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A.

de Almeida Fernandes
(Licenciado em Ciências Geográficas)

A NOBREZA
na Época Vimarano-Portugalense

PARTE l

PROBLEMATA

GUIMARÃES

1981
Separata do Vol. LXXXVII da

“Revista de Guimarães”

Maio, 1978

Companhia Editora do Minho

BARCELOS
A. de Almeida Fernandes
______

A NOBREZA
na Época Vimarano-Portugalense
(PROBLEMAS E RELATÓRIOS)

Guimarães
1 9 7 8
PREVENÇÃO

Constituído aparentemente por capítulos não comunicantes, este trabalho


possui a necessária unidade, não só de método, – pois que este sempre terá de existir
– ,mas a da finalidade, embora modesta: algumas achegas para um melhor
conhecimento de uma classe que foi fundamental até bem perto de nós.

Deve, pois, compreender-se que a estrutura deste estudo não poderá ser
uniforme. Empregamos, já se vê, esta palavra relativamente a todos os aspetos sob
que a nobreza deveria ser historicamente encarada. Quando mesmo não fossem
limitadas as nossas possibilidades, ser-nos-ia inviável a vastidão. Bastariam as
relações com as outras classes – um numeroso conjunto de problemas equivalente a
estudo integral da sociedade, ao menos nas épocas ventiladas.

O que aqui fazemos é a tentativa de descobrir origens e observar as


ascensões, de definir certas atividades, sobretudo funcionais e, algumas, económicas,
e observar declínios – em cada época. Dizemos assim, porque a instauração de uma
nova nobreza é um fenómeno que se repetirá quase ciclicamente, talvez pela própria
fatalidade do frágil ou também efémero sustentáculo que são as grandezas quando,
como haveria de ser sempre, originadas e mantidas pelos bens materiais e as
dominações político-administrativas, invejadas e por isso assaltadas constantemente
por quem as não detém. Nível económico e poder político, individuais ou de classe,
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chegam sempre normalmente a identificar-se, com a possível exceção em vultos


singulares, ou em ocasiões que também singulares sejam.

Assim o estudo da ascenção é mais um conjunto problemático que matéria de


relatório. De certo modo, já com o declínio se dá o contrário – mais assunto de relato
que problemas, os quais são, geralmente ao inverso, os da ascenção. Daí as duas
partes deste trabalho, que atende sobretudo ao período vimarano-portugalense da
nossa História. Afinal, o medievo, até meados do séc. XIII.

Não é a primeira vez que afirmamos todo o condicional dos nossos trabalhos –
embora sem dar-lhes aquela expressão dubitativa que mais seria de esperar de quem
procura sempre a novidade ou não sujeitar-se ao que foi dito, alheio ou mesmo seu.
Odiando toda a sujeição nas ideias (desde que não deveres), amando, pois, a
liberdade até a querermos, sem imposições, para viver a hermética e física prisão em
que os dias nos passam (prisão nos lugares, prisão nas tarefas; mas prisão – neles e
nelas – enquanto o desejarmos, ainda sabendo que nunca deixaremos de o querer); e,
por outro lado, sempre numa indefesa busca da novidade na História, mais não
faríamos, de contrário, que encher de dúvidas expressas, num todo repulsivo, a sua
construção. Pois que lhes damos pleno lugar, dispensemo-nos disso; e, enfim, se não
hesitamos nunca na oposição a pontos de vista que nos pareçam infundados, ou
indecisos, muito merecido será – quando haja saber e razão – se não hesite numa
oposição aos nossos.

Maio de 1978
I – PROBLEMATA

1. Origens: «Depraedationes» suevas e «sortes» góticas; níveis e


cargos, na época visigótica.

O comportamento dos ocupantes godos quanto à posse da propriedade


hispano-romana tem sido, como se sabe, mui contraditoriamente apreciado: passando
por uma posição mitigada (1), as opiniões vão do simples ou mero esbulho (GM II 340-
345, SA 42-50), à repartição tercenaria – dois terços as sortes goticae, que eles se
teriam atribuído (AH VI 97-100) (2).

Para a sua tese de esbulho, foi Sánches-Albornoz buscar um dos fundamentos


à toponímia. Precisamente a um domínio onde menos se poderia pensar achar-se e
menos se poderia provar: bastaria a grande antiguidade a atribuir aos nomes e a sua
contrariedade à tese do ermamento, de que, por sinal, aquele medievista foi um dos
mais irredutíveis defensores.

Mas a ideia, verdade seja, nasceu a Sánches-Albornoz da opinião de outro


festejadíssimo autor (3) acerca de certos nomes de lugar, nos quais ele julgou ver nada
menos que diretas recordações das duas raças (a goda e a romana), significativas de
que elas «se agrupavam, às vezes, apartadamente, em povoados diverso».

Daí concluiu Sánches-Albornoz que «estes agrupamentos nos atestam que se


efetuou um despojo e não uma repartição, pois não são compatíveis os agrupamentos,
em certos lugares distintos, de Godos e Romanos com a forçosa mistura destes em
alguns dos mesmos,

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(1 ) Uma repartição, mas apenas realizada nos latifúndios (Pérez Pujol, Historia de las
Instituciones de la Hispania Goda, II, p. 147; Garcia Gallo, in Hispânia, IV, pp. 40-63.
(2 ) E ainda Manuel Peres, in Anuario de Historia del Derecho Español, III, pp. 409-412,
entre outros mais.
(3 ) Menéndez Pidal, Origenes del Español, pp. 532-533.
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como teria sucedido se houvesse continuado na Península a divisão das terras em


sortes góticas e terças romanas». Quer dizer: uma partição levaria a misturarem-se as
duas raças, ao passo que certos topónimos, como Godos e Godinhos, Romanos e
Romanillos, indicam que tal não sucedeu: que elas se separaram.

Para se fazer uma tal afirmação por esta via, haveria que garantir, primeiro,
que os topónimos alegados remontam à época do facto (1). Mas não se cuidou disso –
nem era possível. Razão bastante, pois, para tal se não afirmar. Para mais, uma tal
permanência toponímica estaria contra uma tese como o ermamento, que afirma e
pretende explicar o desaparecimento dos antigos nomes e que Sánches-Albornoz
defende e apoia estrenuamente (SA 8-12) (2). Um pouco mais tarde, com a fusão legal
das duas raças (3), aquela circunstância (o apartamento), a ter sido real, deixaria logo
de ter significado, nesse ponto de vista. De resto, tal lei só veio regular o que já existia.

Se na designação dos lugares tivessem, por isso, intervindo então fatores


pessoais, isto é, os antroponímicos, o mais natural deveria ser ter-se substituído o
nome pré-existente pelo do hospes, isto é, o do chefe da família ocupante. De facto,
tendo-se a tradição romana das terças seguido (ao menos na partição que ninguém
contesta, a florestal), seria de esperar também um respeito pelos usos na designação
antroponímica dos fundi e das villae romanas, se, agora, já não adjetival, ao

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(1 ) Pela sua erudição filológica, Menéndez Pidal alcançou uma aura que não só o defendeu
de opositores como lhe criou tão cegas adesões que o tornaram culpado, ou não de todo inocente, da
verdadeira obcecação da pré romanidade que hoje lavra entre os toponimistas, verdadeiros ou pretensos.
Chegou-se à situação de ser-se capaz de ver-se no topónimo Pessegueiro uma alusão aos Paesuri ou no
topónimo Concelho aos Conii pré-romanos. O mal está nisto, e não na origem pré-romana de muitos
nomes que entraram no uso comum e por ele passaram à toponímia.
(2 ) «No conjunto, houve no tempo da Reconquista uma profunda transformação na
toponímia»: Pierre David, Études Historiques sur la Galice et le Portugal, pp 74-75.
(3 ) Pela lei de Recesvinto «ut tam goto romanam quam romano gotam matrimonio liceat
sociari»: Cód. Vis. III, 1,2. Sem esse «liceat», as uniões já eram um facto.
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menos genitiva, do que, de resto, nem faltam indícios diretos (1).

E nem o propugnador do agrupamento que, por via toponímica, se julga


apartado dá tão lata margem a Sánchez-Albornoz, visto que o primeiro o considera
ocorrido assim só «às vezes». Logo, coerentemente, também só às vezes o
pretendido esbulho, não se alegando que nem sempre a cada caso de expropriação
correspondeu um de tal designação.

Outros reparos dedutivos e não menos de atender poderiam ser feitos.


Passemos, porém, aos objetivos – pois existem, por extraordinário que pareça.

Se há uma razão aceitável para dar um tal significado a essa toponímia que se
julgou aludir aos Godos e aos Romanos do tempo da ocupação bárbara. A sua
significação entra, sem dúvida, numa das categorias seguintes, podendo caber, em
geral, a cada topónimo mais que um dos casos:

– Nomes pessoais nunca anteriores à Reconquista, ou, o mais tardar, desta e


talvez, já adiantada (2), tanto mais que alguns são femininos;

– Nomes de origem pessoal, mas designativos de geração vilã (familiais),


geralmente uma casta em determinada situação serviçária ou tributária (3);

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(1 ) Teremos de admiti-lo, pondo de parte a ideia de que a toponímia antroponímica genitiva
provém da Reconquista – do que talvez venhamos a ocupar-nos, embora rapidamente, neste mesmo
estudo. Aqui nos baste reparar que já em documentos do século VI, ou referentes a esse tempo, se
encontram topónimos desse género: Gutilani, Temondi, etc. (LF 11), aparecendo o caso do primeiro
(genitivo em –ani) já no Cód. Vis. II, 1,5 e 6.
(2 ) Goda (e La Goda) e Godinho, nomes que, a cada passo, se encontram nos documentos
medievais, para os Godos: Romão e Romano, para os Romanos, usadíssimos também (E. S. XL 410-
411, DR 89). Ou, ainda, alcunhas: Romeu (DP 179) e Romeira. Por vezes, mesmo de origem germânica:
Roma (gót. Brôms, cf. J. Piel, Os Nomes Germânicos na Toponímia Portuguesa, p. 249) – nada, pois,
com Romanos.
(3 ) No séc. XIII, inúmeros casos de prédios designado «os Sebastianos» e «os Martins»,
«os Fagildos» e «os Guimaréis», «os Guilhelmes»: Inq. 3262, 3332, 3441, 3461: filhos ou descendentes de
um Sebastiano, de um Martinho, etc., génese, pois, de topónimos como Fagildos, Romãos, e outros.
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– Nomes de sentido litológico (natureza pedregosa do local) ou botânico (da


vegetação dominante) (1);

– Topónimos de colonização, ou devidos, pois, ao transporte do nome do lugar


(de origem) para o novo (2);

– Diminutivos toponímicos (3).

Nas fontes visigóticas peninsulares, não há alusões diretas à partilha dos


prédios. Há-as, sim, para a de bosques, incluídos, naturalmente, os maninhos, os
matagais, os pascigos de montanha. É a «divisio inter gotum et romanum facta de
portione silvarum», na forma de «duobus partibus goti» e de «tertia romani» – e tão
protegida que, muito tempo depois, em razão de usurpações ou reivindicações, ainda
as leis se lhe referem. Ora bem: em que poderia interessar, verdadeiramente, uma
partição apenas de bosque e de montados, que, em geral, sem proprietário teriam – e,
para mais, na feição tercenaria? Piormente, se uns haviam sido esbugalhados da sua
propriedade (4).

