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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

AS NOIVAS DE SATÃ:
ordem jurídica e bruxaria entre o Directorium
Inquisitorum (1376) e o Liber Razielis (1259)

LARISSA OLIVEIRA GREGÓRIO

CUIABÁ-MT
2018
LARISSA OLIVEIRA GREGÓRIO

AS NOIVAS DE SATÃ:
ordem jurídica e bruxaria entre o Directorium
Inquisitorum (1376) e o Liber Razielis (1259)

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do


Programa de Pós-Graduação em História, do Instituto de
Geografia, História e Documentação – IGHD, da
Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito
parcial à obtenção de título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Leandro Duarte Rust


Co-orientador: Prof. Dr. Francisco de Paula Souza de
Mendonça Júnior

CUIABÁ-MT
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

G821n Gregório, Larissa Oliveira.


As Noivas de Satã : ordem jurídica e bruxaria entre o
Directorium Inquisitorum (1376) e o Liber Razielis (1259) / Larissa
Oliveira Gregório. -- 2018
115 f. ; 30 cm.

Orientador: Leandro Duarte Rust.


Co-orientador: Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-
Graduação em História, Cuiabá, 2018.
Inclui bibliografia.

1. Bruxaria. 2. Discurso de Inversão. 3. Jurisdição. I. Título.

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.


GREGÓRIO, L. O. As Noivas de Satã: Ordem Jurídica e Bruxaria entre o Directorium
Inquisitorum (1376) e o Liber Razielis (1259). 2018. 114p. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,
2018.

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo a compreensão do processo de judicialização discursiva


da bruxaria no final do século XIV. Para tal, analisamos o Directorium Inquisitorum, manual
inquisitorial escrito pelo aragonês Nicolau Eymerich em 1376. O conteúdo presente nesse
manual não se limita a categorizar heréticos, heresias e os métodos inquisitoriais no trato
com esses. Eymerich vai além, expandindo os limites jurisdicionais da Inquisição ao inserir
um discurso condenatório que inverte o papel social de práticas e obras que eram, até então,
legitimadas. E é como um dos objetos dessa condenação que nos deparamos com a nossa
segunda fonte: um manuscrito judaico conhecido por Liber Razielis, uma obra
primeiramente relacionada aos anjos, mas que no Manual Inquisitorial é associada aos
demônios. A mudança na percepção desse manuscrito representa um excelente exemplo do
discurso de inversão que perpassa a condenação dos grupos que, posteriormente,
constituíram a categoria de bruxaria. São, justamente, essas mudanças jurisdicionais que
Nicolau Eymerich, como produtor do direito, tentou efetivar – e que acabaram por servir de
embasamento para a constituição da bruxaria enquanto delito a ser combatido dentro da
esfera inquisitorial –, que esta pesquisa analisa.

Palavras-chave: Bruxaria; Discurso de Inversão; Jurisdição;


ABSTRACT

This dissertation aims to understand the discursive judicialization process of witchcraft in


the late 14th century. To this end, we analyzed the Directorium Inquisitorum, the manual
inquisitorial written by Aragonese Nicholas Eymerich in 1376. The content in this manual is
not limited to categorizing heretics, heresies and inquisitorial methods in dealing with these.
Eymerich goes beyond, expanding the jurisdictional limits of the Inquisition by entering a
condemnation speech that reverses the social role of practices and works that were, until
then, legitimized. And it is as one of the objects of this condemnation that we meet our
second source: A Jewish manuscript known as Liber Razielis, a work first related to the
Angels, but in the Inquisitorial Handbook is associated with the Demons. The change in the
perception of this manuscript represents an excellent example of the reversal speech that
passes the condemnation of the groups that subsequently constituted the category of
witchcraft. It is precisely these judicial changes that Nicholas Eymerich, as a producer of the
law, tried to effect – and that they eventually served as a foundation for the Constitution of
witchcraft and the offence to be fought within the inquisitorial sphere – that this Research
analyzes.
Keyword: Witchcraft; Reversal Speech; Jurisdiction;
A Benjamin, que transforma trevas em luz e
enche de alegria os meus dias.
AGRADECIMENTOS

O fechamento de um ciclo tende a me levar a longos períodos de reflexão. Me


ocupo revisitando memórias e analisando momentos desses tão longos – porém tão curtos –
anos de mestrado. E, como creio que a gratidão é uma das melhores virtudes a ser cultivada,
não posso deixar de proferir o meu muito obrigada para aquelas pessoinhas tão especiais na
minha vida e tão essenciais nesse percurso.
À minha mãe, Clarice. Como ser humano imperfeito que sou, nunca serei capaz
de retribuir o tanto que lhe devo. Foram suas broncas, conselhos e carinhos que me tornaram
a pessoa que sou hoje. E é para ti que volto meus olhos sempre que procuro um exemplo de
quem quero ser. Para mim, não há lugar melhor que em tua companhia!
Ao meu irmãozinho, Benjamin, que chegou nesse mundo em um dos períodos
mais sombrios que já passei e desde então vem preenchendo o vazio que ficou no meu
coração com todo o tipo de cor. Você me devolveu o ânimo e me [re]despertou para a vida!
Ao Handrey, pela paciência e atenção com que sempre me escuta divagar sobre
as descobertas acadêmicas, os seriados ruins e os livros pelos quais me apaixono. Moço, é
impossível mensurar o quanto sou grata ao universo por ter permitido que nossos corações
se encontrassem.
À Tiffs, Kate e Jéh (e o Apolo!), que me distraíram nos momentos de desespero
e que sempre me incentivaram a continuar. Meninas, se me resta alguma sanidade depois
desse árduo processo, é graças a vocês!
Ao Allan, que vem compartilhando essa trajetória de pesquisa comigo desde a
graduação. Foi esse elo familiar, nesse redemoinho de prazos apertados, disciplinas
intermináveis e pesquisa noites à fio, que me permitiu permanecer firme e rir do meu próprio
pânico.
Aos meus amigos, que sempre viram mais em mim do que eu poderia enxergar.
Aléxia, Keila e Kevyn, vocês foram minha maior torcida e esse apoio é inestimável.
Aos meus professores, que ajudaram a moldar essa mente inquieta e tornar esta
pesquisa inteligível. Especialmente ao meu co-orientador, Francisco, e aos membros da
banca, Juan Paulo e Maria Filomena.
Ao meu orientador, amigo e conselheiro. Leandro, você me inspira a ser uma
historiadora melhor todos os dias, e o respeito e a confiança que tenho por ti vão muito além
da academia. São seis anos (e contando) de orientação, em que foi preciso muita paciência,
dedicação, incentivo, conselhos, choros e alegrias. Cada novo obstáculo que o mundo
acadêmico jogou em meu caminho só pode ter sido superado com a sua ajuda. Você apostou
em mim anos atrás e continuou fazendo sucessivamente e isso, Rust, não há como agradecer
o bastante. Que esse ciclo se fechando seja só mais um nessa parceria que começou pela
universidade, mas que eu levo para a vida!

Gratidão!
“A história é, na verdade, pouco mais do que o
registro dos crimes, das loucuras e das
desgraças da humanidade”.
Edward Gibbon

“Não há melhor maneira de exercitar a


imaginação do que estudar direito. Nenhum
poeta jamais interpretou a natureza com tanta
liberdade quanto um jurista interpreta a
verdade”.
Jean Giraudox
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12

CAPÍTULO 01: EM BUSCA DO INQUISIDOR: A IDEIA DE BRUXARIA E A


TRAJETÓRIA DE PODER DE NICOLAU EYMERICH ............................................ 29
1.1 Honrai o texto, temei o inquisidor: a reação de Eymerich ........................................ 29
1.1.2 Raimundo Lúlio, ou uma obra em trânsito entre estabelecidos e outsiders da
sociedade cristã ............................................................................................................ 36
1.1.3 Um foco de tensões entre realeza e Inquisição: a trajetória intelectual do filósofo
Raimundo Lúlio sob a mira de Eymerich..................................................................... 44
1.2 Modelando a hipótese: a ideia e o nome “bruxaria” como objeto de pesquisa......... 48

CAPÍTULO 02: AS RELAÇÕES DE PODER NAS BARRAS DA JURISDIÇÃO: O


DIRECTORIUM INQUISITORUM COMO ORDENAMENTO JURÍDICO .............. 53
2.1 Usos inquisitoriais do passado: o inquisidor e a produção da tradição .................... 53
2.2 O sentido da jurisdição no quadro da Igreja Medieval ............................................. 57
2.3 Um pastor de serpentes: instalando a jurisdição inquisitorial no Directorium
Inquisitorum .................................................................................................................... 66
2.4. Invertendo os limites da crença: magos, blasfemadores, adivinhos e o capo da ideia
“Bruxaria” ....................................................................................................................... 76

CAPÍTULO 03: O INQUISIDOR EXPULSA OS ANJOS DO PARAÍSO: O LIBER


RAZIELIS COMO REFERENCIAL DAS PRÁTICAS DE INVERSÃO DA
REALIDADE ..................................................................................................................... 81
3.1 De Alfonso X a Salomão: um livro e os meandros do esoterismo na cultura cristã
ibérica.............................................................................................................................. 84
3.2 Alfonso X e a centralidade dos tratados de magia......................................................90
3.3 A lógica da criminalização como um mundo invertido: Nicolau Eymerich e a
estigmatização das relações com a natureza ................................................................... 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 106


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 109
12

INTRODUÇÃO

“Feitiçaria é o molho que os tolos


espalham sobre o fracasso para
esconder o sabor de sua
incompetência”.

(George R. R. Martin)

O trabalho apresentado nesta dissertação vem sendo desenvolvido


desde o ano de 2012, graças ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC) da Universidade Federal de Mato Grosso. Durante o período de
graduação, nos empenhamos em localizar a ideia de bruxaria no livro conhecido
como Directorium Inquisitorum, concluído pelo inquisidor aragonês Nicolau
Eymerich no ano de 1376, objetivando compreender as diversas facetas conceituais
do mesmo, seus fundamentos históricos, bem como mapear mudanças do discurso
inquisitorial ao abordar os diversos grupos relacionados – por ele, Eymerich – à
magia. Entretanto, a pesquisa, como deve ser, amadureceu com o passar dos anos
e, em paralelo às preocupações com a história da bruxaria, nos deparamos com o
crescimento da jurisdição inquisitorial como tema e objeto desta pesquisa.
Portanto, o trabalho de pesquisa exposto ao longo dessas páginas tem
como problema norteador a percepção das mudanças jurídicas que Nicolau
Eymerich – como produtor do direito – efetivou e que serviram de embasamento
para a constituição da bruxaria como delito a ser combatido dentro da esfera
inquisitorial. No entanto, essa envergadura para a problemática do ordenamento
jurídico medieval não significa abandonar as questões conceituais que perpassam o
uso do termo bruxaria. Especialmente porque a hipótese por nós defendida é de
que, no caso aqui considerado, a inscrição da bruxaria como categoria do direito
13

teria ocorrido, fundamentalmente, como discurso racional de inversão de categorias


já existentes, tendo sido um processo dominado por razões jurisdicionais.
Ou seja, nós acreditamos que o processo de criminalização da bruxaria
é decorrente de uma inversão discursiva que modificou o papel representado pelas
práticas mágicas1 na sociedade cristã ocidental dos séculos XIII e XIV. Esse jogo
de inversões em que Eymerich estava inserido – do qual ele era, como mostraremos
nos capítulo que se seguem, ao mesmo tempo um protagonista e um efeito colateral
– é importante para compreender como o discurso que emerge da leitura do
Directorium Inquisitorum foi constituído, especialmente em se tratando das
transformações na relação entre Inquisição e práticas mágicas. Entretanto, antes de
mergulharmos na análise documental, algumas questões conceituais precisam ser
debatidas.
A primeira delas está na localização dos limites entre a magia2 e a
religião. Ao considerarmos que “a religião é, no sentido próprio, um “quadro” que
permite interpretar ou justificar qualquer ação, qualquer fenômeno”3, observamos
que a compreensão da magia para a sociedade cristã ocidental de 1300 encontrava-
se fortemente relacionada à maneira com que a Igreja Católica a entendeu. Em
teoria, tal linha é traçada por meio da distinção da natureza dos fenômenos: magia
é de inspiração demoníaca, religião é guiada por Deus4. Porém, na prática, havia
grande dificuldade em se determinar o que era próprio de demônios e o que era
próprio das forças naturais, obras divinas. A partir do século XII, a difusão do saber
clássico, sobretudo da filosofia grega, trouxe para o bojo da cultura eclesiástica uma
série de pontos de atrito entre as noções de natureza, pecado, lei divina, autoridade
e hierarquia. Os contatos mais intensos com as visões naturalistas que Aristóteles e
outros pensadores cultivavam sobre o homem e o mundo ajudaram a modificar
noções da tradição5 cristã e a deslocar tantas outras. Após o ano de 1250, tornaram-

1
O que denominamos de práticas mágicas nesta dissertação refere-se, grosso modo, aos grupos
condenados por Eymerich como demoníacos: adivinhos e videntes heréticos, mágicos heretizantes,
necromantes, astrólogos, astrônomos, alquímicos, invocadores do diabo, demonólatras.
2
É preciso ressaltar que não se pode falar de apenas um conceito para magia, pois a experiência
mágica varia de acordo com a sociedade e a época em que se desenvolve.
3
BOLOGNE, Jean Claude. Da Chama à Fogueira: Magia e Superstição na Idade Média. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1993, p. 185.
4
RIDER, Catherine. Magia e Religião na Inglaterra Medieval. São Paulo: Madras, 2014, p. 20.
5
O conceito de tradição será melhor aprofundado no segundo capítulo.
14

se cada vez mais sensíveis as pressões para repensar, reformular ou restaurar os


significados que as relações com a natureza assumiam (ou poderiam assumir) no
interior da cultura eclesiástica. Esse contexto atingiu em cheio a magia, a filosofia
natural e mesmo a cosmologia6. Como resultado desse ambiente irrequieto e eivado
de mobilizações, os homens da Igreja encontraram-se questionando o papel das
adivinhações e das curas religiosas – e do responsável por oferecê-las. Com a
condenação de tais práticas, o objetivo dos clérigos era reservar o direito da Igreja
de determinar quem poderia realizar – por meio de profecias e milagres – tais atos7.
A bruxaria, por sua vez, surge como uma ramificação da magia8 (sendo
muitas vezes utilizada como um termo alternativo para esta). Porém, não podemos
reduzir a magia à um mero sinônimo de bruxaria, pois “magia era primeiramente
uma ofensa moral em vez de um crime”9. Já no caso da segunda, essa surge como
um delito tão condenável que ofendia não somente a instituição eclesiástica, como
também poderes seculares. Ademais, se conseguimos distinguir os elementos
mágicos tanto da religião quanto da bruxaria, no caso dessa última, não podemos
dissociá-la da religião10. Isso ocorre porque a própria estrutura conceitual do
discurso sobre a bruxaria é baseada em valores cristãos. O diabo cristão, por si só,
é uma entidade religiosa e a própria demonologia é inconcebível sem os valores
religiosos.
No entanto, a ideia de bruxaria é algo que divide a historiografia em
diversos caminhos, decorrentes dos vários significados que esse termo assumiu ao
longo do tempo. Com isso, não podemos tomá-la por um conceito consolidado e
fechado. Ao contrário, suas matizes interpretativas são tão diversas que julgamos
necessário apresentar uma breve síntese de algumas dessas correntes, que dividimos
em cinco grandes conjuntos temáticos: 1) bruxaria como religião primitiva, 2)
bruxaria como cultura popular, 3) bruxaria como História das Mulheres, 4) bruxaria

6
HASKINS, Charles H. The Renaissance of the Twelfth Century. Cambridge: Havard University
Press, 1993; SPINELLI, Miguel. Herança grega dos Filósofos Medievais. São Paulo: Hucitec,
2015.
7
RIDER, Magia e Religião..., p. 20.
8
É preciso apontar, no entanto, que a magia representa uma categoria que abrange muito mais
práticas, crenças e fenômenos que as que aqui denominamos de bruxaria.
9
RIDER, Magia e Religião..., p. 28.
10
CLARK, Stuart. Pensando com Demônios: A ideia de Bruxaria no Princípio da Europa
Moderna. São Paulo: Edusp, 2006, p. 553.
15

como mentalidade demonológica, 5) bruxaria como discurso. Objetivamos, com


isso, elucidar a razão pela qual a bruxaria como um discurso jurídico racional,
respaldado pela figura de Satã, nos parece a melhor hipótese explicativa para se
compreender o processo de criminalização das práticas mágicas em Nicolau
Eymerich11.
O primeiro conjunto, a bruxaria como a sobrevivência de uma religião
pré-cristã, possui suas raízes nas ideias de fertilidade do antropólogo escocês James
George Frazer, que em 1890 publicou a primeira edição da obra “O Ramo de Ouro”,
em que se debate a figura do “deus imolado” e a evolução do pensamento humano
– de mágico para religioso e de religioso para científico. As questões apresentadas
por Frazer influenciaram antropólogos, psicólogos, filósofos e diversos outros
estudiosos, dentre os quais, destaca-se Margaret Alice Murray (1863-1963), uma
antropóloga e egiptóloga inglesa que, durante o período das Grandes Guerras
Mundiais, desenvolveu pesquisas relacionadas à história da bruxaria.
Murray defendeu a tese de que por toda a Europa sobreviveu um culto
pré-cristão ao deus chifrudo da fertilidade – ou Dianus –, em que seus elementos
essenciais foram preservados e não houve nenhuma, ou quase nenhuma, influência
cristã. Assim, o que os cristãos chamavam de bruxaria teria sido, na verdade, a
sobrevivência do Culto Diânico, também conhecido como bruxaria cerimonial ou
bruxaria folclórica, e o diabo nada mais era que o deus Dianus. Aqueles que
defendem a hipótese de Murray acreditam que esse culto existiu pelo menos até o
século XVI12. Sua primeira obra voltada a este assunto foi “O Culto das Bruxas na
Europa Ocidental” (1921), seguido por “The God of the Witches” (1930) e “The
Divine King in England: A Study in Anthropology” (1954), além de uma longa
série de artigos e uma entrada na Enciclopédia Britânica de 1929.
No entanto, apesar de ser improvável que o cristianismo tenha destruído
todos os vestígios de cultura pagã, é fantasioso acreditar que um culto, como o

11
A bruxaria com a qual lidamos nesta dissertação refere-se, exclusivamente, àquela ocorrida no
século XIV (podendo ter alguma referência do período denominado de Caça às Bruxas – Séc. XV –
XVII) na Europa Ocidental, especialmente na região que hoje corresponde à Península Ibérica. Não
adentramos, portanto, o terreno das religiões neopagãs, comumente denominadas de Bruxaria (como
é o caso da Wicca), nem dos fenômenos de ocultismo, de magia ritual ou das seitas satânicas.
12
MURRAY, Margaret Alice. O Culto das Bruxas na Europa Ocidental. São Paulo: Madras
Editora Ltda., 2003, p. 15-24.
16

apresentado por Murray, teria sobrevivido por todo esse tempo com nenhuma, ou
quase nenhuma, influência cristã. De fato, não há evidência alguma que sustente a
ideia de que uma religião pagã bem estruturada – da organização de seus cultos até
a existência de uma hierarquia própria – tenha existido e sobrevivido pela Idade
Média13. Especialmente porque

O conjunto de crenças e práticas religiosas, variáveis no tempo e


conforme as regiões, que a ciência dos séculos XIX e XX
escolheu designar como paganismo, jamais esteve estruturado
como um sistema religioso coerente, com características e
agentes facilmente identificáveis Pelo contrário, ainda que
devamos considerar os limites do processo de cristianização
durante a Idade Média, como sugere Jean Delumeau2 , é
necessário reconhecer que as diversas formas de expressão
religiosa das camadas leigas da população estavam longe de ser
anticristãs14.

Jeffrey Russell chega a afirmar que “os murrayistas pedem-nos para


engolir um sanduíche deveras peculiar: um grande pedaço de evidência errada entre
duas fatias de evidência nenhuma”15. O que se justifica quando analisamos o
método utilizado pela antropóloga: Murray baseou suas interpretações em leituras
extremamente literais dos registros judiciais e das crônicas sobre bruxas escritas na
época, além de algumas evidências arqueológicas16. A própria autora afirma que
não se arriscou a fazer pesquisas para além da Grã-Bretanha, pois, diz ela, “o
conceito de bruxaria parece ser o mesmo em toda a Europa Ocidental” 17. Ao final,
todas as evidências por ela levantadas são facilmente contestadas. Assim, ao invés
de provar a existência da religião do deus da fertilidade, a antropóloga realizou uma
combinação heterogênea de diversas religiões pagãs do mundo, criando o culto da

13
MURRAY, O Culto das Bruxas na Europa..., p. 47-48.
14
PEREIRA, Rita de Cássia Mendes. Da Irrealidade dos Atos Mágicos ao Pacto Satânico: Magia,
Bruxaria e Demonologia no Pensamento Eclesiástico. Simpósio Internacional de Estudos
Inquisitoriais. Salvador, ago., 2011, p. 01. Disponível em:
<http://www3.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wp-content/uploads/2012/01/Rita-Pereira.pdf>.
Acesso em: 25 de maio de 2017.
15
RUSSELL, Jeffrey B.; ALEXANDER, Brooks. História da Bruxaria. São Paulo: Aleph, 2008,
p. 48.
16
WHITEHOUSE, Ruth. Margaret Murray (1863-1963): Pioneer Egyptologist, Feminist and
First Female Archaeology Lecturer. Disponível em: < http://www.ai-
journal.com/articles/10.5334/ai.1608/>. Acesso em: 20 de maio de 2017.
17
MURRAY, O Culto das Bruxas na Europa..., p. 13.
17

fertilidade ao deus Dianus18. A despeito de ter sido fortemente criticada pelos


estudiosos da bruxaria, e da sua tese ter sido completamente descartada na década
de 1970, Murray obteve recepção favorável do público. Sua tese, inclusive,
desempenhou uma forte influência na formação dos movimentos neopagãos
modernos, especialmente na religião Wicca19.
Mesmo que não seja possível falar na permanência de um culto pagão
praticamente intocado pelo cristianismo, diversas características dessas religiões
pré-cristãs resistiram e se adaptaram ao processo de cristianização, sendo muitas
delas englobadas pela cúpula católica como parte da religião. No entanto, nem todas
essas propriedades foram bem quistas e, para os defensores20 desse segundo
conjunto temático – a bruxaria como cultura popular – são esses costumes pagãos
rejeitados pela igreja que serviram de respaldo para a criminalização da magia. Essa
é a interpretação21 que provavelmente possui maior influência da antropologia22
para explicar a bruxaria.
Para os autores dessa abordagem, aquilo que fora chamado pela Igreja
como “relações demoníacas” constituíam, na verdade, o uso supersticioso de
determinados itens próprios da cultura pagã, mesclados com crenças e credos do
cristianismo. E isto só seria possível porque ela já estava presente, de forma
palpável, no mundo europeu pré-cristão. A bruxaria seria, então, uma mistura de
práticas mágicas e tradições da cultura popular em que a associação à figura
demoníaca de Satã, o inimigo de Deus, só ocorreria quando a ortodoxia católica
passasse a visualizar neste culto um opositor à “verdadeira fé”.

18
MURRAY, O Culto das Bruxas na Europa..., 47.
19
WHITEHOUSE, Ruth. Margaret Murray (1863-1963): Pioneer Egyptologist, Feminist and
First Female Archaeology Lecturer. Disponível em: < http://www.ai-
journal.com/articles/10.5334/ai.1608/>. Acesso em: 20 de maio de 2017.
20
Nesta dissertação abordamos principalmente as ideias de Carlo Ginzburg em “História Noturna:
decifrando o Sabá” (1991) e Jeffrey Richards em “Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade
Média” (1993).
21
Os autores aqui tratados se diferenciarem em alguns pontos, nós optamos por abordá-los de
maneira única, inserindo-os numa mesma “teoria sobre a bruxaria”. Pois, no que interessa a este
trabalho, eles tratam a bruxaria dentro de um mesmo eixo: um bode expiatório criado para oprimir
práticas culturais não absorvidas pelo catolicismo.
22
Como é o caso do antropólogo inglês Evans-Pritchard (1902-1973), que possui uma influência
decisiva na identificação da bruxaria como cultura nativa criminalizada pelas elites. Para maiores
informações, consulte: EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os
Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
18

Para Carlo Ginzburg, a bruxaria (ou, mais especificamente, o sabá das


bruxas), representa o último estágio da ideia de bode expiatório. Ela seria o ponto
de chegada da construção de um estereótipo hostil que por um milênio e meio recaiu
sobre cristãos, judeus, hereges e leprosos, até, finalmente, culminar nas bruxas. O
autor acredita que os cristãos foram os primeiros representantes desse estereótipo,
pois, nos primeiros séculos do cristianismo, foram atribuídos a essa religião a
realização de crimes horrendos23. Séculos depois, quando o catolicismo já se
apresentava como a religião oficial da Europa Ocidental, os grupos que sofriam
repressão social – como os hereges, os judeus e as bruxas –, permaneciam sofrendo
acusações dos mais diversos crimes hediondos, corroborando na construção do
estereótipo hostil que lhes foi atribuído24. Ao ponto de se “supor que na elaboração
desse estereótipo agressivo confluíssem também ecos de rituais efetivamente
praticados naquela época por algumas seitas”25.
Mesmo com a tentativa do cristianismo em “absorver o paganismo e
negar a magia pagã, assumindo dias sagrados pagãos e as festas pagãs, apropriando-
se dos lugares sagrados pagãos e construindo igrejas neles, transformando as
divindades pagãs em santos”26, algumas práticas permaneceram incompreensíveis.
Especialmente os rituais de fertilidade. Assim, as primeiras repressões à bruxaria
estariam ligadas às crenças folclóricas ao invés de se apresentarem como um culto
organizado de adoração ao diabo27. Portanto, de acordo com essa proposição, as
bruxas agiam como pessoas comuns que, de alguma maneira, deturpavam um ou
outro ensinamento cristão, embasadas especialmente na superstição e em resquícios
do paganismo. Jeffrey Richards acredita que elas teriam a função de servir como
bode expiatório utilizado pela ortodoxia católica como forma de expiar a ameaça
que o surgimento da heresia gerou para a hegemonia da Igreja de Roma.
Essa hipótese justifica o surgimento e a posterior repressão à bruxaria
relacionando-a com a heresia e o misticismo, em que estes seriam faces divergentes
de uma mesma causa: partes do fenômeno de descontentamento religioso e

23
GINZBURG, Carlo. História Noturna: decifrando o Sabá. Companhia das Letras: São Paulo,
1991, p. 81.
24
GINZBURG, História Noturna..., p. 81.
25
GINZBURG, História Noturna..., p. 81.
26
RICHARDS, Sexo, Desvio e Danação..., p. 84.
27
RICHARDS, Sexo, Desvio e Danação..., p. 82.
19

intelectual presentes no período de expansão das cidades, em conjunto com a


crescente curiosidade e desejo de experimentação que este crescimento gerou28. Ou
seja, “a emergência do sabá pressupõe a crise da sociedade europeia no século XIV
e as carestias, a peste, a segregação ou a expulsão de grupos marginais que a
acompanharam”29.
No entanto, o conceito de bruxaria como cultura popular também não
serve para explicar o problema discutido nesta dissertação, pois “os conceitos
postos em moda pela antropologia, como o de bruxaria, nem sempre se revelam
adequados ao estudo da realidade”30. Apesar da presença de elementos pagãos no
que era considerado bruxaria, eles não bastam para explicar todo o teatro de Caça
às Bruxas. Essa hipótese aborda a relação dos elementos supersticiosos e pagãos à
bruxaria como uma busca clerical de satanizar os recursos normalmente escolhidos
pela população. A bruxaria seria um fenômeno baseado em superstições. No
entanto, a superstição não se reduz à uma mera representação da cultura popular.
Para a Igreja, ela era a antítese da verdadeira devoção religiosa, apresentando-se
tanto como religiosidade irrelevante quanto excessiva. Também era uma arma
cultural apontada pelos homens do clero contra a população em geral, que
buscavam transformar as ações rotineiras das pessoas comuns em atos inválidos. E,
por fim, a superstição era vista como demoníaca31.
Conforme sabemos, aspectos da cultura pagã acompanharam o
cristianismo desde a sua constituição até a forma atualmente assumida, no entanto,
ao assumirmos o conceito de cultura popular como a explicação plausível para a
bruxaria, estaremos descartando e descaracterizando as relações de discurso,
organização social e até mesmo o papel do diabo. Isso ocorre porque assumiríamos
que aqueles que foram punidos pela acusação de bruxaria não passaram de bodes
expiatórios para uma Igreja temerosa de perder o seu papel na ordem social, mas
desconsideraríamos o que levou ao surgimento desse temor e de que maneira ele se
constituiu. Outro dado relevante é que durante o medievo tardio e a renascença, o
comportamento festivo europeu apresentava uma dita inversão ritual, um padrão

28
RICHARDS, Sexo, Desvio e Danação..., p. 83-94.
29
GINZBURG, História Noturna..., p. 88.
30
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em
Portugal no século XVI. Companhia das Letras: São Paulo, 2004, p.46.
31
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 599-600.
20

que atualmente é chamado de carnavalesco32. Essa inversão ritual demonstra a


lacuna existente entre a ortodoxia como se diz ser e a ortodoxia como é realizada33.
Ora, tanto os rituais carnavalescos quanto as ditas orgias do sabá podem ser
caracterizados como cultura popular e inversão social, no entanto, apenas um desses
itens foi sistematicamente perseguido.
O terceiro conjunto temático – a associação da bruxaria como forma de
opressão e perseguição às mulheres – representa uma das hipóteses mais exploradas
pela cultura contemporânea34, servindo até mesmo como um dos bordões do
movimento feminista35. Segundo essa corrente, a figura de Eva é responsabilizada
pelo pecado original que levou à expulsão dela e de Adão do Jardim do Éden, e isso
é utilizado como forma de justificar a associação do feminino ao inferior, pecador
e incompleto. Graças a essa assimilação, as mulheres se tornaram responsáveis por
tentar e levar o homem ao pecado. Acusadas de cederem aos instintos primitivos e
menos racionais, foram vistas como mais fáceis de sucumbir às influências
demoníacas e, portanto, necessitadas de proteção masculina36.
Assim, nessa sociedade dominada pelo medo, crente de estar às portas
do fim do mudo, as mulheres que desafiavam o papel que deveriam representar,
seja vivendo fora da proteção dos homens, seja se relacionando de maneira mais
íntima com a natureza, foram culpabilizadas por todas as desventuras que ocorriam
nas comunidades em que residiam. De acordo com Maria Nazareh Alvim de Barros,
as mulheres bruxas foram afastadas do convívio social e queimadas como a maneira
masculina de encontrar a purificação para si37.
A sociedade do patriarcado, aquela em que o próprio cristianismo se
legitima, delega às mulheres o papel de obediência e submissão ao homem, não lhe
sendo permitido o governo da própria vida. Assim, quando elas aparentam se
rebelar, devem ser contidas. E é exatamente neste ponto que a bruxaria como parte

32
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 43.
33
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 45.
34
Essa abordagem costuma ser especialmente explorada pelo cinema, pela literatura e em séries
televisivas. Apesar de comumente mesclarem diversos outros elementos, o foco de boa parte dessas
obras está em apresentar a perseguição à figura feminina.
35
À saber: “Somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”.
36
BARROS, Maria Nazareth Alvim de. As Deusas, as Bruxas e a Igreja: Séculos de Perseguição.
2 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2004, p. 351.
37
BARROS, As Deusas, as Bruxas e a Igreja..., P. 351.
21

da história das mulheres consolida uma hipótese explicativa: a bruxaria foi uma
repressão criada para punir aquelas que ousassem, mesmo sem intenção, afrontar a
ordem de vida legitimada, servindo de exemplo para todos sobre o perigo de uma
mulher que não vivia sob os mandamentos de Deus e a proteção masculina38.
Associar a figura de Eva com a justificativa de fragilidade das mulheres
e, portanto, sua inferioridade foi um passo natural, assim como utilizar-se dos
discursos de ódio presentes contra aquelas que se mostravam tão sujas e propícias
ao erro como a pecadora original. A introdução da figura diabólica como influência
para que mulheres se tornassem bruxas foi uma questão de lógica39. Com o quadro
apresentado nos fins do período medieval, formado por mulheres livres do domínio
masculino, vivendo por conta própria, sem casamentos ou filhos, velhas viúvas que
ultrapassavam visivelmente a expectativa de vida populacional, parteiras e
curandeiras que se encontravam na área em que os médicos começariam a ocupar,
a supremacia do patriarcado começou a ser desafiada40. A bruxaria teria surgido
como uma forma de conter essa inversão de papéis sociais.
No entanto, a ideia da bruxaria associada com mulheres foi construída
em cima do mais banal dos clichês dos séculos XVI e XVII, pois incorporava as
ideias aristotélicas das mulheres como homens incompletos em conjunto com a
hostilidade cristã, que as consideravam originadoras do pecado41. Não obstante,
nessa área há uma tendência a se ignorar que a bruxaria possuía uma realidade para
aqueles que nela acreditavam, porém, como historiadores, “devemos reconhecer
que por trás da crença em bruxaria dos primeiros tempos modernos jaz o
funcionamento de um sistema de representação; e sem ladear com os crentes,
devemos reconhecer que o que se representava era considerado, todavia, real”42. A
sociedade europeia em que ela se desenvolveu estava baseada em uma lógica de
correlação de opostos em que a associação do masculino ao polo positivo e do
feminino como sua contraparte negativa era natural. Porém, diagnosticar a bruxaria
como um fenômeno exclusivamente machista e opressor contra as mulheres é
anacrônico.

