de colonização interna e dos objectivos por ela visados. Se
acabou por triunfar a corrente que remete a instalação de casais agrícolas para terrenos baldios
e propriedades do Estado (deixando por expropriar as terras beneficiadas pelas obras de hi-
dráulica agrícola), o emergir de um projecto, que via na colonização interna um meio para a
reestruturação agrária imposta pelo crescimento industrial não deixou de imprimir as suas mar-
cas nos sucessivos reajustamentos verificados nas Colónias. É assim que ao longo de 15 anos
com avanços e recuos se vai procurando imprimir um perfil de empresários ao colono da
J.C.I.», afirma o Autor citado. E, depois, «o terceiro colono-tipo, este quase sem expressão nu-
mérica é o colono escolhido a partir de 1962. Logo a seguir a esta data se voltou a abandonar
qualquer tentativa de colonização nos perímetros de rega e. assim, o perfil do colono que pode-
ria ter saído do avanço do período anterior ficou apenas esboçado através de alguns filhos e
genros de outros colonos».
A execução dos planos de fomento hidroagrícola prosseguiu sem que fosse praticada
qualquer espécie de «reforma estrutural» nas áreas beneficiadas. Foi em 1952 que a Junta de
Colonização apresentou o «Projecto de Colonização dos Terrenos da Várzea do Ponsul» nos
latifúndios da Idanha. Propunha-se a expropriação para a constituição de 78 casais. Na Câmara
Corporativa a proposta sofreu a contestação que se baseou na «dificuldade de adaptação do tra-
balhador rural à condição de proprietário» e no facto de se considerar que a expropriação se
apresentava como um meio que «parece um tanto violento e contrário aos nossos costumes».
Uma das obras mais significativas da Junta — a colonização da Herdade de Pegões —
era um espinho na consciência dos agrários. Passavam de largo, na esperança de ver a iniciati-
va transformar-se em espectacular desastre, deixando ruína exemplar que o vento sepultaria
sob as areias pliocénicas. Na verdade, eram areias sem fim, onde ao longo de horizontes ondu-
lados, interrompidos por brejos e várzeas aluvionais, se haviam instalado os maiores latifún-
dios de Portugal. Na paisagem, o cenário do montado ou da estepe demarcada pela cultura ce-
realífera, surgia episodicamente truncado por raras manchas humanizadas, onde haviam sido
construídas casas e demarcadas courelas das «colonizações expontâneas» que o século XIX

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nos legara, onde a semente de assalariados se conservava para romper os matos das Herdades
sem fim. No centro desse «Plioceno» monótono e desertificado pela dimensão desmedida da
propriedade, Pegões surgia como tentativa insólita capaz de demonstrar que esse deserto se po-
deria transformar num País. Um dia, chegaram aos casais da Junta de Colonização Interna, os
colonos, apenas com a camisa sobre o tronco e as mulheres trazendo no ventre a promessa de
um filho. Historicamente, os Agrónomos que os receberam apresentavam a estatura dos Mon-
ges Cistercienses que, há muitos séculos, contemplaram a fuga de homisiados para o abrigo
dos seus Coutos a fim de que a agricultura oferecesse barreira à perseguição de todas as justi-
ças. Estes colonos traziam consigo a culpa de terem nascido pobres, no século XX, em terras
onde nada mais se oferecia do que a margem que se consente aos assalariados. Quando alente-
janos, tomavam a charrua, e rompiam o solo levando a leiva até à porta do casal, afogando tudo
em trigo. Se algarvios, faziam a horta ao pé do poço, mimosa e fresca. Sendo ribatejanos, ins-
talavam o pomar no brejo, para mais cedo virem as laranjas. Os minhotos e beirões, apresenta-
vam-se policulturais e voltados para a subsistência. Os agrários não podiam ter esperança de
assistir ao desastre do seu empenho. A agricultura e o tempo deram aos colonos de primeira
geração o impulso necessário para povoarem as escolas e percorrer os caminhos de novas
oportunidades de acesso. Perante o negrume da política agrária portuguesa frustrada, Pegões
ficou na esperança. Em seu redor, latifúndios, agarrados à Terra, lá estão, com segurança, a de-
nunciar todas as ironias da História.
A Junta de Colonização Interna, encurralada pelo conservantismo agrário, passou com
seu «staff» agronómico, a entrar nos domínios da utopia. O «Estudo das possibilidades de Co-
lonização das Zonas de Sequeiro do Sul» é o melhor exemplo que julgamos estar no pó dos
arquivos, se acaso não foi queimado. Tivemos a ventura de participar nesse estudo logo após
a conclusão do Curso. Como minhoto, vivemos a revelação do latifúndio alentejano. Batemos
todos os recantos do Alandroal, do Redondo, de Vila Viçosa, de Borba, de Portalegre, marcan-
do na carta as extremas das Herdades, assinalando as manchas onde Colonos pudessem viver
humanamente em Casais ou em Aldeias que se encontravam historicamente no plano divino
de um povoamento situado no porvir. Recordamo-nos de sonhos que tínhamos de ver D. San-
cho I a demarcar as estruturas agrárias ferozmente ou, realizados, os «aforamentos» de Hercu-
lano, ou a «translação» das populações do Norte do «fomento rural» de Oliveira Martins. Tudo
perdido, como agora, no esquecimento.
Mas o encanto foi mais longe. Na Península de Setúbal, um «Projecto de Colonização»
ia ser elaborado. Lá fomos também, a ver a Lagoa da Albufeira a dar abrigo à fauna natural;
os foros de Cabanas e de Fernão Ferro a lutarem contra despedimentos que precediam as urba-
nizações selvagens e a especulação de terras; uma indústria que mostrava, ao longe, fumarolas
que não deixavam prever o que se respira agora; uma Serra da Arrábida que descia a mergu-
lhar no Oceano, mantendo a flora como monumento.
Tudo isto se esvaiu, mas o cerco não estava completado, porque houve mais. Quando
ficou assente ser inviável o acesso da Junta aos regadios, sendo evidente a escassez dos Bal-
dios e, mais ainda, a de propriedade do Estado, foi oferecida a alternativa da Lei dos Melhora-
mentos Agrícolas de 1946. O Organismo de Severim de Faria passou a valer como Instituição
de Crédito, o que sempre nos pareceu desvio das atribuições originais. Ficavam também arre-

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dadas as Caixas de Crédito Agrícola Mútuo de Andrade Corvo, que representavam restos do
Mutualismo ainda defendido por D. Luis de Castro. Recordamo-nos de ter condenado o apoio
dado pela Junta, através do Crédito fortemente bonificado, ao latifundismo agrário dominante.
Mas nunca poderíamos ter previsto o que veio depois, pela instituição de um Crédito Agrícola
tão alheado da vida camponesa como se encontra agora.
E notável a forma como a Junta de Colonização Interna se debateu para conservar o
apoio à vida rural e camponesa, na impossibilidade de promover efectivas reformas estruturais.
Servem de exemplo os Cursos de Formação Profissional organizados com escassíssimos recur-
sos mas com aperfeiçoadas técnicas, e grande dedicação de monitores que se apresentaram pi-
oneiros de uma das mais férteis das actividades, quando colocadas ao serviço dos agricultores.

Povoamento Florestal

Nos anos 20 os Serviços Florestais funcionavam sob tradição novecentista, o que não
significa ausência de profundo sentido ecológico a orientar a exploração das, embora muito es-
cassas, Matas Nacionais. Vigorava o Regime Florestal, baseado em Lei «forte» que se tornou
moderadamente interventora. O Regime podia assumir a forma de total ou de parcial, conten-
do modalidades de obrigatório, facultativo ou de simples policia florestal. A submissão de pro-
priedades privadas ao Regime Florestal apresentava vantagens para os proprietários. Podiam
dispor de polícia florestal armada, privativa, e do direito de «coutamento sobre os pastos, caça
e pesca». Foi ao abrigo deste regime, largamente intensificado nos anos seguintes que os ara-
mados alentejanos se desenvolveram, constituindo instrumento de defesa do latifúndio e do
uso do privilégio de caça privada em largos espaços vedados. A área submetida ao regime flo-
restal registou o acréscimo de mais de um milhão de hectares desde o início dos anos 30 a
1973, mas a exploração racional do coberto arbório não melhorou.
No litoral, terras férteis de há muito cultivadas eram cobertas pela marcha impiedosa
das areias das dunas. No início do século actual os trabalhos de fixação das dunas foram alar-
gados a cerca de 25.000 hectares, encontrando-se a solução do grave problema.
Em 1938, o Plano de Povoamento Florestal constituiu a primeira iniciativa de fomento
silvícola do Estado Novo. O Plano foi organizado para a florestação dos Baldios cadastrados
pela Junta de Colonização Interna, na parte não reservada para eventual utilização agrícola.
Embora tenha sido previsto que os Corpos Administrativos proprietários dos Baldios procede-
riam à arborização, com a alternativa desta ser feita pelo Estado, acontece que foi o Estado que
procedeu à montagem de Administrações de Matas, tomando a seu cargo a construção das in-
fraestruturas necessárias, como caminhos florestais, edifícios, postos de vigia, obras de correc-
ção torrencial, viveiros, suportando o encargo de sementeiras e de plantações. Nestas circuns-
tâncias os espaços isolados das montanhas do Centro e do Norte, onde os Baldios se encontra-
vam, foram submetidos a fortíssimas pressões no sentido das populações se adaptarem a Pla-
nos de Arborização, para cuja elaboração somente teriam sido «ouvidas» através de sumaríssi-
mos inquéritos. Efectivamente não se encontram estudos sócio-económicos que tivessem sido
previamente realizados, no sentido de averiguar efeitos e detectar dificuldades na promoção do
novo ordenamento social e económico que os Planos representavam. Por isso, os Serviços pas-

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saram a impor aos montanheses a passagem súbita do sistema de pastoreio baseado na «quei-
mada» para renovo dos matos que foi interdita, ao sistema de exploração florestal intensivo e
monocultural, que ficavam condenados a adoptar, sem qualquer interferência na gestão. Foi
extremamente difícil, ou praticamente impossível, o acerto dos objectivos do Plano com os
costumes ancestrais dos povos. As áreas florestadas teriam que ser, durante largos anos, veda-
das ao pastoreio, ficando diminuído o espaço de itinerância das «vezeiras», que morreram sem
glória, e abria-se aos montanheses a condição de assalariamento, desconhecida que, além de
tudo, se apresentava contrária aos costumes de entreajuda da vida comunitária aldeã. A altera-
ção do sistema apresentava-se radical e as novas sementeiras e plantações defendidas pelos
guardas florestais armados, passaram a constituir uma espécie de «couto», destituído de toda
a tradição. A montanha sempre foi dos montanheses, excluídos os Donatários laicos ou religio-
sos, reservada no Baldio, para o Rei, a montaria. As Administrações Florestais apresentavam-
-se, assim, como expropriantes dos «bens comuns», recebendo, os seus serviços e domínios o
nome desprimoroso de «floresta», por oposição ao vasto império do «pastoreio». E a floresta
expandiu ao ar e ao vento os seus esplendorosos os ramos, antes de se tornar, no Verão ardente,
o «combustível» do «fogo posto», incutindo na alma dos montanheses a ideia de abandonar o
ermo, em busca de destino diverso da vida em aldeias mortas.
Desde 1938 a 1973 o Estado arborizou, em Dunas e Baldios, 287.000 hectares, com lar-
guíssimo predomínio de pinheiro bravo, criando a floresta que, ano a ano, vai ardendo, na Lou-
sã, em Arganil, na Pampilhosa, no Marão, no Soajo, em Trás-os-Montes, em toda a parte. Mos-
tra a experiência que esta arborização, estabelecida sobre solos que se encontravam muito de-
gradados, revelou a função «pioneira» do Pinheiro Bravo na recuperação florestal. Para Técni-
cos responsáveis não havia outra alternativa, sendo certo que se pretendia uma execução do
Plano acelerada. No entanto, a solução encontrada de forma consciente ou não, determinou o
risco de enfrentar a acção do Fogo que antes servira para a abertura de clareiras na floresta cli-
mace e era manobrado para a prática das queimadas para renovo da flora pastoreada. Naturalis-
tas como Jorge Paiva referem em estudo sobre «O coberto vegetal da Serra da Lousã» que «os
fogos de origem expontânea ou não, são um factor ecológico que, através dos tempos, tem
exercido a sua acção nas formações florísticas e em parte da fauna, sendo os problemas eco-
lógicos a eles inerentes muito variados e, muitas vezes, de difícil interpretação». Nesta óptica,
temos de entender que o Fogo é natural e não constitui invenção humana. O homem apenas o
usou e usa de forma instrumental ou sofre as suas consequências pela ocorrência de acidentes.
Aconteceu que o Pinhal, usado como «pioneiro» na recuperação florestal de solos degradados,
naturalmente era «combustível». Ora, o Fogo, sendo ecológico, devorou-o no uso dos seus di-
reitos, porque sempre se apresentou pronto a consumir os «combustíveis». O Fogo florestal
nunca poderá ser enfrentado apenas com a imprudência de lançar Bombeiros para o brazeiro,
mesmo que disponham de equipamentos sofisticados. No entanto, para salvaguarda das pers-
pectivas de longo prazo que caracterizam o problema florestal, acontece que o «pioneirismo»
do Pinhal se revela mesmo depois de incendiado. Isto significa que o incêndio do Pinhal «pio-
neiro» pode, ou deve, ser encarado como fase da recuperação ambiental que permitirá a insta-
lação de outras espécies florestais. Efectivamente, sobre os seus resíduos passa a ser mais fácil
encontrar a base de novo avanço para instalar a floresta que faz frente ao Fogo, prestando-se

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ao convívio com as suas labaredas, plenas de energia natural. Estamos certos de que o trabalho
científico dos Florestais acabará por conceber soluções que, sem poderem corresponder à re-
constituição da Floresta natural destruída, só compatível com Reserva em Parques Naturais,
correspondam à Floresta renovada com o auxílio de plantas exóticas que se não revelem infes-
tantes ou predadoras do solo e da água quando o rápido crescimento condena o povoamento
estreme. Entretanto, nas terras do Sul, tudo estava estagnado e, por isso, com o I Plano de Fo-
mento, foi apresentada uma proposta que daria lugar à Lei n.o 2.069 de 1954 que pretendia in-
centivar a acção dos Serviços Florestais em terrenos particulares. O resultado foi nulo e, em
consequência, foi criado o Fundo de Fomento Florestal que não encontrou adesão significativa
aos incentivos que proporcionou. Da sua acção resultou o florestamento de 77.000 hectares,
apesar de ter iniciado a plantação de eucaliptos que rapidamente se desenvolveu por acção si-
multânea das Empresas de Celulose. Efectivamente, a avaliação das áreas florestais de 1956
revela a extensão de 155.000 hectares de eucaliptos que antes não eram discriminados. Em
1980 já se registam 215.000 hectares de eucalipto. No entanto mais significativa é a tendência
para a estruturação de latifúndios florestais das «Celuloses» que até 1974 representavam perto
de 30.000 hectares de propriedades florestais e 32.000 hectares de propriedades arrendadas ou
exploradas em parceria. Sucede que o arrendamento florestal, necessariamente a longo prazo,
se apresenta como um quase aforamento. Para além dos inconvenientes que determina pela
submissão aos interesses utilitários e predatórios do rendeiro e pela referida expansão do lati-
fúndio florestal que desertifica regiões antes povoadas, não é fácil admiti-lo, quando a enfiteu-
se se encontra banida. Recordamo-nos que nas propostas de legislação sobre arrendamento
apresentadas no decurso da elaboração dos Planos de Fomento, surgiam sempre na mão dos
Ministros versões onde figurava o arrendamento florestal. Isto aconteceu logo no decurso do I
Plano de Fomento, mas evitou-se que este arrendamento figurasse na Lei n.o 2.069. Todavia,
o que é impressionante, revelando a presença e a força da Indústria da Celulose junto dos Gabi-
netes Ministeriais, é o facto de a proposta de Lei de arrendamento que os primeiros Governos
Provisórios que seguiram ao 25 de Abril apresentaram, conter disposições que regulavam o ar-
rendamento florestal. No entanto, essa Lei, que alguns responsáveis, portadores de grande pri-
mitivismo ideológico, considerava a alternativa para o Norte da Reforma Agrária aplicada ao
Z.I.R.A. (Zona de Intervenção da Reforma Agrária) foi alterada na última hora e o arrenda-
mento florestal foi suprimido. Ficaram assim salvaguardados, nessa emergência, os imperati-
vos da defesa da floresta de conservação do solo e da água e do combate à concentração fun-
diária que pretendia devorar os «mealheiros» dos Camponeses, em plena Revolução de Abril.
Entretanto, o drama florestal português assumia os contornos que se desenhavam ao
longo da História, desta vez em obediência a propósitos muito claros, presentes no pensamen-
to dos que promoveram a implantação selvagem da Indústria da Celulose em Portugal. Conser-
vamos, de memória, um episódio que apresenta aspectos em que o drama se configura com a
comédia, e que julgamos significativo. Estava na euforia da instalação a Celnorte, indústria da
Celulose, situada junto dos areais do Lima que António Feijó cantou na esperança de que não
fossem, nunca, poluídos. Era do conhecimento geral que se preparava a legislação necessária
para instalar o primeiro Parque Nacional nas Serras da Peneda e do Gerês, em consonância,
neste aspecto, com o Conselho da Europa que, em 1970, celebrava o ano europeu da Conserva-

481
ção da Natureza. Foi justamente neste momento que nos aconteceu encontro fortuito com um
Administrador de uma Celulose.
— Diga-me, que ideia é essa de um Parque na Peneda e Gerês? Um Parque na nossa
área de abastecimento de matéria-prima!

— E qual é a área que nos querem levar para esse Parque?


Veio-me à ideia, nessa altura, os buldozers a removerem os carvalhais do Gerês e a de-
vassarem os «santuários» do Ramiscal onde a flora primitiva se defendeu e treparem aos co-
moros onde os ninhos de Águia deixavam de ter o sustento que dá esperança de sobrevivência
a agitar os filhotes.
— Dizem-nos que não se poderá salvar mais do, que 70.000 hectares.
— Não pode ser. Vamos Ficar privados de 70.000 hectares. Isso limita os nossos planos
de expansão do eucalipto.

E concluiu, em monólogo:
— Temos que tomar medidas para defendermos as nossas perspectivas.
Desviámos a conversa com o Administrador que, aliás, se encontrava no seu papel. Não
deixava de ser natural que se batesse pela maior rendibilidade do negócio que geria. E não tive-
mos dúvidas de que muitas «medidas» iriam ser tomadas.
A Indústria da Celulose foi autorizada sem que as unidades fabris ficassem obrigadas às
normas que vigoram nos países evoluídos quanto a sistemas de tratamento primário e secun-
dário das emissões poluentes líquidas e gasosas. Nestas circunstâncias as empresas têm arre-
cadado lucros que somente os países atrasados oferecem, locupletando-se com prejuízos am-
bientais que esta indústria provoca, não indemnizados ou insusceptíveis de indemnização, pela
amplitude e repercussão que representam. Não oferece dúvida que esta situação é susceptível
de correcção em qualquer momento, desde que exista vontade política de impor as técnicas de
defesa do ambiente, naturalmente contra os interesses empresariais.
Afigura-se, porém, mais grave o efeito da presença desta indústria, em face da activida-
de florestal que depende de diferentes condicionalismos ecológicos, técnicos e económicos, di-
fíceis de regular através de sistemas correntes de intervenção de Serviços Públicos. De entre
as diferentes matérias-primas florestais que o País produzia ou era susceptível de produzir em
resultado de acções de fomento, a indústria deu preferência à madeira de eucalipto, pelo que
foi aberto mercado novo e muito amplo a esta espécie exótica, de rápido crescimento e de re-
cente aclimação em Portugal. Embora a experimentação e a investigação científica quanto ao
comportamento desta exótica não fosse suficiente perante as exigências da biologia florestal,
sabia-se que em condições favoráveis conhecidas, o eucalipto facultava rendimentos multi-
anuais, repetidos em prazos muito mais curtos do que os registados com as colheitas de outras
culturas florestais. Embora fosse sabido também que os rendimentos fornecidos pelo eucalip-
to eram limitados quanto a prazo de sobrevivência da plantação, o seu interesse imediato su-
plantava. na apreciação corrente, a garantia dada pelas culturas florestais de regeneração pere-
ne que, simultaneamente, asseguravam a protecção do solo e da água. Daqui também a opção
natural, embora egoística e contrária ao bem comum, que passou a ser dada à plantação do eu-

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calipto extreme, que permite intensivo aproveitamento económico, ou melhor, financeiro, de
recursos naturais, mau grado a circunstância desse aproveitamento não exceder certo prazo —
idêntico ao da vida útil do investidor — ao fim do qual fica o resíduo de raízes exaustas, im-
plantadas solidamente em solo degradado, de recuperação dispendiosa e incerta. Os povoa-
mentos florestais deste tipo já explorados ou em curso de exploração, revelaram a muitos Téc-
nicos e, o que se afigura mais notável e significativo, ao experiente poder de observação ou
instinto dos Camponeses, que os eucaliptais extremes dominam o ambiente de que se apro-
priam com extrema voracidade, logo no início da implantação, acabando por deixar, no termo
do repasto biológico, com as raízes mortas como se fossem garras, o quadro dramático do de-
serto, a sepultar paisagens humanizadas que, amanhã, apenas a História nos poderá contar. O
mais dramático, porém, é que, no receio de um comportamento defensivo ou lúcido que possa
despertar no sector florestal privado, ou de medidas de «polícia florestal» protectora do ambi-
ente que se apresentam urgentes, as empresas industriais estão a integrar aceleradamente a ac-
tividade florestal, organizando o «latifúndio» através da compra de terra ou do arrendamento
florestal, que acabou por lhes ser consentido. De qualquer modo não podemos deixar de consi-
derar aqui a certeza de que a poderosa Indústria da Celulose vai apresentando as características
de episódio, comum a toda a «exploração mineira», que terá seu termo com a exaustão dos re-
cursos de que depende, acabando fatalmente por deixar seu rasto, depois da passagem dramáti-
ca por um País onde os interesses agrários deixaram de ser, de há muito, acautelados.

Coordenação Económica

No termo dos anos 20 e início da década de 30 o funcionamento do mercado agrícola


era pior do que caótico. Era mesmo selvagem, ultrapassando em desordem o que os Economis-
tas apelidavam de «crise». Não se encontrava assegurada a livre concorrência e dominavam,
em larga implantação, monopólios e oligopólios desenfreados. Ao nível da aldeia, as velhas or-
denações régias deixavam saudades e nada viera tentar a substituição de antigas normas bani-
das, de qualquer modo coordenadoras, ou moralizadoras com a ameaça do pelourinho. Pulu-
lavam contratadores impiedosos perante a miséria dos Camponeses que procuravam vender as
magras sobras da subsistência e, nas feiras, dominavam os contratadores de gado, endinheira-
dos e mafiosos, que bloqueavam os preços nas compras, enquanto, nas vendas os empolavam.
O vinho passava dos tonéis dos produtores aos pipos das tabernas e porões dos barcos, mani-
pulado de forma a ganhar preço e a perder virtudes ou qualidades. A presença do liberalismo
nos mercados dos campos, consumava em casa dos Camponeses, amargurados desesperos ou
verdadeiras tragédias. Não facultava estímulos à produção e conduzia os Economistas à lamú-
ria ou árduo desenvolvimento teórico da «questão das subsistências».
O regime instituído em 1926 cedo iniciou a intervenção na economia agrária com a
«Campanha do Trigo» de 1929, a que iremos fazer referência. Para tentar resolver problemas
de funcionamento do mercado de trigo foi criada uma «Comissão Reguladora» que constituiu
a fórmula, logo transformada, dos Organismos de intervenção.
Efectivamente, nos anos 30, começaram a ser instalados os Organismos de Coordena-
ção Económica dos diferentes sectores produtivos. Tais organismos assumiam a forma de Co-

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missões Reguladoras do Comércio que condicionavam as importações, de Juntas Nacionais
que coordenavam a produção e o comércio «em ordem à maior expansão da exportação» e de
Institutos Nacionais que orientavam a exportação de produtos que «pela sua importância exi-
giam garantia de qualidade e categoria». Na base encontrava-se a Organização Corporativa,
que englobava obrigatoriamente os produtores, organizados em Grémios da Lavoura, de In-
dustriais, Armazenistas e Retalhistas, que vieram a ser objecto de diferentes formas de Fede-
ração. Como se referiu, os Sindicatos Agrícolas foram extintos.

O Trigo
Uma das áreas onde, durante o sistema liberal a administração procurou não perder de
todo a estratégia da intervenção foi a do trigo, usando como instrumento a alfândega. No en-
tanto, conforme se referiu, o poder económico e político no sector passou a apresentar-se per-
sonificado na Moagem, que além de tudo dominava a Imprensa e os Gabinetes Ministeriais.
Os delegados da Indústria representavam no Campo a procura concentrada, nas «garras» da
qual se debatiam agricultores diluídos em oferta atomizada dos «seareiros». Na sombra, a
Moagem comandava a importação, impondo ao mercado, na colheita do trigo nacional, a mais
notória saturação.
Na fase que vamos analisar, os proteccionismos de Elvino de Brito, de 1899, atenuados
por intervenções liberalizantes ulteriores, voltavam a ser reivindicados pela «Lavoura do Tri-
go», especialmente quando a guerra de 1914-18 colocou os preços internos a nível mais baixo
do que as cotações internacionais. Os Governos insistiam na necessidade de assegurar o «Pão
político» que a referida Lavoura que constituía outro baluarte da sociedade portuguesa da épo-
ca, não via com bons olhos, acabando por alcançar medidas que, em 1923, muito atenuavam
a protecção económica dada ao consumidor pobre, através do preço do Pão. A questão acaba-
va sempre por se transformar em perturbações da ordem nas ruas.
Mas, nos anos 20, o problema dos cereais não era somente português, mas mediterrâni-
co, e Mussolini dava-lhe feição triunfal de objectivo autárquico, desencadeando a «bataglia dei
grano». A moda foi lançada, com um vigor que nunca teve em Portugal, quando o Duce se exi-
bia, de tronco nu, a manobrar máquinas da «batáglia» proferindo discursos inflamados em que
proclamava, demagogicamente, como o futuro havia de comprovar: «questa è la guerra que noi
preferiamo». Assim, depois de ter sido escrito em Portugal que o Trigo era «a fronteira que
melhor nos defende» em 1929, arrancou a «Campanha do Trigo» com os objectivos de «pro-
mover o aumento da produção de trigo até às necessidades de consumo, evitando assim a saí-
da para o estrangeiro de importantes caudais de ouro» e também para «dignificar a indústria
agrícola como a mais nobre e a mais importante de todas as indústrias e como primeiro factor
de prosperidade económica da Nação».
A «Campanha do Trigo» baseou-se em intensa intervenção técnica, como a «escolha e
preparação de sementes», a demonstração do uso de adubos, a assistência técnica directa aos
agricultores, a organização de «parques de material agrícola» onde foram reunidos equipamen-
tos recebidos da Alemanha como reparações de guerra. O Instituto Superior de Agronomia re-
gistou larga adesão à «Campanha» por parte de Professores e de Estudantes. O Prof. António
Sousa da Câmara foi o colaborador mais activo e categorizado. Foram múltiplas as reuniões

484
no Instituto para debate de problemas técnicos e ainda nos foi dado registar o relato oral de um
dos participantes sobre intervenção do Prof. Azevedo Gomes, que levantou o problema dos ris-
cos da erosão dos solos, não sendo escutado em virtude da euforia reinante.
Como estímulo foi criado o «subsídio de arroteia» oferecido aos «proprietários, rendei-
ros e seareiros» que rompessem incultos ou terrenos de cultivo de vinha. Nesta tarefa agigan-
tou-se, no Sul, a figura histórica do «Seareiro», escondida nas catacumbas do latifúndio, que
desbravou matos até ao limite de desentranhar a fertilidade acumulada. Os primeiros, nas ter-
ras repousadas, alcançaram êxito vital, amealhando pecúlios que chegaram a ser bastantes para
a compra de herdades de absentistas necessitados. No entanto, os derradeiros, extinguiram-se
à vista dos afloramentos de rochas nuas, de solos esqueléticos, erosionados. Vastas extensões
ficaram perdidas ou desertificadas pela cultura do trigo que destruiu valiosos recursos nacio-
nais, mercê do engano de se imaginar que a simples extensificação cerealífera podia assegurar
a defesa do comércio externo.
As produções de trigo foram submetidas a manifesto obrigatório e ficou «garantida» a
aquisição a preço tabelado. No entanto o sistema monopolístico do comércio do Estado encon-
trou forte oposição da Moagem que tentou manter o monopólio efectivo de que dispunha. As-
sim, a «Campanha» que obteve a primeira resposta de acréscimo de produção com o ano favo-
rável de 1932, veio criar excedentes sobre o consumo. O armazenamento de trigo só foi possí-
vel em celeiros de produtores, enriquecendo os que dispunham de capacidade de armazena-
gem, mas os pequenos produtores viram-se obrigados a entregar o cereal à Moagem a preços
irrisórios. Perante a gravidade da situação excedentária foi criada em 1933 a Comissão Regu-
ladora do Comércio de Trigo, que praticamente não exerceu a função que lhe fora destinada,
por falta de meios. A colheita de 1933 foi moderada, atenuando-se a crise de sobreprodução.
No entanto, as colheitas de 1934 e 1935, por conjugação de condições metereológicas favorá-
veis, foram as mais altas, obrigando a exportações ruinosas, por serem mais baixas as cotações
externas. Nesta emergência foi criada a Federação Nacional dos Produtores de Trigo, organis-
mo que se previa viesse a federar Produtores de Trigo, associados em Grémios, que nunca se
organizaram. Logo à partida a F.N.P.T. assumiu o papel de organismo de coordenação, compe-
tindo-lhe, em exclusivo, adquirir o trigo produzido, que armazenava e distribuía à Indústria.
Os produtores, inscritos obrigatoriamente nos Grémios da Lavoura não especializados, benefi-
ciavam da garantia de colocação ao preço da tabela, não podendo procurar outro comprador.
Os Industriais foram inscritos no Grémio dos Industriais de Moagem, enquanto os moinhos ar-
tesanais ficaram submetidos à Comissão Reguladora das Moagens de Ramas. Nos circuitos do
trigo existiam ainda o Grémio dos Industriais de Panificação e o Instituto do Pão.
Com o sistema praticado pela F.N.P.T. o País passou a ficar equipado com celeiros e si-
los indispensáveis para assegurar o armazenamento de um produto alimentar essencial que faz
parte da estratégia da defesa nacional. Mas, em termos de preços praticados ficou desligado do
mercado internacional, sucedendo que durante largo período o preço interno foi superior ao ex-
terno, pelo que as importações se tornavam lucrativas e o fomento assumia a forma de garantia
proteccionista da produção nacional, suportada, neste caso, pelo consumidor. Nestas condições
o trigo beneficiava de uma coordenação económica especial, designada mesmo por «regime
cerealífero» que chegava a ser, com fortes razões, considerado o sustentáculo de todo o edifí-

485
cio estrutural e do sistema de produção regional dos espaços portugueses mediterrânicos do
Sul.
De qualquer modo a F.N.P.T. nunca deixou de estudar a problemática da produção na-
cional do trigo, acompanhando a sua intervenção, de inquéritos económicos que fundamenta-
vam a elaboração das tabelas de preços e dando audiência às actividades económicas que parti-
cipavam nos circuitos de produção. Todavia, antes de 25 de Abril de 1974, a F.N.P.T. foi des-
mantelada, criando-se o Instituto dos Cereais que baniu qualquer espécie de representação de
produtores e se desinteressou do estudo da produção nacional. Foi depois criada uma empresa
pública de comércio de cereais, a E.P.A.C. que deu origem a maior alheamento da problemá-
tica cerealícola nacional, visto que aos novos gestores tanto interessava que os cereais provies-
sem da terra portuguesa ou do estrangeiro, dando talvez maior interesse os que fossem impor-
tados.
Dramaticamente, a colheita excedentária de 1934 foi a crista da onda de ilusões históri-
cas perdidas quanto à autosuficiência de trigo pela extensificação das sementeiras. Sem cuidar
de reformas estruturais indispensáveis, a «Campanha» deixou limpas de matos as herdades, na
mão de Lavradores enriquecidos pelo proteccionismo garantido com recursos financeiros na-
cionais. Os «Seareiros» despertaram do sonho empresarial que os motivou e, envolvidos em
parcerias inseguras, acabaram por desmobilizar parelhas de muares, juntas de bois, arados e
charruas, enfim, o único capital que, no Alentejo, era seu apanágio ou herança da História, re-
ocupando, traídos quanto à oportunidade de alcançarem a posse da terra, os postos de trabalho
que o capitalismo agrário reservava aos Camponeses, com o assalariamento eventual, tornado
imensamente precário pela competição nas «praças de jornaleiros» e a concorrência dos «ran-
chos migratórios».

O Centeio
Nas regiões onde a «revolução do Milho» entrou, o centeio terá sido o cereal panificável
que restou para assegurar a autosuficiência de cereais de sequeiro. As terras dobradas de altitu-
de não se prestavam à cultura de trigo que fora geralmente praticada nas terras onde o milho
se instalou. Por isso o centeio ficou semeado entre as fragas. Mesmo em face de tentativas de
fomento levadas a cabo durante a II Grande Guerra, o consumo regional não foi ultrapassado.
De qualquer modo o centeio não foi destronado da sua tradicional aliança com o trigo e, de-
pois, com o milho, no fabrico de diferentes tipos de pão. Embora a F.N.P.T. tivesse querido
alargar ao centeio o seu monopólio, foi sempre muito escassa a percentagem que logrou ad-
quirir, até que este cereal fosse restituído ao comércio livre.

O Milho
Conforme se referiu, o Milho foi a base de alimentação do mundo camponês do Norte
e do Centro, em expansão demográfica no século XIX e início do século XX. A organização
corporativa do comércio agrícola não se interessou pelo Milhão, deixando-o livre de qualquer
intervenção durante longo período. O comércio do milho permaneceu, portanto, ignorado e
camponês, embora este cereal constituísse a renda fundiária praticada, pelo S. Miguel, no Mi-
nho e nas Beiras. Talvez porque a população abundante lhe proporcionasse largo consumo re-

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gional. não tendo a grande Moagem moderna tentado competir com os numerosíssimos moi-
nhos de ramas, o comércio processava-se sem sobressaltos, pode dizer-se, somente com as so-
bras da economia de subsistência. E assim foi andando até ao momento em que a II Grande
Guerra, com o «volfrâmio» e, depois, a emigração, recusou ao milho a qualidade de cereal de
pão — a boroa — cedendo lugar ao trigo que o destronou. No entanto, a orientação dada à ex-
ploração pecuária, levou à instalação de numerosas fábricas de farinhas alimentares para ani-
mais e a procura de milho cresceu, ficando a produção nacional diluída no espantoso caudal
da importação, primeiro colonial e depois estrangeira, deste cereal agora forrageiro. Mas, para
além da utilidade do milho grão no fabrico de farinhas alimentares pecuárias, o milho passou
a ser usado nas explorações agrícolas como forragem ensilada de grande valor alimentar.
Não pode, no entanto, perder-se de vista que o milho, nas últimas décadas, registou no-
va «revolução» no que respeita às suas enormes potencialidades de produção. Efectivamente,
os centros de investigação agrária apresentam cultivares híbridos que alcançam altos níveis
produtivos. No entanto, a expansão dos híbridos deparou, em Portugal, com dificuldades técni-
cas efectivas que impediram a sua generalização. Os milhos híbridos, de grande capacidade de
produção, revelam-se naturalmente exigentes, e mais do que os regionais, no que respeita à fer-
tilidade do solo e aos cuidados culturais quanto à rega e níveis de adubação. Nestas circuns-
tâncias, a área tradicional do milho em Portugal não pôde, ainda e provavelmente, adoptar a
nova «revolução», mantendo em cultura cultivares tradicionais largamente experimentados.
No entanto, sempre que tem sido possível, em regiões privilegiadas, como o Ribatejo, por
exemplo, proporcionar as condições exigidas pelos híbridos, os resultados têm sido notáveis e
fortemente competitivos do ponto de vista económico quanto ao uso dos regadios.

O Arroz
Tipicamente de regadio, e de rega por alagamento com grande consumo de água no cli-
ma português, o Arroz somente se prestou a servir de autoabastecimento camponês em raras
regiões. O problema não se entende com clareza transparente, visto que a exigência de preparo
tecnológico do arroz não é complexa em demasia e os povos do Oriente, comedores de arroz,
sempre o resolveram. Efectivamente o descasque, isto é, a remoção das «glumas», era feito em
moinhos de outros cereais, colocando cortiça sob as mós. Com esta tecnologia o arroz não era
branqueado, ou melhor, não era removida a «película», pelo que conservava gosto amargo mas
muito maior valor alimentar.
Talvez devido às navegações, o arroz entrou no consumo português pela via da importa-
ção, instalando-se unidades industriais que procediam ao descasque e preparação do arroz im-
portado, ou simplesmente ao branqueamento quando o importavam «em película» ou «meio
preparo». O fomento da produção nacional de arroz somente ocorre quando são criados os res-
pectivos organismos de coordenação económica.
O aspecto «revolucionário» do acréscimo recente da produção de arroz em Portugal re-
sulta da conjugação de diferentes acções de fomento paralelas. As cultivares tradicionais, em
uso desde os árabes, com a designação de «arroz da terra» ou «rajado», foram substituídas por
outras obtidas em centros de melhoramento de plantas, especialmente italianos. Nos anos 20 a
cultura do arroz não alcançara mais do que 10.000 hectares com produções modestas, e nos

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anos 30 a estagnação era evidente em resultado de problemas ligados à endemia sezonática já
referidos e também ao mau funcionamento do mercado. A produção nacional, mesmo quando
apresentava cultivares de valor industrial, encontrava sérias dificuldades de colocação nas fá-
bricas. De 1930 a 32 a proveniência do arroz laborado pela indústria repartia-se na proporção
de 62% de arroz estrangeiro, 3% colonial e 35% produzido no Continente.
A produção nacional debatia-se efectivamente com problemas sérios de colocação e de
preço, beneficiando eventualmente de protecções alfandegárias nem sempre atentas às mano-
bras de importadores que, fazendo coincidir as importações com a época da colheita, permi-
tiam às fábricas comprar a baixo preço. Nestas condições, em Maio de 1933, produtores de ar-
roz reunidos na Associação Central da Agricultura Portuguesa, denunciaram tal posição e pedi-
ram protecção alfandegária ou «quaisquer outras medidas» que o Governo entendesse mais
conveniente. Para corresponder ao referido apelo, o Governo criou a Comissão Reguladora do
Comércio do Arroz e, em 1934, o Grémio dos Industriais Descascadores de Arroz e o Grémio
dos Importadores e dos Armazenistas de Mercearias. Ficou assim instituído, um pouco à ima-
gem do que fora praticado em relação ao trigo, o fomento da produção de arroz, tendo sido al-
cançada uma sequência de compromissos impostos às entidades intervenientes por forma a
que, do seu desenvolvimento, os produtores obtivessem não só um preço tabelado, como tam-
bém a garantia de colocação das colheitas na devida oportunidade.
A organização do comércio do arroz em acção simultânea com a criação dos «Postos
experimentais da cultura do arroz» no Mondego, no Tejo e no Sado, deu origem ao rápido
aperfeiçoamento da cultura, pela introdução de novos cultivares importados especialmente da
Itália, melhoramento de outros e aperfeiçoamento de técnicas de plantação. Assim, de 1933 até
ao fim da década de 40 as áreas cultivadas mais do que duplicaram, garantindo, especialmente
durante a II Grande Guerra o abastecimento do País, o que se afigura muito importante.
Foi, no entanto, a partir de 1950, com a entrada em exploração das obras hidroeléctricas
que regularizaram o caudal do Tejo e das obras de fomento hidro-agrícola, especialmente do
Sado e, depois, do Sorraia, que o acréscimo de área cultivada se acentua até alcançar o máximo
de 43.000 hectares em 1973. Em resultado da intervenção da Comissão Reguladora do Comér-
cio do Arroz, novos padrões comerciais vieram substituir a importação, eliminando o «arroz
do Sião» e o «arroz de Veneza», presentes, em exclusivo, nas mercearias nos anos 30. Este Or-
ganismo e o seu esquema de intervenção e apoio à produção nacional, perdeu-se no abismo da
integração no Instituto dos Cereais e, depois, muito mais, na gestão pública da E.P.A.C. Os Su-
permercados passaram a ser abastecidos com o «luxo» de embalagens de arroz que oferecem
ao consumidor a garantia de ser «arroz estrangeiro».

A Batata
A cultura da batata que alterou profundamente o regime alimentar de numerosos países
europeus, como tivemos ocasião de referir, somente assume aspecto «revolucionário» em Por-
tugal em época muito recente. Cerca dos anos 20 a cultura teria conquistado pouco mais de
10.000 hectares, especialmente nas Beiras e em Trás-os-Montes, onde figurava no regime ali-
mentar camponês. Nos anos 30 a área cultivada duplicou. Nos anos 40 a expansão foi muito
rápida, passando a cultura a figurar na «economia de guerra» com feição providencial. Nesta

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fase a cultura revela-se fortemente lucrativa, situação que se mantém em plena liberdade de
mercado à margem de qualquer coordenação económica. Cerca dos anos 60, o mercado tende
para a saturação nas épocas de colheita. Para resolução do problema não foi criado qualquer
organismo específico, sendo atribuída à Junta Nacional das Frutas a responsabilidade da mon-
tagem de instalações de armazenamento e de outras formas de intervenção, particularmente di-
fíceis em relação a este produto. As importações foram condicionadas de forma a manter a re-
gularidade do abastecimento e as garantias de colocação da produção nacional.

O Vinho
Conforme vimos em diferentes passagens, o comércio de vinhos tem antiquíssimas tra-
dições de lutas entre produtores, armazenistas, exportadores e retalhistas. Nas emergências
mais graves o produtor obedece à tentação de se libertar dos seus algozes, oferecendo o produ-
to directamente ao consumidor, nas adegas ou nas estradas, no desespero de se sentir ludibria-
do. No entanto, os grandes volumes de comércio exigem organização que em Portugal tem o
exemplo pombalino da Real Companhia da Agricultura e das Vinhas do Douro, hoje integrada
em empresa gigante inter-regional privada. Adquiriram fama também e certamente proveito,
instalações de armazenistas e comerciantes localizadas nas vizinhanças de Lisboa e seu porto
de mar, a que foi dada pelos viticultores a designação de «vinhas do Poço do Bispo» pela con-
corrência que o vinho «industrializado» provoca.
A demarcação de regiões vitivinícolas, de que Portugal foi pioneiro no Douro, conduziu
a coordenação económica dos anos 30 à organização de Federações de Vinicultores, em analo-
gia com o previsto para o trigo, sem que, da mesma forma, tivessem sido organizados, na base
regional concelhia, os Grémios de Vinicultores. Encontravam-se demarcadas sete regiões:
Douro, Vinhos Verdes, Dão, Moscatel de Setúbal, Bucelas, Colares e Carcavelos. Isto não sig-
nifica que sejam estas somente as regiões que beneficiam do privilégio da fama quanto à quali-
dade dos seus vinhos. O Oeste, a Bairrada, a Beira interior, o Ribatejo e o Alentejo, reivindi-
cam com fortes razões as virtudes específicas para muitos dos seus vinhos.
Para a região demarcada dos vinhos do Douro foi organizada a Federação dos Vinicul-
tores da Região do Douro (Casa do Douro), na dependência do Instituto do Vinho do Porto.
Foi organizado também o Grémio dos Exportadores do Vinho do Porto. Reconhece-se que a
região dotada de excepcional nobreza quanto à qualidade do Vinho, foi contemplada com es-
trutura condigna e eficaz, que muito manteve o equilíbrio da distribuição do «benefício dos
mostos», defendendo arduamente as regras do plantio de que depende a qualidade dos vinhos
submetidos a garantia de origem.
A região demarcada do Dão foi entregue à Federação dos Vinicultores do Dão, e a de
Colares à Adega Regional de Colares. A região demarcada dos Vinhos Verdes manteve o privi-
légio de ficar entregue à Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, organismo es-
tatal subordinado ao Ministério da Agricultura, livre, portanto da tutela do Comércio que car-
acterizava o sistema administrativo português, em relação à agricultura, quando foi criado o
Ministério da Economia. Foram ainda instituídas as Uniões Vitícolas de Bucelas, Carcavelos
e Moscatel de Setúbal. Para a coordenação do comércio dos vinhos fora das regiões demarca-
das foi criada a Junta Nacional do Vinho.

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Estes organismos organizaram planos de apoio e financiamento ao associativismo coo-
perativo, o que deu origem à instalação da rede de Adegas Cooperativas hoje existentes, que
desempenha função basilar na defesa da qualidade e do comércio de produtos da vinha, em
perfeita integração com a actividade dos viticultores associados. Na fase inicial, foi notória a
falta de adesão dos pequenos produtores a esta iniciativa. Assim, o movimento associativo não
reuniu os produtores mais numerosos o que levantou dificuldades de funcionamento do merca-
do em anos críticos de sobreprodução. Por isso, o movimento cooperativo na vitivinicultura
deve beneficiar de inequívoco apoio para que os produtores se coloquem ao abrigo de gravíssi-
mos riscos perante os inevitáveis desajustamentos anuais da oferta, ficando defendidos contra
a tradicional presença dos «industriais» dos vinhos que tenham monopólios inadequados à di-
nâmica ecológica do melhoramento da produção. Verifica-se portanto que a intervenção dos
organismos de coordenação visou o escoamento da produção e a estabilidade dos preços. Nos
anos de excesso de produção o vinho era adquirido pela organização para ser armazenado, em
parte destilado, para evitar a especulação mantendo um regime normal de preços.
A cultura da vinha manteve-se condicionada quanto ao plantio e defesa contra a propa-
gação dos «produtores directos» de baixa qualidade. No entanto a aplicação das disposições
administrativas deparou sempre com grandes dificuldades nos campos, sendo muito graves os
riscos de intervenções das autoridades que pretendam ordenar o «arranque» de plantações ile-
gais. O condicionamento continua, na ideia dos Camponeses, a constituir «violência» que não
entendem justa.
Quanto ao futuro, o problema que se afigura erguer-se na vitivinicultura portuguesa re-
sulta da aplicação necessária de regulamentos que nem sempre podem ter em conta a tradicio-
nal experiência camponesa, conduzida de há muitos séculos em microclimas que geraram cas-
tas da maior nobreza, seleccionadas a partir de cultivares sempre em risco de se perderem. Os
objectivos de obter alta produção, visados por «industriais» que se transformam em produto-
res, conduz ao abandono de castas nobres quando pouco produtivas, na tentativa de substitui-
ções absurdas. Isto não significa que os ensaios de aclimação de castas exóticas ou melhoradas
devam ser vedados, mas tudo se deve subordinar a critérios científicos que não desprezam as
indicações empíricas. É ameaçador o aviso do Prof. Amerine: «um oenólogo que não conhece
as uvas é como um pintor cego». Por isso, afigura-se-nos essencial que as novas orientações
«industriais» não desfaçam a aliança com Agrónomos, não bastando os Químicos, nem os Bió-
logos, com a Engenharia Genética, para que resultem respeitados, até às últimas «generosida-
des» os microclimas mais preciosos, verdadeiros santuários que elaboram castas que talvez ne-
nhum laboratório possa vir a substituir. Existe, na verdade, o valor acrescentado pelo instinto
e trabalho no campo de viticultores de mãos hábeis e prudentes que constituem o alicerce da
«Civilização do Vinho».

O Azeite
O azeite que, desde a antiguidade, foi o óleo alimentar preferido pelas civilizações me-
diterrânicas, provindo da oliveira que simboliza a Paz, encontrou, nos anos 30 as vésperas da
decadência, aliás recuperável. O seu consumo, historicamente, distinguia os «civilizados» pe-
rante os «bárbaros», pastores, que se alimentavam de ignóbeis gorduras lácteas. Todavia, acon-

490
teceu que os «bárbaros» se civilizaram nos países do Norte, e oferecer-lhes azeite, assumia,
quase, as proporções de um insulto.
A oliveira tem a particularidade de conservar, como outras espécies arbóreas mediterrâ-
nicas, dificuldades de difusão, não encontrando, no Mundo, ecologia que satisfizesse as suas
exigências de origem. De tratamento difícil, quanto ao trabalho, de avareza que impõe safra e
contra safra, o azeite acabou por sofrer a concorrência de outros óleos alimentares, extraídos
de diferentes plantas, muitas delas tropicais. Mas representou, durante muitos séculos, o óleo
alimentar essencial na preparação da maior parte dos cozinhados, tanto à mesa dos ricos como
na dos pobres. Por isso as dificuldades económicas dos anos 30, criaram, logo no ano de 1931
a Junta Nacional de Olivicultura que «nunca chegou a funcionar com eficiência», dando lugar
à Junta Nacional do Azeite, fundada em 1937.
AII Grande Guerra obrigou à intensa e variada intervenção neste sector, para assegurar
o nível de abastecimento de um produto alimentar na altura essencial. Mas, terminada a Guer-
ra, o mercado passou a registar a oferta de óleos alimentares de preço muito inferior ao do azei-
te. A competição não era possível porque os custos de produção do azeite sofriam forte agrava-
mento por acréscimo de salários e dificuldades de mecanização. Para determinados usos culi-
nários, os consumidores manifestaram declarada preferência pelos óleos industriais.
Durante certo período os organismos de coordenação tentaram, com recurso a artificia-
lismos de preço, amortecer a concorrência dos óleos industriais, mas a crise do azeite acabou
por se apresentar às claras em toda a sua extensão e realidade, a partir dos anos 60. Com os
óleos alimentares industriais a instalarem-se no mercado, em plena euforia de propaganda de
qualidade e de marcas, a olivicultura passou a ficar entregue a investigadores que registam êxi-
tos efectivos quanto à forma de condução e recurso a cultivares que proporcionam menores
custos de produção. Entretanto, nas encostas de grandes rios os olivais eram abandonados, fi-
cando entregues a impiedoso retorno ecológico às origens que precederam a intervenção hu-
mana. Muitos, cobertos de matos, vão ardendo como as florestas. Outros estão a ser devorados
pelos eucaliptos.
O azeite, que andou pelas cidades, vilas e aldeias, transportado em mulas ou carrocinhas
de azeiteiros que o vendiam de sociedade com o petróleo, passou a apresentar-se engarrafado,
por «causa das misturas» com óleos refinados altamente lucrativas. Devem ter sido feitas gran-
des fortunas nesta emergência para o consumidor que não sabia o que consumia. Com o merca-
do dos óleos alimentares profundamente alterado, a Junta Nacional do Azeite foi extinta, dan-
do lugar ao Instituto do Azeite e dos Produtos Oleaginosos, o que permite imaginar que a mu-
dança do organismo de coordenação não representa mais do que a consagração da «mistura»,
ou vitória, talvez episódica, dos óleos concorrentes.