Gama Barros opina que nisso se não trata de um caso geral, mas de «direitos»
criados por atos particulares». Talvez entenda assim em virtude das formas singulares
«goti» e «romani» da lei e, sobretudo, pelo

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(1 ) Ainda hoje, no Norte, mesmo longe do mar, se chama godo uma «pedra não grande e
mais ou menos lisa». Nada, então, mais natural que referirem-se a tais pedras os topónimos Godos e
Godinho («godo» + inho, lat. ineu: cp. Pedrinha, «feita de pedra», Seixinha, Alvarinho, etc., locais
abundantes de pedras, de seixos, de uma espécie de carvalho). Godinhaços, neste caso, é um verdadeiro
derivado de «godinho» litológico: cf. Pedraça, Terraça (suf. –aço, lat. aceu). Quanto a Romãs, é topónimo
perfeitamente análogo a outros, muito remotos, como Avelãs, Maçãs, etc.
(2 ) Godinheira e Godela, criados por naturais (deslocados) de Godinha e Goda; Romanillos
e Romancos, para os pretensos Romanos toponímicos – não sendo a grande antiguidade (pré-romana)
do suf. anco o suficiente para julgar tão antigo como ele o topónimo.
(3 ) Não os conhecemos, é certo, para uma tão remota antiguidade; mas isso não basta
para descrer que nela existiram. No entanto, havendo-a para os casos toponímicos discutidos, esta
espécie não se diferença das quatro definidas – as quais bastam.
(4 ) «Nec de duobus partibus goti aliquid sibi romanus praesumat aut vindicet, aut de tertia
romani gotus sibi romanus audeat usurpare aut vindicare» Cód. Vis. X, 1, 8.
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sentido condicional, «si tamen probatur celebrata devisio» (GB II 244) (1).
Supomos, porém, e cremos mesmo em boa lógica não ser particularizante o
sentido. De facto, os conquistadores – ou, em termos mais «legais», os ocupantes –
vinham ao abrigo de um foedus, um pacto com o imperador e, por muito que eles
exagerassem no seu comportamento no prejuízo dos hispano-romanos (seus
hospitatores), nunca poderiam proceder totalmente em contrário da foederatio, com o
total desprezo da autoridade romana, que, embora fraca, ainda o era. Isto é, ser-lhes-
ia forçosa como hospites a obediência à divisio em terças, que estava na própria
tradição romana. Por outro lado, eles eram uma minoria, talvez nem uma centena de
milhar entre milhões de hispano-romanos: tinham facilidade de escolha, e a maior
parte dos prédios, portanto, não sofreria divisio.
Daí a possibilidade das posteriores vindicações legais, com a prova, a
apresentar, da «celebrata divisio», quanto aos próprios bosques; e nem por isso se
trata de atos sem apoio legal, em tanto que encarados como iniciativa de uma parte e
a que a outra se submetia. Devia haver uma lei, que nem sempre era, ou não podia
mesmo ser, universalmente praticada. Interessariam, repetimos, ao hospes visigótico
as propriedades mais cobiçáveis: por tamanho e rendimento, por instalações e servos,
etc.
Enfim, se o Godo desprezasse a legitimidade que lhe dava o seu foedus para
apenas se servir de uma violência que todo o conquistador pode usar, o simples
esbulho haveria de suscitar-lhe a reação coletiva dos espoliados. É que o foedus
também os protegia, limitando a ação dos hospites, embora fosse sempre para estes a
parte leonina – mais um motivo para contê-los dentro da relativa moderação. A reação
não traria conveniência alguma, por certo, aos violentadores, aos violadores do pacto.
Já neste sentido tinham os suevos passado pelos maus efeitos das suas violências
extorsivas (2), o que só devia ser para os Godos um precedente salutar.

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(1 ) Cód. Vis. X, 1, 8.

(2 ) As reações armadas dos hispano-romanos às suas depraedationes, na primeira metade


do século V, com a intervenção da autoridade romana: Idácio, in Mon. Germ. Hist., II, pp. 21-22
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Praticamente, significa o que dissemos ter-se feito a divisio sobretudo nos


latifúndios: não porque a lei o dispusesse, mas por serem tais prédios os que atrairiam
um hospe godo.
Quando a lei visigótica se refere a sortes e terças, não pode significar outra
coisa, como no passo «sortes goticae et tertiae romanorum quae infra quinquaginta
anos non fuerint revocata nullo modo repetantur» (1). Sempre um e um mesmo sistema
fracionário, ele seria, para uma extorsão arbitrária, de uma uniformidade inadmissível
e até de uma generosidade improvável. Uma lei só poderia impor tal invariabilidade.
Enfim, apenas a terça romana ficava tributada: nela só, «nihil disco debeat
deperire» (2). Não havia depois um direito consuetudinário neste particular, mas
escrito.
Arbitrariedades ou desrespeitos de qualquer lei verificaram-se em todos os
tempos. Todavia, os esbulhos simples é que não passariam aqui e então de factos
isolados. E muitos deles, senão a maioria, deviam ser posteriores, visto que a
posterior lei os contempla.
Nas condições expostas, as famílias nobres romanas, com rapidez
ultrapassadas, dificilmente se vão mantendo, extinguindo-se muitas vezes – e não
apenas pelas suas profundas diferenças da nova (no poder político-administrativo):
sobretudo, não só ao peso natural como ao do próprio efeito psicológico de uma
tributação de que só os hispano-romanos ficavam solventes. Dela, de facto, isentos os
ocupantes, que, para pior, lhes haviam deixado a menor e talvez pior parte dos
próprios prédios. Uma nova nobreza, a gótica, orgulhosamente, pois, se formava.
A expropriação não terá atingido os pequenos proprietários; mas estes, como
pequenos, não poderiam competir em nível algum com os novos domini villae: para
estes, transitaria assim, depressa, a nobilitas social com a propriedade germânica das
sortes. Estava-se na
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(1 ) Exigido, pois (e não só com os bosques), «quod a parentibus vel vicinis divisum est per
tertias immutare non tentet»: Cód. Vis. X, !, 8.
(2 ) Cód. Vis. X, 1, 16: «tertias romanorum ab illis qui ocupatas tenet auferant et romanis sua
exactione sine aliqua dilatione restituant ut nihil fisco debeat deperire».
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época em que até o imperador se achava dominado, quando não era entronizado, por
altas personalidades civis e militares «bárbaras».

Assim vão aparecendo na sociedade visigótica os maiores, de que são uma


parte os superiores, isto é, os especialmente privilegiados, ao passo que os outros, os
tributados inferiores, mais próximos dos minores que dos maiores, estão em simples
servidão social, e estes, em parte, agravadamente, na pessoal: «minores, vero
personae ab honore vel dignitate ingenuitatis privatae» (1).

Maiores, portanto (com os superiores), e inferiores (com os humiliores


ingénuos: «inferiores humilioresque, ingenuae tamen personae») (2), e, depois destes,
ainda aqueles minores que não dispõe de liberdade, constituem toda uma gradação
social. Na cúpula dos superiores, estão os que dispõem da autoridade logo depois do
rei, de quem a recebem – os potentiores político-administrativos e os primates palacii
(3), nobreza palatina de que, em geral, saem aqueles.

E a consideração de senior não está só nessa nobreza, porque também na


rural – e daí haver seniores palatii e seniores loci, não se contando entre estes, porém,
apenas os naturais do lugar ou território, mas os que superiormente representavam
nele a autoridade real (4). Ou seja, um senior palatii pode vir a desempenhar funções
que mais ou menos temporariamente o tornam um senior loci (5).

Ainda nos nossos inícios nacionais teremos estas circunstâncias na reserva de


réditos municipais «ad palacium» (6) e no chamamento, sobretudo também municipal,
de «senhor da terra», ou só «senhor», ao delegado real nela (ou na vila) (7).

__________

(1 ) Cód. Vis., IX, 2, 9.


2
() Cód. Vis., VI, 1, 2.
3
() Lei de Cintasvinto, Cód. Vis., VI, 1, 2.
4
() Cód. Vis., VIII, 5, 6; IX, 2, 9.
5
() Neste ponto de vista, são eles os priores loci que a lei IX, 2, 5, parece distinguir do
iudex, do villicus e do praepositus: «ante diem octavum prioribus loci illius iudici villico atque praeposito…
procuret». Não parece tratar-se de apostos de «prioribus loci»-
(6 ) Nos forais portugueses mais antigos (por Fernando I de Leão): «det quintam ad
palacium», Leg.344.
(7 ) 1108, «ad seniorem qui illa imperavit»; 1112, «pectent ad senior»; 1124, «traditor de
concilio aut de senior»: Leg. 354, 360, 363, etc.
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Os verdadeiros potentiores são apenas o comes e o dux. Este parece


realmente ocupar o cume da escala da autoridade (o que não significa o da nobreza),
com atribuições não só militares, mas ainda judiciais e administrativas, imediatamente
antes do comes: «dux aut comes, tiufados atque vicarius» (1). O tiufado, de facto, já
está, como veremos, na escala dos humiliores. Mas haveria, realmente, diferença de
grau de nobreza do comes para o dux?

O comes aparece, em geral, em cargos diversos entre os mais elevados «viri


ilustres officii palatini» (2); mas também fora do «palatium», isto é, nas civitates (ou seu
territorium) – e daí as menções como «ante comitem civitatis» ( 3) e «comiti civitatis in
cuiús território est constitutus» (4), parecendo tratar-se de uma delegação r´´egia,
análoga àquela que nas «terras» terão os «ricos-homens» dos inícios na nossa
nacionalidade.

À primeira vista, parece que haveria comites palacii e comites que o não
seriam; mas nenhuma dessas funções era vitalícia, antes todas, certamente,
amovíveis. Quer dizer que o comes podia transitar de uma para outra, e tanto no
palatium como nos territoria civitatum – passando, aqui, pelo próprio facto, e ser um
«comis regis», delegado político-administrativo e judicial do soberano. De qualquer
modo, vigora o sentido originário da palavra «comes» - o companheiro (naturalmente o
da pessoa real), sentido que, em época tão remota, não podia estar de todo obliterado
– sem com isto poder haver confusão com o gardingus, palavra que, de início,
corresponderia à guarda do rei ou do palácio do mesmo.

Haveria nesta nobreza classes definidas, isto é, mais do que graus de


aristocracia – graus que, de resto, já tenderiam para transformar-se nelas?

__________

(1 ) Cód. Vis., IX, 2, 3.