38
BARROS, As Deusas, as Bruxas e a Igreja..., p. 328-332.
39
BARROS, As Deusas, as Bruxas e a Igreja..., passim.
40
BARROS, As Deusas, as Bruxas e a Igreja..., passim.
41
BARROS, As Deusas, as Bruxas e a Igreja..., p. 165.
42
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 60.
22

Não podemos nos permitir esquecer que, para a sociedade que


vivenciou o desenrolar da Caça às Bruxas, as definições de masculino e feminino
não possuíam as significações que possuíam simplesmente por serem diferentes ou
como uma forma irrestrita de manutenção da supremacia. Elas eram pensadas em
polos opostos assimétricos que constituíam um mesmo sistema de símbolos. Assim,
ao olharmos para as acusadas de bruxaria, devemos identificá-las como tais não por
serem mulheres e, sim, por serem bruxas43. Ou seja, deveríamos perceber que as
determinações das características das bruxas era a expectativa da comunidade em
relação a elas, pois o comportamento esperado não era apenas uma dissociação com
o considerado “normal”. Ele representava o seu inverso.
Outra hipótese bastante conhecida e extremamente difundida tem Satã
– definido como “uma pessoa ou personalidade que tem consciência, vontade e
inteligência e cujos propósitos são apenas aqueles de causar sofrimento”44 – como
a sua personagem central. Para essa vertente, a bruxaria surge como fruto de uma
histeria coletiva causada pela mentalidade demonológica. Ela se distingue da
feitiçaria – termo comumente utilizado como sinônimo – pois esta última está
presente em todas as partes do globo e remete à ideia de “fazer algo”, tornando
necessário que sua concretização se dê por meio de um ato físico não natural. No
caso específico da Europa Ocidental, ela se apresentava como uma prática
individual e que requeria um determinado grau de conhecimento mágico”45. Ela foi
sendo modificada gradualmente, em grande parte devido à influência do
pensamento cristão sobre a sociedade e as religiões pagãs. E já no século XIII é
possível perceber a aproximação das ditas feiticeiras à figura do diabo. A bruxaria,
por sua vez, representava um fenômeno rural e coletivo, marcado pela passividade,
pois bastava a bruxa estar associada à figura demoníaca para ser condenada como
tal. Suas raízes seriam encontradas “em parte, no pensamento greco-romano e
hebraico, e em parte na feitiçaria, nas tradições populares e na religião da Europa
setentrional”46.

43
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 160.
44
RUSSELL, Jeffrey. El Principe de las tinieblas: el poder del mal y del bien em la historia. 2
ed. Santiago do Chile: Editoral Andres Bello, 1995, p. 334.
45
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e história: as práticas mágicas no Ocidente
cristão. São Paulo: EDUSC, 2004, p. 42.
46
RUSSELL; ALEXANDER, História da Bruxaria..., p. 50.
23

Segundo essa hipótese, a maior distinção entre bruxaria e feitiçaria está


na ideia de pacto demoníaco, o acordo pelo qual o pretenso seguidor de Satã se
entrega a ele e recebe sua marca. Enquanto as feiticeiras nascem com as
características próprias para a realização de magia, não sendo necessário que se
firme nenhum acordo diabólico, o perigo representado pelas bruxas está em sua
associação direta com o demônio. Na bruxaria, qualquer um que se encontra
disposto a pactuar com Satã pode receber poderes mágicos e tornar-se servo do
Maligno. O pacto torna a bruxa mais do que uma simples praticante de atos
maléficos: ela se torna uma herege.
De acordo com Carlos Roberto Nogueira, foi no século XIV, quando a
comunidade europeia está assolada pela peste negra e a Igreja Católica encontra-se
ameaçada por inúmeras heresias, que ocorreu a real associação entre as práticas
mágicas, a heresia e o culto ao demônio. Nesse período, a sociedade cristã
encontrava-se em um clima mental propício para o surgimento desses fenômenos e
foi essa a mentalidade que tornou possível a criação da bruxa em finais do século
XV47. No entanto, segundo o autor, apesar do século XIV já ter reunido todos os
elementos característicos de bruxaria, ela só se tornaria uma verdadeira obsessão
no século seguinte. Assim, a função por ela assumida nos anos 1300 seria muito
mais um meio de se eliminar adversários políticos que uma seita demoníaca
destinada a impedir a realização da obra de Cristo na Terra48.
Jeffrey Russell defende que durante a Caça às Bruxas, a associação da
feitiçaria com a bruxaria foi uma comodidade burocrática e legal que permitia aos
inquisidores a descoberta da presença desses seres malignos quer elas existissem,
quer não. Com isso, a cada condenação, a imagem da bruxa tornava-se mais
concreta na consciência popular. Portanto, a instalação de tribunais aptos para julgar
delitos mágicos, além de contribuírem decisivamente para a disseminação das
crenças, foi responsável por permitir que juízes procurassem os responsáveis pelos
males que a cristandade padecia49. Desta forma, a bruxaria possuía uma dupla
finalidade: acalmar a consciência coletiva e responder aos anseios inconscientes

47
NOGUEIRA, Bruxaria e história..., p. 153-164.
Este conceito sofreu grande influência da obra “Uma História do Medo no Ocidente (1300-1800)”
(1978) de Jean Delumeau.
48
NOGUEIRA, Bruxaria e história..., p. 211-238.
49
RUSSELL; ALEXANDER, História da Bruxaria..., p. 77.
24

frente à necessidade de buscar um culpado para os males da vida cotidiana. Como


nos informa o historiador francês, Robert Mandrou (1921-1989)50, em uma
sociedade como a civilização europeia dos séculos XIV ao XVII, “tudo pode tornar-
se sinal de uma intervenção satânica para quem vive neste temor cotidiano”51.
Para este quarto grupo hipotético, ao vivenciar um período em que era
preciso conviver com a peste negra, guerra, crises de abastecimento e frequente
perda de colheitas, a população europeia encontrava-se em um quadro de histeria
geral no qual sacrificar alguns de seus membros seria visto como a purgação das
culpas coletivas, pois estariam expulsando o mal que assolava aquela
comunidade52. Neste contexto, os tribunais eclesiásticos exerceram a função de
tranquilizar as angústias populares ao canalizar, por meio de propaganda
sistemática junto ao uso brutal de força, o ódio coletivo para um atacante simbólico
ao qual se atribuiu a responsabilidade pela desintegração da sociedade53.
O conceito de bruxaria como mentalidade demonológica é
provavelmente uma das abordagens mais aceitas nessa área de pesquisa, no entanto,
ela não é plenamente satisfatória para esta dissertação, pois transforma o que
consideramos um complexo discurso formado por opostos e gerado na elite
europeia em um fenômeno de histeria coletiva relacionado, essencialmente, ao
medo causado pelo diabo. Essa descaracterização das crenças em bruxaria,
presentes na maioria das justificativas utilizadas para explicá-las encontra-se ligada
ao modelo realista de conhecimento. Para a explicação “racional” de bruxaria, esta
não pode ser considerada como um movimento que foi verdadeiro para a sociedade
em que ocorreu porque a maior parte dela não possui referentes no mundo real e,
portanto, essas crenças só poderiam ser irracionais e frutos de uma psicose coletiva
que, com o advento da racionalidade, esfriou até cessar.
Apesar do demoníaco ser convocado, cada vez mais frequentemente,
para complementar o conhecimento das coisas divinas, “é tolice tratar a
demonologia como chave para a história dos julgamentos, é também uma distorção

50
Disponível em: < http://elpais.com/diario/1984/03/29/agenda/449359202_850215.html>. Acesso
em: 05 de junho de 2015.
51
MANDROU, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1979, p. 81.
52
NOGUEIRA, Bruxaria e história..., p. 137.
53
NOGUEIRA, Bruxaria e história..., p. 135.
25

considerá-la simplesmente em seu reflexo”54. Pois Satã, que é colocado por essa
vertente como o verdadeiro protagonista do teatro da bruxaria, para nós não passou
de mais uma personagem auxiliar na legitimação de um discurso socialmente
aceito. O que afirmamos aqui é que observar a demonolatria e a demonologia como
fatores determinantes da bruxaria, associando-os a uma psicose coletiva gerada
graças às diversas dificuldades passadas pela população, é retirar da linguagem a
figura central que acreditamos lhe pertencer.
Embora nos atentemos a aspectos relevantes da abordagem que
relaciona a bruxaria a uma mentalidade demonológica - especialmente aquele que
torna o demônio uma personagem relevante do discurso de bruxaria -,
desconsideramos a ideia de que a bruxaria se apresentava como uma psicose
coletiva, oriunda de um inconsciente coletivo associado ao medo, que culminou em
uma repressão irracional de certo grupo. Especialmente porque, para a pessoa
comum, a bruxaria era utilizada como justificativa para as causas de seus males,
mas não em decorrência do pacto demoníaco, e sim devido ao mal causado para ela,
sua família e seu sustento. A bruxa, para a massa populacional, “era vista, primeiro
e, sobretudo, como alguém com o poder e a vontade maligna de causar danos reais
a suas vítimas”55.
A concentração nas relações diabólicas entre a bruxa e Satã, o pacto
demoníaco, a associação de bruxaria com heresia e apostasia eram preocupações
dos clérigos, magistrados e das classes instruídas em geral56. Isso nos permite
observar que “havia, pois, duas “linguagens” da bruxaria, uma concentrada na
feitiçaria, outra no diabolismo, e elas expressavam dois conjuntos diferentes de
interesses”57. E diferentemente do que se acredita na caracterização da bruxaria
como mentalidade demonológica, eram as classes instruídas que enxergavam as
bruxas como servas de Satã, o resto da população só o faria se fosse ensinado a
fazê-lo. Para eles, a bruxaria representava apenas mais uma das hostilidades
cotidianas e sua relação com o demônio era pouco relevante58.

54
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 14.
55
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 557.
56
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 560.
57
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 560.
58
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 560.
26

Segundo Clark, as ideias sobre desvio demoníaco foram sustentadas por


aqueles que ansiavam a preservação da ortodoxia e “que construíram a diferença
entre o mundo normal e o mundo da bruxaria de tal modo a legitimar as instituições
a que pertenciam ou então sustentavam”59. E isso nos coloca no último conjunto
temático, a bruxaria como um discurso elitista, racional, político e jurídico que teve
grande influência na organização social das comunidades em que se desenvolveu.
Para compreender essa hipótese, devemos nos embrenhar nas relações de
linguagem presentes nesse discurso, especialmente porque os signos pela bruxaria
apresentados não possuem qualquer referente no mundo real.
A bruxaria como fruto da linguagem apresenta três elementos
essenciais: uma consciência geral da relação lógica de oposição; uma familiaridade
com os elementos simbólicos particulares; e a apreensão da regra implícita em
qualquer inversão individual cometida. Isso significa dizer que a lógica constitutiva
do discurso de bruxaria é formada essencialmente por opostos emparelhados, o
tornando um esquema representacional complexo, porém coerente e altamente
racionalizável60. A oposição, elemento constituinte do discurso de bruxaria, pode
ser compreendida como uma relação de contrários que permitia a inversão total da
ordem social, mas não se dissociava desta, pois o mundo real e o mundo da bruxaria
eram complementares um ao outro, formando uma espécie de dicotomia.
Nessa oposição binária o lado negativo é tão necessário quanto o
positivo, pois é ele que completa a ordem das coisas, tornando-a perfeita61. A
contrariedade era indispensável na linguagem religiosa, pois não se podia falar de
Deus, sem se falar de Satã62. Não obstante, ao reconhecer o mundo como uma
composição de contrários, podemos perceber que este era, portanto, um mundo
reversível63. O que, em uma cultura compassiva à oposição de contrários, significa
dizer que a inversão será um elemento sensível a esta sociedade, representando a
desordem. Ou seja, na classificação dual, as oposições complementares são o seu
aspecto benigno, enquanto as oposições inversas estão relacionadas ao maligno 64.

59
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 17.
60
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 61.
61
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 73.
62
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 86.
63
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 107.
64
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 109.
27

Para muitos comentaristas católicos da Europa em fins da Idade Média, a opção do


diabo em condenar a fé católica e inverter sua liturgia nos sabás era prova
inequívoca de que sua fé era divina, “a contrariedade transformava a oposição
demoníaca no teste mais confiável”65.
A inversibilidade representava “um mundo de ponta cabeça” e era o
idioma universal da desordem. No caso da bruxaria, ela poderia ser reconhecida
como desordem graças à familiaridade que possuía com as inversões. Para Clark, o
idioma de inversibilidade da bruxaria era político, havendo política no mundo de
ponta cabeça, porém os papéis de dominante e dominado estavam perpetuamente
trocados. Assim, em qualquer contexto que se apresentava, a inversão era um ato
político66. O discurso sobre a bruxaria encontra na figura diabólica uma maneira de
expressar-se como desordem. Conceituada como antirreligião, a inversão
demoníaca não pode ser separada das noções de rebelião. Sob o estigma de
diabolismo, percebemos a política novamente entrelaçada nesse discurso, pois a
devoção demoníaca, muito mais que representar uma adoração ao diabo, estava
associada à desobediência e às consequências por ela geradas. Selar um contrato
com Satã de maneira voluntária, não era só apostasia espiritual, era um ato de
resistência política67.
Stuart Clark defende que em fins do medievo, o mundo seria entendido
como uma complexa associação de contrários e, portanto, passível de ser revertido.
Se tudo era compreendido com base na dualidade, é lógica a existência de um
mundo inverso ao normal, pois é exatamente esse mundo de ponta cabeça que dará
sentido às organizações socialmente aceitas. As bruxas se apresentavam como as
habitantes ideais desse mundo de pecados, onde o dominado se sobrepõe ao
dominador, e no qual a desordem é o idioma predominante, pois, apesar de
moldarem seu comportamento no mundo cristão, elas são vistas como criaturas
inspiradas pelo demônio e tudo que percebem e realizam ocorre de maneira errada
e invertida.
No entanto, conforme apresentado anteriormente, a preocupação em se
compreender a bruxaria como um referencial intelectual de inversão do real está

65
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 198.
66
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 111.
67
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 130.
28

dependente da parcela da sociedade que analisamos. Essa explicação é uma


preocupação da elite eclesiástica e civil. Para a população comum, a bruxaria estaria
mais ligada à existência de um agente externo sobre quem era possível colocar os
medos e infortúnios do dia-a-dia árduo que à necessidade de dar sentido litúrgico à
realidade. O que queremos com isso demonstrar é que em história nenhum conceito
basta em si. Antes de nos apropriarmos de um termo e tentar encaixá-lo – às vezes
quase que forçadamente – em uma sociedade, ou melhor, em grupos sociais,
devemos nos preocupar em observar quais elementos fazem sentido para aquele
contexto.
No caso desta dissertação, como nossa preocupação é o caminho
jurídico que a bruxaria tomou no século XIV, elegemos esse último conjunto
teórico, associado a elementos do pensamento demonológico, como o que melhor
contempla a noção de bruxaria que buscamos aqui demonstrar. Isso significa dizer
que, ao falarmos em bruxaria – ou práticas mágicas –, estamos nos referindo a um
discurso racional de inversão do papel social de atos até então legítimos, por meio
da tentativa de uma ampliação jurisdicional da função inquisitorial. Não podemos
esquecer, no entanto, que para os grupos inseridos nessas tramas de pensamento
costuradas com os fios de oposições binárias, com categorias que se apresentam
como avessos, o mundo dicotômico e invertível não se situava apenas na esfera do
pensamento. Ele era vivido como a realidade.
Para demonstrar como isso se deu no caso do controverso inquisidor
aragonês Nicolau Eymerich, dividimos esta dissertação em três capítulos. No
primeiro apresentamos a trajetória de vida de Nicolau Eymerich, e é feito o esforço
inicial de localizar a bruxaria no texto do Directorium Inquisitorum, apesar da
ausência expressa do termo. No segundo capítulo, nos preocupamos em apresentar
o conceito de jurisdição e demonstrar a atitude do inquisidor aragonês frente ao que
chamamos de jurisdição inquisitorial, por meio de uma análise aprofundada do
Directorium Inquisitorum. No terceiro – e último – capítulo, analisamos a trajetória
do Liber Razielis, partindo de sua entrada na Península Ibérica até chegarmos na
interpretação dada por Eymerich. Finalizamos o trabalho apresentando os casos de
inversão de práticas relacionadas à magia que podem ser localizadas no Manual
Inquisitorial que ajuda a dar título a esta dissertação.
29

CAPÍTULO 01
EM BUSCA DO INQUISIDOR: A IDEIA DE BRUXARIA E A
TRAJETÓRIA DE PODER DE NICOLAU EYMERICH

“Quando alguém se virar para os


adivinhadores e encantadores, para se
prostituir com eles, eu porei a minha
face contra ele, e o extirparei do meio
do seu povo”.
(Levítico 20:6)

1.1 Honrai o Texto, Temei o Inquisidor: a reação de Eymerich

No provável ano de 1320 nascia em Girona, na região da Catalunha1,


Nicolau Eymerich. Aos quatorze anos ele ingressou no convento dominicano de sua
cidade natal, “onde provou-se promissor o bastante para ser enviado à Universidade
de Paris [em 1351] para seu doutorado em teologia”2. Um ano após seu regresso à
Catalunha foi nomeado mestre dos estudantes em Barcelona3. Substituiu Nicolau
Roselli4 em 1357, aos trinta e sete anos, tornando-se Inquisidor Geral de Aragão,
cujo domínio incluíam Valência e Barcelona, porém foi afastado do cargo três anos
depois, em decorrência da sua interferência no processo de condenação do
franciscano Nicolau de Calábria5. Tal intervenção resultou na conquista de alguns

1
Vale informar que a região da Catalunha constituía um dos mais impressionantes representantes do
que F. Heer (1935) chamou de “Reino dos Três Anéis”, locais em que as três religiões monoteístas
– cristianismo, judaísmo e islamismo – coexistiam e interagiam.
2
SULLIVAN, Karen. The Inner Lives of Medieval Inquisitors. Chicago: University of Chicago
Press, 2011, p. 170.
3
DÍAZ DÍAZ, Gonzalo. Hombres y Documentos de La Filosofía Española. Vol. 03. Madrid:
CSIC, Centro de Estudios Historicos, 1987, p. 96.
4
Roseli foi elevado ao grau de Cardeal.
5
VILANOVA, Evangelista. Historia de la Teología Cristiana: de los Orígenes al siglo XV. Vol.
01. Barcelona: Editorial Herder, 1987, p. 922.
30

inimigos, dentre eles o rei Pedro IV, o Cerimonioso, de Aragão6, que foi responsável
por ordenar, no Capítulo Geral de Perpinhão (1360), a deposição de Eymerich do
cargo de inquisidor. No ano de 1362, Nicolau Eymerich foi eleito vigário geral da
Ordem dos Dominicanos aragonesa, no entanto, a eleição foi seguida de uma grande
disputa política na diocese, uma vez que o padre Bernardo Ermengaudi a contestou,
e apenas com a interferência do papa Urbano V, que afastou Eymerich e nomeou
Jacopo Dominici para o cargo, que tal impasse fora resolvido7.
Em 1366, o dominicano retoma a função de Grão-Inquisidor de Aragão,
no entanto a hostilidade entre ele e o rei se intensifica, por causa da perseguição e
das condenações de obras de Raimundo Lúlio efetuados por parte de Eymerich,8 (o
que levou os lulianos a requisitarem a proteção do rei). O inquisidor chegou a
notificar os habitantes de Barcelona que ele vedava as leituras desse autor9,
resultando na proibição régia das pregações do inquisidor – interdição esta que ele
desobedeceu. Aliás, anteriormente aos conflitos com Eymerich, o rei já havia
censurado dominicanos e franciscanos por proferirem sermões antijudaicos
altamente incendiários, que resultaram no assassinato de vários judeus10. Diante
desse quadro, acreditamos que o agravamento da relação entre o inquisidor e o rei
é decorrente da perseguição inquisitorial de membros do Clero e a condenação
extremamente fervorosa da filosofia luliana, combinadas com a pressão sofrida por
Pedro IV, por meio de membros da nobreza da Coroa Aragonesa, para que as obras
de Lúlio permanecessem sendo estudadas.
Tal situação os levou a se colocarem um contra o outro em diversas
questões, como ocorreu quando Eymerich, encontrando-se “à frente das
reivindicações da igreja tarraconense a respeito da onerosa política tributária de

6
COVINGTON, Samuel. The Esoteric Codex: Witch Hunting. Raleigh: Lulu.com, 2015, p. 209.
7
VARGAS, Michael A. Taming a Brood of Vipers: Conflict and Change in Fouuteenth-Century
Dominican Convents. Leiden: Brill, 2011, p. 290.
8
Boa parte da vida de Eymerich foi dedicada a se opor aos escritos de Lúlio, resultando em obras
como o “Tractatus contra doctrinam Raymundi Lulli”, onde ele lista 135 heresias e 38 erros na
teologia dos lulianos e “Dialogus contra lulianos”.
9
GOMES, Daiany Sousa Macelai de Oliveira. O Tribunal do Santo Ofício Espanhol:
Continuidades e Inovações nas Práticas Processuais (Sécs. XIV-XVI). 2009. 122f. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2009, p. 32.
10
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1993, p. 102.
31

Pedro IV”11, apoia a revolta ocorrida na diocese de Tarragona contra o rei, que
terminou com o cerco do mosteiro em que Eymerich residia, em 1376. Ele então
fugiu para a corte do Papa Gregório XI, em Avinhão e, neste mesmo ano, concluiu
a escrita do Directorium Inquisitorum, sua obra mais conhecida. No entanto, é
válido ressaltarmos que, quando o manual de Eymerich foi finalizado, ele já não
tinha mais contato com o território sobre o qual escrevia. Este é um dado curioso,
pois a necessidade de respaldo social local se encontra presente em grande parte das
instruções para a plena instauração da jurisdição inquisitorial, conforme veremos
melhor no segundo capítulo.
Em 1377, encontrando-se exilado, quando o papa decide deslocar a sede
do papado para Roma, Eymerich o acompanha. Entretanto, já no ano seguinte, em
decorrência do Cisma do Ocidente12, resultante da morte de Gregório XI e a eleição
de Urbano VI como novo papa, Nicolau Eymerich decide regressar à Avinhão, onde
entra em conflito com o missionário dominicano Vicente Ferrer13. Este conflito
resulta em uma nova perseguição ao antigo inquisidor, desta vez ocasionada por seu
apoio ao papa Clemente VII em detrimento do papa Urbano VI14. Ele retorna então
para Aragão em 1381, momento em que descobre que o posto de Inquisidor durante
sua ausência fora ocupado por Ermengaudi – cuja autoridade Eymerich recusou-se
a reconhecer. Ademais, com o seu retorno, o dominicano retomou a pregação contra

11
DÍAZ DÍAZ, Hombres y Documentos de La Filosofía Española..., p. 96.
12
O Cisma do Ocidente, também conhecido como O Grande Cisma do Ocidente, Grande Cisma ou
Cisma Papal foi uma crise ocorrida na Igreja Católica durante o período de maio de 1378 a novembro
de 1417 e “resulta da política francesa de afirmação continental frente aos outros reinos e à Cúria
Pontíficia de Roma, fomentando a alternativa de Avinhão. O fim do Exílio de Avinhão com o retorno
de Gregório XI a Roma, em fins de 1377, periga diante da morte do referido pontífice em março de
1378. A pressão da aristocracia romana sobre o mosteiro cardinalício é forte para que se eleja um
Papa romano, no entanto, a escolha recai, em abril de 1378 sobre Bartolomeo Prignano, Arcebispo
de Bari, antigo funcionário da Cúria de Avinhão, designado Urbano VI. Cerca de dois meses depois
da eleição, um grupo de treze cardeais eleitores denuncia a fraude da eleição realizada, segundo eles,
sob forte pressão e em Fondi, Nápoles, elegem Roberto, Cardeal de Genebra, primo de Carlos V,
designado como Clemente VII, o qual, incapaz de assumir suas funções em Roma, estabeleceria
simultaneamente sua Sé Apostólica em Avinhão, onde alguns cardeais tinham permanecido após o
retorno de Gregório XI” (FERNANDES, Fátima Regina. A Monarquia Portuguesa e o Cisma do
Ocidente (1378-85). In: GUIMARÃES, Marcella Lopes (coord.). Instituições, poderes e
jurisdições. Curitiba: Juruá, 2007, p. 137).
13
Vicente Ferrer (1350-1419) entrou para a Ordem Dominicana em 1367; durante o Cisma do
Ocidente colocou-se ao lado de Avinhão, em detrimento de Roma. Chegando a trabalhar, em 1379,
com o cardeal Pedro de Luna (futuro Papa Bento XIII) em busca da obediência do rei Pedro IV para
Avinhão. Ferrer foi canonizado em 03 de junho de 1455, pelo Papa Calisto III.
14
Eymerich chegou, inclusive, a escrever a obra “De potestate Papae”, que defende o poder
absoluto do Papa, a pedido de Clemente VII. (DÍAZ DÍAZ, 1988, p. 97).
32

os lulianos, levando o rei a ordenar sentença definitiva de exílio dele, que ignorou
a decisão real e manteve-se em Aragão.
Diferentemente de seu pai, Juan tentou manter um relacionamento
cordial com o dominicano, chegando a apoiar Eymerich quando esse retornou do
primeiro exílio. Tal atitude desagradou o Cerimonioso, que, ao tomar conhecimento
disso, enviou a seu sucessor uma missiva calorosa: “horrorizado com a audácia de
Juan em permitir que Eymerich estivesse presente em Barcelona, contra seus
desejos, Pedro ordenou que seu filho aprisionasse Eymerich e não lhe prestasse
mais ajuda”15. Michael Ryan informa que não fica claro qual foi o impacto que tal
ordem dada por Pedro teve no relacionamento entre o dominicano e seu filho. No
entanto, já em 1386, com a morte de Pedro IV, Eymerich retoma suas funções como
Inquisidor Geral, tendo sua repressão aos lulianos favorecida por Juan I de Aragão,
sucessor de Pedro, até 1388. Ano em que, em consequência da decisão de Eymerich
de investigar toda a cidade de Valência por suspeita de heresia, o rei pede que a
Igreja contenha a violência deste e manda reexaminar as obras de Lúlio. Nicolau
Eymerich é novamente exilado, retornando para Avinhão e lá permanecendo até a
morte de Juan I, em 1396, quando, enfim, retorna ao mosteiro de sua cidade natal,
residindo aí até sua morte, em 1399. É descrito em seu epitáfio como: “Praedicator
veridicus, inquisidor intrepidus, doctor egregius”16.
No entanto, para se compreender como viveu Eymerich, é preciso olhar
além de sua biografia. Sendo necessário analisar não só as relações deste com a
monarquia aragonesa, mas o próprio contexto histórico em que a Coroa estava
inserida no tempo de vida do inquisidor. Sabemos que durante grande parte de sua
atuação eclesiástica, Eymerich esteve sob o reinado de Pedro IV (1319-1387), que
recebeu a alcunha de “o Cerimonioso” devido à atenção dispendida por ele à
reorganização das instituições centrais do governo, bem como sua atenção ao
protocolo17. O rei é descrito por Lasarte como um apaixonado pela história, tendo

15
RYAN, Michael A. A Kingdom of Stargazers: Astrology and Authority in the Late Medieval
Crown of Aragon. Ithaca e Londres: Cornell University Press, 2017, p. 127.
16
“Pregador da verdade, inquisidor intrépido, douto egrégio”, em tradução livre.
KIRSCH, Johann Peter. Nicolas Eymeric. In: The Catholic Encyclopedia. Vol. 5. New York: Robert
Appleton Company, 1909. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/05735c.htm>.
Acesso em: 10 de maio de 2017.
17
PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhas. São
Paulo: UNESP, 2000, p. 315.
33

patrocinado a tradução de crônicas de diversos países, além de reunir uma equipe


pessoal para a confecção de sua própria crônica, que ficou inacabada em
decorrência da sua morte18. Uma das primeiras ações do seu reinado, que durou de
1336 até sua morte, foi a incorporação do reino de Maiorca, além de obter avanços
significativos no Mediterrâneo, com a anexação da Sicília (1377) e dos ducados de
Atenas e Neopatria (1379)19.
Não obstante,

quatro episódios significativos condicionaram a vida do reino


interior e do território continental da Coroa: o ressurgimento da
Unión, a peste, a guerra com Castela (que tem como cenário
principal as terras aragonesas) e os ataques e desmandes
provocados pelos contingentes armados e descontrolados nos
intervalos de calmaria do conflito bélico e, depois de finalizado
o mesmo, contingentes integrados sobretudo por estrangeiros
pagos, como mercenários contratados pelas forças combatentes.
Esses episódios devem ser colocados, não obstante, no quadro da
crise econômica generalizada, nos desequilíbrios sociais e nos
antagonismos latentes na disputa pelo poder político-social,
assim como no contexto das diferenças políticas implicadas entre
os representantes dos diversos estados que formavam a Coroa de
Aragão20.