A Carne e os Lacticínios
No início do período que estamos analisando o comércio, e também a indústria, dos pro-
dutos pecuários apresentavam níveis técnicos os mais primitivos. Os animais de açougue eram
o refugo da utilização do motor vivo que os efectivos pecuários representavam na generalidade
das explorações agrícolas. Salvo no caso de vitelos, cujo abate era livre, e estava indicado iara
o acréscimo do consumo humano de leite, era muito escassa a produção com finalidade de ob-

491
ter carne de qualidade. Deve ter-se em conta, porém, que existiam, em especial nas regiões do
Norte, restos de animais de alta qualidade, barrosão, da mesma estirpe dos que foram exporta-
dos para Inglaterra. Por isso se mantinha a tradição de ser diverso o mercado do Norte, que
também consumia animais de trabalho que, depois de inúteis, eram entregues às casas de abate
municipais, em vez de serem canalizados para guano, como referem os mais severos comenta-
dores da época.
Em virtude dos riscos existentes quanto ao abate de animais impróprios para consumo,
a generalidade dos Municípios passou a instalar «matadouros» que, verdadeiramente, não pas-
savam de simples casas ou locais de abate. Tentava-se assim evitar o abate privado de animais
não submetidos a inspecção sanitária.
Quanto ao leite o comércio era livre e o produto circulava desde o produtor até à porta
do consumidor. Nas cidades tornava-se particularmente difícil a organização do acesso do leite
ao consumidor. Nos anos 20 estavam vencidas as fases em que a vaca percorria as ruas sendo
mungida às portas, mas encontravam-se ainda muitos estábulos instalados nas zonas urbanas
junto a leitarias, recebendo diariamente as forragens necessárias. A distribuição ocupava nu-
merosos leiteiros que batiam de porta em porta. Depois desta fase, os estábulos passaram à pe-
riferia urbana, ficando dependentes ainda das regiões de produção forrageira. A instalação da
produção leiteira no ambiente próprio só foi possível depois de se terem verificado grandes
avanços no tratamento tecnológico do leite.
Paradoxalmente, este sector produtivo que se mantinha anacrónico durante muito tem-
po, somente em 1939 veio a beneficiar da criação de um organismo coordenador, que recebeu
a designação genérica de Junta Nacional dos Produtos Pecuários.
No que respeita à carne, as intervenções da Junta para normalização de preços tiverem
sempre escassos resultados porque o organismo coordenador não dispunha de rede de mata-
douros industriais que pudessem dar resposta à oferta com abate e frigorificação. Entretanto,
nos anos 50 foram lançados Planos de Fomento Pecuário e a produção de bovinos, suínos e
animais de capoeira beneficiou de rápidos progressos através da montagem de instalações de
«produção industrial» à base de farinhas alimentares pecuárias e outros aperfeiçoamentos da
produção forrageira. Mas, a falta de uma rede de matadouros industriais constituiu e continua
a constituir obstáculo permanente a medidas de modernização do mercado. O facto do Minis-
tério das Obras Públicas ter apoiado os Municípios no melhoramento de «casas de abate» con-
celhias, determinou resistências graves à organização de uma rede industrial moderna, que de-
veria ser apoiada em estruturas cooperativas. Os talhos, continuam a ser, na generalidade das
regiões, a base do sistema comercial, negociando-se os animais nas feiras ou em casa dos pro-
dutores, com a intervenção de contratadores mafiosos, que em tempos foram a fina flor dos ca-
ceteiros, acabando, os talhantes por levar os animais ao abate nos matadouros municipais, para
depois venderem a carne a retalho.
Quanto ao leite foi decisiva a instalação da indústria de lacticínios, por via de empresas
multinacionais como a Nestlé que implantou tecnologias muito avançadas, ou de outras uni-
dades tecnologicamente mais modestas, mas comercialmente progressivas. A Agronomia por-
tuguesa, com base em serviços apoiados pelo Laboratório de Tecnologia Agrícola Ferreira La-
pa do Instituto Superior de Agronomia deu grande estímulo ao movimento cooperativo nas-

492
cente neste sector. A cooperativização deparou com a presença de uma indústria de lacticínios
já instalada que adquiria o leite, como matéria-prima, aos agricultores. Nestas circunstâncias a
concorrência entre industriais e cooperativas foi inevitável. Ajunta Nacional dos Produtos Pe-
cuários, organismo coordenador, nunca tomou a decisão de apoiar com Plano de financiamen-
to semelhante ao dos organismos do Vinho ou do Azeite, as cooperativas de lacticínios. Em pe-
ríodos em que a abundância de leite criava problemas de escoamento, dificultando às coopera-
tivas a recepção do leite, os industriais praticavam preços artificiais de aquisição, destinados a
desmotivarem os sócios das cooperativas, levando-os a não cumprirem, nas épocas de carên-
cia, quando os preços subiam mais, a obrigação estatutária das entregas. Quando os cooperan-
tes abandonavam «a sua fábrica» eram logo colocados em face de preços de ruína.
Mesmo sem financiamento específico, mobilizando recursos mendigados aos serviços
de agricultura, as Cooperativas de Lacticínios acabaram por singrar, constituindo Uniões de
grande estrutura empresarial. Mas foi particularmente difícil a organização regional da recep-
ção do leite, capaz de garantir o funcionamento normal de uma indústria moderna. A tecnolo-
gia aplicada ao leite acabou por atingir bons níveis de qualidade.

As Frutas
Para além das amendoeiras algarvias cuja plantação em pomar a lenda atribui a um Prín-
cipe árabe que procurou atenuar a tristeza da sua Princesa nórdica que sofria de saudades das
paisagens da neve, o pomar português era geralmente promíscuo, com excepção ainda de al-
guns laranjais como os de Setúbal. Tal dispositivo não contrariava a qualidade dos frutos, nem
impediu que, nas cercas dos Conventos, nos rossios das casas nobres, e nos recantos mais mi-
mosos das quintas e dos quintais se cultivassem fruteiras de aprimorado gosto. Aos mercados
urbanos afluíam vendedores que nos seus pregões anunciavam «figos de capa rota», ou «quem
quer figos, quem quer almoçar», laranjas «de Setúbal», pêras e maçãs «de Sintra ou de Cola-
res», castanhas «quentes e boas».
Salvo raras situações, nos anos 20 ou 30 o «pomar industrial» não existia, mesmo em
regiões de boa aptidão fruteira. Foi Vieira Natividade quem imprimiu às investigações frutíco-
las, em Alcobaça, a orientação moderna necessária para orientar os Planos de Fomento do sec-
tor e a intervenção do organismo coordenador designado Junta Nacional das Frutas. Em dife-
rentes regiões foram estabelecidos «pomares industriais», construindo-se equipamentos coo-
perativos que, pelo armazenamento, conservação, calibragem e selecção, melhoraram funda-
mentalmente o abastecimento do mercado das frutas. O mesmo organismo facultou largo apoio
a indústrias alimentares que se instalaram para preparação de conservas de frutas, legumes e
produtos hortícolas. A preparação de produtos do tomate teve notável impulso, tendo a expor-
tação desses produtos registado grande acréscimo. A área cultivada de tomate passou de 2.000
hectares em 1958 a 20.000 em 1973. A primeira unidade industrial nasceu na Chamusca em
1938, mas foram somente as fábricas instaladas nos anos 50 como a Compal em 1951, que
adoptaram tecnologia moderna que proporcionou os maiores acréscimos de exportação de pro-
dutos da melhor qualidade. No entanto, ao nível da exploração agrícola, por efeito da contra-
tação estabelecida por latifundiários, fábricas transformadoras e «seareiros», o sistema produ-
tivo ficou muito longe da estabilidade estrutural agrária, apresentando-se conflitual e inseguro.

493
o que ensombra as perspectivas do futuro.

A Floresta
Foi parcelar e escassa a coordenação económica organizada para o mercado de produtos
florestais. O produto mais nobre, a cortiça, deu motivo à constituição da Junta Nacional da
Cortiça que tinha em conta, especialmente, a exportação. Foi criada também a Junta Nacional
dos Resinosos, que zelava pelo mercado também predominantemente exportador. Durante a II
Grande Guerra a importância do consumo de carvão, não somente nos centros urbanos, onde
eram numerosas as carvoarias nos vãos de escada, como também para consumo de «gazogé-
nios» adaptados a veículos motorizados, por carência de gasolina e de gasóleo, levou à criação
efémera, mas significativa, da Comissão Reguladora do Comércio dos Carvões.
Quanto a outros produtos florestais, o mercado enorme de madeiras que em 1970 movi-
mentava 7.050.000 de metros cúbicos, com 2.800.000 de madeira de pinho entregue a serra-
ções e 1.200.000 de eucalipto utilizado nas indústrias de celulose, manteve-se praticamente li-
vre, sendo instituído, durante a Guerra, um sistema efémero e injusto de requisições, que favo-
recia o comprador. Deve registar-se, entretanto, que as Empresas de Celulose, alcançaram con-
stituir, cerca dos anos de 70, uma Empresa única de compra de eucalipto, formada pelo conjun-
to das unidades industriais compradoras. Excluindo este caso de monopólio consentido pelo
Estado, o característico do País é o comércio de numerosíssimos madeireiros, que raras vezes
concorrem entre si, procedendo a arranjos mafiosos, em prejuízo dos pequenos produtores do-
minantes no mercado.
Em conclusão, pode afirmar-se que a organização de coordenação económica dos anos
30 nasceu na altura própria porque, no fim do decénio, eclodiu a II Grande Guerra mundial.
Foi com base em Organismos de Coordenação Económica e noutros ditos corporativos que a
Economia de Guerra, mesmo no nosso País não beligerante, foi montada e conduzida com cre-
dibilidade para o Bloqueio dos Mares, extremamente alargado e eficaz, imposto pelos Aliados.
Portugal não podia furtar-se à disciplina dos «navicerts», cujo funcionamento dependia estrei-
tamente da existência de uma administração económica perfeitamente transparente. Assim, o
País que passara por enormes dificuldades de abastecimento durante a I Grande Guerra mun-
dial de 1914-18 em que tomou parte como beligerante, sofreu a II Guerra ao abrigo de carên-
cias que torturavam a maior parte dos países intervenientes. Estamos convencidos de que os
Serviços de Coordenação Económica, em grande parte entregues à gestão de Agrónomos, ate-
nuaram a Fome que nos poderia ter sido imposta pela instabilidade mundial nessa trágica épo-
ca. Deve acentuar-se também que os mesmos Organismos prestaram ao fomento de sectores
fundamentais da agricultura, apoio sem o qual os progressos não teriam alcançado, até ao pós-
guerra, os mesmos níveis de cobertura de necessidades de consumo e de exportação nacionais
que ficaram assegurados. Tais níveis acabaram por perder-se quando o intervencionismo, mau
ou bom, foi desmobilizado.

Ainda a regionalização de sempre

Quando chegou a República foi restabelecida larga regionalização administrativa e che-

494
gou a ser discutido um projecto de reforma elaborado pelo Partido Republicano que propunha
a demarcação de novas regiões administrativas, com base em conceitos de mérito. O projecto
não despertou interesse e o problema caiu no esquecimento, prevalecendo os Distritos. Com o
28 de Maio a administração passou a ser fortemente centralizada. No entanto, a Constituição
de 1933, tendo em conta fortes movimentos regionalistas qtle se concretizavam sob a forma de
Congressos e outras actividades baseadas na tradição provincial, ordenou nova regionalização
administrativa, indicando que, em novo Código, deveria ser restabelecida a delimitação de
Províncias. Nestas circunstâncias, em 1936, foi aprovado o Código Administrativo da autoria
de Marcello Caetano que, mantendo os Distritos, instituiu onze Províncias, dotadas de Juntas
de província com atribuições de fomento e coordenação económica, cultura e assistência. Foi
com base em trabalho do Geógrafo Amorim Girão, que se retomaram as velhas Províncias,
com inovações. Trás-os-Montes e Alto Douro integrou Concelhos das duas margens do Douro,
de acordo com o conceito geográfico de que «os rios unem e não separam as margens». Em
obediência ao mesmo princípio foi criado o Ribatejo, região nunca antes considerada. A Beira
foi dividida em três Províncias e o Alentejo em duas. A única região intocada continuava a ser
o Algarve.
O Código de 1936, no que se refere à aplicação do regionalismo provincial, resultou
frustrado. As Juntas de Província não foram dotadas com serviços próprios e os Distritos, com
a tradição de um século e Governadores Civis da confiança do Governo Central, mantiveram-
-se triunfantes. Pelo decurso dos bloqueios referidos, não se pode considerar inesperada a revi-
são constitucional de 1959, que decidiu a consolidação dos dezoito Distritos, assistindo-se,
sem pena nem glória, às exéquias das onze Províncias, o que acentuou a ineficácia do revisio-
nismo regional ao longo de 156 anos. Efectivamente, impressiona a solidez das parcelas arbi-
trárias, inscritas no mapa administrativo de Portugal em 1835.
Entretanto, com o início dos Planos de Fomento em 1953 os problemas de desenvolvi-
mento regional passaram a despertar interesse. Por isso o assunto foi objecto de investigação
científica na óptica da homogeneidade, passando depois a ser numerosas e variadas as propos-
tas de regionalização apresentadas por diferentes investigadores e por serviços de planeamen-
to.
A Constituição em vigor voltou a lançar, como a de 1822 e a de 1933, o desafio da re-
gionalização. Por isso passaram a ser apresentadas propostas de regionalização por serviços de
planeamento e também por diversos Partidos Políticos. A questão encontra-se em aberto e tudo
indica que continuamos trilhando caminhos que são pouco mais do que os de sempre, que nos
deram, é certo, as belíssimas regiões tradicionais que os Reis absolutos teriam cobrado da fan-
tasia popular, da inspiração dos trovadores ou dos apontamentos dos almoxarifes. Tais regiões,
de amor ao sítio de nascimento, que tinham nomes de rios, de montanhas e de planuras, torna-
ram-se depois constitucionais, ou cartistas, assumindo colorações setembristas, que deram lu-
gar às fontistas, e mais tarde republicanas, volvidas salazaristas e, agora, democráticas plura-
listas. Nem sabemos se foi o pior ou o melhor, mas sucedeu que se encontram acrescentadas
com as versões tecnocráticas dos Serviços Públicos, e com as expontâneas de Autores diver-
sos. Assim, o País nunca mais se libertará de figurações abundantes e as mais variadas. E tudo
se pode avolumar pela maior disponibilidade da informática computadorizada que procura ter-

495
renos onde actuar, sob estímulo de empresas multinacionais sedentas de mercados.
As regiões andam à solta, desfiguradas por múltiplos interesses, os mais variados, que
se escondem em todas as penumbras, quando se não imiscuem subrepticiamente em indicado-
res que nos enganam, mesmo quando os supomos neutrais. Mas quem sabe de regiões é o Po-
vo, assim o afirmamos na esperança de não praticarmos demagogia populista.

Um Verão no Alentejo

Era no mês de Agosto de 1942. O Mundo estava em Guerra. Nós, não. No Alentejo, para
além de tudo, a canícula formava no ar remoinhos que levantavam a terra ao céu. Eram grandes
as dificuldades de transportes e os Agrónomos da Junta de Colonização Interna deslocávamo-
-nos a pé ou, nos percursos maiores, contratávamos carros de «molas de azinho» movidos a
mula ou a burro. Foi assim que chegámos a uma aldeia do Alandroal de que nem tomámos nota
do nome por inexperiência profissional. No caminho a mula enxotava gafanhotos que há tem-
pos haviam ameaçado praga. Saltavam a esconder-se no restolho das herdades que, a perder
de vista, cercava as habitações da aldeia, todas iguais, brancas de cal, com degraus reluzentes
de lavados, ao rés do empedrado das ruas, desmedidamente largas para a cércea das casas. Não
se via viv'alma. Mas o silêncio era preenchido pela sinfonia dos bichos do calor, a que se
acrescentava o bater das ferraduras da mula e o rolar das rodas do carro alentejano.
— Senhor Miguel, não se vê ninguém, onde estão? — perguntei ao «carreiro».
— Estão em casa! ...onde haviam de estar?
— Não me arranja que possa ver?
O «carreiro» puxou as rédeas do animal, que estacou. Pensou uns segundos. Depois —
«anda mula!» — e avançou um tanto. Parou junto de uma das casas, desceu e bateu três panca-
das secas. Passados momentos, a porta rangeu, abrindo, e assomou o «habitante», que passou
a ser nosso improvisado inquirido.
Tratava-se de situação profissional de assalariado sem-terra. Ao longo do ano os perío-
dos de ocupação coincidiam com os gráficos de procura regional de trabalho que a documenta-
ção da Junta nos tinha revelado. Nessa altura, os padrões do nosso conhecimento campesino
eram quase exclusivamente minhotos, dispondo, quanto ao resto do Mundo, de versões mera-
mente literárias. Mas, confessamos que nenhuma descrição, nenhum relato se ajustava ao qua-
dro real que, neste momento, surpreendemos para nunca mais esquecer. No valor zero do or-
monograma da ocupação ou do emprego agrário no Alentejo do latifúndio cerealícola, o nosso
inquirido e família, mulher e dois filhos de quatro e seis anos, encontravam-se estendidos na
tarimba com bilha de água ao lado. Na lareira, encimada pela chaminé que junto à porta forma-
va a frente da casa, as pedras, embora negras de fumo, não desprendiam calor que revelasse
serventia recente. Faltou-nos coragem para inquirir fosse o que fosse, ligado à lareira em re-
pouso imposto pela estrutura agrária dominante. Saímos, e voltámos ao carro. Quando rodou,
de novo, na sinfonia dos bichos do calor, perguntámos:
— Senhor Miguel, e nas outras casas?
— E igual... Anda mula! Toma lá chicote, que favas não há. Anda mula!... Iss'é mais
manha que doença.

496
O «Plano de Fomento Agrário»

Em 1949 foi elaborado um despacho governamental centralizador de actividades de três


Direcções-Gerais — Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas, Direcção-Geral dos Serviços Pe-
cuários e Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas — e uma Junta — Junta de Colo-
nização Interna — que constituíam uma parte dos Serviços do Ministério da Economia que ti-
nha a seu cargo actividades agrárias. Reconhecia-se que «os Serviços agrícolas oficiais manti-
veram-se até 1918 concentrados numa só Direcção-Geral — Direcção Geral de Agricultura
que superintendia em todas as actividades agrícolas por forma a orientar, em harmonia com
um pensamento superior, a actuação dos engenheiros agrónomos, engenheiros silvicultores e
médicos veterinários dos serviços oficiais». Deve ter-se em conta que, em 1918, existia o Mi-
nistério da Agricultura. Acontecia por isso que, em 1949, ficavam à margem das medidas cen-
tralizadoras agrárias, os Organismos de Coordenação Económica que faziam parte da Sub-Se-
cretaria do Comércio, e outros da Sub-Secretaria de Estado da Indústria, em que se dividia o
Ministério da Economia. O esforço centralizador da Sub-Secretaria de Estado da Agricultura
era, portanto, parcial, mas foi decidido porque, em função da organização diversificada «se
perdeu em unidade, pois a actividade daqueles organismos tem-se subordinado a planos ou
programas de trabalhos elaborados pelos respectivos conselhos técnicos, que, isoladamente,
encaram determinados aspectos, a resolver, dos nossos problemas agrários». Registava-se por-
tanto que «são notórios os inconvenientes do sistema, agravados pelo facto de nem todos os
serviços terem elaborado os respectivos planos. Os problemas agrários são de tal modo inter-
ligados que a sua eficiente resolução se não compadece com acções isoladas, tem de ser enca-
rada em conjunto pelos vários sectores que devem intervir na sua resolução».
O Agrónomo Mário Pereira, no seu trabalho intitulado «Fundamentos e objectivos do
Plano de Fomento Agrário», relata-nos, em 1955, que «assim nasceu o Plano de Fomento
Agrário, cuja elaboração foi cometida a vinte técnicos, entre médicos veterinários, engenheiros
agrónomos, engenheiros silvicultores e engenheiros geógrafos, pertencentes às Direcções-Ge-
rais dos Serviços Agrícolas, dos Serviços Pecuários, dos Serviços Florestais e à Junta de Colo-
nização Interna».
Passados alguns decénios sobre esta iniciativa deve reconhecer-se que foi notável o tra-
balho de Inventário, que constou da elaboração da Carta Agrícola e Florestal, da Carta dos
Solos e dos Inquéritos Agrícolas. Historicamente, esta iniciativa somente tem paralelo com a
da Carta Agrícola e Inquéritos de 1889, que ficaram incompletos e com o Inquérito de Lima
Basto de 1936. Os trabalhos cartográficos conduziram à preparação de documentos de grande
valor para o conhecimento da agricultura e dos recursos agrícolas portugueses e os inquéritos
facultaram informação que actualizou e pormenorizou as sondagens anteriores. Os meios utili-
zados pelos responsáveis por estes trabalhos corresponderam a técnicas muito avançadas para
a época, particularmente na elaboração de cartas, mau grado a escassez de recursos postos à
sua disposição. Julgamos que o trabalho de actualização destas cartas se encontra hoje pratica-
mente abandonado, e os inquéritos repousam nos arquivos, se acaso não se perderam, como
muita outra documentação agrária.
Outro objectivo do Plano era o Ordenamento, palavra mágica que Mário Pereira definiu

497
como método que «tem em vista determinar o sentido do melhor aproveitamento do solo e da
mais adequada estrutura agrária, com o objectivo fundamental de prover ao abastecimento da
população, considerando a melhoria do seu nível de vida». Não oferece dúvida que a ideia tec-
nocrática, no bom sentido do termo, de encontrar um Ordenamento susceptível de ser «concre-
tizado numa Carta, na mesma escala da Carta Agrícola, denominada Carta de Ordenamento»
representou, nesta época, uma inovação, que deu entrada na rotina do debate das «problemáti-
cas agrárias», com o jeito que lhe assegurou sobrevivência particularmente notável. O Ordena-
mento surgiu assim como resultante da «forma ideal de aproveitamento do solo», elaborada
em função da respectiva aptidão, que revela em Cartas que podem ser manuseadas mesmo em
Gabinete, um Potencial que assume as proporções de reserva, manancial ou esperança.
Com base em teoria dos planeadores da época, filosoficamente correcta, mas que sofreu
desgaste de agressões das modas, Mário Pereira avisa que se torna depois essencial proceder
ao Cálculo das necessidades «considerando a elevação do nível de vida da população... e o co-
mércio externo dos produtos que podemos produzir em excesso». E conclui: «Com base nesses
elementos rever-se-ia o ordenamento, de forma a fazer o Ajustamento das necessidades nacio-
nais ao potencial calculado. O conjunto de medidas a tomar no sentido de realizar o ordena-
mento final constituiria, verdadeiramente, o Plano de Fomento Agrário».
Como é natural, e de acordo com tradições históricas, o «Plano», mesmo que tivesse si-
do efectivamente elaborado e, porventura, aprovado, nunca viria a ser executado. O Ordena-
mento flutua à superfície das ideias como uma espécie de utopia. Teve ensaio frustrante no
«condicionamento» da cultura da vinha, na defesa de olivais e de montados, no regime de polí-
cia florestal e, mais recentemente na reserva de terrenos agrícolas. Agora anda presente na lin-
guagem dos políticos, sempre que se encontram em dificuldades para justificarem o que
«acontece», como, por exemplo, no acréscimo da plantação de eucaliptos. Dizem, em regra,
que tudo ficará certo quando for praticado «um bom ordenamento». E as pessoas ficam, em si-
lêncio, olhando umas para as outras, como se estivessem à espera de um milagre.

498
51 — A ALVORADA DO INDUSTRIALISMO
CONTEMPORÂNEO

Depois da II Guerra Mundial não era sustentável a defesa de um Portugal «essencial-


mente agrícola». Embora na Europa devastada, e no Mundo, a agricultura representasse o meio
exclusivo de combater a Fome, pelo que nenhuma das políticas de reconstrução, tanto de ven-
cedores como de vencidos, a excluiu dos seus programas, acontece que os «milagres» econó-
micos de grandes Países que rapidamente se ergueram para o Futuro, contaram com o apoio
decisivo da Indústria moderna e da expansão de Serviços, nunca antes imaginados. Portugal
foi espectador, não beligerante, do que foi talvez a maior e a mais alargada das guerras concen-
tradas no tempo. No seu território não contemplava ruínas materiais, mantendo arrecadados
valiosos recursos financeiros. Era tempo de romper finalmente com a velha tradição rural.

Os pioneiros do industrialismo

Estava em curso de desenvolvimento a Lei de Reconstituição Económica de 1935, pre-


vista para o prazo de quinze anos. No termo do primeiro quinquénio, as comemorações dos
«Centenários de 1940» levaram Ezequiel de Campos a concluir que «o conjunto de realizações
mais os Melhoramentos Rurais proporcionaram muitos benefícios e embelezamentos, valori-
zaram muito as estradas e o património nacional, dignificaram a iniciativa de cuidado do Go-
verno por elementos históricos ao abandono, reforçaram a defesa nacional. Simultaneamente
foram uma escola de pensar e de fazer. E deram solução temporária ao desemprego. Faculta-
ram, porém, muito pequena arrumação definitiva de gente fora do Orçamento, e não fizeram
quasi nenhuma correcção dos desfavores do território, nem começaram a induzir actividades
essenciais faltantes. Não deram sequer normas e estudos para a orientação do labor governati-
vo em alguns factores primários da reconstituição portuguesa, como a electrificação, que já
nem figura no Plano nos últimos anos. Por isso é necessário cuidar-se de outras realizações que
tem uma forte acção directa no bem-estar e na arrumação da gente, integradas no conjunto
ponderado em ajustamento à vida nacional».
Como vimos, no que respeita à agricultura, registavam-se avanços, neste quinquénio, no
arranque da Hidráulica Agrícola, da Colonização Interna e do Povoamento Florestal. No entan-
to, Ezequiel de Campos, apresentava, isolado no panorama das ideias técnicas nessa altura for-
muladas, análises de «solução de alguns elementos primários» que a Administração não enca-
rava. Os combustíveis minerais, carvão e óleos minerais, eram objecto de referência. O Ferro
e o Aço eram discutidos no meio do silêncio generalizado. Os Compostos de Azote — Adubos
e correctivos para a agricultura, mereciam destacada reflexão. A Electricidade era o tema forte
— o idealismo de Ezequiel de Campos avançava «o aproveitamento do Douro» quando o País
dispunha de Lindoso, Santa Luzia, Central do Tejo e pouco mais em actividade. Quanto à agri-
cultura, Ezequiel de Campos desenvolvia as suas ideias sobre produção de Cereais e Carne;
Lã, Peles e Couros; Batata; Feijão; Linho e Canhamo; Madeira; Aduelas e Massa para fabrico

499
de Papel; Oleaginosas.
Com exactíssima consciência da situação económica nesta época, Ezequiel de Campos
afirma que «estão na base, em paz ou na guerra, os mesmos problemas antigos, estruturais,
agora mais prementes de solução». E evoca Correia da Serra, avisando os seus leitores de que
«mais de um século e meio volvido, enunciamos os mesmos problemas. Eles vêm multisecu-
larmente na estrutura da vida da Grei: Estêvão Cabral e os da Academia gizaram-lhes soluções;
Alexandre Herculano, nos Opúsculos, e Oliveira Martins, no Projecto de Lei de Fomento Ru-
ral cuidaram de pedir para eles educação e actos governativos. A Engenharia e a Agronomia,
com as Finanças de Portugal bem podem resolvê-los numa geração, se forem capazes de os
definir bem e as suas soluções no conjunto necessário».
Guardamos inesquecível memória do convívio com o Professor Ferreira Dias a partir
dos anos 50. Ele apresentava-se da forma que descreve na «Linha de Rumo» que publicou em
1944:
«Filho de um ferroviário, cujo exemplo de amor à profissão procuro seguir, desde os
meus dez ou onze anos que me eram familiares a partida do comboio 15, o desdobramento do
51 ou o atraso do 206; e, a partir dessa idade, nasceu em mim uma predilecção que ainda hoje
se mantém; ver uma locomotiva.
Concluído o liceu, matriculei-me em Engenharia sem um minuto de reflexão ou de dú-
vida, como se a arte do engenheiro fôsse o único saber do mundo que merecesse o trabalho de
ser estudado. E estudei com entusiasmo; mas ainda estava longe o fim do curso e já as primei-
ras sombras me entristeciam.»
A razão da tristeza era profunda e real:
«dos numerosos produtos sôbre que assenta a vida do engenheiro, de que se fala todos
os dias num curso de engenharia, cujos nomes chegavam em tôdas as aulas aos meus ouvidos
curiosos — metais, produtos químicos, materiais de construção, ferramentas, material eléctri-
co — nada ou quasi nada se fabricava em Portugal; nunca uma especificação ou um catálogo
de fabricante português aparecia entre as dezenas de catálogos estrangeiros que eram e são, nas
aulas práticas, um dos apoios do estudante; nunca um objecto com marca portuguesa apareceu
como modêlo de estudo ou como tema de prelecção.»
E mais ainda:
«a escassa colaboração dos portugueses no progresso das ciências físico-químicas e das
suas aplicações. Raríssimas vezes se topava um nome que não fôsse exótico; nunca uma expe-
riência ou um tipo construtivo. A engenharia portuguesa perdia o brilho que eu julgara poder
atribuir-lhe.»
Ferreira Dias confessou-nos que, nas suas viagens à Europa, no «Sud-Express», depois
de vencer longos quilómetros «a vapor», em Portugal e em desertos de Espanha, na de Medina
dei Campo, de madrugada, ia ver atrelar a locomotiva eléctrica que ao longo da Espanha indus-
trializada levaria a composição à fronteira francesa, sendo os passageiros entregues, depois,
aos modernos comboios da Europa. A linha electrificada tinha para Ferreira Dias o valor de
um símbolo emocionante, que fazia vibrar o seu espírito de industrialista. Conhecêmo-lo no
Instituto Superior Técnico, no decurso do Ciclo de Conferências sobre Economia Nacional or-
ganizado, em 1952, pela Associação de Estudantes. Recordamo-nos de que depois de longa

500
conversa, no instante em que íamos iniciar a nossa intervenção, nos disparou: «não venha para
cá dizer que Portugal é um País essencialmente agrícola». Sucedeu, porém, que o nosso texto,
já elaborado, terminava assim:
«a revolução na agricultura é um facto, simultâneo da revolução industrial do século
XIX. O progresso da indústria salta à vista pela novidade. O da agricultura passa despercebido
a muitos, em resultado da existência anterior de tão generalizada e banal actividade. Fizeram-
-lhe a sangria do melhor do seu elemento humano e, apesar de tudo, promoveu a profunda alte-
ração dos seus métodos e alargou desmedidamente a sua expansão geográfica, garantindo e
melhorando as condições de abastecimento de uma população que ràpidamente se multiplicou.
Não pode deixar de impressionar-nos o evidente paralelismo dos dois movimentos de
progresso: o da indústria e o da agricultura. Alguma coisa os liga nos mesmos destinos. Mas
também, alguma coisa os separa, nos horizontes que oferecem como enquadramento do traba-
lho humano e como ambiente de concretização de aspirações sociais.
Só por meio de alívio da pressão demográfica nos campos, onde houver sobrepovoa-
mento, e do recurso aos meios modernos de intervenção técnica na agricultura, se poderá evi-
tar a subalternização das populações rurais, perdidas em pleno tumulto e egoísmo contempo-
râneos, ignoradas em seu isolamento de sempre, inadaptadas ao estímulo do progresso.
A política de fomento terá de considerar como profundamente errado o conceito que
procura estabelecer nos espíritos a ideia de que possa existir modernamente, em qualquer lu-
gar do mundo, irredutível oposição entre agricultura e indústria. Só na plena harmonia destas
duas forças, construída mercê da realização de um esquema de complemento recíproco, se po-
derá elaborar o fermento da prosperidade económica: uma indústria que represente simultânea-
mente o estímulo e resposta dados a uma agricultura que assim se mecaniza e equipa com os
meios técnicos para industrializar, no âmbito da exploração agrícola, muitos dos seus produtos
e para fornecer outros sob a forma de imprescindíveis matérias-primas.
Desta forma não importa discutir se Portugal é, ou não é, «essencialmente agrícola».
Importa definir a verdadeira grandeza dos problemas da agricultura na política de fomento na-
cional. Para alcançar este objectivo tem de firmar-se a generalizada consciência de que a agri-
cultura, perante o apelo das necessidades humanas, não admite sequer confronto com outros
sectores da economia — porque é diferente na essência e na finalidade: é a primeira linha da
batalha sem fim contra a Fome.»
Fernando de Oliveira Baptista, em «Política Agrária (anos trinta — 1974)» analisa o
«projecto industrialista» na sua aplicação à agricultura observando, entre outros aspectos, que
«o projecto de colonização interna... não teve expressão significativa» sendo «abandonado»
no fim da II Guerra Mundial. Todavia o Autor descortina em relação a projectos de coloniza-
ção que se mantiveram, sem qualquer espécie de concretização, no II Plano de Fomento, a pre-
sença de uma corrente agronómica que designa industrialista. E, a propósito, cita João Mar-
tins Pereira quando este afirma que «o país agrícola perdeu a partida definitivamente com o
findar dos anos quarenta... A burguesia portuguesa vai por fim realizar a sua revolução indus-
trial». Oliveira Baptista afirma que «numa situação em que os produtos oriundos da agricultura
tinham, no mercado, um baixo nível de preços, o essencial do projecto dos industrialistas em
relação à agricultura era fazer desta um bom comprador, ou seja, assegurar um alargamento do

501
mercado interno». E cita Ferreira Dias: «no caso português em que não é razoável encarar de
momento outro mercado para a indústria que não seja o interno, pode dizer-se que a agricultu-
ra é o grande cliente daquela pela sua posição na economia nacional; a indústria só tem vanta-
gem em que esta viva próspera, porque não interessa a ninguém ter fregueses sem desafogado
poder de compra».
No desenvolvimento da sua análise do «industrialismo na agricultura, Oliveira Baptista
cita passagens do II Plano de Fomento em que é afirmado; «esgotadas as possibilidades de co-
lonização dos baldios deve reconhecer-se agora que os resultados económicos e sociais atingi-
dos não tiveram influência na resolução dos nossos problemas agrários» e, depois, «a oportuni-
dade do desenvolvimento da indústria e do consequente desenvolvimento económico obrigam
imperiosamente a renovar os meios de procurar soluções para o nosso problema agrário».
Todavia, essas soluções não surgiram aplicadas, como tentamos observar na análise dos
Planos de Fomento e, nestas condições, a «Linha de Rumo» de Ferreira Dias apresenta-se co-
mo um brado no deserto que o tempo transformou em expressão de um idealismo dos mais sin-
ceros. As palavras de Ferreira Dias no seu «Prefácio» definem uma época de penosa evolução
política, muito recente, no que respeita à implantação do industrialismo, que merecem figurar
em antologia, para que possam ser meditadas:
«E natural que se encontrem numerosos pontos de semelhança entre os textos das pro-
postas de lei sôbre electrificação e indústria e as opiniões aqui expostas: não se trata de coinci-
dência fortuita mas de consequência da minha participação nesses documentos, primeiro como
vogal do extinto Conselho Superior de Electricidade (1930-31), depois como chefe da extinta
Direcção dos Serviços Eléctricos (1931-35), depois como presidente da também extinta Junta
de Electrificação Nacional (1936-40), e por último como Sub-Secretário do Comércio e Indús-
tria (1940-44) — quási quinze anos de persistência na mesma directriz, assistindo, vencido
mas não convencido, a sucessivas reformas em que os Serviços mudavam de nome sem que
as questões de fundo se abordassem corajosamente.
Ter que dizer e andar calado, manter anos e anos um ideal que não se julga desarrazoado
e vê-lo arrastar vida latente por indiferença de outrem, sem buscar publicidade, sem haver nun-
ca tentado conquistar as graças da multidão, não digo que seja grande virtude; mas há um indí-
cio, se não de humildade, ao menos de recolhimento, em rejeitar a variante, assás divulgada,
do pensamento cartesiano: strepito, ergo sum.
Mas como sei que muitos portugueses tomam por errada a orientação daqueles diplo-
mas sem deixarem esboçada outra melhor, decidi-me a explicar aos que quiserem esclarecer-
-se as razões físicas do meu pensamento; das morais faz êste prefácio suficiente exposição.
No meio da Europa que, sob o impulso das angústias, da miséria ou das pressões sociais
da guerra, cuida e cuidará com intensidade crescente em organizar e desenvolver tôdas as fon-
tes de riqueza para melhorar em proporções nunca sonhadas o nível de vida dos seus trabalha-
dores, penso que Portugal não pode permitir-se o luxo de discutir se deve andar ou ficar para-
do, porque êsse tema perdeu oportunidade, é já hoje velharia caduca; nem lhe é legítimo pensar
que existem varinhas mágicas ou invioláveis defesas morais fora da solução inflexível de afas-
tar pieguices ou academismos e caminhar resolutamente com o tempo. Tôda a reacção anacró-
nica é insubsistente. Isto não é desamor do passado mas previdência; pensar no futuro não des-

502
respeitar os nossos mortos mas antes consolidar a obra que nos legaram.
Em 1939 já estávamos atrasados; a guerra vai marcar uma descontinuidade na marcha
do tempo — independentemente de cada um, no remanso da família, lhe chamar progresso ou
regresso. Se não dermos um salto em frente afastamo-nos a perder de vista; afirmá-lo é dever
mais forte que o comedimento de continuar em isolado silêncio.
Aos que estiverem de acordo comigo servirá o livro de conforto; aos que se converte-
rem servirá de lição; para os que se mantiverem fiéis à ideia fisiocrática de que a sabedoria está
em não fazer, o livro valerá como um documento assinado em que o opositor confessa o êrro.
Reconheço que vou perder um grau de liberdade; o mundo tem por axioma que o que
se escreve é como um sinete ne varietur; basta ver a frequência com que a crítica compara tex-
tos de épocas distantes, o afã com que se rebuscam as mais simples variantes de duas edições;
tôda a diferença é fraqueza. Tinha razão o professor americano de Ciências Económicas que
perguntado sôbre o motivo por que não escrevia um livro respondeu não querer o direito de
mudar de opiniões.»
Supomos ter interesse retomar o comentário de Oliveira Baptista quando afirma: «as
transformações económico-sociais verificadas e as implicações — nomeadamente a consolida-
ção de uma burguesia capitalista nos Campos do Sul — contribuíram para que as querelas entre
industrialistas e grandes agrários fossem reabsorvidas. Ou seja, do latifundismo saiu o capita-
lismo agrário e às disputas entre industrialistas e grandes agrários sucedia-se uma convergên-
cia de posições entre a burguesia agrária capitalista, que nos Campos do Sul se havia sobrepos-
to ao grande agrário tradicional, e os interesses ligados à finança e grande indústria».
O comentário transcrito afigura-se-nos rigorosamente exacto, e essencialmente para au-
xílio do nosso raciocínio, quanto à inserição que o Autor lhe deu na análise dos aspectos de
«política agrícola» referentes ao período crítico em que hipóteses de colonização interna se de-
bateram durante a vigência dos Planos de Fomento. Mas ficaram muito mais vivas as querelas
ou os confrontos de posições noutros campos profundamente antagónicos. Servirão de exem-
plo os confrontos entre a liberdade que os Camponeses sempre procuraram, sem a alcançar,
para gerir as suas empresas e a vida. e a neo-escravatura contratual do assalariamento, a coope-
ração e a concorrência desenfreada, a subsistência alimentar colectiva e o lucrativismo empre-
sarial privado, a generosidade e o egoísmo, o microfundismo e o latifundismo, a vizinhança e
o isolamento, isto, dizíamos, como exemplos que talvez se encontrem integrados no tema de
que nos ocupamos, na certeza de não dizer tudo, sobre o confronto entre industrialismo e rura-
lismo.
Ferreira Dias é exemplo de industrialista moderno que entrou no esquecimento ao longo
da luta desenvolvida nos últimos decénios para exploração de novos recursos. Professor uni-
versitário desprendido de qualquer interesse que estivesse ligado a grupos financeiros ou po-
líticos, não recusou, no entanto, postos de Governo. Mas a sua passagem no Governo deixou
rasto somente acessível a quem saiba dar valor à intenção das atitude para além da sua expres-
são espectacular. Julgamos não ser possível encontrar-lhe comprometimentos com ambições
de poder, e apenas o orientou o empenho de participar nos esforços em favor do progresso do
País que era o seu maior estímulo.
Foi Subsecretário de Estado da Indústria em 1940 e fez breve passagem pelo Ministério

503
da Economia depois de 1958. No prefácio da «Linha de Rumo», recordando o primeiro cargo
no Governo, que foi decisivo, escreveu:
«Pensei que podia dar uma colaboração modesta mas efectiva — e subi as escadas. E
foi com ardor que me lancei a escrever o projecto da reorganização industrial, sem o dizer a
ninguém, e foi com entusiasmo que o apresentei antes de terem passados dois meses sôbre o
dia da posse. O da electricidade estava escrito há muito.»
Talvez o mais importante dos desafios da vida de Ferreira Dias foi a Companhia Nacio-
nal de Electricidade a cuja fundação presidiu, acompanhando com a maior dedicação e entu-
siasmo a construção da rede de Transporte de energia eléctrica em Portugal. Antes da existên-
cia desta Rede interligada, as indústrias viam-se obrigadas a instalar-se junto das fontes de
energia, como os lanifícios da Covilhã ou a construírem por sua iniciativa geradores de energia
eléctrica, como sucedeu, por exemplo, com indústrias de papel na Beira. Por outro lado, as pri-
meiras centrais hidro-eléctricas lançavam as suas linhas de transporte em busca de consumos,
como sucedeu com Lindoso em direcção ao Porto, que ficou «inundado» de energia a baixo
preço, ou Santa Luzia, que se orientou no caminho de Coimbra.
A Companhia Nacional de Electricidade construiu a primeira linha que transportou a
Lisboa a energia do Castelo do Bode, proporcionando à velha central térmica do Tejo o descan-
so que a veio a transformar em «museu industrial». Logo de seguida, construiu a rede Nacional
que correspondia a um equipamento de importância não menor, para a época, do que a rede
dos caminhos-de-ferro fontistas. Efectivamente, o desenvolvimento industrial deixou de estar
subordinado à tirania das fontes energéticas, o que era muito importante para as ideias da épo-
ca. A energia na Rede interligada era sobrante, e a economia das centrais exigia acréscimos de
consumo. A problemática da energia mudou, mas a Rede Nacional mantém-se necessária.
Em 1959, Ferreira Dias era Ministro da Economia. Podemos testemunhar a posição de
industrialista que assumiu em face de esforços que visavam o desenvolvimento da Agricultura
portuguesa. As divergências que tivemos resultaram do problema dos Eucaliptos que o «indus-
trialismo» de Ferreira Dias nunca alcançou compatibilizar com imperativos de defesa ambien-
tal e ecológica. Não se imagine, porém, que o Ministro tinha interesses ligados a qualquer Em-
presa industrial que instalou ou defendeu.
Foi-nos dado o encargo de orientar um grupo de trabalho que deu execução a um despa-
cho interno, de 15 de Maio de 1959, que não foi ao «Diário do Governo» e que tinha o seguinte
teor:
«Considero dever dar-se indiscutível prioridade a todos os estudos de índole agrícola
que permitam iniciar tão cedo quanto possível as obras dos novos empreendimentos hidro-
-agrícolas, porque estes levam alguns apos a concluir-se e ainda mais a dar o seu pleno rendi-
mento, além de oferecerem as vantagens que é inútil repetir; mas ao lado do estudo dos novos
regadios, e em grande parte ligado a ele, há, como tema mais geral que estudar a adaptação, o
aproveitamento e a comercialização das culturas industriais.
Os consumos a satisfazer pelo aumento da produção agrícola podem classificar-se por
esta ordem de preferência:
1.° — Os consumos internos, na medida em que os dados estatísticos permitam prevê-
-los nos próximos 10 anos, porque a satisfação plena, embora sem excessos no-

504
cívos de oferta, da procura interna é condição essencial da alegria de viver da po-
pulação, da estabilidade de preços e da calma social e política.
2.° — Os consumos externos, que a exportação possa satisfazer, porque ninguém igno-
ra quando necessitamos aumentar e diversificar as nossas vendas no estrangeiro.
3.° — Os consumos internos satisfeitos pelas províncias ultramarinas e que só como úl-
tima necessidade deveremos incluir na rotação das nossas culturas.
Tenho sempre defendido que nos negaremos a nós próprios se não conseguirmos au-
mentar o nosso potencial de trabalho através dos produtos da terra; e por isso incluo entre as
actividades fabris, que devemos estimular ou desenvolver, a industrialização dos produtos
agrícolas, para consumo interno e externo. Mas este sector só poderá progredir se as três Secre-
tarias de Estado integradas neste Ministério actuarem em conjunto.
Entre estas culturas, penso principalmente nas seguintes:
a) — Beterraba, para produção de açúcar, álcool e forragens; se pudermos reduzir o
preço do açúcar e do álcool para a indústria, aumentam as possibilidades de ex-
portar licores, chocolates e compotas, e criar novas indústrias químicas. Para estu-
dar a política do açúcar está já nomeada uma comissão.
b) — Cevada dística, para produção de malte. Está em marcha um projecto de reforma
da indústria da cerveja, da qual se espera conseguir algumas possibilidades de ex-
portação e aumento da produção de malte, com esse projecto se liga o da reforma
da indústria das garrafas e outros recipientes de vidro ou lata, de forma a baratear
o seu custo, o que virá facilitar os casos citados nas primeiras 7 alíneas desta lista.
c) — Tomate, em fresco ou em conserva, já hoje exportado mas susceptível de melhoria
substancial, mediante adequada campanha de aperfeiçoamento industrial e de
prospecção e propaganda nos mercados externos.
d) — Hortaliças, idem.
e) — Pimentão, idem.
f) — Azeitonas, idem.
g) — Frutas, idem, considerada a palavra no sentido corrente. Tenho como da maior
importância o estudo da produção, indústria e comércio dos produtos frutícolas.
h) — Batata para amido, com a qual se espera obter matéria-prima metropolitana a pre-
ço acessível e quantidade estável para a produção de amidos e féculas, cuja indús-
tria está em projecto de reorganização, com o intuito de mudar o sinal do comér-
cio externo nesse sector.
i) — Forragens, para intensificar a exploração pecuária, de que somos fortemente de-
ficitários em carne e peles,
j) — Plantas aromáticas, de que se extraiem óleos essenciais, cuja exportação é ainda
quasi nula, excepção feita para o óleo de eucalipto,
k) — Tabaco, para substituir, nas qualidades em que for possível, a volumosa importa-
ção do estrangeiro.
1) — Eucaliptos, para fabrico de celulose de cujo aumento de produção, com venda as-
segurada no estrangeiro, nos ocupamos presentemente,
m)—Plantas taninosas, para reduzir a importação cascas e extractos tanantes.

505
As culturas apontadas nestas 13 alíneas não brigam, pelo menos no estado actual do
nosso comércio externo, com as produções das províncias ultramarinas, salvo no caso da be-
terraba; mas neste, a produção metropolitana deverá ser sempre muito pequena em relação ao
consumo actual de açúcar e orientada apenas no sentido de suprir aumentos de consumo sem
originar quebras nas vendas ultramarinas actuais.
Seria do maior interesse que a Secretaria de Estado da Agricultura me remetesse tão ce-
do quanto possível, uma série de curtos relatórios preliminares sobre o que se pensa neste mo-
mento de cada uma destas culturas — ou de outras que entenda dever juntar — quanto às pos-
sibilidades de preço, quantidade, qualidade e localização conveniente — e ainda sobre os en-
saios de culturas (e seu programa) que considera necessários para esclarecimento da matéria.
Onde houver informações de inviabilidade tidas como seguras não vale apena insistir, pelo me-
nos por agora; onde houver certezas há que as explorar; onde houver dúvidas há que prosseguir
com fé.
Com base em cada um destes relatórios trabalharia uma comissão com representantes
das Secretarias de Estado da Agricultura, Comércio e Indústria, a fim de definir, seguir e coor-
denar os esforços a fazer em cada caso; ao Instituto Industrial ou outro organismo aconselhá-
vel, se determinaria a realização dos ensaios industriais necessários para se partir de bases se-
guras.
Para uma perfeita colonização interna, aumento de produtividade e melhoria de vida da
gente do campo, é necessário estruturar simultaneamente o regime de cada cultura e os estabe-
lecimentos industriais que a hão-de laborar e conhecer os mercados que absorverão os produ-
tos, a fim de que se definam correcta e oportunamente as características e a localização de to-
dos os órgãos deste ciclo. É nosso dever fazer isto.»
O grupo de trabalho mobilizou o parecer de mais de quarenta Técnicos do Serviço Pú-
blico. No âmbito da Agricultura, teria sido esta a última vez em que se esteve a caminho de
proceder «ao levantamento da situação técnica e económica da Agricultura portuguesa» so-
mente com recurso a contribuições nacionais. Daí em diante passou a ser corrente a contrata-
ção de Técnicos estrangeiros, o que, aliás, tem tradições históricas, de grande utilidade. Mas o
pior é que, dado o desenvolvimento contemporâneo do País, esses Técnicos passam a intervir
usando largamente o trabalho de Técnicos nacionais, enquanto vêm passar as suas férias remu-
neradas no gozo do sol mediterrânico.
Mal se encontravam concluídas as tarefas preliminares do grupo de trabalho, Ferreira
Dias abandonou o Ministério da Economia, deixando o lugar a outros Ministros, com outras
ideias. Uma colecção dos referidos relatórios faz parte dos nossos arquivos. Estamos convenci-
dos que as restantes colecções se perderam nos arquivos nacionais. De qualquer modo, o des-
pacho foi cumprido na sua determinação final: «É nosso dever fazer isto», mas, nesta altura,
ficou feito no papel.
Na «Linha de Rumo», Ferreira Dias anunciava o segundo volume que nunca chegou a
ser publicado. Quem sabe se o Autor, depois de nos revelar um sonho, não teria tido pena de
nós, poupando-nos do terror de um pesadelo. Deixou escrito:
«As meditações dêste prefácio estendem-se por um quarto de século — nascidas por
volta de 1920 nos velhos barracões do Conde Barão. O espírito que se formou com elas não

506
podia ser diferente do que é nem actuar de outra maneira. Para o explicar as escrevi.
Que as quatro actividades económicas a que atrás me refiro — electricidade, indústria,
caminhos de ferro, marinha mercante — encontrem o carinho de que precisam é o voto dêsse
espírito que nem por ser de formação tão positiva tem menor amor do que qualquer outro à ter-
ra em que nasceu. Cada um ama a seu modo.»
Na marcha da humanidade o industrialismo não significa a negação da Agricultura mas,
simplesmente, que esta não é uma fase do percurso, conservando a presença permanente em
constante adaptação progressiva. Embora outras actividades em crescimento atraiam os ho-
mens a novas profissões, ou a vida urbana dê abrigo a renovadas gerações de «despaizados»,
a Agricultura conserva o atractivo aliciante e mostra que o seu apelo continua escondido no
coração de prisioneiros que esperam a oportunidade de se evadirem à procura de espaço onde
se encontre ainda o húmus em que mergulham as raízes, a sustentarem caules, folhas, flores e
frutos que comandam a vida biológica e as suas mais belas fantasias.
Nestas circunstâncias, o industrialismo conserva o impulso necessário do progresso
agrícola e seria errado procurá-lo apenas no pensamento dos engenheiros, uma vez que se en-
contra presente no ideário dos agrónomos. Serve de exemplo João da Motta Prego e a sua in-
tenção, sem dúvida industrialista, revelada na Horta do Tomé, na Quinta do Diabo, no Padre
Roque, nos Netos do Nicolau, na Leitaria da Rosalina, na Lagoa do Donim, ou no Pomar do
Adrião. O Tomé, filho de um carpinteiro, discípulo do Tio Salomão, Mestre Escola vegetaria-
no, é um modelo de horticultor interessado na implantação das técnicas modernas. Os filhos
do Nicolau, criadores dos Bichos da Seda, não visam mais do que construir o suporte de uma
indústria. O Padre Roque, moderniza a produção do mel. A Rosalina instala uma leitaria indus-
trial, proclamando a ideia inovadora de que é preciso adoptar a solução cooperativa para haver
na Aldeia felicidade e progresso. O Lopo, é o visionário da criação dos peixes e ao casar com
a Conceição proclama: «é preciso que os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos se não de-
sapeguem da terra e não abandonem o trabalho». O Adrião, tenta a fruticultura industrial. To-
dos representam um mundo e uma época que Motta Prego interpretou à maneira campesina de
Virgílio, acrescentando-lhe tecnicismo autêntico, de Agrónomo, a que deu sentido utilitário,
produti vista e triunfante que lembra Olivier de Serres.