2
() A diversidade de cargos é grande, mas eles são singulares (por pessoa): «comes
patrimonii, comes cubicularium, comes scanciarum, comes notariorum, comes spatariorum, comes
thesaurorum, comes stabuli» (de onde «condestável»): cf. GB VII 394. E aquela expressão legal ainda
tem, nos nossos inícios nacionais, equivalentes, como «nobiles et magnae dignitatis viros gubernantes»
(1063, AF1 155).
(3 ) Cód. Vis., II, 1, 9.
(4) Cód. Vis., IX, 2, 3.
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Esta graduação, que não parece estar fechada a nobre algum no nível por ele
ocupado, dependendo, sobretudo, da pessoa real no domínio político-administrativo,
apresenta-se num texto como «nobiles potentioresque personae ut sunt primates
palacii eorunque filii» (1). Não temos, de facto, aí «nobiliores potentioresque» - do que
poderia tirar-se a conclusão de que nem os nobiles seriam sempre potentiores nem
estes sempre aqueles (os nobres ou pelo menos os «mais nobres»). A segunda
negativa, quanto a nobilitas, não é admissível, porque o mais que nos será dado
concluir está numa simples questão de grau, pois nem mesmo de classe.
Claramente se afirma, de facto, aí uma hereditariedade não só de condição
social, como ainda, pelo menos em princípio (embora nem sempre, qual se
compreende na prática), de funções palatinas, quer internas (no palatium) quer
externas (nas civitates). A referência «eorumque filii» que se estabelece para os
primates palacii indica a hereditariedade; mas o conjunto «nobiles potentioresque
personae» parece ter neles apenas uma explicitação parcial. Quer dizer que entre
essas pessoas não estariam só os primates palacii eorumque filii.
De qualquer modo, não temos os «mais nobres» como temos os «mais
poderosos» – poder que já dependia do rei, o que não sucedia com a nobilitas. De
facto, se o monarca não podia conferir nobreza a quem era filho de nobre, conferia a
autoridade, mais elevada ou menos elevada – se bem que parece, mesmo assim,
haver uma certa limitação régia a filhos de primates palacii, naturalmente indicados
pelo sangue para suceder seus pais. Numa monarquia eletiva (eleitores esses
«primates»), nem seria isso de admirar: o rei deveria designar de preferência quem,
depois de eleito, melhor lhe garantisse o trono. Não devia, porém, ser uma
organização monolítica. Por outro lado e num sentido inverso, dir-se-ia que, sendo,
como eram, os potentiores também nobiles, não seria compreensível a especificação
que a expressão faz dos potentiores depois de citados os nobiles, uma vez que, numa
tal referência a estes, se incluiriam aqueles.
De tudo isto, parece, pois, tirar-se um resultado: a nobreza, classe única em
relação ao restante da

__________
(1 ) Lei de Cintasvinto, Cód. Vis. VI, 1, 2.
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População (nunca um conjunto de classes), não era um agregado social cerrado ou


até puramente hereditário: nela poderiam ingressar pessoas não nobiles em
determinadas circunstâncias (pessoais ou não), o que dependeria sobretudo das
decisões reais. Tais decisões não eram, certamente, expressas num tal sentido
(conferir nobilitas), mas, por um efeito de confiança real ou pelo exercício de
autoridade por esta conferida, levariam praticamente a esse resultado, em mais ou
menos tempo.

Contra o caráter relativamente aberto ou não hermético da classe nobre


visigótica não depõe uma expressão como «persona inferior nobiliorem se vel
potentiorem inscribere non praesumat» (1), pois tem por finalidade prevenir simulações
de condição social (com interesse, por exemplo, na isenção tributária) e não a de
impedir acessões. Previne uma transformação social brusca e fraudulenta, não uma
transformação palatina, perfeitamente normal – uma natural evolução.

As funções palatinas internas, aquelas que melhor correspondem ao


significado originário da palavra «palatino», apenas se definem parra os comites, como
já vimos; e as suas funções externas (judiciais, político-administrativas e ainda
militares, nas circunscrições) são as mesmas ou, melhor, da mesma natureza das do
dux. Devendo aqui concluir-se que entre dux e comes não só não havia diferença de
classe porque também a não havia propriamente de grau, temos nisto a concordância
com a doutrina acabada de expor – a da unicidade nobre.

O dux, portanto, não deveria ser mais que um comes designado para um cargo
elevado. Nos cargos, com efeito, é que poderá achar-se diferença de nível ou de grau,
conquanto não se criasse por isso diferença tal que viesse a definir-se em distinção de
classes nobres. Pelo menos um facto se revela invariavelmente: enquanto ao simples
comes era dado o governo de um territorium (civitatis), ao dux, ou, como dizemos, ao
comes feito dux, ou que por isso se tornava ou só chamava dux, era atribuído o
governo de uma provintia, com toda a emi-

__________

(1 ) Cód. Vis., VI, 1, 2.


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nência militar, – o seu caráter essencial. Uma coisa e outra correspondiam bem ao
sentido originário da palavra dux – o condutor, chefe máximo depois do rei, sentido
que, numa época tão remota, também não deveria estar já substancialmente alterado.

Uma expressão como «duces omnes senioresque palatii» (1) e que tem certas
analogias com «nobiles potentioresque personae» (cuja ideia se repete em
«nobiliorem se vel potentiorem inscribere non praesumat») não parece exprimir mais
que o que dizemos: definir para os efeitos da lei respetiva a necessária e prevista
generalidade relativa às pessoas de condição nobre e às não nobres (ou, quanto a
estas, as poderosas tornadas equivalentemente nobres em resultado do poder). Daí
que se cite o grau mais elevado, o dux, e se englobem os outros no que estes também
são – os seniores palatii, entre os quais os primates, que aí só não foram referidos em
razão de se haverem citado os duces, que é a sua expressão não só nobre mas
magnática mais alta.

E a propósito da existência de seniores palatii ou do significado desta


designação, uma nova vez se lembre a existência de seniores loci – expressão que,
para o «exterior» do palatium, e sem discriminação de nobres e não nobres,
estabelece aquilo que para os seniores palatii já achámos sem termos distinguido
classes de nobreza (que não havia): ou seja, as suas funções «exteriores» nas
circunscrições (2).

Estes seniores loci são residentes, naturais ou não do «lugar»; e os de


condição não nobre têm-na, socialmente, de algum modo distinta, tanto por
honorabilidade pessoal como, sobretudo, pelas suas possessões – e será destes
mesmos que mais naturalmente se farão as acessões à nobreza. Tal circunstância,
que, como se deve ter observado, não nos serviu (nem nos influenciou) para
deduzirmos o caráter não fechado da nobreza visigótica, não deixa de ser uma
confirmação do mesmo. Nos nossos inícios nacionais, se bem julgamos, têm ainda os

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(1 ) Cód. Vis. IX, 2, 9.

(2 ) «aut episcopi aut comiti aut iudici aut senioribus loci»: Cód. Vis. VIII, 5, 6. Estes seniores
loci, citados num conspecto de autoridade qualquer com bispos, condes e juízes, têm-na, pois, como
estes, sem distinguirmos grau.
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seniores loci visigóticos a sua representação – mos chamados «homens-bons», tanto


nobres como (mais geralmente) não nobres.

Por igual, vêm certas circunstâncias apoiar a nossa dedução de que duces e
comites não constituem classes nobres nem formam no conjunto uma, constituindo
apenas parte, embora superior, de uma classe. Um duce era sempre comes primeiro,
por isto e não só pelo que havíamos já apontado (1).

De facto, nas atas conciliares, nunca um dux se nomeia sem se lhe chamar
também comes, ao passo que aparecem comites que não se diziam sempre duces (2),
prova de que, se um dux era sempre comes, este não era sempre dux.

Somos levados então a pensar na razão fundamental do facto, a qual


pensamos só poder ser a definida – o favor real na delegação de um comes como seu
representante imediato na província, do que lhe resultaria imediatamente o comando
militar que ao rei cabia pessoalmente. A própria razão natural assim indica por um
duplo motivo: não eram hereditários tais cargos e ao monarca não poderia deixar de
caber a faculdade de fazer nomeações dessa ou semelhante natureza. Um dux, pois,
era essencialmente um «comes exercitus», com funções administrativas e judiciais em
tempo de paz, as inerentes a qualquer comes (3).

__________

(1 ) Na monarquia leonesa, ainda o facto se revelará pelo duplo tratamento dux e comes na
mesma pessoa (por vezes, até com os «condes magnos de Portugal).

(2 ) Cfr. Os textos apresentados por GB VII 394. Quando se nomeia a provintia, já o título de
comes se não regista – o que nos parece significar que é suposto na própria designação circunscricional
e definido na categorização pessoal, de acordo com o que exprimimos: «Claudius Lusitaniae dux»,
expressamente (e teria de ser, por se tratar da capital) declarado residente em Mérida; «Fremosindo
Tarraconensis provintiae dux». E até sucede referir-se a província sem a nomear «provinciae dux nomine
Argimundus» – o que, para o caso, vale o mesmo. (Cfr. os textos aduzidos por GB VII 397 – sem se
ocupar do nosso problema).

(3 ) Assim se exprime, nos parece, nas leis: «si contigerit ut ipsi comes civitatis… annonas
eorunt dare dissimulet, comitis exercitus sui querelam deponant»: Cód. Vis. IX, 2, 6. O comes exercitus,
portanto, proeminente sobre o comes civitatis – assim sendo, ele, o dux.
___20___

Também o enunciado do título pessoal «comes et dux» (e nunca «dux et


comes»), contra o que seria de esperar se a categoria ducal fosse, em essência,
diferente da condal e, sobretudo, se correspondesse a uma classe nobre mais
elevada), mostra que o dux era, primeiro que isso, um comes (1).

Uma expressão como «a provinciae suae vel comite» ( 2), se não reforça
mesmo o que dizemos, em nada o contraria: significa a autoridade superior do dux,
mas, também, por qualquer motivo ou circunstância, a possibilidade de recorrer-se ao
comes – melhor diríamos, a qualquer dos comites da sua provintia. Um dux nunca é
referido a um territotium, e, se verdade é que nunca nos aparece também o título
condal diretamente ligado ao territorium, não menos o é que sempre se diz comes
civitates – o que equivale, porque toda a civitas tinha um territorium próprio.

De facto, não há dúvida de que o reino visigótico estava dividido em provintiae,


necessariamente poucas (ainda, a bem dizer, as romanas), pelo que os duces eram
poucos também; e de que cada provintia se subdividia em territoria (3).

Até por se tratar de pessoa singular, o comes (não se necessita de considerar


o dux) tinha, ou teria, eventualmente, um delegado ou substituto – um vicarius, cuja
função, pelo próprio sentido da palavra (aquele que está in vice, na vez de alguém)
não é relativa apenas ao comes; mas, aqui – pelo menos para já, – apenas o «vicarius
comitis» nos interessa.

__________

(1 ) Já se verificava o facto no Baixo Império: Cód. Teod. XI, 36, 33. Cfr. GB VII 395, quanto
aos títulos (pois não discute a circunstância de que nos ocupamos).

(2 ) Cód. Vis. II, 1, 17.

(3 ) Na expressão «quicumque in easdem provincias vel territoria superveniens… mox a


duce suo seu comite» (Cód. Vis. IX, 2, 8.) tudo isto é bem claro: correspondência do dux à provincia e do
comes ao territorium; a alternativa «dux seu comite» correspondente à alternativa já analisada no texto
«duce vel comite» da lei II, 1, 17. É esta a própria alternativa «províncias vel territoria», no sentido de
inclusão, quanto às circunscrições, e de subordinação quanto aos mandantes.
___21___

Salvo erro, não nos aparece, na verdade, um «vicarius ducis», e o facto


compreende-se de ser muito especial o cargo do dux (além de restrito
numericamente), e, sobretudo, em razão de os comites serem, em funções,
verdadeiros vicarii dele (como ele já era um verdadeiro vicarius regis) – situações que
se prolongam até muito cerca da independência portuguesa (1).

O vicarius, apesar da possibilidade genérica de qualquer autoridade o ter,


parece de facto, existir apenas para o comes – o mais das vezes implicitamente, mas
também de uma forma expressa (2). No entanto, dando ideia de uma independência
que não pode ser senão aparente, ele aparece citado na lista das pessoas com
capacidade de julgar (3) – o que seria pleonástico se, quanto a nós, a sua expressa
menção não tivesse precisamente o sentido que deduzimos por outras vias; e é,
repetimos, que só o comes teria vicarius. A sua menção depois daquele equivalerá a
«comes vel vicarius suus» ou semelhante expressão.