O primeiro desses episódios encontra suas raízes no reinado de Alfonso


IV, o Benigno, pai de Pedro IV. Quando governada pelo Benigno, a Coroa de Aragão
apresentava já sintomas de uma crise econômica e social e, ao mesmo tempo, a
guerra que o monarca travara contra Gênova requeria uma constante dependência
das propriedades do reino para a obtenção dos recursos necessários para o
financiamento da guerra. Assim, “a fome, a agitação social, a guerra e as
dificuldades políticas internas foram a herança que Pedro IV, o Cerimonioso,
recebeu de seu pai em 1336”21. É neste cenário então que ressurge uma associação

18
AINAUD DE LASARTE, Josep María. L’época del Cerimoniós. Balanç d’um regnat. In:
CLARAMUNT RODRÍGUEZ, Salvador (org.). Pere el Cerimoniós i la Seva Época. Barcelona:
CSIC, 1989, p. 01.
19
PÉREZ, Joseph; SANTOS, Juliá; VALDEÓN, Julio. História de Espanha. Lisboa: Edições 70,
2014.
20
SARASA SÁNCHEZ, Esteban. El enfrentamiento de Pedro el Ceremonioso con la
aristocracia aragonesa: la guerra con la Unión y sus consecuencias. In: CLARAMUNT
RODRÍGUEZ, Salvador (org.). Pere el Cerimoniós i la Seva Época. Barcelona: CSIC, 1989, p. 35.
21
GUERRERO NAVARRETE, Yolanda. La Configuración de los Reinos Hispánicos (s. XIII-
XV). Liceus, Servicios de Gestió, 2006, p. 19.
34

de nobres que buscavam defender seus privilégios de classe contra o rei. Chamada
de Unión, ela estava presente nos estados de Aragão e Valência. Seu retorno ocorre
em decorrência do conflito externo, do custo econômico da política mediterrânea e,
no caso de Aragão, da questão sucessória22 causada pela, até então, falta de herança
masculina por parte do rei, que proclamou sua filha, Constança, como herdeira do
trono23.
Durante o ano de 1348 tanto a Unión valenciana quanto a aragonesa
foram derrotadas. Em Valência foi firmado um acordo entre o rei e a Unión, porém,
em Aragão a dissolução definitiva da Unión só foi possível após o conflito armado
denominado de Batalha de Épila24. A vitória sobre as Uniões resultou em um alívio
político que permitiu ao rei travar o conflito contra Pedro I de Castela. Conhecida
como a Guerra dos Dois Pedros (1356-1369), esse foi o “conflito no qual Pedro IV
comprometeu definitivamente a liberdade financeira e os recursos econômicos da
Coroa de Aragão”, sendo forçado a convocar numerosas Cortes durante seu
reinado25. Essa dependência financeira resultou na criação da Delegação Geral da
Catalunha26 (1362), um conselho do Parlamento responsável por gerir
financeiramente os impostos, controlar sua arrecadação e supervisionar o destino
dos mesmos, retirando essa função dos oficiais reais27. Sendo, portanto, uma
comissão econômica que efetua a gestão de doação das Cortes ao rei, sem incluir
nenhum representante da Coroa28.
É preciso recordar que durante o reinado de Pedro IV se desenvolveram
as primeiras fases de uma importantíssima guerra do chamado período baixo-

22
A questão sucessória decorre da decisão de Pedro IV em reconhecer sua filha mais velha,
Constança, como herdeira de Aragão, em detrimento de seu irmão, o infante Jaume. Tal situação foi
resultado da morte de sua primeira esposa, Maria, um dia após o parto do natimorto Pedro, sem que
houvesse um herdeiro masculino ao trono. Juan, que iria suceder de Pedro, nasceu apenas em 1350,
fruto do terceiro casamento do monarca.
23
GUERRERO NAVARRETE, La Configuración..., p. 19.
24
Travada em 21 de julho de 1348, perto de Zaragoza, a Batalha de Épila foi o conflito final entre a
Unión Aragonesa e o Rei Pedro IV, resultando na vitória da Coroa.
25
GUERRERO NAVARRETE, La Configuración..., p. 20.
26
Também conhecida como La Generalitat.
27
GUERRERO NAVARRETE, La Configuración..., p. 20.
28
FERRER I MALLOL, Maria Teresa Ferrer i. Origen i Evolució de la Diputació del General de
Catalunya, Les Corts a Catalunya: Actes del Congrés d’Historia Institucional, 1991, p. 152.
Disponível em: < https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=1394654>. Acesso em: 20 de
maio de 2017.
35

medieval29: a Guerra dos Cem Anos (1337-1453)30. A disputa entre franceses e


ingleses transcendeu seus territórios e abarcou diversas nações, estendendo-se até a
Península Ibérica, que se viu de tal forma implicada que algumas fases da guerra
foram travadas em seus territórios. O conflito também teve um papel de destaque
na orientação política dos reinos hispânicos31. No caso específico de Aragão, Pedro
IV, em um primeiro momento, optou por permanecer neutro diante da disputa. No
entanto, no decorrer dos anos, ocorreram mudanças importantes que acabaram por
levar o Cerimonioso a tomar partido na guerra, especialmente por causa do
acirramento das disputas com Castela.
Na década de 1360 as hostilidades entre França e Inglaterra adentram o
território ibérico, onde ambos tomaram partido diante da luta pela sucessão de
Castela32, posteriormente denominada de Primeira Guerra Civil de Castela. O rei
Pedro I foi apoiado pela Coroa Inglesa, já a França colocou-se ao lado de Henrique
de Trastâmara. Nesse mesmo período, Aragão encontrava-se em disputa com o
trono castelhano, o que levou Pedro, o Cerimonioso, em sua busca por apoio francês
na Guerra dos Dois Pedros, a se colocar ao lado de Henrique de Trastâmara na luta
sucessória pelo trono de Castela e Leão. Em 1369, com a morte de Pedro I, o Cruel,
Henrique de Trastâmara – chamado Henrique II, o das Mercês – ascende ao trono
de Castela. Como consequência, a Guerra dos Dois Pedros é finalizada, e a
Inglaterra apresenta desinteresse cada vez maior nos assuntos hispânicos. No
entanto, a Coroa Aragonesa termina essa época de conflitos economicamente
fragilizada, passando a depender das Cortes e “no panorama do Ocidente Europeu,

29
O período denominado de Idade Média é comumente dividido em Alta Idade Média, abarcando
do século V ao X, e Baixa Idade Média, correspondente ao período do século XI ao XV. Utilizaremos
nesta dissertação a divisão cronológica mais tradicional, como forma de melhor situar o leitor no
tempo dos acontecimentos retratados.
30
A Guerra dos Cem Anos, assim chamada desde a publicação do livro de Bachelet em 1852, foi
uma disputa entre Inglaterra e França que se iniciou em 1337 e durou até 1453. Teve início em
decorrência da questão sucessória do trono francês.
31
VALDEÓN BARUQUE, Julio. La Incidencia de la Guerra de los Cien Años en la Península
Ibérica. In: CLARAMUNT RODRÍGUEZ, Salvador (org.). Pere el Cerimoniós i la Seva Época.
Barcelona: CSIC, 1989, p. 47.
32
A Primeira Guerra Civil de Castela (1366-1369) foi uma disputa entre Pedro I, chamado de “o
Cruel” pelos inimigos e “o Justo” pelos aliados, e seu meio-irmão bastardo, Henrique de Trastâmara
pelo trono de Castela. A disputa terminou com o assassinato de Pedro I durante a Batalha de Montiel,
em 1369, resultando na ascensão ao trono de Henrique, denominado de Henrique II. Esse conflito
acabou por integrar a Guerra dos Cem Anos.
36

não só o bloco franco-castelhano foi consolidado, mas a coroa de Aragão foi


deixada fora de jogo”33.
E foi diante desse cenário de conflitos, tanto internos quanto externos,
que inquisidor e rei se encontraram, resultando em uma conturbada relação entre
ambos: no ano de 1367 o rei queixou-se ao Mestre Geral da Ordem Dominicana
sobre os excessos cometidos por Eymerich e, em 1374, alegando excesso de zelo
por parte do inquisidor, o deixou sem salário. Por fim, em 1375, o exilou de todos
os domínios do reino. Por seu lado, Eymerich não perdeu nenhuma oportunidade
de se contrapor ao rei e seus oficiais, mesmo correndo riscos contra sua integridade
física34. Diante desse quadro, podemos afirmar que Eymerich e o Cerimonioso eram
politicamente incompatíveis. Entretanto, é a diferença de posição quanto à filosofia
de Raimundo Lúlio que torna a disputa entre rei e inquisidor ainda mais acirrada.

1.1.2 Raimundo Lúlio ou uma obra em trânsito entre estabelecidos e outsiders


da sociedade cristã

Raimundo Lúlio foi um filósofo catalão nascido em finais de 1232 ou


começo de 1233, em Palma de Maiorca, região que havia sido recentemente
conquistada pelo rei Jaime I de Aragão. Durante a infância de Raimundo, Aragão
continuou se expandindo para o sul e, com isso, uma grande massa populacional de
muçulmanos e judeus foi absorvida pela coroa aragonesa. Acredita-se que cerca de
¼ (um quarto) da população total fosse constituída por não-cristãos35. No caso
específico da Ilha de Maiorca, havia peculiaridades culturais que influenciaram
diretamente na obra de Lúlio: a miscigenação de grupos estrangeiros – de
mercadores de outras partes da Europa até muçulmanos – era muito forte nessa

33
BARUQUE, La Incidencia de..., p. 57.
34
OLIVER, Jaume de Puig I. El Tractat “Confessio Fidei Chistianae” de Nicolau Eimeric, O. P.
Edició Estudi. Arxiu de Textos Catalans Antics, Barcelona, v. 25, 2006, p. 09. Disponível em: <
http://www.raco.cat/index.php/ArxiuTextos/article/view/298731/387980>. Acesso em: 11 de maio
de 2017.
35
COSTA, R. Maiorca e Aragão no tempo de Ramón Llull (1250-1300). 2001, p. 03. Disponível
em: < http://www.ricardocosta.com/artigo/maiorca-e-aragao-no-tempo-de-Ramón-llull-1250-
1300>. Acesso em: 20 de janeiro de 2018.
37

região, aliás, “a convivência entre árabes, judeus e cristãos se fez mais estreita e
mais indispensável que em qualquer outra parte”36.
No entanto, antes de se tornar o filósofo cristão tão estudado por
historiadores, teólogos e filósofos, Raimundo Lúlio levou uma vida bem mais
mundana. De fato, sua vida pode ser dividida em duas fases: pré e pós conversão.
Durante o período anterior à sua conversão, quando era parte da corte do príncipe
Jaime II (filho de Jaime I, o Conquistador e governante de Maiorca), e recebeu uma
educação comum à ordem cavaleiresca, com foco no aprendizado do manuseio de
armas e na arte de trovar37. No entanto, por volta de 1263, Lúlio tem cinco visões
do Cristo crucificado que, conforme nos informa a Vita Caoetania38, o levaram a
começar o rompimento com seu modo de vida. Mudança essa que foi efetivada após
ele ouvir um sermão sobre o despojamento de São Francisco de Assis (1181-1226),
o que levou Lúlio a seguir o exemplo do santo medicante, e abdicar de sua vida
como trovador, passando a se dedicar à defesa de Cristo39.
Segundo Ventorim, nas sociedades pré-industriais, “as visões ou os
êxtases místicos sempre foram [considerados] um importante meio de comunicação
entre este mundo e o Além”, e podemos encontrar diversos exemplos nas
hagiografias medievais que “demonstram a [crença na] manifestação de Cristo por
visões que modificam de forma definitiva a vida daqueles que passam por elas”40.
Essa forma de comunicação acompanhou todo o projeto missionário de Lúlio, que
incluía também mudanças na conduta dos cristãos e a unificação das Igrejas do
Ocidente e do Oriente, que possibilitaria o resgate do ideal apostólico e eliminaria

36
PALAU, Joaquim Xirau. Vida y obra de Ramón Llull: Filosofía y mística. Cidade do México:
Fondo de Cultura Económica, 2004, p. 15.
37
Os trovadores medievais foram músicos-poetas que se viam como portadores de um novo tipo de
ciência: uma “Gaia Ciência” (uma “ciência alegre” ou uma “ciência gaiata”), isto é, uma ciência que
conseguia se articular no mundo e, ao mesmo tempo, transcende-lo. Uma das principais criações
desses trovadores foram as cantigas de amor cortês. (BARROS, J. A. Os Trovadores Medievais e o
Amor Cortês – Reflexões Historiográficas. Revista Alétheia, vol. 01, n. 01, abril/mai. 2008.
Disponível em: < http://www.miniweb.com.br/historia/artigos/i_media/pdf/barros.pdf>. Acesso em:
20 de janeiro de 2018.
38
A Vita Coaetania (1311) é uma autobiografia ditada por Raimundo Lúlio aos monges cartuxos de
Vauvert. Ela é usada como base para os historiadores precisarem a biografia do filósofo.
39
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia. 1311. Tradução: Ricardo da Costa. s/d, p. 06-10. Disponível
em: <http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/vidacoetania.pdf>. Acesso em: 29 de
janeiro de 2018.
40
VENTORIM, Eliane. As Ideias Políticas e a Apologética de Ramón Llull (1232-1316) sobre a
Cruzada na Terra Santa. 2008. 145f. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências
Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008, p. 34-35.
38

a divisão interna do cristianismo. Além disso, Lúlio acreditava na superioridade do


poder pontifício, portanto, cabendo ao papa o direito de comandar toda a
cristandade, inclusive reis e príncipes. No entanto, o maior objetivo de Raimundo
Lúlio era a conversão dos infiéis e dos pagãos, o que o levou a se proclamar
“procurador dos infiéis”41.
Em sua busca por cumprir seu projeto apostólico, Raimundo Lúlio
passou por um período de peregrinação entre diversos santuários importantes para
os cristãos. Depois ele retorna para Barcelona, onde decide ingressar na
Universidade de Paris, objetivando ser capaz de cumprir seu propósito de escrever
o melhor livro do mundo. Entretanto, é desencorajado por seus amigos, que
solicitaram seu regresso a Maiorca. Ele acaba sendo convencido e retorna à sua
cidade natal, onde, por nove anos, realizou seus estudos e elaborou suas primeiras
obras – o “Compêndio da Lógica de Algazel” (1271-1272) e o “Livro da
Contemplação em Deus” (1274). Após um episódio em que seu escravo mouro
tentou assassiná-lo, Lúlio se afastou definitivamente da vida mundana, passando a
se dedicar à vida contemplativa. Após a tentativa de assassinato, o escravo foi preso
e Raimundo retirou-se para o mosteiro de Santa Maria de Real, onde decidiria se
libertaria o escravo ou se o condenaria à morte (conforme as leis da época). Ao
retornar para casa, passou pela prisão, onde foi informado que o escravo havia se
suicidado. Após esse episódio, Raimundo Lúlio saiu de casa e foi meditar no Monte
Randa, onde surgiu em sua mente – conforme alega em sua autobiografia – uma
iluminação divina sobre como elaborar o livro contra os erros dos infiéis. Foi nesse
período que escreveu a obra “Arte Maior” (posteriormente denominada de “Arte
Geral”). E também mandou edificar um eremitério no Monte Randa, local em que
alega ter recebido a inspiração divina para sua obra. 42.
Após isso, recebeu um convite do rei Jaime II para levar suas primeiras
obras a Montpellier, onde elas foram examinadas e aprovadas por um frade
franciscano43. Raimundo Lúlio aproveitou, então, para solicitar a construção de um
mosteiro onde deveriam ser realizados estudos das línguas dos infiéis. O príncipe
autorizou a construção do Mosteiro de Miramar e em 1276 os franciscanos

41
VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 35-36.
42
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p. 12-14; VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 43-49.
43
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p. 12-14; VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 43-49.
39

iniciaram lá seus estudos. “A fundação foi confirmada em 17 de outubro de 1276


por uma bula do papa Juan XXI”44. Para Lúlio, a construção desses mosteiros
voltados para a aprendizagem das línguas dos infiéis era importante porque o estudo
da linguagem era determinante no processo de conversão muçulmana – sendo ele
próprio fluente em latim, catalão e árabe –, e apenas “sabendo comunicar-se com
os infiéis com linguagem adequada era possível argumentar através da razão a
superioridade da religião Cristã”45.
Finalizado o período de sua formação, Raimundo Lúlio realizou
diversas viagens com o escopo de adquirir ajuda para seus projetos missionários.
Para Ricardo da Costa, o fato dele ter se ausentado de Maiorca no mesmo ano da
realização do Tratado de Perpinhão46 é significativo, pois demonstraria a posição
política de Lúlio diante dessa situação, uma vez que ele só retorna a Maiorca quando
Jaime II é restituído como rei, vinte anos depois da sua saída da ilha. No entanto,
em suas viagens diversas foram as dificuldades por ele enfrentadas na busca desses
propósitos: sua viagem para Roma em 1287, cujo propósito era conseguir auxílio
papal para a construção dos mosteiros, teve como desfecho o recente falecimento
do papa. Então ele seguiu para a Universidade de Paris, no entanto, seu primeiro
contato com os intelectuais parisienses resultou em um fracasso, e, por causa da
forma com que a sua Arte foi apresentada, Raimundo Lúlio acabou se desculpando,

44
COSTA, Maiorca e Aragão..., p. 03..
45
MARRONI, P. C. T.; OLIVEIRA, T. Ramón Llull e O Livro da Ordem de Cavalaria: Tentativa
de Retomada dos Ideais da Cavalaria Cristã. In: VII Congresso Brasileiro de História da
Educação, 2013, Cuiabá. Anais do VII Congresso Brasileiro de História da Educação: Circuitos e
Fronteiras da História da Educação no Brasil, 2013. v. 1. p. eixo 3, p. 02. Disponível em:
<http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/03-
%20FONTES%20E%20METODOS%20EM%20HISTORIA%20DA%20EDUCACAO/RAMÓN
%20LLULL%20E%20O%20LIVRO%20DA%20ORDEM%20DE%20CAVALARIA.pdf>. Acesso
em: 29 de janeiro de 2018.
46
Em 1272, Jaime, o Conquistador elabora o seu testamento, dividindo o reino entre seus dois filhos:
Jaime - que recebeu Montpellier, as ilhas Baleares, os condados de Rossilhão e Cerdanha e as regiões
fronteiriças de Vallespir e Conflent – e Pedro – que ficou com o reino de Aragão, Valência e o
principado da Catalunha. No entanto, com a morte do Conquistador, em 1276, Jaime II se coroou
rei de Maiorca, porém Pedro III, o Grande, não se conformou com a divisão feita por seu pai e, em
1279, por meio do Tratado de Perpinhão, obrigou Jaime II à se reconhecer como seu vassalo,
transformando a Coroa de Maiorca em uma série de distritos territoriais juridicamente integrados à
Aragão. Vale dizer que a Casa Real Francesa, protegida pelo papado (na época o papa era o francês
Urbano IV) , opunha-se às pretensões de Pedro III de Aragão (COSTA, Ricardo da. Maiorca e
Aragão..., p. 04.)
40

em sua obra Compendium seu Commentum artis demonstrativae (1288-1289)47,


por sua maneira árabe de falar.
O filósofo partiu, então, ao encontro de Felipe, o Belo, monarca da
França no período, a quem o filósofo dedicou diversas obras, sendo o “Livro das
Bestas” a primeira delas48. De acordo com Ventorim, “pelas obras escritas nessa
época (entre 1287 e 1289), fica claro que Lúlio tinha como propósito principal
convencer Felipe, o Belo, da necessidade de edificar mosteiros onde se
desenvolvesse o estudo das línguas dos infiéis em Paris, semelhantes a Miramar”49.
Porém ele não obteve sucesso nesse propósito, e retornou para Montpellier em
1289, quando decidiu tornar suas ideias mais compreensíveis, simplificando-as50.
Em 1290 ele vai para Gênova onde, por meio de Raimundo de Gaufredi,
mestre geral da ordem franciscana no período, que o autorizou a pregar nos
conventos franciscanos italianos, ele tem seu primeiro contato com os espirituais
franciscanos. O ano de 1292 inaugura uma nova etapa para Lúlio, onde ele se
aproxima mais de uma vida voltada para as ações em prol dos seus projetos
missionários e menos contemplativa: “suas preocupações agora estavam
relacionadas com a situação política da cristandade” 51. O filósofo sai de Gênova e,
retomando seu plano de conseguir apoio papal para a criação de mosteiros, ele
retorna a Roma, onde roga ao papa Nicolau IV por apoio ao seu projeto e também
pela realização de uma nova cruzada52. Nada tendo conseguido, ele retorna a
Gênova, onde, à idade de sessenta anos, passa pela maior crise espiritual de sua
vida: “temendo ser assassinado pelos sarracenos, ou colocado talvez na cadeia pelo
resto de seus dias, obcecado pelo medo, resolve ficar em terra. A partir desse
momento, cairá sobre ele um estado de escuridão interior, dúvidas e escrúpulos, que
beira o desespero”53.

47
COSTA, Ricardo da. In: LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., op. cit., p. 16.
48
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p.16; VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 50-52.
49
VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 52.
50
Foi nesse momento em que ele escreveu a obra “Ars inventativa veritatis” (1290).
51
VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 56.
52
Para Ventorim, o interesse de Lúlio pelas Cruzadas surge por causa da queda do último reino
cristão em Ultramar, São Juan de Acre. (VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 54).
53
JAULENT, E. Raimundo Lúlio: Um Único Pensamento e Um Único Amor. Instituto Brasileiro
de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramón Llull), s/d, p. 05. Disponível em:
<http://www.Ramónllull.net/sw_studies/pdf/s_vida.pdf>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018.
41

Durante esse período, Lúlio passou por momentos de indecisão sobre


em qual ordem deveria ingressar: a dos Franciscanos ou a dos Dominicanos. Acaba
optando por não se tornar membro de nenhuma delas e decide pela divulgação da
sua Arte. Ele começa a se dedicar à pregação e à missão, durante os anos de 1293 e
1301, realizou viagens entre a África, a Europa e o Oriente, promovendo debates
em busca da conversão dos muçulmanos, buscando apoio papal para a criação dos
mosteiros, o que lhe seria negado54, além de realizar uma segunda leitura pública
da sua arte, em Paris e concluir algumas obras, como a “Árvore da Filosofia do
Amor” (1298). Ele retorna a Maiorca entre 1300 e 1301, onde se deparou com o
abandono do mosteiro de Miramar, o que resultou na escrita de um de seus mais
tocantes poemas: o “Canto de Ramón”55.
Entre 1300 e 1309, Lúlio produziu obras de forma frenética, além de
estar em constante peregrinação, buscando a conversão dos infiéis. Lúlio passou
por Chipre – onde ficou adoentado e acreditou ter sido por obra do clérigo e do
camareiro que o acompanhavam56, fugiu então para Famagusta, ficando aos
cuidados de Jacques de Molay, o mestre dos Templários. Depois de recuperado,
dirigiu-se à Armênia, novamente a Chipre, a Malta e depois regressou a Maiorca.
Em 1303, seguiu para Montpellier, passou por Gênova e depois retornou a
Montpellier, local em que assistiu a uma conferência do papa Clemente V. Lúlio,
então, passou brevemente por Barcelona e se dirigiu para Lyon, onde tentou
novamente o apoio papal, mas teve seus apelos outra vez ignorados. Ele se retirou
da corte do papa e rumou para Paris, em seguida para Pisa, onde pretendia embarcar
para Beberia, mas não encontrou nenhuma embarcação que possibilitasse essa
viagem. Em 1307, ele decidiu voltar para Maiorca e depois se dirigiu a Bugia, onde
provocou a ira dos muçulmanos com suas pregações e acabou sendo preso e quase
morto pela população57.

54
O papa Nicolau IV faleceu em 1292, e Lúlio só volta a buscar apoio pontifício com o papa
Celestino V (eleito em 1294), a quem dedica o tratado denominado de “Petitio Raymundi pro
conversione infidelium ad Coelestinum V papam”, entretanto, Celestino abdica do papado,
frustrando novamente os planos de Raimundo. É então eleito um novo papa, Bonifácio VIII, para
quem o filósofo apresenta nova petição, a “Petitio pro conversione infidelium”, que é recusada.
55
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p. 18-26; VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 52-62.
56
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p. 28.
57
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p.28; VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 62-66.
42

De acordo com a Vita Caoetania, o bispo da cidade o livrou da morte,


e com a intervenção de alguns catalães e genoveses, ele conseguiu o abrandamento
do rigor do cárcere. Os muçulmanos começaram então a tentar convertê-lo e o
filósofo acabou por convencê-los à disputarem com ele, devendo os sábios do Islã
provarem os erros do cristianismo e a verdade do islamismo58. Conta Lúlio que eles
não obtiveram êxito e o rei de Bugia o expulsou da cidade, proibindo-o de
permanecer ou regressar, sob o risco de morte59. Também foi determinado que ele
estava proibido de desembarcar em terras de mouros. Ele, então, embarcou para
Gênova, porém houve uma forte tempestade e a embarcação foi lançada contra o
litoral de Pisa, sobrevivendo apenas Raimundo Lúlio e um marujo. Permaneceu em
Pisa, no convento de São Domingo, de 1307 até 1308, onde compôs novas obras, e
tentou organizar uma cruzada. Quando deixou Pisa, foi em direção à corte papal,
em Avinhão, levando consigo recomendações para o papa e os cardeais por parte
do governo de Pisa, entretanto, de nada adiantou e seus pedidos ao pontífice foram
novamente frustrados60.
Dirige-se novamente a Paris, onde expôs sua Arte, alcançando um
público maior e conseguindo a aprovação de muitos, que entenderam suas ideias
como autênticas “para os argumentos filosóficos e os princípios da Teologia”61.
Porém, ele encontrou resistência entre alguns mestres de Paris, que tinham ideais
averroístas62, o que levou o filósofo a dedicar-se ao banimento de tais ideias. Ele
chegou a pedir, no final do livro “De natali Parvuli Pueri Jesu”, que Felipe, o Belo,
banisse da Universidade de Paris as teses averroístas63. Nessa viagem a Paris foi
quando obteve maior êxito, pois,

58
Raimundo Lúlio propôs que cada um elaborasse um livro de diálogos e de defesa de sua fé. Foi
quando ele começou a escrever a “Disputa de Raimundo, o cristão e O'Mar, o Sarraceno”.
59
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p. 30-34.
60
LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., p. 34;VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 67-69.
61
VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 69.
62
O termo averroísmo designa a doutrina de Averróis (1126-1198), como foi entendida e interpretada
pelos escolásticos medievais e pelos aristotélicos do Renascimento. Resumia-se nos seguintes
fundamentos: l. eternidade e necessidade do mundo: tese contrária ao dogma da criação; 2. separação
do intelecto ativo e passivo da alma humana e sua atribuição a Deus; essa tese, atribuindo à alma
humana só uma espécie de imagem do intelecto, despojava-a de sua parte mais alta e imortal; 3.
doutrina da dupla verdade, isto é, de uma
verdade de razão, que se pode extrair das obras de Aristóteles, o filósofo por excelência, e de uma
verdade de fé: ambas podem opor-se. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 100).
63
VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 69-70.
43

de acordo com um documento datado de 1310, quarenta mestres


e bacharéis da Universidade de Paris aprovaram a doutrina de
Raimundo Lúlio. Por outro documento, de dois de agosto de
1310, Raimundo conseguiu do rei da França cartas de
recomendação para pregar em todos os territórios da cristandade,
especialmente, para os seus súditos. Segundo um terceiro
documento, de nove de setembro de 1311, Francisco de Nápoles,
chanceler da Universidade, por ordem do rei examinou várias
obras de Lúlio e considerou-as corretas com relação à fé católica,
cheias de zelo e retidão, bem escritas com o propósito de
promover a fé cristã64.

Lúlio viveu até cerca de 1316, tendo deixado Paris após ditar a Vita
Coetania, em finais de 1311. Ele ainda viajou para Montpellier (1312), Maiorca
(1313), Messina (1313-1314), e em uma missão ao norte da África (1314-1315).
Após a finalização da sua autobiografia, ele ainda escreveu pelo menos mais
sessenta obras65. De forma geral, as mais de duzentas obras de Raimundo Lúlio
“revelam o intuito da conversão do islã, do fortalecimento da fé cristã por meio da
educação de vários segmentos da sociedade, tais como as crianças e os
cavaleiros”66. Por sua vez, suas viagens e frequente deslocamento evidenciam um
trânsito constante entre poderes régios e eclesiásticos, incluindo o papado. Era, a
despeito das tensões e conflitos provocados, um filósofo plenamente inserido entre
as elites cristãs que se consideravam ortodoxas.
A leitura de sua biografia nos permite observar que a figura de
Raimundo Lúlio, tal qual Nicolau Eymerich, também possuiu uma vida política
conturbada. Mas, diferente do inquisidor, o filósofo catalão conseguiu, ainda em
vida, a aceitação das suas ideias entre as elites cristãs ortodoxas. O que resultou em
uma difusão da sua filosofia entre figuras de autoridade no Ocidente Cristão. É o
que observamos na Aragão do século XIV: a filosofia luliana produziu seguidores
e defensores de grande importância, tanto no clero quanto na nobreza, e foram com
essas personalidades – dentre as quais se destaca o próprio rei de Aragão - que
Nicolau Eymerich tão arduamente antipatizava.

64
VENTORIM, As Ideias Políticas..., p. 70-71.
65
COSTA, Ricardo da. In: LÚLIO, Raimundo. Vida Coetânia..., op. cit., p. 36.
66
MARRONI, P. C. T. Ramón Llull e O Livro..., p. 02.
44

1.1.3 Um foco de tensões entre realeza e Inquisição: a trajetória intelectual do


filósofo Raimundo Lúlio sob a mira de Eymerich

A filosofia de Raimundo Lúlio sobreviveu à sua morte. E na Catalunha


do tempo de Eymerich, não era possível duvidar da influência desse filósofo:

A ampla divulgação de suas obras e sua doutrina são provas


claras disso. Já em meados do século XIV, quase imediatamente
após a sua morte (1315), foram construídas, em Barcelona (1330)
e em Maiorca, escolas lulianas. E, no final do século (1392),
Berenguer de Fluvia constituiu a Universidade Luliana de Palma.
Além disso, em nenhuma universidade - Estudi General - do
reino, faltava a cadeira de filosofia luliana. [...] Na vida do autor
e no espaço de setenta anos, suas doutrinas se espalharam
pacificamente; mas, desde o momento em que alguns lulianos
sediciosos se juntaram ao begardismo e ao “profetismo” místico,
surgiu o duro combate por parte dos dominicanos, cujo porta
estandarte era Nicolau Eymerich67.