O Queijo, leite conservado e requinte alimentar

Desde tempos imemoriais que se pratica a coagulação do leite, com o «cardo», nome
vulgar atribuído a espécies da família das Umbelíferas. Em Portugal, para o fabrico de queijo
foi usado o Cardo de coalho, a Cynara cordunculus, L., espontânea na Estremadura, Ribatejo
e Algarve, e também cultivada (J. Vasconcellos). Têm sido adoptados muitos outros coalhan-
tes. Obtida a coalhada procede-se à sua enformação podendo o queijo ser consumido fresco
ou depois de submetido a maturação, segundo sistemas muito variados. O Queijo constitui a
forma mais antiga de conservação do leite e, associado ao pão, teria feito o repasto frugal, mas
reconfortante, de gerações sem fim de Camponeses. No Alentejo, vimos cortá-lo à navalha em
pequenas lascas, e depois saboreado com Pão de Trigo. Recordamo-nos de ter imitado os rurais
do Sul, sentado à sombra das azinheiras ou dos sobreiros. Conservamos, como relíquia, a na-

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valha regional de que os trabalhadores se serviam no campo, com a marca «B.B.B.», que nos
afirmaram ser as iniciais de Boa, Bonita e Barata. No Alentejo a alternativa do Queijo era o
Toucinho, de que falaremos mais adiante, e as Azeitonas. No Norte, a associação da proteína
com o hidrato de carbono era feita com a Sardinha e a Boroa, nunca tendo visto a dieta do
Queijo, mesmo entre os Pastores. Era consumida a sopa de leite.
A Queijaria portuguesa é particularmente modesta. O mais célebre dos Queijos foi in-
ventado na Serra da Estrela, com o pastorio da Ovelha. As técnicas artesanais alcançaram pro-
dutos de altíssima qualidade, que a indústria não logrou ainda normalizar. O Queijo da Serra
apresenta-se amanteigado, como produto estacionai e de qualidade muito variável, conforme
o leite de que provém (a ovelha e a pastagem), as mãos que o enformaram, e todos os cuidados
e equipamento dos artesãos. No Sul, celebrizou-se o Queijo de Serpa e o de Évora, também de
Ovelha, e o Cabreiro, de leite de Cabra, de Castelo Branco. Talvez desde o tempo dos Mouros,
se acaso não chegou com os Visigodos ou os Romanos, existe nos arredores de Lisboa o Quei-
jo Saloio, e o de Azeitão, de muito boa qualidade. Pela Estremadura pastam rebanhos que pro-
duzem diferentes tipos como os de Alverca, Alcobaça e Tomar, também muito estimados. Ser-
ras menores são berço do Queijo Rabaçal, muito ligado a micro regiões de pastagens especiais.
Nas Ilhas, celebrizou-se o Queijo da Ilha de leite de vaca, picante, como o de S. Jorge, em es-
pecial.
Depois da implantação da Indústria de Lacticínios, o que ocorreu, como referimos, de-
pois dos anos 30, praticaram-se imitações de Queijo Holandês, tentaram-se diferentes modali-
dades de Queijo «Tipo Serra» e, recentemente, cópias de Queijos estrangeiros, como o Cam-
membert e o Chèvre. Sempre estivemos convencidos de que está longe de se encontrar esgota-
da a possibilidade de se descobrir em Portugal novos tipos regionais que possam enriquecer a
nossa Queijaria modesta. Tudo depende do que fizermos quanto à investigação do leite dos
nossos rebanhos, bem como das potencialidades forrageiras. Em dada altura chegámos a en-
contrar numa reunião da O.C.D.E. um especialista de renome internacional, que tinha estudado
e ensaiado o leite — matéria-prima na Grécia, com belíssimos resultados. Dispunha-se a vir a
Portugal para averiguar dos motivos pelos quais temos Serras e Planuras com pastoreio, mas
sem rotinas regionais de Queijaria. Ninguém nos quis encontrar a «verba», o que deixou mor-
rer qualquer hipótese de Projecto. E, no entanto, a Queijaria nacional talvez possa ser melhora-
da, indo mais longe do que a simples imitação.
Recordamo-nos de ter assistido, em França, a uma «prova de Queijos» verdadeiramente
sensacional. Não podemos afirmar que estivessem expostas as 300 variedades de Queijos fran-
ceses, mas o que se podia provar era abundante e saboroso. A acompanhar o Queijo, estava
presente grande variedade de Pão e, naturalmente, a dos Vinhos. Em determinada altura entrou
no recinto a imponente figura de uma espécie de Mordomo de Confraria medieval, com luzido
trajo de veludo e dourados e um manto que os Pagens seguravam. Empunhava um riquíssimo
bastão, e depois de percorrer as salas, provando, aqui e acolá, os variados Queijos, bem como
os Vinhos, cumprimentando e sendo cumprimentado, subiu a um estrado onde se preparou pa-
ra o discurso. Fez-se silêncio, e erguendo a taça, disse:
— A la merveilleuse dèsordre de la Fromagerie française.
Foi muito ovacionado.

508
Não oferece dúvida que o leite não é todo igual, nem as raças que o produzem nascidas
e criadas em diferentes climas e pastagens. Contaram-nos que, uma vez, um Pastor do Soajo,
muito velho, passava os seus dias a recordar a Serra e os Rebanhos. Em certa madrugada acor-
dou inquieto e os filhos logo perguntaram:
— Pai, que quer?
— Queria leite, meus filhos. Mas tragam-mo da Lombadinha, que não há outro igual.
Um dos filhos partiu à desfilada na burra travadinha. Quando veio com o pote, mal o
poisou no lar, o Velho exalou o último suspiro. Muito tristes, os filhos fecharam os olhos do
finado, mas logo repararam que o pote, na lareira, já lá não estava. Acabámos por nos conven-
cer que foi certo o que pensaram:
«Deus lembrou-se do Génesis e dos últimos retoques que dera à Serra do Soajo. Por is-
so, ao ver o desejo do Pastor Velho, mandou que este, ao Céu lhe levasse o leite da Lombadi-
nha para que lá o compartilhasse com os Anjos que o provaram. Assim foi feito e, depois, em
Coro, os Anjos cantaram e louvaram a Cachena, vaca humilde que todo o ano pasta na Serra,
em convívio com os lobos. O leite que lhe roubam é denso e rico de aromas raros, dos tenros
gomos do mato, de cuja indústria Deus não consentiu, ainda, que os homens se apropriassem.»

Enchidos e Presuntos

A tradicional conservação da carne, em Portugal, é feita com recurso à salgadeira e à


arte de ensacar em tripas, passando depois deste preparo, a carne, ao fumeiro. Julgamos que
tinha pouco consumo a carne seca, mas não deixou de viajar nos barcos e implantou-se larga-
mente nos trópicos, fazendo parte das dietas do sertão. Houve tempo em que os porcos se
transformavam praticamente em chouriços e noutros enchidos, condimentados ou açucarados,
depois de apartado o toucinho e a banha, ou unto. O toucinho e o unto, com mais ou menos
ranço, davam motivo a largo comércio, juntamente com a carne ensacada. O Montijo, ou a Ou-
tra Banda eram a região produtora que mantinha os cevados provindos da montanheira da bo-
lota alentejana. No entanto, nas Serras, o porco de chiqueiro, muito melhor quando alimentado
com castanha, dava presuntos de qualidade, em Lamego, Chaves ou Castro Laboreiro. Era aqui
que o presunto ganhava sabor de fumeiro, em altitude e frio, sendo queimadas, à lareira, conti-
nuamente, boas lenhas das serranias. É recente a tecnologia do presunto do porco alentejano,
com alta qualidade, recebendo a designação de "Pata Negra". Os "enchidos" de carne de porco
gorda, com farinha de milho condimentada é a "farinheira". Na altura da expulsão dos Judeus,
comunidades israelitas especialmente de Trás-os-Montes inventaram as "alheiras" que são en-
chidos que ensacam carnes variadas de galinha e caça, pão e condimentos, permitindo manter
lareiras com a aparência de cristãs, com a exclusão do consumo de carne de porco impedido
por preceito religioso.
A indústria veio proporcionar preparos modernos como o «fiambre», e recentemente in-
ventou os «afiambrados» sem sombra de perna de porco. Quanto aos enchidos, foi feita a cópia
das «salsichas» estrangeiras e moderada a produção de gorduras, importando raças de carcaças
magras. Acontece também que a indústria mobilizou outras espécies pecuárias, como o peru
que, perdendo o exclusivo do Natal, anda por aí disfarçado, em diferentes embalagens e apre-

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sentações. Quanto à carne de vaca, a grande inovação foi a moda do «hambúrguer». Ficou pre-
sente no mercado o bife democrático.

A frescura e a graça do Morango

Expontâneo em Portugal, o Morangueiro, nome vulgar de várias espécies do gen. Fra-


gária, L., faz parte das «ervas vivazes da Fam. das Rosáceas, sub-famílias das Rosoideas» co-
mo afirmam os Botânicos. Teria servido de frescura e graça como sobremesa do Homem pri-
mitivo, ou de Antropoides, nos dias longos, porque floresce «somente quando a claridade ex-
cede as 13 horas». Segundo refere Maria Lemos Armada em relatório de tirocínio da Escola
de Regentes Agrícolas de Santarém de 1977: «Sob a designação de morangueiro, englobam-
-se diferentes espécies — Fragária vesca, L, F. virginiana, Ehrh., F. chiloensis, Duch., F. mos-
chata, Duch. — assim como elevado número de híbridos, mais ou menos complexos» [...]
«conhece-se o morangueiro espontâneo, Fragária vesca, L, que cresce por toda a Europa: Ma-
deira, Portugal, Espanha, Sicília, Grécia. Encontra-se também na Ásia, desde a Arménia até ao
Japão; e na América, desde o Norte até ao México». Este seria o morangueiro que nunca se
prestou a ser cultivado, antes que chegassem outras espécies com as quais celebrou casamento.
Efectivamente a «F. chiloensis, Duch., originária do Chile, foi a espécie que contribuiu com o
maior número de boas características para a produção de cultivares de valor agrícola e comer-
cial, em especial a robustez e o tamanho dos frutos, que atingem grandes dimensões». A referi-
da Autora informa ainda: «A F. virginiana, Duch. é indígena do Canadá e da costa oriental dos
Estados Unidos da América. Foi introduzida em França no século XVII e do seu cruzamento
com a F. vesca e, em especial, com a F. chiloensis resultaram algumas das melhores cultivares
hoje existentes». E conclui este comentário: «o número de cultivares utilizadas entre nós é ex-
tremamente grande, subindo à dezena de milhar (Natividade, 1940). A origem da maioria man-
tém-se nebulosa e quase sempre envolta em multiplicidade de cruzamentos interespecíficos e
variáveis».
A Autora citada acrescenta: «Do ponto de vista agronómico os morangueiros podem
classificar-se em: a) morangueiros de frutos pequenos e b) morangueiros de frutos grandes.
Entre os morangueiros de frutos pequenos — quase todos pertencentes a Fragaria vesca — fi-
guram os chamados morangueiros bravos ou «morangueiros das quatro estações», derivados
da variedade semperflorens (Duch). A designação que lhe é atribuída resulta do facto de pode-
rem florir ao longo de todo o ano sem contudo pensar na sua produtividade económica durante
as quatro estações. Os morangueiros de frutos grandes são os que possuem maior valor econó-
mico. Uns são remontantes, ou seja, têm capacidade de produzir, segundo camada de flores e
de frutos no final do Verão ou princípios de Outono. Esta produção, porém, é sempre fraca e
irregular, a menos que tenha havido o cuidado de eliminar flores na época primaveril e adubar
convenientemente o morangal de modo a estimular a segunda floração. Os morangueiros não
remontantes constituem o grupo mais importante. As cultivares são em número elevadíssimo,
variando as preferências e a adaptação de país para país e de região para região».
Os Árabes não cultivaram os morangos, colhendo talvez os silvestres. Mas os Saloios
de Sintra muito cedo se especializaram, abastecendo Lisboa com abundância. Apresentavam-

510
-nos arrumados num cabaz, no aconchego da verdura de fetos:
— Olha o Cabaz com Morangos!... era o Pregão que não se ouve mais.

O Tomateiro — a «pomme d'amour» ou o «pomodoro»

Em comparação com outras plantas cultivadas, o tomateiro é muito recente nas hortas,
nos hábitos culinários e nas indústrias alimentares portuguesas. Manuel Dias Palma, cujo estu-
do intitulado «A cultura industrial do tomate no Ribatejo» (1964) nos acompanha, acentua in-
certezas de alguns Autores quanto à origem do tomateiro e seus introdutores na Europa, aca-
bando por convencer o leitor de que esta maravilhosa planta constitui «património exclusivo
da flora autóctone do Novo Mundo».
A designação botânica é Solarium Lycopersicum, L., apresentando, segundo Vasconcel-
los, seis variedades, de entre as quais se encontram «numerosas formas cultivadas ou cultiva-
res que um melhoramento constante e com os mais variados fins trouxe até aos nossos dias».
Reconhecida a origem americana do tomateiro, a dúvida que permanece será a de identificação
do país de origem, uma vez que não sendo planta cultivada pelas populações locais não se di-
fundiu tendo-se mantido no seu solor. As opiniões variam entre o México e o Peru. Quanto aos
introdutores na Europa, seriam os espanhóis «havendo, no entanto, quem cite também os por-
tugueses como os seus divulgadores». No século XVIII o tomateiro constituía, «na maioria dos
países, apenas uma planta de jardim». A entrada da planta em cultura é recente em Portugal e
Espanha, embora Paulo de Morais, segundo refere o Autor citado, registe no seu Manual de
Agricultura de 1896 a prática da cultura na «outra banda», já com exportação para Inglaterra
de produtos do tomate, no Algarve, em Santarém, Torres Novas, Golegã, margens do Almonda.
Embora de há tempos se reconheça que «na época do tomate não há más cozinheiras», o certo
é que, em receitas antigas, não é vulgar que figure tão valioso tempero. Assim, a explosão da
cultura do tomateiro, constitui um facto resultante da vigorosa intervenção técnica de unidades
industriais, cujos empresários se aperceberam da possibilidade de melhorar a produção artesa-
nal de caldas e massas salgadas, que se praticava em condições extremamente precárias e de
má higiene. Dias Palma faz notar que «entre os importadores dessas massas, caldas e tomate
em salmoura, contavam-se a Grã-Bretanha, vários territórios africanos, América Central e do
Sul e o Ultramar Português». Foi em 1939 que se instalou a primeira indústria moderna na Go-
legã. Mas, a partir de 1946 a Junta Nacional das Frutas estabeleceu campos de ensaio e proce-
deu ao «estudo comparativo das cultivares então mais apreciadas e aconselhou a Marglobe, a
Rutgers e a Victor que desde logo foram lançadas na cultura com assinalado êxito». No fim de
1952 iniciava-se a «febre» do tomate, sendo atraídos às melhores terras os «seareiros» que pas-
saram a suportar «elevadas rendas de locação para a cultura do tomate». Como sistema impul-
sionador multiplicaram-se as fábricas que chegaram a algumas dezenas, e a qualidade melho-
rou em terras de eleição como o Campo da Golegã, Reguengo do Alviela, Pombalinho, Vale
de Cavalos, Vale de Figueira, Pinheiro Grande, S. Vicente do Paul, que entraram na História.
Em 1953, a Compal surgiu como a indústria mais moderna e em 1957 eram promovidos novos
estudos em colaboração com Empresas multinacionais como a Heinz. A cultura foi alargada a
novas regiões além do Ribatejo, tentando a oportunidade dos novos regadios do Sul, que nunca

511
foi proporcionada por ausência de «reformas estruturais». A exportação de produtos de tomate,
de alta qualidade, iniciou assim o ciclo de tendência crescente desde os anos 50, que depois fi-
cou entregue à concorrência internacional que veio a demarcar horizontes dependentes da evo-
lução que vier a ser verificada noutros países produtores, que tendem a implantar estruturas
produtivas fortes.

Níveis de emprego na agricultura

Na dependência das estações e das situações climáticas a actividade agrícola caracteri-


za-se pela irregularidade de exigências de trabalho ao longo do ano. Sendo assim, ao nível da
empresa agrícola o recurso a trabalho disponível apresenta-se submetido a grandes variações,
pelo que os níveis de emprego desse trabalho oscilam muito. Na agricultura tradicional o pleno
emprego e o desemprego traduzem situações correntes e cíclicas. Verifica-se que as técnicas
modernas, com recurso ao motor e às máquinas e a dispositivos de forçagem como a rega, os
abrigos ou estufas, ou os cultivares melhorados, permitem assegurar a organização do trabalho
aproximando a acção gestionária do objectivo do emprego contínuo que em actividades indus-
triais é alcançado.
Este problema de fundo apresenta consequências sociais de grande relevância que, no
entanto, se exprimem de formas diversas nos diferentes tipos de estrutura empresarial ou de
relação do trabalhador com a empresa. Na tradição agrária, a escravatura, nos períodos de inac-
tividade, obrigava à manutenção do trabalhador, consentindo pausas que o escravo não podia
deixar de apreciar e que, naturalmente, lhe não geravam qualquer protesto. Mas, quando as ta-
refas impunham actividade o chicote marcava o ritmo dos movimentos. Na vida camponesa
servil ou livre o agricultor e família representam unidades de trabalho presentes que, na execu-
ção das tarefas, encontram níveis variáveis de emprego ou de ocupação. Deve notar-se que a
prática da entreajuda de agricultores vizinhos, sem pagamento de salário, amplia a ocupação,
mas fortalece também o grupo de trabalhadores quando actuam em cada empresa associada.
De qualquer modo, neste caso, o desemprego que pode gerar-se em determinados períodos do
ano diz-se oculto, porque o trabalhador o não sente, no sentido de o não condenar, tal como o
não faria o escravo quando gozava os seus ripanços. No entanto, na agricultura camponesa, é
manifesta a tendência para neutralizar este desemprego resultante das pausas do trabalho nor-
mal, programando investimentos de trabalho gratuito, no sentido de não haver salário pago, em
melhoramentos fundiários de toda a espécie. Assim se promoveram regadios, se construíram
socalcos, vedações, edifícios e se mantiveram em uso equipamentos de interesse colectivo co-
mo caminhos, eiras, moinhos e fornos de pão.
Quando a estrutura agrária consta de empresas que recorrem a trabalho assalariado, si-
tuação que se difundiu nalgumas regiões com a instalação do capitalismo na agricultura, o tra-
balhador pode ser contratado a tempo inteiro, tendo emprego permanente, ou a tempo parcial,
enfrentando a possibilidade de sofrer situações alternadas de emprego e de desemprego. Em
regiões agrárias onde o estrato de trabalhadores eventuais assalariados é numeroso, as situa-
ções de desemprego declarado, assumem aspectos sociais particularmente sensíveis. Ao de-
semprego na agricultura corresponde a suspensão do pagamento do salário que, nos lares dos

512
trabalhadores representa o sustento. Enquanto na escravatura, ou na empresa agrícola familiar,
o sustento fica assegurado, bem ou mal, durante o desemprego, com o regime de assalariamen-
to eventual, o trabalhador fica entregue a si próprio e mal dele se não tiver outras fontes de ren-
dimento diferentes do salário que deixou de ser pago.
Acontece que, nas primeiras fases da instalação do capitalismo agrário, como foi visto
noutras passagens do presente trabalho, em regiões pouco povoadas, a valorização dos latifún-
dios obrigou os empresários a recorrerem a trabalho migratório. A insegurança deste trabalho
foi suplantada pela fixação de populações em courelas de residência, dimensionadas de forma
a consentirem apenas o complemento do salário pago pelo latifúndio, sem facultarem ao colo-
no o pleno emprego. Pretende-se com esta nova referência chamar a atenção para o facto de
tais estruturas consentirem que os assalariados rurais suportem o desemprego à custa das refe-
ridas courelas, sem reclamarem à grande empresa qualquer sustento. Assim a grande empresa
fica livre de contratar trabalhadores na justa medida das suas necessidades, para as tarefas que
programou.
O desemprego rural que se encontra fortemente ligado a toda a tradição agrária e que o
progresso técnico e o aperfeiçoamento das estruturas agrárias atenua, dava origem a movimen-
tos migratórios de grande envergadura, onde se integravam os trabalhadores das empresas fa-
miliares do Norte, do Centro e do Algarve que acudiam às tarefas exigentes de trabalho carac-
terísticas, por exemplo, da viticultura duriense, da cerealicultura de sequeiro alentejana, do re-
gadio do arroz, da safra dos olivais e da vinha, em geral. Manageiros, arrebanhavam contratos
nas zonas povoadas, e os trabalhadores deslocavam-se em ranchos, a rapinarem as oportuni-
dades que os assalariados locais perdiam, na procura de trabalho junto dos lavradores, não aca-
bando nunca por ver o salário valorizado. Assim o desemprego agrícola abatia-se sobre o tra-
balhador do Sul, simplesmente assalariado, amargurando-lhe a existência, especialmente
quando não dispunha do suporte da courela, o que era o quadro mais frequente nas enormes
aldeias-dormitório do Alentejo, encastradas nas herdades, onde a terra tinha dono. Daqui a cir-
cunstância de, nestes estratos humanos, se encontrar com mais frequência, o fermento da re-
volta.
Foi nos anos 50 que o problema do «desemprego rural» no Alentejo alertou o Ministério
das Obras Públicas, conduzindo à decisão de criar organismos como a Comissão Coordenado-
ra das Obras Públicas no Alentejo, por simples despacho ministerial. Em 1955 foi-se mais lon-
ge e foi criada a Comissão de Estudo das Crises de Trabalho Rural no Alentejo, declarando-
-se, no respectivo despacho, os propósitos de averiguar as razões da «acentuada incongruência
entre os elementos estatísticos sobre o desemprego rural provindos das diversas origens res-
ponsáveis» e a necessidade de «reunir elementos que permitam seguir a evolução das crises e,
assim, medir a eficiência dos planos postos em prática e permitir a todo o tempo a sua adapta-
ção às circunstâncias reais verificadas».
Do relatório publicado pela C.C.O.P.A. em 1962 pode extrair-se o seguinte esclare-
cimento: «verdadeiramente foi este despacho que marcou o início do combate sistemático
contra o desemprego sazonal dos trabalhadores rurais alentejanos, com base no aproveita-
mento da força de trabalho disponível na realização de empreendimentos económica e social-
mente úteis e foi nos estudos levados a cabo por esta Comissão que assentou a ulterior actua-

513
ção da C.C.O.P.A.».
A leitura da documentação respeitante a estes serviços impressiona pelo isolamento que
sugere da parte do Ministério das Obras Públicas, em face dos problemas do Alentejo que, em
boa verdade, exigiam a «coordenação» de diferentes departamentos governamentais, para se-
rem encontradas as técnicas adequadas de intervenção em termos de desenvolvimento. Deduz-
-se que o Ministério das Obras Públicas assumiu a posição de considerar impossível, para não
dizer indesejável, a «reforma estrutural» por outros sectores preconizada, colocando-se assim
em posição que determinou o aplauso dos grupos agrários defensores do latifúndio alentejano.
Assim, o «desemprego sazonal» de assalariados agrícolas não era considerado como efeito
agravado pelas estruturas agrárias dominantes, mas como constante que teria que ser compen-
sada com o paliativo das obras públicas planeadas tendo em conta as variações de procura agrí-
cola de trabalhadores assalariados. É particularmente elucidativa a transcrição das passagens
essenciais da «teoria» em que se baseou a intervenção do Ministério das Obras Públicas nesta
época negra do «desemprego sazonal» no Alentejo, que nos parece digna de registo e de medi-
tação:
«Certas condições de ordem agro-climática e determinadas circunstâncias histórico-po-
líticas, impuseram no Alentejo uma organização económica predominantemente agrícola, com
base na exploração extensiva do solo em culturas arvenses de sequeiro. Este sistema de explo-
ração agrícola, no mesmo passo que exige uma intensa actividade em dadas épocas do ano para
realização de certas operações agrícolas, impõe nos trabalhos do campo longas paragens, de
duração variável, por via da irregularidade na ocorrência dos fenómenos meteorológicos.
Daqui resulta a necessidade de manter na região elevados efectivos de mão-de-obra pa-
ra realização, em tempo oportuno, das apropriadas operações de cultivo e a inactividade força-
da dessa mesma mão-de-obra durante os períodos de paralisação dos trabalhos agrícolas.
Sendo rara a prática de outras culturas agrícolas a par das culturas arvenses de sequeiro
e não existindo nos sectores não agrícolas, em volume de considerar, actividades que possam
absorver a mão-de-obra rural nos períodos de inactividade dos trabalhos agrícolas, os trabalha-
dores assalariados, bem como muitos pequenos proprietários e pequenos rendeiros, estão sujei-
tos a longos períodos de ociosidade forçada.»
No entanto, o relatório refere os inconvenientes do sistema:
«O desemprego sazonal decorrente das circunstâncias referidas, não afecta apenas o tra-
balhador rural ou o seu agregado familiar; os efeitos da inactividade forçada de uma grande
parte da população agrícola, produzem-se também nos campos económico, social e moral e
não se confinam à região alentejana, mas repercutem-se em toda a vida nacional.
Com efeito, para o trabalhador rural a paragem dos trabalhos agrícolas significa uma in-
terrupção no recebimento de salários e, consequentemente, um abaixamento do seu nível de
vida, bem como da do seu agregado familiar, que pode levar à privação completa dos meios
de existência, consoante a duração do desemprego, os encargos familiares e tantos outros fac-
tores que podem influir na vida de cada qual.
Por outro lado, a permanente incerteza do dia de amanhã, os sucessivos períodos de
ociosidade forçada, a frustração do seu sentimento de utilidade, as constantes privações inter-
rompidas de longe em longe nos raros anos de fartas colheitas em que pode valorizar os seus

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serviços, o hábito do recurso ao crédito para satisfazer as suas necessidades vitais, ou o recurso
à esmola quando aquele se acaba, podem provocar no trabalhador rural assalariado um avilta-
mento do seu ser moral, imprimindo-lhe uma predisposição para a prática de delitos contra a
propriedade privada, contra as pessoas e até contra a segurança do Estado.»
Mas a argumentação técnica encontra-se destituída do mínimo de fundamentação agro-
nómica:
«Vistas as coisas à luz das consequências económicas do desemprego, pode dizer-se que
a inactividade forçada dos trabalhadores rurais alentejanos, durante longos períodos, é, ao
mesmo tempo, causa e efeito do atraso que se verifica no desenvolvimento dos sectores não
agrícolas por toda a zona transtagana, em contraste com outras regiões do País, onde o traba-
lhador rural não está sujeito ao desemprego sazonal ou, pelo menos, a tão longos períodos de
inactividade.
Por outro lado, depois de já terem sido arroteados todos os terrenos susceptíveis de se-
rem submetidos à cultura — segundo alguns até para lá dos limites aconselháveis — pode afoi-
tamente dizer-se que, no Alentejo, a organização económica com base na exploração extensiva
do solo em culturas arvenses de sequeiro, está em crise por ter atingido a altura máxima da cur-
va ascensional do seu possível desenvolvimento.
É certo que ainda há possibilidades de aumentar a produtividade do solo, bem como a
do trabalho, por meio da adopção de novos e melhorados processos técnicos de cultura e de
mecanização das operações agrícolas. Mas também é certo que isso implicaria um muito maior
investimento de capital o que, na conjuntura económica actual e dada a inconstância do nosso
clima, poderia conduzir a resultados ruinosos, além de que o melhoramento da técnica cultural
nunca, por si só, poderia elevar a expansão da economia alentejana ao nível desejável.»
A atitude perante a mecanização que se avizinhava a passos largos, é digna de registo:
«Pelo que respeita à intensificação da mecanização da cultura dos cereais, pode ter-se
como certo que isso ocasionaria o êxodo da maior parte dos efectivos que hoje é preciso man-
ter junto das culturas para realização, em tempo oportuno, das diversas tarefas agrícolas. Redu-
zir-se-ia, assim, evidentemente, a amplitude do desemprego sazonal, mas, por outro lado, criar-
-se-ia um problema de falta de braços para a execução de certas tarefas das culturas não cerea-
líferas, como, por exemplo, a apanha da azeitona e, por outro lado, despovoar-se-ia ainda mais
o Alentejo, particularmente dos elementos da sua população activa mais aptos e mais válidos,
indo-se criar problemas de ordem económica, social, política e moral, da maior gravidade e
complexidade, à volta dos grandes centros urbanos.
De resto, o despovoamento assim provocado acarretaria consequências prejudiciais ao
desenvolvimento económico e progresso social da vasta região transtagana, pois é a população
que domina todo o processo económico por estar na base da produção e do consumo.»
Este estilo de intervenção nos problemas de uma região de estruturas agrárias muito
particulares como o Alentejo, transformando a Obra Pública, endeusada, em serviço social or-
ganizado, com prejuízo da gestão, para assegurar rendimentos de trabalho a populações aban-
donadas pelos empresários agrícolas regionais, conduziu a resultados que bem nos recordamos
de ter visto, tendo registado também referências de muitos observadores da época. Foi para
não faltarem trabalhadores pacíficos aos agrários do Sul, e para que fossem pagos com salários

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moderados nas épocas de aperto, antes da alvorada das máquinas, que estradas de reduzido
trânsito beneficiaram do privilégio de obras que se não empreendiam noutras regiões. As vias
eram alargadas, sendo assinalada na altura a «auto estrada» para Barrancos, com ironia, sendo
suprimidas curvas «inexistentes» e lombas «menores», somente para manter apaziguado o
exército de servidores dos latifúndios do Sul.
Não oferece dúvida que o desemprego agrícola declarado no Alentejo sensibilizou o
Ministério das Obras Públicas e mobilizou recursos excepcionais, mas o desemprego oculto do
Norte, do Centro e da Serra do Algarve, que gerou o drama dos ranchos migratórios, nunca in-
teressou qualquer Serviço Público nacional. Recordamo-nos também de termos registado em
inquérito, algures, num dos nossos outeiros montanhosos, povoados por resíduos de Celtas ou
de Visigodos, uma mulher velha, a verberar o drama do comportamento das jovens que, num
rancho migratório regressavam das safras do Sul. Com os olhos em lágrimas, e o coração em
dor, mais do que em fúria, increpava as netas: «vocês fazem o povo pobre». Não era pior do
que isto, o facto de virem grávidas, das ceifas do Sul, a entregarem à comunidade serrana umas
tantas bocas inocentes, que haviam de ser alimentadas e criadas pelas Avós, sem Escola, aos
trambulhões, nos campos.
Sobre este aspecto, o relatório que citámos comenta:
«Nos casos destas migrações sazonais ou temporárias, o trabalhador mantém a sua re-
sidência na terra natal, aí deixa a sua família, aí volta sempre que termina o seu trabalho lá fo-
ra; a economia local não se ressente e muitas vezes até beneficia, quando o trabalhador traz
consigo de volta alguns cabedais que conseguiu amealhar. Aparte certos aspectos de ordem
moral e de ordem social, que uma organização adequada e uma regulamentação conveniente
poderiam eliminar ou atenuar, as migrações sazonais de mão-de-obra apresentam-se como um
processo eficaz e útil de regularização do mercado do trabalho e de aproveitamento dos recur-
sos da força de trabalho sobrante, na realização de tarefas economicamente produtivas.»
Sem pena nem glória a «coordenação» das Obras Públicas no Alentejo, acabou perante
as Máquinas. Na angústia de renovada emigração alentejana ficaram, as Aldeias e os Montes,
com portas trancadas à espera do retorno que, um dia, virá.

Os Planos de Fomento

Foi o pós-guerra que introduziu em Portugal o «Planeamento» da actividade económi-


ca, feito em concordância com a gestão financeira. Acções parcelares, sem dúvida programa-
das, como, na agricultura, a «Campanha do Trigo» de 1929, já referida, não podem considerar-
-se antecedentes do Plano. Mesmo a criação, em 1931, do Conselho Superior de Economia,
para funcionar junto da Presidência do Conselho, não tem significado de planeamento. Mas,
como o sistema não resultou, em 1932, talvez com outro significado, foi nomeado um Grupo
que deveria propor «o plano de grandes melhoramentos públicos a realizar no período de seis
anos, a contar de 1932-33, para conservação e desenvolvimento da riqueza e do trabalho nacio-
nais».
Estes órgãos, talvez por serem inovadores na administração pública portuguesa, não ac-
tuaram, acabando por ser promulgada a Lei n.° 1914 de 24 de Maio de 1935 que fixou as bases

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da reconstituição económica portuguesa em período de 15 anos. As decisões que eventualmen-
te se possam considerar planeadas de acordo com esta Lei, apresentam-se em sequência confu-
sa e, sem dúvida, improvisada. Na agricultura constam de Hidráulica Agrícola, Povoamento
Florestal e Colonização Interna, definindo campos de intervenção a que foi feita referência es-
pecífica em capítulo anterior. Para melhor observação dos factos e sua sequência, parte do pe-
ríodo que relatámos sobrepõe-se ao dos Planos de Fomento, onde estes campos de intervenção
naturalmente estão integrados.
O carácter de «memória» que pretendemos também atribuir ao presente trabalho, depois
dos anos 40 em que teve início a nossa actividade profissional, leva-nos a recordar aspectos
que seria difícil documentar de outra forma que não fosse o testemunho pessoal.
O I Plano de Fomento nasceu no termo da década de 40, quando as ideias sobre planea-
mento se não encontravam difundidas entre a generalidade dos Economistas portugueses. Tan-
to quanto nos podíamos aperceber, ao nível dos centros de decisão governamentais, existiam
fortes reservas quanto à índole «imperativa» dos Planos de Fomento, e mesmo a feição «indi-
cativa» não despertava grande entusiasmo. De qualquer forma, a moda dos Planos impunha a
necessidade de actualização da administração pública. Afigurava-se evidente que planear era
pecado quando se pensava em analogias com os Planos do Leste. Mas igualmente não alcan-
çava grande simpatia o exemplo do Tenessee Valey Administration (T.V.A.). Embora alcanças-
se indiscutível força o modelo americano, tudo se mantinha fechado a qualquer inovação. Por
força desta razão antiquíssima, os Ministros procuravam avidamente em conversa privada com
Técnicos considerados bons fabricantes de ideias ou dotados de poder imaginativo, pistas utili-
záveis em diferentes oportunidades. Em política sempre assim foi e continuará a ser, mesmo
quando se não trata da presença histórica de «Eminências Pardas». Foi por isso que tivemos o
ensejo de preparar, com o Agrónomo Mário Pereira, a convite particular do Ministro da Econo-
mia Ulisses Cortez, o Capítulo da Agricultura do I Plano de Fomento. O trabalho foi elaborado
em casa, apenas com recursos próprios, sendo-nos emprestada uma máquina de calcular, de
manivela, como as que se usavam na época, de cujo ritmo mecânico e ruidoso guardamos sau-
dades sem fim. O relatório foi apresentado em 1950 (o Plano respeita ao hexénio de 1953-58)
e difere muitíssimo da versão depois enviada pelo Governo à Assembleia Nacional. E difere
porque o relatório de que conservamos inéditos dois exemplares, insere o diagnóstico da situa-
ção, a formulação de objectivos, a demarcação de áreas de intervenção, onde ficariam inseri-
dos os projectos de investimento e as acções complementares, as medidas de política, os qua-
dros de escalonamento das prioridades, a estimativa de efeitos económicos e sociais a obter
das acções planeadas para fundamentar as opções. Tudo isto constituía metodologia inovadora,
não admirando que tenha determinado, em primeira apresentação, apenas uma razoável con-
cordância. Efectivamente, a decisão, com ou sem leitura atenta do relatório, mandou reduzir
tudo ao esquema da Lei de Reconstituição Económica de 1935, isto é, Hidráulica Agrícola, Co-
lonização Interna e Povoamento Florestal. Apenas houve ordem para estudar duas das medidas
de política propostas: a «Colonização das áreas beneficiadas pelas Obras de Fomento Hidro-
agrícola» e o «Povoamento Florestal em terrenos particulares».
O I Plano de Fomento apresenta a particularidade, no que se refere à agricultura de con-
fiar em que o «alargamento da área de regadio, sobretudo no Sul, abre interessantes possibili-

517
dades de colonização interna, mediante a criação de explorações agrícolas do tipo familiar, que
promovam a cultura intensiva de terrenos até aqui incultos ou cultivados extensivamente». Es-
ta passagem não foi transcrita do relatório que elaborámos, pelo menos na sua forma original,
pelo que julgamos pertencer à ideia do promotor do Plano ou do legislador. No entanto, neste
aspecto o Plano vai resultar frustrado, como veremos, mas salva-se, indubitavelmente, no que
se refere a outros objectivos visados. Referimo-nos ao arranque da produção de energia eléctri-
ca com os aproveitamentos de Salamonde, Cabril, Caniçada, Castelo de Bode, e 1.' fase do
Douro, e a Rede de transporte e grande distribuição. Avulta o planeamento das Indústrias de
Base: Siderurgia, Refinação de Petróleos, Adubos Azotados, Folha de Flandres, Celulose e Pa-
pel. Figuram também outros empreendimentos como Comunicações e Transportes, e Escolas
Técnicas.
Acontece que o período a que respeita o I Plano de Fomento se nos afigura, mesmo à
distância, particularmente sombrio quanto às possibilidades de ver introduzidas no sistema po-
lítico medidas de um reformismo agrário mesmo atenuado. É certo que a Colonização Interna
nos regadios foi admitida no Plano. Assim, para viabilizar as obras previstas, o Governo en-
viou à Assembleia Nacional a proposta de Lei tendente à «Colonização das áreas beneficiadas
pelas Obras de Fomento Hidroagrícola», insistindo no mesmo objectivo visado pela Junta ao
propor a «colonização da Várzea do Ponsul» em 1952, o que foi recusado. Esta proposta de
Lei, indispensável para a execução do Plano de Fomento, determinou feroz oposição dos gru-
pos representativos da Lavoura do Sul que, na Câmara Corporativa e na Assembleia a transfor-
maram de tal modo que resultou uma Lei inexequível. Juntamente com esta proposta o Gover-
no enviou outra relativa ao «povoamento florestal em terrenos particulares» que passou com
ligeiras alterações.
Daqui resultou que o vultoso investimento previsto para colonização interna se perdeu
e, quanto ao povoamento florestal, foram depois presentes projectos de arborização de bacias
hidrográficas de Obras de Hidráulica Agrícola visando a defesa das albufeiras e a conservação
do solo e da água, que nunca foram executados. Pensamos que assim sucedeu porque entretan-
to a instalação da Indústria da Celulose passou a exigir plantações exóticas de rápido cresci-
mento, como o eucalipto, que não estavam, naturalmente, consideradas em projectos de con-
servação e defesa dos recursos naturais, elaborados pelos Serviços Florestais.
A última tentativa de reformismo agrário mitigado encontra-se nos textos do II Plano de
Fomento (1959-64). O Relatório Final, preparado por um grupo de trabalho que chefiámos, a
convite do Ministro da Presidência Marcello Caetano, foi publicado, constituindo uma das pe-
ças do Plano. Mas, de forma idêntica à do I Plano, o Relatório original foi muito modificado.
Deve assinalar-se que as modificações foram introduzidas especialmente pelos diferentes Mi-
nistérios a que foi submetido. Muitas delas são altamente significativas, revelando quanto es-
ses Ministérios estavam contaminados por ideias contrárias às moderadíssimas propostas de
reformismo agrário que foram apresentadas.
Os trabalhos preparatórios da elaboração do II Plano de Fomento contêm o levantamen-
to dos principais aspectos da agricultura portuguesa. É de assinalar que o Instituto Nacional de
Estatística correspondeu à solicitação que lhe foi feita apresentando, pela primeira vez, por
Províncias do Continente, o «valor da produção final e o valor adicionado bruto (P.N.B.) da

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agricultura, previsto para 1958». Deve-se ao Agrónomo Xarro Guião o trabalho de proceder a
esta desagregação. A política agrícola «dos últimos vinte anos» foi estudada e fixados os objec-
tivos do Plano para a agricultura. Foi promovido o estudo da evolução provável da procura de
produtos agrícolas, bem como as perspectivas de expansão do comércio externo o que permitiu
abordar o conjunto da procura previsível. Com base nestes dados foi apresentada a lista de em-
preendimentos a considerar no Plano e apontados os efeitos dos empreendimentos em face dos
objectivos do Plano.
Conforme se referiu, a passagem do Relatório Final ao Plano apresentado pelo Gover-
no, sofreu grandes modificações, que não apresentam todas o mesmo significado. Muitos dos
empreendimentos sugeridos não figuram no Plano, o que não significa a sua eliminação, mas
a ideia de que seriam contemplados pelo Orçamento Ordinário, de acordo com o funcionamen-
to normal dos Serviços.
Não oferece dúvida que o 11 Plano insiste na orientação anterior: Hidráulica Agrícola
— iniciando o Plano de rega do Alentejo; Povoamento Florestal — inovando quanto à previ-
são de repovoamento de terrenos particulares; Reorganização Agrária — considerando a in-
tenção de promover o emparcelamento e parcelamento da propriedade rústica; e acrescentando
a este bloco de investimentos, idêntico ao do Plano anterior, mais Defesa Sanitária das plantas
e dos animais, os Melhoramentos Agrícolas, a Armazenagem e a Viação Rural. Porém a altera-
ção mais significativa, introduzida à última hora, ocorre em relação às propostas de «parcela-
mento» da propriedade rústica que figuram no Relatório. Importa recordar uma situação que
se deve reter para análise rigorosa dos factos ligados a decisões políticas e seu significado pro-
vável. Na altura em que foi ultimado o II Plano de Fomento já era Ministro da Presidência Teo-
tónio Pereira. Embora tivéssemos sido arredados dos trabalhos do Plano, ainda nos foi dado
registar a influência dos chamados «Agrários» alentejanos nos bastidores da decisão política.
Assim acabámos por verificar que no capítulo do «Parcelamento», particularmente sensível
para os interesses em jogo, foi suprimida a seguinte passagem que havia sido possível manter
no debate com os Serviços dos Ministérios: «A previsão dos investimentos neste importante
sector do fomento da agricultura para os próximos seis anos deverá subordinar-se ao propósito
de instalar 10.000 famílias de novos proprietários, propósito modesto que respeitará ao destino
de 40.000 beneficiários, mas que não poderá neste espaço de tempo ser mais amplo, tendo em
atenção os recursos actuais dos serviços e os estudos já realizados e outros que terão de ser em-
preendidos». Em substituição, o que veio a figurar na proposta do Governo enviada à Assem-
bleia Nacional, é o seguinte: «A actuação do Estado deverá revestir a forma de aquisição de
grandes propriedades postas à venda para as parcelar e revender, em condições favoráveis de
pagamento, a novos agricultores com algum capital e experiência, dependendo a área das par-
celas das circunstâncias locais». E segue depois o aviso: «Nestas áreas dominadas por obras
de hidráulica agrícola o problema do melhor aproveitamento económico e social dos terrenos
terá de ser cuidadosamente revisto. Para tomar o papel que lhe compete na nova orientação da
reorganização agrária — quer pelo emparcelamento, quer pelo parcelamento — terá de ser re-
formada a Junta de Colonização Interna».
Assim, a Junta de Colonização Interna, mesmo sem reforma, vendo-se impedida de in-
tervir nos regadios, acabou por investir recursos nacionais do Plano na aquisição de «proprie-

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dades postas à venda» que nunca chegaram a ser colonizadas, não nos tendo despertado inte-
resse a indagação que talvez nos permitisse saber a quem pertencem, agora.
Aprovado o Plano, o Governo enviou à Assembleia Nacional, com passagem pela Câ-
mara Corporativa, três propostas de Lei que, juntamente com a Lei n.° 2.069, florestal, que
constituía um dos salvados do I Plano, formariam o corpo de doutrina que foi considerado es-
sencial para dar execução ao II Plano de Fomento: o emparcelamento da propriedade rústica,
o regime jurídico da colonização interna e o arrendamento da propriedade rústica.
De novo, os grupos representativos dos interesses agrários se agitaram, organizando a
habitual pressão política em diferentes sectores. E, assim, a Lei do emparcelamento, conside-
rada como questão «do Norte», inofensiva, passou na Câmara Corporativa, e depois na Assem-
bleia, embora com limitações graves que vieram a reduzir o seu poder de aplicação. O regime
jurídico da colonização, foi ferozmente desmantelado, dando origem a instrumento legal inefi-
caz que permaneceu inoperante, como provavelmente se pretendia. Quanto ao regime de ar-
rendamento onde constavam medidas inovadoras como o «arrendamento familiar protegido»,
isto é, a garantia de condições de segurança a camponeses gestores de empresas agrícolas con-
sideradas economicamente viáveis e socialmente equilibradas, as alterações efectuadas condu-
ziram a um texto legal extremamente inadaptado à vida rural e feito ao gosto dos piores dos
interesses dos senhorios.
E os seis anos do II Plano de Fomento decorreram sem que pudesse ser tentada sequer
a experiência de um moderado intervencionismo na agricultura, intervencionismo talvez
susceptível de compensar o efeito demolidor do descalabro das estruturas tradicionais que se
acentuava mais vivamente com os progressos que se realizavam na actividade industrial. E, as-
sim, o Produto Agrícola Bruto permaneceu estacionário no decurso do II Plano de Fomento, e
os rurais entraram em êxodo espectacular e desesperado.
Pode observar-se que a experiência obtida com a elaboração do II Plano de Fomento te-
ria servido para organizar os serviços públicos de planeamento económico, criando-se o Secre-
tariado Técnico respectivo que empreendeu depois os estudos necessários para prosseguir, em
1965, a tarefa encetada em 1953. Assim, o Plano Intercalar para o triénio de 1965-67 foi orga-
nizado com audiência a grupos de trabalho onde diferentes interesses tiveram representação.
Os investimentos passaram a obedecer a maior descriminação e classificados em grupos quan-
to ao objectivo e à prioridade. Entretanto parece voltar-se à técnica das «campanhas» dotando-
-se largamente o fomento da «fruticultura, horticultura e floricultura» e o «fomento pecuário».
A Hidráulica Agrícola e o Povoamento Florestal ficam contemplados e em menor pro-
porção a Reorganização da estrutura agrária. As cooperativas e outras associações de produto-
res beneficiam de larga previsão de investimento e o mesmo sucede quanto à Viação rural,
abastecimento de água e, com forte dotação, a electrificação rural.
Assim se chegou, sem progresso na agricultura, ao limiar do III Plano. As breves 36
páginas do Projecto do III Plano de Fomento, referentes à agricultura, não podem constituir
expressão bastante dos estudos de base e da informação — com certeza vasta — em que se
apoiou a programação apresentada. No entanto observemos que na lista de 18 empreendimen-
tos seleccionados, constitui circunstância impressionante a ênfase dada a certos estímulos co-
mo o que pretende conferir-se à cerealicultura, com 1.804 milhares de contos, e ao fomento

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pecuário e forrageiro com 3.458 milhares de contos, isto é, 877.000 contos anuais para os dois
empreendimentos fortemente ligados, o que representa quantia avultada na época.
Julgamos não atraiçoar o pensamento dos autores do III Plano de Fomento, se afirmar-
mos que, ao contrário do I e do II Planos, onde afloram intenções de intervencionismo no pro-
blema estrutural — podendo considerar-se o Plano Intercalar como uma transição — ao con-
trário dos dois primeiros Planos, como dizíamos, o III contém uma filosofia de não interven-
ção, confiando na capacidade de adaptação estrutural da agricultura, desde que certo número
de condições sejam criadas. Concretamente, teríamos o seguinte programa: subsídios condi-
cionados por certas decisões da actividade privada quanto à adopção de indicações do Plano,
crédito destinado à capitalização de um sector de actividades economicamente diminuído, uma
política de preços vigilante e atenta aos desequilíbrios do mercado; tudo isto e ainda outras me-
didas suplementares que seria longo enumerar.
Assim, pode ler-se:
«[...] a agricultura carece de se estruturar e organizar de molde a vencer as dificuldades
inerentes à essência do seu sistema produtivo, sem o que dificilmente conseguirá usufruir a le-
gítima posição económica em confronto com as demais actividades. E essa estruturação só po-
de ser conseguida reforçando os incentivos que levam à criação ou manutenção de empresas
dotadas dos necessários atributos para alcançar a máxima rentabilidade do processo produtivo,
a fim de poderem remunerar justamente os factores de produção e, simultaneamente, enfrentar
com êxito a batalha dos mercados». Mais adiante: «a adaptação estrutural das actuais empresas
deve, portanto, orientar-se segundo critérios de dimensão económica mínima e de sistemas de
exploração».
E ainda: «são, portanto, as acções indirectas promotoras do fomento da reorganização
fundiária que deverão ser apoiadas, desde que visem o dimensionamento da exploração capaz
de auferir, embora no mínimo, os benefícios técnicos e económicos susceptíveis de se obterem
nas condições mais favoráveis.
Na verdade, seria impensável, pela grandeza do problema, pela dificuldade de correcta
intervenção e pela oportunidade dessa intervenção, atentas as mudanças que se estão operando
na agricultura, que a reestruturação fundiária figurasse como processo de acção directa».
E no fim: «competirá à iniciativa privada, às suas virtudes e possibilidades, aproveitan-
do todo o apoio concedido sob várias formas, a missão de se estruturar ou reorganizar em em-
presas, quer nos moldes das designadas "familiares", pela sua estrutura orgânicae correspon-
dente método de trabalho, quer nos da empresa patronal, de técnica evoluída. E, como se afir-
mou, deverá o estado apoiar e incentivar estas iniciativas, pois somente deste modo atingirá
reforma estrutural válida, não sujeita a situações demográficas conjunturais».
Não sabemos até que ponto nos foi possível proceder a citações de um texto, citações
necessariamente parciais, sem deturpar a ideia fundamental que se pretende fazer sobressair.
Se os Planos de Fomento portugueses sempre foram declaradamente indicativos, o III Plano
para a agricultura afasta nitidamente qualquer hipótese de intervenção. O sector irá evoluir em
função de estímulos diversos, na prossecução de objectivos de enorme complexidade, quais se-
jam:
«A elevação da taxa média de acréscimo do produto agrícola» — programada para 3%

521
ao ano.
«A elevação do nível de vida da população ligada ao sector» — elevação não programa-
da mas, com certeza, muitíssimo desejada.
«A melhoria da contribuição da agricultura para a balança comercial, pela satisfação em
maior grau da procura interna de bens alimentares e pelo aumento das exportações» — melho-
ria que constitui a essência do crescimento económico e do progresso social.
O III Plano de Fomento não deixou rasto na Agricultura portuguesa estagnada. Perto do
seu termo chegou a ser elaborado, sem esperança, o IV Plano de Fomento. Iniciado em 1974.
foi suspenso no 25 de Abril, sem deixar história. Depois disso nunca mais houve Plano e, sem
ele, vamos vivendo, embora, paradoxalmente, tenha sido criado e seja mantido, um Ministério
que se diz «do Plano».
De qualquer modo, é indiscutível que decorre uma profunda revolução com reflexos no
progresso técnico, económico e social. Poderosas forças vêm destruir irremediavelmente mui-
tas das estruturas tradicionais, obrigando a reformular os sistemas, a organização e a localiza-
ção das actividades produtivas. Quanto aos sistemas passam a ser aferidos segundo o prisma
da eficácia e da produtividade, mantendo validade apenas os que conseguem o melhor dosea-
mento dos factores disponíveis perante o nível dos resultados. A organização terá de compati-
bilizar interesses dos detentores de meios de produção utilizados nas actividades integradas,
transferindo-se as lutas tradicionais do sistema agrário, que opunham proprietário a empresário
e, qualquer destes, a trabalhador, para outro terreno contratual, opondo agora o agricultor ao
industrial e qualquer destes ao comerciante.
O que deixou de ser possível é pensar em agricultura sem imaginar a coexistência de
um estilo de indústria e de uma gama variadíssima de serviços. E além de tudo, não pode ainda
pensar-se em qualquer sistema integrado sem ter em conta também o consumidor, rei de um
domínio onde há presenças que permitem aos economistas medir a dimensão dos mercados e
aos sociólogos avaliar a realidade da Fome e da Abundância no Mundo. E assim, sobre todos
os territórios agrícolas, projecta-se o apelo de necessidades a enfrentar, como programa orien-
tador dos sistemas produtivos, sob a forma de metas que se torna essencial construir, para ser-
mos coerentes com as exigências do planeamento perante a disponibilidade de recursos que es-
tão destinados a servir muito mais do que a nossa comunidade e a nossa geração. Assim, os
projectos e os programas de aproveitamento do território devem ser concebidos em função de
um horizonte longínquo. Mas um horizonte longínquo é, ao mesmo tempo, um horizonte in-
certo. E, por isso, um esquema de aproveitamento agrícola de um território é, para além de um
problema técnico, ao mesmo tempo, um jogo de imaginação criadora, um acto de fé e uma de-
cisão de risco calculado. A imaginação não tem modelos nem fronteiras, mas nem toda a ima-
ginação nos serve; o acto de fé nunca tem discussão. Mas não é difícil ponderar a grandeza do
risco a que ficamos submetidos, iniludivelmente, perante decisões tomadas, e omitidas, à mar-
gem de um Plano necessário.