Admitindo a existência de juízes em delegação, opina Gama Barros que o facto


de se fazer a sua menção expressa prova que o vicarius era «um magistrado régio
com autoridade própria ou permanente, embora subordinado ao conde do território
onde exercia o cargo», pois que, se assim não fosse, «o legislador não teria feito
especial menção dele» (GB VII 399-400).

Nem mesmo concordes na unicidade vicarial, parece-nos que a menção do


vicarius na relação das pessoas com capacidade de julgar deve-se apenas a uma
preocupação de exaustão nas menções individuais, – isto é, a de

__________

(1 ) Em 1059, por exemplo, já Portugal sob administração triunviral, eram três magnates
portugalenses aqui os «vicarii de rex domno Fernando» (DC 421); anos adiante, sob administração
univiral, havia já em Portugal um só «vicarius regis», chamado também «imperator» (LF 108, 271, 607,
612).

(2 ) «si quis iudicem aut comitem vel vicarium comitis seu tiufadum suspectos habere se
dixerint et a suum ducem aditum accedandi poposcerit»: Cód. Vis. II, 1, 22. (Note-se a superioridade do
dux e a subalternidade respetiva dos outros funcionários, desde o comes, como a temos mostrado).

(3 ) «dux, comes, vicarius, pascis assertor, tiufados, milenárius, quingentarius, centenarius,


decanus, defensor, numerarius»: Cód. Vis. II, 1, 25.
___22___

elucidar atendendo a que, precisamente, só um vicarius havia. Na relação dos


julgadores, há apenas duas pessoas singulares (o dux e o comes, não o sendo os
outros funcionários), o que para as outras pessoas elimina praticamente a capacidade
de delegar. Daí não haver na lei precisões vicariais para cada um deles (sem dever
esquecer-se que o dux tinha o seu vicarius em cada territorium – o comes civitatis).

De resto, dizer que o vicarius estava subordinado ao comes, como faz Gama
Barros, carece de qualquer propriedade, pois que isso mesmo equivaleria a um
vicariato não independente (relativo ao comes); e não menos sofre de um defeito de
raciocínio, dado que a relação com o comes é por vezes bem expressa: «vicarius
comitis» (embora nem sempre, repetimos – pelo próprio facto da unicidade) (1).

E não só essa menção ou designação expressa está de acordo com o que


dizemos, pois o estão outras expressões legais, qual é «comes civitatis vel vicarius aut
territorii iudex» (2), em que se revela a ligação ao comes, tratando-se, para mais, de
uma lei designadamente «antiqua». Não se pode alegar que isto se contradiz noutras
expressões legais, como, «iudici vel vicário proximae civitatis aut territorii» ( 3); é que,
dado se não citar o comes, só poderia entender-se pelo vicarius em representação
dele – e não que o vicarius goza de independência, visto que aquilo equivaleria a
anular a autoridade judicial do comes. Outra indicação ocorre neste sentido – a
referência das citações ao territorium: pois se alude expressamente ao iudex deste,
seria inconcebível não se ter em vista (na pessoa do vicarius) o comes do mesmo (4).

Acresce, ainda, que são tão raros os casos em que o vicarius é citado sem
referência ao comes (como se sem função representativa, ou isento de qualquer
subordi-

__________

(1 ) Cód. Vis. II, 1, 22.

(2 ) Cód. Vis. III, 6, 1.

(3 ) Cód. Vis. IX, 1, 6, também «antiqua» no séc. VI.

(4 ) Nas leis, nunca se liga o iudex à civitas, isto é, não há, designadamente, um «iudex
civitatis», mas um «iudex territorii», ao contrário do que sucede com o comes, também designadamente –
nunca um «comes territorii», mas um «comes civitatis»: C’od. Vis. II, 2, 8; III, 5,1; VII, 1,5; etc. Tal não se
contradiz em «a comite civitatis vel iudice», VII, 1, 1.
___23___

nação), que o facto, longe de significar tratar-se de «funcionário com jurisdição


própria» (1), só podemos levá-lo à conta de omissão. E até nem poderemos julgar esta
inconsciente, sendo bem de crer que a pessoa do vicarius (na função, não na
hierarquia) sobressaísse à do comes, que, desempenhando outros cargos, o que
menos exercitaria poderia ser exatamente o judicial – em que, por isso mesmo,
dispunha de um substituto.

Os graus superiores da administração e das magistraturas são, pois, o dux, o


comes e o guardingus.

Citado com estes, aparece o thiufadus, mas em relação com o gardingus a


ordem varia: ora primeiro o thiufadus (2), ora, aliás mais vezes, antes o gardingus (3).

Não há, porém, dúvida da superioridade do gardingo: quando dúvida houvesse,


bastaria, para eliminá-la, notar que se trata de nobre, o que o tiufado não era. Os
gardingos aparecem ao lado dos seniores palacii (4), e, nas ordenações por
importância, expressamente entre os maiores loci, logo após os comes (5); ao passo
que o tiufado se inclui mesmo entre as inferiores personae ou até as villiorres (6).

__________

(1 ) Assim pretende, como vimos, GB VII 401.


2
() Gardingo depois de tiufado: «sit dux aut comes tiufadus atque vicarius, gardingus vel
qualibet persona cuia ut ex ipso sit commissum», Cód. Vis. IX, 2, 8. Não pode daqui concluir-se que até
um tiufado tinha vicarius: basta que se não citaria, em tal caso, o do conde; e, de resto, que as situações
são desordenadas prova-se pelo facto de se referir primeiro o tiufado e, depois, o gardingo.
(3 ) Sem mesmo se citar o tiufado: «dux, comes seu etiam gardingus», Cód. Vis. IX, 2, 9. A
falta de menção do tiufadus não elimina a nossa consideração, visto que nenhuma outra citação pessoal
se fez. A aproximação do gardingus dos graus superiores, de resto, repete-se: «quisquis ille est sive sit
dux sive comes atque gardingus, seu sit gottus sive romanus,» IX, 2,9.
(4 ) «seniorbusque palatti atque gardingiis», Cód. Vis. II, 1, q.
5
() «si maioribus loci persona fuerit id est dux, comes seu etiam gardingus», lei de Vamba,
Cód. IX, 2, 9.
(6 ) «Inferiores sane vilioresque personae, tiufadi scilicet, omnisque exercitus compulsores»,
lei de Vamba, cód. IX, 2, 9. O gardingus era um nobre palatino (a palavra deve ser formada de um termo
germânico significativo de «guarda» com o sufixo lat. inicus); e ainda aparece o cargo no séc. X: «Vilulfus
Ganoiz regis gardincus»: 992, doc. Em Yepes, Corónica de San Benito, V, fls. 448-449.
___24___

Num estudo que verse a nobreza, o tiufado, só por si, não pode interessar;
mas, indiretamente, têm toda a importância as questões que lhe respeitam.

É bem sabido que o thiufadus exercia em tempo de paz a jurisdição criminal na


thiufa (ou thiufada), que constituía uma divisão territorial (portanto, dentro do
territorium civitatis), e em tempos de guerra promovia o recrutamento militar, sendo,
por isso, um dos «exercitus compulsores» (1). E certamente que nisso tinha tão grande
responsabilidade que as suas atribuições de tempo de paz ficavam entregues então
ao prepositus comitis – o delegado do comes para a thiufada (2).

Parece, pois, evidente que, a partir do thiufadus, este já excluído


expressamente (o facto de ele pertencer às «villiores personae» está de acordo com o
de a thiufa ser já uma unidade administrativa de caráter económica e socialmente
rural), não se deve considerar qualquer grau de nobilitas, a qual acabou nos gardingi.

Isto acorda ainda com uma circunstância que é de todas as épocas: não ser a
nobreza uma maioria – ou, pelo menos, quando muito numerosa, os graus elevados
não serem numerosos na proporção. É dado admitir-se que a nobilitas poderia surgir
pessoalmente como consequência de cargos confiados pelo rei (e pusemos já tal
possibilidade), uma das formas de acessão; mas mais natural geralmente o contrário:
eles terem por condição a nobilitas – o que não quer dizer que todo ou qualquer nobre
os exercesse.

As acessões, tanto mais que, como vimos, a nobreza não parece uma classe
fechada (se bem que, como é natural, ela procurasse desde o início preservar-se),
poderiam suceder substituindo-se à hereditariedade os progressos

__________

(1 ) Cód. Vis. IX, 2, 9.

(2 ) É o que nos parece decorrer da redação da lei IX, 2, 5, embora GB VII 410 entenda ser
tal o prepósito o comandante da hoste a que o thiufadus ficava subordinado. Ora, se uma redação da lei é
«tiumfadus praeposit comitis notum faciat», e outra é «praeposito civitatis faciat notum» (Cód. Vis.IX, 2,
5), parece resultar que o praepositus é-o do comes, acaso mesmo o seu vicarius, porque o comes
passara ao exército («dux exercitus). A hipótese de G. Barros de que esses «praepositus» é p comando
de uma unidade milenária no exército não parece fundada.
___25___

económicos de determinados indivíduos, o que a decadência a que o tempo submete


todas as instituições ou organizações poderá favorecer.

A própria minoria que os conquistadores eram, continuada pela minoria relativa


sua descendente, parecendo um elemento de preservação ou distinção de casta,
transformar-se-ia antes em fator de fraqueza.

Natural, pois, o aparecimento paulatino de novos nobiles, sempre que as


condições económicas e as circunstâncias sociais se conjugassem nesse sentido –
sem exclusão, antes condição, das qualidades individuais, como aquela
honorabilidade pessoal que não tem quem quer.

Não há dúvida de que as circunstâncias pessoais, funcionais ou de classe, já


apontadas se aplicam ao território que veio a constituir o nosso país. Recuemos,
porém, aos inícios do séc. V.

Com a aquiescência mais ou menos forçada da autoridade imperial, foi, como é


sabido, feita em 411, a divisão ocupante da Hispânia pelos invasores de 409, cabendo
aos Suevos e ao ramo asdingo dos Vândalos a Galécia, e aos Alanos a Lusitânia (com
separação, portanto, no Douro).

Como também se sabe, são os Suevos os que interessam ao nosso território


nacional, não só porque depressa os Alanos se viram desapossados e os Vândalos se
retiraram, mas sobretudo porque foram eles os que se estabeleceram à parte litoral da
província, incluído o nosso território nortenho (1).

Quanto aos Visigodos, depois da sua primeira vinda à Hispânia (na obediência
ao seu compromisso de foederati) como aliados do imperador contra aqueles
ocupantes, só mais tarde se apoderaram da maior parte da Península (a ainda
imperial), deixando por então livres os Suevos no reino que haviam constituído e em
imediata expansão para o sul – nem sempre conseguida ou sempre efetiva.

__________

(1 ) Cfr. As fontes citadas pelo Prof. T. Soares, Reflexões, I, pp.140-142, e por F. J. Veloso,
A Lusitânia Suévico-Bizantina, pp. 24 e 32 (Idácio, Santo Isidoro, Orósio, e outros).
___26___

Teoricamente, a Hispânia não sueva fora pelos Visigodos, reconduzida à


autoridade imperial; mas os hispano-romanos, se tinham já sofrido muito da parte dos
ocupantes, ficaram, agora, em condições piores, em razão dos vexames das tropas
imperiais e dos agentes do fisco (1).