O inquisidor se lançou em uma empreitada que perseguia membros da


elite clerical ao invés da comunidade leiga, como os dominicanos Vicente Ferrer e
Raimundo de Tárrega, os franciscanos Nicolau de Calábria e Pedro de Bonageta,
além dos próprios seguidores de Raimundo Lúlio. A consequência disso foi que
Eymerich acaba tendo seu caminho bloqueado por diversas figuras de autoridade
que apoiavam esses indivíduos68, como é o caso do rei Pedro IV de Aragão.
Portanto, ao analisarmos a situação deste inquisidor, podemos perceber
que, diferente da ideia que uma primeira leitura de seu manual provoca – a
Inquisição como um “poder inquestionável”, fruto de uma lógica férrea e
irretorquível69, utilizado pela igreja contra todos aqueles que se apresentassem
contrários a ela –, a própria comunidade clerical se portava como uma fonte de
conflitos para Eymerich. Como é o caso de quando Pedro, o Cerimonioso autoriza,
em 1369, os ensinamentos de Lúlio na Coroa aragonesa, pois Nicolau Eymerich já

67
MONTANÉ, Pedro Ribes. La Ortodoxia de Ramón Llull. Analecta Sacra Tarraconensia,
Barcelona, n 40.1. 1967, p. 80-83. Disponível em: <
http://www.icatm.net/bibliotecabalmes/sites/default/files/public/analecta/AST_40.1/AST_40_1_77
.pdf>. Acesso em: 11 de maio de 2017.
68
SULLIVAN, The Inner Lives..., p. 170.
69
Expressão utilizada por BOFF, Leonardo. Prefácio. In: EYMERICH, Nicolau. Directorium
Inquisitorum: Manual dos Inquisidores. 2 ed. Rosa dos Tempos: Brasília, 1993.
45

havia iniciado sua campanha contrária70, temendo, alega-se, que a difusão dessa
filosofia fosse um perigo para a ortodoxia católica71.
A empreitada em busca da destruição da filosofia luliana é tão
importante para Eymerich que, em 1371, o inquisidor adverte o papa sobre os
perigos das obras de Lúlio e o pontífice requer, então, que o arcebispo de Tarragona
leve algumas obras para serem examinadas. Dessa decisão resulta uma alegada
proibição das vinte obras verificadas. Teria sido, então, elaborada a suposta bula
Conservationi Puritatis Catholicae Fidei (1374) – cuja autenticidade é duvidosa –
do papa Gregório XI, “que exigia que tudo relacionado a Raimundo Lúlio e à Escola
Luliana fosse coletado para exame, e que as pessoas relacionadas à doutrina Luliana
fossem denunciadas”72.
“Essas ações, no entanto, provocaram raiva em todos os níveis da
sociedade catalã, inclusive no rei Pedro”73. Dessa forma, o monarca, sofrendo
pressão por parte dos familiares e amigos de Raimundo Lúlio, além de setores do
próprio clero local, requisitou, em janeiro de 1377, que o papa reanalisasse as obras
de Lúlio em Barcelona, utilizando-se de especialistas conhecedores de catalão74.
Mas é apenas em março de 1386, em uma comissão presidida pelo então Grão-
Inquisidor de Aragão, frei Bernardo Ermengaudi e constituída por dois dominicanos
e seis franciscanos, que ocorre a revisão das proposições extraídas por Eymerich. A
comissão concluiu, então, que a bula era justa, mas que os trechos não se
encontravam na obra de Lúlio, “Desta forma, Bernardo Ermengaudi deixava intacta
a bula Conservationi puritatis Catholicae fidei, mas salvava o trabalho de
Raimundo Lúlio, acusando o inquisidor de não o compreender e, até mesmo, de
manipulá-lo”75. Nota-se, portanto, que Eymerich se apresenta como um episódio
em que a Inquisição enfrenta oposição eclesiástica.

70
OLIVER, El Tractat “Confessio Fidei..., p. 10.
71
MONTANÉ, La Ortodoxia..., p. 81.
72
RAMIS BARCELÓ, R. El Proceso de la Inquisición contra la Lectura del Arte de Ramón Llull en
La Universidad de Zaragoza (1610). Hispania Sacra, Madrid, vol. 66, Extra 01, jan./jul. 2014, p.
134. Disponível em: <
http://hispaniasacra.revistas.csic.es/index.php/hispaniasacra/article/viewFile/396/397>. Acesso em:
11 de maio de 2017.
73
RYAN, A Kingdom of Stargazers..., p. 126-127.
74
OLIVER, El Tractat “Confessio Fidei..., p. 11.
75
RAMIS BARCELÓ, El Proceso de la Inquisición..., p. 134.
46

No entanto, essa decisão perdurou por pouco tempo, pois já no ano


seguinte, Juan I, filho e sucessor de Pedro IV no governo da Coroa de Aragão,
devolveu a Eymerich o cargo de Inquisidor Geral e proibiu o ensino luliano. Porém,
“o novo rei, apenas um ano depois, se arrepende da sua decisão”76. Forçando
Eymerich a um novo exílio, que lhe permitiria retornar à Catalunha apenas em 1397,
após a morte de Juan I, para falecer em seu convento de origem dois anos depois.
No ano de 1393, podemos perceber que o relacionamento entre Eymerich e Juan se
rompeu completamente. O rei escreveu para os administradores seculares e
eclesiásticos em seu reino, referindo-se a Eymerich como “um homem pestilento e
um inimigo público, um lobo de quem os pastores da Igreja devem proteger os
rebanhos e, o mais condenatório de todos, um ‘filho da maldade’ e ‘uma víbora
venenosa’”77, além de advertir aos seus administradores que qualquer consolo ou
assistência para o exilado resultaria em ganho da ira e indignação real78. Aqui, uma
observação: referir-se a um adversário como “o lobo que ameaça o rebanho da
Igreja” é uma atitude, então, já característica da linguagem inquisitorial. Eymerich
foi rotulado de uma maneira muito semelhante àquela com que papas e inquisidores
haviam rotulado hereges, dissidentes e desobedientes.79
Conforme observou Sullivan, “seja por causa dos ataques injustificados
de Eymerich contra os lulianos e outros católicos respeitados, ou devido à proteção
injustificada das autoridades eclesiásticas e seculares por aqueles heréticos,
Eymerich não conseguiu erradicar os erros que ele via em torno dele”80. Porém,
apesar desse dominicano ter sido quase impotente como inquisidor em seu tempo,
ironicamente, o seu manual inquisitorial, que analisaremos mais adiante nesta
dissertação, serviu de base para a Inquisição Espanhola Moderna, tendo sido
editado cinco vezes em um espaço inferior a trinta anos. A versão que utilizamos
nesta dissertação é aquela editada e comentada por Francisco de la Peña (1578).

76
BOADAS LLAVAT, A. Nicolau Eimeric, un dominico antilulista. In: BUENO GARCÍA,
Antonio. PÉREZ BLÁZQUEZ, David; SERRANO BERTOS, Elena (eds). Dominicos 800 años:
labor intelectual, lingüística y cultural. Caleruega: Editorial San Esteban, 2016, p. 421. Disponível
em: <http://traduccion-dominicos.uva.es/caleruega/pdf/25_BOADAS.pdf>. Acesso em: 11 de maio
de 2017.
77
RYAN, A Kingdom of Stargazers..., p. 127-128.
78
RYAN, A Kingdom of Stargazers..., p. 128.
79
Como podemos ver em bulas papais como a “Ad Abolendam” (1184) de Lúcio III e a “Vergentis
in Seniun” (1199) de Inocêncio III.
80
SULLIVAN, The Inner Lives..., p. 170.
47

O Directorium Inquisitorum apresenta tamanho contraste com as


vivências de seu autor durante a prática de seu oficio que resultou em levar “o mito
e a realidade da fúria inquisitorial de Eymerich a um lugar único entre os
inquisidores dominicanos”81. Transformando a figura de Nicolau Eymerich em
objeto de interesse não só entre os historiadores, mas também de um público muito
maior, culminando na produção de itens de consumo popular, como a série de livros
escrita por Valerio Evangelisti, denominada de “Ciclo di Eymerich” e composta
pelos volumes: “Nicolas Eymerich, inquisitore (1994); “Le Catene di Eymerich”
(1995); “Il Corpo e il Sangue di Eymerich” (1996); “Il Mistero dell’inquisitore
Eymerich” (1996); “Cherudek” (1997); “Picatrix. La Scala Per l’inferno” (1998);
“I Sentieri perduti di Eymerich” (2000); “Il Castello di Eymerich (2001); “Mater
Terribilis” (2002); “La Furia di Eymerich” (2003); “La sala di Giganti” (2006); “La
Luce di Orione” (2007); “Rez Tremendae Maiestatis (2010)”. Bem como o
desenvolvimento de um jogo para computador e celulares, nomeado como Nicolas
Eymerich, Inquisitor: The Plague, uma aventura gráfica inspirada nos romances de
Evangelisti e desenvolvida pelas empresas italianas TiconBlu e Imagimotion no ano
de 2012. Além da figura do inquisidor ter servido como principal antagonista para
o livro de estreia do escritor e advogado espanhol Ildefonso Falcones, “La Catedral
del Mar” (2006).
Para Sullivan, no entanto, se o Directorium Inquisitorum

destaca-se hoje para nós, como fez para os filósofos do


Iluminismo, é, em defesa explícita do tratamento severo das
partes acusadas. Eymerich estava longe de ser o primeiro
inquisidor a enganar e torturar os acusados ou a queimar a estaca
depois de terem sido provados culpados, mas ele foi o primeiro
que consideramos ter abordado e justificado essas práticas ao
longo do tempo82.

E ela tem razão. Porém, com o que foi até agora apresentado, podemos
afirmar que isso é muito menos resultado do próprio inquisidor e muito mais
consequência do ambiente de inversões em que ele viveu e que expandiu. Sua
própria carreira eclesiástica serve para ilustrar tal afirmação, tendo se tornado

81
VARGAS, Taming a Brood of Vipers..., p. 290.
82
SULLIVAN, The Inner Lives..., p. 171.
48

inquisidor três vezes, em um período pouco maior de 30 anos (1357-1388) e tendo


sido afastado do cargo em todas elas. Eymerich não só vivenciou intensas e
constantes inversões em seu papel eclesiástico, como essas foram consequências
diretas do permanente conflito com a autoridade civil e com algumas figuras fortes
do cristianismo da época. Ao observarmos o contexto histórico por ele vivenciado,
nos deparamos com um quadro muito maior de pressões que acabaram por colocar
inquisidor e rei em polos opostos do reino, mostrando que as relações políticas
existentes na Coroa de Aragão do século XIV formaram tensões políticas que
transformaram as exceções em regra.
A sua obra máxima, o Directorium Inquisitorum, é outro exemplo desse
contraste entre o que se almeja ser e o que se foi. Pois se nele o papel do inquisidor
surge recheado de resguardo social, tornando obrigação da autoridade civil e dos
bispos facilitarem e auxiliarem o trabalho inquisitorial, na prática, podemos dizer
que os escritos de Eymerich invertem suas vivências – marcadas pela ausência do
apoio necessário para implantar suas decisões, por confrontos com a autoridade
régia e religiosa, e por uma atuação inquisitorial limitada por um verdadeiro rosário
de obstáculos e oposições. Portanto, o manual não é só uma obra que descreve o
procedimento inquisitorial. Ele é, em si, uma prática política.

1.2 Modelando a Hipótese: a ideia e o nome “Bruxaria” como objeto de


pesquisa

Apesar de não encontrarmos no Directorium Inquisitorum a palavra


bruxaria propriamente dita, é possível observar no texto de Eymerich os diversos
elementos utilizados para construir essa nova categoria de delitos. Segundo Alain
Boureau, “bem antes do aparecimento das primeiras descrições coerentes e
concordantes do sabbat das bruxas, a partir de 1430, a via estava aberta ao
tratamento inquisitorial dos invocadores de demônios”83. Para esse historiador, há,
no início do século XIV, uma mudança na forma com que os demônios eram
percebidos84. Assim,

83
BOUREAU, Alain. Satã Herético: O Nascimento da Demonologia na Europa Medieval (1260-
1330). Campinas: Editora da Unicamp, 2016, p. 28.
84
BOUREAU, Satã Herético..., p. 17.
49

Uma consulta foi lançada pelo papa Juan XXII em 1320: ele
procurava obter de dez teólogos e canonistas argumentos que
permitiriam qualificar a invocação dos demônios e a prática da
magia como heresia. O salto foi grande. Treze séculos de
cristianismo tinham estabelecido que a heresia residia apenas no
pensamento e na palavra, não nos atos. Essa classificação abria a
via aos procedimentos excepcionais de inquérito e repressão dos
tribunais inquisitoriais, com a função exclusiva de perseguir a
heresia85.

O papa Juan XXII, tentando assimilar a invocação dos demônios à


heresia, lançou uma revolução doutrinal que “consistia em tratar atos, fatos, como
heréticos, contra uma tradição antiga e contínua da Igreja que apresentava a heresia
como opinião”86, e que serviu para o desenvolvimento rápido da demonologia. No
entanto, ele era reticente em confiar as causas demoníacas à Inquisição. Apesar da
resposta mais comum relacionar “essa escolha ao caráter político dos negócios nos
quais o demônio parece intervir como pretexto e não como causa”87. Para Alain
Boureau, tal reticência deve-se a uma grande desconfiança com relação à Inquisição
– pois, afirma o autor que, os “inquisidores tinham tendência a perseguir sem
considerar posições sociais nem circunstâncias políticas”88 – juntamente da extrema
impopularidade da Inquisição, além da falta de respeito de alguns inquisidores pelo
direito89. De acordo com o historiador, “a instituição [Inquisição] permaneceu
profundamente teológica e não jurista”90.
Entretanto, a bula Super illius specula, que abordava questões
referentes à demonologia e foi escrita por Juan XXII em 1326, só seria retomada
cinquenta anos após sua primeira publicação, justamente por Nicolau Eymerich91.
E apesar de concordarmos com Boureau sobre o desenvolvimento da demonologia
ter ocorrido muitas décadas antes da explosão da “demonomania”, ao retomarmos

85
BOUREAU, Satã Herético..., p. 17.
86
BOUREAU, Satã Herético..., p. 40.
87
BOUREAU, Satã Herético..., p. 49.
88
BOUREAU, Satã Herético..., p. 50.
89
De acordo com Boureau, “o pontífice [Juan XXII] estava muito irritado com a falta de respeito de
alguns inquisidores pelo direito”. (BOUREAU, Alain. Satã Herético: O Nascimento da
Demonologia na Europa Medieval (1260-1330). Campinas: Editora da Unicamp, 2016, p. 52).
90
BOUREAU, Satã Herético..., p. 52.
É preciso esclarecer que a hipótese defendida por esta dissertação diverge da afirmação de Boureau.
91
BOUREAU, Satã Herético..., p. 27.
50

a concepção de bruxaria como um discurso de inversão da correta ordem do mundo,


percebemos que esses elementos reversíveis estão presentes em casos em que o
demônio não está. Ou seja, não é necessária a obsessão por Satã para que apareçam
pensamentos de inversão – aspecto fundamental para o surgimento do discurso de
bruxaria. De fato, a bruxaria demoníaca seria sua última camada, mas não a única.
É o que ocorre no próprio vocabulário do Directorium, que frustra a expectativa do
leitor moderno, acostumado com referências diretas à bruxaria como seita
demoníaca92 , ao apresentá-la em um conjunto maior de personagens – mágicos,
adivinhos, hereges –, cujos contornos se confundem com os de diversas outras
práticas de latria.
Os usos posteriores do Manual Inquisitorial de Nicolau Eymerich
servem para ilustrar duas coisas relevantes. A primeira é a reinvenção desse manual
como representante de uma força inquisitorial que, conforme discutimos
anteriormente neste capítulo, faltava politicamente a seu autor. E a segunda é que
apesar da falta do termo explícito “bruxaria”, essa ainda foi encontrada pelos
clérigos.
É o que pode ser percebido com o comentário feito pelo dominicano
Francisco de La Peña93, no item sobre necromantes, presente na segunda parte do
Directorium, em que ele afirma que

[não há] nada de reprovável no exercício destes dois tipos de


magia [magia natural e magia matemática]. Mas deles nasce um
terceiro outro tipo: a bruxaria (venefica) ou magia maléfica, que
se utiliza fartamente de encantações e invocações de espíritos
impuros. Há, na sua origem, uma curiosidade perversa. Alguém
se entusiasma pelos prodígios do automatismo e, incapaz de
realiza-los, invoca o demônio, suplicando que venha em sua

92
Como é possível encontrar no Malleus Maleficarum (1487), um manual inquisitorial voltado
exclusivamente para a bruxaria, e em que seus autores afirmam que: “(...) a opinião mais certa e
mais católica é a de que existem feiticeiros e bruxas que, com a ajuda do diabo, graças a um pacto
com ele firmado, se tornam capazes, se Deus assim permitir, de causar males e flagelos autênticos e
concretos, o que não torna improvável serem também capazes de produzir ilusões visionárias e
fantásticas, por algum meio extraordinário e peculiar. O escopo da presente investigação, entretanto,
só abrange a bruxaria, que difere muitíssimo de todas essas outras artes ocultas”. (KRAMER,
Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: O Martelo das Feiticeiras. 16 ed. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002, p 56, grifos nossos). Geralmente é essa categoria plenamente
diferenciada, conforme estabelecido por Kramer e Springer, que o leitor moderno busca ao deparar-
se com a temática da bruxaria.
93
Francisco de La Peña editou o Directorium Inquisitorum no final do século XVI – século este
que foi considerado como o auge da Caça às Bruxas.
51

ajuda para que também possa praticar essas maravilhas. É sobre


estas pessoas que Eymerich está falando, quando diz “mágicos
heréticos”. Trata-se, na verdade, de partidários desse tipo de
magia”94

Esse trecho demonstra que as reedições do Directorium Inquisitorum


encontraram práticas mágicas que dão origem à bruxaria combatida pela Inquisição
a partir do século XV. Pois, sendo a bruxaria o produto de um pensamento de
inversões, é possível encontrar em Eymerich a ideia da bruxaria sem que o nome
bruxaria surja de forma taxativa. Isso ocorre porque há, de fato, no manual um
fundamento – aliás, segundo Clark, “o” fundamento95 – do pensamento sobre a
bruxaria: a existência de um campo jurisdicional definido por figuras de inversão.
Ademais, também discordamos da noção de direito compreendida por
Boureau, uma vez que acreditamos que ele “se manifesta através de um universo de
sinais que são inúmeros institutos da organização e do fluxo jurídico, pontas visíveis
de um enorme universo submerso de valores históricos”96 e não que está reduzido
à “um conjunto de comandos, e o produtor do direito sobretudo à autoridade dotada
de poderes eficazes de coação”97. Essa ideia desconsidera que o direito possui
historicidade e, portanto, que ele é “expressão natural e inseparável da comunidade
que, ao produzir o direito, vive sua história em toda sua plenitude”98. No caso
específico do direito medieval, ele surge:

como uma grande experiência jurídica que abriga uma infinidade


de ordenamentos, em que o direito – antes de ser norma e
comando – é ordem, ordem do social, movimento espontâneo,
isto é, que nasce das bases, de uma civilização que protege a si
mesma da rebeldia da incandescência cotidiana, construindo para
si essas autonomias, verdadeiros refúgios para indivíduos e
grupos. A sociedade plasma-se de direito e sobrevive, pois ela
mesma, por sua articulação em ordenamentos jurídicos, é acima
de tudo direito99.

94
PEÑA, Francisco de La. F. Indícios exteriores pelos quais se reconhecem os hereges: 29. Os
Necromantes. In: EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum: Manual dos Inquisidores. 2 ed.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 134.
95
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 40.
96
GROSSI, Paolo. A Ordem Jurídica Medieval.São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 06.
97
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 23.
98
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 23.
99
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 39.
52

Assim, os inquisidores, apesar de, como defende Alain Boureau, seu


aparente “desrespeito pelas normas jurídicas” (afirmação esta que é contrária ao
que defendemos nesta dissertação, pois acreditamos que tal pensamento está em
desacordo com a própria ideia de direito no medievo) são, em si próprios,
produtores do direito. Atuam como intérpretes, mas respaldados por uma autonomia
propiciada pela experiência jurídica presente no tempo de suas vidas. E é por meio
da escrita do Directorium Inquisitorum que Nicolau Eymerich, se efetivando como
produtor do direito, insere-se nos múltiplos ordenamentos jurídicos próprios do
medievo, modificando a forma com que a Inquisição aborda as práticas mágicas.
Conforme veremos no capítulo a seguir.
53

CAPÍTULO 02
AS RELAÇÕES DE PODER NAS BARRAS DA JURISDIÇÃO:
O DIRECTORIUM INQUISITORUM COMO ORDENAMENTO
JURÍDICO

“Toda alma esteja sujeita às


autoridades superiores; porque não há
autoridade que não venha de Deus; e
as que existem foram ordenadas por
Deus”.
(Romanos 13:01)

2.1 Usos Inquisitoriais do Passado: o inquisidor e a produção da tradição

O Directorium Inquisitorum de Nicolau Eymerich é considerado por


muitos como o grande manual inquisitorial, com reedições de 1503 até o século
XVIII e servindo como base para a maior parte dos ritos utilizados pela Inquisição
Espanhola1, fundada em 1478. Em matéria de bruxaria, esse manual inquisitorial é
reconhecido como um dos primeiros registros documentais responsável por abordar
a bruxaria como matéria canônica consistente2. Mas, afinal, qual é, para Eymerich,
a jurisdição do Inquisidor? Como ele a pratica? E qual é o lugar da bruxaria nessa
jurisdição? Essas são as principais questões que aqui objetivamos analisar.
Com o Directorium Inquisitorum, Nicolau Eymerich busca responder a
alguns assuntos que considera de suma importância para a prática do Santo Ofício.

1
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos
XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 23.
2
PETERS, Edward. The Magician, the Witch, and the Law. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1978, p. 160-197.
54

Assim, o manual inquisitorial que nos serve de fonte subdivide-se em três partes:
“A Jurisdição do Inquisidor”, “A Prática Inquisitorial” e “Questões Referentes à
Prática do Santo Ofício da Inquisição”. Em se tratando da terceira parte, essa afirma
claramente a finalidade do Directorium Inquisitorum: abordar a prática
inquisitorial. Além desses tópicos, todos presentes na versão traduzida para o
português, no texto original em latim, antes de apresentar as questões existentes na
primeira e na segunda parte, Eymerich seleciona os documentos canônicos que
foram usados para embasar sua obra, como os cânones de concílios, especialmente
o Lateranense IV e diversas bulas papais. E quanto às respostas dadas por Eymerich
em relação aos questionamentos levantados, estas raramente exibem dúvidas ou
opiniões contrárias3.
Aliás, na seleção de obras eclesiásticas da primeira parte do manual,
Eymerich proporciona a justificativa teológica para o combate herético por meio da
Inquisição, retomando declarações de direito canônico de Inocêncio III, Agostinho,
Graciano e, principalmente, São Tomás de Aquino – teólogo cujas ideias são
refletidas em todas as questões presentes na primeira parte do Manual4. É possível
observar que na segunda parte do manual, por sua vez, há continuidade ao já
realizado na primeira parte, porém as fontes de direito eclesiásticos usadas de forma
mais contundente são alternadas. Ele se volta, então, principalmente para as glosas,
como a glosa do Hostiense sobre as decretais. Segundo Hill, essa parte representa
uma lista padrão e autoritária dos canonistas5, pois a seleção realizada por Eymerich
na segunda parte do manual é feita dentro de um rol de textos que eles tendiam a
utilizar. Esse exercício resulta numa aparente tradição jurídica canônica.
No entanto, faz-se necessário esclarecer que o que aqui compreendemos
por tradição está de acordo com Gérard Lenclud. Esse autor afirma ser essa “um
‘ponto de vista’ que os homens do presente desenvolvem sobre o que os precedeu,
uma interpretação do passado conduzida em função de critérios rigorosamente

3
HILL, Derek Arthur. Change in the Fourteenth-Century Inquisition seen through Bernard Gui’s
and Nicholas Eymerich’s Inquisitors’ Manuals. 2015. 262f. Tese (PhD) – Birkbeck College,
University of London, Londres, 2015, p. 51.
4
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 51.
5
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 52.
55

contemporâneos”6. Isto significa dizer que a tradição seria moldada não do passado
para o presente, e sim ao contrário. Ademais, a tradição “não se contenta de dizer
alguma coisa do passado, ela o diz em vista de certos fins que comandam,
seguramente, o conteúdo da mensagem”7, funcionando não só como um ponto de
vista, mas como um dispositivo cuja utilidade geral está em “fornecer ao presente
uma caução para o que ele é”8 e a utilidade principal é a de “oferecer a todos aqueles
que a enunciam e a reproduzem no dia-a-dia o meio de afirmar sua diferença e, por
isso mesmo, de assentar sua autoridade”9.
Assim, nos é possível reconhecer a existência de uma multiplicidade de
tradições ao invés de uma tradição consolidada. Se tratando do período estudado,
conseguimos observar a presença de uma pluralidade de pontos de produção da dita
tradição. Ao analisarmos o recorte de cânones realizado pelo inquisidor, que
compreende uma seleção própria de forma a concordar com a ideia que ele possuía
sobre fé e heresia, conseguimos vislumbrar um destes pontos de produção da
tradição. Isso ocorre porque seu material inquisitorial, ao mesmo tempo que
justificava o exercício da Inquisição – retomando textos canônicos de autoridades
eclesiásticas reconhecidas – servia como fundamento para o reconhecimento da
autoridade do inquisidor. Dessa forma, podemos dizer que Nicolau Eymerich faz
parte de uma sociedade constituída por uma multiplicidade de tradições jurídicas.
O inquisidor estava inserido em “um universo de ordenamentos
jurídicos, ou seja, de realidades “autônomas”, de realidades [...] caracterizadas pela
‘autonomia’”10. O que pode ser observado especialmente ao se comparar com a
terceira parte do Directorium Inquisitorum, onde Eymerich, apesar de ainda utilizar
fontes do direito canônico, também proporciona outras fontes. Isso ocorre porque a
terceira parte do manual aborda assuntos relacionados à prática inquisitorial
propriamente dita. No caso de Eymerich, ele recomenda a utilização de documentos
por ele mesmo elaborados, além de apresentar, em diversos momentos, um

6
LENCLUD, G. A Tradição Não é Mais o Que Era... Sobre as Noções de Tradição e Sociedade
Tradicional em Etnologia. História, histórias, Brasília, vol. 01, n. 01, 2013, p. 157. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/viewFile/9366/6958>. Acesso em: 18 de abril de
2017.
7
LENCLUD, A Tradição..., p. 158.
8
LENCLUD, A Tradição..., p. 158.
9
LENCLUD, A Tradição..., p. 158.
10
GROSSI, Paolo. A Ordem Jurídica Medieval.São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 58.
56

formulário a ser utilizado pelos novos inquisidores. Esses formulários compõem a


descrição para a realização de procedimentos inquisitoriais, e estão intercalados
com conselhos e instruções para o bom desenrolar de tal prática. Também é possível
perceber a influência direta de outros textos na construção de partes do manual11.
Eymerich, ao escrever seu manual, o faz de forma a aparentar que este
era uma mera transcrição da realidade. Porém, ao mesmo tempo em que ele tenta
se vincular à uma suposta “tradição jurídica”, ele se coloca como produtor do
direito, afirmando sua autonomia em relação às demais fontes canônicas. E isso
ocorre porque

A entidade autônoma nunca se mostra como algo per se stat,


totalmente desvinculada do restante; antes, é pensada – ao
contrário – como perfeitamente inserida no centro de um denso
tecido de relações que a limita, a condiciona, mas também lhe dá
concretude, porque nunca é concebida como solitária, e sim
imersa na trama de relações com outras autonomias. O mundo
político-jurídico é um mundo de ordenamentos jurídicos, por ser
um mundo de autonomias12.

Portanto, ao analisarmos o processo de confecção do Manual


Inquisitorial realizado por Eymerich, podemos observar que ele se insere,
essencialmente, como um intérprete da lei canônica. No entanto, “a interpretatio
dos medievais não é redutível a um processo meramente recognitivo, ou seja,
meramente cognoscitivo da norma. A interpretatio é também um ato de vontade e
de liberdade do intérprete”13, já que desperta a criatividade dele e este

tinha, portanto, a possibilidade de fortalecer o direito legal com


elementos externos, de colocar-se como mediador entre o reino
das formalidades e o reino dos fatos e de criar, assim, novas
figuras jurídicas sem comprimir o novo nas estruturas do velho,
mas adaptando ao novo – e até mesmo sacrificando-os – os
esquemas tradicionais14.

E é essa autonomia jurídica, característica do período estudado, que nos


permite elencar o Directorium Inquisitorum como fonte de direito canônico, pois

11
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 55.
12
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 59.
13
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 203.
14
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 209.
57

“toda fonte jurídica assume necessariamente um nítido caráter ‘interpretativo’”15. E


no caso do Directorium, o exercício de interpretatio realizado por Eymerich em seu
manual aparece com clareza quando o autor busca se inserir dentro de uma aparente
tradição. Ele respalda sua obra em diversas fontes eclesiásticas, ao mesmo tempo
que procura alargar os limites da função inquisitorial, trazendo inovações – que
serão mais tarde abordadas neste capítulo – à própria designação do que é de
competência do Santo Ofício. Porém, antes de nos debruçarmos sobre as nuances
das práticas inquisitoriais elencadas por Eymerich, vamos analisar o processo de
instauração do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, buscando compreender o
que se entende por jurisdição e como se constituiu a jurisdição inquisitorial.

2.2 O Sentido da Jurisdição no Quadro da Igreja Medieval

O termo jurisdição tem origem na palavra latina iurisdictio, que


significa “dizer o direito”. De fato, jurisdição pode ser compreendida como a
capacidade de se criar e aplicar normas jurídicas. Em nossa sociedade, essa é uma
característica compreendida como exclusiva do Estado16, cabendo a este o poder de
aplicar o direito aos casos concretos por meio de órgãos e instituições próprias17.
Porém, é preciso observar que as palavras “possuem história, isto é, também elas
estão inseridas num mundo mutável. Embora as palavras possam continuar sendo
escritas do mesmo jeito, as pessoas podem usá-las em outros sentidos, de acordo
com a ideia que, numa dada época e lugar, os homens elaboraram”18. E, conforme
discutimos anteriormente, o período analisado por esta dissertação é representado
por uma pluralidade de ordenamentos jurídicos. Assim, o poder de “dizer o direito”
no período medieval encontra-se disseminado em diversos centros de decisões.