Da Fruticultura promíscua ao Pomar industrial moderno

A fruticultura foi sempre um dos «recantos» mais estimados dos agricultores. Era o

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«mimo» das cercas dos Conventos. Mas, para entrar no comércio, deparou com grandes difi-
culdades, mercê dos problemas da conservação dos frutos. Mesmo assim a fruta era o regalo
da horta e do jardim. Os frutos da Macieira ou Maceira são consumidos de há muitos milénios,
desde que Adão comeu a Maçã do Paraíso. A maravilhosa planta tem o nome botânico de Ma-
tus doméstica, Borkh.. que difere da Matus sylvestris, Miller, espontânea em toda a Europa. A
sua cultura levou à selecção em Portugal de numerosas cultivares como a Maçã Espelho, Ca-
moesa, Bravo de Esmolfe, diversas Reinetas, de sabores deliciosos.
A Pereira, nome vulgar de espécies do gen. Pyrus, L. apresenta-se em cultura muito an-
tiga. A Pereira brava é o Pyrus pyraster, Burgsd. espontâneo em grande parte na Europa, en-
contrando-se em Portugal nas Serras do Gerês e do Larouco. A Pereira cultivada ou mansa é o
Pyrus communis, L. que compreende numerosos cultivares, a Pérola de maturação precoce e
outras, como a Rocha, mais tardia. São numerosos os híbridos de cultura entre espécies centro-
europeias, muito apreciadas (J. Franco, em Enciclopédia Verbo).
Conforme noutros passos deste trabalho referimos numerosas fruteiras foram introduzi-
das por Fenícios, Gregos, Romanos e Árabes, enriquecendo uma actividade que se reveste da
maior importância. Para além do que referimos são de destacar as Prunoideas de há muito cul-
tivadas em Portugal. A Ameixieira, Prunus domestica, L. cultivada no Oeste, Douro, Ribatejo,
Cova da Beira, Sotavento do Algarve e Colares. O Damasqueiro e Alperceiro, Prunus arme-
niaca, L, em cultura no Sotavento do Algarve, Outra Banda, Oeste e Ribatejo. O Pessegueiro,
Prunus pérsica, L., com cultivares aveludados, de caroço aderente ou Maracotões e de caroço
solto ou de Aparta Caroço, ou carecas ou calvos. Fruto de grande importância e valor é cultiva-
do especialmente no Oeste, mas também na Outra Banda, Ribatejo, Colares, Cova da Beira e
Baixo Douro.
Tivemos ocasião de referir que foi o Pomar de Laranja que obteve mais cedo acentuada
expansão, dadas as características de resistência ao transporte e conservação dos frutos. O
mesmo sucedeu com os frutos secos, como as Amendoeiras, sendo notória a importância ali-
mentar que ficou noutro lugar assinalada, de produções agro-florestais como a castanha.
De qualquer modo, a fruticultura acompanhou sempre as práticas agrícolas, mau grado
as dificuldades já referidas, de conservação e transporte dos seus produtos, na subsistência dos
rurais e no abastecimento de mercados urbanos. Neste ponto tudo se identifica com a produção
hortícola, em relação à qual os obstáculos eram semelhantes. Não oferece dúvida que o desen-
volvimento de técnicas modernas de armazenamento, conservação pelo frio e embalagem, vie-
ram proporcionar as condições da apresentação das frutas nos mercados, o que levou também
ao aperfeiçoamento das técnicas de defesa contra as pragas, de grangeio da cultura e da colhei-
ta. Assim, talvez somente no século XX a fruticultura se revelou como sector produtivo sus-
ceptível de grandes progressos, procurando colocar-se, pela introdução de novas tecnologias,
ao nível da viticultura, ultrapassando a olivicultura de grandes tradições nacionais.
Foi por volta de 1935, talvez por sugestão de «êxitos» alcançados na Campanha do Tri-
go ou por analogia de intervenção técnica, que foi lançada a Campanha da Fruta, no âmbito da
Campanha da Produção Agrícola. O Decreto-Lei n.° 25.327 refere no seu preâmbulo: «pode
dizer-se que não há pomares em Portugal salvo um ou outro caso. O que existe é disperso pelas
vinhas, pelas hortas, pelos milheirais ou na margem dos caminhos. Pomares há poucos deles

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plantados, cultivados e explorados sem conhecimentos das condições gerais do meio, sem cui-
dados de cultura e defesa». Fernando Lourenço e Isabel Rodrigo em «Política Agrária e Recon-
versão da Agricultura — a Fruticultura no Distrito da Guarda», 1984, referem que «a campa-
nha levada a cabo com grande esforço de propaganda, que passou pela mobilização de párocos
e professores primários, dos sindicatos agrícolas, dos jornais regionais, saldou-se pelo trata-
mento de 17.154 fruteiras e por resultados considerados na época não muito animadores». Os
efeitos desta Campanha não teriam passado de tentativas de aperfeiçoamento de técnicas de
tratamento das árvores existentes, não se tendo alcançado progressos na plantação de novos
pomares. Por isso foi escrito no Relatório Final Preparatório do II Plano de Fomento, o seguin-
te:
«Não interessa grandemente, do ponto de vista comercial, que se obtenham isoladamen-
te produtos de excepção, superando os de qualquer outra proveniência. Interessa sim obter, pa-
ra a totalidade da nossa produção, um elevado nível de qualidade.
É indispensável intensifícar-se a experimentação e a investigação, no sentido de apurar
as variedades a cultivar e quais as raças a criar; é mister introduzir também na selecção um cri-
tério comercial, pois as produções destinam-se aos mercados e são estes, pelos seus gostos e
preferências, que comandam a procura, à qual a produção se deverá ajustar.
O inventário minucioso do que temos, o seu valor comercial, o cotejo com o património
estranho, os trabalhos de adaptação das variedades e raças estrangeiras, a criação, se necessá-
rio, de novas variedades e raças, eis um programa de acção vasto e que necessita de ser urgen-
temente realizado. Após este trabalho prévio, haverá que orientar a lavoura, divulgando junto
dela as conclusões obtidas.
As nossas explorações agrícolas, orientadas em grande parte para o autoconsumo dos
seus produtos, terão, à medida que forem caminhando para uma mais acentuada economia de
troca, de proceder a uma verdadeira normalização das variedades e das raças e de se decidir a
cultivar e a criar apenas um pequeno número das melhores.
As produções actuais são demasiado diversificadas, desiguais, não permitindo a consti-
tuição dos grandes lotes homogéneos que os mercados reclamam. Não apresentam, além disso
e frequentemente, as características comerciais mínimas exigidas pelo mercado.»
E, mais adiante:
«Como o mercado nacional absorve tudo quanto é mau, não há estímulo para se produ-
zir o que é bom. Quando se pensa exportar qualquer produto há que seleccionar o melhor den-
tro de quantidades muito superiores às que se pretendem expedir; como resultado, os lotes fi-
cam caros, de qualidade deficiente e originam refugo, manifestamente exagerado, que é depois
colocado no mercado interno. Este panorama é caracteristicamente exibido pela fruta.
No que respeita aos produtos de escolha, acondicionamento, fabrico e embalagem dos
produtos, muito há a contar com a investigação a desenvolver e com o estímulo à criação de
organizações de tipo cooperativo.
A adopção de uma política de qualidade, levando pouco a pouco o agricultor nacional
a apresentar os produtos no mesmo nível em que o apresentam os países mais progressivos,
conjugada com a organização de empresas cooperativas, poderá contribuir decisivamente para
o aumento do valor comercial da nossa produção agrícola.»

524
E era então grande o atraso que o Relatório de 1958 ainda acrescentava:
«Para frutas, produto que requer instalações para selecção, escolha, embalagem e con-
servação, o apetrechamento colectivo efectuado é quase insignificante e resume-se à aquisição
de algum material por parte do Grémio de Comércio de Exportação de Frutas e pelo Grémio
dos Produtores de Frutas da região de Vila Franca de Xira e à construção por este de um peque-
no frigorífico.»
A criação, em 1960, do Centro Nacional de Estudo e Fomento da Fruticultura, em Alco-
baça, que actuou sob direcção de J. Vieira Natividade, foi decisiva para encontrar o apoio cien-
tífico e técnico ao desenvolvimento da Fruticultura. O Fundo de Melhoramentos Agrícolas,
que havia sido criado em 1946, passou a intensificar, de acordo com as directivas do II Plano
de Fomento, o crédito a juro muito favorável de 2 porcento, longo prazo de amortização e sub-
sídio para instalação de pomares. Os Serviços de Assistência Técnica proporcionaram a entre-
ga gratuita de plantas, largamente importadas enquanto se não estabeleceram viveiros. A Junta
Nacional das Frutas facultou decisivo apoio a Cooperativas de produtores que construíram ou
receberam da Junta armazéns com instalações frigoríficas, que proporcionaram novas condi-
ções de funcionamento do mercado. Fernando Lourenço e Isabel Rodrigo assinalam que, na
Guarda — o que constitui exemplo de situação totalmente generalizada — os intermediários,
«confrontados com os preços pagos pela cooperativa, são obrigados a reduzir as suas margens
de comercialização, competindo frequentemente no sentido de conseguir o seu abastecimento
nos anos de má produção; o resultado é uma subida generalizada do nível dos preços».
Nestas circunstâncias instalou-se no Centro e Norte do País e no Algarve, uma «febre
de pomares» que mercê da acção do Estado, se estabeleciam com baixo investimento pronta-
mente amortizado. Aconteceu que os pomares não foram perspectiva que atraísse os latifun-
diários do Sul, apenas interessados com os rendeiros do arroz ou seareiros do tomate nos rega-
dios. Mas os Pomares da «moda» determinaram a mobilização do interesse regional, de grupos
sociais de outra espécie. Acontecia, também, que nos anos 60, estava desencadeada a emigra-
ção que. no Centro e no Norte, provocou a debandada de rendeiros e parceiros que deixavam
muitas Quintas ao abandono. Nessa altura, os proprietários, já eram os filhos dos derradeiros
residentes de Casas Grandes que, na boa paz da vida rural serena lhes haviam proporcionado
estudos universitários. Em virtude da herança, esta geração de Licenciados (Médicos, Advoga-
dos, Engenheiros, Agrónomos, Economistas) e algumas das irmãs que se tinham mantido «do-
mésticas» mesmo depois do casamento, encontrou-se na posse de belíssimas terras que já não
davam rendimento. Estas ligações de propriedade respeitavam a parcelas resultantes de parti-
lhas ou a direitos sobre Quintas indivisas que sugeriam Sociedades Agrícolas. Foi justamente
este estrato demográfico, cujo estudo sociológico se encontra apenas esboçado, que foi alerta-
do pelos programas do II Plano de Fomento, iniciando-se assim a instalação dos «pomares dos
doutores», como a ironia rural e camponesa logo os classificou.
Alguns Comerciantes acudiram à chamada, bem como Funcionários de empresas. Tam-
bém Industriais foram contaminados pela «febre» e, segundo parece, emprestaram ao funcio-
namento das instalações técnicas das Cooperativas precioso apoio. Do estudo citado, referente
à Guarda, conclui-se que os Serviços Agrícolas regionais promoveram cursos de especializa-
ção de trabalhadores para que ao novo Pomar não faltasse quem abrisse as covas, manipulasse

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o estrume, fizesse as podas, os tratamentos e as colheitas. Na Guarda, «havia oito Técnicos da
Brigada, isto é, praticamente a totalidade dos Técnicos em serviço, a trabalhar exclusivamente
em fruticultura, na assistência gratuita aos pomares». Isto explica que os Técnicos exarassem
o seu protesto: «por vezes o proprietário recorre aos Serviços Oficiais exigindo quase sempre
que estes os substituam, desempenhando toda a missão que lhe compete a ele próprio, quando
a eles mais não cabe que uma função esclarecedora. Os técnicos da assistência não são os pa-
naceiros. Não lhes cabe executar tarefas, podas, desinfecções, etc. Estas são obrigações do cul-
tivador. Os Serviços ensinando cumprem a sua função. O resto é com os proprietários».
Mas os «Doutores» tinham muita força. Em relação a pomares de mais de 4 hectares,
foram encontrados os perfis de 73 aderentes. O estudo vale como exemplo: 32 eram Licencia-
dos (Médicos, Advogados, Engenheiros, Agrónomos e um Pároco), 14 declararam a situação
Doméstica ou de Proprietários, 8 eram Comerciantes, 2 Funcionários de Empresas, 2 Indus-
triais e, quanto a Agricultores, identificaram-se 8 Sociedades Agrícolas, 2 Instituições Religio-
sas e apenas 5 ditos Agricultores a título individual.
A Fruticultura industrial moderna em Portugal pode considerar-se o modelo técnico e
económico preconizado e defendido por especialistas de entre os quais avulta Joaquim Vieira
Natividade, Agrónomo e Silvicultor, Naturalista da Fruticultura e da Floresta protectora da
existência humana. Para além de Cientista, foi o melhor escritor agrário contemporâneo que,
pelo desgosto de lhe ter sido negado o posto de Ensino no Instituto Superior de Agronomia,
nunca mais franqueou as portas da Tapada.
De uma das vezes que o visitámos no seu reduto de Alcobaça, o tema da conversa foi o
fomento frutícola e os «pomares dos doutores». À despedida dissemos:
— Não fique triste porque, afinal, a História conta que o Campo não pertence aos Cam-
poneses.
Era notório o desalento de Natividade, que a justa vaidade que era de seu feitio, não
compensava. Junto à janela do Centro Nacional de Estudos e Fomento da Fruticultura, aberta
sobre os campos de Alcobaça, pareceu-nos surpreender um Monge Agrónomo, sobrevivido e
maior do que os medievais. A sala estava impregnada da chama que gerou as palavras que es-
crevera, em 1947, quando se ocupou do Fomento da Fruticultura na Madeira:
«Rochas, água, mil climas num só clima. Escarpas, despenhadeiros, abismos, nascidos
de um delírio geocinético, entre brumas, na imensidade do mar; o solo martirizado e brutali-
zado por levantamentos submarinos e acumulações de lava, como débil vítima da fúria de ci-
clopes. Paisagem agreste, grandiosa, selvagem, onde as torrentes, no inverno, tumultuosamen-
te cavam o leito em gigantescos barrancos, disputando à rocha o seu caminho com temeroso
ímpeto.
Esta foi decerto a Madeira que surgiu aos olhos dos colonizadores à medida que des-
truíam o frondoso revestimento arbóreo, as florestas luxuriantes de tis, barbuzanos, vinháticos
e urzes, "tão alto e basto arvoredo que nem podia por ele abrir-se caminho", no dizer de Gaspar
Frutuoso, e à medida também que a erosão, em tão declivosas vertentes, implacàvelmente des-
carnava o esqueleto rochoso e arrastava a terra vegetal que a floresta milenária acumulara: solo
de prodigiosa fertilidade que dava aos primeiros colonizadores "sessenta alqueires de trigo por
cada um de semente" e onde tudo se multiplicava em tresdobro "com a muita fertilidade e

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grossura e viço da terra".
Poucas vezes terá algum agricultor enfrentado mais sombria realidade. Destruida a flo-
resta, perdido o próprio solo agrícola, tem nas suas mãos apenas a rocha hostil e a água rebel-
de, num clima adverso, pela sua benignidade, ao violento esforço físico, à luta tenaz, ao traba-
lho perseverante e fecundo. No entanto, em escassas centenas de anos o vilão madeirense er-
gueu com tão pobres materiais um dos mais extreordinários edifícios agrícolas do mundo e es-
creveu, com o seu sangue, o seu suor e as suas lágrimas uma grande Epopeia.
Atacou a rocha para obter terra, transportou-a depois, sobre o dorso, por caminhos inve-
rosímeis; lapidou amorosamente a montanha, o serro, as escarpas, os despenhadeiros, como se
trabalhasse minúsculos diamantes, não raro debruçado sobre abismos e com risco permanente
da própria vida; ergueu poios sobre poios para segurar esses punhados de terra, e fertilizou-a
por fim, conquistando e dominando o fio de água misteriosamente nascido nas alturas e que,
transformado em levada, encaminhou com infinito labor através de caprichosos e acidentadís-
simos percursos.
Nas encostas, agora suavizadas pelo trabalho de inumeráveis gerações, e em gigantes-
cos anfiteatros sempre verdejantes, espalha-se o casario. Junto a cada casa, a parreira, um can-
teiro ou o modesto alegrete de flores: anseio de beleza, doçura, suavidade, após uma tarefa ru-
de e magnífica, num cenário ciclópico. Em cada freguesia, a sua Igreja, onde com exuberante
frequência, e seu tanto de paganismo, o ingénuo vilão agradece a todos os santos conhecidos
o espantoso milagre que ele próprio fez...»
E Natividade inscreve na introdução do seu trabalho a afirmação agronómica que não
nos atrevemos a contestar:
«Em nenhuma outra parte do mundo se põe ao serviço da agricultura maior soma de tra-
balho humano por unidade de superfície. Supomos até que em nenhuma outra parte consegue
o agricultor tirar de tão exígua parcela de terreno o seu sustento e o da família.
Talvez por isso, ninguém votará mais fundo amor à terra do que o vilão madeirense, e
por amor dela mais se sacrifique e mais padeça.
Para adquirir o direito à sua posse, sonho de todas as horas, sofre as torturas da emigra-
ção, arrosta todos os sacrifícios e renúncias, e conquista a Ilha palmo a palmo, poio a poio,
com mais titânicos esforços, mais heroísmo e grandeza do que os que dispenderam há quinhen-
tos anos os velhos Gonçalves Zarco e Tristão Vaz... Em tais condições, a propriedade rústica
atinge valor considerável, diremos até, amiúde incrível, como considerável e por vezes incrível
é também o valor da água.»
Encarando depois a situação concreta de um regime agrário que hoje se encontra extin-
to, comenta:
«E se atendermos a que grande parte do solo madeirense é explorado sob o contrato de
colónia, pelo qual o colono entrega ao senhor da terra o dimidio das colheitas, compreende-se
que o agricultor para viver obrigue essa terra a fazer prodígios, e tenha, na intensificação cultu-
ral, a sua única defesa.»
E logo a seguir:
«Se interrogássemos o vilão sobre as causas que levaram os seus antepassados a trans-
formar a Ilha em novo Jardim de Semíramis e a criar uma das maravilhas agrícolas do mundo.

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decerto não olharia, como o felá, para os prometedores rebentões dos tis ou dos barbuzanos,
mas limitar-se-ia a apontar não menos prosàicamente e melancolicamente, o estômago. Peran-
te o dilema fatal: fazer milagres ou morrer de fome, o vilão dispôs-se a fazer milagres.
Sobre ser descabido, seria pretencioso da nossa parte tentar analisar aqui a psicologia
do cultivador madeirense. O vilão, como todos os heróis, é humano, e por ser humano tem vir-
tudes e vícios, e mais vícios do que virtudes, como o comum dos mortais. Há, no entanto, uma
particularidade do seu carácter ou da sua maneira de ser que os senhorios das terras não levam
a bem, que agrava ou enevoa as mútuas relações, e que para nós (alheios aos problemas sociais
da Madeira e inclinados a apreciar desapaixonadamente as coisas) tem o atractivo de represen-
tar uma especialização psicológica atávica, digna de cuidadoso estudo. Queremos referir-nos
à manha do vilão.
Porque viveu durante séculos sob um regime verdadeiramente feudal, desconhecido dos
portugueses do continente, e que çhegou a atingir o supremo ultrage ou requinte de conferir ao
senhor da terra o direito torpe da prima nocte da noiva do seu colono; dominado pelos detento-
res da força e do poder, que é como quem diz, na moralidade do nosso mundo, do direito, da
justiça e da razão, o íncola madeirense desenvolveu a sua astúcia, a única arma que podia opôr
à força e à prepotência. E desenvolveu-a e apurou-a com a mesma paciência, a mesma perseve-
rança, a mesma arte com que lapidou a montanha.
Como as pernas esguias da lebre, a dura couraça do cágado, o mimetismo dos cama-
leões, a manha do vilão é um apresto de defesa, o qual, se lhe não deu a felicidade, a riqueza
e a independência, trouxe-lhe a prodigiosa força moral que impediu que descesse os últimos
degraus da escravatura, e lhe permitiu salvar, vamos lá, a própria pele.
Não ultrapassemos, porém, as fronteiras do nosso trabalho.»
Os «Senhores da Terra» da Madeira nunca perdoaram a Natividade a homenagem pres-
tada à «manha do vilão».
Em relação ao Continente, por nossa parte supomos que, ao fim de perto de 30 anos, os
«doutores» já se desinteressaram dos «seus pomares». As árvores do Estado que mandaram
plantar à custa de crédito bonificado, arrecadando o subsídio, já morreram e foram substituídas
por outras, da «rotina agrária» que se instalou sob gestão de agricultores que resultam sempre
da acção dos Técnicos, porque é muito forte «a manha do vilão».
Hoje o mercado encontra-se abastecido de produtos normalizados de entre os quais, os
mais bonitos, são bons para «comer com os olhos». Para muitos conserva-se a saudade da fruta
«bichosa», o que dava a garantia de não estar contaminada de pesticidas. Mas, pobres dos ur-
banos, porque a fruta é mais saborosa quando comida madura «debaixo da árvore». Sabemos
que Técnicos modernos, andam empenhados na reabilitação da velha fruta seleccionada pelos
Camponeses, o que constitui trabalho a todos os títulos meritório.

Alterações na exploração pecuária: a Zootecnia

Conforme largamente se referiu no presente trabalho, o pastoreio, na generalidade dos


sistemas agrários, acompanhou a evolução da agricultura, assinalando-se como excepção a
agricultura sem pecuária que não deixava, aliás, de manter animais domésticos em cativeiro.

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Pode reconhecer-se que a domesticação de animais selvagens que, na opinião de alguns Histo-
riadores, precedeu a agricultura ou, nas regiões árticas ou de montanha, tomou grande incre-
mento, obedeceu a diferentes propósitos que conduziram a exploração pecuária a bem demar-
cadas especializações. Se é certo que o objectivo de obter produtos alimentares como a carne
e o leite tenha assumido grande importância quando a dependência da caça ficou reduzida pela
manutenção do rebanho e do cativeiro, acontece também que representou importância não me-
nor a especialização de animais de trabalho, explorados como motor vivo de transporte, de
tracção, das artes da guerra, ou de animais de produção industrial de lã, sendo ainda largamen-
te utilizadas as peles, os couros, os chifres, as unhas e os ossos.
O maneio de animais capturados a partir da fauna selvagem, teria seguido processos
idênticos aos que vieram a permitir a constituição do património de plantas cultivadas, condu-
zindo à selecção e melhoramento de espécies que, nos diferentes ecosistemas, podem ser con-
siderados clímax, a que se acrescentou a aclimação de espécies exóticas obtidas em resultado
das deslocações migratórias. Tanto se tirou partido dos animais, seleccionando a capacidade
de alguns para suportarem situações ecológicas severas, como se estimulou as tendências natu-
rais para o acréscimo de produção, por meio do reforço do regime alimentar quando, em con-
dições especiais podia ser proporcionado. Os comentadores do melhoramento pecuário afir-
mam que «as raças se fazem pela boca» o que se afigura muito válido porque os solares da pe-
cuária mais célebre, coincidem com a «geografia» das pastagens mais fecundas. No entanto,
certas especializações como as do cavalo, do queijo, do touro de lide, por exemplo, exigem o
enquadramento ambiental de treino ou de estímulo às funções visadas, o que se afigura muito
importante. A «geografia» das planuras e das serras, com os microclimas que condicionam a
composição dos pastos, apresentam-se com feição claramente dominante. Uma vez seleccio-
nadas as raças, torna-se possível praticar cruzamentos tendo em conta as capacidades genéti-
cas. Considera-se que o progresso pecuário, fazendo parte de tradição muito antiga, decorreu
em resultado de intervenções empíricas, admitindo-se que somente no século XIX foi alcan-
çado o estádio científico, com a estruturação da Zootecnia, apoiada no melhoramento das pas-
tagens, dos complementos alimentares, e na protecção da Medicina Veterinária. Mas, tal como
sucede em relação a outras Ciências Agrárias, não se pode minimizar o valor de preceitos pe-
cuários e de sanidade que se encontram em documentos antigos. Gregos, Romanos ou Árabes,
por exemplo.
De qualquer modo os progressos recentes são notórios e decisivos, e resultam de estu-
dos promovidos por nutricionistas médico-veterinários. Para além de outras circunstâncias, as
conquistas modernas nestes estudos têm sido atribuídas à liberdade de que a Medicina Veteri-
nária dispõe quanto à experimentação com animais «de laboratório». A Medicina Humana en-
controu sempre interdições quanto ao recurso a técnicas experimentais e por isso os estudos
médico-veterinários precederam e vieram a estimular a investigação no que se refere à nutrição
humana, onde a Fome se apresentava como uma espécie de «tabu». Em resultado de conclu-
sões de ensaios médico-veterinários passaram a ser utilizadas rações de complemento, ou re-
gimes alimentares compostos com produtos das mais variadas origens. Em função destas téc-
nicas chegou a supor-se adequado orientar a exploração pecuária de forma a manter-se, na apa-
rência, desligada da terra. O animal assumia assim a forma de instrumento industrial de trans-

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formação de alimentos facultados segundo esquemas de composição cientificamente determi-
nada. Nestas circunstâncias o animal ficava privado do uso do instinto, ou muito limitado na
sua capacidade de escolha, o que, aliás, já se encontrava condicionado desde o recurso ao pas-
toreio, com sensíveis inconvenientes. Assim, os efectivos pecuários, uns mais do que outros,
passaram à estabulação, encontrando-se as formas mais sofisticadas de cativeiro e de maneio
industrial intensivo. Foram notáveis os progressos registados na exploração de vacas leiteiras
em regime de estabulação que alcançou resultados comparáveis aos do pastoreio em microcli-
mas privilegiados. Naturalmente foram sendo ensaiadas soluções intermédias de «estabulação
livre», ou de compartimentação de prados dotados de «cercas», com complemento alimentar
oferecido, por vezes, em «self service». Na produção de carne, vulgarizaram-se os «viteleiros»
de criação intensiva de animais de raças puras e cruzadas.
Mas foi particularmente a suinicultura que registou as maiores alterações. O pastoreio
deu lugar à estabulação, com administração de rações industriais. Por vezes estas eram prepa-
radas na exploração com resíduos da produção leiteira, como o soro, por exemplo. As raças
mantidas em pastoreio têm sido afectadas por epidemias graves que limitaram muito o sistema
de produção. Cada vez mais a Medicina Veterinária aconselha instalações com isolamento sa-
nitário. O melhoramento tem sido conduzido no sentido da selecção de raças produtoras de
carcaça magra por exigências dos consumidores.
As cabras, que sempre foram os animais de maior rusticidade, capazes de se adaptarem
às condições mais difíceis, foram submetidas a estabulação, obtendo-se raças melhoradas de
grande produção leiteira. O melhoramento ovino continua a ser praticado em espaços amplos
de pastoreio, não se afigurando fácil o recurso a formas apertadas de estabulação.
Nas regiões onde a mecanização e a motorização se implantaram, tanto os bovinos co-
mo o gado cavalar, perderam a especialização larguíssima que tiveram no que se refere a
transportes, tracção e equipamento militar. Os bovinos especializaram-se no leite e carne e o
cavalo em função de prática desportiva, de apoio a actividades de recreio e turísticas, ou de
manutenção de cavalariças destinadas a espectáculo militar.
No que se refere à avicultura, a generalização dos «aviários» especializados na produ-
ção de frango, de ovos e de peru, tem sido notável, modificando completamente o abasteci-
mento do mercado. Caso semelhante tem acompanhado a produção de patos e de coelhos.
Mesmo as modernas pateiras apresentam problemas graves quanto ao risco da «salmonela» o
que obriga a defesa vigilante do consumidor. No que se refere a coelhos o isolamento sanitário
é fundamental por serem sensíveis a diferentes endemias entre as quais a «mixomatose», cri-
minosamente introduzida na Europa por um Técnico obcecado pelos prejuízos provocados pe-
lo coelho bravo, cuja extinção pretendia promover. A fauna selvagem procurada no seu habitat
natural ou mantida em coutadas, como o faisão e a perdiz, acabou por permitir a produção em
cativeiro que se presta não só para repovoamento, como também para a prática de modalidades
ditas desportivas. Os animais podem ser transportados em jaulas a locais escondidos de par-
ques ou de coutadas, e lançados em frente das espingardas que os fuzilam sem dificuldade,
porque falta aos cativos condenados o treino do voo, mas não certamente o instintivo desespe-
ro. Surge assim na História a versão moderna de «caçadores», políticos de agora não muito di-
versos dos que sempre houve, ou então turistas que pagam bom preço por cada tiro com que

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se divertem.
O mais notável quanto a progressos recentes de domesticação de animais selvagens terá
sido a submissão a cativeiro particularmente rigoroso da codorniz, ave migratória que se lança
a percorrer o mundo nos mais audaciosos voos, ave que se celebrizou nos tempos bíblicos co-
mo o «maná do deserto» quando os bandos, exaustos, pousam a meio do percurso. As aves sel-
vagens, uma vez encarceradas, têm comportamentos dramáticos como o Melro de Junqueiro,
«negro, vibrante e luzidio», envenenando os filhos enjaulados. Somente é possível acasalar
certos faisões depois de observar atentamente a fase do «namoro». Se a fêmea não for encerra-
da com macho de sua escolha torna-se, irremediavelmente, assassina, tão forte é o instinto do
melhoramento da espécie. Também nos foi dado encontrar na ementa de um restaurante «ca-
nard sauvage elevée», o que se afigura progresso, anunciado pelo menos de forma extravagan-
te. Também, animais tradicionalmente «de caça», como o javali e o veado, encontram novas
formas de maneio e de arraçoamento.
A produção industrial em estábulo, pocilga ou aviário, nasceu com o desenvolvimento
da indústria de alimentos pecuários compostos, que se encontra ligada à utilização de matérias-
primas diversas, muitas de origem tropical que, simultaneamente abastecem a indústria de
óleos vegetais e da saboaria. Os produtos da pesca são também largamente usados, não faltan-
do o recurso a composições químicas como a ureia.
Em resultado destes progressos a qualidade da produção animal não melhorou no que
respeita ao paladar dos produtos. Com o estímulo da precocidade resultante da gestão lucrati-
vista, não oferece dúvida que a carne passou a apresentar-se mais tenra, particularmente no
frango, peru e novilho, mas perdeu muito quanto ao sabor tradicional. Mas o pior é que, embo-
ra os progressos da Medicina Veterinária tenham sido importantes no combate às doenças dos
animais que, muita vez, também afectam a saúde humana, a verdade é que os riscos persistem
e, as técnicas ou os meios que condicionam a biologia animal vão sendo utilizados de forma
selvagem, visando o acréscimo dos rendimentos. O aspecto mais grave que vai merecendo a
atenção dos serviços públicos de defesa do consumidor, é a contaminação de produtos pecuá-
rios resultante do abuso de antibióticos, do recurso a hormonas que têm sido manobradas para
estimular o crescimento ou mesmo alterar o sexo de pintos destinados à produção de frangos,
e de produtos químicos para a coloração dos ovos e da carne. Em certos países as proibições
têm sido drásticas, embora seja difícil a vigilância quanto ao uso destes produtos que influem
fortemente nos resultados económicos. Também as associações de protecção dos animais, têm
lavrado os seus protestos quanto a certas formas de cativeiro de animais domésticos, que se
apresentam particularmente cruéis, como nas «baterias» dos aviários, por exemplo, onde as ga-
linhas, incapazes de definir e defender seu «espaço», se tornam ferozes, acabando loucas.
No entanto, deve reconhecer-se que o consumidor acentua a tendência para procurar no
mercado produtos pecuários de qualidade que, naturalmente, são difíceis de encontrar com ga-
rantia suficiente, apresentando-se a preço mais elevado. Embora em Portugal, ao que nos pa-
rece, e ao contrário de outros países, nunca o mercado tenha determinado a intervenção de
«provadores de carne», à imagem do que sucedeu com o vinho, acontece que os apreciadores
e técnicos da especialidade, sabem distinguir a origem, ligada à raça presente em regiões privi-
legiadas, em função de maneio pecuário adequado. Exemplares de raças tradicionais de quali-

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dade reconhecida vão obtendo no mercado grande valor. Cada vez se desenvolve mais a con-
corrência entre ovos e frangos «de aviário» e os «do campo», sucedendo o mesmo quanto a
outras aves, mesmo as que eram apresentadas como «de caça». A qualidade anda por aí perdi-
da, e é notória a insipidez da «canja» de galinha de aviário, assim como não tem graça a «sopa
do cozido». Verifica-se que a qualidade se encontra incompatível com a indústria alimentar
produtivista. No entanto, tal indústria não se dá por vencida e promove a venda de «temperos»
concentrados em «cubos» que prometem o paladar para todos os cozinhados, o que enfada ou
polui espectáculos de televisão. E os «cubos» inundam o mercado sendo detectados pelos in-
quéritos de alimentação nas mais recônditas aldeias, na lareira de Camponeses, que os com-
pram com dinheiro proveniente das vendas de produtos saborosos, do «campo», que enviam a
caminho das cidades.
De qualquer modo parece concluir-se que o uso zootécnico do animal como instrumen-
to de transformação industrial de alimentos parece afastar-se cada vez mais do estábulo ou do
cativeiro, mantido com rações e farinhas provindas de espaços subdesenvolvidos onde domina
a exploração colonial, cada vez mais difícil. Os animais vão regressando «ao campo» em inte-
gração cada vez mais perfeita com o prado natural, mais produtivo por ser objecto de cultura
aperfeiçoada. A «Silvo-pastorícia» vai acabar por se impor como sistema da conservação do
ambiente. Este equilíbrio não impede que prossiga o trabalho essencial de, a partir das reservas
genéticas que importa manter conservadas e defendidas, seleccionar novos exemplares da fau-
na susceptíveis de atender a crescentes necessidades humanas.

532
52 — OS ESTEIOS DO CONSUMISMO CONTEMPORÂNEO

Como não podia deixar de ser, a industrialização de produtos alimentares, praticada à


margem da tradição de estreito enquadramento na empresa agrária, abriu caminho às inven-
ções de produtos para os quais, por enquanto, se tornou necessário impedir, com base em pres-
crições da Lei, a mesma designação do alimento que se pretenda imitar. Nos rótulos das emba-
lagens oferecidas ao consumidor, não foi consentido, repetimos, ainda, dar ao "óleo" o nome
de Azeite, nem à "margarina" o de Manteiga, sendo proibido, também, designar "bife vegetal",
a pasta que constitui vulgar imitação da Carne. Tem sido mantida, mesmo, a ideia de defender
a Agricultura Biológica, como sistema natural em que se produz, sem estímulo ou protecção
de agente químico adicional. Não deixou, todavia de se deixar em aberto, o debate que permite
sempre renovados confrontos de ideias, em relação aos quais a Ciência não pode permitir que
lhe seja reservada a ausência, para que fiquem melhor garantidos os lucros, de todas as mani-
pulações possíveis.

Os Óleos Alimentares, imitação do Azeite

As gorduras líquidas, à temperatura ambiente, enquadram-se na designação de óleos.


Tratamos aqui especificamente dos óleos vegetais, quanto à origem, uma vez que existem tam-
bém os óleos minerais e os óleos essenciais. Na certeza de que os óleos se prestam a diferentes
fins, interessam-nos os alimentares, podendo referir-se também os dietéticos ou medicinais,
sabendo-se que entre a diversíssima gama de óleos, muitos servem para fins industriais, na sa-
boaria, no fabrico de tintas e de lubrificantes, e de ácidos gordos em especial. A designação
dos óleos obedece também à origem, isto é, à matéria de que são extraídos, como sucede, por
exemplo, no caso do óleo de baleia, de amendoim, ou de alfazema.
A capacidade das plantas produzirem óleos, que são extraídos por meio de tecnologias
apropriadas, foi de há muito descoberta, entrando em generalizado uso a extracção baseada na
moenda e prensagem, sendo recentes os métodos químicos. No mundo mediterrânico a oliveira
produz a azeitona de que se extrai, há milénios, o azeite, como neste trabalho se fez especial
referência. Nesta área o consumo de azeite manteve-se fundamental nos hábitos alimentares,
até há poucos anos, enquanto noutros espaços do mundo, os óleos eram muito escassos, sendo
dominante na alimentação a manteiga e a banha de porco. É de recordar também a importância
que assumia para fins medicinais, o consumo directo de óleo de fígado de bacalhau, pelo seu
valor vitamínico, e o óleo de rícino, purgativo.
O consumo de azeite circunscrevia-se ao espaço mediterrânico onde a oliveira era culti-
vada. Nesse espaço, conforme se referiu, dominaram as grandes Civilizações da Antiguidade
Clássica que consideravam «bárbaros» os pastores que consumiam manteiga e banha. O Impé-
rio do Azeite foi mantido até época muito recente, acusando dificuldades na II Grande Guerra,
altura em que recebeu o embate de outros óleos comestíveis, industriais, que se apresentaram
no mercado em condições de concorrência quanto a preço. Com a venda a granel, na fase ini-

533
ciai foi praticada a fraude da mistura, muito lucrativa, quando vendida ao preço do azeite. Para
combater a fraude foram criados preços artificiais para os óleos, igualados aos do azeite. No
entanto a competitividade do produto industrial acentuou-se e um dos responsáveis pela políti-
ca de abastecimentos, chegou a legalizar no mercado a mistela de azeite e óleo, a preço médio,
o que o consumidor contestou, alegando que preferia «misturar em casa», a seu gosto. Assim
prevaleceu o princípio da genuinidade dos produtos comercializados, cada um com o seu pre-
ço, na dependência dos custos de produção que desfavoreciam o azeite. No entanto a garantia
da genuinidade do azeite, em face de mistura de óleos refinados, nunca se tornou fácil porque
a Química das Fábricas vai sempre muito à frente da Química dos Serviços Públicos, que não
dispõem dos mesmos recursos financeiros. A fraude feita com óleos refinados não pode ser de-
tectada por provadores e a análise laboratorial, cujas técnicas têm limites, constitui domínio
bem conhecido de industriais. A obrigatoriedade de engarrafamentos dos produtos melhorou,
no entanto, a qualidade no mercado.
Em Portugal o óleo de amendoim foi o primeiro concorrente do azeite juntamente com
o óleo de bagaço de azeitona, produzidos pela Indústria de extracção química e refinação que
se instalou. Conforme se referiu no presente trabalho, o amendoim, Araquis hypogea, L. foi
encontrado pelos portugueses no Brasil e depois difundido pelo mundo. Em África recebeu o
nome de mancarra e no Algarve deu origem à designação tardiamente arabizada de alcagoita.
Com a carência de azeite generalizada depois da última Guerra, a indústria escolheu o amen-
doim como matéria-prima preferida. Portugal aumentou as suas importações e as Empresas
criaram estruturas de produção, especialmente na Guiné, ao mesmo tempo em que os ingleses
desenvolviam vastíssimos planos de produção no Tanganica, no Quénia e na Rodésia, que de-
ram origem a gravíssimos problemas de apropriação por colonos europeus de terras de indíge-
nas entregues a sistemas de uso tradicionais. O óleo de amendoim conquistou o mercado portu-
guês, banindo o azeite de variados usos culinários, como especialmente nos fritos, extrema-
mente vulgarizados. O facto corresponde a uma das maiores «revoluções» verificadas nos há-
bitos alimentares portugueses.
Com a instalação da Indústria de óleos alimentares, desenvolveu-se a pesquisa de outras
matérias-primas, passando o mercado a ser abastecido com produtos de variadas marcas, que
assinalam óleos de diferentes origens, cujos consumos passaram a ser autorizados pelos Ser-
viços competentes. Esta circunstância teve reflexos nos sistemas agrícolas praticados, sempre
que se apresentou viável a introdução e expansão de plantas oleaginosas de climas temperados.
Noutros casos, manteve-se ou desenvolveu-se a importação de matérias-primas para a nova In-
dústria.
Assumiu grande importância a produção de óleo de Girassol. Esta planta, com a desig-
nação botânica de Helianthus annuus, L. é originária da América do Norte e do México, tendo
sido encontrada pelos espanhóis. O seu cultivo para aproveitamento das propriedades oleícolas
teve início na Rússia, passando a ter grande difusão em diversas áreas geográficas, particular-
mente em Portugal.
O Cártamo, cuja designação botânica é Carthamus tintorius, L. é planta originária da
India e da África Oriental que começou a ser utilizada como planta tintureira. A sua expansão
como oleaginosa foi grande, mesmo em Portugal, mas a susceptibilidade à bactéria Pseudomo-

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na cartami, obrigou à redução da área de cultivo, perdendo importância industrial.
A Colza (Brassica napus, L.) tem grandes tradições de cultura em França, Suécia, Ale-
manha e Canadá, e resultou do melhoramento que obteve cultivares praticamente isentos de
ácido erúcico, que produz efeitos tóxicos graves.
A Soja, leguminosa do Género Glycine, com muitas variedades, é planta cultivada há
milhares de anos no Extremo Oriente, largamente utilizada como alimento na China. No sécu-
lo XIX adquiriu grande importância industrial, particularmente com a expansão que registou
nos Estados Unidos da América do Norte. A Soja é considerada a planta de mais variadas utili-
zações. fertiliza as terras, serve de arraçoamento de animais, de alimento humano e de maté-
rias-primas para a indústria. A indústria extrai da Soja grande variedade de produtos, de entre
os quais óleo alimentar.
O Gergelim ou Sésamo, planta oleaginosa com a designação botânica de Sésamo indi-
cum, L. e considerada oriunda das Ilhas de Sonda. Foi encontrada pelos navegadores portugue-
ses desde o Sul da Ásia ao Japão e por estes transportada à África e ao Brasil no século XVI.
O óleo de Gergelim constitui um desnaturador que as análises identificam quando misturado
no azeite.
As sementes de Algodão, a graínha da Uva, o gérmen do Milho (Zea Mays, L.), as se-
mentes de Tomate, as bolotas dos Quercus, o farelo do Arroz, são objecto de extracção química
de óleos, depois refinados.
O «óleo alimentar» é constituído por misturas de óleos comestíveis autorizados, menos
azeite, com acidez igual ou inferior a 0,2% e teor de ácido linoleico igual ou inferior a 2%.
Não oferece dúvida que se verificou a expansão do consumo de óleos alimentares in-
dustriais dilerentes do azeite no mundo mediterrânico, onde dominavam os apreciadores deste
antiquíssimo produto. Sabe-se também que, fora do mundo mediterrânico, salvo nos casos de
áreas povoadas com populações desta origem, o azeite era considerado produto de mau pala-
dar, para muitos consumidores que rejeitavam o seu gosto típico, agravado com o excesso de
acidez. Em muitos países era vendido somente nas Farmácias. No entanto a diferença que se
mantém entre o azeite, óleo puro que se obtém por simples prensagem de azeitona moída nos
antiquíssimos lagares, modernizados somente com soluções mecânicas mais eficazes, e os
óleos industriais, todos resultantes de extracção química de óleos provindos de plantas cujos
efeitos tóxicos continuam a ser experimentados e são muito justamente temidos, óleos que são
sempre submetidos a refinação (neutralização, descoloração, desodorização e filtração), afigu-
ra-se muito importante. O azeite mantém as características ímpares de produto da mais antiga
das plantas arbórias cultivadas, conservando o seu prestígio de um dos produtos alimentares
mais experimentados, de grande valor bromatológico e de insubstituíveis qualidades culiná-
rias.