Temos, porém, de concluir que as violências militares e fiscais da autoridade


romana restaurada não se exerceram na Suévia pelo menos numa escala que
merecesse uma especial memória que delas ficou, e que no nosso território, pois, não
são de considerar em absoluto tais resultados: «a tirania dos oficiais imperiais reduziu
logo um povo oprimido a ter saudades da sua escravidão bárbara» (2).

Mas esta pobreza sob os novos dominadores resultara de uma partilha?


Quando desta se fala, como temos visto, ela apenas se responsabiliza aos Godos – e
daí as duas partes destes terem sido desde logo chamadas sortes goticae. Mas uma
partilha pelos Suevos não consta: o que houve, em vez dela, foi alguma coisa que não
tem atraído a atenção de muitos historiadores – as suas depraedationes, que, de
resto, não podem ter-se por um procedimento mais benigno.

Se tivermos de julgar pela violenta reação dos espoliados daquela época (a


primeira metade do séc. V), terá esse comportamento sido bem pior; mas não
podemos esquecer o efeito da novidade ou da surpresa. Tal efeito já não se poderá
considerar quando, mais tarde, os Godos procedem à partilha na Hispânia não sueva,
partilha que ao nosso país não interessa ainda, pois que só nos finais do séc. VI os
Visigodos conquistaram o reino suevo e logo o assimilaram. Mas nesta ocasião mais
tardia já se não faziam tais partilhas – de sorte que o facto nos não parece de utilidade
imediata, ou seja, o que concerne a sortes goticae e tertia romana. Interessam-nos, e
bem mais, as depraedationes suévicas.

__________

(1 ) «tyrannicus exactor diripuit et miles exaurit»: Idácio, ES IV 351.

(2 ) Gibbon, in História de Roma (de V. Duruy), p. 635, certamente baseado em Orósio, que,
de facto, escreveu: «aqui malint inter bárbaros pauperem libertatem quem inter romanos tributariam
solicitudinem sustinere»: Adversus Paganos, VII, 50.
___27___

Regressemos, pois, aos inícios da ocupação bárbara, quando os Suevos


tomaram posse da sua parte para nela se estabelecerem, «ad inhabitandum», ou seja,
como há pouco dissemos e se sabe, «in extremitate oceani maris occídua» ( 1). O
estabelecimento devia ter sido relativamente pacífico, visto que eles próprios estavam
então arrependidos daqueles dois anos (409-411) de assoladoras correrias (2). Mas a
benignidade foi pouco duradoura ou muito relativa: logo começaram a apoderar-se das
propriedades, matando até os que resistiam ao esbulho (3).

Ora em que região realmente devemos considerar estes acontecimentos? É


que os autores ainda hoje discutem qual a parte marítima da Galecia que aos Suevos
coube; mas parece esquecerem que as fontes da época não fazem limitação alguma
quando indicam a sua situação «in extremitate oceani maris». Se poderá entender-se
apenas uma parte da região galaica, muito menos forçado é supor-se toda a sua
região litoral, do Cantábrico ao Douro. Seria, de facto, natural que a Galécia, partilhada
por dois grupos bárbaros (os Asdingos e os Suevos, não sendo pelo menos um mais
numeroso sensivelmente que o outro), fosse dividida em metades – a do litoral, pois,
para os Suevos, e não uma estreita faixa ao longo da costa, ou aí, como até mais se
crê, uma região determinada, que se insinua ter sido a de Braga (4).

Como eram relativamente poucos, poderiam os Suevos espalhar-se à escolha


por todo o território que lhes coube. Se eles o não tencionavam fazer, a divisio teria

__________

(1 ) Idácio, in Mon. Germ. II ad na. 411. Esta «extremidade» deve ser mais ou menos,
metade da Galiza, como adiante se discute no texto.

(2 ) «quarum ipsas quoque modum poenitet»: Osório, Adv. Pag. VII 40. E tão benignamente,
de facto, que o próprio representante do imperador, o conde Astérico, os auxiliou na defesa contra os
Vândalos (o terrível transe suevo nos Nerbásios): Idácio, in Mon. Germ. Hist. II ad an. 419.

(3 ) F. J. Veloso, para assim crer, baseia-se no facto de o rei Requiário, derrotado por
Teodorico, se ter refugiado em Portucale (Porto): A Lusitânia, p. 34. Não se entende porquê, porque o
vencido o que procurava era fugir por mar, sendo esse o melhor porto da parte da Galécia onde se
encontrava.
___28___

Sido quase desnecessária, dispensados os direitos conferidos por um pacto, ainda


que tivessem de defender-se depois contra pretensões de outros bárbaros. Mas eles
igualmente houveram de fazê-lo contra os hispano-romanos. A ocupação deveria ter-
se, pois, operado, em grupos dispersos, e, todavia, suficientemente fortes, para
conseguirem subsistir.

Ora o facto é que a fácil previsão se verificou, caindo assim a guerra sobre a
Galécia suévica (1). Idácio, que foi contemporâneo destes factos e presenciou deles
muitos, dá-lhe um relevo que poderá conter um natural exagero, mas de modo
nenhum é falso.

Até 430, de facto, foram «Suevi sub Hermerico rege medias partes Gallaeciae
depraedantes», isto é, ao que nos parece (de acordo com a razão natural na dedução
já feita), extorsores na metade da Galécia que lhes coubera. Mas houve uma partilha,
mas «ob quórum depraedationem», ou, por outras palavras, por eles «Gallaecis
praedabantur assidue», um esbulho repetido ao longo de muitos anos, mas nem por
isso menos ativo (2).

Quando, num dos últimos decénios do séc. VI, o reino suevo acabou
incorporado no visigótico, serenada, havia um século, aquela situação, não surgiu, por
isso, um ambiente que exigisse ou sequer permitisse a partilha visigótica (em sortes e
terças romanas): a sua aplicabilidade passara havia muito. Nem os conquistadores
visigóticos da Suévia poderiam ter procedido a uma partilha do género, impossível
agora, tanto na propriedade em si como no tocante a proprietários.

A nobreza visigótica, que se instaurara política e economicamente no século


anterior, não deverá já considerar-se pois aqui; mas, se quiséssemos ver algo de
similar, teríamos de ter em vista uma nobreza suévica, embora assimilada logo à
visigótica.

__________

(1 ) «Suevi depraedantes per plebem» e «inter Suevos et Callaecos interfectis aliquantis


honestis (os nobres) natu malum hostile miscetur» são expressões da violência: Idácio, ob. cit., an. 430 e
cerca de 460.

(2 ) Idácio, ob. cit., an. 430, 431, e 433. A situação tornou-se tão intolerável que o próprio
Idácio se dirigiu de Chaves a Aécio, então na Gália. O grande general enviou à Península o conde
Censório, mas sem grandes resultados imediatos.
___29___

Quanto à nobreza romana, ela não deveria ter sofrido na Suévia um destino ou
evolução diferente do que sucedeu no restante da Hispania: persistência natural da
nobilitas de muitas famílias, apenas nesse ponto de vista germanizadas, e a
decadência ou até desaparecimento gradual da nobilitas de muitas outras,
empobrecidas ou desprestigiadas, por qualquer outra razão. Se com os Visigodos
houvera uma partilha leonina, com os Suevos tinham ocorrido no nosso território as
violentas depraedationes que têm ainda hoje uma profusa recordação toponímica.

Tal a origem da situação que nos meados do séc. X se nos manifesta numa
aparentemente insignificante referência a «nobiles (et) innobiles» após a alusão a
«dives (et) pauper» (DC 99), é uma estruturação social completa e que teremos de
considerar neste estudo.

Sabemos que a toponímia genitiva antroponímica é geralmente atribuída à


Reconquista – ocupação da propriedade por um latrocínio chamado «presúria»
(latrocínio, de facto, o que continuaremos nós a dizer, como há muito). Não é possível
aceitar um tal parecer, por muitas razões que haveria de alegar: a zona peninsular
dessa toponímia é, apenas, a do reino suevo; os documentos referentes a presúrias e
presores nunca dão aos locais os nomes destes (todos esses locais conservando as
designações que tinham); na Reconquista já se não usavam genitivos (tendo o
latrocínio ocorrido do séc. IX para o X, sobretudo); documentos relativos à época
visigótica já contêm topónimos genitivos germânicos antroponímicos, e, se casos tais
não abundam, o facto somente se deve a serem muito poucos os documentos dessa
época ou que a ela se refiram. Mas não é este o lugar para explorar estas quatro
notáveis circunstâncias – e menos ainda outras que poderiam aduzir-se no mesmo
sentido de desmascarar aparências. Damos, ainda assim, o exemplo da situação para
o território vimaranense histórico – e é de crer que, por necessidade, voltemos ao
assunto noutros passos.
___30___

E x e m p l i f i c a ç ã o no t e r r i t ó r i o «v i m a r a n e n s

e»:

Na remota circunscrição administrativa a que noutras passagens deste estudo


teremos ainda de referir-nos e que é o territorium de «entre ambas as Aves» (Ave e
Vizela), deve relevar-se a toponímia antroponímica genitiva, como exemplificação de
um ponto essencial deste capítulo. De acordo com esse ponto de vista, alguma coisa
ela nos mostrará porventura da frequência e da extensão que atingiu aqui o esbulho
da propriedade hispano-romana após a divisão de cerca de 410 entre os invasores
germânicos, para a sua inhabitatio peninsular.

O assunto, que, por agora, apenas se toca num aspeto, completa-se, de facto,
com as circunstâncias que, no período da Reconquista, aqui lhe respeitam, as quais (é
o que queremos afinal dizer) o esclarecerão melhor, no aspeto em que aqui o
versamos. A via toponímica não é tão aleatória como, para muitos e até responsáveis,
se apresenta ou eles a entendem, desde o momento que se faça a sua exploração
com o critério e a cautela necessários num documento sui generis, mas incisivo (sem
os preconcebidos de Menéndez Pidal e de Sánchez-Albornoz).

Sem possibilidades de formação de uma lista totalizada destes topónimos na


região em vista e com que nos interessa exemplificar (a vimaranense), o rol que, para
o efeito, organizámos respeita, apenas, a povoações ou locais habitados (1): e nele
agrupamos os casos pelas

__________

(1 ) Somente o recurso às matrizes prediais poderia fornecer-nos uma lista mais completa
da importante toponímia fundiária da época germânica (pois continuaremos na opinião de que o é,
enquanto não encontrarmos prova convincente de o não ser, o que nos parece, apesar de tudo, muito
improvável, diga-se o que se disser e seja quem for que o faça); mas, mesmo assim, nunca ela seria
completa, pois que por própria experiência sabemos que as matrizes não registam em cada freguesia os
nomes todos. Além disso, muitos topónimos se foram perdendo com o tempo. Verdade é também que
não faltam destes nomes a designar hoje simples locais cultivados – e até, por vezes, já completamente
incultos. Não nos referimos, enfim, àqueles cuja transformação por «etimologias populares» lhes esconde
o significado (como Belos Ares, em São Torcato, em vez de Balasares – um patronímico).
___31___

divisões territoriais administrativas menores – os «mandamentos», ainda que não saberemos


se já então funcionavam (portanto, sob a administração romana). Na época visigótica, eles
existiam certamente – porventura as thiufadas ou thiufas.