15
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 17.
16
Para Grossi, o Estado representa um macrocosmo unitário que tende a se estabelecer como
estrutura global dotada de uma vontade englobante.
17
GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Jurisdição. In:__________. Instituições de Direito Processual
Civil. 3 ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 75-80.
18
MIATELLO, A. A Transcendência Imanente no Ordenamento Social da Idade Média: Os Limites
da Dicotomia Sagrado e Profano. Veredas da História, Belo Horizonte, ano III, ed. -2, 2010, p. 02.
Disponível em: < http://www.seer.veredasdahistoria.com.br/ojs-
2.4.8/index.php/veredasdahistoria/article/view/47/50>. Acesso em: 15 de abril de 2017.
58

Para analisarmos a jurisdição inquisitorial, entretanto, faremos uma


retomada ao momento da história da Igreja intitulado de “Reforma Gregoriana”.
Este retorno será realizado em decorrência do processo de institucionalização
eclesiástica, próprio desse período, que permitirá a formação da Inquisição
Medieval. Recuar até o século XI se justifica por ser a partir deste que o exercício
da justiça, tanto eclesiástica quanto secular, passa a derivar de Deus19, e isso ocorre
porque “a doutrina gregoriana expressou, como nenhuma outra até então havia
feito, o desejo de submissão do poder temporal pelo papado, e marcou
profundamente as doutrinas políticas posteriores”20. Não obstante, para Prodi, o
direito canônico como ordenamento “realmente adquire os caracteres de
organicidade e de autorreferencialidade (não apenas aqueles de ciência jurídica
autônoma) somente a partir da revolução papal gregoriana”21.
Ademais, “o poder da Igreja, o poder das chaves, não está nas riquezas,
no domínio político direto [...], mas in criminibus, na possibilidade de julgar a ação
dos homens”22. E tal processo pode ser observado primeiramente pelo pontificado
de Gregório VII, marcado por um debate na historiografia sobre o que é comumente
denominado de “Reforma Gregoriana”. Não havendo um consenso entre os
historiadores sobre o que significou essa dita reforma. O medievalista Augustin
Fliche (1884 – 1951) compreende que esta é a “mobilização coletiva liderada pelo
papado para viabilizar a implantação de um programa de normatização das condutas
sociais”23, uma vez que, ao ser

confrontado com o risco geral de dissolução da ordem criada pela


ascensão da nobreza, o papado foi forçado a ocupar um lugar de
Estado, arrolando para si o controle de certos direitos, atribuições
e competências até então exercidos pelos poderes temporais.
Uma conclusão desenrola-se nas entrelinhas deste pensamento: a

19
PRODI, Paolo. Uma História da Justiça: Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre
consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 61.
20
SILVA, M. C. Controvérsias Historiográficas Acerca da Doutrina Gregoriana. Textos de História,
Brasília, vol. 09, n. 1/2, 2001, p. 176. Disponível em: <
http://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/viewFile/5958/4932>. Acesso em: 13 de abril de
2017.
21
PRODI, Uma História da Justiça..., p. 63-64.
22
PRODI, Uma História da Justiça..., p. 60.
23
RUST, Leandro Duarte. A Reforma Gregoriana: trajetórias historiográficas de um conceito.
História da Historiografia, Ouro Preto, n. 03, set., 2009, p. 138. Disponível em: <
https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/62>. Acesso em: 16 de janeiro de
2017.
59

“reforma gregoriana” gerou a ascensão política do papado, ou


seja, em seu bojo foi gestado o poder apostólico contra o qual,
um dia, protestariam Lutero e Calvino24.

Pelo conceito de Reforma Gregoriana apresentado por Fliche podemos


perceber uma preocupação do papado com o papel do direito para a sociedade,
porque este teria se colocado como controlador de certos direitos e competências
que até então eram preocupação dos poderes temporais. Este conceito foi
amplamente aceito pela historiografia, entretanto o historiador alemão Gerd
Tellenbach (1903-1999) contesta tal ideia e afirma que “a Reforma Gregoriana não
foi um processo de atuação da igreja romana contra a dissolução da estabilidade
social, mas da criação e da imposição de toda uma nova visão acerca da ‘correta
ordem de mundo’”25. Dessa forma, os reformadores gregorianos, para Tellenbach,
não se limitavam a “apregoar autonomias, isenções e imunidades para igrejas e
abadias, mas advogavam uma legítima absorção do “direito natural dos poderes
seculares” no interior da autoridade superior e onicompetente da qual o papado se
considerava o único investido”26.
Entretanto, em 1947 segue-se um revisionismo historiográfico acerca
do conceito de Reforma Gregoriana, por meio do Studi Gregoriani, que expôs “a
complexidade – estimada como dimensionada de modo inadequado tanto por Fliche
como Tellenbach, – das articulações jurídicas das práticas reformadoras, além de
alertar para a diversidade, então pouco explorada, das inserções regionais do
‘movimento gregoriano’”27. A própria expressão Reforma Gregoriana foi
questionada pelos autores do Studi. Pois, para eles, ela “sugeria que as condutas e
práticas daqueles que, por décadas a fio, integraram o papado podiam e deveriam
ser avaliadas à luz do que pensou e fez Gregório VII”28. Vale ressaltar que durante
o período histórico em que essa reforma se desenvolveu, as leis e normas jurídicas
objetivavam funcionar como um reflexo das relações sociais, e o jurista se
apresentava como porta-voz do direito e, portanto, respaldado de jurisdição.

24
RUST, A Reforma Gregoriana..., p. 139.
25
RUST, A Reforma Gregoriana..., p. 141.
26
RUST, A Reforma Gregoriana..., p. 141.
27
RUST, A Reforma Gregoriana..., p. 142.
28
RUST, A Reforma Gregoriana..., p. 143.
60

Portanto, é de suma importância observar a forma com que os reformadores lidaram


com o direito.
No entanto, é apenas a partir da década de 1970 que os historiadores
buscaram analisar a reforma em conjunto com as relações sociais da época,
derrubando a ideia de que essa representava um conjunto de ações estritamente
eclesiásticas. Passa-se então a aceitar que “as reformas religiosas promovidas a
partir do século X não devem ser vistas pelos medievalistas como cartilhas de
normatização de condutas sociais claramente articuladas e impostas “de cima”
sobre a vida coletiva”29, e sim como respostas a demandas sociais. Essa dita reforma
foi também responsável pelo início do processo de institucionalização da Igreja.
Inicia-se “a construção gradual do edifício que leva o papa a não ser apenas o
garante do direito, mas o juiz supremo e onipresente (diretamente ou por meio de
seus delegados) da cristandade”30.
Mas é preciso salientar que “a institucionalidade pontifícia medieval se
caracterizou por uma ampla maleabilidade na aplicação da lei canônica, por manter
substancial flexibilidade no exercício jurídico”31. Assim, ao falarmos em
institucionalização da Igreja, precisamos ter em mente que esta não é o
engessamento das leis canônicas. E sim que o elo fundamental da institucionalidade
papal dos séculos XI e XII é “a ascensão da autoridade apostólica e a manutenção
de sua superioridade como promotora de uma pluralidade de núcleos regionais de
poder”32. Entretanto, ao falarmos do medievo, os núcleos de poder não estavam
respaldados necessariamente pelo rei e sim pelo direito.

De fato, parece-nos que jamais como na Idade Média o direito


representou ou constituiu a dimensão profunda e essencial da
sociedade, uma base estável que se destaca do caráter caótico e
mutável do cotidiano, isto é, dos eventos políticos e sociais do
dia a dia. A sociedade medieval é jurídica, porque se realiza e se
salvaguarda no direito; jurídica é sua constituição mais profunda
e nela está seu caráter essencial, seu elemento último33.

29
RUST, A Reforma Gregoriana..., p. 144.
30
PRODI, Uma História da Justiça..., p. 61.
31
RUST, Leandro Duarte. Colunas de São Pedro: A Política Papal na Idade Média Central. São
Paulo: Annablume, 2011, p. 518.
32
RUST, Colunas de São Pedro..., p. 519.
33
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 16.
61

Assim, os múltiplos polos fundadores de direito criaram diversas


esferas concorrentes de poder político. A Reforma Gregoriana surge, então, como
um importante fator de consolidação do clero como um dos poderes concorrentes
presentes na sociedade medieval. Essa consolidação também permitiu ao poder
eclesiástico manter-se como polo produtor do direito, com legitimidade para
legislar sobre ele. Não obstante, a institucionalização da Igreja gerou a necessidade
de maior regulamentação do corpo cristão, o que acarretou em um aumento da
perseguição herética e na necessidade de se criar mecanismos de repressão mais
eficazes, o que ocorre por meio de mudanças nas normas eclesiásticas. Portanto, a
perseguição herética e estruturação inquisitorial apresentam-se como instrumentos
da própria institucionalização católica, ocorrida a partir do século XI, e estes foram
utilizados para fortalecer a relação entre a cúpula católica e o corpo cristão.
Apesar do Concílio de Tours (1163) e o IV Concílio de Latrão (1179)
apresentarem diversos cânones anti-heréticos, foi com o pontífice Lúcio III, quando
este promulgou, em quatro de novembro de 1184, uma série de decretos conhecida
por bula Ad Abolendam, que a repressão herética se tornou um dos elementos de
ampliação do poder eclesiástico. Tal bula é comumente entendida pela
historiografia como o princípio da Santa Inquisição. Neste decreto é possível
perceber a preocupação do papa em legitimar a autoridade eclesiástica face à civil
e, com isso, a própria legitimidade de atuação dos futuros inquisidores na
perseguição herética, ao afirmar que

Para abolir a depravação pervertida das heresias que no tempo


presente tem começado a pulular em várias partes do mundo,
deve-se provocar o eclesiástico com vigor, através do qual, com
o auxílio do poder imperial, não só seja esmagada a insolência
dos hereges nos próprios esforços de sua falsidade, mas também
a simplicidade da verdade católica, resplandecendo na santa
igreja, mostre-a por toda parte purificada de toda maldição dos
falsos dogmas34.

34
RUST, L. D., Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Seniun (1199). Revista
de História, São Paulo, n. 166, jan./jun. 2012, p. 150. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/48532/52451>. Acesso: 16 de janeiro de
2017.
62

Ao afirmar que “deve-se provocar o eclesiástico com vigor” em casos


referentes à heresia, o pontífice está regulamentando uma das esferas de atuação da
Igreja. Apesar de admitir o auxílio do poder temporal, o papa deixa claro que o
combate à heresia é função da Igreja, estando, portanto, sob jurisdição da Santa Sé,
é o eclesiástico que deve ser provocado. Em 1199, por meio da bula Vergentis in
Senium, o pontífice Inocêncio III “criminaliza a heresia”35, ao equiparar esta ao
crime de lesa-majestade divina, igualando as penalidades entre os condenados por
ela e os condenados por lesa-majestade imperial.
Por fim, o Concílio de Toulouse de 1229 é o responsável por esboçar a
jurisdição inquisitorial, e o Tribunal da Santa Inquisição é instalado por meio da
bula papal de Gregório IX, denominada de Excommunicamus (1231). Nela se
determina que os juízes inquisitoriais deveriam ser nomeados pelo papa e só
deveriam prestar contas a este, mantendo-se a preeminência do pontífice em matéria
doutrinal. A autoridade eclesiástica sobreposta à civil é reforçada por meio da bula
Unam Sanctam (1302) do papa Bonifácio VIII, que determina que

[...] O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda


espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais
nitidamente percebemos que as coisas espirituais sobreponham
as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode
estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora,
se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual.
Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder
superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus
poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo:
"O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é
julgado" (1Cor 2,15).
Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele
seja exercida, não é humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela
boca de Deus e fundada para ele e seus sucessores Naquele que
ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: "Tudo o
que ligares..." (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder
determinado por Deus "resiste à ordem de Deus" (Rm 13,2), a
menos que não esteja imaginando dois princípios, como fez
Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme
Moisés, não é "nos princípios", mas "no princípio Deus criou o
céu e a terra" (Gn 1,1).

35
BARROS, José D’Assunção. As Heresias Medievais na Idade Média Central e Suas Fontes.
In:_________________. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis: Vozes, 2012,
p. 42.
63

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é


absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana
estar sujeita ao romano pontífice36.

Todo esse reforço da autoridade eclesiástica, juntamente da condenação


de grupos que de alguma forma não estavam de acordo com a tradição católica aos
olhos da Igreja, forneceram os meios legitimadores da jurisdição inquisitorial.
Assim, em 1263, o papa Urbano IV cria o cargo de Inquisidor-geral, permitindo que
uma única pessoa mantivesse o controle de todos os tribunais. Aos poucos, por meio
dos decretos papais, a função de erradicar as heresias teve sua jurisdição transferida,
ao ser descolada das mãos do bispo e concentrada nas dos inquisidores delegados,
que podiam concentrar-se exclusivamente nessa cátedra37. Para Gomes, “o Tribunal
[Inquisitorial] era entendido como um instrumento capaz de estabilizar a fuga de
fiéis fortalecendo novamente a fé”38. E ele também “era considerado portador da
responsabilidade de recondução dos homens aos quadros da instituição e,
principalmente, reafirmador da Cristandade abalada pela expansão da heresia”39.
Apesar do braço secular ser capaz de punir as heresias, a justiça
inquisitorial não acreditava que este possuía as habilidades necessárias para a
investigação destas, devendo ser feita pelas autoridades eclesiásticas,
primeiramente o bispo, depois os inquisidores delegados40 – estes últimos
usualmente franciscanos ou dominicanos41. Essa mudança de responsável na

36
BONIFÁCIO VIII, papa. Bula “Unam Sanctam” – Bonifácio Oitavo (18.11.1302). Disponível
em: <http://agnusdei.50webs.com/unam.htm>. Acesso em: 20 de março de 2017.
37
GOMES, Daiany Sousa Macelai de Oliveira. O Tribunal do Santo Ofício Espanhol:
Continuidades e Inovações nas Práticas Processuais (Sécs. XIV-XVI). 2009. 122f. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2009, 21-22.
38
GOMES, O Tribunal do Santo Ofício Espanhol..., p. 18.
39
GOMES, O Tribunal do Santo Ofício Espanhol..., p. 18.
40
GOMES, O Tribunal do Santo Ofício Espanhol..., p. 21.
41
A Ordem Dominicana, também chamada de Ordem dos Pregadores, é uma das Ordens
Mendicantes surgidas no começo do século XIII. Essas Ordens são assim denominadas por
combinarem o ideal de pobreza com uma pregação voltada para a população. Entretanto, em seu
período de surgimento, a Igreja já se encontra em um constante combate as heresias, tornando o
controle da pregação popular uma prioridade (BAPTISTA, p. 65). “Ambos [franciscanos e
dominicanos] nascem neste quadro de luta contra movimentos de pregação popular, no seio de uma
crise e de uma Reforma vivida pela Igreja. Ocupam o terreno da pregação e logo conhecem um
grande sucesso diante da espiritualidade laica” (BAPTISTA, p. 65-66). São Domingos de Gusmão,
na ocasião do IV Concílio de Latrão, em 1215, tenta aprovar o surgimento da Ordem Dominicana,
porém tal concílio não permitia o surgimento de novas ordens. Ele então adota a regra de santo
Agostinho, mas observando de maneira mais rígida as questões pertinentes à alimentação, jejuns,
entre outras. Assim, “a missão da Ordem fundada por Domingos, que fora aprovada em 22 de
64

perseguição às heresias caracteriza transferência de jurisdição. Isso ocorre porque,


conforme observamos, a jurisdição medieval, diferentemente do seu conceito
moderno, está ligada necessariamente à figura do intérprete, uma vez que,
“iurisdictio era um poder. Entre os séculos XII e XIII, ficava cada vez mais claro
que esse poder requeria uma capacidade de coerção encarnada numa persona
jurídica, cujas capacidades eram medidas pelo quantum coercitivo”42. Assim, a
jurisdição inquisitorial, em última instância, é o próprio inquisidor. Entretanto, é
preciso recordar que a sociedade medieval era hierárquica, portanto “iurisdictio,
então, assume um lugar fulcral como nexo articulador do exercício de poder a que
cada corpo tem direito, em decorrência da importância de sua função social e/ou da

dezembro de 1216 pelo papa Honório III, era difundir a palavra de Deus, pregar ante aos “inimigos
da fé”, salvar almas” (BAPTISTA, p. P. 74). Em 1218 eles recebem uma permissão especial
referente à pregação (RANGEL, p. 27). E, de acordo com Rangel, haviam dois elementos
fundamentais na Ordem e que a acompanhou desde a sua criação: a pregação e o estudo. Inclusive,
Rangel acredita que o ofício inquisitorial é passado aos dominicanos nos primórdios de 1230 devido
a pregação (RANGEL, p. 27). Vale ressaltar, entretanto, que o surgimento das Ordens Mendicantes
se dá justamente por causa do aumento no combate as heresias. E, tratando-se da Ordem dos Frades
Pregadores, é especialmente pelo contato entre São Domingos e os hereges, em especial os cátaros
e a cruzada lançada por Inocêncio III contra estes. De fato, “é a partir da cruzada de 1207 que muitos
religiosos cooperam na tarefa de Domingos e a ele se vinculam. É nesta circunstância, [...], que o
número de religiosos em torno de Domingos cresce, culminando com a nomeação deste e seus
seguidores por Fulco como pregadores contra a heresia em sua diocese. Intitular Domingos e os
religiosos relacionados a ele como pregadores foi uma ação de forte valor de formação de um grupo
com propósitos em comum, o que fez com que a atitude de Fulco fosse ressaltada como um precioso
registro das origens da Ordem dos Frades Pregadores. A reunião em torno da pregação e da
conversão herética e a nomeação dos religiosos como pregadores da diocese do bispo Fulco fornece-
nos indícios da incipiente ideia de um grupo concreto com finalidades próprias e específicas. Esta é
a motivação que leva Domingos e Fulco a seguirem em direção a Roma, ao IV Concílio de Latrão,
com o desígnio de se formar e confirmar pelo papado a fundação de uma Ordem” (BAPTISTA, p.
75). Ademais, “uma das grandes originalidades dos dominicanos foi sua organização e ação. Para
adentrarem na Ordem, os noviços estudavam teologia ao mesmo tempo em que viviam no claustro,
onde pronunciavam três votos: de obediência, de pobreza e de castidade” (RANGEL, p. 26.). Essa
ênfase dada pelos frades dominicanos ao estudo deve-se na crença de que “a prática intelectual
germinava salvação. [...]. Na verdade, acreditava-se que o estudo era fundamental, necessário para
preparar o sermão: um frade pregador bem preparado era aquele que estudava para a pregação”
(BAPTISTA, p. 84). Como podemos perceber, todo o surgimento da Ordem dos Frades Pregadores
esteve intrinsicamente relacionado com o combate as heresias. Tanto o é que, apesar de ter sido
aprovada apenas em 1216, a Ordem Dominicana nasceu ligada à heresia albigense e a cruzada
lançada pelo papa Inocêncio III em busca de combate-la. Assim, com a criação oficial do Tribunal
da Inquisição, em 1229, os dominicanos logo se puseram à disposição para a tarefa de legislar e
condenar os hereges (ROCHA, p. 39), sendo encarregados da execução do Santo Ofício por
Gregório IX em 1231. Toda a discussão aqui apresentada nos auxilia na compreensão do
Directorium Inquisitorum, pois permite uma melhor acepção da severidade no trato com o herético
praticada por Eymerich. Afinal, nós estamos diante de uma figura histórica proveniente de uma
Ordem Religiosa que desde seu surgimento encontrava-se relacionada com a luta contra as heresias.
42
COELHO, M. F. Entre Bolonha e Portugal: A Experiência Política do Conceito de Iurisdictio
(Séculos XII e XIII). Revista da Faculdade de Direito, Curitiba, vol. 61, n. 02, mai./ago., 2016, p.
68.
65

posição que circunstancialmente ocupe no palco político, com resultados


variáveis”43.
No caso específico do dominicano Eymerich, uma característica
relevante do manual inquisitorial dele deve-se à própria forma como este é escrito.
Pois, apesar de ser apresentado como destinado aos membros da Ordem
Dominicana de Aragão, as instruções ali presentes são genéricas, permitindo que
esse manual seja utilizado por qualquer inquisidor44. O Directorium apresenta
também, em seu prefácio, um compêndio das várias autoridades regulamentadoras
da prática inquisitorial. De acordo com Hill, Eymerich visava tornar a lei existente
facilmente compreensível e acessível, preenchendo assim um espaço em aberto que
os manuais inquisitoriais até então publicados, como o “Liber Sententiarum
Inquisitionis” do inquisidor francês Bernardo Gui, permitiram que existisse. Isso
ocorre porque o trabalho de Eymerich combinava a lei e a prática inquisitorial, além
de oferecer uma justificativa teológica para a existência da Inquisição45.
Para Eymerich, as características que constituem um bom inquisidor
são “ser honesto no seu trabalho, de uma prudência extrema, de uma firmeza
perseverante, de uma erudição católica perfeita e cheia de virtudes”46, não podendo
ter idade inferior a quarenta anos, em concordância com as disposições
clementinas47. Sua autoridade demanda do papa, que a confere por meio de uma
bula, ou por um cardeal representante, superiores, padres provinciais dos
dominicanos e frades franciscanos, quando o papa delega seu poder de nomear
inquisidores a um destes48. E, da mesma forma, só pode ser destituída pelo papa ou
pelo superior ou provincial da Ordem que esteja atuando sob determinação papal,
neste último caso só ocorrendo após se solicitar a opinião da Inquisição. Ademais,
o inquisidor prestará contas apenas ao papa, pois é representante deste49.
É preciso salientar que o fato do poder inquisitorial para Eymerich ser
constituído quase que exclusivamente pelo papa demonstra que as relações de

43
COELHO, Entre Bolonha e Portugal..., p. 69.
44
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 49.
45
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 49-50.
46
EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum: Manual dos Inquisidores. 2 ed. Rosa dos
Tempos: Brasília, 1993, p. 185.
47
Disposições de Clemente V.
48
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 186
49
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 187-188.
66

fidelidade do inquisidor estão voltadas apenas para a autoridade eclesiástica e não


para a civil. Ideia que é acentuada ao observarmos o contexto de vivências deste
inquisidor, que foi perpetuado por constantes conflitos com o poder régio.
Acabando por reforçar a legitimidade da Igreja no trato com o herético, que é uma
preocupação consistente da Santa Sé, conforme anteriormente trabalhado.
Entretanto, essa situação de exclusividade da autoridade papal sob o inquisidor é
rompida com o advento da Inquisição Espanhola e Portuguesa, em que a nomeação
de inquisidores deixa de ser exclusiva do papa e o rei passa a também ter autoridade
para tal50. Não obstante, o reino de Aragão, do qual Nicolau Eymerich foi
Inquisidor-geral, é considerado o principal local de ação da Inquisição Medieval
entre os reinos ibéricos51. Porém, apesar dessa característica, a relação entre
autoridade civil e eclesiástica em Aragão não estava em concordância. De fato, é
válido lembrar que o próprio Eymerich protagonizou diversos conflitos com o Rei
Pedro IV de Aragão, essencialmente pela forma com que o primeiro atuava no
combate herético.

2.3 Um Pastor de Serpentes: instalando a jurisdição inquisitorial no


Directorium Inquisitorum

Dentro do texto inquisitorial de Eymerich, a percepção das práticas


mágicas como delito passa, primeiramente, pela compreensão das heresias. Isso
ocorre porque o agente histórico insere os delitos mágicos como parte dos grupos
heréticos. O inquisidor compreende a heresia através de três acepções: eleição,
adesão e separação. Ou seja, para ele os indivíduos se tornam hereges por elegerem
tal caminho em detrimento da doutrina verdadeira, aderirem a ele e, portanto,
separarem-se da verdadeira fé. O inquisidor afirma, também, que a heresia “designa
todos aqueles que acreditam ou ensinam coisas contrárias à fé de Cristo e de sua
Igreja”52, e a heresia existe “se houver oposição a um ou a vários artigos da fé; a
esta ou àquela passagem dos livros canônicos; a uma constituição ou a um cânone

50
BETHENCOURT, História das Inquisições..., p. 24.
51
GOMES, O Tribunal do Santo Ofício Espanhol..., p. 30.
52
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 32.
67

da Igreja Católica”53. Tornando-se herética a proposição que for “contrária a


qualquer artigo de fé, [...] contrária a qualquer verdade que a Igreja tenha declarado
de fé; [...] contrária ao conteúdo dos livros canônicos”54. E cabe ao inquisidor
resguardar a obediência – ou desobediência – desses preceitos.
Portanto, conforme o capítulo anterior nos permitiu perceber, a bruxaria
se encontra inserida em um quadro muito maior de delitos contra os quais o
inquisidor deve proceder. Não obstante, as referências sobre a bruxaria na obra de
Nicolau Eymerich aparecem mescladas em um conjunto de diversos personagens
(mágicos, adivinhos, necromantes), acabando por ser uma categoria situada na
fronteira entre definição e imprecisão, já que a sua presença no texto é o de uma
categoria cuja identidade não está plenamente formada. E para compreendê-la é
preciso, primeiramente, entender como a jurisdição do inquisidor opera. Assim,
buscando apresentar a razão da jurisdição inquisitorial, apresentaremos os atos
preparatórios e de instauração que, segundo Eymerich, precisam ser observados
pelo inquisidor ao ser nomeado para uma nova localidade.
Aliás, na parte do manual denominada de “Jurisdição do Inquisidor”,
Eymerich nos apresenta os diversos grupos tidos como heréticos até o período em
que o Directorium Inquisitorum fora escrito. Essa escolha discursiva por ele
realizada nos permite afirmar que o acionamento da jurisdição do inquisidor se dá
pela própria existência da heresia, uma categoria ampla e complexa que abarca um
imenso espectro de formas de corrupção da fé católica. Lembrando-se que, de
acordo com a bula Ad Abolendam (1184), “Para abolir a depravação pervertida das
heresias que no tempo presente têm começado a pulular em várias partes do mundo,
deve-se provocar o eclesiástico com vigor”55.
É possível perceber um esforço de classificação das heresias presente
desde a primeira parte do Directorium Inquisitorum, em que Eymerich apresenta os
diversos grupos heréticos categorizados em hereges manifestos (aqueles que
pregam abertamente contra a fé católica), disfarçados, (aqueles cujo

53
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 41.
54
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 33.
55
RUST, L. D., Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Seniun (1199). Revista de
História, São Paulo, n. 166, jan./jun. 2012, p. 129-161. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/48532/52451>, Acesso: 16 de janeiro de
2017. Grifo nosso.
68

comportamento e palavras não manifestam o apego à heresia); hereges afirmativos


(pregam através de palavras e comportamentos o apego de sua vontade ao erro),
negativos, (os que convencidos de uma heresia, não querem ou não podem se
desapegar dela, devendo ser tratados como hereges enquanto permanecerem em
negação); hereges impenitentes (aqueles que, mesmo após serem intimados a
confessar e abjurar, não aceitam e preferem se agarrar à heresia), penitentes
(diferente dos impenitentes, esses após aderirem intelectualmente ao erro,
abjuraram-se e aceitaram as penas impostas pelo bispo ou pelo inquisidor) e
relapsos (os que retornam à heresia após tornarem-se penitentes).
Além disso, dentro dessa classificação geral, para Eymerich os hereges
podem ainda ser blasfemadores, videntes e adivinhos, demonólatras ou invocadores
do diabo, cristãos que aderiram ao judaísmo, judeus convertidos e depois
rejudaizantes, cristãos que se convertem ao judaísmo, cristãos que aderiram à seita
dos sarracenos, cismáticos, apóstatas, seguidores de hereges, quem dá asilo,
hospeda e acolhe os hereges; protetores de hereges, benfeitores dos hereges, quem
se opõe à Inquisição, excomungados pertinazes, que ficam um ano sob
excomunhão, difamados de heresia e heresiarcas.56 Essa diligência na categorização
dos hereges nos permite perceber, primeiramente, o quanto essa classificação é
elástica, abarcando diversos grupos dentro de uma grande categoria. Também é
possível observar que a relação entre heresia e invocação do diabo não é dominante
ou constante para a Inquisição, de fato, a inserção dos videntes, blasfemadores,
adivinhos e demonólatras como categorias heréticas é um acréscimo realizado por
Eymerich.
Não obstante, apesar da inserção dessa inovação, Eymerich mantém a
referência clássica da Inquisição ao condenar cristãos que aderiram ao judaísmo,
rejudaizantes, cismáticos, apóstatas, etc., corroborando a crença de que para os
inquisidores do medievo não há novas heresias, e sim diferentes formas assumidas
por estas, mas com raízes antigas57. Tanto que “somos surpreendidos pela
continuidade e, ao mesmo tempo, pela capacidade de absorção, de adaptação e de
permanente atualização desses manuais [inquisitoriais]”58.

56
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 39-75.
57
BETHENCOURT, História das Inquisições..., p. 32.
58
BETHENCOURT, História das Inquisições..., p. 31.
69

Essa primeira parte do Directorium Inquisitorum demonstrou que a


existência da heresia representa a própria razão de ser da jurisdição do inquisidor.
Sendo função inquisitorial combatê-la, buscando a observância correta dos dogmas
católicos. Ademais, é percebido também que a elasticidade da classificação herética
funciona como um mecanismo de adaptação do inquisidor para as futuras seitas
heréticas que ainda não surgiram, mantendo o manual de Eymerich
permanentemente atualizado. Também é percebido que apesar da inserção de novas
categorias dentro do rol de heréticos conhecidos, Eymerich mantém os grupos que
fazem parte da categorização de hereges até então estabelecida.
Tratando-se da relação entre a autoridade inquisitorial e as autoridades
civis, em tempos da Inquisição Medieval, os reis aragoneses se esforçavam para
serem ouvidos em assuntos relativos ao Santo Ofício. Buscando introduzir o
interrogatório prévio no maior número de casos, e adotar decisões conjuntas com
os inquisidores, especialmente nos casos relacionados aos judeus. Porém, a
Inquisição aragonesa possuía uma grande autonomia em relação à realeza59, e o
próprio Eymerich protagonizou momentos de atrito com a Coroa de Aragão.
Sabemos que o Directorium Inquisitorum foi fruto do trabalho de um
homem que passou a maior parte do seu período como inquisidor em conflito com
as autoridades civis. Estas que, por sua vez, buscavam alternativas para se
introduzirem na jurisdição do inquisidor, uma vez que os reis também se envolviam
– ou procuravam se envolver – no combate às heresias. Então, diante da amplitude
de objetos que constituem a função inquisitorial, o inquisidor acaba por se
confrontar com o exercício de outras “justiças”, como a monárquica, resultando em
adversidades entre a autoridade inquisitorial e os demais poderes laicos.
Logo, não é por acaso que antes de ingressar nas práticas processuais
do inquisidor, Nicolau Eymerich apresenta instruções aos inquisidores recém-
nomeados em relação ao trato com as autoridades civis, dando especial ênfase no
caso destas se recusarem a reconhecer a autoridade inquisitorial. Aliás, de acordo
com Hill, a própria escrita do Directorium Inquisitorum passa pela vontade pessoal

59
FINKE, Enrique. Nicolás Eymerich: Publicista en los Comienzos del Cisma de Occidente. An.
Inst. Estud. Gertmd, 2. 1947, p. 125. Disponível em: <http://dugi-
doc.udg.edu/bitstream/handle/10256/5986/53346.pdf?sequence=1>. Acesso em: 16 de janeiro de
2017.
70

de Eymerich em justificar seu trabalho como inquisidor, além de perpetuar o


pensamento alcançado no referente às invocações demoníacas, afinal, a heresia para
Eymerich é dirigida pelo diabo60. Apesar da relação entre heresia e diabo não ser
nova, ela reflete “o fato de que Eymerich viu a heresia menos como um fenômeno
intelectual e humano e mais como um ataque espiritual, que por sua vez era uma
parte central de sua abordagem como inquisidor”61.
Portanto, não é surpreendente que Eymerich apresente os passos de
instalação a serem seguidos pelo inquisidor recém-nomeado como: 1. Se apresentar
ao rei ou governante do estado ou país para o qual foi designado; 2. Solicitar salvo-
conduto para si, seu comissário, seu escrivão e sua escolta; 3. Procurar a autoridade
eclesiástica local, onde apresentará seu mandato apostólico; 4. Exigir o juramento
de defender a Igreja da heresia e proteger o inquisidor durante o exercício das suas
funções por parte das autoridades civis, se o inquisidor assim desejar62.
Novamente, vale enfatizar que Eymerich insiste na necessidade de
aceitação da autoridade inquisitorial por parte dos governantes, conforme podemos
observar no trecho abaixo transcrito:

Em primeiro lugar, apresentar-se-á ao rei ou ao governante do


estado ou país para o qual a Santa Sé o enviou, na qualidade de
inquisidor, apresentando-lhe suas credenciais. A seguir,
suplicante, pedirá a ele que o considere seu servidor, e que, se for
preciso, lhe dê conselhos, lhe preste ajuda e o socorra. O
inquisidor lembra, ainda, que o próprio príncipe ou governante
terá que fazer o mesmo, se quiser ser considerado como um fiel
e evitar várias sanções jurídicas previstas nos textos pontifícios.
[...] o inquisidor, se o desejar, poderá exigir que a as autoridades
civis façam o juramento de defender a Igreja da perversidade
herética e de proteger o inquisidor durante o exercício das suas
funções63.