A Margarina, cópia da Manteiga

Já foi referido neste trabalho a muito antiga utilização da manteiga, extraída do leite por
meios mecânicos, largamente consumida na alimentação humana, assim como a banha de por-
co. Particularmente no Alentejo, a designação de manteiga engloba os dois produtos, um a

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«manteiga de vaca» e, outro a «manteiga de porco», embora o uso alimentar se não possa con-
siderar idêntico.
É muito recente a invenção da Margarina que hoje se apresenta no mercado, como «có-
pia da manteiga» e alternativa do consumo de banha de porco. É escassa a bibliografia sobre
este produto alimentar. Socorremo-nos de um estudo dirigido por J. H. Van Stuijvensberg inti-
tulado «La Marguerine — Histoire et evolution 1869-1969». O Autor referido, logo em prefá-
cio, acentua a circunstância de a indústria de margarina constituir exemplo único de actividade
que se expande e desenvolve sem incentivos especiais dos governos da generalidade dos países
lutando, pelo contrário, contra limitações impostas pela defesa de produtos tradicionais de que
era concorrente. Isto aconteceu, mau grado a circunstância de a invenção da Margarina se ligar
ao estímulo da carência de manteiga. Efectivamente, a Margarina não se apresenta como pro-
duto resultante de aperfeiçoamento tecnológico de produção antes obtida por meios artesanais,
como é o caso corrente, mas pode considerar-se que constitui produto novo, com as caracte-
rísticas de cópia, do produto tradicional, de há muito industrializado em «Fábricas de Mantei-
ga», detentoras de vasto mercado. Foi na fase avançada da Revolução Industrial no século XIX
que a explosão demográfica, o urbanismo, o acréscimo do poder de compra e, portanto, a alte-
ração das necessidades alimentares, particularmente na Europa, que surgiu o estímulo à pes-
quisa de soluções que enfrentassem a carência de produtos agrícolas tradicionais. Nestas cir-
cunstâncias, em 1869, Hippolyte Mège Mouriès, formado em Farmácia, apresentou a patente
de invenção da Margarina, depois de ter sido encarregado, em França, por Napoleão III, de es-
tudar o melhoramento de produtos alimentares, especialmente com o objectivo de encontrar
um produto susceptível de substituir a manteiga, menos caro e de melhor conservação. O pro-
cesso de Mège consistia no tratamento do sebo dos animais abatidos na indústria das carnes,
com o soro do leite, o que permitia obter um «produto» com a aparência da manteiga, com me-
nos de metade do custo. A este produto foi dado o nome de «óleo-margarina», não sendo per-
mitida a designação de «manteiga de margarina» que também foi tentada.
A guerra franco-prussiana de 1870, criou em França graves problemas de abastecimento
alimentar, sendo muito grande a carência de manteiga. O problema era geral e a Holanda que
mantinha a mais forte posição na produção e no comércio de manteiga, abastecendo especial-
mente a Inglaterra, logo se interessou pela patente de Mègue, sendo os seus direitos adquiridos
pela firma Jugens. A partir dessa altura a indústria desenvolveu-se, aperfeiçoando a tecnologia,
particularmente depois de ter sido inventada, em 1902, a hidrogenação de óleos vegetais, pas-
sando estes.a ter crescente procura nas regiões tropicais, onde o colonialismo se instalara. Em
estreita ligação com a indústria da saboaria, de tintas e de lubrificantes, a indústria rapidamente
se expandiu nos países industrializados. No mercado foi estabelecido o confronto de preços da
margarina com a manteiga, mais elevados, e mesmo com a banha de porco, o que, nos diferen-
tes países ia condicionando a evolução dos usos dados aos diferentes produtos na culinária. Na
aparência a manteiga mantinha a preferência para consumo em natureza, enquanto na cozinha
a margarina alcançava posição dominante em fritos, assados e na pastelaria. Mas a essência do
problema da produção industrial de margarina iria decorrer no âmbito da disponibilidade da
matéria-prima, na dependência da produção mundial e da concorrência estabelecida por outras
indústrias que pressionavam as mesmas fontes. A produção de sebo em breve alcançou os seus

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limites estabelecidos pelo abate e consumo de animais de carne. Por isso se intensificaram as
capturas de baleias, cujo óleo foi muito utilizado assim como o de outros animais marinhos.
Cresceu a procura de óleos vegetais, expandindo-se a cultura de plantas oleaginosas em dife-
rentes climas, desde os temperados aos tropicais.
A lista das matérias-primas utilizadas pela indústria de margarina consta de sebo de ani-
mais e banha de porco, de óleo de baleia e de peixe, de óleos vegetais, de coco, de palma, de
algodão, de amendoim, de girassol, de colza, de soja, de milho, de sésamo e de outros menos
importantes. As gorduras animais tendem a ser menos utilizadas, particularmente o óleo de ba-
leia, o que resulta da protecção da espécie em vias de extinção. A procura concentra-se nos
óleos vegetais. O comércio destes óleos, no período colonial passou pela «imperialização» do
mercado. O acesso à independência de antigas colónias veio esboçar tentativas de emancipa-
ção ou de libertação de situações monopolísticas. Como a indústria arrancou instalada nas
áreas de consumo, tem sido difícil o seu alargamento a áreas de produção de matérias-primas,
uma vez que o comércio dos produtos industrializados (margarina, óleos, concentrados forra-
geiros, etc.) se encontra sob comando de centros de decisão multinacionais.
Dos relatos da evolução da indústria da margarina no último século, depreende-se que
os interesses dos produtores agrícolas de manteiga não deixaram de ter seu peso nas medidas
governamentais que visavam, na generalidade dos países, a defesa dos rendimentos dos agri-
cultores. Também o comportamento do mercado consumidor tem revelado tendências modera-
das de crescimento de gorduras na dieta alimentar. Nos espaços onde se encontra mais desen-
volvida a indústria de lacticínios, têm sido anunciados episódicos excessos de manteiga. Mas
tudo indica também que o acréscimo do nível de vida ou do poder de compra tende a neutra-
lizar essas situações. De qualquer modo, a manteiga, extraída do leite, como o azeite da azei-
tona, mantêm as características de produto natural, obtido por meios mecânicos, sem interven-
ção de produtos químicos, e experimentado ao longo de milénios, o que desperta nos consu-
midores bem informados, a melhor das garantias.

As Proteaginosas e outras fontes de proteína vegetal

A alimentação dos animais superiores e do homem carece de nutrientes que fornecem


energia, ou assumem a função de constituintes plásticos ou de catalizadores. Alguns são elabo-
rados a partir de alimentos ingeridos e outros não podem ser fabricados pelo organismo. Tais
nutrientes apresentam a forma de hidratos de carbono, gorduras, proteínas, sais minerais, vita-
minas e oligoelementos, sendo essencial o consumo de água. A importância das proteínas co-
mo constituintes plásticos é muito grande, podendo ser fornecida tanto por alimentos de ori-
gem animal como de origem vegetal. O conteúdo proteico dos vegetais é muito variável nas
diferentes plantas alimentares, alcançando maior valor nas leguminosas. Esta Família botâni-
ca, cujas plantas apresentam a particularidade de disporem de raízes onde se formam tuberosi-
dades resultantes da infecção com bactérias que fixam o azoto atmosférico, contemplou a hu-
manidade com cultivares que servem não só de alimento humano ou de pasto de grande valor
pecuário, como de fertilizantes azotados do solo quando enterrados em verde ou em palhas.
O consumo de leguminosas, que receberam a designação genérica de legumes é mile-

537
nário, e é feito em verde, em seco depois de cozedura, farinado ou submetido a diferentes
transformações tecnológicas, hoje particularmente diversificadas. O Feijão, a Lentilha, a Ervi-
lha, o Grão de bico, o Tremoço. a Soja, constituem exemplos de legumes que, em diversas re-
giões do mundo, apoiaram as necessidades alimentares proteicas, de todos os povos e especial-
mente dos carenciados da protecção das proteínas animais. Para além dos legumes utilizados
na alimentação humana e pecuária, é muito importante o papel das leguminosas no melhora-
mento de pastagens cultivadas, devendo destacar-se a importância dos Trevos, Luzernas, Er-
vilhacas, por exemplo. Enquanto a exploração pecuária se baseou no pastoreio de plantas es-
pontâneas, os animais seleccionavam instintivamente os alimentos de maior valor. Tal circuns-
tância determinou efeitos negativos, empobrecendo as pastagens mercê do sobrepastoreio.
Com os progressos da Zootecnia, os criadores de gado passaram a seleccionar alimentos pe-
cuários complementares onde, naturalmente, avultavam os de maior conteúdo proteico. A ca-
rência de proteínas é comum a homens e animais. De entre estes, somente os omnívoros, como
os suínos e as aves, encontram a proteína fora da componente vegetal.
Como ponto de partida desta análise devemos ter em conta que os animais poligástricos,
com a ajuda da flora bacteriana apropriada, alcançam fermentar nas suas panças, alimentos
constituídos por erva pobre em proteína. Mas não deixam de corresponder ao contributo da
proteína vegetal ou animal, que nos monogástricos tem muito mais elevado teor de aproveita-
mento. Deste modo existe concorrência entre animal e homem no que respeita ao consumo de
proteína vegetal. Na alimentação humana a proteína animal apresenta-se difícil de alcançar, é
dispendiosa, porque resulta de enorme desperdício feito pelos animais a partir da fonte vegetal.
Por isso, sempre teve razão de ser a preocupação do homem quanto ao consumo directo de pro-
teína vegetal, o que veio a identificar-se com propósitos de melhoramento e expansão de plan-
tas proteaginosas de entre as quais figuram as que, em dietas milenárias, receberam a designa-
ção de legumes. Foram legumes que sempre deram corpo e consistência às sopas medievais
que sustentaram Camponeses que raramente alcançavam a proteína animal, a não ser com a ra-
pina de caça. A sopa tradicional, com seus feijões, grão e fava, onde se conservava a colher de
pé, tal era a sustância, nunca esteve presente nas mesas fartas, onde era típico o consumo de
carne, usando-se o caldo como aperitivo. A sopa que teria sido a dos escravos, para que traba-
lhassem com maior energia, e depois a dos Camponeses e dos criados, acabou por dar lugar a
regimes alimentares diversos, onde o pão e o arroz tomaram lugar, com a função energética, a
exigir o complemento proteico do enchido de carne, do toucinho, da sardinha ou do queijo.
No presente trabalho foram feitas referências a Indústrias de preparação de alimentos,
como a da Moagem, Lacticínios, extracção de Azeite e preparação de Óleos alimentares e Mar-
garina, pretendendo-se agora destacar o que parece constituir um campo novo na preparação
de proteína para alimentação pecuária e humana, feita com base no aproveitamento de plantas
proteaginosas e de outras matérias-primas que microorganismos transformam em biomassa.
Nesta óptica não se deve perder de vista que o consumo de leguminosas, ou legumes, é mile-
nário, acontecendo que a tecnologia do seu aproveitamento se apresenta mais recente do que
a moagem, o lagar de azeite ou o fabrico de queijo, por exemplo. Não oferece dúvida que se
assiste ao desenvolvimento de investigação no sentido de procurar proteína em diversas fontes,
que podem ser os produtos vegetais, que têm servido de consumo directo ou que resultam de

538
transformação tecnológica, como os bagaços, ou matérias susceptíveis de transformação mi-
crobiológica.
A abertura deste caminho veio colocar a Agricultura mundial perante a perspectiva de
alterações profundas no aproveitamento de certas plantas cultivadas ou até agora espontâneas.
Algumas acusam recentemente áreas de expansão revolucionárias, como sucede com a Soja, e
outras, onde tomam lugar plantas de origem tropical, assumem particular importância e, pelo
melhoramento, alargam a sua área de cultura, como sucede com o Amendoim, o Girassol, o
Cártamo, o Algodão, o Sézamo, a Copra, a Colza, o Linho.
A Soja é uma leguminosa de que existem mais de 3.500 variedades. Artur Castilho, no
seu «Manual enciclopédico do Agricultor português» refere que esta planta está incluída no
Género Soja ou Glycine, do mesmo Grupo a que pertence o Feijão. Segundo o referido Autor
é originária do Extremo Oriente desconhecendo-se a data, há milénios, em que entrou em cul-
tura. Na China, a cultura encontrou a sua Lenda: «Em época remotíssima o povo chinês foi
condenado ao sofrimento da mais terrível e espantosa das fomes que a história registou. O en-
fraquecimento provocou a morte a milhares de pessoas. Então o Deus da Agricultura Hou-Tsi,
segundo a doutrina do Confúcio, condoído pela mísera prostração em que tinha caído a popula-
ção, e receoso pelo desaparecimento do género humano, compareceu perante o Imperador e
presenteou-o com uma maravilhosa planta cujos grãos, produzidos com esmero, eram capazes
de matar a fome aos chineses. O Imperador prontamente semeou vastas extensões do seu terri-
tório. E assim pôde salvar milhões de seres que passaram a usar desde então o grão divino».
Mesmo assim a cultura ficou confinada à China durante longo tempo, alastrando lentamente a
povos vizinhos. Somente no século XIX surgiu revelada à Europa, determinando aprofundados
estudos tecnológicos que concluíram ser possível extrair desta planta a mais variada das gamas
de produtos alimentares e industriais. A Soja teria o seu primeiro ensaio nos Estados Unidos
no ano de 1804, mas somente com a Guerra de 1914-18 a cultura e o aproveitamento tecnoló-
gico se expandiu, acabando por colocar este País na posição do maior produtor do mundo. Se-
gundo Bruno de Sousa «em 1933 nos Estados Unidos da América, a soja ocupava 1,6 milhões
de hectares com uma produção total de 351 mil toneladas, atingindo em 1969 mais de 17 mi-
lhões de hectares e 31 milhões de toneladas, quasi duplicando este valor no decénio seguinte.
Durante este período a cultura da soja também se desenvolveu em grande escala no Brasil e na
Argentina sendo estes três países praticamente os detentores do exclusivo da exportação de so-
ja (grão, farinha e bagaço)».
A Soja não encontrou condições de implantação em Portugal. Nunca se nos deparou no-
tícia de que os navegadores portugueses, nos seus contactos com a China, se tivessem aperce-
bido do interesse desta maravilhosa planta. Mesmo que a tivessem trazido para ensaio, a tenta-
tiva teria resultado frustrada no Continente, e no Brasil faltava o apoio da tecnologia. Recente-
mente as proteaginosas que possam vir a oferecer alternativa para o monopólio territorial da
Soja, determinam a atenção de Agrónomos portugueses, de entre os quais J. Marques de Al-
meida, Teodósio Salgueiro e R. Bruno de Sousa que procedem ao estudo de Favas, Chicharos,
Tremoços. Segundo refere Bruno de Sousa «em Portugal, tal como países da C.E.E. há um ele-
vado nível de dependência do mercado estrangeiro em matérias-primas destinadas ao fabrico
de rações, da ordem dos 95% sendo a dependência em proteínas destinadas à alimentação ani-

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mal da ordem dos 75%, com particular realce para a soja. A importação deste produto e dos
bagaços elevou-se em 1978 a 195.000 ton. de grão e 288.000 ton. de bagaço respectivamente,
no valor de cerca de 7 milhões de contos».
Para além desta questão, sem dúvida grave, da produção de correctivos alimentares pe-
cuários, o problema que também se põe é o da alimentação humana que depende da qualidade
e custo da proteína animal e da disponibilidade de proteína vegetal, menos dispendiosa. Estu-
dos empreendidos no âmbito da C.E.E. fundamentam-se em realidades preocupantes: «tendo
em conta os diferentes valores nutricionais dos alimentos disponíveis e a frequência dos facto-
res limitantes (aminoácidos imprescindíveis em quantidades insuficientes), não é sempre fácil
compor um regime satisfatório, tanto mais que, para ter eficiente óptica, todos os aminoácidos
devem estar presentes simultaneamente na composição exigida pelo organismo da espécie que
se considere. Para alcançar um equilíbrio conveniente, é desejável quanto ao homem que, pelo
menos um terço da ração proteica seja de origem animal. A contribuição proteica determina o
crescimento, o desenvolvimento cerebral, a morfologia, os níveis da capacidade física e inte-
lectual, as reacções às agressões, o comportamento familiar e social, etc. Em relação às crian-
ças, toda a desnutrição proteica mesmo de breve duração determina sobre o crescimento, a
morfologia e o desenvolvimento, consequências irreversíveis».
Estudos publicados pelo I.N.R.A. em 1978, sob direcção de T. Staron partem do princí-
pio de que as novas proteínas destinadas à alimentação humana devem «possuir elevado valor
alimentar, ser bem aceites pelo consumidor e apresentar uma inoquidade perfeita». Os estudos
referidos recomendam que a adopção das proteínas de substituição na alimentação humana,
não deve «depreciar os produtos cárneos existentes» e devem ser adoptados sempre que se
«não prestem a confusão, que não conduzam a prejuízo do consumidor (saúde e custo) e que
facilmente se diferenciem dos produtos tradicionais». Recomenda-se que «se torne possível a
comercialização de produtos alimentares que comportem misturas de carne e de proteínas ve-
getais, logo que os preços e as qualidades alimentares destes produtos sejam comparáveis com
os alimentos tradicionais de referência». Acentua-se ainda que «se deve vigiar para que a deno-
minação dos produtos compostos referencie a carne e os seus novos constituintes a fim de os
diferenciar claramente dos alimentos tradicionais; ou imaginar novas designações quando as
composições desses produtos se afaste muito dos alimentos habituais». As recomendações
combatem a tendência para que a proteína exclusivamente vegetal receba a designação de
«carne vegetal». A designação de «carne» só deve ser aplicada a ingredientes incluídos nos
produtos compostos, quando a «carne» deles faça parte, sob pena de se considerar fraude.
Quanto à origem das proteínas consideram-se os grãos de leguminosas e oleaginosas
(soja, amendoim, girassol, cártamo, colza, linho, tremoço, ervilhas, favas) os microorganismos
produtores de biomassas (leveduras, bactérias, algas) as plantas verdes (luzerna, sorgo, espi-
nafres), os produtos de tecnologias industriais especiais, como as da cerveja, açúcar, lacticí-
nios, amidos, madeiras, etc. (gluten, proteínas do milho, de batatas).
São reconhecidos os riscos inerentes à preparação tecnológica da proteína não conven-
cional, porque certas matérias-primas contêm toxinas, factores antinutricionais, taninos, etc. de
eliminação dependente de tecnologia complexa. As dificuldades de suprir com novas produ-
ções as carências proteicas existentes em larguíssimos estratos da comunidade humana são

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muito grandes. Mas não oferece dúvida que se torna possível prever que a investigação agrária
venha a alcançar, para além do que foi conseguido com a soja, novos progressos nos domínios
da tecnologia alimentar, progressos de que depende, em larga medida, a qualidade da vida hu-
mana no futuro.

A «Revolução Verde» e o Triticale

Em 1941, a Fundação Rockfeller enviou ao México uma equipa agronómica para estu-
dar as possibilidades de melhoramento da cultura do trigo e, pela mesma época, associando-se
à iniciativa da Fundação Ford, enviou outro grupo às Filipinas visando o melhoramento da cul-
tura do Arroz. Foram, assim, objecto de atenção da moderna investigação científica aplicada,
as duas culturas alimentares de maior projecção mundial. No início da década de 60 foram ob-
tidos cultivares que suplantaram os níveis de produção obtidos pelas rotinas locais. A revela-
ção de perspectivas de imediato acréscimo de disponibilidade de alimentos resultante da intro-
dução de cultivares melhorados a substituírem os sistemas agrários primitivos assumiu propor-
ções que atraíram o Prémio Nobel da Paz em 1972, dando-se ao acontecimento a designação
de «Revolução Verde» logo alargada ao S e SE da Ásia: índia, Paquistão, Nepal, Malásia, In-
donésia. No entanto, a grande aceleração do processo de substituição tecnológica, determinou
graves problemas económicos, mercê da dependência em que comunidades agrárias pobres fi-
caram de custos acrescidos dos meios de produção, e de grandes tensões sociais e políticas de-
terminadas pelos acréscimos de renda da terra ou de especulações de valores fundiários. O au-
mento da produtividade dos novos cultivares agravou o consumo de nutrientes do solo e reve-
lou maior sensibilidade a pragas, pelo que as técnicas agrárias tiveram que enfrentar novas ne-
cessidades de adubos, pesticidas, herbicidas, para além dos encargos das novas sementes, má-
quinas, motores e carburantes. Em muitos lugares, a «Revolução Verde» apresentou-se com a
imagem do desastre ecológico ou do drama social, o que obrigou a procurar alternativas que,
sem dúvida, existirão no melhoramento das rotinas tradicionalmente experimentadas em dife-
rentes estruturas camponesas.
Não se poderá afirmar que a «Revolução Verde» desencadeada a partir de 1941 da for-
ma que ficou sinteticamente descrita, e embora se não tenha dirigido à Europa, haja dado ori-
gem a reflexos imediatos em Portugal. Mas, pode reconhecer-se que estimulou a investigação
agrária mundial, e revelou que os progressos da Agricultura nem sempre resultam de efeitos
espectaculares de acções políticas, mas do amadurecimento de conquistas científicas persisten-
temente alcançadas por devotados investigadores. Carlos Gomes Ferreira, no seu estudo «Pos-
sibilidades do Triticale em Portugal - 1989» refere que, em 1875, Wilson detectou em Inglater-
ra um híbrido do Trigo e do Centeio, não fértil, a que depois veio a ser dado o nome de «Triti-
cale». Foram de seguida encontrados outros cruzamentos naturais, que também não eram fér-
teis. Após constantes tentativas de hibridação, acabou por ser produzido o híbrido fecundo.
Rimpau, na Alemanha, descreveu o primeiro Triticale fértil. Melo e Mota, em 1962, fabricou
o Triticale e desde 1979 a produção está em curso na Estação de Melhoramento de Plantas de
Elvas.
O Autor referido afirma que «este novo cereal revolucionou o Mundo dos cereais. Isto

541
porque em igualdade de condições com o centeio, a aveia, a cevada ou o sorgo, possui o Triti-
cale produções superiores. Esta circunstância por vezes leva a que as suas produções sejam im-
batíveis pelas dos trigos». E cita Zillinsky, cientista americano que afirmou em 1979: «nos pró-
ximos 15 anos os rendimentos do Triticale melhorarão muito mais rapidamente do que o trigo,
prevendo-se mesmo que se situem acima dos trigos». Também Burgau, Prémio Nobel da Ciên-
cia Agronómica referiu que «dentro de cinquenta anos, os Triticale serão imbatíveis pelo rei
dos cereais, ou seja o trigo». Em Portugal prosseguem os estudos sobre esta «esperança» nos
domínios da produção cerealífera o que poderá melhorar o aproveitamento de solos degrada-
dos pela Campanha do Trigo, cereal presente, com tão grande insistência nos mais vivos deba-
tes da nossa História Agrária.

O problema dos Baldios

A «Questão dos Baldios» foi tratada em trabalho de Oliveira Baptista intitulado «Portu-
gal 1975. Os Campos». O Autor assinala a insuficiência de estudos que permitam esclarecer o
problema e reúne informações facultadas por diferentes Autores. Silbert assinala o desapareci-
mento de um autêntico «colectivismo agrário» que teria vigorado no «limiar da revolução libe-
ral». Orlando Ribeiro pronuncia-se sobre a atitude dos tribunais, no fim do século XIX, dando
protecção aos poderosos, contra as Câmaras, as freguesias e os povos, nas questões de apro-
priação privada de direitos comunais. O Inquérito de Santo Tirso, de Francisco de Vilhena, re-
vela que «alguns dos mais importantes e mais influentes proprietários da região», particular-
mente entre 1911 e 1923 procederam à «apropriação pura e simples» da maior parte dos bal-
dios. A respeito do Baldio da Serra Grande de Serpa, aforado em pequenas glebas em 1904,
Bentes afirma que «esta divisão trouxe como resultado que os mais pobres, incapazes de utili-
zarem as suas glebas, as fossem pouco a pouco alienando em favor de poucos mais abastados».
Virgílio Taborda refere-se à «partilha de baldios» em Trás-os-Montes. O exemplo de Vila Ve-
lha, de Cutileiro, já referido neste trabalho, foi apresentado pelo Autor, assim como o de Bar-
rancos, o Campo de Gamos, repartido em pequenas glebas em 1837 levando o povo beneficiá-
rio «a vender a pequena gleba e a tornar-se assalariado». Maria M. F. Costa estudou o caso da
Campeã onde, em 1940, foram repartidos 904 hectares em glebas, «o pobre ficou na mesma e
o rico enriqueceu mais». A sondagem termina com citações de Paulo de Morais, Rocha Peixoto
e Orlando Ribeiro, que acentuam a decadência da propriedade comunal.
Oliveira Baptista analisa diferentes aspectos das pressões exercidas nos últimos decé-
nios sobre os baldios. A divisão em glebas corresponde ao desenvolvimento de intervenções
que seguiram à revolução liberal e que foram fortemente apoiadas pela política agrária da Re-
pública, muito sensível à existência de terrenos incultos, como neste trabalho tem sido obser-
vado. Embora em área reduzida, a instalação de casais agrícolas pela Junta de Colonização In-
terna «levantou frequentemente, e continuamente, conflitos entre os colonos e os tradicionais
utentes dos baldios, que se viam, com a instalação daqueles, usurpados do todo ou parte do seu
terreno comunitário. Como exemplo destes conflitos podem referir-se os verificados depois do
25 de Abril, em Montalegre, Alvão e Padrela» podendo acrescentar-se a Boalhosa.
A apropriação de terrenos baldios por particulares é muito antiga, mas intensificou-se

542
com a expansão da cultura da batata. Como as regiões de altitude oferecem condições para a
produção de batata de semente com garantia fito-sanitária, alguns empresários procuraram ter-
ras apropriadas, que eram baldias, para instalarem a sua produção. Conseguiram facilidades de
Autarquias que acabaram por legitimar a posse de importantes parcelas, mesmo depois da pro-
dução de semente se tomar inviável. Ficaram conhecidos, bem como os sítios onde se instala-
ram pelo «Batateira». A Junta de Colonização Interna que governava os baldios nunca conse-
guiu sentenças dos Tribunais favoráveis à devolução das parcelas de baldios abusivamente
apropriadas por «Batateiras» que, em regra, nem pertenciam às comunidades que lesaram. O
Povoamento Florestal de 1938 e dos Planos de Fomento que noutro capítulo do presente traba-
lho foi analisado, determina a crítica de Oliveira Baptista que confirma o modo imprudente
que presidiu à utilização dos baldios pelos Estado, destacando «que a florestação não se efec-
tuou perante a passividade das populações, verificando-se, muito pelo contrário, lutas na defe-
sa do baldio». Afirma, porém, que «infelizmente, toda esta luta dos camponeses está por estu-
dar», sendo evidente o silêncio que sempre foi imposto, em face da agressão que foi praticada
contra os interesses e perspectivas dos povos das montanhas. O Autor sintetisa desta forma os
efeitos determinados pelo Povoamento Florestal do Estado, nos baldios:
«O estrato dos agricultores cuja economia repousava largamente no baldio foi, sem este,
obrigado a vender gado, deixou de poder fazer no terreno comunitário a sorte de pão, de colher
a lenha ou de roçar algum mato, passou a vender a sua força de trabalho.
Ainda mais três notas exemplificativas para fazer ressaltar as consequências da flores-
tação. Em muitas zonas onde havia área baldia o gado era o principal produto comercializado
pelo agricultor, que utilizava o dinheiro assim obtido para adquirir algum produto indispensá-
vel e pagar os impostos e uma ou outra renda. Nestas circunstâncias o fim do acesso ao baldio
atinge, como é nítido, a economia do agricultor no seu elo de ligação com o mercado.
Também em muitas zonas os habitantes das comunidades ligadas aos baldios utilizavam
este para fazerem carvão, que levavam ao mercado, retirando daí dinheiro que depois lhe per-
mitia manter a relação que tinham com o mundo exterior. Nestes casos a florestação antecipou,
em muitas aldeias, as consequências que advieram da generalização de outras formas de ener-
gia (electricidade, gás).
Finalmente, como terceira nota, e salientando que esta enumeração se podia ainda alon-
gar, pode referir-se que o fim do baldio, e consequente diminuição de gado, acarreta uma di-
minuição de estrume que vai afectar a produtividade das terras dos pequenos agricultores, que
têm como alternativa tentar adquirir no mercado produtos que substituam o estrume que pro-
duziam, para o que muitas vezes não tinham capacidade económica.
Vê-se assim, claramente, que a pequena exploração agrícola não contemplada pela frui-
ção do baldio, exigia que o pequeno agricultor, para sobreviver, vendesse a sua força de traba-
lho na aldeia ou em lugar próximo, no Porto ou em Lisboa, na França ou na Alemanha.»
E acrescenta:
«No período que vimos analisando actuaram sobre a área baldia duas ordens de facto-
res: uma continuada e crescente relação com o mercado; a apropriação privada de baldios, em
geral relacionada com a progressão da economia de troca, a política de colonização interna e,
principalmente, de florestação promovidas a partir de 1938. Se o período considerado recuasse

543
um pouco mais, havia de referir a legislação e ideologia liberais em matéria de propriedade da
terra, e a legislação da Primeira República relativa a baldios, que actuaram, em especial as li-
berais, no sentido da desagregação do comunitarismo.
Num breve resumo parece-nos poder afirmar-se que estes factores contribuíram forte-
mente para proletarizar milhares de pequenos agricultores levando-os a vender a sua força de
trabalho em Portugal ou por essa Europa.»
E, depois:
«Também ao nível de cada aldeia ou lugarejo, a intervenção nos baldios, acelerando a
integração na economia de mercado, contribuiu para acentuar a diferenciação social nos cam-
pos, abalando definitivamente estruturas igualitárias que haviam resistido aos primeiros em-
bates da troca, aprofundando as marcas aparentemente imperceptíveis de diferenciações que
haviam começado a ganhar corpo.»
Trata-se portanto de um processo de desertificação das áreas onde foi estabelecido o
Povoamento Florestal do Estado em grandes espaços e não em pequenas matas bem defendi-
das e geridas que poderiam ter servido de exemplo e de modelo. A transformação não se ope-
rou em favor das populações que fruiam o baldio com a pastorícia, passando o proveito empre-
sarial a favorecer o novo fruidor, que apenas deixava «no terreno» o salário, e mesmo esse sus-
penso quando a floresta entrava em crescimento. Portanto, a situação de locupletamento por
parte do Estado levou, depois do 25 de Abril, à generalização da ideia da «devolução dos bal-
dios aos povos». O primitivismo com que foi anunciada esta ideia somente se explica pela ati-
tude sectária dos «ideólogos» que demagogicamente a exploraram. A reivindicação não resis-
tia à pergunta: devolução de quê?... e a que povos? Na verdade, florestação não é o mesmo do
que pastorícia, embora exista a solução nunca praticada da «silvo-pastorícia». Mas a mudança
da vida dos montanheses foi impiedosa e o êxodo muito forte. Por isso. Oliveira Baptista co-
menta:
«efectuar hoje a devolução dos baldios (terrenos comunitários, rendimentos da flores-
ta...) aos povos, não pode ser uma operação abstracta de entrega, mas tem de ser a devolução
principalmente àqueles que nos lugarejos e aldeias são hoje os mais lesados pelo facto de lhes
ter sido vedado, ou aos pais, o acesso ao baldio.
Ignorar esta questão é seguramente contribuir para manter e aumentar a diferenciação
social nos campos.»
Na nossa óptica actual estamos certos de que a destruição ecológica, demográfica, so-
cial e económica provocada nos baldios pela execução dos Planos de Povoamento Florestal de
1938 foi tão profunda, que se torna urgente conceber agora um Plano de recuperação ambiental
das nossas zonas de montanha.
Neste aspecto, é impressionante o depoimento de Técnicos de pendor ambientalista mo-
dernos, como Jorge de Paiva que, ao comentar «O coberto vegetal da Serra da Louzã» refere:
«Não é possível reconstruir para todo o país o que teria sido o coberto florestal original.
Sabe-se que os carvalhos já dominaram as nossas paisagens e que existem mais de quinhentos
topónimos que derivam da presença dos carvalhos, dos sobreiros, azinheiras, assim como do
teixo, freixo e vidoeiro. Estes últimos tipos de floresta têm vindo a ser substituídos por forma-
ções de urzes (Erica ssp.), tojo (Ulex ssp.), giesta (Cytisus ssp.) e carqueja [Chamaespartum

544
tridentatum (L.) Gibbs] desde épocas muito remotas. A destruição foi tal que, durante muito
tempo, se consideraram estas formações de "mato" como verdadeiras zonas naturais de vege-
tação. O solo é realmente tão pobre que apenas plantas pouco exigentes como as urzes o supor-
tam, daí o julgarem-se estas zonas como naturais. Alguns topónimos antigos são indicativos
que a destruição se iniciou mesmo em tempos históricos, como é o caso da Serra Amarela do
Parque Nacional da Peneda-Gerês.»
Depois de comentar a recente expansão de plantações de exóticas o Autor refere:
«Com ou sem eucaliptos e acácias, a continuar a onda de incêndios dos últimos anos,
as nossas montanhas caminham vertiginosamente para a desertificação com o consequente au-
mento do assoreamento dos rios. Aliás, muitas das nossas montanhas são, actualmente, autênti-
cas zonas desérticas pois até as formações secundárias já referidas de tojo, giestas, urzes e car-
quejas, que ainda "seguravam" o resto do solo empobrecido, têm sido devastadas pelos incên-
dios.»
Apresentamos a anterior transcrição, dramaticamente expressiva, para que fosse tido em
conta o problema do enquadramento ecológico dos baldios actuais. Estamos certos de que a
recuperação é possível, embora difícil e de perspectiva demorada. São preciosas muitas das
paisagens existentes. Da acção técnica dos Administradores Florestais nos baldios, resultaram
belíssimas matas que, nalguns locais, resistiram, pela sua composição correcta, à voragem dos
incêndios. Nas grandes extensões, a instalação de floresta «combustível» conduziu ao desastre
total. Mas esses redutos preciosos que nos recordamos de ter percorrido, erosionados pelos
pastores, seria criminoso devolvê-los aos Povos, sem que, antes, se avaliasse a que Povos eram
devolvidos. Bem podem transformar-se em «Matas Nacionais», intransigentemente defendi-
das para proveito de todos os Povos.
Salvo estes redutos, infelizmente muito escassos, o restante dos baldios encontra-se gra-
vemente degradado. Como consequência, a economia de montanha, que tem sua história, vai
perdendo impulso e a desertificação obriga a fechar Escolas, pelo declínio dos nascimentos,
notando-se como actividade visível a construção de moradias de emigrantes que permanecem
encerradas à espera de um retorno problemático. E como sobre os cadáveres aparecem sempre
os abutres, as Juntas de Freguesia que governam os baldios começam a ser pressionadas pelas
empresas de Celulose para que entreguem o resíduo histórico, de arrendamento, para eucalip-
tos.
Nas montanhas portuguesas encontra-se deserto grande espaço, mas há sempre quem
venha ocupar o «espaço vago». O problema, antes de ser social é biológico. A montanha, em-
bora degradada, oferece encanto aos que se encontram condenados a sofrer os bairros densos,
negros ou cinzentos, das cidades e dos arrabaldes poluídos. Por isso atrai populações urbanas
que desenvolvem a nova «transumância» do campismo. Mas os migrantes urbanos levam con-
sigo gente de toda a espécie, de entre a qual os insociais e os marginais que começam a inquie-
tar os camponeses inseguros. Nos baldios, de momento, a ocupação do «vazio» parece even-
tual ou temporária e atrai tanto nacionais como estrangeiros. Os camponeses, depois da emi-
gração, baixaram às ribeiras ou às planuras, procurando novas ocupações em geral urbanas.
Observam, com desprezo ou indiferença, o novo «povoamento» dos seus montes. O mais cho-
cante para a sua sensibilidade ferida é ver chegar da Europa, figuras conhecidas dos emigrantes

545
que viram com curiosidade e espanto, estendidas nas praças de Amsterdão ou alapardadas nos
bairros suspeitos de Londres. Homens jovens, portadores de longas cabeleiras e de barbas hir-
sutas e mulheres de rostos pálidos imensamente sujos. Vestem-se com tecidos de boa qualida-
de, talvez retalhos de florescente indústria que permitem compor túnicas sumárias e estrava-
gantes. Procuram refúgio nos recantos abandonados das Serras onde, segundo nos disseram,
cultivam nos socalcos que deram milho, plantas a partir das quais preparam a «droga». Nesses
redutos tornam-se agressivos, e afastam os intrusos à pedrada. Pelo contrário, quando baixam
ao povoado em busca de alimentos, supomos que predominantemente ou em exclusivo, vege-
terianos, são corteses e civilizados. Exibem dinheiro, que, sem dúvida, vem de fora, porque
não vendem nada, nem roubam, e não se vê economia local em que participem. Usam língua
que o povo não entende. Por isso utilizam gestos e monossílabos. Os camponeses gritam-lhes
o português vernáculo, como se falassem a surdos.
Um dia, no mercado da Lousã, ao ver um casal destes visitantes que, biologicamente se
reproduzem porque ela ia grávida e, além disso, levava à ilharga, como as ciganas, embora fos-
se ariana, um «rebento» loiro, de olhos azuis, em espanto, e remelosos, inquirimos uma das
vendedeiras camponesas moçárabe:
— Por favor, aquilo o que é?
— São do turismo, estão na Serra.
E sem aguardar resposta, acrescentou:
— ...parecem os bichos do esterco.
Não oferece dúvida que os baldios correm o risco de não haver «povos» a quem os po-
líticos os possam «devolver». Se os Serviços Florestais continuarem a recusar a investigação
sociológica séria nas regiões de montanha, não se encontrará solução e os baldios acabam por
ser entregues à voragem dos eucaliptos ou ocupados pelos insociais da C.E.E. que beneficiam
do estatuto de «livre circulação».

546
53 A SOMBRA E A ESPERANÇA

O Mundo Rural, especialmente em regiões de há muito povoadas como esta em que vi-
vemos, assistiu ao nascimento e morte de Civilizações milenárias, conservando raízes históri-
cas muito resistentes. Mesmo quando submetido ao efeito de Revoluções sociais aparentemen-
te profundas, a reserva cultural dos povos, enriquecida pela passagem de mensageiros de Civi-
lizações distantes, acaba por se impor aos tempos modernos e, apoiada em velhas estruturas
tradicionais, mostra-se quase invulnerável, mesmo perante pressões que se afiguram demoli-
doras.
Em face da grande reserva de Passado, inquestionavelmente vivo em estruturas e men-
talidades que perduraram, não admira que uma comunidade agrária como a nossa não tenha
oferecido aos investigadores sociais da agricultura, mais do que barreiras institucionalizadas,
sem hipótese de imediata mobilidade ou de pronta adaptação. Todos os que, na atmosfera cáli-
da dos longos estios do Sul, ou na amena frescura dos invernos do Norte, seguiram os cami-
nhos que eram apanágio da Sociologia Rural militante, analisando tradições pesadas para
quem as suportou e discutindo-as com a frescura de argumentos de modernidade e de esperan-
ça, tiveram que enfrentar redutos de conservantismo que consideravam toda a mudança sub-
versiva, para não dizer diabólica ou herética. Foi por isto e também porque as ruínas do Passa-
do se escondem aureoladas de prestígio pela sugestão misteriosa que representam, que a inves-
tigação sociológica agrária se voltava para uma espécie de elaboração arqueológica que servia
de arquivo de muitos sofrimentos, sem que daí resultasse qualquer imperativo de mudança. Tal
orientação era aceite com simpatia pelos donos da Política, que influíam nos Centros de Inves-
tigação e Academias Científicas, desenvolvendo teorias explicativas da Vida Rural que muita
vez se nos afiguram simples manipulações que, no entanto, tinham o mérito ou a utilidade de
revelarem situações específicas da existência campesina.
A nossa Agricultura não podia, entretanto, manter a sua estabilidade tradicional repetin-
do invariavelmente rotinas ancestrais. Cereais pobres em solos erosionados pelos efeitos do fo-
go e do arado a revolver a leiva entregue à erosão das chuvas e ao pastoreio transumante em
colinas e montanhas, a oliveira, a vinha, o linhar e a horta em torno dos povoados, constituíam
o quadro da tendência contemplativa de Cristãos e Muçulmanos, a aguardarem a Fome e a Pes-
te, envolvidos em confrontos a que chamavam «Guerra Santa». Todavia, a descoberta de novos
Continentes abriu caminho a plantas «revolucionárias» que modificaram rotinas, impondo re-
novados investimentos de trabalho em socalcos e regadios. Por essa altura os portugueses
transformaram-se em Agrónomos do Mundo, abrindo caminho, pela implementação de novas
estruturas produtivas, à expansão do comércio marítimo que veio elaborar nova carta agrária
universal ao serviço do consumo crescente da população que se multiplicava. Este impulso
acabou por ser seguido pela revolução industrial que, partindo da Europa atlântica, começou
por modernizar a Agricultura dos climas favoráveis do Ocidente, destruindo quase toda a es-
trutura feudal que impunha a servidão dos rurais, a escravatura e a servidão da gleba. O movi-
mento de emancipação acabou por abalar o imobilismo agrário mediterrânico, revelando-se

547
aos que repousavam no berço das grandes Civilizações do Ocidente a teoria pesada do seu
atraso. A implantação das primeiras fábricas mostrou aos rurais e aos senhores da terra que os
latifúndios teriam que sofrer reforma mortal. Os restos de antigos servidores de Donatários de
reguengos, de coutos, de honras; os descendentes de foreiros, de rendeiros, de parceiros culti-
vadores ou de jornaleiros sem terra, esmagados pelo peso dos tributos e exiguidade dos salá-
rios, formaram a base do quadro humano da Revolução Liberal, que lhes deu penosamente o
necessário alívio. Depois da implantação do capitalismo agrário, assistiram ao desencadear da
mobilidade social que os atraiu a outras profissões ou regiões do mundo no impulso migrató-
rio. Sem o apoio de sistemas educativos válidos, capazes de incutirem formação humana,
abriu-se, nos caminhos da alvorada operária, o calvário da proletarização imposto aos Campo-
neses pelo êxodo rural e agrícola desesperado.
A moderna Sociologia Rural, recorrendo a metodologias apropriadas, denunciou a reali-
dade das estruturas agrárias decadentes, dos níveis de produção agrária e de consumo de facto-
res, da disponibilidade de equipamentos e recursos, dos mecanismos da repartição dos bens e
de resultados económicos, permitindo a análise quantitativa das actividades humanas e da par-
ticipação individual no produto do trabalho. Por meio da análise quantitativa pôde reter-se
também a presença de assimetrias no interior de espaços comunitários, tornando-se viável im-
primir ao fluxo do desenvolvimento qualitativo a orientação, o sentido e o ritmo susceptível
de criar novo quadro harmonioso de repartição de valores sociais e de qualidade da existência.

Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento

Tem interesse ponderar diagnósticos sobre a situação da agricultura portuguesa elabora-


dos segundo diferentes critérios. Os idealistas utópicos, eivados de ruralismo que se avalia
sempre ameaçado, constituem a constante que, sem se identificar com a reacção oposta a refor-
mas estruturais, assume o estilo que mesmo os modernos ambientalistas adoptam. O que se
opõe a esta tradição sempre renovada, será a tecnocracia, com seus modelos teóricos apoiados
em informática que vai alcançando agora ritmos e aprofundamentos nunca verificados. Fazia
parte desta última tendência a Missão do B.I.R.D. que visitou Portugal em 1969, procedendo
ao «levantamento do solo agrícola». O relatório publicado em Fevereiro de 1971 concentra-se
«em questões práticas de suma importância para os próximos anos» e destinava-se a servir de
base a negociações com o Governo português, tendo em vista financiamentos que, aliás, nunca
se verificaram. A Missão estudou «projectos» existentes que avaliou serem muito poucos, não
se preocupando com o que se via nos campos desertificados pela angustiosa emigração em cur-
so. Mas entendeu ser excessivo o controlo dos mercados agrícolas pelos organismos de coor-
denação económica o que impedia que «os mercados desempenhassem o papel dinâmico que
lhes cabe». Os técnicos assumiram a posição liberal e quanto a preços e subsídios considera-
ram que os objectivos visados eram contraditórios: «aumentos de produtividade e de renda das
explorações agrícolas, preços mais baixos para o consumidor, maior contributo da agricultura
para o crescimento económico». Assim era nas vésperas da explosão inflacionária que, aliás,
se encontrava em plena ameaça previsível.
A Missão foi rigorosamente objectiva na análise da procura interna e externa. Quanto à

548
procura interna previa, a curto prazo, 3% de acréscimo de consumo de cereais, pescado, borre-
go, batata e vinho; entre 8 e 20% para hortaliças, queijo, manteiga, ovos e açúcar; de 17 a 37%
para a carne de boi, carne de porco, carne de aves, leite e fruta. Quanto às exportações a Missão
encontrou uma procura potencialmente grande para os produtos florestais, bem como para
amêndoas e nozes, considerando a de outros produtos duvidosa. Emitiu o parecer de que a qua-
lidade da fruta portuguesa não era de exportação e afirmou que a exportação de tomate não po-
dia ser mantida em face da competição com outras fontes. Haveria oportunidades em azeitonas
de mesa, frutas e hortaliças de conserva, além de tomate. A rápida expansão da exportação de
vinho afígurava-se-lhe difícil em virtude do lento crescimento da procura de vinhos de quali-
dade inferior que abundavam em Portugal. A Missão chamou a atenção para dificuldades que
se poderiam deparar em virtude da adesão ao Mercado Comum de países que faziam parte da
Associação Europeia de Comércio Livre a que Portugal pertencia. Esta alusão diria respeito à
Inglaterra.
Em análise global da capacidade agrária portuguesa, a Missão afirmou que Portugal é
tecnicamente mais próprio para a arboricultura e pastagem do que para qualquer outro uso em
grande escala. Não foi mais longe do que os Agrónomos portugueses do século XIX e muitos
outros Cientistas anteriores. Assim, a seu ver, vastas áreas são mais apropriadas para pasto e
arboricultura do que para cultivo de outras espécies vegetais ou pasto-alqueive, como «estão
sendo actualmente utilizadas».
A Missão aconselhou a rever a política de preços e de subsídios, lembrando que tal po-
lítica pode ser transformada «numa força positiva em direcção ao crescimento económico na-
cional», se reduzir o preço do trigo e, também, em parte, o do arroz, para que se desenvolves-
sem outras produções mais adequadas à natureza dos recursos disponíveis. Afigura-se-nos
muito importante esta conclusão, embora os analistas a tenham baseado apenas na observação
do mercado e das posições relativas dos preços dos diversos produtos. Não sabemos se a Mis-
são tomou conhecimento de estudos de preços de custo, e se tomou consciência da tendência
portuguesa para criar preços de protecção que sempre se manteve para defesa do latifúndio
alentejano.
Quanto ao crédito agrícola a Missão recomendou a criação de uma instituição creditícia
capaz de proporcionar capital a «fazendeiros» — esquecendo talvez que os «fazendeiros» por-
tugueses não tinham a mesma representação do forte estrato médio americano, sendo multidão
os Camponeses pobres, e muito pequeno o grupo dos Lavradores ricos. O crédito facultado na
altura pela Junta de Colonização Interna, como gestora de Fundos do Estado, foi grandemente
contestado, por não adoptar normas do sistema bancário privado.
De entre as sugestões enunciadas pela Missão avulta o conselho de rever e corrigir a
«política de desenvolvimento da terra e da água, fazendo notar que o rendimento dos sistemas
de rega promovidos pelo Estado era muito baixo e que os problemas dos grandes aproveita-
mentos hidroagrícolas (Caia, Roxo, Mira, Idanha, Sorraia e Sado) eram graves e complexos.
Quanto a hipóteses de investimento, a Missão revelou-se muito exigente no que se refere a ren-
dibilidade dos projectos. Embora se refiram aceites, mas sem entusiasmo, os benefícios sociais
dos investimentos, a escolha parecia orientar-se muito objectivamente no sentido da análise
económica e das exigências de segurança e de cálculo de risco. Parece ser de acordo com esta

549
filosofia, que a Missão se pronunciou, sem qualquer espécie de reservas, a favor de um projec-
to florestal de plantação de 14.000 hectares de eucalipto por ano, acompanhado da ampliação
de instalações para fabricação de celulose. O programa constituiria «mais do dobro da quanti-
dade que ora se planta anualmente» e daria origem a uma rendibilidade muito animadora para
a «recuperação do comércio externo». Claro que, perante a posição de ecologistas florestais
que estimam a floresta como sistema também protector do solo e da água, e de sociólogos que
temem a desertificação imposta pelo latifúndio florestal de espécies de rápido crescimento, a
ameaça de um projecto florestal degradante dos recursos naturais e baseado em indústria polu-
ente, adaptado somente a empreendimentos capitalistas de integração multinacional, constituía
problema mais do que preocupante. Mas a Missão do Banco Mundial não vinha a Portugal fa-
zer opções que competiam ao Governo português, enquanto intérprete dos interesses nacio-
nais. Mas o projecto, fortemente contestado pela delegação portuguesa que acompanhava a
Missão, não deu origem a qualquer decisão. Ficou, porém, pendente de novas oportunidades
que acabaram por ser proporcionadas para este projecto ou outro mais ampliado, mesmo de-
pois de as «Celuloses» terem sido nacionalizadas.
Outra proposta era a da concessão de crédito a criadores de gado ovino e bovino para
melhorar pastagens, levantar cercas, instalar água e formar rebanhos. Em segunda fase haveria
empréstimos para construção de Matadouros Industriais, para abate e preparação de carne. Es-
ta proposta baseava-se essencialmente nas potencialidades do trevo subterrâneo, cultura consi-
derada capaz de assegurar acentuado aumento de encabeçamento de uma vasta área de pasta-
gem que registaria acréscimos de fertilidade. Esta proposta assumiu o significado de alternati-
va para defesa contra o risco do que veio depois a chamar-se a «eucaliptização» do País. A sua
apresentação foi feita através de um «Projecto de Desenvolvimento de Pastagens e Produção
Pecuária» que ficou concluído em 1971, e que integra não somente a problemática mediterrâ-
nica do Sul, como também a de uma zona experimental escolhida para o Noroeste minhoto.
A Missão teve o mérito de se aperceber das enormes dificuldades do sistema de regadio
português em terras que se encontram de há muito irrigadas em função da «revolução do Mi-
lho», com água captada em fontes, rios, ribeiros, cada vez mais gravemente poluídos, assim
como a de poços e minas perfuradas nas encostas, de difícil conservação. Todo este regadio
privado luta com enormes problemas técnicos de adaptação a novas formas de energia para
elevação dos caudais de rega.
Quanto aos grandes sistemas de rega financiados e promovidos pelo Estado a Missão
visitou seis projectos maiores e «convenceu-se que esses projectos contribuem pouco ou nada
para a economia». Mais ainda, «os projectos abrangem solos muito pobres e o seu custo é ele-
vado». Nestas condições a Missão afirmou que «os projectos existem e o problema agora é
dar-lhes o melhor uso possível». E não descortinou caminhos que não estejam enunciados pe-
los melhores Técnicos portugueses citando pareceres desses Técnicos sobre projectos de rega
há muito elaborados e que não foram atendidos. A Missão revelou grande entusiasmo pela rega
de 14.000 hectares de terra aluvional no estuário do Tejo, a Lezíria Grande, notando que, em-
bora o projecto não esteja isento de problemas, o «seu potencial de produção parece suficiente
para absorver o esforço considerável que talvez seja necessário fazer para superar as dificulda-
des». Quanto ao projecto da barragem do Alqueva foram muito grandes as reservas estabeleci-

550
das: «parte considerável do custo desta obra pode ser atribuída à produção de energia eléctrica.
Naturalmente, à medida que a área irrigada se expandir e a necessidade de água aumente, a
energia disponível vai-se reduzindo. Essa relação entre irrigação e energia é complexa, tornan-
do-se necessário um estudo minucioso da questão, assim como de todos os outros aspectos do
projecto para que se possa dar um parecer, mesmo preliminar, sobre as vantagens económicas
do empreendimento».