1. No «mandamente de Subpratello (atuais freguesias de Arosa, Castelões e


Sobradelo da Goma).
- Aldemir: «villa» Aldemiri, de Aldemirus;
- Barrosenda (1): «villa» Barosindi, de Barosindus;
- Gordisande: «villa» Guardasandi, de Guardasandus;
- Manhufe: «villa» Maniulfi, de Maniulfus.
2. No «mandamente de Travazolos» (atuais freguesias de Agrela, Cerafão ( 2),
Freitas, Travaçós e Vila Cova:
- Aboim: »villa» Avolini, de Avolus;
- Cotelhe: «villa» Cottelli, de Cottellus;
- Friande: «villa» Fredenandi, de Gúndila;
- Gondiães: «villa» Gundilanis, de Gúndila;
- Padim: «villa» Palatini, de Palatinus;
- Site: «villa» Sitti, de Sittus;
- Valdelhe: «villa» Beldelli, de Baldellus.
3. No «mandamento de Sancto Torquato» (atuais freguesias de Garfe, Gonça,
Gondomar e São Torcato):
- Astrufe: «villa» Astrulfi, de Astrulfus;
- Atão: «villa» Attani, de Atta;
- Garfe: «villa» Garfi, de Garfus (Varfus);
- Gilde: «villa» Ausigildi, de Ausigildus;
- Gondumar: »villa» Gundemari, de Gundemarus;
- Gosende: «villa» Gundesindi, de Gundesindus;
- Mouril: «villa» Mourilli, de Mourellus;
- Rande: «villa» Randi, de Randus;
- Requesende: «villa» Recasindi, de Recasindus;
- Requião: «villa» Riquilani, de Ríquila;

__________

(1 ) Não é raro a terminação –a ocultar –e genitivo, além de que não são muito frequentes
na toponímia os nomes pessoais femininos.

(2 ) Não podemos seguir aqui as erradíssimas escritas toponímicas, como Serafão, Azurém,
Travassós, Pencelo, etc.
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- Resende: «villa» Redisindi, de Redisindus;


- Segade: «villa» Sagati, de Sagatus;
- Sesulde: «villa» Sísiwuldi, de Sisiwuldus;
- Trasariz: «villa» Trasarici, de Trasaricus;
- Troitosende: «villa» Tructesindi, de Tructesindus;
4. No «mandamento de Arones» (atuais freguesias de Arões – as duas –,
Golães e Quinchães):
- Arões: «villa» Aronis, de Ara;
-Docim: «villa» Dulcidii, de Dulcidius;
- Estrufães: «villa» Astrulfanis, de Astrulfus;
- Fregim: «villa» Fragini, de Fraginus;
- Golães: «villa» Gollanis, de Golla (Volla);
- Gondariz: «villa» Gunderici, de Gundericus;
- Guear: «villa» Viduarii, de Viduarius;
- Mende: «villa» Menendi, de Menendus;
- Montim: «villa» Mundini, de Mundinus;
- Quinchães: «villa» Quintilanis, de Quíntila;
- Sampil: «villa» Sampiri, de Sampirus.
5. No «mandamento de Sauto» (atuais freguesias de Corvite, Fermentões,
Gominhães, Gondar, Paraíso, Penselo, Ponte, Prazins – as duas –, Selho-S. Lourenço,
Selho-S. Jorge, Silvares e Souto, as duas):
- Aljarei: «villa» Argeredi de Argeredus;
- Antemil: «villa» Antemiri, de Antemirus;
- Ardão: «villa» Hadriani, de Adrianus (1);
- Belote: «villa» Belloti, de Bellotus;
- Cenães: «villa» Cennanis, de Cenna;
- Cendão: «villa» Zendani, de Senda (Cenda);
- Fermentões: «villa» Faramundanis, de Faramundus;
- Fins: «villa» Felicis, de Felix;
- Fonsim: «villa» Funsini, de Funsinus;
- Frei: «villa» Fredi, Fredus (Fridus);
- Froião: «villa» Frogilani, de Frógila;
- Garei, «villa» Gadaredi, de Gadaredus;
- Gavim: «villa» Gabini, de Gabinus;
- Golfamir: «villa» Wulfamiri, de Wulfamirus;
- Gominhães: «villa» Gumilanis, de Gúmila.
__________
(1 ) É, porém, preferível, como dissemos, Hadrianum sc «fundus».
___33___

- Gondar: «villa» Gundarii, de Gundarius;


- Gostelães: «villa» Vestrilanis, de Véstrila (1);
- Lazarim: «villa» Lazarini, de Lazarinus;
- Mide: «villa» Miti, de Mitus;
- Mourão: «villa» Maurani, de Maura;
- Mouril: «villa» Maurelli, de Maurellus;
- Novegilde: «villa» Liuvigildi, de Viuvigildus;
- Prazins: «villa» Placidii, de Placidus (2);
- Requião: «villa» Requilani, de Réquila;
- Sesgude: «villa» de Sisiguti, de Sisigutus;
- Sisnande: «villa» de Sisinandi, de Sisinandus;
- Ufe: «villa» Wulfi, de Wulfus (Anawulfus);
- Venada: «villa» de Benenati, de Benenatus.
6. No «mandamento de Crescimir» (atuais freguesias de Aldão, Asorém, Costa,
Creixomir, Guimarães e Mesão Frio):
- Aldão: «villa» Aldani, de Alda;
- Alvim: «villa» Albini, de Albinus;
- Asorém: «villa» Osoredi, de Osoredus;
.- Cezil: «villa» Caecilii, de Caecilius;
- Creixomil: «villa» Criscimiri, de Criscimirus;
- Espariz: «villa» Spanarici, de Spanaricus;
. Frez: «villa» Fredeci, de Fredecus;
- Guimarães: «villa» Vimaranis, de Vimara;
- Margaride: «villa» Margariti, de Margaritus;
- Samil: «villa» Salamiri, de Salamirus;
- Sandiães: «villa» Sandilanis, de Sândila;
7. No «mandamento de Candanoso» (atuais freguesias de Candoso – as duas –,
Cerzedelo, Conde, Mascotelos, Nespereira e Selho-S. Cristóvão):
- Antemil: «villa» Antemiri, de Antemirus;
- Armil: «villa» Ariamiri, de Ariamirus;
- Cotiães: «villa» Cottilanis, de Cóttila;
- Estriz: «villa» Astirici, de Astiricus;
- Estromonde: «villa» Astramundi, de Astramundus;
__________
(1 ) Não nos preocupando aqui a demonstração fonética, convém, no entanto, fazê-la neste
caso, devido à conservação do l: Vestrilanis > Verterlanes > Guestelães > Costelães, Cp. Belães <
Bellães < Berlães (Inq. 1067) < Berilanis (de Bérila).
(2 ) A forma antiga era Prazim («Placidii», DC 420.
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- Galamir: «villa» Valiamiri, de Valiamirus;


- Guilhade: «villa» Viliati, de Viliatus;
- Martim: «villa» Martini, de Martinus;
- Oidães: «villa» Optilanis, de Óptila;
- Sendal: «villa» Sandarii, de Sandariuw.
8. No «andamento de Tavoatello» (atuais freguesias de Abação – as duas -,
Infias, Pinheiro, Polvoreira, Tabuadelo e Urgeses):
- Abação: «villa» Avitiani, de Avitianus (1);
- Aldrim: «villa» Alderedi, de Alderedus;
- Branderiz: «villa» Branderici, de Brandericus;
- Fraiz: «villa» Fredici, de Fredecus;
- Gerufe: «villa» Gerulfi, Gerulfus;
- Guilhufe: «villa» Viliulfi, de Viliulfus;
- Ramonde: «villa» Ragimundi, de Ragimundus;
- Recadém: «villa» Recaredi, de Recaredus;
- Roriz: «villa» Godorici, de Rodoricus;
- Sesmonde: «villa» Sisimundi, de Sisimundus;
- Unhão: «villa» Hunilani, de Húnila;
- Vermuim: «villa» Vermudi, de Vermudes.
9. No «mandamento de Avizella» (atuais freguesias de Atães, Calvos, Cerzedo,
Fareja, Gémeos, Infantas, Matamá, Oleiros, Rendufe, Tagilde e Vizela-S. Faustino):
- Adoufe: «villa» Ataulfi, de Ataulfus;
- Alvelhe: «villa» Alvelli, de Alvellus;
- Atães: «villa» Attanis, de Atta;
- Caíde: «villa» Cagiti, de Cagitus;
- Froião: «villa» Frogilani, de Frógila;
- Gondarém: «villa» Gunderedi, de Gunderedus;
- Guilhufre: «villa» Viliulfi, de Viliulfus;
- Magide: «villa» Magiti, de Magitus;
- Rariz: «villa» Ranarici, de Ranaricus;
- Rendufe: «villa» Randulfi, de Randulfus;
- Sindim: «villa» Sindini, de Sindinus;
- Tagilde: «villa» Atanagildi, de Atanagildus.

__________
(1 ) Como já dissemos, é, porém, preferível Avitianum, sc. «fundus».
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10. No «mandamento de Caldas» (atuais freguesias de Aves, Caldas de


Vizela – as duas –, Gandarela, Lordelo, Moreira, Riba de Ave e Cerzedelo):
- Anside: «villa» Ansiti, de Ansitos;
- Atainde: «villa» Atanagildi, de Atanagildus;
- Esperandei: «villa» Sperandei, de Spera in Deo;
- Estevém: «villa» Stephani, de Stephanus;
- Fermil: «villa» Filimiri, de Filimirus;
- Formariz: «villa» Formaricus, de Formarici;
- Gainde: «villa» Vila Galindi, de Galindus;
- Gominjhães: «villa» Gumilanis, de Gúmila;
- Gonderiz: «villa» Gunderici, de Gundericus;
- Gontim: «villa» Guntini, de Guntinus;
- Gramil: «villa» Gradamiri, de Gradamirus;
- Levazim: «villa» Lupucini, de Lupucinus;
- Megide: «villa» Magiti, de Magitus;
- Novegilde: «villa» Leovegildi, de Leovigildus;
- Padim: «villa» Palatini, de Palatinus;
- Sabarei: «villa» Sabaredi, de Sabaredus;
- Samar: «villa» Samarii, de Samarius (1).

Estaremos, em muitos destes casos (mesmo de crer que na maioria), perante a


antroponímia toponímica das depraedationes suévicas da primeira metade do séc. V.
Sendo assim, revelações dos esbulhos praticados por um povo de instintos
marcadamente rurais, que, com as armas que lhe serviam para defender as suas
aquisições contra os espoliados e mesmo outros povos germânicos, tentavam logo
expandir-se politicamente para o sul – no entanto, a partir do centro, com menor êxito.

A pequena percentagem de casos latinos denunciará, em razão dela mesma,


com tal filiação linguística, e do significado circunstancial da época, casos de hispano-
romanos que se deverão ter ressarcido do esbulho pela organização de prédios novos,
aos quais já não aplicaram denominações pessoais adjetivais (em –anus ou –ana, à
exceção, mui de crer, de Abação, Ardão: fundus

__________

(1 ) Alguns destes topónimos podem ter outras soluções antroponímicas; mas nós servimo-
nos, sempre que as possuíamos, de formas antigas. Também não fazemos qualquer anotação de
antropónimos hipotéticos. Estes particulares não interessam aos nossos fins.
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Avitianus, fundus Hadrianus), mas genitivas (Cezil, Prazim, villa Caecilli, villa Placidii).

A antroponímia foi aquilo em que os «bárbaros» menos cederam, de facto, na


civilização encontrada, como se com ela só pretendessem preservar a sua
individualidade – ou, melhor diríamos, o seu individualismo, num conceito mais
pessoal. Pelo contrário, foram os romanos que adoptaram depois a sua, quase
universalmente.