Conseguimos assim observar que Nicolau Eymerich acreditava ser


dever da autoridade civil defender o inquisidor e seus oficiais de maneira
indiscutível, durante todo o exercício de suas funções inquisitoriais. Cabendo assim
a necessidade de se prestar um juramento e, mais adiante no manual, ele apresenta

60
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 50.
61
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 50.
62
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 87-97.
63
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 87-89.
71

as punições cabíveis diante da recusa da autoridade civil de prestar juramento.


Sendo a primeira dessas penas a excomunhão pelo prazo que durar a recusa,
podendo culminar no interdito da cidade ou região em que se localiza a autoridade
civil, até que essa decida prestar o juramento e, se mesmo diante disso permanecer
a recusa, o inquisidor deverá decretar a autoridade civil como protetora de herege e
suspeita de heresia, suspendendo todas as honrarias e considerando nulo todo ato
público futuramente praticado, nomeando-se novos conselheiros e magistrados para
a cidade. Porém, se a população não reconhecer a autoridade dos novos ocupantes,
caberá ao inquisidor tomar todas as medidas possíveis para isolar a cidade
interditada das demais64.
Após todas as providências anteriores terem sido tomadas, havendo ou
não o juramento, cabe ao inquisidor determinar a data do sermão geral e anunciá-la
em todas as comunidades sob sua tutela. Tal sermão deverá abordar assuntos
relativos ao significado da fé e a defesa desta, com o objetivo de levar o povo a
combater a heresia, sendo encerrado com a solicitação das denúncias65. Esse passo
seguido pelo inquisidor está diretamente relacionado ao conceito de jurisdição
discutido anteriormente. Sendo que, ao realizar o sermão geral, o inquisidor torna-
se produtor do direito, assumindo poder político e agindo como a voz deste.
É bastante significativo o fato do inquisidor se dirigir ao populos
christianus e não apenas às autoridades civis e eclesiásticas já estabelecidas. Isso
deve-se especialmente ao fato da sociedade medieval ser jurídica, realizando-se e
se salvaguardando no direito66. Assim, o direito medieval, que abriga infinitos
ordenamentos jurídicos, é, primeiramente, ordem do social. Isso ocorre,
essencialmente, porque

o direito era ligado à sociedade, da qual não se tornava coerção,


mas dimensão vital; resgatado inteiramente ao social, o próprio
direito recuperava um caráter ôntico mais profundo, tornava-se
inerente aos alicerces mais recônditos do social e inevitavelmente

64
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 91-96.
65
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 97-99.
66
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 16. Ademais, assim como Grossi, o que aqui
chamamos de direito não se restringe a lei, mas abarca também o conjunto de valores que a sociedade
acredita dever observar (p. 32).
72

conquistava nele um primado inquestionável. De fato, era para o


social a garantia fundamental de coesão e de unidade67.

Consideramos o inquisidor como intérprete do direito, e como tal,


autônomo para produzi-lo. No entanto, é preciso não confundir os conceitos de
autonomia e soberania. Enquanto autonomia pode ser entendida como
“desvencilhar-se de forças específicas e particulares, mas significa imersão
completa, sem obstáculos, na estrutura profunda de uma época e de um lugar e, ao
mesmo tempo, a percepção dos movimentos e pressões dentro dessa estrutura”68,
ocorrendo porque “se o vínculo com o poder é parcial e nebuloso, em contrapartida
é vivo e característico aquele relacionado ao costume, às estruturas econômicas, aos
movimentos espirituais”69. Soberania, por outro lado, pressupõe um poder absoluto
que, segundo Grossi, na sociedade medieval é representado pela figura de Deus.
Portanto, o inquisidor, como intérprete, deveria estar em contato direto
com a população, apesar de sua relação com o rei não ser necessariamente estável
e forte. Por isso, dirigir-se à população garantia ao inquisidor que sua autoridade
como intérprete da legislação canônica fosse reconhecida, auxiliando-o a cumprir
sua razão de ser como mantenedor da ordem divina. Tal situação só é possível em
razão da concorrência entre diversas esferas sociais, especialmente a eclesiástica e
a secular, pelo domínio do poder político. Ou seja, estamos diante de diversas
autonomias jurídicas que produzem poder político e que concorrem entre si.
O sermão geral, por sua vez, cumpre um papel de ritual litúrgico
semelhante ao dos concílios, sendo que o de Eymerich compreende três pontos:

O primeiro é de ordem geral: se souberdes que alguém é herege,


suspeito de heresia ou conhecido como herege, deveis denunciá-
lo a nós. O segundo é específico: se souberdes que alguém ensina
qualquer coisa errada, deveis nos dizer. O terceiro é singular:
deveis denunciar a nós quem souberdes que tem livros heréticos
ou invoca demônios70.

67
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 38.
68
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 63.
69
GROSSI, A Ordem Jurídica Medieval..., p. 63.
70
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 100.
73

Findado o sermão geral, o inquisidor pode ser oficialmente acionado e


então ele deve proceder para a abertura dos processos. Antes disso e após o sermão,
entretanto, a população possui um período de quarenta dias, denominado de “época
do perdão” para se entregar e/ou acusar aqueles considerados hereges. Os que se
entregarem espontaneamente durante essa ocasião terão sua pena atenuada.
Terminado esse período, cabe ao inquisidor averiguar a veracidade dos crimes
delatados e começar suas investigações71. Eymerich informa que o processo pode
ser aberto de três formas: por meio da acusação, quando alguém acusa outrem frente
ao inquisidor e se responsabiliza por provar a heresia, além de aceitar a pena que
seria paga pelo acusado, se não provar a culpa deste; por meio de denúncia, quando
aquele que denúncia o faz para não se arriscar à excomunhão, cabendo ao inquisidor
proceder com o processo; e, por fim, por meio de investigação, quando não há nem
confissão e nem denúncia, apenas boatos, cabendo ao inquisidor investigar a
veracidade destes72.
Não obstante, o sermão geral representa o último dos atos preparatórios
para a instauração inquisitorial segundo o Directorium Inquisitorum e, quanto ao
conteúdo deste, Eymerich informa que

No dia marcado, o inquisidor fará um sermão inteiramente


dedicado à fé, ao seu significado e à sua defesa, exortando o povo
a extirpar a heresia. O sermão terminará com a solicitação das
denúncias: “Se alguém souber que alguém disse ou fez algo
contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar
ao inquisidor”. O inquisidor acrescentará, ainda, que sabe
perfeitamente que lhe contarão tudo, mas é obrigado a enfatizar
essa advertência para os fiéis, a fim de que não critiquem os
delatores, ao contrário, os considerem bastante obedientes à fé
divina73.

E, ao final do sermão, caberá ao inquisidor que ordenar a realização da


leitura de uma carta – denominada por Eymerich de ordem de delação –, que possui
a seguinte estrutura:

71
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 97-100.
72
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 105-109.
73
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 98.
74

“Nós, Frei fulano de tal, inquisidor especialmente delegado pela


Santa Sé Apostólica para a região de... etc..., tomando
conhecimento de que as serpentes da heresia querem espalhar o
seu veneno nesta área; que os hereges querem dizimar a
população daqui como as raposas devastaram as videiras do
Senhor dos Exércitos; que blasfemam contra o Deus dos Deuses
e o Senhor dos Senhores; Nós, cujas entranhas estremecem de
medo e repugnância em saber que o veneno da heresia já possa
ter envenenado bastante a população; Com a autoridade do Papa
de que somos investidos; em virtude da santa obediência e sob
pena da excomunhão, ordenamos e estabelecemos, através de três
prescrições e de maneira categórica, a todos e a cada um, leigos,
membros do clero secular e regular, de qualquer função,
hierarquia ou honraria, que vivam nos limites desta cidade – ou
desta região – e num raio de quatro milhas além dos muros, que,
dentro do prazo de seis dias, a contar de hoje, sendo que cada
segundo dia marca o fim de uma intimação, que nos digam se
sabem, souberam ou ouviram dizer que uma determinada pessoa
é herege, conhecida como herege, suspeita de heresia, ou que se
manifesta contra este ou aquele artigo de fé, os sacramentos, se
não vive igual a todo mundo, se evita contato com os fiéis ou se
invoca os demônios e lhes presta algum culto. Quem – Deus nos
livre! –, negligenciando sua própria salvação, não se curvar às
nossas ordens de delação, saiba que está ligada pelo vínculo da
excomunhão, e que esta excomunhão o liga a partir de agora, e
que só será desligado por nosso senhor o Papa ou por nós”74.

Os trechos acima apresentados nos permitem observar que apesar da


aparente objetividade contida tanto no que deve conter o sermão quanto na carta de
delação a ser lida no final deste, estão presentes elementos próprios do pensamento
de Eymerich, como a referência aos invocadores de demônio. Também é possível
observar a insistência com que o inquisidor trata as delações, demonstrando-se a
necessidade de aceitação de sua autoridade por parte da população. Ademais,
acreditamos que a razão da instauração da jurisdição, que ocorre com a abertura da
denúncia, acontecer após o sermão geral deve-se justamente à necessidade que o
inquisidor possui de que a comunidade reconheça sua autoridade e colabore com as
investigações dos processos de suspeita de heresia. Novamente percebemos a
importância social para o bom funcionamento processual: duas das três formas de
abertura do processo devem-se à participação objetiva de membros da comunidade.
O que pode ser percebido também ao analisarmos o seguinte trecho:

74
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 99.
75

Depois de tudo isso, com os comissários inquisitoriais tendo ou


não tendo sido nomeados, o inquisidor determina, de acordo com
o costume do lugar onde instalou sua sede e delegação apostólica,
a data do sermão geral. Este sermão não deverá ser feito em dia
de grande festividade para não atrapalhar o funcionamento
normal das atividades da paróquia, e sim num domingo qualquer,
exceto na época da Quaresma e do Advento75.

Nele nos é permitido observar que a data do sermão geral respeita tanto
o costume local quanto as festividades, pois, essas são suspensas durante o período
de atuação da Inquisição naquela comunidade. Isso ocorre devido à grande
relevância deste sermão para o reconhecimento da autoridade inquisitorial, e,
portanto, ele deve alcançar o máximo possível de membros do grupo social. Não
obstante, após o sermão geral, o inquisidor já se apresentou para a população e
tornou legítima, aos olhos desta, sua posição. Situação que não ocorreria se ele
apenas se dirigisse às autoridades civis. Assim, o sermão pode ser reconhecido
como o ato que torna a jurisdição real, no entanto, esta não é sua única função. Ele
atua como catalizador de uma sanção social à repressão inquisitorial, porque este
incentiva que a própria comunidade atue de forma a repreender o membro que
cometeu alguma falta contra ela, denunciando-o ao inquisidor.
Findado o período de denúncia, o processo inquisitorial prossegue então
para os interrogatórios. Eymerich apresenta a preocupação em compreender a
mentalidade herética, ou melhor, o que ele identifica (cria) como uma mentalidade
enganadora, aconselhando aos inquisidores que adaptem seus questionamentos,
pois os hereges comportam-se de dez maneiras para esquivarem-se das perguntas
inquisitoriais – respondendo de maneira ambígua; respondendo com o acréscimo
de uma condição; invertendo a pergunta; fingindo surpresa; mudando as palavras
da pergunta; deturpando as palavras; auto justificando; fingindo debilidade física;
simulando idiotice ou demência; e se dando ares de santidade76.
Assim, cabe ao inquisidor atentar-se para esses truques e neutralizá-los.
Havendo também dez maneiras de fazê-lo: desfazendo as dúvidas; falando
calmamente com o réu; lendo ou mandando ler os depoimentos das testemunhas,
em caso de recusa de confissão; depondo contra o herege; fingindo que se ausentará

75
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 97.
76
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 117-122.
76

por um tempo e falando de forma que leve o acusado à confissão; intensificando os


interrogatórios, com modificação das perguntas; recusando-se a fazer promessas
quando o herege não concordar em dizer a verdade; falando com benevolência, ao
comer e beber, colocando junto do herege vários fieis íntegros, que discutirão
diversos assuntos; mandando um de sus antigos cúmplices para junto do herege, em
caso de persistência da recusa; não interrompendo a confissão de nenhuma forma,
quando o acusado a iniciar77.
Eymerich é justamente reconhecido pelo conhecimento e pela
categorização dos hereges presentes em seu manual inquisitorial, porém “ele foi
além da então repetição convencional de leis, frases anteriores e descrições de
pontos de vista e práticas heréticas, na tentativa de entrar na mente do "herege”78.
Como pode ser percebido nessa necessidade de Eymerich em apresentar não só os
truques dos hereges, mas as formas que o inquisidor tem de neutralizá-los. Isso nos
permite observar a tentativa feita pelo aragonês de analisar a forma de pensar que
ele acreditava pertencer ao herege.
No entanto, podemos encontrar um outro dado relevante no texto do
manual desse inquisidor aragonês: Eymerich, por meio de inovações jurídicas,
buscou alargar os limites da jurisdição inquisitorial. Portanto, nos é permitido
observar que ao escrever seu manual inquisitorial, Eymerich agrega a função de
intérprete do direito, passando a ter autonomia para criar jurisdição. Mas tal
autonomia só seria efetiva com o reconhecimento da autoridade do intérprete, o que
ele busca conseguir por meio do sermão geral, que serve como o ato final de
instauração do Tribunal do Santo Ofício, ao mesmo tempo que permite ao
inquisidor conseguir respaldo social para o desempenho de sua função.

2.4. Invertendo os Limites da Crença: magos, blasfemadores, adivinhos e o


capo da ideia “Bruxaria”

77
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 123-127.
78
EDWARDS, John. Eymerich, Nicolau. In: GERLI, E. Michael (org). Medieval Iberia: an
encyclopedia. Oxford: Taylor & Fracis, 2003, p. 317.
77

O papel desempenhado pelo Directorium Inquisitorum em relação ao


direito canônico e às inovações legais por ele apresentadas foi responsável por
auxiliar a sustentação das perseguições à bruxaria ocorridas a partir do século XV79.
Dentre as inovações, iremos observar aquelas que estão ligadas particularmente aos
casos de magia e blasfêmia, categorias nas quais Eymerich buscou inserir a
jurisdição inquisitorial, bem como a chamada heresia intelectual. Aliás,
diferentemente de outros inquisidores, como o francês Bernardo Gui, Eymerich não
se limita a apresentar a heresia como uma série de patologias distintas, refletindo a
realidade do que ele vivia. Para ele, a heresia representa qualquer desvio de fé e é,
portanto, uma obra do mal promovida pelo diabo e não um fenômeno limitado pelo
tempo, levando o inquisidor a sempre buscar novas formas de heresia80.
Ademais, retomando a questão jurisdicional, de acordo com Eymerich,
o inquisidor tem autoridade para

proceder contra os blasfemadores, lançadores da sorte,


necromantes, excomungados, apóstatas, cismáticos, neófitos que
retornaram aos erros anteriores, judeus, infiéis que vivem no
meio dos cristãos, invocadores do diabo. Digamos que, de uma
maneira geral, o inquisidor ‘procede’ contra todos os suspeitos
de heresia, os difamados de heresia, hereges, seus seguidores,
quem lhes dá guarida ou ajuda e quem emperra o trabalho do
Santo Ofício, retardando, direta ou indiretamente, sua ação.81

Alguns dados são de extrema relevância nesse pequeno trecho. O


primeiro deve-se à legitimidade para proceder contra os blasfemadores. Conforme
ressalta Hill, ao acrescentar o termo blasfemadores dentro do rol de encargos
inquisitoriais, Eymerich objetiva expandir a atividade do inquisidor, acrescentando
para sua responsabilidade um delito que era de incumbência do bispo. Também
podemos observar esse esforço em expandir a autoridade inquisitorial quando
Eymerich condena a magia, uma área que ele demonstra grande empenho em
acrescentar ao âmbito inquisitorial. O que pode ser observado ao percebermos que
“os próprios interesses de Eymerich como inquisidor (por exemplo, Lúlio, magos e
blasfemadores) são abordados em maior profundidade (21% do capítulo inteiro) do

79
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 121.
80
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 128-129.
81
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 200.
78

que temas em que a lei é clara 82


”. Isso ocorre porque a aparente neutralidade do
manual de Eymerich na verdade promove sua visão sobre a natureza inquisitorial.
Portanto ao analisar o Directorium Inquisitorum nós estamos lidando
com um texto que

É, aparentemente, um trabalho de conhecimento objetivo, mas


também um manual prático. Mas contém um propósito polêmico
na promoção das próprias ideias de Eymerich sobre (por
exemplo) magos não-cristãos ou blasfemadores, que ocupam
uma quantidade desproporcional do texto. De certa forma,
existem dois livros aninhados um ao outro como bonecas
russas83: um é um livro de texto factual sobre a teoria e a prática
da Inquisição; o outro, um trabalho polêmico que promove as
ideias de Eymerich, que também podem ser encontradas em
vários outros trabalhos. Sua grande novidade estava na
sistematização dos procedimentos existentes da Inquisição, ao
empurrar seus limites para novas áreas. Mas a natureza polêmica
do trabalho e a falta de evidências detalhadas da atividade
inquisitória de Eymerich devem deixar dúvidas sobre o quanto o
trabalho representou prática real84

Essa busca pela expansão dos limites da prática inquisitorial realizada


por Eymerich resultou em controvérsias quanto a quem pertencia o poder de “dizer
o direito”. No caso da blasfêmia, antes do Directorium, ela era abordada no máximo
como um sinal de heresia subjacente, mas não como a heresia em si. Apesar de ser
abordada diversas vezes como um mau pecado, e, até mesmo, pior que um
homicídio, ela não era vista como necessariamente herética. É preciso observar que
“os usos das palavras, do falar, da língua e da boca possuem um lugar de destaque
nas discussões teológicas, sendo a blasfêmia um dos mais reprováveis dentro dos
chamados pecados orais”85 estando presente em todos os debates sobre esses
pecados.
Apesar de estar inserida desde muito cedo nas discussões teológicas,
foi com Tomás de Aquino, por meio da Suma Teológica, que o assunto foi mais

82
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 53.
83
Também denominadas de Matriosca, refere-se a uma série de bonecas ocas (exceto pela menor
delas), geralmente feitas de madeira, que são colocadas uma dentro da outra em ordem de tamanho.
84
HILL, p. Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., 58.
85
MENEZES, Raul Goiana Novaes. Palavras Torpes: Blasfêmia na Primeira Visitação do Santo
Ofício às Partes do Brasil (Pernambuco, 1593 – 1595). 2010. 114f. Dissertação (Mestrado em
História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2010, p. 67.
79

aprofundado. Ele classifica a blasfêmia como herética (proferir sentenças contrárias


à fé), injuriosa (proferir vulgaridades contra Deus, a Virgem, os Santos ou a coisas
e pessoas dedicadas ao culto a Deus) e imprecativa (desejar o mal a Deus, a Virgem,
aos Santos ou a coisas e pessoas dedicadas ao culto a Deus)86. Assim, quando
Eymerich declara que qualquer preposição “contrária a qualquer artigo de fé, [...]
contrária a qualquer verdade que a Igreja tenha declarado de fé”87 é herética, ele
consegue trazer para o rol de heresias o crime de blasfêmia, estando em
concordância com a classificação de São Tomás de Aquino sobre blasfêmia
herética.

É claro que os inquisidores anteriores poderiam ter visto a


blasfêmia como um “indício: pedaço de evidência” de heresia, e
teriam se interessado em saber se alguma verdadeira crença
herética estava por trás disso. Eymerich considerou qualquer
declaração herética blasfema um assunto para a Inquisição,
independentemente da intenção e crença subjacentes88.

Essa preocupação do inquisidor em transformar a blasfêmia em


responsabilidade inquisitorial encontra-se ligada à relação deste com a magia. Pois,
ao considerarmos que a lógica de Eymerich para a blasfêmia estabelece que a mera
utilização de palavras heréticas, independentemente de haver uma crença como
base, é o suficiente para tornar o sujeito suspeito de heresia. Em sua condenação da
magia vemos a mesma lógica: a falta de intenção em prestar culto de latria ou de
dulia aos demônios não isenta de culpa aquele que o faz89. Apesar de haver raízes
em tempos e textos anteriores a 1376, ao abordar com afinco a distinção entre
mágicas heretizantes e mágicas de responsabilidade de outras autoridades, a obra
de Eymerich se apresenta como alteradora do pensamento inquisitório em relação
à magia.
A alegada heresia intelectual relaciona-se com o policiamento da
palavra escrita realizada por membros do Clero por meio da queima de livros. Vale
ressaltar que “o policiamento dos livros foi feito principalmente por funcionários

86
MENEZES, Palavras Torpes..., p. 68.
87
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 33.
88
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 131.
89
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 133.
80

da Igreja, além dos inquisidores. De 49 casos de queima de livros gravados por


Thomas Werner no século XIV, apenas 17 foram realizados por inquisidores; e,
destes 17, 8 eram de Eymerich”90. Com esses dados, podemos observar que apenas
cerca de 34% da queima de obras, presentes no registro de Thomas Werner, foi
realizada por inquisidores. Entretanto, dentro destes, Eymerich sozinho
corresponde a 47,02%. Da quantidade total de livros, ele é responsável pela queima
de 16%. Tais informações são extremamente sintomáticas ao observarmos a
maneira como ele dispõe no Directorium Inquisitorum sobre a heresia intelectual.
De fato, diferentemente dos seus conterrâneos, Eymerich apresenta uma lista de
livros condenados por diversas autoridades, inclusive inquisidores de Aragão.
Dessa forma, quando Eymerich diz “peguei estes livros de necromantes que eu
próprio capturei. Li e mandei queimá-los em público”91, ele legitima que
inquisidores trabalhando por livre inciativa possam condenar livros.
A análise do Directorium Inquisitorum nos permite observar que, para
Eymerich, o papel do inquisidor não se restringe a identificar e condenar hereges.
Ele é o responsável por policiar os limites da igreja 92. Mas tal definição veio
acompanhada de inovações para a prática inquisitorial, alargando os limites
inquisitórias e permitindo que estes mantenham-se em constante expansão.
Eymerich traz para o rol de condenações práticas que até então não eram
consideradas heréticas e estende o dever de fiscalização intelectual também para os
inquisidores. Por fim, o Directorium Inquisitorum possibilitou que a definição de
heresia pudesse ser ampliada pela própria Inquisição, tornando as restrições do
ofício inquisitorial mais maleáveis.

90
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 157.
91
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 55.
92
HILL, Change in the Fourteenth-Century Inquisition..., p. 163.
81

CAPÍTULO 03
O INQUISIDOR EXPULSA OS ANJOS DO PARAÍSO: O LIBER
RAZIELIS COMO REFERENCIAL DAS PRÁTICAS DE
INVERSÃO DA REALIDADE

“Não se deixem levar pelos diversos


ensinos estranhos. É bom que o nosso
coração seja fortalecido pela graça, e
não por alimentos cerimoniais, os
quais não têm valor para aqueles que
os comem”.

(Hebreus 13:09)

As escolhas textuais efetuadas por Eymerich no corpo do Directorium


Inquisitorum procuram aparentar uma certa usualidade nas práticas e condenações
ali descritas. Utilizando-se de um tom mais impessoal, buscando fazer jus ao título
de diretório, as diversas nuances da prática inquisitorial vão sendo desenhadas de
uma maneira que, para o leitor menos atento, elas se apresentem como ações
ordinárias ao bom inquisidor. O dominicano elenca os diversos grupos condenados
como se fizessem parte de uma tradição1 jurisdicional já estabelecida. No entanto,
o próprio texto de Eymerich o trai, e desconstrói essa tentativa de naturalizar as
inovações efetuadas por ele. É o que podemos perceber em trechos como o que
segue:

1. É herege quem disser coisas que se oponham às verdades


essenciais da fé. 2. Também é herege: a) Quem praticar ações que

1
A problemática do termo tradição foi anteriormente discutida no item 01 do capítulo 02 desta
dissertação.
82

justifiquem uma forte suspeita (circuncidar-se, passar para o


islamismo...); b) Quem for citado pelo inquisidor para
comparecer, e não comparece, recebendo a excomunhão por um
ano inteiro; c) Quem não cumprir a pena canônica. Se foi
condenado pelo inquisidor; d) Quem recair numa determinada
heresia da qual abjurou ou em qualquer outra, desde que tenha
abjurado; e) Quem, doente ou saudável – pouco importa -, tiver
solicitado o “consolamento”. Deve-se acrescentar a esses casos
de ordem geral: quem sacrificar aos ídolos, adorar ou venerar os
demônios, venerar o trovão, se relacionar com hereges, judeus,
sarracenos etc;2.

É importante observar que nesse trecho Eymerich classifica formas


gerais do que pode ser considerado herege. No entanto, ele sente a necessidade de
acrescentar nominalmente algumas categorias específicas do que ele avalia como
grupos heréticos. Sendo as primeiras da lista algumas das inovações efetuadas por
ele como forma de ampliar o poder jurisdicional do inquisidor. Assim, em uma
leitura mais atenta, percebemos nas próprias entrelinhas do discurso que a
condenação das práticas mágicas não ocorre de forma tão naturalizada quanto esse
inquisidor busca nos fazer crer. E esse é um dado relevante. Especialmente ao
considerarmos que para esta dissertação a bruxaria é, primeiramente, a construção
de um discurso racional de inversão e manutenção da ordem social conhecida e
legitimada. Diante disso, perceber e demonstrar as camadas de constituição desse
discurso na obra de Eymerich é um elemento essencial para a compreensão desta
pesquisa.
É válido reforçar que esse discurso constitui um paralelo entre o
“mundo real” e o “mundo da bruxaria”, formando uma oposição binária
complementar, em que o bom funcionamento da realidade é dependente da
manutenção do equilíbrio entre esses contrários. O discurso sobre a bruxaria
representa, então, a expressão máxima de ameaça a esse equilíbrio, ao mesmo
tempo em que torna possível determinar o “mundo real”. Portanto, o uso expresso
dessa palavra – ou mesmo do termo bruxa – não é essencial para encontrarmos a
maneira de pensar que se tornaria característica e fundamentaria os usos dessa
mesma expressão. O aparecimento do vocábulo bruxaria, o surgimento textual do
nome, foi apenas a categoria derradeira no espectro de inversões que essa leitura

2
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 128-129.
83

dicotômica de mundo permitiu. Até chegarmos na imagem última, representada


pelos séculos de Caça às Bruxas e perpetuada por obras como o Malleus
Maleficarum, várias outras práticas e obras – anteriormente aceitas como parte
legítima da sociedade – seriam condenadas à medida que a figura de Satã ia
ocupando papel cada vez mais central na compreensão do que era ser cristão.
Um dos casos mais claros de inversão discursiva efetuado por Eymerich
é o da obra que ajuda a dar título a este trabalho: o Liber Razielis (ou Livro de
Raziel, em tradução livre). Esse manuscrito judaico, parte do rol dos chamados
livros esotéricos, foi traduzido na corte castelhana de Alfonso X, o Sábio, na
provável data de 1259. Ele é considerado um dos mais ricos acervos referentes à
invocação angélica e “constitui um exemplo clássico do que a tradição judaica
conhece como ‘cabala prática’3 (kabbalah ma’asit)”4. Com a tradução de Alfonso,
esse manuscrito foi acrescentado, como era comum para a época, aos outros tratados
de temáticas similares5. Apesar disso, durante muito tempo o Liber Razielis foi
ignorado pelos estudiosos e descartado como mera ficção6. No Directorium
Inquisitorum ele é chamado por Eymerich de “A Tábua de Salomão”, aparecendo
no manual deste inquisidor sob a alegação de que “[no livro intitulado A tábua de
Salomão], os demônios invocados juram dizer a verdade”7. Nesse trecho,
aparentemente simples, o inquisidor inverte todo o sentido social de uma obra. No
espaço de uma frase, Nicolau Eymerich não só descaracteriza a natureza do Liber
Razielis como um tratado de angelologia e o reapresenta como um livro de
inspiração demoníaca, como também leva o leitor neófito a naturalizá-lo dessa
forma. O que o aragonês faz com o Liber Razielis em seu texto é aplicar o discurso
de inversão – característico da bruxaria –, condenando-o como demoníaco e

3
Esse termo refere-se aos elementos esotéricos da Cabala e inclui ideias sobre cosmologia, magia e
angelologia.
4
GARCÍA AVILÉS, Alejandro. Imágenes Mágicas. La obra astromágica de Alfonso X y su
fortuna en la Europa bajomedieval. In: RODRIGUEZ LLOPIS, Miguel (org). Aportaciones de
un rey castellano a la construcción de Europa. Murcia: Editora Regional de Murcia, 1997a, p.
132.
5
GARCÍA AVILÉS, Imágenes Mágicas..., p. 132.
6
GARCÍA AVILÉS, Alejandro. Alfonso X y el Liber Razielis: imágenes de la magia astral judía
en el scriptorium alfonsí., Bulletin of Hispanic studies, Glasgow. V. 74, n. 1, p. 21-39. 1997b, p.
22. Disponível em: < http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/alfonso-x-y-el-liber-razielis-
imgenes-de-la-magia-astral-juda-en-el-scriptorium-alfons-0/html/>. Acesso em: 20 de janeiro de
2018.
7
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 54-55.
84

aparentando ser essa não só a mais usual das práticas, como a medida a ser tomada
por qualquer bom inquisidor. Conforme demonstraremos posteriormente, tal
abordagem é bastante recorrente no Directorium Inquisitorum.