Da O.E.C.E. ao «Mercado Comum»

A nossa adesão à Comunidade Económica Europeia, «paraíso» ou «selva» onde, felizes


ou infelizes, finalmente nos colocaram, constitui a fase actual, não final, de trabalho político
iniciado no termo da II Guerra Mundial, com a Europa em ruínas. Nessa altura dramática, pe-
rante o auxílio americano subordinado ao Plano Marshall, uma espécie recalcada de idealismo
europeu reuniu 18 Países do Ocidente, para dar sentido político ao arranque do esforço heróico
de Reconstrução. Portugal, não beligerante, foi convidado, mas recusou o Plano Marshall. Te-
ve, no entanto, a sorte de não ver encerrada a porta da Organização Europeia de Cooperação
Económica (O.E.C.E.) que então se constituiu, em 1948. Não se nos oferece sombra de dúvida
que, a partir desse momento histórico, teve início o processo técnico, sócio-cultural e político
que havia de nos conduzir à C.E.E., em 1986. Foi em 1957 que um grupo de Países industria-
lizados, depois de criada a Comunidade do Carvão e do Aço, se adiantou aos restantes da
O.E.C.E. acabando por formar, em 1959, o «Mercado Comum dos seis». Portugal ficou ao la-
do dos 12 Países «traídos», mas o empenhamento na Europa, do seu Governo, havia de ser
pautado pela vontade política que não se inclinava a aceitar a «perda de independência» que
então se afigurava representar a adesão ao «Mercado Comum». Por isso, em consonância com
um grupo de 7 Países, entre os quais o «velho aliado», a Grã-Bretanha, e outros, tão diferentes
e tão distantes, como os Países Nórdicos, Portugal assumiu a preferência pelo acordo comer-
cial, contra a associação política. Assim se formou a E.F.T.A., em 1960, que logo se apresentou
com a configuração de solução provisória, pronta a desfazer-se em qualquer momento. Fica-
ram de fora das «Comunidades» 5 Países europeus isolados, entre os quais a vizinha Espanha.
Perante o arranque dos «seis» que formaram o «Mercado Comum», a O.E.C.E. entrou
em crise e reagiu abandonando o âmbito exclusivamente europeu para englobar os Estados
Unidos, o Canadá e o Japão, atraindo ao seu convívio um «isolado» do Leste, a Jugoslávia,
passando a designar-se Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico
(O.C.D.E.). Encontravam-se excluídos desta Organização, os Países do Leste, e os restantes,
incluindo os do «Terceiro Mundo».
Entretanto, Portugal solicitava à C.E.E., na impossibilidade de aspirar a mais, negocia-
ções tendentes a um acordo de comércio, que teve muito tardia resposta. De qualquer modo,
esse acordo acabou por ser assinado em 1972, no termo de laboriosas negociações conduzidas
pelo Embaixador Teixeira Guerra. Estamos convencidos de que Portugal conquistou, por este
meio, posição efectiva no sentido da adesão que, nessa altura, apresentava irremovíveis difi-
culdades políticas.
O ponto importante que pretendemos destacar no âmbito desta nossa análise consiste na

551
referência ao valor dos trabalhos empreendidos pelas Organizações europeias (O.E.C.E. e, de-
pois, O.C.D.E.) no sentido de auxiliar os Países associados na preparação das condições técni-
cas, económicas, sociais e políticas indispensáveis para que, a seu tempo, todos pudessem ade-
rir a um «Mercado Comum» alargado, base eventual dos Estados Unidos da Europa ou de uma
Europa das Regiões e das Pátrias, presente no pensamento de alguns idealistas. Agrónomos
portugueses, assim como outros Técnicos de diferentes especialidades, foram chamados a par-
ticiparem em projectos de grande interesse científico e humano. No caso da Agronomia foram
abordados problemas fundamentais de técnicas agrárias, de ensino, de vulgarização, de difusão
de inovações e de gestão. As políticas agrícolas dos Países associados foram objecto de suces-
sivos exames analíticos e críticos, donde resultaram recomendações de grande objectividade.
Estamos certos de que sem este trabalho prévio, de notável nível científico, não teria sido pos-
sível preparar os fundamentos da «Política Agrícola Comum», a P.A.C., que constitui um dos
esteios fundamentais da C.E.E., naturalmente contestado em diferentes emergências, tão gran-
de é o seu poder coordenador ou interventor. Assim, a Agronomia portuguesa, de forma mo-
desta, sem dúvida, e na medida em que o seu parecer tinha audiência nos centros de decisão
portugueses, contribuiu para avanços susceptíveis de possibilitar a adesão do nosso País, em
1986. A dúvida que subsiste será a de não sabermos se, neste quase meio século de trabalho,
estiveram os Agrónomos a abrir aos Camponeses as portas de um «paraíso» ou de um «infer-
no». Estamos certos de que a C.E.E. não é ainda o objectivo natural que virá a ser, mas apenas
o arranjo possível. Mas recusamo-nos a admitir que seja somente luta de competitividade
egoísta. Pelo que aprendemos nas relações com Agrónomos europeus, nada permite supor que
venha da sua parte, a força que pretende varrer da Agricultura portuguesa, os Camponeses. Ao
ser-nos reconhecida a «especificidade» da vida rural e agrária portuguesa, não nos é feito um
favor, mas facultado um direito basicamente reconhecido pela Europa das Pátrias e das Re-
giões. Nesse sentido, nenhuma «reforma estrutural» e nenhum «mercado» podem deixar de ter
em conta os genuínos padrões de qualidade que a todo o custo devem ser defendidos. Por isso
se facultam salvaguardas e se concedem subsídios, na defesa contra os efeitos da homogenei-
zação que esconde objectivos lucrativistas imediatos e efémeros, apoiados em promoções que
tomam o lugar dos focos autênticos da inovação progressiva, ou geram a implantação de deser-
tos em espaços regionais críticos. É fácil, em negociações menos hábeis ou contaminadas de
objectivos contrários ao interesse nacional, consentir que as mais valias ou valores acrescenta-
dos continuem a ser cada vez mais apropriados por orgânicas empresariais que parasitam a ru-
ralidade portuguesa, sem proveito para os consumidores. Os Camponeses lutam de forma ins-
tintiva, na economia paralela, pela liberdade empresarial familiar que forma o alicerce social
das comunidades que ainda não se encontram submetidas à neo-escravatura do assalariamento.
Não se vê apoiada a modernização dos sistemas agrários naturais, assistindo-se à manobra da
força de projectos, fortemente subsidiados, que não oferecem aos Camponeses alternativa di-
versa do êxodo rural e da emigração.
Efectivamente, para assegurar o futuro da adesão à C.E.E. o que importa mais é a com-
petência e a alma de Serviços Públicos devidamente dotados para imporem, sempre que ne-
cessário, não somente as salvaguardas previstas para moderação dos Tratados, como também
a mais firme e intransigente das garantias quanto ao interesse nacional dos projectos apresenta-

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dos para financiamento. Seria lamentável se os recursos postos à disposição dos Camponeses
de Portugal fossem desviados em proveito de oportunistas alheios à Profissão de Agricultor.
Tudo depende, pois, da gestão, particularmente difícil, por decorrer na euforia da abundância,
quanto aos apoios financeiros ao desenvolvimento. É ainda particularmente importante o em-
penhamento dos Representantes que tivermos nos Órgãos da Comunidade, quanto à defesa dos
interesses da Agricultura portuguesa. Não é fácil descortinar na História de Portugal oportuni-
dade idêntica a esta que estamos vivendo.

A Protecção da Natureza

É possível descortinar medidas de Protecção da Natureza em períodos medievais, mas


conservam sempre o sabor da defesa de privilégios de caça. Efectivamente, para proteger a ca-
ça grossa era indispensável salvaguardar a floresta e, por isso, esta era coutada de acordo com
regras particularmente imperiosas. O Silvicultor Francisco M. Flores que, em 1937, apresentou
um trabalho pioneiro sob o título de «Protecção da Natureza» afirma que corresponde ao or-
gulho dos «actuais protectores nórdicos da Natureza» a histórica cerimónia religiosa de Cava-
leiros que juravam «ser os protectores da caça e de tudo o que voa, rasteja, nada ou verdece, e
manter pela sua força as florestas e os peixes». Perante as exigências dos nossos dias, ou dos
princípios éticos que respeitamos, dificilmente se enquadra o propósito de defender valores na-
turais somente porque nos servem nas práticas desportivas. Está generalizada a convicção de
que a Protecção da Natureza se identifica com os múltiplos imperativos da Protecção da Vida
Humana. Será por isso que o Autor referido nos pode ainda contar:
«Em 1630, os Carmelitas instalaram-se na Serra do Buçaco, ali formando a mata que
ainda existe. Constitui um autêntico padrão de protecção à Natureza, hoje perfeitamente intac-
to e vivo como no dia da sua construção, o aviso que pode ler-se nas conhecidas Portas de
Coimbra: Sob pena de excomunhão papal, é proibido cortar qualquer árvore ou arbusto».
O trabalho de Francisco Flores precede imediatamente, no tempo, o Plano de Povoa-
mento Florestal de 1938. Neste Plano a Protecção à Natureza foi enunciada, embora de forma
tímida e dispersa. Pode verificar-se que a demarcação de Parques e Reservas foi prevista da
forma seguinte:
3 «grandes Parques Nacionais de Protecção à Natureza de 5.000 hectares»: na Coroa,
Montesinho, Deilão e Avelanoso; no Barroso; e no Gerês.
9 «Reservas integrais» assim distribuídas: de 5.000 hectares na Peneda, Soajo e Ama-
rela; e na Boalhosa, Arga e Oral. De 2.000 hectares na Serra das Alturas no Barroso. De 1.000
hectares na Serra de Montemuro; S. Pedro de Açor; em Gois; em Manteigas e Gouveia; na Co-
vilhã e Loriga. De 500 hectares na Beira Transmontana (Serra de Leomil).
No entanto, o que foi programado não deu origem a instalações feitas ao abrigo de legis-
lação específica ou de normas internacionais pelo que o País não ficou dispondo, nesta altura,
de qualquer Parque ou Reserva.
Por essa época, também, a Direcção-Geral dos Serviços Florestais promovia diligências
para a defesa da Serra da Arrábida, cujo interesse fitosociológico não tem paralelo no País e
em toda a região mediterrânica. Na altura, tais diligências não foram coroadas de êxito. Mas

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os desmandos cometidos na Serra da Arrábida com os cortes de arvoredo para fabrico de car-
vão, determinaram um movimento de alarme quanto à segurança deste precioso monumento
da Natureza, que depois seria motivo de mais graves agressões resultantes da ocupação urbana.
O Poeta Sebastião da Gama foi um dos impulsionadores desse movimento que culminou com
a constituição da Liga para a Protecção da Natureza em 1948. Os estudos do Ambiente atraíam
a atenção de investigadores de entre os quais se pode destacar Tude de Sousa que nos legou
trabalhos que respeitam a preciosas áreas montanhosas do Norte, particularmente a Serra do
Gerês e Beata Neves do Instituto Superior de Agronomia.
Entretanto era notório o alheamento da administração pública em relação ao problema
e foi com surpresa que, no termo da década de 60, tomámos conhecimento de que o Governo
estava empenhado em corresponder a uma solicitação do Conselho da Europa que, em 1970,
iria promover a comemoração do ano da Protecção da Natureza. Vasco Leónidas, Secretário
de Estado da Agricultura, comunicou-nos que tinha «luz verde» para a criação do Parque Na-
cional da Peneda-Gerês. Nessa época, dos 136 países do Mundo, somente 43 não dispunham
de Parques ou Reservas e Portugal era um deles. Mas figurava na lista somente porque as «Pro-
víncias Ultramarinas» já haviam criado cinco Parques e Reservas, de entre os quais o maravi-
lhoso Parque da Gorongoza em Moçambique. Existiam no Mundo 1.205 Parques e Reservas,
de que o de Yellowstone, nos Estados Unidos da América, com a área monumental de 880.000
hectares, fora o primeiro, em 1872.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês não poderia ser criado sem o suporte de uma Lei
específica e respectivo regulamento. Era muito pobre o «dossier» dos Serviços quanto ao as-
sunto e valeu o efectivo e entusiástico empenhamento do Silvicultor Lagrifa Mendes, que viria
a ser, até ao fim da vida, o primeiro Director do primeiro Parque que havia de ser criado em
Portugal.
Para fundamentar o articulado da Lei que serviria de apoio aos Parques e Reservas foi
procurado o apoio de Serviços franceses e espanhóis, tendo sido visitado La Vanoise, com suas
legendas de entre as quais a que ordena «declarez la paix aux animaux timides», e, em Espa-
nha, Casorla e Donana. Tratou-se de missão técnica de inesquecível deslumbramento, que nos
revelou a distância a que o País se encontrava dos esforços necessários para a Protecção da Na-
tureza. Eram unânimes as opiniões de Técnicos nacionais e estrangeiros quanto ao acerto da
escolha da Peneda-Gerês, para o arranque que veio a acontecer. Mas o Parque Nacional da Pe-
neda-Gerês, ao encontrar a sua implantação deparou com o seu ambiente natural gravemente
afectado por três grandes albufeiras de obras de aproveitamento hidro-eléctrico. Uma das
obras, que se encontrava em construção, viria a servir de cemitério da Aldeia de Vilarinho da
Furna, que havia sido objecto de um estudo de Jorge Dias que lhe dedicou estas palavras:
«Neste recanto perdido na imensidão das serras encontra-se uma ilhota fértil onde um grupo
de homens se fixou em época distante, e aí vive, longe dos centros e das vias de comunicação,
separado do resto do mundo por quilómetros de maus caminhos, entregues a uma economia
agro-pastoril assente numa organização antiquíssima, extensiva a vastas áreas da Península,
senão à totalidade dela. Este povo comunitário parece o representante vivo do nosso antepassa-
do castrejo, caracterizando-o ainda, hoje como outrora, o forte espírito de comunidade, e o sen-
timento terrantês indomável». Em estudo subsidiado pelo Instituto de Alta Cultura, Jorge Dias,

554
em 1948, monografou a Aldeia e seus costumes comunitários. Desse estudo depreende-se que
a comunidade aldeã de Vilarinho da Furna se encontrava naturalmente inserida em esquemas
de mudança social e económica, cujos mecanismos foram cientificamente analisados, não adi-
vinhando, na altura, o Investigador, a ameaça brutal e cega que sobre esse «monumento natu-
ral» pairava. Recordamo-nos de que a notícia da decisão de construir a barragem causou gran-
de desgosto a pessoas cultas e dotadas de sensibilidade bastante. Em dada altura, encontrámos
um dos Administradores da Empresa Hidro-eléctrica do Cávado e naturalmente lamentámos a
morte de Vilarinho da Furna. A resposta que nos foi dada corresponde rigorosamente ao figu-
rino tecnocrático que coloca a riqueza material em primazia sobre a defesa patrimonial:
— Bem vê, temos os nossos Planos, e uma Brigada de Engenharia estava desocupada e
forçou a andar com o Projecto.
Não oferece dúvida que o interesse nacional se encontrava em presença de duas situa-
ções concretas: por um lado, a necessidade de promover a construção de unidades do equipa-
mento de produção de energia hidro-eléctrica e, por outro lado, o valor da Aldeia comunitária
como «monumento» ou «museu» Histórico e Etnográfico, para além dos interesses privados
dos residentes. Podemos acreditar que não se procurou os meios de estabelecer a opção funda-
mentada que o interesse nacional exigia. Considerou-se que a construção da barragem era pro-
blema sem alternativa e a Aldeia foi simplesmente removida da História e da Geografia de Por-
tugal, sem qualquer análise social e política, entregando-se friamente aos montanheses 30.000
contos de indemnização para que abandonassem Casas, Campos, Serras, Costumes e Tradi-
ções, na mais angustiante condenação ao desespero.
Recordamo-nos, também, que na altura da elaboração do Parecer sobre a Lei dos Par-
ques e Reservas, a Câmara Corporativa debateu o assunto mas rejeitou uma posição clara que
salvaguardasse o futuro, acabando por aprovar um texto de compromisso que reza o seguinte:
«Vai perder-se Vilarinho da Furna, a preciosa aldeia comunitária monografada em 1948
por Jorge Dias, que breve ficará sepultada pelo regolfo de uma barragem. É pena que não se
tenha podido encontrar uma solução para preservar, sob a forma de monumento ou museu, um
legado de séculos que nunca se reconstituirá.»
Quando a barragem iniciou o enchimento, ainda fomos contemplar, pela última vez, o
lugar onde «a situação da aldeia e dos terrenos de cultura, expostos ao Sul e protegidos dos
ventos do Norte por altas montanhas, torna possível a policultura de tipo minhoto em que pre-
dominam o milho e as hortas, e não falta o vinho verde de ramadas e de enforcado».
Era o mais belo «vale humanizado» que alguma vez nos foi dado ver entre as montanhas
agrestes. E também era desmedido o amor à terra que sustentava os Camponeses condenados
à morte dos seus Costumes de Liberdade. Não faltavam os que anunciavam nunca abandonar
o torrão onde nasceram. Com a subida das águas eram tirados à força das choças onde se ento-
cavam, e levados num barco pelos Engenheiros, para serem soltos na «sociedade de consu-
mos» com algum dinheiro nos bolsos. Patrões desconhecidos acabariam por assalariá-los em
trabalho onde ficavam a ser mandados e nunca mais ouvidos pelo «Juiz do Povo».
Existem motivos dramáticos para que os povos rurais encarem com receio a implanta-
ção da indústria no seu ambiente ou nas vizinhanças. Conta Domingos M. da Silva na Mono-
grafia «Entre o Homem e o Cávado» que por alvará do Príncipe Regente D. João de 15 de

555
Abril de 1807 foi construída na Serra do Gerês a Real Fábrica de Vidro de Vilarinho da Furna
«na chã de Linhares, margem esquerda do Homem, tendo à mão feldspato e quartzo, o que per-
mitia fabricar vidro como o da Boémia». Custa a acreditar que local tão isolado e remoto ti-
vesse sido escolhido para iniciativa industrial tão requintada. Porém, «a poder de intrigas que
se forjaram e a pretexto da entrada dos franceses pela Portela, capitaneados pelo Abade da Car-
valheira, seduzido por influências inglesas que odiavam os progressos industriais do país, os
povos do sítio saquearam e lançaram-lhe fogo em 11 de Julho de 1808». Apercebemo-nos hoje
que seriam muito fortes as razões que impulsionaram o Abade da Carvalheira e o seu povo fe-
roz para deterem desta forma o desenvolvimento industrial da comunidade de montanheses li-
vres. Mais tarde, a industrialização do país onde, apesar do isolamento, se encontravam inte-
grados, haveria de impor a construção da barragem hidro-eléctrica que lhes sepultou sob as
águas mortas a Aldeia, uma das mais belas, das mais típicas e famosas do Alto Minho.
O primeiro Parque Nacional português foi constituído mas não terminaram as destrui-
ções dos recursos naturais que se propunha defender. Sem qualquer protesto ou, pelo menos,
desgosto foi decidida a construção de mais duas obras hidro-eléctricas, uma na área de Tourém
e outra no Alto Lima que priva de terras de cultura a Aldeia da Várzea na Serra da Peneda. Pe-
rante os critérios da política de produção de energia que não arredam a perspectiva também in-
quietante da necessidade de recorrer a centrais nucleares, optou-se pelo consumo territorial
que mais uma albufeira representa. Mas temos que enfrentar as consequências que dessa opção
resultam para as finalidades do Parque. A ocupação dos vales frescos que faziam parte do con-
junto ecológico das montanhas, modificando totalmente o regime de escoamento das águas, al-
tera profundamente o ambiente natural, degradando-o. Para além de tudo, acontece que a água
armazenada nas albufeiras vem criar insuperáveis anomalias, impondo a alteração de equilí-
brios biológicos da fauna e da flora aquáticas, cujas consequências são imprevisíveis. Ao con-
trário do que informa a propaganda turística a paisagem que resulta não é a de «um lago», pela
variação do nível das águas em função das descargas que alimentam o funcionamento das tur-
binas, nem mesmo a de «um pântano», pelo aspecto deplorável que, nas épocas de esvasiamen-
to, as margens em seco representam, formando cemitérios biológicos inevitáveis.
As barragens e respectivas albufeiras não constituem obras perenes e neutralizam recur-
sos naturais que nunca poderão ser recuperados em tempo previsível. A duração útil do empre-
endimento fica dependente do curso do inevitável processo de assoreamento. Na verdade, o
depósito de materiais transportados pelas águas inicia-se no momento em que os caudais ficam
represados. Os volumes de transporte dependem da erosão praticada pelas precipitações at-
mosféricas na bacia hidrográfica. É certo que a erosão pode ser contrariada por técnicas ade-
quadas mas, em geral, essas técnicas não são respeitadas e a erosão nunca é suprimida. O asso-
reamento é fatal, variando somente o tempo ao longo do qual se processa que, mesmo nos ca-
sos mais favoráveis, corresponde a perspectiva histórica. Afigura-se muito recente o depósito
de aluviões nos nossos rios, bem como no litoral onde a formação das dunas corresponde à de-
volução feita pelo Mar e pelos Ventos dos transportes que as águas interiores provocaram. Tu-
do foi bastante para que a massa desmedida de carrejos da erosão das encostas da Meseta ibéri-
ca em desgaste, se estratificasse no litoral cujo recorte ficou alterado, em vastas planuras que
conquistaram o Mar, absorvendo ilhotas que eram conhecidas junto à costa e encerrando a bar-

556
ra de muitos portos hoje fechados. Todo este enorme depósito do litoral resulta dos detritos que
os rios transportaram que, sem dúvida, teriam assoreado todas as albufeiras de que hoje dispo-
mos, e ainda sobrado muito, se acaso os nossos Avós, imprevidentes, tivessem construído as
barragens que nos últimos decénios erguemos.
Uma vez, nos anos 40, quando nos encontrávamos em casa de um agricultor do arroz,
numa janela debruçada sobre os arrozais do Mondego, ele contou:
«Meu Avô, sentado aqui, dizia: quando eu era novo, desta janela não se viam os barcos
que, do porto da Figueira, demandavam o Rio. Depois, no mesmo sítio, meu Pai contava que,
também em novo, já via os mastros das embarcações. Eu, quando era garoto, via os barcos, os
barqueiros e tudo. Agora não vejo os barcos porque, desses, já não passa nenhum.»
Gostávamos de voltar a essa janela, se acaso não estiver sepultada pelos aluviões do
Rio, para ver as promessas que vão fazendo de que se encontram resolvidas as cheias do Mon-
dego. O que temos visto são os buldozers a lavrarem as encostas da bacia hidrográfica para
plantação de eucaliptos. Por isso, e por muitas outras razões, a barragem da Aguieira se encon-
tra a represar a erosão que o solo português deposita no maravilhoso Rio que, na Península,
não é como os outros, maiores, que têm a desculpa de sofrerem os erros dos espanhóis. Aconte-
ce que já nos foi dado ver uma albufeira assoreada, datando a construção de bons anos depois
do nosso nascimento. O quadro natural humanizado é dramático. Uma planura estéril, pela na-
tureza dos materiais transportados e depositados, onde corria, formando meandros, o curso de
água que alimentara a albufeira, acabando por se precipitar, numa cascata, do descarregador
de superfície. A albufeira estava cheia, não de água mas de terra inerte. Mesmo que imaginás-
semos que a malfadada barragem ainda podia ser dinamitada, para que o curso de água, quan-
do se enfurecesse, torrencial como era antes, abrisse ravinas, não era possível prever que se re-
constituíssem os contrafortes do vale que fora submerso. Dificilmente a Natureza, apesar de
generosa, poderia mobilizar a flora para sarar a ferida. Era difícil conceber que viesse depois
a fauna, transformando o pasto produzido pela fotosíntese, em escrementos devolvidos ao chão
ou em cadáveres depositados nos córregos mais escondidos, a servirem de sepulturas que as
raízes sugavam. Nada consentiria que a fertilidade do estrume viesse a ser o suporte da nova
floresta, sobre a qual, mais tarde, se implantaria a terra cultivada.
A recuperação da albufeira assoreada encerra sentido utópico. Muito concreta é a certe-
za de que todas as albufeiras se encontram em fatal e inevitável assoreamento. O assunto en-
contra-se estudado, e os volumes de depósitos são calculados segundo observações sistemáti-
cas feitas na altura dos esvasiamentos. Embora nos tenha sido dado ver a remoção de nateiros
de pequenos «estanques» assoreados que serviam para fabrico de solos para culturas ricas, é
evidente que tal solução nunca se aplicará a albufeiras grandes. Não oferece dúvida que se jus-
tifica o refúgio do pensamento tecnocrático, segundo o qual o «longo prazo» fica entregue às
gerações vindouras que terão a enorme capacidade de resolver problemas que consideramos
insolúveis.
Na utopia do conceito de «Reserva», mesmo com o suporte de Lei que, neste caso, se
afigura simples declaração de intenções, o Parque Nacional transformou-se em espaço subme-
tido a uso utilitário de tecnologias que alteram a evolução natural que se pretende defender. As
suas barragens servem de túmulo de Aldeias mortas e de flora e fauna destruídas. Não vincula-

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do à população residente, nem apoiado pelas Autarquias, os Técnicos responsáveis pelo Par-
que não conseguem atenuar as agressões que se acrescentam com especial vigor às circunstân-
cias que ficaram referidas. Tais agressões ameaçam multiplicar-se de forma desmedida quando
se abrem fronteiras para a livre circulação, sem a disciplina da obediência a regulamentos ne-
cessários. Alguns Autarcas pretendem concretizar as ideias que formaram a respeito da viabili-
dade de desenvolvimento regional, na indiferença quanto a objectivos culturais da «Protecção
da Natureza».
Quanto aos habitantes que, afinal, são os donos do Parque, para além do interesse nacio-
nal e universal dos valores presentes, encontram-se longe de o entenderem nas suas enormes
potencialidades de «Museu natural e cultural» e de recreio civilizado. Falta-lhes a convicção
quanto à necessidade e interesse de defender a Natureza, e não colaboram na conservação da
flora e da fauna que ainda resta nos seus refúgios. Como se fosse uma herança histórica persis-
te a mesma indiferença que provavelmente contemplou a extinção do Urso, e que depois se re-
novou quando deixou de ser possível ver a Cabra do Gerês. É muito problemática a existência
do Lince, e o Corso só é visto pelos visitantes no símbolo do Parque. Encontra-se perseguida
a Lontra, e a Águia Real corre grande risco, com os caçadores a dizimarem o sustento nos seus
domínios. Estão condenadas à extinção outras espécies raras, se não forem protegidas. No en-
tanto, o Javali, e talvez o Lobo, alcançam resistir pelos seus próprios meios, defendendo-se à
custa da sua enorme capacidade de coexistência com a fera humana, pelo menos por enquanto.
Mau grado o dedicado empenhamento dos seus servidores, desprovidos dos meios indispensá-
veis, o maravilhoso Parque Nacional da Peneda-Gerês continua a ser um «sítio», sem dúvida
raro. mais degradado do que antes de beneficiar da protecção da Lei. Sem os quadros e meios
indispensáveis, talvez as convenções internacionais o reconheçam por benevolência amiga,
sendo ignorado pelos naturais que, desenraizados da cultura antiga, não alcançaram a instrução
que os habilite a entenderem quanto os valores que ainda restam nas suas montanhas se podem
adaptar a técnicas modernas de protecção da enorme riqueza natural de que são possuidores.
Não se pode deixar de reconhecer também que a comunidade nacional ignora o Parque, por
serem muito raros ainda os que o entendem com verdadeiro amor.
O problema encontra-se ligado à inconsciência com que se destrói a flora e a fauna. Par-
ticularmente no que se refere à caça, o problema não é novo, pois vem de muito longe a fúria
das caçadas. Mas foi nos últimos anos que se verificou o acréscimo da agressividade dos ca-
çadores pelo aumento do número e aperfeiçoamento das pólvoras e das espingardas e facilida-
des de circulação e acesso a sítios antes isolados. Em todo o País são cerca de 400.000 que es-
tão legalizados. Dispõem de força idêntica à de «partido político» ou de «sindicato» que rei-
vindica o resnulius que representa agora a propriedade de um bem natural extinto, ou quase,
ou a liberdade de o extinguir, sacrificando exemplares de espécies indefesas. Os caçadores,
quando se julgam prejudicados pelos regulamentos de protecção da caça, chegam a ameaçar
com a «greve» que, neste caso, não é um acto de estar parado, mas de se divertirem mais, ca-
çando no defeso. Na nossa juventude estivemos integrados neste grupo social, circunstância de
que muito nos arrependemos. Mas, de qualquer forma, nutrimos por esse grupo saudosa sim-
patia pelas histórias que inventa, sabendo-o perigoso porque anda armado. A este grupo junta-
-se o dos caçadores furtivos que representam, por direito próprio de que não abdicam, os pri-

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mitivos recolectores das cavernas, ou os ardilosos rapinantes da Idade Média, em relação aos
quais se não pode estabelecer a pena de morte que os ameaçava noutros tempos. Em vez de se
transformar a caça em «bem nacional raro» que merecia ser, renovam-se as tentativas de se-
nhorialização dos bichos bravos, através da restauração das «coutadas» que, em nome da
«Conservação da Natureza», se transformam em recreios de políticos e de endinheirados, que
hoje são mais do que muitos. O problema não é novo e recordamo-nos de que, nos anos 70, o
Alentejo se encontrava todo aramado. Nessa altura as coutadas serviam, segundo nos relata-
vam, de encontro de influentes que celebravam acordos políticos com a presença de detentores
do Poder do Estado e de Titulares da Nobreza extinta. Ficavam assim compostos os grupos que
firmavam, à boa maneira dos tempos medievais, negócios que esse poder sancionava. Eram
muito grandes as hecatombes venatórias, que a Televisão exibia com as filas de bichos mortos,
pendurados ou deitados no chão, rodeados dos cães impacientes. Presidiam figuras em relação
às quais fazia falta um Bordalo. Nessa época a emigração varrera dos Campos do Sul os assa-
lariados sem trabalho e sem terra que, antes, invadiam os coutos, colocando iscos de «trigo ro-
xo» a envenenar perdizes que, depois, vinham vender na estrada.

A Defesa do Ambiente

Tudo vai decorrendo em termos de «Revolução Agrária» que alcançou o apogeu nos sé-
culos XVII e XVIII com o impulso proporcionado pelos Descobrimentos que permitiram aos
portugueses revelarem ao Mundo, antes de outros navegadores, plantas e animais que foram
encontrando no seu berço, entregues a rotinas primitivas de comunidades isoladas, ou presen-
tes na Natureza com suas capacidades nunca experimentadas. A difusão destes recursos foi o
suporte da explosão demográfica contemporânea, permitindo que o acréscimo da produção ali-
mentar mundial desmentisse as previsões maltusianas. Mas, cada planta ou animal transporta-
dos a outros climas, revelaram forças biológicas de comportamento imprevisível. O transporte
arrastou consigo espécies companheiras que funcionaram como pragas em relação às espécies
existentes. Assim, a cultura de plantas e de animais já seleccionados viu-se perturbada pela
presença de novos infestantes. Serve de exemplo o drama da viticultura europeia resultante da
introdução da vinha americana que trazia consigo a Filoxera, insecto devastador ao qual era
resistente. A introdução de espécies exóticas conduz, em regra, a alterações ambientais, tanto
se alcançando efeitos benéficos, como sucedeu com a cultura «revolucionária» do Milho ame-
ricano, como se instalam infestantes que afectam a produtividade, agravam os custos de produ-
ção, ou determinam concorrência vegetal ou animal que altera o ecosistema.
A destruição da Floresta praticada por pastores e agricultores desencadeou a erosão, co-
mo largamente foi neste trabalho referido. Ficámos dependentes do coberto vegetal sem o que
nada nos defende contra a erosão, nem conserva o solo, a água e o ar. Mas depois da destrui-
ção da Flora clímax, o pouco da Floresta que nos foi dado refazer, resulta da expansão de plan-
tas exóticas praticada sem bastante investigação científica. Nem tudo o que foi introduzido de
fora nos pode servir para reconstituição da Floresta perdida. Foi desastroso o alargamento in-
discriminado do Pinhal que nos legou a inspiração de D. Dinis, mantido, aliás, com as melho-
res defesas contra os fogos. São dramáticas as consequências de plantações de infestantes, co-

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mo as Acácias. E muito mais destruidoras são as espécies de rápido crescimento, como os Eu-
caliptos, que impõem a voracidade que consome o solo, esgota os mananciais aquíferos, deser-
tifica o ambiente, não consentindo a presença de outros seres vivos, quer sejam plantas meno-
res, animais selvagens ou Camponeses. Existem plantas insociais, que excluem do ambiente
qualquer espécie de convívio, quando se encontram ao abrigo do efeito de predadores. E vital
que não nos deixemos dominar por intrusos, para mais do Continente australiano que os velhos
navegadores portugueses desprezaram, tendo sido inicialmente ocupado por marginais que os
ingleses deportaram depois de terem navegado na nossa esteira. Estamos a caminho de ver ins-
talado um novo império florestal que se forma mercê da imprevidência dos ignorantes que saú-
dam as festas da «mimosa em flor», ou do interesse dos egoístas que praticam o erro, que ou-
tras gerações irão pagar, da exportação de recursos naturais não renováveis que se pratica com
os Eucaliptos.
Para além das transformações dos equilíbrios da flora e da fauna pela implantação de
espécies exóticas, são muito graves os efeitos resultantes da expansão de indústrias. Seria lon-
go tentar a enumeração das consequências da poluição atmosférica que determina a contami-
nação e alteração da composição do ar. Seria difícil alinhar exemplos de poluição das águas do
mar, dos cursos de escoamento terrestres, das albufeiras, dos lençóis subterrâneos, que condu-
zem a generalizado envenenamento do essencial componente da alimentação humana e de ani-
mais, da rega de plantas cultivadas e de sustentação da flora expontânea.
O agravamento da poluição dos ares, das águas e dos produtos alimentares é muito re-
cente e cresce de forma que deve ser temido, sendo indispensável o recurso a técnicas e medi-
das adequadas para atenuar os seus efeitos. Enquanto as instalações industriais foram raras, pe-
quenas e trabalhando somente de dia, a poluição a que davam origem era compensada pelos
ventos e lavagem das águas que funcionavam como sistemas naturais de «limpeza» que eram
bastantes. As reclamações mais antigas dos povos respeitam à competição que certas indús-
trias, ao instalarem-se, estabeleciam com a rega praticada a partir de mananciais a que passava
a ser dado uso diferente da agricultura. Tivemos ocasião de citar ordenações régias da primeira
dinastia, segundo as quais a rega tinha prioridade sobre Moinhos. As mais antigas indústrias,
como a do Papel, davam origem a reclamações de agricultores regantes quando «estancavam»
as águas, impedindo a rega a jusante, ou aperfeiçoavam os açúdes tornando-os mais estanques,
prejudicando a rega que aproveitava o que escorria das velhas levadas. Nestas fábricas aconte-
cia que, a água, depois de utilizada, era restituída aos cursos, com pasta de papel e corantes di-
luídos, não tendo sido encontradas referências antigas a poluições graves. Tudo indica que o
problema se agravou quando as tecnologias industriais começaram a recorrer a tratamentos
químicos, em substituição dos simplesmente mecânicos, passando os efluentes a envenenar as
águas dos rios. De há muito que idêntica poluição era provocada pelas Minas, como as da Pa-
nasqueira, onde as lavarias do minério contaminavam as águas do Zêzere, matando peixes e
inutilizando águas de rega, cuja aplicação baixava a produção das culturas. A Empresa foi obri-
gada a pagar indemnizações aos agricultores enquanto não construísse tanques de decantação
e tratamento de resíduos.
De igual modo a poluição do ar, bem sentida pelos lisboetas quando entrou em funcio-
namento a Refinaria de Petróleo de Sacavém, acabou por ter início. Não oferece dúvida que.

560
antes, outras poluições existiriam, irrompendo dos caneiros onde desaguam os esgotos. Mas
tudo se agravou depois, progressivamente, no que se refere a outras indústrias e ao escape dos
motores de viaturas. Nessa altura já se respirava muito mal no Barreiro e, pouco depois, a Fá-
brica de Celulose de Cacia empestava os ares, sentindo-se nos comboios quando passam no
vale do Vouga, irremediavelmente poluído.
Mais recente ainda é a poluição provocada pelo uso incontrolado na agricultura de ferti-
lizantes, herbicidas, hormonas e pesticidas de vegetais e de animais, que vem abrir capítulo no-
vo na problemática dos riscos a que nos encontramos submetidos. A tudo se acrescenta o prelú-
dio das «chuvas ácidas» que condenam à morte lenta as Florestas e as culturas. Já temos doen-
tes os Quercus, de entre os quais o Sobreiro que, enfraquecido pelo ambiente envenenado, mal
vai resistindo ao banquete das pragas que se instalam onde quebra a resistência.
Para bem se avaliar a posição em que a Humanidade se encontra neste aspecto julgamos
ter interesse considerar o que se passa quanto à qualidade dos alimentos. Vamos basear-nos es-
pecialmente em trabalho recente de J. Santos Oliveira intitulado «Qualidade dos produtos ali-
mentares em função dos impactos antropogénicos de natureza química—1989». Os comentá-
rios do referido Autor sobre o significado da «qualidade» logo nos esclarecem quanto à impor-
tância da «origem» do produto agrícola, relacionada com aspectos geográficos que determi-
nam diferentes condições de meio onde a produção ocorre. Os exemplos que utiliza são escla-
recedores: «laranjas de Setúbal, o ananás de S. Miguel, as azeitonas de Elvas, o presunto de
Chaves, ou a Lampreia do Rio Minho». Afirma, naturalmente, que muitos outros produtos po-
deriam ser apontados. Sucede, porém, que o «certificado de origem» que teria tido a sua consa-
gração quando foi demarcada a região dos vinhos do Porto, por exemplo, não representa só por
si garantia de qualidade. A «qualidade» pede, como o certificado de origem, o parecer do «pro-
vador» que interprete o gosto do consumidor ou identifique qualquer anomalia. Mas a qualida-
de não prescinde ainda da análise técnica de atributos de carácter químico, biológico, ou de
imunidade para a saúde e vida humana. Não oferece dúvida que a qualidade determina um «va-
lor», susceptível de assumir expressão económica sendo, no entanto, necessário distinguir, co-
mo relata o Autor citado, aspectos ligados ao «valor de utilização», este dependente dos «fins»
a que o produto se destina. Estes fins tanto podem ser os do uso industrial como os do consu-
mo em natureza. Assim, por exemplo, «os produtos amiláceos destinados à indústria de extrac-
ção do amido serão qualificados de acordo com o teor que apresentam daquele polissacarido.
A qualidade visa, portanto, unicamente nesta perspectiva, o aspecto do rendimento industrial.
Mas não basta na realidade atender apenas àquela característica química. Há que atender tam-
bém à qualidade do amido. Essa qualidade é determinada pelas características do grânulo do
amido, em especial pelo aspecto dimensional». Para além desta expressão do valor de utiliza-
ção, existe a de «valor biológico» para o produto alimentar: «o termo valor biológico engloba,
com efeito, não só o valor nutritivo desse alimento, mas também a sua salubridade e o seu con-
tributo para a manutenção da saúde dos indivíduos». E mais ainda: «representa o somatório
das acções de todas as substâncias químicas que tenham efeito benéfico para o consumidor, e
daquelas cujo efeito é negativo». E depois ainda e muito justamente o Autor observa que aos
componentes referidos que definem o valor biológico «há que juntar outros constituintes, pou-
co conhecidos ou até desconhecidos, responsáveis pelo aroma e pelo sabor, com acção estimu-

561
lante sobre o apetite. Um exemplo deste tipo são os compostos voláteis, existentes por exem-
plo em produtos hortícolas e em especiarias, que se admite serem responsáveis por acções ini-
bidoras sobre os vírus». Para os que acreditam ser possível vir a substituir os produtos naturais
por outros obtidos por síntese laboratorial, é bom lembrar quanto essa posição se apresenta,
neste momento, utópica. O Autor referido lembra que já no século XVI Paracelsus afirmava
que «as plantas alimentares terão de ser plantas medicinais e as plantas medicinais terão de ser
por sua vez alimentares».
Quanto às relações entre a Química e a qualidade avulta a interferência dos fertilizantes.
O Autor em referência considera que o recurso a um nutriente conduz «à diminuição da con-
centração dos outros nutrientes, por efeito de diluição, isto é, por aumento da biomassa total»
bem como «alterações na absorção de outros nutrientes, com interferências, negativas ou posi-
tivas, exercidas sobre esse processo, pelos nutrientes constituintes da fertilização aplicada à
planta». Estuda depois as influências do Azoto, do Fósforo, do Potássio, do Cálcio, do Enxo-
fre e do Magnésio, concluindo, em relação a diferentes culturas, aspectos fundamentais deter-
minantes da qualidade de produtos alimentares. Concluiu-se também que apresentam grande
importância as alterações ambientais provocadas pelo uso de herbicidas que influenciam a
composição da vegetação expontânea e causam a poluição das águas.
Quanto à influência dos Fitofármacos o Autor afirma que «os produtos fitofarmacêuti-
cos assumem, neste conceito, uma importância muito grande, uma vez que o seu uso é de há
muitos anos e cada vez mais generalizado, no controlo de pragas e doenças, conduzindo assim
a uma progressiva intoxicação do meio que através das cadeias alimentares se propaga de for-
ma assustadora». Como moderação dos crescentes alarmes que partidários organizados da
«agricultura biológica» apresentam ao público, o problema é sugerido da seguinte forma: «este
efeito negativo terá de ser contraposto, evidentemente, aos benefícios que resultam da sua apli-
cação, a nível do rendimento e da qualidade das culturas tratadas, pelo controlo de doenças e
pragas».
Não oferece dúvida que a aplicação de pesticidas deixa resíduos nas plantas cuja parte
comestível o homem consome. Embora a chuva, o vento, as acções físicas, químicas e bioló-
gicas várias tendam à atenuação da presença de resíduos de pesticidas, passa a exigir-se sem-
pre determinado prazo para que os alimentos se possam considerar inócuos. Por isso o Autor
esclarece que «do ponto de vista nutricional, os pesticidas, rapidamente degradados e originan-
do metabólicos não tóxicos, são portanto mais convenientes para o equilíbrio ambiental, do
que os pesticidas com longa persistência no terreno ou nas plantas». O problema dos efeitos
resultantes do uso dos pesticidas pode ser agravado quando «a persistência de alguns desses
produtos fitofarmacêuticos conduz através das cadeias alimentares dos ecosistemas em que se
inserem as plantas tratadas, a uma contaminação progressiva no meio ambiente, com muitos
pontos de convergência no homem, dada a diversidade de origens dos alimentos que este con-
some». Pode bem avaliar-se quanto a exigência de segurança é contrária aos interesses da in-
dústria ou do comércio de pesticidas, que pretendem lançar no mercado os seus produtos sem
procederem a adequados e dispendiosos ensaios. É frequente assistir-se à intervenção de Ser-
viços Públicos que ordenam a suspensão do uso de produtos pouco antes divulgados. Sabe-se
também, ou pelo menos presume-se, que certos produtos são ensaiados junto de populações

562
menos protegidas por dispositivos de defesa sanitária. O Autor refere a importância que assu-
me ou a esperança que representa o recurso a «métodos biológicos de protecção das plantas,
juntamente com medidas culturais adequadas e com o criterioso emprego de alguns pestici-
das».
Assume grande importância o que se passa em relação a aditivos alimentares usados es-
pecialmente pela indústria de produtos destinados a consumo humano e animal. Pretende-se
com esses aditivos «melhorar a aparência, o sabor, a consistência ou as propriedades de con-
servação». Embora muitos desses produtos não sejam considerados tóxicos, levantam muitas
vezes a suspeita de poderem ser cancerígenos. No caso da alimentação animal, ou no tratamen-
to ou prevenção de doenças, é frequente o recurso a aditivos destinados a favorecerem o cresci-
mento, como antibióticos e hormonas que são transmitidos ao homem dando origem a graves
problemas de saúde pública.
Em resultado de actividades agrícolas e industriais o ambiente, águas e solo, é susceptí-
vel de contaminação química, como a dos metais: Chumbo, Arsénio, Mercúrio, Cádmio, Co-
balto, Estanho, Manganésio, Alumínio, cuja presença em produtos alimentares apresenta gran-
des riscos, encontrando-se também nas águas sendo a causa de impressionantes hecatombes da
fauna aquática, peixes e aves. Os poluentes atmosféricos representam grande importância,
apresentando aspectos que recebem a designação de «chuvas ácidas». O mais grave será a pre-
sença de dióxido de enxofre que actua através do contacto com as folhas das plantas, condu-
zindo a desastres espectaculares, ou a efeitos inicialmente pouco aparentes mas não menos gra-
ves, pela redução da capacidade de resistência da flora a doenças e pragas existentes.
Devemos reconhecer que se generaliza cada vez mais a consciência colectiva quanto
aos riscos de poluição ambiental. São cada vez mais frequentes os alarmes. Mas de pouco po-
derá valer o alarme porque se ganha muito dinheiro a poluir a Terra, e as técnicas científicas,
que existem, de «protecção da Natureza» afectam gravemente os rendimentos quando aplica-
das. Se Gil Vicente fosse vivo, concerteza levaria à cena o «Planeta Saqueado». Poderíamos,
então, ver e ouvir, em verso, a arte de consumir o que se pilha, com a rapina a que os gestio-
nários dão o nome de «maximização dos lucros». Como na «Farsa dos Físicos», Gil Vicente
voltaria a rir:

«Compadre fazee por comer


e curay de vossa vida
que depois da vida hida
nam ha ca mais que perder
como a tiverdes perdida»

563
54 — A QUESTÃO AGRÁRIA DE FUNDO

Não resta dúvida de que na História de Portugal a Agricultura, na dependência dos re-
cursos nacionais e das variações climáticas ou sociais que influem nos níveis de produção, fi-
gura como constante a assegurar consumos vitais para a sobrevivência do País. Esta ideia não
exclui outras actividades económicas, da Indústria e dos Serviços, tendo em conta objectivos
de desenvolvimento que obedecem, nas visões mais lúcidas, a critérios de homogeneidade de
funcionamento social. Isto não significa que tenha sido possível assegurar o equilíbrio do abas-
tecimento alimentar encontrando sempre a garantia da produção agrária nacional bastante. A
importação tornou-se, em múltiplas ocasiões, necessária, mas esteve sempre presente o risco
da possibilidade de adquirir produções de espaços estranhos ao enquadramento regional portu-
guês. Sempre foi entendido que a Questão Agrária se enquadrava no sentido histórico da inde-
pendência nacional, oferecendo, os produtos alimentares vulnerabilidade decerto maior do que
a de outros bens essenciais, identificando-se a segurança na disponibilidade de recursos vitais,
com a existência de Forças Armadas, prontas a baterem-se, quando necessário, na defesa da
vida e dos interesses culturais portugueses.