Alguns casos devem ser visigóticos (sobretudo os hipocorísticos de formação


latinizante), com o que concordam os topónimos Sá, que temos, pelo menos, em duas
freguesias (Paraíso e Travaçós) (1); mas tais casos nada provam no sentido de uma
divisão com os Godos em «sortes»; corresponderão antes àquelas novas
organizações agrárias que presumimos (2).

Cartografando essas «villas», verificaremos a sua densidade sobretudo na


parte central (não tanto, pois, nas partes oriental e ocidental), desde o Selho ao Vizela,
com predomínio na zona das atuais Caldas de Vizela e de Guimarães. Embora o
assunto fuja, neste ponto de vista, aos objetivos do presente estudo, não deixaremos
de lembrar que, neste extremo sul, marginal do Vizela, já na época sueva (e, portanto,
de muito antes – a época romana propriamente dita), aqui existia um centro relevante,
o de Oculis, que não devia ter apenas a importância religiosa que lhe confere o facto
de ser

__________

(1 ) Cf. Prof. J. Piel, Os nomes germânicos na toponímia portuguesa, pp. 254-255. A palavra
«sala» (saa, sá) parece-nos significar o mesmo que o lat. Palatium.

(2 ) Na resenha toponímica explicativa que expusemos, há casos como Estrufães e Requião


que se diria serem, respetivamente, um plural (de Astrulfus) e um acusativo (de Ríquila). Na verdade,
nenhuma destas atribuições casuais explica o topónimo no sentido de que a antroponímia nessa função
tinha: a possessão. Já nesse tempo o genitivo se fazia também em –ani e em –anis para os nomes em –
us. Os próprios notários medievais alatinavam Requião, por exemplo, em Riquilani: «villa Riquilani subtus
castello Vermudi», DP 474 – o que mostra que eles eram bem mais ilustrados nisso que os filólogos de
hoje, sobretudo se notários «toponimistas». Que tal genitivo «irregular» já era um facto nessa época
demonstram-no os passos como estes das leis visigóticas: «a tempore Chintilani regis» (Cód. Vis. II,1,5) e
«ex tempore reverendae memoriae Chintilani principis» (Cód. Vis., I,1,6).
___37___

mencionado pelo paroquial suévico como uma das paroaeciae bracarenses (LF 10).
Até porque essa importância se mantém, depois, atingindo ainda, em especial como
centro balnear e terapêutico, os nossos inícios nacionais, pelo menos (séc. IX, Oculos
e Termas Calidas, DC 138, 223 e 235). Mas não se pense que a zona de densidade
ao norte (média no entre Ave e Vizela) está igualmente em correlação com um centro
aí importante – neste caso, Guimarães. A tal respeito, dissemos já noutro estudo o
bastante (AF3 16-23); mas até o simples exame ao mapa da distribuição destas villae
não confere o mínimo relevo a Vimaranes em muito mais de uma centena de núcleos
congéneres e de congénere designação. Muitos menos lho pode dar o estranho
equívoco de Vama (na Galiza) que lembrou a um medievista francês e que os nossos
autores, pressurosamente, logo se deram a apoiar e a seguir.

O território, hoje vimaranense, de entre Ave e Vizela apresenta-se-nos, assim,


como um dos mais intensamente depredados pelos Suevos – e, portanto, uma região
onde a nobreza tem raízes antiquíssimas, cujos aspetos nacionais se lhes prendem de
um modo inextricável.

Ora este mesmo território foi sempre dos mais cobiçados pelos invasores:
assim, se as hipercríticas ideias dos atuais historiadores da ermação (na Reconquista)
tivesse suficiente plausibilidade, não seria de esperar este panorama (sócio-
económico) toponímico (1). Arrastados ao contrário pelos exageros da cientificação,
tais historiadores aproximam-se dos antigos autores fantasistas, que não viam nos
nossos inícios nacionais senão o cedo ódio aos Árabes e guerras contra eles, e,
nestes, os trucidantes e destruidores máximos. Mas o palco geográfico é sempre o
mesmo – e os atores, da mesma espécie sempre.

__________

(1 ) Às 127 villae arroladas, juntem-se mais estas vinte e seis: 1. Albelli. 2. Gormiati,
Mozegii, Vinceredi. 4. Elanci, Rapinati. 5. Brandilani, Trasarici. 6. Annilani, Benedicti, Ceppilanis, Falofi,
Servilanis, Sisulfi, Sonnimiri. 7. Egirici, Segimundi, Siquilani. 8. Aldilani, Argemiri, Florentii, Fredenandi,
Gaudiosi, Nantemiri, Quintilanis, Sonnini.
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2. As leis leonesas de 1020: Compras feitas por nobres a juniores;


«tertia villa» e «tertia mandatio».

O primeiro parágrafo do cap. 9º das leis de 1020 (concílio de Leão) proíbe ao


nobre de beetria comprar o solar e o horto onde more um júnior; mas já poderão obter
dele a meia da «hereditas de foris» (1).
O comprador, porém, desta meia «herdade de fora» nunca deverá povoá-la
senão até à «tertia villa» (2). Aqui, vem juntar-se nisto ao problema da «herdade de
fora» o bem maior desta «villa», quanto ao numeral. O seu sentido tem ocupado os
mais eminentes medievistas, aceitanso-se hoje aquele que lhe atribui Sánchez-
Albornoz: o sentido cardinal – «terceira villa». Terá sido, porém, tal a última palavra, se
a há na História?
Ora não pode duvidar-se de que, segundo cremos, «tertia» teve uma função
sintática adjetival, como ainda a tem «meia» (metade). Expressões como «media
hereditas» e «tertia villa» podem ter, pois, uma mesma sintaxe ( 3). Assim, possível a
significação de terça parte da «villa», isto é, um sentido fracionário e não o ordinal
(«terceira villa») que lhe deu aquele medievista.

__________
(1 ) «nullus nobilis sive aliquis de benefactoria emat solare aut ortum alicuius juniores nisi
solummodo mediam hereditas de foris». Ou seja, exteriormente àqueles.
Por «solar», entenda-se a casa e seus apêndices: «trans suum soar, scilicet intus domum»,
contrapondo-se a «foras domum» o mesmo, expressamente, que «in rua»: Inq.1023-1024. O «horto» era
um terreno imediato à casa, às vezes distinto dela por vedação.
(2 ) «et in ipsam medietatem quam emerit non faciat populationem busque in tertiam villam»
(3 ) Ainda hoje dessa função de «tertia» são sobrevivências estereotipadas a expressão
«terça parte» e a designação «terça feira» (feria tertia, aqui, ao mesmo tempo, com um sentido ordinal,
que aliás subjaz sempre ao fracionário). Enfim, não deve esquecer-se ainda hoje o uso adjetival do
fracionamento «meia» (media). Portanto, equivalentes sintáticas as expressões «meia villa», «terça villa»,
no sentido fracionário: «um meio da villa», «um
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Um simples esquema (sem que deva iludir quanto à regularidade geométrica


figurada e a que devem ser referidos todos os casos reais possíveis) pode ajudar a
esclarecer a questão no nosso ponto de vista (o fracionário). A área A B’C’D
representa a «hereditas de foris», também chamada «villa» (o que explicaremos) e
pertencente, como também se verá, ao júnior (cap. 9º). A área

B’BCC’ representa a «hereditas» do senhor, herdade esta que tem de considerar-se,


por força da própria condição social do júnior, um solarengo (como ainda
verificaremos, artº 11º). Em AB’C’D, o comprador nobre, pela nossa hipótese, não
poderá fazer povoamento (casa e horto) que ocupe mais que a terça parte. Neste caso
limite, ficaria apenas um sexto do total da herdade do júnior reservado ao cultivo –
mas não é isto o que importa. (Fig. 1).

__________
terço da villa». Fica assim removida a objeção que Sánchez-Albornoz pôs a Mayer quanto à
concordância: isto é, se se tratasse de fração, dever ter-se «tertiam ville» e não, como vem na lei,
«tertiam villam»: SA 43.
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O parágrafo (do cap. 9º) a que nos reportamos emprega as designações prediais
«hereditas (de foris) e «villa»: «emat solummodo mediam hereditatis de foris», e nesta
meia se não povoe «usque in tertiam villam». Sanchéz-Albornoz, pelo seu parecer
ordinal, seria levado forçosamente a julgar diferentes os locais (e, portanto, os
prédios), o que terá de examinar-se. Mas não se ponha de lado uma outra hipótese: a
dupla designação poder dever-se à necessidade de distinguir a «hereditas» senhorial
(a que o júnior estava ligado, por condição) da «hereditas» própria do solarengo, não
se querendo, na redação da lei, repetir a designação «hereditas de foris», pelo que se
substituiria por «villa» (1).
A «hereditas de foris» que o júnior pode vender a nobre, nas condições do
primeiro parágrafo do cap. 9º, é, evidentemente, própria desse júnior. De facto, como
se poderia admitir que um nobre comprasse um prédio senhorial que o sujeitasse a
outro em prestações e serviços, subalternizando-se-lhe pelo menos? Mais
simplesmente: o júnior não poderia vender aquilo que não era seu. Mas, no caso
presente, ele não é um solarengo relativamente a essa «hereditas de foris»: é o seu
proprietário (nada o impedia, de facto, de adquirir qualquer espécie de bens), e até a
lei o diz: «solare au ortum alicuius juniores». Do prédio senhorial, onde teria de residir,
ele não era senão um tenente – isto é, tenebat mas não habebat.

O primeiro parágrafo do cap. 9º permite, pois, ao júnior vender a nobre a


metade da sua «hereditas de foris». O segundo parágrafo do cap. 11º, por sua vez,
estabelece que o júnior possa abandonar a herdade senhorial, mas perderá então
«bonum suorum medietas» (metade dos seus bens próprios). Daqui concluiu Sánchez-
Albornoz que «aquela herdade e estes bens eram uma

__________
(1 ) Escusado lembrar os sentidos que a palavra «villa» pode ter,, desde unidade agro-
urbana (sentido demo-territorial agrário) a fração dessa mesma unidade – ou «villa in villa», como
constantemente se encontra nos documentos desta mesma época. Cfr. o nosso art. GE XXXV 337-347.
___42___

só e mesma coisa» (SA 60-61). Portanto: «hereditas de foris» (cap. 9º) = boni iunioris
(cap. 11º).
Aceitando-se uma tal identificação, teremos, por um lado, que o junior pode
vender metade da sua herdade própria a um nobre; mas, por outro lado, abandonando
a sua condição solarenga, perderá metade. Seria o mesmo que um júnior não poder
deixar de sê-lo se não tivesse bens próprios (hereditas de foris) ou se, possuindo-os,
já houvesse vendido metade a um nobre. Não será demasia considerar-se pelo menos
inadmissível uma tal situação legal.
Mas o cap. 11º, além de não respeitar à mesma circunstância do cap. 9º,
legisla o seguinte: todo o habitante de mandação que não se comporte como júnior ou
o não deseja ser, mesmo depois de jurado como tal, filho de júnior, e não queira, pois,
servir pela herdade senhorial e habitá-la, deixá-la-á integra e perderá metade dos seus
bens (exceto o cavalo e seu atondo) (1).
Mas que bens eram esses? Não se compreende que, sendo eles a «hereditas
de foris», como pretende o medievista espanhol, lhes não dê o cap. 11º tal
designação, mas a de «boni sui» (sc. Iunioris), quando antes daquela maneira o cap.
9º os designara. Melhor hipótese seria, então, que tais «boni» fossem não só a
«hereditas de foris), mas ainda outros, móveis e imóveis (pois que era mesmo esta a
significação de «boni» ou «bona»).
Quanto a nós, esses «boni iunioris» eram só os bens diretamente afetos à sua
condição de solarengo ou dela resultados – isto é, móveis (alfaias agrícolas e
domésticas, o cavalo, o seu atondo, etc.) e imóveis – sendo