3.1 De Alfonso X a Salomão: um livro e os meandros do esoterismo na cultura


cristã ibérica

Afirmamos anteriormente que o Liber Razielis era parte de um rol de


livros esotéricos. No entanto, antes de nos aprofundarmos nos estudos sobre a
trajetória de inversão dele, precisamos esclarecer a qual conceito de esoterismo8
estamos nos referindo quando falamos do Livro de Raziel. A primeira definição é
dada por Faivre, que afirma haver um caminho ou prática que leva o seu seguidor
a um local contendo um tipo superior de conhecimento, sendo constituído por três
“grandes rios”9: a alquimia, a astrologia e a magia; cujos elementos fundamentais
são as correspondências10; a natureza viva11; a imaginação e mediações12; e a

8
Essa definição é importante porque o esoterismo era estudado como parte dos assuntos teológicos,
porém atualmente designa um campo de pesquisa científica próprio – conhecido por “Tradição
Esotérica Ocidental” – que, de forma mais específica, compreende o mundo latino a partir do fim
do século XV, o Renascimento, o resgate de correntes filosóficas e religiosas helenísticas - como o
hermetismo - o neoplatonismo, a cabala e a alquimia. É o historiador francês Antoine Faivre, por
meio da obra L’ésoterisme (1992), que auxilia na ampliação dos estudos científicos sobre
esoterismo.
9
Faivre explica o esoterismo por meio de uma metáfora, em que a Tradição Esotérica Ocidental
corresponderia à grandes rios desaguando no oceano do esoterismo. Tais rios seriam a alquimia, a
astrologia e a magia, e seus afluentes a cabala cristã, o hermetismo neoalexandrino, a philosifa
perennis, o paracelsismo, a naturphilosophie, a teosofia (séc. XVII), o rosacrucianismo, e as
sociedades iniciáticas.
10
A correspondência indica uma relação de interdependência entre diversos componentes e planos
existenciais, retomando a relação de microcosmo com macrocosmo, e constituindo uma rede de
interligações simpáticas. Seu estudo “indicaria uma dimensão na qual o contraditório, paradoxal ou
indissociável se desfaria e encontraríamos a solução para os grandes problemas da existência”.
(VIEIRA, O. S. O Esoterismo: Uma abordagem hermenêutico-conceitual. Diversidade Religiosa,
Paraíba, v. 04, n. 01, 2014, p. 04-07. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/index.php/dr/article/view/18064>. Acesso em: 28 de novembro de 2017.).
11
A natureza viva determina que a natureza possui diversas camadas e, portanto, é passível de ser
manuseada, sendo a magia o elo entre todas as coisas naturais, e o controle e emprego das forças são
relacionados ao uso das correspondências. (VIEIRA, 2014, p. 04-07).
12
A imaginação, por meio das mediações, possibilita ao indivíduo a capacidade de acessar os
diferentes níveis da realidade. Assim, a imaginação e as mediações, quando operadas em conjunto,
se interligam às correspondências e forças naturais, dando origem aos ritos, angelologias, símbolos,
dentre outros. (VIEIRA, 2014, p. 04-07).
85

experiência da transmutação13, além dos componentes secundários14, próprios do


esoterismo ocidental - a práxis da concordância e a transmissão15. Dessa forma, o
esoterismo para Faivre é representado por visões de mundo nas quais o universo é
vivo (natureza viva) e regido por uma série de simpatias e antipatias ocultas
(interdependência), cuja leitura revelaria ao iniciado os segredos da criação. Como
se pode notar a esta altura da argumentação, o nome “esoterismo” cobre uma série
de relações simbólicas abrangentes e variadas, que, inevitavelmente, perpassam, em
algum ponto, as ações e crenças que chamamos de religiosas.
Para Wouter Hanegraaff, o significado de esoterismo perpassa,
primeiramente, uma definição acadêmica. Isso pode ser compreendido ao
observarmos que o termo “esotérico” tem seu primeiro uso comumente atribuído à
Aristóteles. Entretanto, ele na verdade utilizou a palavra “exotérico” (eksô) em
oposição à acroamático (akroamatikós). Esse adjetivo faz sua primeira aparição, de
fato, na sátira Vitarum Rustio, de Luciano de Samósata (século II d.C.), na qual Zeus
e Hermes estão vendendo diversos filósofos aristotélicos como escravos. Porém, a
utilização e preocupação com o significado desse termo não se restringe aos críticos
do cristianismo. Aliás, a associação dele com segredo só ocorre com o teólogo
Clemente de Alexandria (século II-III d.C.), por meio do Stromata16. Por sua vez,
Hipólito de Roma (século III d.C.), considerado o mais importante teólogo de sua
época, na Philosophumena, utiliza o termo para se referir aos discípulos de
Pitágoras, dividindo-os em duas classes: uma exotérica e outra esotérica. O filósofo
Jâmblico, em sua De vita Pythagorica, segue o mesmo caminho que Hipólito, no
entanto, em Jâmblico, a classe esotérica remete aos ensinamentos secretos
reservados para uma elite mística, e esse entendimento passa a ser utilizado por
outros autores – como o teólogo Gregório de Nissa17.Temos já o suficiente para

13
A experiência da transmutação, tem origem alquímica, porém diferente desta, não se refere à
transformação e sim à cooperação entre a gnose e a imaginação viva. (VIEIRA, O Esoterismo..., p.
04-07).
14
A práxis da concordância procura estabelecer pontos comuns entre as diferentes tradições
esotéricas. E a transmissão, por sua vez, determina que os conteúdos esotéricos devem ser
comunicados, porém só pode ser feito por meio de um sistema legítimo e regular, ou seja, só poderia
ser transmitido de mestre para discípulo. (VIEIRA, 2014, p. 04-07).
15
VIEIRA, O Esoterismo..., p. 04-06.
16
Stromata refere-se ao terceiro trabalho de Clemente de Alexandria sobre a vida cristã, os outros
dois são o Protrepticus e o Paedagogus.
17
HANEGRAAFF, Wouter J. (org.). Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, Leiden:
Koninklijke Brill NV, 2006, p. 336.
86

perceber que o esoterismo contou com uma, por assim dizer, grande área de contato
com a cultura cristã, incluindo aí a cultura textual da patrística. Pensar esoterismo
e cristianismo como universos simbólicos inteiramente afastados e incomunicáveis
seria uma simplificação arriscada.
Em 1752 esse termo aparece no Dictionnaire universel français et latin,
sendo definido como:

Ezotérique (sic), adj. O que é obscuro, escondido e pouco


comum. As obras ezoteriques dos Antigos que não se podem
entender se eles mesmos não explicarem. Estas obras opunham-
se àquelas a que eles chamavam exotéricas, que de boa mente
explicavam publicamente a todos18.

O substantivo esoterismo, por sua vez, surge em um período mais


recente da história. Não há consenso sobre quando ele foi utilizado pela primeira
vez: para Jean-Pierre Laurant isso ocorre em 1742, com La Tierce, um maçon
francês, na sua obra Nouvelles obligations et statuts de la très vénérable
corporation des francs maçons19. Já para Hanegraaff, devemos a Jacques Matter e
ao seu livro Histoire critique du gnosticisme et de son influence (1828), o
surgimento do termo l’ésotérisme. O neologismo foi adotado por Jacques Etienne
Marconis de Nègre em 1839 e por Pierre Leroux em 184020. Porém é a Eliphas Lévi
(1810-1875) – e seus influentes livros sobre magia – a quem devemos a
popularização dessa palavra e, desde então, vários autores passaram a adotar os
termos “esotérico” e “esoterismo” para designarem suas próprias preferências21.
Hanegraaff admite a flexibilidade do termo esoterismo, ao assumir
que ele possui “diferentes significados em diferentes contextos”22, atribuindo a esse
dado a maior causa da confusão sobre a natureza dessa disciplina, inclusive entre

18
CORSETTI, Jean-Paul. Historia Del Esoterismo y Las Ciencias Ocultas. Buenos Aires:
Larousse, 1993, p. 08.
19
LAURANT, Jean-Pierre. O Esoterismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 12.
20
No entanto, o esoterismo só foi reconhecido como uma palavra nova em 1852, por meio do
Dictionnaire Universel de Maurice Lachâtre’s, que definiu o termo como originário do grego
eisôtheô (faça entrar), representando a totalidade de princípios de uma doutrina secreta,
comunicados apenas para os membros afiliados.
21
HANEGRAAFF, Dictionary of Gnosis..., p. 337.
22
HANEFRAAFF, Wouter J. Some Remarks on the Study of Western Esotericism, p. 01.
Disponível em: <http://www.esoteric.msu.edu/printable/Hanegraaffprintable.html>. Acesso em: 28
de novembro de 2017.
87

especialistas. E essa dificuldade em contextualizar o esotérico contribuiu para que


diversos elementos – posteriormente caracterizados como tal – fossem
indistinguíveis da religiosidade cristã. E a amplitude conceitual desse termo é tão
grande que só para esse autor existem pelo menos cinco significados distintos para
essa palavra23, sendo eles:

Primeiro: “Esoterismo” é comumente usado por livreiros e


editores como sinônimo de “oculto”; neste caso, funciona como
um termo genérico para uma coleção difusa de escritos
preocupados com o paranormal, as ciências ocultas, várias
tradições de sabedoria exótica, a espiritualidade contemporânea
New Age e assim por diante. Segundo: o adjetivo “esotérico”
(talvez um pouco mais frequente do que o substantivo
[esoterismo]) pode ser entendido como referência a
ensinamentos secretos e à “Disciplina do Arcano”24, com sua
distinção entre os iniciados e os não iniciados. Terceiro: Dentro
do discurso “perennialista” ou “tradicionalista” da escola de
estudos religiosos, o esotérico é um conceito metafísico que se
refere à “unidade transcendente” de religiões exotéricas. Quarto:
nas abordagens “religiosas” dos estudos religiosos, o esoterismo
tende a ser usado como um sinônimo de gnose no sentido
universalizante da palavra (isto é, abrangendo várias religiões e
fenômenos que enfatizam modos de conhecimento experienciais
e não racionais e dogmáticos, e que favorecem
mística/simbolicamente formas de expressão discursivas).
Quinta: De uma perspectiva estritamente histórica, o esoterismo
ocidental é usado como um conceito de recipiente que engloba
um complexo de inter-relações correntes e tradições desde o
início do período moderno até hoje, cujo fundamento da origem
histórica se encontra no fenômeno sincretista do "hermetismo"
renascentista (no amplo e inclusivo sentido da palavra)25.

No sentido tipológico, afirma Hanegraaff, “o termo ‘esoterismo’


pode ser aplicado livremente em qualquer contexto religioso, em que questões de

23
apesar de haver um debate considerável sobre sua definição e sua demarcação, existe um consenso
acerca das principais correntes que constituem o seu núcleo: nos períodos moderno e contemporâneo
estão os casos do Renascimento (hermetismo e filosofia oculta em um contexto neoplatônico),
alquimia, paracelsianismo, rosicrucianismo, cabala cristã, teosofia cristã, iluminismo, e até mesmo,
fenômenos como o movimento New Age (Nova Era); na Antiguidade Tardia e no Medievo
encontramos o gnosticismo, o hermetismo, a teurgia neoplatônica e diversas ciências ocultas e
correntes mágicas que influenciariam o Renascimento.
24
Disciplina arcani ("Disciplina do Segredo" ou "Disciplina dos Arcanos") é o costume que
prevaleceu no cristianismo primitivo, pelo qual o conhecimento dos mistérios mais íntimos da
religião cristã foi cuidadosamente retido dos não-cristãos e mesmo daqueles que estavam passando
por instrução na fé.
25
HANEFRAAFF, Some Remarks on..., p. 01.
88

conhecimento secreto reservadas para elites possam ser encontradas ao longo da


história”26. Aqui novamente observamos a facilidade com que elementos esotéricos
e cristãos poderiam se confundir. Muitas vezes, sua distinção dependia do livre
entendimento daquele que a elaborava. No entanto, não parece ter sido incomum
que aquilo que veio a ser chamado de esoterismo ou esotérico posteriormente fosse,
em muitos contextos, o que era simplesmente vivido como religioso e sagrado. Se
as formas de conhecimento esotéricas existiam muito antes de ser batizadas como
tal, não teriam elas sido vividas simplesmente como “a religião”? Tal era, assim,
defendemos, o caso do Liber Razielis na Península Ibérica até o século XIV.
Já em relação à suas construções históricas, o esoterismo dever ser
entendido como um “rótulo geral para determinadas correntes específicas da cultura
ocidental que exibem certas semelhanças e sejam historicamente relacionadas”27,
falando-se então em um esoterismo ocidental28. Voltando ao caso específico do
Liber Razielis, encontramos os elementos de esoterismo expostos por Faivre em seu
conteúdo, em conjunto com o significado tipológico apresentado por Hanegraaff,
em decorrência da sua trajetória de tradução.
O quadro narrativo pintado ao redor do Liber Razielis envolve a
transmissão desse livro das mãos de um anjo para um homem. De acordo com a
lenda judaica29 de seu surgimento, ele foi um presente dado para Adão após sua
expulsão do Paraíso, momento em que ele teria orado a Deus, implorando que lhe
fosse revelado o que ocorreria a seus filhos e às gerações que viriam após eles. Três
dias após esta oração, Adão, que se encontrava às margens do rio que flui do
Paraíso, recebeu a visita do anjo Raziel, que trazia consigo um livro nas mãos. O
anjo teria dito, então, que a oração de Adão foi ouvida, cabendo a Raziel a
responsabilidade de ensinar ao primeiro homem palavras puras e compreensão
profunda, que o tornariam mais sábio, utilizando-se do livro sagrado que trazia em
suas mãos.
Este livro permitiria que todo aquele que o lesse com pureza, um
coração devoto e uma mente humilde, desde que em obediência aos seus preceitos,

26
HANEGRAAFF, Dictionary of Gnosis..., p. 337.
27
HANEGRAAFF, Dictionary of Gnosis..., p. 337.
28
HANEGRAAFF, Dictionary of Gnosis..., p. 337-338.
29
GIZBERG, Louis. The Legends of the Jews. Vol. 1. Nova York: Start Publishing LLC, 2012, p.
57-59.
89

tornar-se-ia sábio e conheceria o futuro de antemão, saberia tudo o que ocorreria,


em qual mês e em qual dia. Teria então o anjo lido o conteúdo do livro para Adão e
este, tomado de pavor, caiu no chão ao ouvir as palavras proferidas pela boca do ser
celestial. Nesse momento, Raziel encoraja o primeiro homem e o incentiva a aceitar
aquele santo livro e guardá-lo, porque dele seria extraído conhecimento e Adão se
tornaria sábio e ensinaria o conteúdo do livro a todo aquele que fosse digno de saber
o que ele contém. O primeiro homem, então, pegou o livro e uma chama de fogo
brotou das proximidades do rio e por ela Raziel subiu em direção ao céu. Nesse
momento, o humano soube que havia falado com um anjo de Deus, que aquele livro
provinha do próprio Senhor e que o havia usado em santidade e pureza.
No entanto, há outra versão da lenda, que diz terem os outros anjos se
irritado com Adão por ele ter ganhado o livro e, por isso, o tomaram dele e o
lançaram ao mar. Deus então ordenou que Rahab, anjo das profundezas do mar,
resgatasse o sagrado objeto e o restituísse ao gênero humano. Desta forma, o livro
passou para as mãos de Enoch, deste para Noé e, por fim, para Salomão. Este
último, devido ao conteúdo do livro, que ele considerava muito perigoso, decidiu
que, quando morresse, o Livro de Raziel deveria ser com ele enterrado30. É
interessante observar que, de acordo com a lenda, o livro é entregue no momento
em que Adão perde o contato terrestre mais próximo e puro com Deus e o Liber
Razielis, como muitos textos mágicos rituais do medievo tardio, procura “recuperar
esse contato, (...) combinando esse objetivo com uma expressão de anseio pela
estatística pré-queda de pureza, conhecimento e experiência da presença de
Deus”31. Sendo o Liber Razielis definido como “uma revelação da sabedoria pré-
queda perdida, que permite ao homem adquirir conhecimento de todas as causas
corpóreas e espirituais”32.
Entendido como o livro no qual podem ser aprendidas todas as coisas
que valem a pena saber, diz-se que ele contém uma escritura secreta que revela as
mil e quinhentas respostas aos mistérios do mundo, das quais nem mesmo os anjos
mais sagrados tomaram conhecimento; além de como invocar anjos, fazendo-os

30
GIZBERG, The Legends of the Jews..., p. 90-93.
31
PAGE, Sophie. Uplifting Souls: The Liber de essentia spirituum and The Liber Razielis In:
FANGER, Claire. Invoking Angels: Theurgic Ideas and Practices, thirteenth to sexiteenth centuries.
University Park: Pennsylvania Stat University Press, 2012, p. 87.
32
PAGE, Uplifting Souls..., p. 87.
90

aparecer diante dos homens para responder às suas perguntas. Entretanto, por se
tratar de um texto mágico, apenas aquele que for sábio, temente a Deus e recorrer a
ele em santidade poderá fazer uso dos conhecimentos do livro. Esse estará a salvo
dos conselhos perversos e terá uma vida serena e, quando a morte por fim chegar,
encontrará repouso em um lugar onde não há demônios e nem espíritos do mal33.
Originalmente escrita em hebreu e aramaico, essa obra possui grande diversidade
de manuscritos a ela associada, mas é a trajetória de sua versão traduzida para o
castelhano por Alfonso X que nos interessa.

3.2 Alfonso X e a centralidade dos tratados de magia

Em 23 de novembro de 1221, dia de São Clemente, nascia em Toledo,


o infante Alfonso34, primogênito de Fernando III de Leão e Castela, o “Santo”,35 e
Beatriz da Suábia. Primogênito de dez irmãos, foi jurado herdeiro em 21 de março
de 1222 e se tornaria um dos monarcas de maior representatividade do século XIII,
em grande parte devido à sua extraordinária produção cultural. Segundo Jaime
Estevão dos Reis, no campo do saber, não houve rival entre os contemporâneos de
Alfonso X36.
Em 1231, enquanto o rei Fernando III se ocupava da organização do
reino de Leão, recém-incorporado a Castela, Alfonso, então com dez anos de idade,

33
GIZBERG, The Legends of the Jews..., p. 57-59.
34
Conforme costume da época, assim que nasceu, Alfonso foi entregue a uma ama de leite, e, ao
completar um ano de vida foi colocado sob a tutela do aio Dom García Fernández de Villamayor e
de sua esposa Mayor Arias. Da infância de Alfonso sabe-se pouco. Reis informa que este “viveu sob
a proteção e os ensinamentos de seu aio, rodeado de sua família, participando de jogos e aventuras
infantis, e acompanhando-os em viagens às suas propriedades e nas visitas à corte” (REIS, 2007, p.
13). O príncipe herdeiro recebeu de seu aio ensinamentos específicos sobre a arte da guerra, os
costumes cavalheirescos, as boas maneiras e a forma de se tratar os súditos e na corte ele recebeu a
formação nas ditas sete artes liberais [O trivium, constituído pela gramática, retórica e a dialética, e
o quadrivium, formado por aritmética, geometria, música e astronomia, agrupam as disciplinas
básicas do sistema de ensino medieval],costume da época em que viveu. Ao fim do período de
aprendizagem, Alfonso passou a praticar, no ambiente da corte, os ensinamentos que havia recebido.
(REIS, J. E., Território, Legislação e Monarquia no Reinado de Afonso X, o Sábio (1252 – 1284).
2007. 252 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade
Estadual Paulista, Assis. 2007, p. 13-50).
35
Fernando III foi canonizado em 1671 pelo papa Clemente X.
36
REIS, J. E., Território, Legislação e Monarquia no Reinado de Afonso X, o Sábio (1252 –
1284). 2007. 252 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
Universidade Estadual Paulista, Assis. 2007, p. 26-28.
91

iniciava a participação efetiva nas campanhas militares de reconquista37. Em 1240,


aos dezenove anos de idade, Alfonso foi publicamente elevado ao status de príncipe
herdeiro do trono de Castela, passando a dispor de casa, servidores e renda próprios.
Foi quando ele passou a exercer, em nome de seu pai, poderes judiciais em todo o
reino. A intenção de Fernando III era possibilitar que o príncipe adquirisse
experiência administrativa e maturidade política. Mas foi apenas a partir de 1243
que a presença de Alfonso no governo tornou-se frequente, principalmente em
decorrência da doença de seu pai, que o impossibilitava de empreender campanhas
militares.
Fernando III faleceu em 1252 e, logo após o sepultamento, Alfonso foi
proclamado rei de Castela e Leão, tonando-se o décimo de seu nome. Ele enfrentou
dois grandes desafios na busca pelo fortalecimento do poder régio durante seu
reinado: o surgimento da aristocracia urbana, que já no século XII passou a definir
seu perfil sócio-político como uma força política ativa em certas regiões do reino38,
pois “os limites dos senhorios eram, em última instância, o horizonte político da
maior parte dos habitantes dos territórios da coroa castelhana”39; e o grande número
de códigos penais vigentes de forma concomitante40.
No contexto em que se desenvolveu, a corte de Alfonso X poderia ser
considerada como um espaço de poder cuja legitimidade e legalidade se orientavam
por uma convergência – ainda que eventualmente mínima – com os preceitos
culturais hegemônicos do reino, isto é, uma convergência entre os poderes
temporais (vinculados às cidades e à aristocracia) e os espirituais (a hegemonia
cultural da religião cristã difundida pelo clero)41. Isto significa afirmar que sua corte
não era um espaço marginal no vasto panorama dos poderes ocidentais.

37
Não faz parte do escopo desta dissertação se aprofundar em temas sobre a reconquista, ou mesmo
as questões militares do reino de Castela. Portanto, iremos nos ater apenas aos dados biográficos
que consideramos essenciais para a compreensão da dimensão intelectual do reinado de Alfonso X.
38
SILVEIRA, M. C., As Penalidades Corporais e o Processo de Consolidação do Poder
Monárquico Afonsino (1254-1284). 2012. 235 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2012, p. 87.
39
REIS, Território, Legislação e Monarquia..., p. 145.
40
REIS, Território, Legislação e Monarquia..., p. 146.
41
SILVEIRA, As Penalidades Corporais..., p. 113.
92

Com a alcunha de o Sábio, “devido ao florescimento cultural resultante


de seu patrocínio”42, Alfonso foi responsável pela criação dos centros de Studium
Generalis43, um passo importante para a renovação do direito castelhano-leonês e
para a consolidação do projeto cultural de Alfonso X44. A segunda metade do século
XIII apresenta um ambiente favorável ao desenvolvimento econômico e cultural
em Castela, o que possibilitou ao rei rodear-se de intelectuais, que foram de grande
importância na organização dos centros de saber alfonsinos45. Esses se reuniram
nas cortes que, apesar de terem surgido apenas cerca de meio século antes do
nascimento de Alfonso X, representaram um papel fundamental durante o reinado.
Tendo sido convocadas em diversas ocasiões, essas cortes adquiriram durante seu
governo um caráter de pleno.46 A corte alfonsina era itinerante, mas sempre ao redor
do monarca poderiam ser encontrados jovens cultos, interessados nos temas e
formas da poesia árabe. “Por outro lado, sua enorme curiosidade enciclopedista,
científica, jurídica e literária, o levou a se rodear de tradutores, eruditos e juristas
de grande prestígio”47.
A revitalização da antiga escola de tradutores de Toledo foi uma das
primeiras manifestações da renovação cultural que Alfonso X empreendeu. Desde
o século XI, Toledo se apresentava como um centro cultural e artístico de primeira
grandeza, tendo se tornado um elo entre a Espanha e o resto da cristandade após ser
conquistada por Alfonso VI, em 110548. Antes do rei Sábio, Toledo era conhecida

42
PRUDENTE, Luísa Tollendal. Deus quer, o Rei ordena, a Obra nasce: o casamento nas
partidas de Afonso X. Curitiba: Editora Prismas, 2017, p. 63.
43
Esses estudos são definidos pela Partida Segunda, Título XXXI, Lei 1 como “ ayuntamiento de
maestros y escolares, que es hecho en algún lugar con voluntad y con entendimiento de aprender los
saberes, y hay dos maneras de él: la una es la que dicen estudio general, en que hay maestros de las
artes, así como de gramática y de lógica y de retórica y de aritmética y de geometría y de música y
de astronomía, y otrosí en que hay maestros de decretos y señores de leyes; y este estudio debe ser
establecido por mandato del papa o del emperador o del rey.” (p. 65)
44
Antes dele houve, em Castela e Leão, duas outras tentativas de criação dos centros de Studium
Generalis, ambas frustradas. A primeira, ocorrida em Castela, foi levada a cabo por Alfonso VIII
(1158-1214), bisavô de Alfonso X, e buscava revigorar a escola episcopal de Palência. A segunda
tentativa, ocorrida em Leão e elaborada por Alfonso IX (1188-1230), avô de Alfonso X, criou o
Studium Generalis de Salamanca. O monarca assumiu o projeto de seu avô, com uma novidade:
substituiu a Teologia pelo Direito. (REIS, 2007, p. 180-183).
45
REIS, Território, Legislação e Monarquia..., p. 175 – 176.
46
RODRIGUEZ LLOPIS, Miguel (org.). El legado de Alfonso X. Murcia: Editora Regional de
Murcia, 1998, p. 11.
47
CARRIÓN GUTIÉRREZ, José Miguel. Conociendo a Alfonso X el Sabio. Murcia: Editora
Regional de Murcia, 1997, p. 29.
48
REIS, Território, Legislação e Monarquia..., p. 176-177.
93

como um centro especializado em traduções, especialmente árabe, grego e latim.


Alfonso X amplia essas atividades, estendendo-as para outras cidades
conquistadas49. O monarca participava diretamente de todas as atividades e, apesar
de ter colaboradores competentes, “no momento do trabalho mais delicado
encarregava-se ele próprio de fazê-lo, selecionando as melhores obras, revisando as
traduções e ordenando que as refizessem, caso não ficasse satisfeito com o que lhe
era apresentado”50. A política de tradução do reinado de Alfonso distinguiu-se dos
demais não apenas por incluir em seu corpus obras literárias além de científicas e
filosóficas, mas também por traduzi-las para o castelhano e não para o latim.
Rompendo com a tradição de se usar a língua vernácula apenas como intermediária
oral entre arabistas e latinistas.51
A tradução não é mera reprodução de um texto em língua diversa da
que foi escrita, ela é também um dispositivo de assimilação do outro, através da
construção de semelhanças. Assim sendo, “o ato de traduzir na corte alfonsina fazia
a obra final adquirir um estatuto de verdade não apenas por ser fruto de uma oficina
régia”52. Diante desse dado, podemos afirmar que a tradução de obras como o Liber
Razielis não foram escolhas aleatórias e nem mesmo de importância marginal na
corte castelhana. Isso ocorre porque nesse período, “as palavras demonstravam o
significado de verdades naturais, históricas ou intelectuais, por trás dos
significantes. É como se a essência das coisas estivesse verbalizada e revelar as
palavras fosse revelar a própria verdade”, uma vez que “o mundo deveria ser lido,
decodificado, interpretado. A linguagem era enunciada e se fazia ouvir”53.
A interpretação e escrita dos textos e traduções apresentavam-se como
um método de conhecimento e intermediação que dotava os textos de grande
credibilidade, pois, por trás das palavras estaria a verdade e, com isso, “o rei aparece
como a representação política de Deus na Terra e seu reino material transposto do

49
REIS, Território, Legislação e Monarquia..., p. 177.
50
REIS, Território, Legislação e Monarquia..., p. 178.
51
FONTES, L. A. S. Alfonso X: O Rei Tradutor. In: VII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA
CULTURAL: Escrita, circulação, leituras e recepções, 2014, São Paulo. Anais... São Paulo: Edições
Verona, 2015, p. 3. Disponível em: <
http://gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Leonardo%20Augusto%20Silva%20Fontes.pdf
>. Acesso em: 20 de janeiro de 2018.
52
FONTES, O Rei Tradutor..., p. 4.
53
FONTES, O Rei Tradutor..., p. 5.
94

divino”54. Assim, por se tratar de uma obra traduzida por um rei – e que foi
selecionada para fazer parte de seu scriptorium –, podemos afirmar que o Liber
Razielis representava, na Castela de meados do século XIII, uma função social de
grande prestígio. Especialmente ao considerarmos a relevância que o processo de
tradução possuía para o rei castelhano.
De fato, essa valorização do aspecto cultural do reinado de Alfonso é
relembrada por Àngel García de Cortázar, quando ele afirma que “do amplo
espectro de temas aos quais o reinado alfonsino serviu de umbral, a memória social
que nos ficou do rei é, basicamente, a da sua sabedoria. Alfonso foi, antes de tudo,
um “rei sábio”, protótipo que constituiu um dos modelos do rei medieval”55. Da
mesma forma que a escolha pelo uso da língua castelhana, no lugar da latina, se
apresenta como um esforço intelectual em abarcar o judaísmo, o islamismo e o
cristianismo, claro que de forma muito mais favorável ao último. Sem nunca
comprometer sua imagem de rei cristão56, “Alfonso X parece, como seus próprios
textos demonstram, consciente do poder da escrita que, de forma surpreendente,
congregou romanos, árabes, judeus e cristãos num mesmo projeto”57. Não só nos
territórios da reconquista, mas também nas margens da cultura e do saber, “Alfonso
X buscou dar um novo sentido e organização a esta sociedade hispânica que nascia
do cruzamento de referências e tradições tão díspares”58.
Sempre cercado por intelectuais, Alfonso X de Leão e Castela manteve
interesse por diversas áreas do saber. Durante o seu reinado, os trabalhos de
tradução e elaboração de novos textos receberam um grande incentivo. Mais do que
a grande quantidade de textos, “Alfonso escolhe as obras que quer ver traduzir,
estabelece a ordem em que devem ser dispostas, revisa as traduções, discute as
passagens nebulosas, procura os termos mais adequados, dá o acabamento ao
conjunto. Alfonso X as estuda em profundidade”59. Fica claro que as obras
traduzidas durante o reinado de Alfonso X não foram feitas de forma casual ou

54
FONTES, O Rei Tradutor..., p. 5.
55
CORTÁZAR apud PRUDENTE, p. 63.
56
FONTES, Às Margens da Cristandade..., p. 74-75.
57
FONTES, Às Margens da Cristandade..., p. 85.
58
FONTES, Às Margens da Cristandade..., p. 85.
59
MATTOS, Carlinda Maria Fischer. A astrologia na corte de Afonso X, o Sábio: o Libro de las
Cruzes. Anos 90, Porto Alegre. V. 9, n. 16, p. 93 – 106. 2001, p. 94. Disponível em: <
http://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/6227/3718>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018.
95

mesmo meramente circunstancial. E, apesar de reunir obras em diversas áreas do


conhecimento, a astronomia e astrologia tiveram um interesse especial para ele –
demonstrando como saberes que um dia seriam reivindicados como esotéricos eram
partes integrantes das experiências culturais publicamente cristãs. Carlinda Mattos
acredita que essas duas ciências, astronomia e astrologia, poderiam ser, durante o
medievo, entendidas como uma só60 - ao que acrescentaríamos: e como uma forma
de conhecimento integrado à visão de mundo das elites campeãs da causa cristã.
E, mesmo que o cristianismo veja com desconfiança “a arte de prever
situações através da leitura da posição dos astros no céu”61, é preciso não esquecer
que, biblicamente, os astros são sinais da vontade divina. O rei castelhano entendia
a astrologia como uma forma de se conhecer a Deus, pois “os elementos do céu
realizam a vontade de Deus; eles não são senão a expressão de sua imensa
sabedoria”62.Isso significa afirmar que para Alfonso X a astrologia servia de
intermediária entre os homens e Deus. O que queremos demonstrar com isso é que
o monarca não pode ser considerado menos cristão por causa de seu interesse nas
questões de astrologia. Ao contrário, para ele essa ciência era complementar à fé –
quiçá, uma extensão natural dela -, e servia como maneira de se conhecer Deus.
Pois, “o interesse de Alfonso X pela astrologia não é, de forma alguma, de caráter
periférico, mas sim tão central quanto o interesse que teve pela História e
Legislação”63. De tal forma que ele recebera não só a alcunha de “sábio”, mas
também a de “astrólogo”.
Ao longo do seu trabalho como tradutor de textos mágicos e
astrológicos, Alfonso X construiu o Scriptorium Alfonsí, cujas obras principais,
traduzidas para o castelhano e, em alguns casos, para o latim, foram o Lapiario, o

60
Mattos explica essa relação entre a astronomia/astrologia por meio da divisão de conhecimentos
que existia no período medieval. De um lado as artes liberais, consideradas nobres e ensinadas nas
universidades, e do outro as artes mecânicas, que apesar de úteis, eram desvalorizadas. A astrologia
estaria dentro das artes divinatórias, que fazem parte do grupo de artes mecânicas, já a astronomia
estaria no lado das artes liberais. Porém, a astronomia possuía uma parte judiciária, denominada de
astrologia liberal, pois compartilhava com a filosofia a visão de que os astros exerciam influência
no mundo sublunar. Dessa forma, a astrologia e a astronomia carregavam “uma ambiguidade
constitutiva, no qual os limites entre uma prática mais ligada às artes mecânicas e aquela ligada às
artes liberais, nem sempre eram muito precisas, sendo por isso contínuo objeto de tensão”.
(MATTOS, 2001, p. 95-96)
61
MATTOS, A astrologia na corte de Afonso X..., p. 97.
62
MATTOS, A astrologia na corte de Afonso X..., p. 98.
63
MATTOS, A astrologia na corte de Afonso X..., p. 98.
96

Picatrix, o Liber Razielis, o Libro de las formas e o Libro de astromagia.64 As obras


dele apresentam exemplos dos distintos tipos de magia presentes no Speculum
astronomiae65, formado por três grupos distintos das ciências mágicas: o primeiro
constitui o tipo mais repreensível e envolve o uso de incensos e invocações. Ele
deriva da magia astral harraniana66; o segundo atua por meio de personagens e trata-
se de exorcismos e o uso de nomes mágicos, em especial os angélicos; ele está
associado principalmente a obras relacionadas com Salomão; o terceiro grupo
refere-se ao resto das artes mágicas, cujo poder emana dos corpos celestes, mas que
não podem ser classificadas em nenhum dos outros dois grupos67. Apesar de não
ser sempre fácil de classificá-las, é possível perceber que fazem parte do primeiro
grupo o Picatrix e boa parte do Libro de astromagia. Já no segundo grupo, cujos
textos de magia possuem alguma relação com Salomão, podemos citar o Liber
Razielis68.
No entanto, a versão alfonsina não é a única edição que o Liber Razielis
possuiu. As menções mais antigas de textos envolvendo as figuras de Raziel e
Salomão remontam aos séculos XII e XIII, quando teria sido citado sob o nome de
Secreto Secretorum, por um senhor denominado Pedro Alfonso. Alguns anos mais
tarde, os textos foram mencionados com os nomes de Liber institutionis e Volumina
Salomonis por Alberto Magno, Tadeo de Parma e Pedro de Abando 69. Nota-se,
portanto, que alguns dos maiores mestres teólogos dos séculos XIII e XIV recorriam
ao Liber Razielis. Acredita-se que a pluralidade de manuscritos – indicador de sua
expressiva circulação intelectual – é, em sentido paradoxal, um dos fatores que
contribuem para que esse livro permaneça nas sombras70. Afinal, com os diferentes
manuscritos, as versões acabam variando de maneira considerável, apesar de

64
GARCÍA AVILÉS, Imágenes Mágicas..., p. 130.
65
Livro escrito por Alberto Magnus, por volta de 1260, que objetivava defender a astrologia como
uma forma cristão de conhecimento.
66
La magia astral harraniana se fundamenta sobre el principio, de origen estoico, de la "simpatía"
de todas las partes del universo entre sí y la irradiación de los influjos de unas partes del mundo
hacia las otras. El más claro sustento filosófico de este sistema es el neoplatonismo y la propia
religión harraniana ha sido considerada con frecuencia una derivación tardía del neoplatonismo sirio.
(p. 132)
67
GARCÍA AVILÉS, Imágenes Mágicas..., p. 128.
68
GARCÍA AVILÉS, Imágenes Mágicas..., p. 128.
69
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, A. R., Tradición y Fortuna de los Libros de Astromagia del
Scriptorium Alfonsí. 2011. 298 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Filología Española de la
Facultad de Fiolofia y letras, Universidad Autónoma de Madrid, Madri. 2011.p. 192-193.
70
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 192-193.
97

apresentarem pontos em comum. A maioria se mostra na forma de sete livros cujo


conteúdo se concentra em uma elaborada angelologia e na aplicação mágica da
astrologia, da gematria e da temurah71, bem como, nos nomes de Deus e no uso de
talismãs72. As sete partes comumente relacionadas a esse manuscrito são:73

1) Libro del clave (fols. 13r ss.)