Associativismo Agrícola

Para além das formas tradicionais e regionais da vida comunitária, da prática da entrea-
juda camponesa, o primeiro apelo moderno ao associativismo agrícola parece encontrar-se, se-
gundo refere Azevedo Pereira em «A legislação portuguesa relativa às Cooperativas Agrícolas.
Análise da sua evolução», numa circular enviada aos agricultores, em 1855, por Aires de Sá
Nogueira. Nesse documento afirma-se:
«O espírito de associação tem-se desenvolvido, por toda a parte de uma maneira prodi-
giosa, e é porque se reconheceu ser este o meio mais pronto e eficaz não somente de promover
e alcançar o mais rápido desenvolvimento de cada uma das classes que se entendem pelo meio
da associação, como também de fazer respeitar todos os direitos e interesses que são relativos
não só a cada uma dessas mesmas classes mas, ainda, os de cada um dos seus membros, por
meio de recíproca que neles se encontram. A Associação Comercial de Lisboa, a Associação
Mercantil do Porto, a Associação Industrial da mesma cidade, as associações de empregados
públicos, dos professores, dos empregados no comércio e, enfim, as associações de todos os
artistas, e outras muitas, são uma prova incontestável desta verdade. Mas a agricultura, essa
base fundamental, e a única perpétua, da riqueza e prosperidade de Portugal, não tem quem a
represente, não tem quem fale em seu favor, não tem, enfim, quem levante a voz para promo-
ver e defender os seus interesses. Essa base da nossa vida económica para aí jaz e, como subju-
gada por aquela inação terrível que conduz ao nada, corre à mercê das ondas, sem encontrar
mão caridosa que, tomando o leme da barca, que a conduz dormindo, a encaminhe sabiamente
nessa viagem que, por este modo, um dia deverá findar, lançando ferro no porto da abundância,
da riqueza e da fortuna, enfim, de todo o País; mas, essa mão caridosa não pode pertencer se-

565
não ao braço forte e poderosíssimo da associação geral de todos quantos se interessam na agri-
cultura portuguesa. Nesta convicção e na de que igual pensamento se encontrará em todos
aqueles que mais ou menos ali têm os seus interesses — é por isso que não duvido de franca-
mente pedir a sua assinatura para a base de estatutos da União Agrícola, que acompanham esta
circular.»
Foi na sequência desta iniciativa que em 10 de Junho de 1860 foi fundada a Real Asso-
ciação Central da Agricultura Portuguesa, tendo D. Luís como protector, D. Fernando como
Presidente da Assembleia Geral e, talvez, como um dos Sócios mais ilustres, Alexandre Hercu-
lano, que também foi produtor de azeite em Vale de Lobos. É de 1867 a primeira legislação
que regula a actividade de associações cooperativas, fundadas «com o fim de os seus sócios se
auxiliarem mutuamente». Esta Lei básica foi mantida no Código de 1888, ficando, no entanto,
omisso o «mutualismo», que voltou à superfície com o Código de 1896.
A República, com a Lei n.° 215 de 1914, conferiu larga protecção ao associativismo
agrícola, sendo as cooperativas contempladas com legislação específica em 1918, apresentan-
do-se como fundamental o Decreto «sidonista» n.° 4.002, para consolidação e desenvolvimen-
to das cooperativas agrícolas.
As associações de livre constituição e de inscrição voluntária que existiam em 1974, di-
ziam respeito a 49 Mútuas de Seguro de Gado, com estatuto, funcionando algumas centenas
sem qualquer espécie de alvará. Encontravam-se organizadas 142 Caixas de Crédito Agrícola
Mútuo, ao abrigo de legislação de 1911, de Brito Camacho, que reuniam 59.451 sócios. Conta-
vam-se 505 Cooperativas Agrícolas constituídas, mantendo-se 438 em actividade. As mais nu-
merosas eram as Adegas Cooperativas que totalizavam 105 unidades com 25.000 associados,
laborando 31 por cento da produção vitícola nacional. Seguiam em importância numérica as
89 Cooperativas de Lacticínios com 30.000 sócios que asseguravam a industrialização e co-
mercialização de 55 por cento da produção nacional de leite. Eram 59 as Cooperativas de Oli-
vicultores, com 15.000 associados, laborando 7 por cento da produção nacional de azeite. Exis-
tiam cooperativas de Fruticultores, de Produtores de Batata de Semente, de utilização de Má-
quinas, de Criadores de Bovinos, de Rega, e outras. Mistas, de Compra e Venda. Existiam 16
Uniões de Cooperativas. O total de associados ultrapassava os 150.000 agricultores.
Para todos os efeitos, este movimento associativo representava uma força efectiva que
resultou, sem sombra de dúvida, da acção de alguns dos Organismos de Coordenação Econó-
mica, como os dos sectores do Vinho, do Azeite e das Frutas. Conforme noutra passagem ficou
referido, o Cooperativismo do Leite e dos Lacticínios foi construído em luta vivíssima, em re-
sultado de esforços notáveis de alguns produtores, apoiados, à boa maneira dos Monges Agró-
nomos de Alcobaça, por Técnicos dos Serviços Agrícolas e pelo Laboratório de Tecnologia
Agrícola do Instituto Superior de Agronomia. A Junta Nacional dos Produtos Pecuários recu-
sou sempre qualquer apoio às Cooperativas de Lacticínios que se formaram expontaneamente,
dando declarada preferência aos Industriais do Leite. Todavia estes não alcançaram o mono-
pólio que pretendiam, mantendo-se a posição que mais os prestigia, de abastecedores do mer-
cado em produtos lácteos de qualidade, particularmente os dietéticos, de enorme importância
para defesa da saúde e da vida. Nas associações livres eram apontados 20.350 sócios de «Asso-
ciações de Regantes, interessando 26.052 hectares e funcionavam 160 sociedades de Agricul-

566
tura de Grupo, com 1.037 associados dominando 13.109 hectares.
Actividades ligadas à matança do gado, preparação e fabrico de conservas de carne, de
enorme importância económica, têm-se revelado inacessíveis ao associativismo agrícola. As
conservas de carne assumiram tradicionalmente a expressão artesanal, sendo assinaladas mais
de três centenas de unidades, de que somente algumas apresentam equipamento industrial mo-
derno. Muitas serão indústrias caseiras sendo raras as unidades fabris privadas. Não existe
qualquer unidade cooperativa. Quanto à matança do gado, sucede que o problema se encontrou
dependente de garantias de sanidade dos animais abatidos, o que conduziu à intervenção muito
antiga dos Municípios, em obediência ao propósito da defesa do interesse público mesmo an-
tes da possibilidade de se poder recorrer a serviços de Médicos Veterinários. Depois dos anos
40 o Ministério das Obras Públicas facultou largo apoio aos Municípios no sentido de os equi-
par com Matadouros que, em regra, não passavam de simples «casas de abate», melhores, po-
rém, do que os locais antes utilizados. A estatística assinala mais de três centenas de Matadou-
ros, referindo cerca de cem «industriais» e vinte «particulares». Nenhum deles assume o esta-
tuto cooperativo. Segundo supomos foram duas as tentativas para construção de «matadouros
industriais» por empresas cooperativas: a Uniagri, em Vale de Cambra e o Cachão, em Trás-
-os-Montes. De há muito que nos Gabinetes Ministeriais são planeadas Redes de «matadouros
industriais» mas em virtude do grande secretismo desta actividade não nos foi possível averi-
guar o que se passa quanto ao planeamento ou a execução do plano de qualquer Rede Nacio-
nal, nem o tipo de empresa que será organizado, tudo indicando que a melhor solução seria a
cooperativa.
Outro campo que se oferece para promissora instalação de valiosíssima indústria agrí-
cola, é o da beterraba sacarina. Em virtude da antiga coordenação da economia do Continente
com a das Colónias, a cultura da beterraba sacarina nunca foi instalada na Metrópole. A cana
sacarina abastecia o mercado, sendo a refinação das ramas feita, à boa maneira colonial, no
Continente. Ainda antes da independência das Colónias, porque o consumo metropolitano ex-
cedia a oferta colonial, chegou a ser encarada a introdução da cultura da beterraba sacarina em
Portugal, revelando os estudos feitos, tal como os antigos, o interesse dessa cultura e da indús-
tria transformadora que lhe está associada. Podemos testemunhar que poderiam ter sido toma-
das decisões há perto de longos vinte anos, num quadro de muito boa perspectiva de financia-
mento por parte dos fornecedores das unidades industriais. O projecto foi bloqueado, não sa-
bemos se pela indústria de Refinação instalada que se movimentou, ou em resultado de outras
influências que não nos foi dado identificar. De qualquer modo, mais tarde, com a descoloni-
zação, a Indústria de Refinação das Ramas de Cana Sacarina, a menos que se revelasse compe-
titiva em face da produção de Açúcar de Beterraba no Continente, deveria ter sido desmontada
e transferida para os locais de produção de matéria-prima, onde sempre deveria ter sido instala-
da. Com a independência do Brasil, o «Senhor Engenho» estava lá ao pé da Cana e do Escravo,
e ficou brasileiro. A Indústria da Beterraba Sacarina em Portugal é problema novo, e nada tem
a ver com a Indústria colonial de Refinação da Cana de Países hoje independentes. Requer Fá-
bricas que não carecem de localização portuária, exigindo implantação agrária. Nestas circuns-
tâncias deveria ser instalada pelos produtores de Beterraba Sacarina, cultura que se apresenta
«revolucionária» quanto às transformações que pode operar nos sistemas agrícolas tanto de

567
áreas regadas como de sequeiros cerealíferos, devendo ainda contar-se com os reflexos no co-
mércio externo tão gravemente desequilibrado. Tudo indica, porém, que não será concedida
qualquer facilidade para a instalação da nova e disputada indústria, em favor do associativismo
cooperativo.
As associações de inscrição obrigatória existentes em 1974 foram banidas com a Revo-
lução de Abril. Constavam de 232 Grémios da Lavoura, reunidos em 12 Federações de Gré-
mios da Lavoura, tudo encabeçado por uma Corporação da Lavoura. Muitos dos Grémios, de-
pois de ocupados por «comissões liquidatárias» que não encontraram solução orgânica, «pas-
saram a Cooperativas», sem pena nem glória, mantendo, em geral, as mesmas estruturas e con-
dições de funcionamento. A cúpula do sistema corporativo, que se apresentava como detentora
da representatividade — a Corporação da Lavoura — deu origem a numerosas e diversas si-
mulações do fenómeno associativo, que nunca alcançou expressão democrática nem se afigura
ainda efectivamente estruturado. As Associações de Regantes e Beneficiários dos Regadios,
que totalizavam 16 unidades e 11.788 associados, ficaram envolvidas no obscuro processo de
nacionalização dos terrenos beneficiados, mantendo-se a sua posição indefinida.
Entendemos, por nossa parte, que o associativismo agrícola constitui a melhor das espe-
ranças do futuro, mau grado a penosa crise que atravessa por falta de apoio dos Serviços Públi-
cos ao movimento cooperativo que pretende crescer, encontrando-se as unidades existentes gra-
vemente abandonadas. A política actual, em relação ao associativismo agrícola, confere estra-
nha actualidade às palavras que D. Luís de Castro escreveu na capítulo «Le credit agricole et le
mouvement associatif rural», em «Portugal au point de vue agricole», 1900, que traduzimos:
«Vai-se repetindo correntemente que o povo português é refractário à ideia da associa-
ção. Isto afigura-se-me absolutamente contestável. Um povo que desde o fim do século XIII
inaugura o movimento dos compromissos e das confrarias, origem dos montes-de-piedade,
embrião das associações de socorros mútuos que ainda hoje subsistem; um povo que no século
XV criou as casas de beneficência, as Misericórdias, instituições que não têm rival em qual-
quer país do mundo, como afirmou Garrett; um povo que no século XVI fundou e mantém os
Celeiros Comuns; um povo enfim que, em 1848, se esforça por marchar na esteira dos promo-
tores do movimento cooperativo francês e que, depois de 1867, conseguiu implantá-lo, não po-
de ser considerado como pertencente a uma raça inimiga do espírito de associação.»
Não oferece dúvida de que a ideia de associação se encontra banida da política agrária
actual, que confere protecção e incentivo ap individualismo empresarial que surge identificado
com a imagem da competitividade económica e da eficácia técnica. Faz-se um esforço tecno-
crático enorme para que os Camponeses, que sempre tentaram ser livres gestores das suas em-
presas e vidas, passem a assumir a configuração do assalariado em postos de trabalho elabora-
dos na exclusiva esteira do lucro, ou de contribuintes no sistema fiscal do Estado, com o sabor
feudal dos rendimentos retidos na fonte, tudo obedecendo ao comando da teia monopolística
do mercado, que se apropria também do comportamento dos consumidores.

Reflexos da "Revolução de Abril" na Agricultura

Quando, em 1974, na madrugada de 25 de Abril, Grândola, Vila Morena, soou na Rádio

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Renascença, a Agricultura portuguesa encontrava-se estagnada, com os rurais emigrados em
massa, a "salto", sofrendo, ao mesmo tempo, a mobilização para a Guerra nas Colónias. A po-
lítica agrária do regime deposto era a consentida pelas forças da Reacção acantonadas na Cor-
poração da Lavoura que bloquearam, da forma descrita noutro passo deste trabalho, na Câmara
Corporativa e na Assembleia Nacional, a tímida "reorganização agrária" da Colonização Inter-
na, da Hidráulica Agrícola e do Povoamento Florestal que aflorara na Lei da Reconstituição
Económica, e fora consentido que figurasse, sem êxito, nos dois primeiros Planos de Fomento.
Os Agrários do Sul utilizaram em seu proveito exclusivo o Crédito dos "Melhoramentos
Agrícolas", garantindo, com as máquinas subsidiadas, a defesa do latifundismo dominante. No
Norte e no Centro a pressão dos rurais sobre a Terra diminuirá mercê da emigração, baixando
as rendas que antes suportavam e reduzindo a produção para subsistência. O consumo dos
Camponeses passara ao luxo do Pão de Trigo, do frango de aviário, do "galão" ou da cerveja
com torradas e bolos. No Sul, o desemprego dos sem-terra estava atenuado pela fuga para os
buracos do Metropolitano de Lisboa, em construção, o que permitiu o acréscimo desmedido
dos aramados nas coutadas e a plantação de Eucaliptos, a servirem indústrias poluentes. Por
isso a Revolução eclodiu, como de costume, urbana, porque, nos campos, não se deparava com
pressões sociais tão fortes como as da morte da Catarina Eufemia nas crises da II Guerra Mun-
dial. Seria este o motivo que levou os Partidos Políticos, excluindo um, a não se darem ao tra-
balho de alinharem ideias a orientarem a imperiosidade de uma mudança.
Na verdade, os Camponeses do Norte e do Centro, parentes idosos dos que debandaram,
encarregaram-se de aferrolhar nos Bancos as remessas dos emigrantes, que davam juros que,
na tradição dos "onzenários", nunca tinham sido extorquidos, porque representavam a perdi-
ção da Alma no Inferno. E sobravam milhões, que ninguém avaliou, para substituir a choça pe-
la Vivenda do "triunfo". Tanto bastava para abençoar os revolucionários que, em breve nacio-
nalizaram os Bancos e outras fontes de receitas que pareciam certas, o que ao povo não interes-
sava nada. Mas, no Sul, porque abrandou a Construção civil, os que serviam nela regressaram
à terra. E assim se concretizou o terror do desemprego, muito experimentado. Foram ressusci-
tados os Sindicatos que o regime deposto tinha transformado em Grémios da Lavoura, que exi-
giram oito horas de trabalho agrícola. Os sem emprego foram distribuídos, forçosamente, pelas
herdades. Mas os latifúndios não estavam voltados para qualquer intensificação, e não ofere-
ciam novas tarefas, pelo que foram acusados de sabotagem económica. Os pequenos e médios
agricultores, pouco numerosos, reagiram quando verificaram ser-lhes recusada a prática de
"searas", acusando tendência para a associação de classe, como as LPMA (Liga dos Pequenos
e Médios Agricultores).

As duas estruturas agrárias do País

Em face desta situação, o País Agrário viu-se naturalmente dividido em dois espaços de
reivindicação e de comportamento, historicamente concretos. Na zona dos latifúndios, vasta e
pouco povoada, surgiu a ameaça da ocupação de terras que, na República, tivera um ensaio
mal sucedido, desta vez, incidiu sobre espaço alargado e de forma diversa de outros dramas
idênticos em áreas de latifúndio do mundo: os donos da Terra optaram pela não resistência,

569
desmobilizaram os apaniguados locais que, sociologicamente haveriam de ter, embora pouco
numerosos e de escassa confiança para poderem ser armados contra os sem-terra desesperados
que tinham o apoio de forças militares equipadas com "chaimites" de grande mobilidade ope-
racional. Tomaram a atitude política de retirar estrategicamente, aguardando melhores dias,
que não tardariam a acontecer. Especialmente nos assaltos a residências e montes, foi desmedi-
do o sofrimento de fidelíssimos servidores do bem-estar tradicional, que se viram abandona-
dos, para não dizer traídos no seu amor às coisas cuja guarda garantiam. Longe, os latifundiá-
rios organizaram as ALA (Associações Livres de Agricultores), que em breve foram alargadas
a todo o País e concentradas na CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal) que depois
obteve assento nos diálogos com o governo. Nas ocupações os rendeiros alugadores de máqui-
nas e os trabalhadores permanentes teriam sido os principais líderes do processo, dispondo de
melhor preparação técnica, perante a situação de analfabetismo que dominava entre os assala-
riados. Do ponto de vista dos intelectuais, que norteavam os movimentos, implantou-se a
ideia: "a terra a quem a trabalha". Poucos saberiam, no entanto, que a História retivera já a fra-
se de Mouzinho da Silveira, que na Revolução Liberal escreveu: "livres os bens a favor de
quem de facto os cultiva".
Nesta fase, decerto a mais dura do processo revolucionário, podia ver-se, por exemplo,
em Montemor-o-Novo, nas paredes dos edifícios de branco imaculado, as mais violentas
ameaças, as mais vivas condenações à morte. Soubemos de uma Socióloga americana que an-
dou a ver, nos campos, a "reforma agrária" e, no fim, entendeu ser caso original, dizendo: "rou-
baram um milhão de hectares e não morreu ninguém!". Na verdade, esta originalidade efecti-
va, nem era de tradição portuguesa porque na Revolução Liberal de 1820, a Reacção do abso-
lutismo de D. Miguel teve o custo de muitas vidas, de enforcados nas ruas, continuando o mor-
ticínio na Guerra Civil, Maria da Fonte e Patuleia. As ocupações de latifúndios iniciaram-se
nos finais de 1974. Segundo refere Afonso de Barros em "A Reforma Agrária em Portugal" o
escalonamento das intervenções dividem-se em três fases e é o seguinte:
Ia fase — finais de 1974 a fim de Julho de 1975 1.160.527 Ha.
2a fase — Agosto e Setembro de 1975 120.195 Ha.
3a fase — Outubro de 1975 a Dezembro de 1975 585.073 Ha.
Total 1.865.795 Ha.
A legislação respeitante à "Reforma Agrária" fixou a "Zona de Intervenção da Reforma
Agrária" da forma que segue:
Distritos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal. Parte Sul do Distrito de Castelo Branco
(concelhos de Castelo Branco, Idanha-a-Nova e Vila Velha de Ródão) e de Santarém (conce-
lhos de Abrantes, Almeirim, Alpiarça, Benavente, Chamusca, Constância, Coruche, Entronca-
mento, Golegã, Salvaterra de Magos e Vila Nova da Barquinha). Distrito de Lisboa (Vila Fran-
ca de Xira e Azambuja). Freguesias do Distrito de Faro limítrofes do Distrito de Beja.
A população agrícola envolvida neste processo era muito escassa:
População agrícola 150.180 38%
Assalariados 125.215 83%
Trabalhadores familiares 24.965 17%

570
Era muito diminuta a população ligada à posse da Terra, cerca de 10%, o que se não afi-
gura bastante para assegurar a defesa da Propriedade Fundiária.
A segunda parcela do País Agrário, com Propriedade Fundiária repartida por cerca de
40% dos residentes, ergueu duríssima barreira às ocupações de terras. Onde o Camponês fami-
liar alcançara criar raízes na Terra, o argumento era o cacete ou a moca, e toda a estrutura agrá-
ria ficaria como estava. Assim foi no berço nortenho de Portugal, onde a Monarquia Agrária
lançara os alicerces do País, e o mesmo nos Coutos dos Monges Agrónomos de Alcobaça, até
Rio Maior, e nas área do povoamento Mouro dos Saloios de Estremadura e dos Quinteiros do
Algarve.
Os responsáveis agrários dos primeiros governos revolucionários, mostraram profunda
ignorância quanto ao significado das ocupações, e não identificaram os motivos da resistência
do Norte, do Centro e do Algarve. Por isso chegaram a concluir que o baluarte carecia de ade-
quada agressão, que poderia ser a de uma Lei de Arrendamento rural. Ainda nos foi dado veri-
ficar que o estudo da referida Lei resultou particularmente deficiente. O que foi publicado era
inexequível. Os proprietários suprimiram a oferta de terras para arrendamento, alargando-se os
incultos, os rendeiros mantiveram o contrato verbal, o que lhes não impediu de diminuir o ní-
vel das rendas, ajustando-o, naturalmente, à redução da procura imposta pela emigração.
Ao mesmo tempo militares, de tendência que nos parecia maoísta, desencadearam a
"operação verdade", e partiram para o Norte que se encontrava indiferente, para desencadea-
rem a "dinamização cultural e esclarecimento cívico". Recordamo-nos de ter visto um deles,
na Televisão, muito admirado porque, afinal, encontrara no Norte, lá no fim do mundo, em Rio
de Onor, um sistema socio-económico e político com que não contava: "muito estranho, muito,
muito inesperado". O pobre do militar ignorava a existência multisecular do Comunitarismo
Agro-pastoril que Jorge Dias há muito tempo estudara.
No Norte foi fortemente contestada a apropriação dos Baldios praticada, no regime de-
posto, pelas Administrações do Estado instaladas para execução do Plano de Povoamento Flo-
restal de 1938. Foi exigida a "devolução dos Baldios aos Povos", sem que fosse esclarecida a
forma como passariam a ser explorados nas Serras de onde haviam já abalado grande parte dos
montanheses. Não parecia fácil restabelecer-se o pastoreio a que a florestação havia posto ter-
mo e chegaram a surgir propósitos das Autarquias de arrendamento às Celuloses, para Euca-
liptos, o que se afigurava criminoso. A ocupação de parcelas de aptidão agrícola feita pela Jun-
ta de Colonização Interna para instalação de "colonos" foi também contestada. Ainda tivemos
ocasião de ver alguns Casais da Boalhosa, os mais isolados, que foram objecto de assalto pro-
movido por "desconhecidos", tendo sido sacrificadas vacas prenhas com golpes abomináveis
dos dentes de gadanhos. Muitos dos Guardas Florestais tiveram de abandonar seus postos, sen-
do as Casas destruídas pelo "uivar dos lobos" do Aquilino.
Como no tempo da Revolução Liberal, em que o Povo dava, simultaneamente, vivas a
D. Miguel e à Liberdade, também depois foram assaltadas e incendiadas, no "Verão Quente"
de 1975, Sedes e Centros de Trabalho de Partidos Políticos que se apresentavam mais ligados
aos movimentos da "Reforma Agrária". Não podemos afirmar, no entanto, até que ponto este
movimento resultou de adesão de Camponeses. Julgamos que estes foram, muito mais especta-
dores indiferentes, do que revolucionários actuantes. No entanto, existiam e continuam a exis-

571
tir efectivas "sensibilidades" em relação aos Baldios, que passaram a ser pasto de pavorosos
incêndios.
Pode concluir-se que em resultado das ocupações, sucessivos governos teriam tentado
organizar a exploração das terras expropriadas. Depreende-se que os governos iniciais da "Re-
volução de Abril" não dispuseram do estofo necessário para encarar à luz da História de Portu-
gal e Mundial, o problema que motivou os ocupantes. Na verdade, era indispensável a Refor-
ma dos Latifúndios, tal como no período das Sesmarias fernandinas ou na Revolução Liberal
de 1820. Se pretendermos ser objectivos devemos mesmo lembrar que existiam analogias mui-
to antigas como as do tempo dos irmãos Graco no Império Romano. As responsabilidades des-
ses governos eram desmedidas. Não admira que tivessem ignorado os ensinamentos da Histó-
ria, o que sucede quando se não dispõe de Cultura, mas existiam em arquivos frescos do Minis-
tério da Agricultura, estudos da Junta de Colonização Interna onde encontrariam informações
sobre Baldios e Latifúndios que a implantação do capitalismo agrário alterou. Depois de 1820,
os Baldios foram apropriados pelos grandes e dos Latifúndios apenas se retiraram umas coure-
las, onde foram instalados "ratinhos" em viveiros de assalariados de que havia falta no deserto.
Os primeiros governos de Abril somente souberam dar adesão ao que António Barreto
refere como sendo um "plano, discreto, confidencial mesmo... assinado por... filhos das clas-
ses trabalhadoras" de certo partido político. Recordamo-nos bem de ter lido provavelmente có-
pia desse documento na mão de pessoa amiga. Para o Sul eram perceituadas "herdades colecti-
vas" e "herdades do Estado", reservadas estas últimas a "trabalhadores de vanguarda", e as pri-
meiras a militantes modestos "nas vastas extensões de agricultura de sequeiro". Quanto ao
Norte previam-se as cooperativas tradicionais que "seriam mais frequentes", não chegando a
propor-se a supressão de pequenos agricultores independentes. Como é óbvio nada garantia
que estes banalíssimo papel fosse sequer uma mensagem de auxílio de ideólogos do Leste. Não
faltavam por cá possíveis autores do escrito que, diga-se de passagem, tinha a desculpa de ser
anterior à Perestroika.
As ocupações de herdades não foram imediatas. A primeira teria sido a da herdade do
"Outeiro" ou "herdade do Zé da Palma" no concelho de Beja. Foi a única ocorrida no ano de
1974. O processo intensificou-se com as decisões governamentais quanto ao assunto, que fo-
ram mais nítidas a seguir a 11 de Março. No fundo as ocupações estagnavam porque faltava o
capital de exploração indispensável para funcionamento do que quer que fosse. Recordamo-
-nos de que nos foi referido ser frequente ouvir da parte dos alentejanos mais idosos presentes
nas sessões de propaganda das UCP a pergunta final, feita ao canto da sala, em segredo: "e
agora. Senhor Engenheiro, onde vou fazer a minha seara". As UCP não eram Baldios nem con-
sentiam "seareiros". Os ideólogos de 1974, em Portugal reformado, ignoravam que a Reforma
Agrária de Tibério Graco no Império Romano previra a entrega de Terra para libertar o Escra-
vo, e também de gado, arados e sementes para os transformar em agricultores, garantindo tam-
bém uma "Reserva" aos latifundiários expropriados, o que, na "Reforma" portuguesa passou
a ser preceito constitucional. Foi um Agrónomo no governo, quem viu naturalmente o proble-
ma e desencadeou o Crédito Agrícola de Emergência (CAE) o que fez de "detonador" das ocu-
pações e da formação das UCP. Este Agrónomo teve mais sorte do que Tibério e Caio Graco,
porque, no fim de tudo, não foi morto.

572
Foi assim que surgiu o "sector colectivo". Em 1976, o número e a superfície das Uni-
dade Colectivas de Produção, era o seguinte:
Número de UCP 610 Área 1.182.736 Ha.

Os nomes escolhidos são deliciosamente significativos e têm analogia "religiosa" com


a toponímia que resultou da "presúria" do território aos Mouros, uns séculos antes. Somente,
esta toponímia não perdurou. Do trabalho de Afonso de Barros pode extrair-se alguns exem-
plos:
Cravos Vermelhos, Alentejo em Luta, Samora Machel, Terra da Catarina, Coração da
Revolução, Força da Esquerda, Alentejo Vermelho, Grito da Revolução, Che Guevara, Passos
de Lenine, Esquerda Vencerá, Io de Maio, Planície Heróica, Muralha de Aço, Bandeira Verme-
lha, Fim da Exploração, Estrela Brilhante, Estrela Negra, Independência, Unidade.
A negarem a solução do Baldio tradicional, propriedade de todos os Paroquianos, as
UCP transformaram-se no privilégio de 40.052 trabalhadores permanentes em 1976. Logo de
início acentuam-se os conflitos entre os pequenos proprietários alentejanos e os colectivistas,
tendo os primeiros ficado excluídos das ocupações, chegando a ter suas courelas ocupadas.
Oliveira Baptista, em "Agricultura, espaço e sociedade rural" refere que, em 1975, "os traba-
lhadores ocuparam com a passividade do Partido Comunista, 17.000 hectares integrados em
explorações familiares".
Sabendo-se que a "Reforma Agrária" não contemplava a aspiração de possuir empresa
familiar livre, cresceu a reivindicação da exploração individual de pequenas parcelas, acaban-
do os ideólogos por transigir, de forma tardia, encontrando-se, em 1980, distribuídos 40.000
hectares, pelas famílias dos colectivistas das UCP.
Por influência do Partido Socialista nos governos, abriu caminho a organização de Coo-
perativas Agrícolas nas propriedades expropriadas. Estas unidades, verdadeiramente, não eram
"Cooperativas livres", porque permaneciam fechadas, ao serviço dos partidários que as organi-
zavam. Assim, a maior parte dos antigos assalariados dos velhos Lavradores capitalistas, man-
tinham-se assalariados de Patrões novos, que seriam os militantes tanto das UCP, como das
Cooperativas socialistas, justificando-se, talvez, o conceito popular que recomenda: "não sir-
vas a quem serviu".
O relato que pretendemos organizar neste trabalho baseia-se em informações valiosas,
que deram lugar a situações, com as quais ainda tivemos ocasião de contactar, sofrendo as mais
angustiantes das preocupações científicas. Os acontecimentos a que foi dado o nome de "Re-
forma Agrária" foram objecto de estudo científico por parte da Faculdade de Ciências Huma-
nas da Universidade Católica Portuguesa, sob orientação de António Barreto. Tivemos ocasião
de colaborar nestes estudos e verificámos que no momento em que o problema alcançava o
máximo do interesse científico, correspondendo as informações a 1976, a Universidade solici-
tou parecer quanto à continuidade das investigações. Recordamo-nos que informámos tratar-
-se de um processo politico-social em curso de evolução e tudo indicava estar longe de se en-
contrar concluído, sendo fundamental o interesse científico do que se previa. A decisão dos
responsáveis da Universidade foi a de encerrar as investigações científicas em curso. Também
o Centro de Estudos de Economia Agrária da Fundação Gulbenkian organizou um projecto de

573
investigação sociológica entregue a Afonso de Barros subordinado ao tema "A Reforma Agrá-
ria em Portugal — das ocupações de terras à formação das novas unidades de produção" que
foi publicado em 1976. Pouco faltava, nessa altura, para que a Fundação decidisse a extinção
do Centro, deixando a Agricultura ao desamparo da Investigação socio-económica livre e pri-
vada. Foi assim que no momento em que se iniciava o desfazer da "Reforma Agrária", se aden-
sou sobre os campos sacrificados o mais cruel dos nevoeiros a impedir a análise dos factos, se-
rena e cientifica, resta-nos arrumar hipóteses que, infelizmente para os Camponeses represen-
tam verdades de há muito inscritas na História de Portugal.
Foi logo após o 11 de Março de 1975 que se legislou sobre expropriação e nacionaliza-
ções, falando-se em limites de áreas o que representa consideração de "reservas". Todavia no
mês de Julho é publicado um Decreto com "tabela anexa" que fixa essa "reserva em 50.000
pontos". Estes "pontos" significam a visão tecnocrática que tem em conta não somente a área
expressa em hectares como também a qualidade e o uso dado aos terrenos, valendo as referên-
cias económicas. A legislação inicial exclui dos direitos de "reserva" os absentistas mas, a sub-
sequente vai alargando o "favor" a qualquer proprietário e a diferentes graus de parentesco.
Recordemos que, desencadeadas as ocupações, os latifundiários se agrupam em ALA
(Associações Livres de Agricultores), que depois se alargaram ao País, dando origem à CAP
(Confederação dos Agricultores de Portugal). Mas a Constituição de 1976 ainda era muito du-
ra, dizendo Afonso de Barros que a "Reforma Agrária é considerada um dos instrumentos fun-
damentais para a construção da sociedade socialista e — resumindo — deverá concretizar-se
através da transformação das estruturas fundiárias e da transferência progressiva da posse útil
das terras e dos meios de produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que
a trabalham, transferência esta que será obtida através da expropriação dos latifundiários e das
grandes explorações capitalistas, devendo as propriedades expropriadas ser entregues, para ex-
ploração, a pequenos agricultores, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agri-
cultores ou a outras unidades de exploração colectiva por trabalhadores".
De qualquer modo, a Constituição não impedia a instalação de "pequenos agricultores"
familiares, afigurando-se, no entanto, que ficava vedada a atribuição em propriedade privada
de terra expropriada. A aplicação dos preceitos colectivistas não constituía tarefa fácil, e pro-
vavelmente daqui a bruma, cada vez mais adensada que se formou, deixando de haver Univer-
sidade Católica ou Fundação Gulbenkian a estudarem, serena e cientificamente, o problema da
restituição dos mesmos e, eventualmente, a outros donos, das terras ocupadas, e da aplicação
dos milhões de contos de Créditos europeus destinados à Agricultura.
Foi longa e arrastada a luta pela atribuição de Reservas. Quanto a direitos foram revistos
critérios de parentesco. No que se refere a dimensões variaram muitas vezes as "pontuações".
Foram determinantes as alterações da Constituição que suprimiram "o caminho para o socialis-
mo" e apagaram as referências à "Reforma Agrária". No meio do nevoeiro atribuição de Reser-
vas não está cientificamente estudada como as ocupações. Haverá processos nos gabinetes mi-
nisteriais e nos arquivos dos Tribunais, que julgamos não haver quem saiba onde se encontram.
Deve ter sido o mesmo do que se passou na rescaldo da Revolução Liberal com os Bens da
Coroa e da Igreja, expropriados, nacionalizados e depois privatizados, ou então, muito mais
tarde, desamortizados, de uma forma tão confusa que levou Herculano a acolher-se a Vale de

574
Lobos, onde escreveu coisas dos diabos, que nós temos pena de não saber pensar. No domínio
colectivo daquilo que chamaram "Reforma Agrária" de Abril, para além da conflitualidade no
igualitarismo no trabalho, a demarcação de Reservas teria conduzido ao desenlaçe, vulgaríssi-
mo na História de Portugal, da desilusão para os Camponeses, traídos ou enganados uma vez
mais. Em trabalho já referido, de 1993, de Fernando de Oliveira Baptista pode ler-se: "A vi-
vência colectiva foi no entanto declinando com o avanço da contra-Reforma. Dos 1130 mil
hectares inicialmente integrados nas UCP/Coop. restam hoje menos de 150 mil; no mesmo pe-
ríodo o número de postos de trabalho passou de 71,9 mil para menos de dez mil". Tentámos
obter números mais recentes e os meus entrevistados somente dizem: "nada, não existe nada...
talvez duas ou três".
Deve acentuar-se que, no declínio do que o autor citado designou "vivência colectiva"
se assistiu ao afastamento de Agrónomos portugueses dos postos chave dos Serviços, de Sul a
Norte do País. A actividade de profissionais agrários foi fortemente contrariada, na assistência
técnica e na investigação, enquanto se abria em favor dos beneficiários das reservas do sul o
Crédito resultante dos auxílios da Europa para "reforma estrutural". No terreno, a velha "ar-
queologia" dos Lavradores do Trigo, foi substituída por subsidiados com projectos de capital
intensivo, dependentes do Crédito europeu e executados com riscos desmedidos em face de
problemas do mercado. Ao mesmo tempo restam hectares ociosos, de pousio, também subsi-
diado. Nas palavras de Oliveira Baptista descortinamos o maravilhoso deserto do Sul, marcado
pelos restos dos latifúndios com seus "montes" a lembrarem Vilas Romanas abandonadas, de-
pois da passagem dos "bárbaros" e o aramados das coutadas, os javalis, o Turismo nas antigas
sedes de Lavoura apalaçadas, as autoestradas para o Algarve, os assalariados sem-terra e men-
digarem trabalho, restando-lhes o suicídio quando os olhos envelhecidos deixam de contem-
plar os horizontes e se voltam para o fundo dos poços. Tudo com máquinas sofisticadas e cul-
turas consentidas pela PAC e desligadas de qualquer política agrária nacional, ou de preceitos
de uma Agronomia voltada para a ecologia regional. Não podemos afirmar que tudo se encon-
tre como estava quando soou "Grândola, Vila Morena", momento que designámos "limiar da
Reforma Agrária" em trabalho publicado em 1978. Mas o que mais ofende a nossa sensibilida-
de nesta análise, é o facto inexplicável de ter sido posto termo à "vivência colectiva" sem ter
sido aproveitada a oportunidade de se encontrarem expropriados e nacionalizados terrenos e
de se dispor dos "milhões da Europa", para fortalecer o estrato dos pequenos e médios proprie-
tários alentejanos. Esta tarefa constituiria a forma de combater a tendência para a formação do
"deserto", fortalecendo a classe dos Camponeses em face do domínio latifundiário cada vez
mais agressivo. Este facto permite-nos recordar que a Reforma Agrária a que nos referíamos
não ocorreu ainda mas, estamos certos, como Agrónomo atento ao enquadramento da Agricul-
tura na História de Portugal, que virá a acontecer.

O drama da inadequação nacional da chamada "Reforma Agrária"

A garantia de abastecimento alimentar representa a base fundamental em que se apoia


a vida colectiva. Este é o sentido, nada restrito mas vital, da existência humana, mesmo na par-
te que conta com as carências globais das sociedades modernas que se entregam a toda a espé-

575
cie de consumos, considerados todos necessários, seja qual for o aspecto qualitativo que repre-
sentem. Sendo assim constitui a primeira finalidade da investigação científica agrária a pes-
quisa dos sistemas de abastecimento alimentar da população, de forma compatível com a con-
servação e o melhoramento dos recursos naturais disponíveis no ambiente territorial. Sabendo-
-se que a oferta proporcionada pelos recursos produtivos nos diferentes espaços regionais, não
se ajusta à procura da produção da população presente, a economia de troca afigura-se neces-
sária ou mesmo inevitável. Todavia, na prática, a humanidade, nas regiões, sofre endémica ou
episodicamente situações de carência ou fome, ou regista excedentes que, por vezes, o comér-
cio mundial não absorve e que se perdem destruídos por impossibilidade de distribuição lucra-
tiva ou de auxílio, ou deficiente armazenamento. Metade da população do mundo sofre de ca-
rências alimentares qualitativas e um quarto contempla a Morte, sofrendo de fome quantitati-
va. Embora utópica, a atitude colectiva que permitiu a criação de organismos mundiais como
a F.A.O., deverá considerar-se como destinada a transformar, através de dispositivos apropria-
dos, qualquer «excedente» regional em «oferta» pronta a solver consumos vitais que, de outra
forma, determinam trágicas consequências. Enquanto houver fome em qualquer região do
mundo, não faz sentido que medidas de política egoísticas limitem níveis de produção alimen-
tar, em obediência a planeamentos locais restritos. No entanto, o combate à Fome não constitui
apenas atitude ética, mas programa essencialmente prático na prevenção das causas de conflito
e mesmo de guerra. A Fome encontra-se na base de dramáticos comportamentos sociais e po-
líticos. Vivemos o termo do século da mais forte explosão demográfica, nunca experimentada.
Os 2 mil milhões de habitantes que se contavam no ano de 1900 no fim do século XX, irão ul-
trapassar os 6 mil milhões, exigindo da Agricultura fortíssimo apoio quanto à produção ali-
mentar.
Em Portugal, durante os últimos cem anos, a questão dos abastecimentos constitui tema
de constante debate político, podendo afirmar-se que a Fome nunca deixou de se encontrar pre-
sente, com a sua configuração real ou efeito de terror, junto de muitos portugueses. Mas, na
abundância de que usufruímos agora, com o mercado farto e de largos consumos generalizados
a estratos sociais privilegiados, que escondem negros redutos de penúria ou graves situações
de insuficiente regime alimentar de quem trabalha longe da habitação ou estuda, o problema
dos abastecimentos já não atrai as atenções dos Políticos. Todavia, vivemos perigosamente um
período de grande dependência do exterior, que talvez nunca se tenha verificado, quanto a con-
sumos alimentares, nada tem sido investigado quanto à capacidade e sistemas da nossa Agri-
cultura para suprir eventuais mas previsíveis dificuldades de abastecimento externo. Quanto
ao passado, sabemos que durante períodos difíceis a Agricultura alcançou dar satisfatória res-
posta a diferentes estímulos de produção, adaptando-se também a artifícios de fomento varia-
dos quando o problema dos abastecimentos aconselhava precauções autárquicas. Não é fácil
entender a força do ruralismo português, como suporte da autosuficiência alimentar, quando a
tragédia se abate sobre a economia do País. Afigura-se-nos que, nas mais graves emergências,
o Povo português tem adoptado nos Campos estratégia eficaz e imune à desordem que se ins-
tala nos Serviços Públicos, desordem a que os Políticos dão o nome de «crise». Com grande
sabedoria o Povo tem sabido fomentar a produção e armazenar, reduzindo consumos ao míni-
mo vital, sobrevivendo, a ultrapassar as Fomes e Pestes históricas. No entanto, a questão é

576
mais complexa porque o território não cresceu, e embora a produtividade do solo e das plantas
e animais tenha aumentado, não estamos certos de que tenha acompanhado a explosão demo-
gráfica. De qualquer modo, os Camponeses, enquanto seres vivos, não têm perdido oportuni-
dade de, com sobras de governo clandestino de recursos, consolidarem as suas estruturas e ac-
tividades. Economistas modernos parece terem desvendado esta enorme força colectiva a que
deram nome de economia paralela ou subterrânea que alastra às cidades porque, no fundo, a
população urbana tem conservado a prudência de se comportar, ainda, como rural. Tudo isto
não será mais do que, no passado, uma constante que explica a sobrevivência nacional, desde
as invasões dos Romanos, dos Bárbaros e dos Mouros, acompanhando as Guerras com Caste-
la, suportando as invasões francesas, as lutas liberais, a República, a I Guerra Mundial, o agra-
vamento da carga fiscal, a II Guerra Mundial, a industrialização, a Guerra Colonial, o Êxodo
Rural e as coordenações ou descoordenações económicas, as mais variadas. A visão histórico-
-sociológica desta epopeia é deslumbrante, e dá-nos efectivamente a esperança de podermos
vir a resistir a tudo quanto se avizinha. Somente, no cerne da questão, o êxodo rural ocorrido
depois de 1960 e o envelhecimento da população activa agrícola que vai sobrando, causa-nos
apreensões sombrias. Tanto mais que não estamos certos da existência, na gravíssima conjun-
tura em que vivemos, do conhecimento científico suficiente quanto à nossa capacidade técnica
de sobrevivência com uma Agricultura que já não basta para a população existente, no que res-
peita a produtos essenciais de base. Repetimos que a dependência alimentar do exterior é des-
medida, e os projectos modernos de que temos conhecimento não passam de tentativas de em-
preendimentos de capital intensivo, que alcançam privilégios do Crédito entronizado em Lis-
boa, voltados naturalmente para os lucrativismos mais fáceis, onde a problemática da Fome
popular não conta, nem nunca poderia contar, talvez porque as Misericórdias rurais tenham si-
do espoliadas do alvará de Banco. Nem mesmo foi consentido que as Caixas de Crédito Agrí-
cola Mútuo formem o Banco Agrícola nacional que pretendiam. Ficamos sem saber como po-
dem vir a comportar-se as grandes, as vastas, e tradicionalmente poderosas estruturas agrárias
camponesas que se encontram ao abandono, manobrando a defesa clandestina da economia pa-
ralela ou subterrânea que se expande, instintiva, nas feiras, em praças improvisadas e nos cir-
cuitos ocultos das cidades, onde acodem vendedores ambulantes, perseguidos pela benevolên-
cia compreensiva da Polícia. O pior é que os Tecnocratas, legalistas e normalizadores, apoia-
dos ne receituário da C.E.E., condenam, sem o substituir com mais do que o Hiper-Mercado,
tal aparelho de produção e de comércio que conserva no activo das recordações do passado o
facto indesmentível de ter salvo muitas vidas de produtores, de intermediários, de consumido-
res. Ao procurarmos as sugestões da interpretação sociológica dos factos do passado, ocorre-
-nos a ideia absurda de que se pode repetir alguma coisa do que em certos quadros aconteceu.
Se um renovado «pombalismo cabralista» insistir em apertar com o Povo, não será impossível
que desperte nova Maria da Fonte que tenha ficado por aí esquecida. Encontramo-nos obceca-
dos com a ideia de que essa figura lendária da Revolta Camponesa, à beira de um regato de
águas não poluídas que não existe, possa brotar das fontes cristalinas que teimam em sustentar
e redimir as Pátrias. De há muito que vivemos sem discutir a questão de fundo do abastecimen-
to alimentar. Não temos Plano e, de resto, os Planos que tivemos foram sempre elaborados e
executados sem audiência aos interessados que não podiam nem sabiam participar.

577
Registamos o facto, de certo modo insólito, da existência da economia paralela ou sub-
terrânea. Mas, perante os riscos da implantação desejável mas difícil da Política Agrária Co-
mum europeia, não temos esperança de que o sistema tradicional possa assumir aspectos su-
pletivos de planeamento popular, expontâneo, genuíno, autodirigido, não rigorosamente selva-
gem, mas humanamente asselvajado. Trata-se da defesa da Vida, e constitui verdadeira pena
que tenha deixado de ser discutido o «problema dos abastecimentos».
A nossa infância ainda foi testemunha da Guerra que eclodiu na Europa em 1914 e suas
consequências. Historicamente havia decorrido a "belle époque". e já se encontrava distante a
Guerra de 1870 que, na sequência implacável das Guerras do Continente mais "civilizado",
marcara o ritmo dos morticínios banais que decorriam ao longo de arrastados anos. Esta pausa
consentira que o capitalismo agrário e industrial se instalasse desde a hora em que a Alemanha
esmagara a França, perante a indiferença dos que nesse século, chamado maldito, haviam luta-
do contra o Imperialismo napoleónico que, vencido, deu lugar a outro igualmente agressivo,
germânico. Bastou um assassínio na Bósnia, para que fossem mobilizados Camponeses euro-
peus, condenados a morrerem sem saber porquê, nas trincheiras.
Foi esta a última Guerra europeia em que Portugal se envolveu, batendo-se na Flandres
e em África, e a primeira da nossa vida. durante a qual temos assistido a tantas, sem conta, co-
mo sempre aconteceu na História, Somos daqueles que tiveram o Pai na Guerra, e não pode-
mos esquecer as lágrimas da Mãe especialmente quando chegou notícia da Batalha de La Liz.
Temos no edifício da Escola, onde nos formámos, gravados na parede, nomes de Estudantes
que viveram as mesmas esperanças do coração dos de agora, a quem a vida foi roubada, mortos
e inocentes, a cuja memória prestamos sentida homenagem. Quando nos enganaram, dizendo
à nossa inocência de criança, que o fim da Guerra, a que deram nome de Armistício, era a Paz
de 1918 que ia valer para sempre. Acabámos por dar vivas à mentira. Veio depois a Peste, sob
a forma Pneumónica. A Fome não deixou de atormentar os mais vulneráveis, não assumindo
as proporções antigas porque os campos portugueses não foram pisados pelas botas dos solda-
dos.
O Instituto Superior de Agronomia era, nessa altura, o único santuário científico onde
se abordavam temas da Agricultura. Nos Latifúndios do Sul continuava a escassear o Trigo.
Por dificuldades de importação faltava o Pão nas Cidades embora, nessa altura, não passassem
de Aldeias grandes. Mas esmagadoramente dominante, o Mundo Rural conservava-se à altura
dos acontecimentos. Mantidas vivas as hortas dos arredores, os Saloios traziam nas carroças,
o renovo das batatas, dos nabos e das cenouras. No Norte não tinham repouso as Terras da
Maia, floresciam as Gafanhas e as Aguçadouras nas areias sáfaras dadas aos Camponeses. O
lixo de Lisboa fertilizava a Outra-Banda. Os Primores multiplicavam-se no Algarve. Na Guer-
ra de 1914-18 a Agricultura portuguesa conseguiu, quase por toda a parte, ludibriar a Fome.
Estamos certos de que valia a dedicação de Agrónomos regionais, firmes no Ministério da
Agricultura muito apoiado na Escola. Os esforços de Assistência Técnica chegavam a assumir
a feição virgiliana que, por exemplo. Mota Prego lhes emprestava, em Textos imortais como a
"Horta do Tomé" ou "A Leitaria da Rosalina". Apesar de tudo recordamo-nos de ter assistido
a assaltos a Mercearias do nosso Bairro. Tais assaltos não faziam terror porque as sacas de ba-
tatas eram abertas na rua e divididas irmamente, indo cada um com sua alcofa cheio para casa.