2) Libro del ala (fols. 21r ss.)

3) Libro de los sahumerios (fols. 37 ss.)

4) Libro de los tiempos (fols. 64 ss.)

5) Libro de la purificación del cuerpo (fols. 87 ss.)

6) Libro de los cielos74 (fols. 96 ss.)

7) Libro de las imágenes (fols. 139v-202v)75

No que diz respeito à tradução atribuída a Alfonso X, realizada


provavelmente em 125976, ela apresenta em seu prólogo as origens dessa obra,
remontando-a ao princípio da história da humanidade e informa que o livro foi
compilado originalmente pelo rei Salomão. Seu conteúdo se concentra no estudo da
magia astral judaica, possuindo importante componente angelológico, podendo ser
diretamente relacionado com outras compilações e traduções feitas por Alfonso. De

71
Gematria refere-se ao método hermenêutico de análise de palavras, no qual se atribui um valor
numérico definido a cada letra. E Temurah é um método de permutação, no qual uma letra é
substituída por outra, podendo ser posterior ou precedente no alfabeto.
72
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 192.
73
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 193.
74
O conteúdo do sexto livro, chamado de “Libro de los cielos”, encontra-se estritamente relacionado
um manuscrito hebraico do período helenístico denominado de Sefer há-Razim, o livro dos
mistérios. Porém não se trata do mesmo manuscrito, visto que “Em seu prefácio é explicado que
este volume foi entregue a Noé por Raziel e que Noé gravou-o em uma safira”. Enquanto a lenda do
Liber Razielis traduzido durante o reinado de Alfonso X afirma que este fora entregue por Raziel a
Adão, conforme apresentamos anteriormente.
75
“Na introdução do Liber Razielis eles são nomeados da seguinte forma:: "Iste primus liber dicitur
Clavis. Secundus dicitur Ala. Tertius dicitur Thymiama. Quartus dicitur Liber temporum. Et quintus
dicitur Liber mundicie et abstinentie. Sextus dicitur Liber Samaym, quod vult dicere liber celonim.
Septimus dicitur Liber magice, quia locitur de virtutibus ymaginum” (Vat. Reg. lat. 1300, fol. 3v
apud. RODRIGUEZ LLOPIS, p. 156-157).
76
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 193
98

acordo com Avilés, as compilações de obras e as muitas interpolações inseridas em


outros manuscritos, converteram as obras do Scriptorium Afonsi em verdadeiras
edições de textos astromágicos. O que implica na existência “de uma importante
biblioteca astromágica na Corte alfonsina, em que se extraíram breves textos e
fragmentos que às vezes seriam traduzidos apenas para serem incluídos em uma
obra maior”77.
No entanto, apesar de Alfonso alegar ter traduzido as sete partes desse
livro conforme foram compiladas por Salomão, é possível que tenha buscado
ampliar o tamanho do livro para que o mesmo fosse maior do que os que
anteriormente foram escritos sobre esse tema. Para isso, o rei de Castela e Leão teria
mandado adicionar outras obras que se relacionavam com o que era ali exposto78,
acrescentando-as ao final do texto original79. Da mesma maneira que é possível
encontrar fragmentos do Liber Razielis em outras obras alfonsinas.
Ainda em relação ao conteúdo do livro, a apresentação de elementos
astrológicos e mágicos, como a oração dedicada aos planetas e as invocações de
entidades cósmicas, não é nova. Ana González Sánchez acredita ser a parte
dedicada à angelologia e aos nomes sagrados a mais significativa desse manuscrito.
Mas, mesmo na parte relacionada às invocações, “o Livro de Raziel recorre a
tradições astrológicas muito antigas que haviam chegado ao Ocidente através da
Espanha por influência das culturas semitas”80. Essas tradições mágicas e
astrológicas, não apenas a hebraica, são uma ampliação da astrologia elementar.
Elas não apenas combinam técnicas, como o estudo da trajetória do Sol, mas
apresentam novos conceitos, como os decanos81 e introduzem, entre outros, os
elementos angélicos. Elas constituem uma tendência sincretista presente de maneira
geral na cultura do medievo, não apenas nas obras do Scriptorum Afonsi, que
acabam por constituir compêndios em que se pretende converter o caos em ordem,
dando-se um nome preciso a todas as manifestações observadas82.

77
GARCÍA AVILÉS, Imágenes Mágicas..., p. 130.
78
GARCÍA AVILÉS, Imágenes Mágicas..., p., 132.
79
GARCÍA AVILÉS, Alfonso X y el Liber Razielis..., p. 35.
80
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 195.
81
GONZÁLEZ SÁNCHEZ define os decanos como “treinta y seis divinidades mediadoras que rigen
en sus diferentes manifestaciones a los signos zodiacales en una organización tripartita en la que
cada área se divide, a su vez, en diez días o grados” (p. 195).
82
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p.196.
99

Tal configuração, inevitavelmente, se associa com as questões de livre


arbítrio “com a fortuna e o azar que escapa ao controle humano e que se pretende
regularizar a partir da ordem divina, cujo contraponto é o intento diabólico de alterá-
lo”83. Ana González Sánchez afirma que “deste raciocínio se deduz facilmente a
relação estabelecida de forma sistemática por seus detratores entre a prática da
magia e o trato com os demônios”. No caso do Liber Razielis, o mais significativo
para transformá-lo em um perigo social teria sido sua origem hebraica84, pois os
judeus foram um dos grupos sociais que se tornaram marginalizados na comunidade
cristã. E, apesar das práticas de magia serem proibidas na religião judaica, era
comum que os cristãos associassem os judeus a ela. A imagem do judeu mago foi
bastante recorrente a partir do século XIII85, e as associações feitas entre os judeus
e a bruxaria também se tornaram comuns86.
“Mas não há dúvida de que o Liber Razielis, com suas invocações
mágicas, suas orações aos planetas, seus enigmáticos sinais talismãs e sua
angelologia variada também teria um grande apelo para os intelectuais do final da
Idade Média espanhola”87. Dessa forma, não apenas Alfonso X fora rendido ao
interessante conteúdo que esse livro apresentava, como também diversos outros
intelectuais espanhóis e, inclusive, como nos conta Avilés, membros do próprio
clero acabaram se debruçando sobre os encantos de Raziel. Entretanto, Nicolau
Eymerich não foi um deles.

3.3 A lógica da criminalização como um mundo invertido: Nicolau Eymerich


e a estigmatização das relações com a natureza

A lógica constitutiva da bruxaria como discurso está embasada


essencialmente pelo funcionamento da sociedade por meio de opostos

83
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 196.
84
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 196.
85
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Tradición y Fortuna de los Libros..., p. 208.
86
O termo sabbath, utilizado para se referir as missas invertidas praticadas pelas bruxas é também
o nome de uma cerimônia judaica.
Ver: GINZBURG, Carlo. História Noturna: decifrando o Sabá. Companhia das Letras: São Paulo,
1991; MOORE, R. I. La Formación de una Sociedad Represora. Barcelona: Crítica, 1988;
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993;
87
GARCÍA AVILÉS, Alfonso X y el Liber Razielis..., p. 38.
100

emparelhados88. Isso significa dizer que o mundo era pensado como um complexo
de pares contrários que se complementavam e equilibravam a ordem social. No
entanto, essa dicotomia gerava uma situação de reversibilidade das experiências e
categorias, o que causava risco ao equilíbrio social e gerava uma segunda categoria
de opostos: os inversos89. Ou seja, quando a hierarquia desses opostos
complementares (considerados benignos e necessários) se modificava, o equilíbrio
social era desestabilizado e nos deparávamos com o tipo errado de oposição: a
inversão (considerada maligna). A bruxaria se apresenta como a versão última desse
processo de inversão. Clark, inclusive, apelidou o reino da bruxaria como “o mundo
virado de cabeça para baixo”.
Pensar dessa maneira significa admitir que a lógica produtora da noção
jurídica de bruxaria é mais complexa do que um processo de estigmatização social
por meio da ascensão de uma mentalidade demonológica. É preciso não distorcer
esse argumento: a demonologia se tornaria um elemento central do discurso sobre
a bruxaria. Não estamos negando isso. O que estamos afirmando é que falar e crer
em bruxas implica um desenvolvimento intelectual maior do que crenças
demonológicas. Não se trata, portanto, de minimizar o peso de um documento como
a Super Illius Specula, que, emitida em 1336 por Juan XXII, anunciava a vinculação
entre magia, astrologia e demonologia que se difundiria pelo século XIV. 90 Trata-
se, sim, de tentar mapear os processos intelectuais que abarcaram e fundamentaram
os sentidos de um documento como essa própria bula.
Entretanto, é válido reforçar que, conforme observamos no capítulo 02,
no discurso de Eymerich a bruxaria ainda é uma categoria em formação,
especialmente se comparada com a face que ela possuiria nos séculos posteriores.
Porém, por mais vaga que pareça sua definição no Directorium Inquisitorum – que
nem ao menos chega a nomeá-la como bruxaria – os grupos que a compõem são
tratados de maneira singular, sendo destacados pelo inquisidor como “claramente”,
“evidentemente” heréticos. É o que observamos nos trechos abaixo:

88
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 61.
89
CLARK, Pensando com Demônios..., p. 107.
90
JUAN XXII, Super Illius Specula. 1336. In: VIDAL, J. M. Bullaire de L’inquisition Française
au XIV Siécle et Jusq’a la fin du Grand Schisme. Libraire Letouzei et Ané : Paris, 1913, p. 113.
101

(...) adivinhos ou videntes heréticos (aqueles que, para predizer o


futuro, ou para penetrar no íntimo das pessoas, prestam um culto
de adoração ou veneração ao diabo, batizam as crianças de novo
etc.). Trata-se, evidentemente, de hereges e devem ser
considerados como tais pela Inquisição91.

São heretizantes: a) todos os sortilégios que incluem ações ou


palavras heréticas (...) b) todos os sortilégios que se utilizam os
sacramentais. (...) O sortilégio é claramente herético quando
implica uma invocação ao diabo. (...) c) Finalmente, são heréticas
todas as práticas que implicam, em si mesmas, ações heréticas
(...)92.

Essa preocupação do dominicano em destacar como óbvias as heresias


daqueles que praticavam os atos aqui citados só demonstra que, para a sociedade
em que Eymerich se encontrava, tais recriminações não eram tão evidentes assim.
Elas se apresentam, então, como um dos exemplos de inversão discursiva presentes
no Directorium Inquisitorum. No entanto, em se tratando de Nicolau Eymerich,
esses exemplos de inversão são encontrados tanto na sua vida quanto no discurso
presente em sua obra – aliás, o empenho maior desta dissertação é demonstrar que
sua obra era sua própria maneira de estar no mundo e que ambos não devem ser
tratados naquele velho formato de “a obra”, de um lado, “a biografia do autor e o
contexto”, do outro.
Essa é a experiência que observamos quando nos deparamos com a
perseguição desse inquisidor a Raimundo Lúlio e sua filosofia, com a condenação
de obras como o Liber Razielis e, finalmente, com a criminalização de práticas
associadas pelo dominicano como demoníacas (adivinhação, astrologia,
astronomia, necromancia, etc). Indo além, é essa a lógica que permitiu a esse
inquisidor questionar a autoridade civil diversas vezes, sendo escrachado pela
monarquia e exiliado de sua terra duas vezes – por reis distintos - e, por isso mesmo,
afirmar em seu texto que o rei deveria curvar-se ao clero, representado, nesse caso,
pelo inquisidor.
O historiador Michael Ryan afirma que a preocupação de Eymerich
com Raimundo Lúlio parecia ser relacionada à construção, por parte deste,

91
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 52.
92
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 53-54.
102

de um conjunto de pensamentos únicos e originais que


pretendiam compreender a totalidade da existência, como pode
ser visto em seu Ars compendiosa inveniendi veritatem, O
elaborado sistema de Lúlio proporcionou o entendimento único
de que é possível que os segredos universais e divinos do
cristianismo possam ser desbloqueados. O sistema, de acordo
com Lúlio, foi inspirado divinamente, já que sua arte veio até ele
em um súbito lampejo de visão, não muito diferente das que o
visionário Joan de Rocatallada93 tinha sobre o curso do futuro.
Antes de receber sua revelação divina, Lúlio se separou
fisicamente da sociedade, subindo uma montanha. Lá passou
quase uma semana inteira em meditação, quando “o Senhor de
repente iluminou sua mente dando-lhe a forma e o método para
escrever o livro anteriormente citado contra os erros dos
incrédulos”. Os escritos de Lúlio poderiam ser, e foram, lidos
dentro de um quadro oculto; consequentemente, o nome de Lúlio
tornou-se ligado à magia e ao oculto, uma conexão que durou
muito tempo depois de sua morte94.

Observa-se aqui que para o inquisidor aragonês, não era apenas o


conteúdo da filosofia luliana que representava uma deturpação dos preceitos
cristãos. A própria criação da mesma se enquadrava em um certo nível de inversão.
Dessa forma, não importava para esse dominicano que a elite, e até mesmo parte do
clero, do local em que ele residia, aprovassem a filosofia de Raimundo Lúlio, para
Eymerich ela deveria ser condenada. No entanto, é preciso esclarecer que a
condenação do inimigo, em se tratando da relação de Nicolau Eymerich com
Raimundo Lúlio, fazia-se mais urgente devido a função política desempenhada por
boa parte dos defensores de Lúlio ao tempo de vida do inquisidor. Isso significa
dizer que a oposição aos lulianos não se restringia ao campo das ideias do filósofo,
sua constituição se estende para as circunstâncias políticas em que seus seguidores
estavam inseridos.
Nicolau Eymerich reforça sua justificativa para a condenação por
acreditar que a origem da filosofia de Raimundo Lúlio estava ligada ao oculto, ou
seja, relacionada com práticas que no século seguinte receberiam o rótulo de

93
Joan de Rocatallada (de Rupescissa) foi um franciscano-joaquinista e alquimista francês que viveu
entre 1302-1310 e 1366. Conhecido por suas investigações sobre a quintessência, ele alegava ter
visões apocalípticas e sua própria ordem religiosa voltou-se contra ele em decorrência da falta de
ortodoxia em suas propostas. Suas profecias foram amplamente difundidas pela França e por toda a
Península Ibérica, especialmente em Aragão.
94
RYAN, A Kingdom of Stargazers..., p. 131.
103

bruxaria. Mas que, para tal, foram, antes, (re)classificadas como formas invertidas,
e por isso rivais, da religião cristã. Um entendimento que, como frisamos, não era
tradicional, tampouco consensual. Esse movimento de condenação é semelhante ao
que ocorreu com o Liber Razielis (denominado pelo inquisidor como “A Tábua de
Salomão”). Conforme debatemos anteriormente neste capítulo, a trajetória desse
manuscrito judaico em terras ibéricas inicia-se com a tradução pela corte castelhana
de Alfonso, o Sábio. Muito mais que traduzir, o monarca de Castela incorporou esse
livro em seu Scriptorium, permitindo-nos afirmar que esse era, portanto, de extrema
importância para o rei. No entanto, Eymerich subverteu o papel social que essa obra
representava e a rotulou como demoníaca. Assim como ocorreu com Raimundo
Lúlio, o inquisidor associou o Livro de Raziel a práticas que seriam atribuídas aos
condenados por bruxaria. Observemos o trecho transcrito abaixo:

Deve-se distinguir três tipos de invocação ao diabo, se se toma


como base o livro intitulado A tábua de Salomão, onde os
demônios invocados juram dizer a verdade (exatamente como
prestamos juramento em cima dos Evangelhos, e os judeus em
cima das Tábuas da Lei que Deus entregou a Moisés), livro que
ousa afirmar o poder de Lúcifer e dos outros diabos, e que contém
orações abomináveis reveladas pelo próprio Lúcifer e por outros
demônios. Três maneiras – e sempre as mesmas! – de invocar o
diabo aparecem também no livro atribuído ao necromante
Honório, intitulado Tesouro da necromancia. Peguei estes livros
de necromantes que eu próprio capturei. Li e mandei queimá-los
em público95.

Esse fragmento extraído do Directorium Inquisitorum, quando


contrastado com a trajetória do Livro de Raziel até então, deixa evidente o processo
de inversão discursiva. Ele também demonstra que o inquisidor inverteu até mesmo
a história de origem do Liber Razielis. Não mais um presente do anjo Raziel à Adão.
Em Eymerich, esse livro possui inspiração demoníaca. Se na corte de Castela, no
século XIII, seu conteúdo era de angelologia, no manual inquisitorial escrito por
esse aragonês no século XIV, o manuscrito era uma obra de demonolatria. Seu uso
por um rei cristianíssimo era eclipsado pela reputação atribuída por um inquisidor
– não um inquisidor triunfante, como uma figura hegemônica, mas, vale lembrar,

95
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 54-55.
104

um que fora expulso do reino, exilado e era versado na arte de produzir inimigos. É
esse inquisidor que assegura: o Liber Razielis foi, obviamente, encontrado em posse
de necromantes.
Mas é a continuação desse trecho que possui o fragmento derradeiro na
caracterização da inversão do discurso. Vejamos:

“nestes livros – e em muitos outros, como demonstra a prática


inquisitorial – ocorre que alguns deles, ao invocar demônios,
prestam-lhes um verdadeiro culto de latria, ou seja, oferecem-
lhes sacrifícios, os adoram, dirigem-lhes preces execráveis, se
entregam aos demônios, prestam-lhes votos de obediência,
prometem-lhes fazer qualquer coisa para se ligar a eles jurando
por esse o aquele demônio, chamando-o através de invocações;
cantam em seu louvor, fazem-lhes genuflexões, prosternam-se,
fazem votos de castidade em sua honra, jejuam, flagelam-se,
vestem-se de preto ou de branco para lhes render cultos, pedem
sua ajuda através de sinais, escrevendo letras ou pronunciando
nomes; acendem candelabros, os incensam, queimam âmbar em
seu louvor, aloés e outras substâncias do gênero; sacrificam-lhes
aves e outros animais, oferecem-lhes seu próprio sangue; jogam
sal no fogo, oferecem sacrifícios de toda espécie. Todas essas
práticas, e mil outras que os demônios inspiram e exigem,
implicam em atos de latria: parece, efetivamente, que todas estas
práticas estavam previstas no Antigo e no Novo Testamentos
apenas para o culto de Deus, e não para o culto dos demônios.
Esta é, portanto, a primeira maneira de invocar os demônios. É
assim que os sacerdotes de Baal invocavam o seu deus:
oferecendo-lhe o seu próprio sangue e o sangue dos animais,
como está escrito no Livro dos Reis (4,18)! Outros invocam o
demônio prestando-lhe um culto de veneração: misturam, por
exemplo, nomes de demônio com nomes de beatos em preces
execráveis, considerando até mesmo os espíritos impuros como
mediadores entre o homem e Deus, Deus a quem imploram,
como os candelabros acesos, que venha interceder por eles! É
assim, por exemplo, que os maometanos invocam Deus: através
da mediação de Maomé. E os begardos através da mediação de
frei Pedro Juan e outros hereges condenados pela Igreja. Outros
finalmente, se entregam a práticas bastante estranhas para
invocar os demônios, e não se poderia dizer ao certo se são cultos
de latria ou de dulia. [...]. Quem invoca o demônio prestando-lhe
culto de latria, e confessa isso ou está juridicamente convicto
disso, não será considerado nem adivinho nem mágico, e sim
herege. [...]. Quem invoca o demônio, sem, entretanto, prestar-
lhe culto de latria, mas de hiperdulia ou de dulia, como foi
explicado anteriormente, e que confessa ou está juridicamente
convicto disso, não será considerado adivinho, e sim herege, [...].
Quem invoca os demônios utilizando práticas cujo caráter látrico
105

ou dúlico não é claro, será, entretanto, considerado herege e


tratado como tal, por causa da gravidade da invocação96”

Esse trecho, ao descrever as diversas formas de culto e invocação do


demônio, não apresenta nenhum elemento novo em relação à realização de ritos de
adoração. Por meio da leitura desse fragmento, nós não conseguimos caracterizar
os acusados dessas práticas como figuras que rompem plenamente com os costumes
cristãos. Ao contrário, o inquisidor aragonês mantém a mesma estrutura ritual de
um culto à Deus, a modificação aqui ocorre em relação à figura do cultuado. Ele
substitui Deus por Satã, apresentando uma temível ordem de culto que,
inversamente, é dedicado a este último. Entretanto, é justamente essa a razão que
leva magos, adivinhos, necromantes, astrólogos e alquímicos a se dissociarem dos
demais grupos heréticos e figurarem como categoria que se afastam em direção a
um significado próprio, assustadoramente próprio, segundo o inquisidor: por mais
que o herege desobedeça a Igreja, ele não necessariamente inverte o culto devido a
Deus e aos santos. Quem o faz é uma figura singular, temível de maneira única. Em
pouco tempo, seria preciso encontrar um nome à altura para ela. “Bruxas” viria a
calhar.
Essa análise nos permite dizer que o mundo em que Eymerich viveu
estava rodeado de situações reversíveis e a bruxaria não foi exceção. Ela não nasceu
de algum artifício inédito, mas, sim, da inversão, da modificação discursiva dos
significados de elementos já conhecidos. O que estamos defendendo, em outras
palavras, é isto: para um homem com a trajetória de vida como a de Eymerich, o
familiar invertido é mais horripilante do que o desconhecido. O mundo de ponta
cabeça aterrorizava mais do que o mundo habitado pelo desconhecido. E no caso
específico do nosso inquisidor, ele não só perseguiu e condenou os grupos que
considerava inversores da ordem cristã de mundo, como também foi responsável
por eternizar o discurso de combate a essas inversões no Directorium Inquisitorum,
sua obra mais famosa, que foi amplamente divulgada nos séculos posteriores à sua
escrita e é exaustivamente estudada até os nossos dias.

96
EYMERICH, Directorium Inquisitorum..., p. 55-56.
106

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante boa parte da trajetória de pesquisa que deu origem a esta


dissertação, a maior preocupação foi localizar a bruxaria dentro do Directorium
Inquisitorum. Nos perguntamos como a bruxaria se apresentava em Eymerich. Essa
inquietação foi decorrente da ausência da palavra em si, da forma expressa – e bem
delimitada – do vocábulo. Sendo que, é preciso lembrar, são muitas as referências
historiográficas que asseguram ao Directorium um lugar fundador na genealogia de
textos que provocaram o aparecimento da bruxa como alvo do direito. Isto nos
obrigou a desconstruir o termo como uma referência dada e a (re)construí-lo como
um problema histórico. Encontramos, então, elementos de bruxaria nos grupos que
Nicolau Eymerich condenou por práticas que tivessem alguma ligação mágica e
demoníaca. Mais que isso, os próprios clérigos do período da chamada “Caça às
Bruxas” identificaram esses grupos como bruxaria.
Mas a ressignificação do termo não era o suficiente para sanar a dúvida
que perpassava a pesquisa. Buscávamos explicar a relação jurídica entre bruxaria e
Inquisição, e qual foi o papel de Nicolau Eymerich nisso. Tal busca nos exigiu que
investigássemos as lógicas jurídicas do mundo conhecido pelo inquisidor aragonês.
Foi quando percebemos que a sociedade do medievo possuía uma relação própria
com o jurídico, constituída por uma multiplicidade de ordenamentos. O direito,
nessa sociedade, se confundia com o poder político e os diversos representantes
deste concorrem entre si pela autoridade de dizê-lo. Nicolau Eymerich, ao elaborar
seu manual inquisitorial, se inseriu nessa realidade como um intérprete do direito.
Isso significa dizer que ele não estava limitado à elaboração das normas jurídicas:
ele utilizava a escrita para (re)fundar o direito e as formas de compreendê-lo e
praticá-lo.
Esses atos de (re)interpretação resultaram no alargamento do poder de
julgamento do inquisidor, da ampliação de seu lugar simbólico como fonte de uma
autoridade. Ele consistia numa tentativa de expandir os limites inquisitoriais, de
deslocar a abrangência jurisdicional, incluindo entre as preocupações do Santo
Ofício elementos como blasfêmia, heresia intelectual e, em uma nova escala, as
107

práticas mágicas. No entanto, o Directorium Inquisitorum, mais do que apresentar


uma nova fonte jurídica, expressa a vontade de Eymerich de se fazer ouvir,
apresentando-o, no plano intelectual, como figura dotada de um poder dificilmente
implementado na concretude das relações políticas e institucionais. Quando nos
deparamos com a vida desse aragonês, observamos que a severidade com que ele
encarava as ações que considerava próprias de seu ofício o tornaram um pária entre
a autoridade civil e, diversas vezes, até mesmo entre seus pares.
Nicolau Eymerich apropriou-se de um discurso legitimador, com o qual
inverteu o papel social de livros, filósofos e práticas. Um discurso que expressava
o inverso da vida que levou. Assim, observamos que o mundo composto por opostos
complementares e inversos estava presente não só no pensamento dos intelectuais
do medievo – como do próprio aragonês – e, sim, na vida prática dos habitantes
desse período. Era ideia tanto quanto comportamento. É o que o exemplo desse
inquisidor demonstra. Com isso, ao afirmarmos que a ideia de bruxaria foi
manifestada, primeiramente, como a expressão final de um discurso de inversão de
categorias pré-existentes, não nos prendemos ao campo da mentalidade. Nicolau
Eymerich, um inquisidor particularmente ineficaz e protagonista de um campo de
ação jurídica muitas vezes reduzido, que passou boa parte de sua vida sendo
perseguido e exilado, foi o responsável por elaborar um manual inquisitorial
utilizado por inumeráveis clérigos – ao longo de séculos após sua morte, incluindo
católicos e protestantes. Mas o Directorium Inquisitorum não foi apenas um livro
de técnicas inquisitoriais, ele expandiu o poder da Inquisição e condenou grupos até
então pouco visados pelo Santo Ofício.
Esta é a lógica social que perpassa a emergência da bruxaria. Com isso,
podemos dizer que chegamos à principal resposta oferecida ao problema que moveu
esta pesquisa: antes de estar contida num nome, mais do que ter sido cristalizada
como uma palavra, a bruxaria foi uma maneira de pensar o mundo, uma lógica que,
nos arriscamos a dizer, deve ser considerada um fenômeno propriamente social e
complexo, que não deve ser reduzido à suas expressões em texto ou imagem. Como
tentamos defender ao longo desta dissertação, explicar a bruxaria como crença
exige examiná-la como parte de um universo móvel – e, portanto, histórico – de
relações de poder, algo que perpassa muitos temas, como o lulianismo, as culturas
108

cristãs presentes nas cortes monárquicas, os vasto campo do saber considerado


esotérico – e não só, como muitas vezes se pensa, como um subtema da
demonologia – e cujos sentidos estão atrelados à força das circunstâncias sociais e
políticas.
109

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