578
Mais triste era o desfile dos funerais da Pneumónica, uns atrás dos outros. Havia famílias intei-
ras dizimadas. Morreu mais gente do que na Guerra.
Mas ninguém concebia, nessa altura, uma Agricultura morta. Mesmo na confusão polí-
tica, em 27 de Fevereiro de 1917, um Professor do Instituto, Eduardo Alberto Lima Basto, Mi-
nistro do Trabalho, legislou no sentido de promover a "Mobilização Agrícola" propondo a or-
ganização de "activa propaganda de aumento das culturas, junto dos agricultores, dos Sindica-
tos agrícolas e das Caixas de crédito rural". Esta intervenção não teve tempo de alcançar apli-
cação prática. Neste mesmo ano Sidónio Paes implantou a Ditadura, recebendo ovações nas
ruas e nas paradas militares até ser assassinado. Mesmo assim teve a inspiração devida para
publicar a mais correcta legislação sobre "Associativismo Cooperativo", que lançou no País
raízes promissoras, que se encontram agora ameaçadas por cobiças sobre o Património Cam-
ponês que, mal defendido, se entrega a gigantismos empresariais que corrompem tudo.
Era Professor do Instituto, o Agrónomo D. Luís de Castro, reintegrado depois de ter sido
demitido pela República por ser Monárquico, que defendeu o Mutualismo, deixando um Livro
ao qual deu o nome de "Crédito Agrícola Democrático" que alguns dos Economistas actuais
ignoram ou não querem entender, por condenar lucrativismos individuais selvagens, ou de gru-
pos de tendência monopolística.
Proclamada a República, como já foi escrito neste trabalho a ideia que provinha dos
pensadores agrários do século XIX tinha-se mantido, condenando os incultos, sem admitir re-
forma estrutural. Havia, no entanto, Economistas de Cultura Humanística excepcional, com o
Engenheiro Ezequiel de Campos que, em 1925, foi Ministro da Agricultura durante dois me-
ses, apenas. Tanto bastou para legar aos Portugueses a "Proposta de Lei de Organização Rural"
onde soube afirmar: "o que não há é terra disponível para novas famílias cultivadoras. A multi-
dão enorme de dezasseis mil pessoas da Beira que todos os anos vai ao Alentejo não se fixa
por lá, porque o grande proprietário do Sul nem vende, nem arrenda, nem afora em condições
de se construírem por lá novas casas agrícolas, onde se vão integrando as canseiras, as econo-
mias, as alegrias e as dores, as esperanças para o futuro dos descendentes. Só a posse indivi-
dual, familiar da terra poderá fazer o milagre de transformar a desolação bravia do Alentejo
em ermo, na alegria dos casais e dos campos em cultura regular".
Com o novo regime de Maio de 1926, as dificuldades financeiras que o País atravessa-
va, com gravíssimos problemas de comércio externo, levaram o Ministro das Finanças Olivei-
ra Salazar, conforme referimos noutro passo deste trabalho, a proferir a frase agrária que logo
se consagrou: "o Trigo é a fronteira que melhor nos defende". Teve início em 1929 a "Campa-
nha do Trigo" e foi nomeado Ministro da Agricultura um Coronel. Tal Campanha baseou-se
em "subsídios" para o desbravamento de incultos com os quais os proprietários se locupleta-
ram, enquanto os matos de vastos pousios, eram rompidos pelos "seareiros", em parceria agrá-
ria. Esta Campanha não é do nosso tempo de Agrónomo, mas averiguámos factos que nos con-
vencem da grande participação que o Instituto Superior de Agronomia lhe proporcionou. O
Professor de Agricultura Geral, António Sousa Câmara foi interventor activo. Não é fácil en-
tender como o Sul encontrou ainda reservas humanas que se transformaram em "seareiros"
empenhados na grande sementeira. O Instituto viveu debates dramáticos que opuseram os pro-
dutivistas aos raros Agrónomos que se apercebiam dos condicionalismos ecológicos. O Profes-

579
sor Azevedo Gomes alertou para os riscos da erosão dos solos, mas não foi ouvido.
Em 1934 o Alentejo alcançou excedentes de Trigo, não havendo condições de armaze-
nagem. Teve que proceder-se a exportações ruinosas. De qualquer modo, hove "seareiros que
enriqueceram, comprando herdades a Aristocratas de Lisboa que se encontravam arruinados,
transformando-se em Agrários dos mais ferozes. Recordamos que a Lei de Reconstituição
Económica de 1935 previa intervenções na Agricultura no domínio da Hidráulica Agrícola, da
Colonização Interna e do Povoamento Florestal. Mas os mercados agrícolas dos anos 30 fun-
cionavam de forma liberal selvagem. Na importação de cereais a Moagem monopolizava as
compras, abastecendo as fábricas de modo a estarem repletas quando a produção nacional
mendigava as vendas. Mas o mundo urbano era escasso, e facilmente se abastecia, alcançando
o vasto mundo rural sustento um pouco além da fome, mais nuns lugares do que noutros, con-
forme os favores ecológicos e a partilha das terras. Rapidamente, todo o mercado agrário foi
objecto de organização que noutra passagem deste trabalho se apontou com a referência aos
Organismos de Cooperação Económica. Foram criadas Cooperativas Agrícolas que defende-
ram os Camponeses e a Coordenação Económica, bem ou mal, visava a garantia de colocação
de produtos essenciais no mercado, assegurando o nível dos preços praticados ao longo dos
circuitos de produção, contrariando a apropriação indevida de "mais valias por parte de inter-
venientes dispensáveis. Foi com a Agricultura entregue a tal filosofia de Política Agrícola que
Portugal enfrentou, em 1939, a II Guerra Mundial. A fronteira terrestre separava-nos da Espa-
nha destruída pela Guerra Civil de 1936, de onde nenhum socorro nos podia chegar. Para su-
prir carências, a esperança estava além do Mar.
Nessa altura, politicamente, a Europa era um vespeiro. Depois de dramáticas negocia-
ções entre Países em confronto declarado, os Exércitos do Eixo de Berlim Roma entraram em
movimento que levou à declaração da Guerra que se transformou em conflito mundial.
Perante a Guerra Mundial, Portugal conservou a neutralidade, mas ficou submetido ao
bloqueio marítimo que os Ingleses logo organizaram, em relação ao Continente, praticamente
ocupado por Alemães e Italianos. Nenhum produto chegaria aos portos portugueses sem que
desse a garantia de se destinar exclusivamente a consumo nacional. Dispomos de elementos
que nos permitem afirmar que o abastecimento alimentar somente pôde ser assegurado mercê
de negociações com os beligerantes que mantinham esse bloqueio. Nessas negociações valeu
o prestígio alcançado pelo conhecimento das necessidades de consumo nacional de que os Or-
ganismos de Coordenação Económica dispunham. Esse conhecimento era essencial porque os
transportes marítimos se efectuavam com o indispensável "navicert", que só era concedido
com pedidos bem fundamentados. Ao mesmo tempo, os Organismos de Coordenação Econó-
mica actuavam junto das estruturas produtivas nacionais, alcançando-se níveis de cobertura
das necessidades alimentares, que situaram os fantasmas da Fome, muito mais longe do que
no decurso da I Guerra Mundial. Estamos certos de que a política de abastecimento alimentar
praticada durante a II Guerra Mundial que tornou possível reduzir os efeitos da incidência da
Fome, representa autêntico êxito agronómico que, historicamente fica ligado à acção exercida
pelo Instituto Superior de Agronomia na preparação dos quadros dos Organismos de Coorde-
nação Económica e dos Serviços Regionais da Secretaria de Estado da Agricultura.
Portugal foi um dos raros espaços europeus intocados pelas devastações da II Guerra

580
Mundial. Porém, quando a tragédia se interrompeu, com a demarcação da linha divisória de
dois exércitos, aparentemente aliados, que avançaram a esmagar os vencidos, Portugal rece-
beu, como os Países devastados da Europa, a oferta de auxílio americano, do Plano Marshall,
que recusou. Todavia, na linha de encontro desses exércitos formou-se um "muro", e Portugal
não foi rejeitado pelos 18 países que ficaram do lado de cá, constituindo a O.E.C.E. (Organiza-
ção Europeia de Cooperação Económica) em 1948.
Conforme se referia noutro capítulo esta foi a base, o ponto de partida da Reconstrução
europeia que proporcionou "milagres" económicos nalguns Países.
Com o 25 de Abril de 1974 Portugal alcançou as condições políticas para ser admitido
no Mercado Comum. Circunstância idêntica se passou com a Grécia e a Espanha e, por isso,
juntamente com Países que abandonavam a E.F.T.A., como a Inglaterra, foi admitido na C.E.E.
passando a fazer parte da Comunidade dos 12, a discutir novas adesões que se apresentam em
diferentes horizontes, a negociar a entrada. Acontece que as condições políticas exigidas pela
CEE e adaptáveis à PAC existente na época, não tomavam em consideração as estruturas do
colectivismo agrário, impostas de forma autoritária a Leste, isto é, sem democracia alguma que
em nenhum dos Países associados se deparava. No fim da II Guerra Mundial, com a auxílio de
empréstimos americanos, a Itália, mesmo com a presença de Partido Comunista forte, concre-
tizara, por iniciativa "democristiana", a profunda Reforma Agrária que suprimiu os Latifún-
dios tradicionais existentes no Centro e no Sul. A Espanha empreendera, sob o regime do Ge-
neral Franco, o intenso povoamento das margens do Guadiana e do Guadalquivir, que haviam
sido beneficiadas por grandes obras de Hidráulica Agrícola efectuadas em zonas de Latifúndio
onde os rurais viviam em tocas, nas furnas escavadas nas encostas, passando para belíssimas
aldeias. Como vimos, o nosso Latifúndio do Sul não foi alterado durante o regime deposto em
1975. E por isso a passagem à Democracia teria sido em Portugal, na Agricultura, mais com-
plexa e dura do que em Espanha. O facto, que nos deu entrada no "mercado comum", de ter-
mos alcançado a Democracia reinante nos Países da Comunidade, apresentava-se, sem qual-
quer sombra de dúvida, contrariado pelo espaço rural contido na ZIRA. Na verdade, sem qual-
quer espécie de consulta popular, na vigência de governos provisórios não constitucionais, as
UCP foram instaladas, sobre terra ocupada e expropriada, criando-se na País, muito importante
parcela onde não reinava Democracia alguma, quanto ao que se designou "Reforma Agrária".
Mesmo o reconhecimento constitucional dos factos, em nada nos aproximou das decisões da
liberdade democrática noutros Países praticada em relação à Agricultura.
Imaginando a forma como teriam decorrido as negociações para entrada na Comunida-
de, talvez se possa entebder que a ZIRA nada representava no espaço europeu associado que
se regia pelas normas da PAC, no que se refere a protecções dadas a Agricultores Livres, Cam-
poneses modernos, porque outros não existiam escravizados a condicionalismos tão fortes co-
mo eram os da UCP do malogrado Alentejo. Tudo nos convence que, nessa altura já os "euro-
cratas" de Bruxelas pensavam no quadro de uma Economia, em relação à qual se adivinhava
a tendência para liberalismos concorrenciais, que não deixavam de ter de considerar a posse
privada e a exploração livre da terra. Da parte dos negociadores portugueses também existiria,
não somente o desejo, mas também o propósito, de criar as condições necessárias para induzir
o carácter precário que vinha enquistado na "Reforma Agrária" de Abril, logo à nascença. E,

581
embora como vimos se não disponha de dados de valor científico para historiar o desmantela-
mento do colectivismo nos seus pormenores e efeitos secundários, a transformação fundiária
da ZIRA ocupada foi evidente, e passou a colocar-se, na aparência, de acordo com tudo o que
veio a acontecer quanto à reforma da PAC. Por isso, afigura-se-nos que os negociadores da
adesão à CE previram que a ZIRA acabaria. E acabou. No maravilhoso deserto do Sul, o que
restou do Campesinato alentejano ludibriado voltou à condição de "assalariado sem-terra . O
Latifúndio foi refeito com lavradores improvisados, muito diversos dos que Silva Picão consa-
grou em "Através dos Campos". Em livre circulação, vão-se juntando aos novos donos das ter-
ras, "maltezes" da Europa, todos a tentarem aventuras a coberto de subsídios. Quanto a Colo-
nos, dos pequenos, dizem-nos que ficaram alguns barbeiros e sapateiros que Sá Carneiro, no
desespero de se ver traído, instalou e, condições jurídicas que dizem ser "inconstitucionais".
A defesa de estruturas agrárias nacionais ou regionais, de produção agrária em especial
alimentar, é tradição da Agronomia portuguesa. A condenação do inculto, a intensificação de
técnicas produtivas correctas, o melhoramento das plantas e dos animais, a protecção sanitária,
a pesquisa da inovação e da adaptação de cultivares exóticos, constituem objectivos nunca en-
jeitados. Importa tomar consciência de que, em 20 anos, desde 1973, Portugal perdeu o que
restava da sua independência alimentar que permitiu evitar a fome em duas pavorosas Guerras
Mundiais. Com a redução da autosuficiência camponesa e rural, nestes 20 anos, o abasteci-
mento alimentar afastou-se dos consumos em natureza, e multiplicaram-se as tecnologias de
preparação, conservação e composição de alimentos, apresentados com objectivos comerciais
que determinam, para os equilíbrios nutricionais, novos riscos insuficientemente conhecidos.
São estes produtos, escondidos sob rótulos aliciantes, que atravessam as fronteiras pelo que a
defesa da Saúde dos consumidores se encontra ameaçada. Quanto mais se verifica a entrega
da Investigação Científica e a Segurança na Qualidade dos produtos ao Sector Privado, mais a
Alimentação se afasta dos condicionalismos da Natureza, esboçando-se a Fome específica,
quanto à defesa da Saúde pela protecção natural. Logo à nascença, nas Sociedade mais indus-
trializadas, as crianças encontram no leite materno, se houver a imprudência de lhes ser facul-
tado, o alimento mais poluído.
Os mercados agrários revelam-se incompatíveis com situações concorrenciais porque
no espaço que lhes respeita, quanto à produção, dificilmente se pode estabelecer confronto
qualitativo com produtos do exterior. Circunstâncias de natureza ambiental, impedem a ate-
nuação de diferenças, sendo arriscadas as técnicas capazes de suprir, com segurança, situações
regionais de fertilidade ou peculiaridades de microclimas. A nível das Regiões, a importação
não deve ser concorrente porque anula a segurança do consumo da produção local, mas apenas
supletiva porque as variações periódicas da produção não consentem equilíbrios de oferta e de
procura indispensáveis para garantia de defesa de necessidades vitais.
Para além de problemas, muito localizados, de abundância produtiva que pode gerar má
nutrição por excesso de consumo alimentar, metade da Humanidade vive em carência qualita-
tiva e um quarto debate-se com a Fome. No âmbito das especificidades regionais a abundância
proporcionada por terras férteis bem exploradas somente constitui efeito perturbador do mer-
cado local porque denuncia a imperfeita repartição dos recursos mundiais. Facilmente o pro-
blema pode ser resolvido, impondo a reserva da parte do potencial produtivo, que se mostre

582
excessivo para a população presente, e impedido de alcançar o acesso a regiões carenciadas.
Todavia a situação resultante da penúria das colheitas em climas difíceis, que gera graves si-
tuações quando não possa haver importação ou socorro, nunca deve admitir inactividade agrá-
ria estimulada ou subsidiada para resolver situações que noutros mercados são provocadas por
interesses lucrativistas.
Os resultados do liberalismo egoísta, que pressiona a formação do mercado concorren-
cial na Agricultura, impõe o drama dos Camponeses abandonados, ao admitir os efeitos da
competitividade desenfreada que destrói estruturas locais de produção de recursos alimentares
de protecção vital, e conduz à desertificação de espaços, antes povoados.
A defesa da Vida, a salvaguarda da Saúde, as finalidades culturais e espirituais que se
não conservam sem Ambiente, fazem das Regiões e dos Países, redutos de que as fronteiras
não podem ser desprezadas quando demarcam linhas de defesa da criatividade que se diluem
com a destruição da Agricultura. A Agronomia é um dos Ramos essenciais das Ciências, e a
Investigação Científica Agrária tem que estar atenta ao risco da incidência de novas pragas ou
dos atentados ao Ambiente que afectam a produção de uma modo imprevisível, ou à ameaça
da fraude tecnológica, que impõem sempre renovadas agressões à qualidade.
O risco da Fome continua desmedido. Depende de variações climáticas, de distúrbios
biológicos devastadores, e da Guerra que, longe de se encontar banida, assume formas de inci-
dência permanente, inesperadas e diversificadas de maneira ameaçadora.
As estruturas agrárias de que dispomos não se encontram adaptadas às circunstâncias
de grande risco em que vivemos, quanto ao abastecimento alimentar, fortemente importado da
Europa e de diferentes partes do Mundo. Admitimos que a Europa e Portugal não constituem
realidades susceptíveis de opção, sendo interdependentes. Mas, num dispositivo orgânico,
mesmo envolvido em comprometimento económico e associuação política, nunca pode aban-
donar-se a certeza de que a Agricultura conserva dependências ecológicas e objectivos sociais,
de garantia de segurança alimentar, de tal modo evidentes que o mercado onde se movimenta
se apresenta específico, ou totalmente diverso de outras actividades produtivas.
O sector agrário, a nível regional, atende a níveis naturais de procura que tem de aten-
der, em situações de isolamento previsíveis, para assegurar a oferta vital mínima que defende
contra a Fome. A Europa não pode elaborar conceitos de Agricultura diversos do enquadra-
mento geográfico humano de especificidades ecológicas e de exigências sociais de grande sen-
sibilidade. Nenhum dos componentes da Comunidade deve prescindir da sua Agricultura de
defesa vital, concebida como alicerce de tudo o que, na Natureza, existe, como necessidade de
sobrevivência progressiva.

De novo o "Limiar da Reforma Agrária"

Antes da Revolução, o Alentejo era o solar do Latifúndio privado que se mantivera


aberto ao livre pastoreio até à instalação do capitalismo agrário. Banidas pela Revolução Libe-
ral as liberdades camponesas, consolidado o direito de propriedade individual, instalou-se nas
Herdades a organização "industrial" de produção agrícola, com o Lavrador, os quadros qualifi-
cados, e os assalariados de contratação eventual. Na altura da Revolução mantinham-se as es-

583
truturas mas o capitalismo agrário sulista estava abalado desde o momento em que reivindica-
ções do proletariado rural alcançavam transformar o "sol a sol" em "oito horas de trabalho" e
a contratação registava acréscimos de salários moderados, mas nunca verificados. Mesmo sem
programa agrário expresso, o 25 de Abril deu força aos Sindicatos que livremente se implanta-
ram mobilizando o receio, tradicional e efectivo, do desemprego. Para mais, o desemprego
crescia com o retorno ao Campo dos emigrados devolvidos pela crise na construção civil e dos
soldados da Guerra Colonial. Neste ambiente foi imposto às Herdades o emprego compulsivo
de trabalhadores e toda a economia tradicional, fortemente debilitada, acabou por se desmoro-
nar, com "sabotagem" dos agrários ou sem ela. Naturalmente, seguiram-se as "ocupações" do
local de trabalho que, neste caso, eram as Herdade e Indústrias Agrícolas. Tudo obedeceu a
modelos variados e a impulsos dos mais diversos dos quais nenhuns foram diferentes do que
os Agrónomos tinham previsto como "cenário" provável, quando defendiam o reformismo pla-
neado. No "palco" dos acontecimentos, cerca de 200 famílias eram detentoras do Latifúndio
Alentejano, como de há muito se evidenciava. No campo oposto os assalariados sem terra che-
gavam a representar 80 por cento e mais da população activa agrícola. A categoria de proprie-
tário rústico no Alentejo não interessava a mais de 5 por cento da população presente, o que
não chega para ver defendida a propriedade privada. Em áreas coincidentes com estas estrutu-
ras dramáticas, delimitadas por Lisboa como "Zona de Intervenção", entraram novas lideran-
ças a substituírem as antigas, que abandonaram. Os casos de confronto foram raros. Instala-
rain-se unidades colectivas de produção. Muitas receberam nomes que as transformavam em
santuários ideológicos. Viu-se o renovar da prática de Crentes de Religiões de grande implan-
tação, ao conquistarem ou reconquistarem o território. O terror instalou-se e a população temia
o desemprego e a Lei do Arrendamento que exautorava a Parceria e ameaçava os "seareiros".
Observadores de diversos quadrantes do Mundo vieram documentar-se, inquirindo, fotogra-
fando e filmando, à procura de entender. Sucessivos Governos legislaram na esteira dos acon-
tecimentos. Nas Leis acabou por se perfilar o que andava no terreno — a Reforma Agrária —
ideia que constitui Bandeira de históricos acontecimentos e que ondula ao vento onde for in-
justa a repartição da Terra. As Leis sucederam-se e tomaram o nome de pessoas que viveram
a ilusão de terem encontrado o fio da meada. Sem haver meios financeiros nacionais nem
apoio estrangeiro, decretaram-se expropriações de herdades e nacionalizações de regadios, fi-
cando tudo por indemnizar. Não houve grandes protestos. Para muitos dos expropriados o que
tem valor é a esperança do retorno ao ponto em que tudo se encontrava. Vieram as pontuações,
as reservas, os despachos, as reclamações, as sentenças dos Tribunais. Foi mobilizado Crédito
de emergência que logo se esgotou transformado em dívida. O tempo passou, os pequenos
agricultores (coureleiros, rendeiros, seareiros) ficaram esquecidos, a G.N.R. voltou, o impulso
burocratizou-se, a produção diminuiu, o oportunismo entrou na rotina, a corrupção instalou-
-se, as pessoas desencantaram-se. Na implacável sucessão dos factos, os Camponeses, no ma-
ravilhoso deserto do Sul. encontram-se pouco melhor do que no tempo das sesmarias fernandi-
nas e sua Leis frustradas, da Revolução do Mestre de Aviz que transformou os bens dos "trai-
dores" em honras sem fim do Duque de Bragança, no rescaldo da Revolução Liberal que entre-
gou as terras da Coroa e da Igreja a financeiros que as englobaram no que já detinham, ou no
bloqueio da Colonização Interna e dos novos regadios que manteve o latifundismo capitalista

584
com os sem-terra assalariados. Para o nossos sentimento, sem dúvida ferido e de que maneira,
os Camponeses alentejanos sofrem, abandonados, um novo "Limiar da Reforma Agrária". Os
Agrónomos, esses, voltarão a escrever: "as forças da Natureza presentes no ambiente rural
bem podem ser a revelação de uma agricultura que seja, de facto, alicerce da vida colectiva,
em que os problemas agrários se não identifiquem somente com o jogo dos interesses privados
nem com o drama das paixões sectárias".

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OBRAS DO AUTOR

Colaboração no Inquérito à Habitação Rural -1 Vol. da Universidade Técnica de Lis-


boa - 1941; Um problema da determinação da Renda - Relatório Final do Curso de Engenhei-
ro Agrónomo apresentado ao I. S. de Agronomia. Dactil. - 1941; Aspectos do Habitat Rural na
Mancha Pliocénica a Sul do Tejo, in "Problemas de Colonização - A Zona Pliocénica a Sul do
Tejo". Junta de Colonização Interna - 1943; Evolução da Agricultura Portuguesa entre as duas
Guerras Mundiais, com a colaboração dos Profs. Mário de Azevedo Gomes e Henrique de
Barros, in Boletim N° I do Centro de Estudos Económicos do 1. N. de Estatística - 1945; Cola-
boração no Inquérito à Habitação Rural - II Vol. da U. T. de Lisboa - 1947; O Problema So-
ciológico das Formas de Exploração da Propriedade Rústica em Portugal. Dissertação apre-
sentada a Concurso ao lugar de Prof. Extraordinário do I. S. de Agronomia, in "A Terra e o Ho-
mem" - 1947; Plano de Investimentos Públicos para os próximos seis anos na Agricultura. Re-
latório elaborado com a colaboração do Agrónomo Mário Pereira para preparação do I Plano
de Fomento. Inédito dactil. - 1951; Problemas da Agricultura na Política de Fomento Nacio-
nal. Conferência proferida a convite da Associação de Estudantes do I. S. Técnico, in "Técni-
ca", Lisboa - 1952; Problemas da Deontologia Agronómica. Conferência proferida no I. S. de
Agronomia no I Curso de Deontologia Agronómica promovido pela J. U. C. em Lisboa - 1954;
Antecedents Technico-socieux et Perspectives Futures de VAgriculture Portugaise in "Bulletin
Bimestrel de la Societé Beige d'Etudes et d'Expansion" - 1954; Problemas da Sociologia Ru-
ral. Conferência proferida no I. S. de Agronomia no I Curso de Sociologia Rural promovido
pela J. U. C. - 1956; Condições Morais e Sociais da Vida Rural. Comunicação apresentada na
Sessão Plenária do IV Congresso da União Nacional - 1956; Industrialização e Agricultura.
Comunicação apresentada ao II Congresso dos Economistas Portugueses, realizado conjunta-
mente com o II Congresso dos Industriais. Buletim do Centro de Estudos Económicos do I. N.
de Estatística - 1957; Relatório da Missão de Estudos de Fomento Agrário (Cabo Verde) em
colaboração com os Profs. Pedro de Mendonça, Ario de Azevedo e Manuel Gomes Guerreiro.
Ciclost. - 1957; Produtividade, Eficiência e Automação na Agricultura. Palestra proferida no
I. S. de Agronomia a convite da Associação de Estudantes - Agros - 1957; O Progresso Técni-
co e a Vida Rural, Artigo publicado em "Rumo" - 1957; Eficácia Social da Agricultura. Pa-
lestra proferida no C. A. D. C. - Coimbra - 1958; Relatório Final Preparatório do II Plano de
Fomento (Agricultura) com a colaboração do Agrónomo Mário Pereira - Imprensa Nacional -
1958; A Crise de Crescimento Económico e a Agricultura. Artigo publicado em "Pela Terra"
- 1958; Gestão da Empresa Agrícola, com a colaboração do Agrónomo Mário Pereira. Publica-
ção do C. E. E. Agrária da Fundação Calouste Gulbenkian - 1959; Aplicação da Gestão à Agri-
cultura Portuguesa. Conferência proferida na Sessão de Encerramento do "Curso de Gestão
da Empresa Agrícola" promovida e publicada pelo C. E. E. Agrária da Fundação Gulbenkian
- 1959; Das Coisas Novas na Agricultura. Palestra proferida na "Semana de Estudos" integra-
da na comemoração dos 25 anos da Acção Católica, em Braga - 1959; A Família, um dos Fun-
damentos Sociais da Reorganização Agrária. Lição proferida no II Curso de Sociologia Rural

587
organizado pela J. U. C. e J. U. C. F. do I. S. de Agronomia - 1959; Posição da Agricultura no
Crescimento Económico e na Evolução Social. Conferência proferida na Sede da Secção do
Porto da Ordem dos Engenheiros - 1959; Modernização da Agricultura. Conferências, Pales-
tras e Artigos (1952 a 1959). Sá da Costa - 1960; A Agricultura no III Plano de Fomento. Con-
ferência proferida no Instituto de Estudos Superiores de Évora, publicada na "Revista Econo-
mia e Sociologia, Estudos Eborenses" - 1963; Níveis de Desenvolvimento Agrícola. Com a co-
laboração do Economista Manuel Santos Loureiro - C. E. E. Agrária da Fundação Calouste
Gulbenkian - 1963; Alterações na Vida Rural. Participação no II Encontro de Diplomados Ca-
tólicos, publicada na "Revista de Economia, Vol. XVI 2a Série n° 9, Fascículo I - 1964; A Difu-
são de Técnicas e de Conhecimentos entre os Agricultores: Aspectos Sociológicos. Participa-
ção no "Seminário sobre análise e planeamento da exploração agrícola" promovido e publica-
do pelo C. E. E. Agrária da Fundação Gulbenkian - 1964; Assistência ao Desenvolvimento na
Agricultura. Aspectos da Resistência ao Desenvolvimento na Agricultura. Comunicação apre-
sentada ao X "Congresso Beirão", realizado em Coimbra. Anál. Social Vol II, 2o Sem. 1964 -
1965; A Sociologia Rural e o Moderno Pensamento Agrário. Conferência promovida no "Cur-
so de Direito e Economia Agrários" promovido pela Faculdade de Direito de Lisboa - 1965;
Importance et dificultées Specifiques de la Recherche en Sociologie Rurale. Comunicação
apresentada no "Simpósio Euro-Mediterrânico sobre Investigação em Economia e Sociologia
Rurais" realizado em Lisboa no C. E. E. Agrária da Fundação Gulbenkian - 1966; Regiões Ho-
mogéneas no Continente Português, com a colaboração do Economista Manuel dos Santos
Loureiro. J. N. I. Industrial e C. E. E. Agrária - 1967; O Ensino Superior Agrícola e seus Refle-
xos na Agricultura. Participação no "Colóquio sobre Ensino Agrícola" organizado pela Asso-
ciação de Estudantes do I. S. de Agronomia - Agros - 1967; Perspectivas Sociológicas do Coo-
perativismo numa Agricultura em Transformação. Participação no "Curso para Dirigentes de
Cooperativas Agrícolas" promovido pela Sociedade de Ciências Agronómicas de Portugal -
1969; A Mentalidade do Agricultor e a Participação numa Agricultura em Desenvolvimento.
Palestra promovida na "Semana de Estudos da Sociedade de Ciências Agronómicas de Portu-
gal sobre Adaptação da Agricultura ao Desenvolvimento Económico no caso Português" -
1972; Importância da Educação e da Formação Profissional nas iniciativas com vista à Mo-
dernização das Estruturas Fundiárias. Participação na "semana de Estudo" acima referida -
1972; Síntese e conclusões do Ciclo de Conferências sobre Agricultura do Futuro, promovido
pelo "Centro de Gestão Agrícola do Ave" - 1972; Problemas Humanos da Extensão Rural. Par-
ticipação no I Seminário Universitário de Évora sobre Extensão Rural, promovido pelo Institu-
to Universitário de Évora - 1974; A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária. C.
E. E. Agrária da Fundação Calouste Gulbenkian - 1978; Quelques Apports à VHistoire de
1'Hirrigation au Portugal, "Commision Internacionale des Irrigations et du Drenage, Commité
Nationale Portugais" - 1980; Antiguidade e Modernidade em terras do Vale do Vez. Artigo pu-
blicado no Buletim do "Grupo de Estudos do Património Arcuense" - 1980; O Algar\>e e a Re-
gionalização do Ensino Universitário Agrícola. Participação no "Seminário da Universidade
do Algarve sobre o Papel da Universidade no Processo de Regionalização e de Desenvolvi-
mento Regional" - 1982; A Galiza e o Minho, as Fronteiras que nos unem. In "Actas do III
Colóquio Galaico-Minhoto", Vol. II do Instituto Cultural Galaico-Minhoto. Câmara Municipal

588
de Viana do Castelo - 1994; O Instituto de Economia Agrária que em 1940 Lima Basto ideali-
zou. C. E. E. Agrária da Fundação Gulbenkian, Comemoração de 25 anos de actividade - 1983;
Portugal: Que Regiões? A Perspectiva do Desenvolvimento Agrícola. Conferência realizada
no "Seminário Portugal: Que Regiões?" promovido pela Universidade do Minho - Braga -
1983; A Exposição Agrícola e a Agricultura Portuguesa em 1884. Conferência proferida nas
Comemorações do Centenário do Pavilhão de Exposições da Tapada da Ajuda. I. S. de Agro-
nomia - 1984; Agro-Sistemas, com a colaboração de Ernesto Figueiredo em "Cadernos do No-
roeste", Universidade do Minho - 1986; Maria da Fonte nos Arcos. Artigo do Buletim "Terra
do Vale do Vez" do G. E. P. A. - 1987; A Agricultura na História de Portugal. Início de uma
série de Artigos em Vida Rural - 1987; No Altar do Trevim. Participação nas "Jornadas de Cul-
tura e Turismo" da Câmara Municipal da Lousã. Revista Arunce - 1988; A Ruralidade Portu-
guesa através da História. Comunicação apresentada ao "Congresso Internacional de Turismo
no Espaço Rural" realizado em Viana do Castelo. In Correio da Natureza - 1988; Os Descobri-
mentos Portugueses e a Revolução Agrária Mundial. In Revista Arunce - 1989; Aspectos e
Perspectivas do Ordenamento Regional Português. In "O Algarve na perspectiva da Antropo-
logia Ecológica", I. N. I. C. - 1989; O Agrónomo Manuel Rodrigues de Morais e a Escola Prá-
tica de Agricultura de Moreira de Lima. Conferência proferida em Ponte de Lima e publicada
pelo Instituto Politécnico de Viana do Castelo - 1989; O Drama da Campanha do Eucalipto.
Participação no "Colóquio Eucalipto, Economia e Território" promovido pela Sociedade Por-
tuguesa de Estudos Rurais - 1990; A Serra da Lousã. Povoamento e Despovoamento?. Confe-
rência promovida na secção Florestal do I. S. de Agronomia. In Revista Arunce - 1990; A Agri-
cultura no Industrialismo de Ferreira Dias. Artigo publicado em "In Memórium J. N. Ferreira
Dias Jr." - E. D. P. - 1991; A Agricultura Portuguesa através dos Tempos. I. N. I. C. - 1991;
Um modo de contar a História do Eucalipto em Portugal. Artigo publicado em Correio da Na-
tureza - 1991; Paisagem Agrária. Colaboração na Enciclopédia Temática Pomo - 1991; Terra
de Valdevez e Montaria do Soajo. Trabalho integrado no Centro de Economia Agrária e Socio-
logia Rural do I. S. de Agronomia - Verbo - 1994; A Vinha e o Vinho na Tradição e no Futuro
da Agricultura Portuguesa. Participação em publicação promovida por diversos patrocinado-
res entre os quais a C. G. de Depósitos - 1994; A Paisagem Rural. In "Valores do Mundo Ru-
ral" de Leader - 1995; Colaboração na "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura da Verbo", na
"Polis" da Verbo, no "Suplemento do Dicionário de História de Portugal", em numerosos Pare-
ceres da Câmara Corporativa e respectivas Declarações de Voto, comentários sobre a entrega
do Prémio Quercus de 1990 em Setúbal.

589
ÍNDICE

INTRODUÇÃO 9

1 — O UNIVERSO ONDE A PRESENÇA HUMANA SE INSTALOU 15


- A criação da Vida e das Espécies Vegetal e Animal 16

2 — COMPORTAMENTO PRÉ-HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO


OU FORMAÇÃO DA ESPÉCIE DE HOMENS SOBRE A TERRA 17
- O Paleolítico 18
- A recolecção alimentar e os sistemas agro-pastoris primitivos 19
- O Coberto Vegetal 20
- O Neolítico 21
- O Megalítico 23
- Plantas pioneiras na Terra agricultada 24
- Animais pioneiros da Fauna domesticada 25
- As Ferramentas 27

3 — OS PRIMEIROS PASSOS DE UMA AGRICULTURA INSTALADA 31


- Os Fenícios 31
- Os Gregos 31
- A instalação dos Celtas 32
- Cartagineses 34
- Lusitanos e Galaicos 34

4 — O PROGRESSO DA AGRICULTURA SOB O IMPÉRIO ROMANO 37


- Ocupação colonial 37
- Reforma estrutural 38
- Cidade e Campo 39
- Transformação agrícola 39
- Hidráulica agrícola 40
- Agronomia Romana 42
- O Cristianismo 44
- Ventos de Mudança 45
- A decadência do Império 45

5 — A INVASÃO DOS GERMANOS 47


- O Cristianismo e as interpretações heréticas 48
- O impulso monástico no povoamento agrário 48
- O declínio da vida urbana 49
- A sobrevivência das Vilas Romanas 49
- O Islamismo 50
- Ferramentas agrícolas 50

6 — A INVASÃO ISLÂMICA E A INFLUÊNCIA ÁRABE 53


- A fronteira do Douro 53
- Duas Sociedades Senhoriais 55
- O Ermamento 56
- Os Normandos 57
- A fronteira do Mondego 58
- A Agronomia Árabe 58
- Retorno à Vida Urbana 60

591
- Mais guerra do que paz °1
- Vida Rural básica 6'
- Alianças: Europeia ou Islâmica? 62
- O «Livro de Agricultura» de Abu Zacaria — lahia 63
- Esquema do Tratado de Agricultura 63
- As culturas especialmente referenciadas 64
- O Campo visto pelos Poetas Árabes 64
- A Oliveira e o Azeite 65

7 _ A AGRICULTURA SUPORTE SÓCIO-ECONÓMICO DA INDEPENDÊNCIA


67
DE PORTUGAL
- A apropriação da produção campesina 67
- O Condado Portucalense 68
- A Nobreza e o Povo 69
- A charrua acrescenta-se ao arado 69
- Valdevez — onde Portugal teve princípio '0
S _ PORTUGAL INDEPENDENTE — A ALVORADA DA MONARQUIA AGRÁRIA 75
- Os primeiros Monges Agrónomos Cistercienses 75
- A passagem dos Cruzados '5
77
- Terras a povoar para os Cruzados
77
- ... e para os pobres de Lisboa
77
- O campesinato medieval
7
- Fundação da Abadia de Alcobaça 9
9 — A MONARQUIA AGRARIA 81
- O Povoamento 81
- Desenvolvimento regional 82
- O Tesouro de D. Sancho I e a essência do País 83
- A montaria 83
- As estruturas agrárias camponesas 84
- Terras a sanear e regar 86
- Cantares de amigo 86
- Os abusos nas concessões régias 87
- Com o Rei na guerra os rurais viviam no terror 88
- Talvez, o primeiro passo da Democracia 88
- Os Coutos de Alcobaça 89
- Não só o «couto» era a esperança, mas também o «fogo morto» 89
- A instalação da Corte em Lisboa 90
- Firme e esclarecida gestão pública 90
- Os Mouros Forros de Évora 91
- As finanças régias 91
- Os Forais 91
- Ainda os Monges Agrónomos de Alcobaça 92
- Os almocreves e as feiras 93

10 — O APOGEU DA MONARQUIA AGRÁRIA: D. DINIS, O LAVRADOR 95


- A Rainha Santa 95
- O «que os Fidalgos fazião como nom deviam» 95
- «A catedral verde e sussurrante» 97
- D. Dinis e o Mar 99
- A renovação dos castelos e as Ordens Militares 99
- Os Estudos gerais em Portugal 99

592
11 — ESTRUTURAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO TERRITORIAL 101
- Albergarias e Hospitais 101
- A regionalização do território 101
- A Peste Negra 103
- Uma agricultura sem escravos mouros, nem servos que a peste «libertou» 103
- As Cidades do Porto e de Lisboa. Crescimento urbano 104
- D. Inês de Castro, condenada à morte 104
- Inquirição real nos Coutos de Alcobaça 105

12 — UM DECISIVO LIMIAR DE REFORMA AGRÁRIA 107


- A partilha da presúria 108
- O trabalho inicia a conquista da propriedade 109
- As sesmarias 109
- Um sonho profético de El-Rei D. Pedro 110
- «eu lho estranharei nos corpos e nos haveres» 110
13 _ ANTECEDENTES DA LEI DAS SESMARIAS 113
- A legislação básica da Monarquia Agrária 113
- A obrigação do cultivo como condição de posse 114
- As reclamações cm Cortes 114
- Acentua-se o limiar da Reforma Agrária 115
- Diagnóstico da crise de subsistências 116

14 _ O CONTEÚDO DA LEI DAS SESMARIAS 119


- A acção interventora 119
- A mobilização de factores de produção 120
- Penas imperativas 120
- Uma sociedade rural em crise de adaptação 120
- Tabelamento de salários 121
- Trabalho agrícola obrigatório 122
- A ténue face da misericórdia 122
- Os serviços públicos para aplicação da Lei 123
- Arrolamento dos recursos humanos 123
- Advertência a eventuais opositores 124
- Restrições ao pastoreio itinerante 124
- D. Dinis, o mais novo dos filhos de D. Pedro e D. Inês de Castro 125

15 _ O TERMO DA MONARQUIA AGRÁRIA 127


- Dado o golpe no Palácio, a Revolução saiu à rua 127
- O último Cavaleiro Medieval 127
- O País em Guerra 128
- A ínclita geração 128
- A Revolução popular acabou por ampliar domínios senhoriais 128
- O milagre era Ceuta 129
- A Terra que fora berço, era espaço finito em Portugal 130
- Novas classes sociais, profissionais e urbanas 131
- O feudalismo agonizante cai sobre os camponeses de Alcobaça 132

16 — O PROGRAMA DOS DESCOBRIMENTOS 135


- As motivações 135
- A revelação dos «selvagens» 135
- A primeira planta revolucionária tropical 136
- A plataforma da Ilha da Madeira 136
- A tecnologia do açúcar exigia o escravo 137

593
- No Mar... ao longo da costa africana 139
- A tentação do Ouro 139
- A luta pela sobrevivência do senhorialismo 140
- As Ordenações Afonsinas 140
17 _ AS NAVEGAÇÕES, EM BUSCA DO DESCONHECIDO 141
- Feito isto, regresso ao Mar 141
- O luso-tropicalismo nascente 142
- O fascínio dos trópicos 142
- D. João II perde o muito amado herdeiro 143
- A partilha do Mundo 143
- Reposição de aristocratas banidos 144
- A expulsão dos Judeus 144
- O caminho marítimo para a índia 145
- Os reflexos nos monumentos e nas artes 145
- A descoberta do Brasil 145

18 —MEIO MUNDO DESCOBERTO 147


- Reformas administrativas 147
- As Misericórdias 147
- A alvorada de uma Agronomia portuguesa mundial 148
- O algodão — a fibra mais divulgada 150
- A presença dos franceses no Brasil 151

19 — O CONVÍVIO COM DIVERSOS POVOS 153


- A primeira planta revolucionária do Continente americano 154
- Casamentos reais. Alianças europeias 155
- O comércio do Oriente 156
- As ilhas atlânticas 156
- O Terreiro do Trigo 157
- Mais uma vez os Coutos de Alcobaça 158
- A colonização do Brasil 159

20 —CONSEQUÊNCIAS DA ABERTURA DE PORTUGAL AO MUNDO 161


- O numeramento de 1527 161
- A Inquisição 163
- Companhia de Jesus 164
- Consequências sociais da expansão portuguesa 164
- A Universidade de Coimbra 167

21 — A PERDA DA INDEPENDÊNCIA NACIONAL 169


- Os Celeiros Comuns 169
- A mandioca, revolução agrária no continente africano 169
- O plano de guerra contra Marrocos 170
- O desastre de Alcácer-Quibir 170
- O Cardeal-Rei D. Henrique 170
- O rei de Portugal é Castelhano 171
- Reis de Castela, a governarem Portugal 172
- O domínio marítimo ibérico 172
- Os pedaços de Portugal isolados no meio do Mar 172
- A dimensão do País prisioneiro 173

22 — O ARRANQUE DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA EM PORTUGAL 175


- O Milhão revolucionário 175

594
- Novo sistema agrário 177
- O regadio camponês 178
- A construção dos campos de regadio 180
- As alterações no Habitat e na Casa Rural 181
- Estabulação do gado 182
- Mais alimento e o «bicho santo» 182
- A importância dos efectivos pecuários no trabalho e na guerra 184

23 —A REVOLUÇÃO AGRÁRIA EOS PORTUGUESES NO MUNDO 189


- As Ordenações Filipinas 189
- O «sebastianismo» 189
- Os Holandeses no Brasil 189
- As especiarias perdidas que a Agronomia portuguesa reencontrava 190
• O Cajueiro, planta de alta qualidade 191
- O Coqueiro, uma das mais preciosas plantas tropicais 191
- O Ananazeiro, aroma dos trópicos 191
- O Amendoim, cultura de grande capacidade de expansão 191
- De novo, Portugal independente 191
- A paz Filipina terminara 192
- Frutos diversos, tropicais 192
- A grande diversidade dos feijoeiros 193
- Conflitos palacianos, a manipularem o sentimento popular 193
- As últimas Cortes. O despotismo 194
- El-Rei D. Afonso VI prisioneiro 194
- A versão doce da histórica laranja amarga 194
- A bananeira, cultura escravocrata, depois de abolida a escravatura 195

24 — O AJUSTAMENTO A NOVAS REALIDADES 197


- No Brasil os africanos eram colonos forçados 197
- O ouro do Brasil 198
- O Tabaco, a «erva santa» de drogados 198
- A Videira, planta colonizadora e civilizacional 199
- A diversificação das actividades económicas 201

25 — A ALVORADA DA INDUSTRIALIZAÇÃO 203


- A lã e o linho. Os tecidos 203
- O Esparto e o Cânhamo, Fibras para Cordoaria 205
- A Seda, a mais delicada das Fibras 206
- Severim de Faria, precursor do industrialismo 206
- O mercantilismo industrial do Conde da Ericeira 207
- A morte do Conde da Ericeira — colapso da industrialização nascente 208
- A influência britânica 208
- O Café, bebida estimulante, a mais difundida 210
- Um vínculo e morgado em 1700 211

26 — O DESPOTISMO «ESCLARECIDO» 215


- A grandeza dos monumentos. A frustração da indústria 215
- A vocação vitivinícola da agricultura portuguesa 216
- Os meninos de Palha vã 218
- Uma sociedade corrompida pelo ouro 218
- O Cacaueiro, que produz o «manjar dos Deuses» 219

27 — O DESPOTISMO «ILUMINADO» 221


- O terramoto de 1755 221

595
- A primeira região vitivinícola demarcada do Mundo 221
- A consolidação do Poder Absoluto 224
- Reformas na economia e na vida social 225
- Reformas no Ensino 226
- Restrições inovadoras quanto a diferentes escravaturas 227

28 — O TERMO DO DESPOTISMO 231


- Os Estados Unidos da América 231
- A primeira revolta colonial no Brasil 232
- Pina Manique, Intendente da Polícia 232
- A lógica da formosa Rainha, em tempos tormentosos 234

29 — CULTURAS DE ELEVADO INTERESSE SOCIAI 235


- A formação da estrutura agrária duriense 235
- Trabalho migratório no Douro 236
- O Arroz, suporte alimentar de meio mundo 237
- O Castanheiro, árvore alimentar e de madeira de qualidade 239

30 — AS INVASÕES FRANCESAS 241


- A Revolução Francesa 241
- A revolta dos escravos negros de S. Domingos 242
- Envolvimento em lutas europeias 242
- A Côrte transferida para o Brasil 243
- O exército de Junot em movimento 243
- A revolta popular contra Junot 245
- As invasões frustradas de Soult e de Massena 247
31 _ DO AUXÍLIO BRITÂNICO À REVOLUÇÃO LIBERAL 251
- Uma dinâmica autónoma para o Brasil 251
- O chá, misteriosa planta do Oriente 252
- Portugal na penumbra da recuperação europeia 252
- A Revolução Liberal 253

32 — O PAÍS AGRÁRIO COM O QUAL O LIBERALISMO SE CONFRONTOU 257


- As petições ou reivindicações dos povos 257
- Denúncia do anacronismo dos Forais 258
- Súplicas quanto à abolição do regime senhorial 258
- Pedidos de implantação de um processo gestionário actuante 258
- Queixas quanto às terras comunais 259
- A condenação e a defesa do Livre Pastoreio 260
- Breve antologia de petições 261
33 _ TENTATIVAS DE IMPLANTAÇÃO DO REGIME LIBERAL 265
- Leis decretadas para além das restrições dos tempos 265
- Prelúdio do drama florestal português 266
- A Constituição de 1822 269
- O desencanto em face do novo regime 271

34 — DE NOVO A MONARQUIA ABSOLUTA 273


- A prodigiosa «maçã da terra» 273
- Ainda o drama florestal português 274
- O Mel, o mais antigo dos edulcurantes 277
- O Governo «miguelista» 278

596
35 — A GUERRA CIVIL 279
- Os preparativos para a luta armada 279
- O desembarque 280
- As «leis terríveis» de Mouzinho da Silveira 280
- A «sombra» dos Mosteiros 286
36 _ PRIMÓRDIOS DA IMPLANTAÇÃO DO REGIME LIBERAL 287
- A extinção das Ordens Religiosas 287
- O fim dos Monges de Alcobaça, que já nada tinham de Agrónomos 290
- E o Povo? 292
- A casa rural do «maçónico» 292
- A Rainha D. Maria II 293

37 — AS REFORMAS ESTRUTURAIS AGRÁRIAS DA REVOLUÇÃO LIBERAL 295


- As reformas iniciais 295
- A incorporação dos Bens da Igreja 297
- Primeira fase da aplicação da legislação agrária 297
- Os desastres da aplicação da «Revolução Agrária» de Mouzinho 300
- A exploração agrícola 301
- A regionalização 306

38 — A REVOLTA CAMPONESA 309


- O vazio da expulsão dos Frades 309
- As reformas «setembristas» 311
- O Governo de Costa Cabral 311
- A Maria da Fonte 312
- A Patuleia 315

39 — A REGENERAÇÃO 317
- A Instrução 317
- O estádio da mudança. O arranque da inovação 317
- O capitalismo instalado 320
- A alienação dos bens de mão morta 321
- O Ensino Agrícola 321
- A emigração e a escravatura 323
- O banditismo organizado 324

40 — OS VOLANTES DO CAPITALISMO AGRÁRIO 327


- A interdição do livre pastoreio 327
- O desmantelamento dos baldios 328
- Nos campos de Portugal era livre fazer-se o que se fizesse 329
- O «limiar da Reforma Agrária» que a Revolução Liberal desprezou 334

41 — ADAPTAÇÃO AO LIBERALISMO POLÍTICO E ECONÓMICO 337


- A viagem de D. Pedro V ao Alentejo 337
- As novas estruturas agrárias do Norte 339
- A abolição da «Pena de Morte» 340
- O Campesinato e os Senhorios envolvidos no capitalismo agrário 341
- Sob o signo da Morte 344

42 — PENOSA ESCALADA DA MODERNIDADE 345


- O esforço de regionalização prossegue 345
- A qualidade da vida rural 346
- O luso-tropicalismo em África 349

597
- Caminho aberto ao latifundismo 351
- Máquinas agrícolas e ferramentas 354
- A Agricultura e a Instrução sem Ministérios 355
- A perspectiva internacional 356

43 — O RURALISMO TRIUNFANTE 359


- Herculano e Camilo. Vale de Lobos e S. Miguel de Seide 359
- O ruralismo na Literatura e na Arte 359
- A Exposição Agrícola de 1884, na Tapada da Ajuda, em Lisboa 361
- Jaime Batalha Reis, Professor de Agronomia 364

44 _ A MARCHA DA ECONOMIA AGRÁRIA. UMA SÓ POLÍTICA 367


- O aproveitamento agrário do território 367
- A agricultura no comércio externo 367
- A viticultura, sob a incidência de calamitosas pragas 368
- O Crédito Agrícola e o Associativismo 369
- A política do Trigo 371
- Novas estruturas espontâneas de produção 372

45 — O ENQUADRAMENTO DO PAÍS RURAL 377


- A escravatura no Brasil 377
- Retorno a África 378
- O Gungunhana 380
- O cemitério dos Boers 380
- A guerra dos Mocubais 381
- Os Mucancalas 381
- Os «brasileiros» 382

46 — O ARRANQUE NOVECENTISTA PARA A MODERNIDADE 385


- «Felicidade pela Agricultura» 385
- O projecto de Lei do Fomento Rural de Oliveira Martins 388
- Sindicalismo agrário 388
- A evolução do problema florestal 389
- As últimas cabras do Gerês 390
- O Primeiro Congresso Agrícola 391

47 — AS GRANDES INDÚSTRIAS AGRÁRIAS 397


- A indústria de Moagem de cereais 397
- A poderosa indústria do papel 399
- A indústria de lacticínios 407
- O industrialismo novecentista 412

48 — PROGRESSOS AGRÍCOLAS REGIONAIS 417


-AAguçadoura 417
- A Gafanha 419
- A «Outra Banda» 421
- Primores do Algarve 424
- Mudança cooperativa no Oeste 427

49 — A REPÚBLICA IMPLANTADA 431


- A morte de um dos maiores naturalistas portugueses 431
- Ezequiel de Campos, Deputado 433
- A «Mobilização Agrícola» de Lima Basto, Ministro do Trabalho 434
- O Casal de Família 436

598
- Ezequiel de Campos, Ministro da Agricultura 439
- A Reforma e a Contra-Reforma 442
- O sonho da protecção às Aves 447

50 — ENTRE AS DUAS GUERRAS MUNDIAIS 451


- O Inquérito Económico Agrícola de Lima Basto 451
- A utopia de Mário de Castro 454
- Hidráulica agrícola 455
- Os projectos de rega de iniciativa pública 465
- Colonização Interna 473
- Povoamento Florestal 479
- Coordenação Económica 483
- Ainda a regionalização de sempre 494
- Um Verão no Alentejo 496
- O «Plano de Fomento Agrário» 497

51 — A ALVORADA DO INDUSTRIALISMO CONTEMPORÂNEO 499


- Os pioneiros do industrialismo 499
- O Queijo, leite conservado e requinte alimentar 507
- Enchidos e Presuntos 509
- A frescura e a graça do Morango 510
- O Tomateiro — a «pom me d'amour» ou o «pomodoro» 511
- Níveis de emprego na agricultura 512
- Os Planos de Fomento 516
- Da Fruticultura promíscua ao Pomar industrial moderno 522
- Alterações na exploração pecuária: a Zootecnia 528

52 — OS ESTEIOS DO CONSUMISMO CONTEMPORÂNEO 533


- Os Óleos Alimentares, imitação do Azeite 533
- A Margarina, cópia da Manteiga 535
- As Proteaginosas e outras fontes de proteína vegetal 537
- A «Revolução Verde» e o Triticale 541
- O problema dos Baldios 542

53 — A SOMBRA E A ESPERANÇA 547


- Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento 548
- Da O.E.C.E. ao «Mercado Comum» 551
- A Protecção da Natureza : 553
- A Defesa do Ambiente 559

54 — A QUESTÃO AGRÁRIA DE FUNDO 565


- Associativismo Agrícola 565
- Reflexos da "Revolução de Abril" na Agricultura 568
- As duas estruturas agrárias do País 569
- O drama da inadequação nacional da chamada "Reforma Agrária" 575
- De novo o "Limiar da Reforma Agrária" 583

OBRAS DO AUTOR 587

599
O Professor Eugénio de Castro Caldas ensinou
a gerações sucessivas de engenheiros agrónomos
que o desenvolvimento sustentado do mundo rural só
é possível se tiver em conta as realidades concretas
de cada homem, de cada família, de cada aldeia.
E para se perceber essa realidade é preciso
estudá-la, e entendê-la. A ele se deve a introdução
da sociologia rural nos curriculum dos cursos de
agronomia e a criação do conceito de que desenvolver,
porque significa mudar, exige a participação das
pessoas interessadas.
Uma vida inteira a estudar a história e a realidade da
agricultura portuguesa legou-nos a herança inestimável
de conhecimento e capacidade de análise de oito
séculos da história dos campos portugueses. A herança
do combate de uma vida, na defesa do mundo rural
como identidade cultural indissociável do carácter
da nação portuguesa.
É com muito orgulho que publicamos "A Agricultura
na História de Portugal" do Professor Eugénio de
Castro Caldas. O orgulho de participar num legado
determinante para o futuro dos campos portugueses
e das suas gentes.

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