__________
(1 ) «si aliquis habitans in mandatione asserverit se nec iuniore nec filium iunioris esse,
maiorinus regis ipsius mandationes per três bonos homines ex progénie inquetati habitantes in ipsa
mandatione, confirmet iureiurando eum iuniorem et iunioris filium esse, quod si iuratus fuerit moretur in
ipsa haereditate iunior et habeat illam serviendo pro ea. Si vero ea habitare noluerit, vadat liber ubi
voluerit cum cavallo eta tondo suo, dimissa integra haereditate et bonorum suorum medietate».
A «mandatio» é a circunscrição administrativa, também dita, como vimos no primeiro capítulo
deste estudo, commissum e, porque, outrora, sob administração de comites, também comitatum – na
correspondência do territorium civitatis visigótico.
___43___

estes a metade dos prédios (ou novas arroteias) organizados pelo júnior na
«hereditas» senhorial (1).
Nem o júnior seria tão insensato que, pelo simples amor à liberdade total, se
eximisse a uma sujeição, já de certo modo relativa e que lhe garantia sustento e teto, e
lhe dava ainda possibilidades de obter parte própria nas terras senhoriais e maninhas.
Com rendimento destas, poderia mesmo vir a comprar outras, como a referida
«hereditas de foris».
O cap. 11º, legislando a perda de metade desses bens por um júnior que
deixava de sê-lo, procura facilitar a instalação de outro solarengo no prédio por ele
abandonado – porque, ainda a não ser o júnior emigrado possuidor aí de prédios por
ele organizados, pelo menos sempre teria bens móveis –, e é metade destes que
estará ao dispor do novo júnior (com o solar e o horto), pois que, de qualquer modo,
nunca tais prédios, evidentemente, ficariam a ser propriedade deste (metade deles
conservada pelo antigo e a outra metade retida pelo senhor) (2).
O facto de se considerarem sempre «medietates» prediais nos dois cap. 9º e
11º parece não ter sido de todo estranho à identificação que Sánchez-Albornoz fez da
«hereditas de foris», do júnior aos seus «boni»: daquela sua «hereditas», o júnior só
metada pode vender; quando se subtrai à condição solarenga, perderá desses «boni»
também metade. Dir-se-ia que o impedimento na venda de metade se destinaria pelo
menos não tanto a impedir aquela eximição como a garantir uma compensação
senhorial com a perda, em seu favor, de metade sofrida pelo júnior ao sair do prédio
sola-

__________
(1 ) O próprio Sánchez-Albornoz lembra que, «em virtude de uma tradição jurídica que
remonta à época romana e que pode comprovar-se na Espanha através de toda a Idade Média, e até nos
nossos dias, o plantador adquiria em certos casos a metade das terras plantadas por seu esforço» (SA
61).
(2 ) O emigrado poderá levar consigo (se o tiver, coisa a que não é obrigado) «cavallo et
atondo suo». O prof. P. Merêa afirma a equivalência, que diz por todos aceite, de atondo a préstamo:
Hist. e Dir., I, p. 240. De facto, parece-me ser tal o sentido nesta frase do séc. X: «tenuit illas («villas» in
atondo de illa domna maior» /DC 952). O caso de 1020 é que não pode ser isso: respeita, nitidamente, ao
cavalo (arreios, etc.).
___44___

rengo e da condição solarenga. E, em tal caso, a identificação vista por Sánchez-


Albornoz até pareceria ter toda a plausibilidade.
Vimos já, porém, que, por muito aliciante que possa ser tal hipótese ou
aparência, dificuldades não faltam – como nada impedir um júnior que já tencionasse
abandonar aquela condição de vender previamente a metade permitida pela lei. E
note-se que, provavelmente só lhe não era consentida a venda total, se o comprador
fosse um nobre (ou homem de beetria): a lei facultava a um júnior vender a outro
júnior, embora pareça que este deve então ser de mandação diferente, do que
trataremos adiante.
Os dois capítulos incidem, na verdade, em circunstâncias diferentes: no 9º,
retirada voluntária do júnior de uma mandação para outra, a fim de nesta comprar a
outro júnior: «emerit haereditatem alterius iunioris»; ao passo que no 11º somente o
caso de uma eximição voluntária à condição solarenga.
Naturalmente que o júnior que deseje aproveitar-se da faculdade do cap. 11º
se encontrará nas condições objetivas de poder beneficiar da do cap. 9º - poder
retirar-se para outra mandação: e, aqui, comprada «hereditas» de outro júnior, ou
continuará solarengo, colono, habitando, pois, nela, ou retirar-se-á para lugar não
senhorial – para uma «villa» ingénua –, pagando a sua inteira liberdade com a perda
da metade da herdade, incluindo o solar e seu horto (claramente, para que outro júnior
viesse a ser aí instalado): «habeat medietatem praefatae haereditatis excepto solare
et horto».
Poderá mesmo ele estar ou colocar-se nas condições previstas no cap. 10º:
casar em herdade ingénua, a qual pode ser em qualquer mandação, – com o que
possuirá íntegra a herdade da esposa: «si vero in haereditate ingenua nuptias fecerit,
habeat haereditatem mulieris integram».
Mas ele já não tem uma tal amplitude de propriedade no caso do cap. 9º,
pesado como será o peso da sua total ingenuação: «mutet se in villa ingenua husque
in tertiam mandationem». E assim nos surge aqui uma nova aplicação da palavra
»tertia» que deu tanto que pensar quanto a outra, a IIIª villa. Já contra a ordinalidade
de Sánchez-Albornoz concluímos a função adjetival do
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numeral e seu sentido fracionário: e será o mesmo em IIIª mandatio?


Bastaria a coerência para respondermos afirmativamente, tal como foi muito a
coerência que levou aquele medievista a entender ainda aqui tal número ordinalmente.
De facto, para IIIª villa o fizera – embora investigasse o sentido para o caso da «villa»
pelo sentido no caso da «mandatio». Mas mais em aparência que na realidade ( 1):
quando abordou o desta, tinha já construída a ideia acerca do daquela. Não
forçaremos a concordância.
O grande medievista concluiu, pelas razões e certos casos objetivos que
adiante examinaremos, concluiu, de facto, que a IIIª era apenas um número ordinal e
a IIIª villa a terceira «villa» com que o nobre ou o homem de beetria tropeçava em seu
caminho ao sair daquela onde havia adquirido uma meia herdade (foras villa vadat) (2);
como IIIª mandatio era a terceira mandação que o júnior encontrava na sua marcha
(inquiret) ou ao mudar-se (mutet se) a uma villa ingénua» (SA 87).
Sánchez-Albornoz serviu-se do texto bracarense do cap. 9º que impõe ao
comprador «non faciat intus villa (a da compra) populatura… sed cum illa media
hereditate vadat de villa quis comparaverit et non faciat populationem usque in IIIª
villa» (LF 1) – texto que, na redação definitiva, que temos seguido, corresponde
unicamente a «in ipsam medietatem quam emerit non faciat populationem husque in
tertiam villa». Foi, pois, aquele «vadat de villa», ligado ao imediatamente anterior
«foras villa vadat» que levou o medievista à opinião acima transcrita – depois de ter
entendido que a primitiva redação (de 1017, a bracarense) das leis de Leão de 1020
«aclara de modo notável esta» (SA 49). Seria antes caso para entender que

__________
(1 ) «Sobre os resultados conseguidos na exegese deste segundo parágrafo do capítulo que
nos ocupa (o 9º), podemos empreender com esperança de êxito a interpretação da primeira parte do
mesmo»: (SA 58).
(2 ) Note-se a repetição da expressão do vadat: «sed foras villa vadat» e «sed vadat de
villa». Sem dúvida que uma tão imediata repetição, num texto, para mais, tão conciso, não pode deixar de
ter obedecido, ou, melhor, ter-se devido a uma diferença de ideia.
___46___

é a redação posterior, definitiva, que aclara a anterior, a provisória; mas isto, pelo
menos para já, é o menos – até porque faremos adiante a comparação dos dois
textos.
Notemos primeiramente os contextos em que se inserem os dois «vadat»
impostos pela lei ao comprador nobre (ou homem de beetria), na redação provisória
(1017): «non faciat intus villa populatura nec non teneat ibidem solarem nec ortum sed
foras villa vadat; sed cum illa media hereditate vadat de villa quis comparaverit et non
faciat populationem usque in IIIª villa».
Pode, pois, fazer-se esta interpretação: o comprador nobre não deve morar na
«villa» (onde comprou, ou mesmo, como vimos e veremos, a própria herdade que
comprou – no sentido do primeiro «vadat de villa» ou «foras villa vadat»), e não pode
povoá-la senão, no máximo, um terço (entende-se com solar e horto, para instalação
de um solarengo ou colono seu, em suma, de um júnior) – porque a proibição de ele,
nobre, residir em prédio que júnior lhe vendera nada prejudica o seu senhorio («sed
cum illa media hereditate vadat de villa». Numa redação provisória (senão um simples
apontamento, mais ou menos apressado, pelo delegado bracarense ao concílio),
aquele «non teneat ibidem solarem nec ortum» significa apenas a proibição de
residência sua, mas não de haver aí solar e horto – para um colono. O contrário seria
incrível – a ermação obrigatória do prédio, tanto mais absurda quanto mais
seguíssemos a interpretação de Sánchez-Albornoz, isto é, ser a «IIIª villa», em que
ele, nobre, pode residir, a terceira a contar da «vila» da herdade adquirida. De facto,
fizesse ele próprio nesta o cultivo ou alguém por ele, quantos incómodos e
impedimentos, quantas depredações se não verificariam nos trabalhos e nos frutos,
feitos e colhidos de longe? A distância da residência ao prédio podia ser, de facto,
grande, porque havia «villas» extensas, separadas mesmo por grandes obstáculos
naturais – para não argumentarmos com outras contrariedades.
Antes de prosseguir na interpretação do cap. 9º (agora com o confronto dos
dois textos), convém examinar os exemplos que Sánchez-Albornoz julgou ter achado
tanto para «IIIª villa» como para a «IIIº mandatio» como confirmações da sua
interpretação.
___47___

Para chegar à sua conclusão serviu-se do segundo parágrafo do cap. 9º, que é
relativo ao júnior que mudava de mandação, para domiciliar-se em «villa ingenua» e
não na herdade que ele mesmo nessa mandação adquirira: «mutet se in villam
ingenuam husque in tertiam mandationem et habeat medietatem praefatae hereditatis
excepto solar et horto» (1020); ou «inquiret villa ingenua ubi habibet et serviat ei ipsa
media villa usque in IIIª villa» (1017).
Eis os exemplos concretos apresentados pelo medievista. Designemos por
letras, A, B, C, os lugares:
- Documentam-se um lugar A e dois lugares vizinhos, B e C, nos quais o
homem de A deslocado pode residir sem nada em A perder. Para Sánchez-Albornoz,
são B e C as IIIªs villas relativas a A (1), aquelas «com que tropeçava o homem» de A
«ao sair da sua aldeia» (2). Mas porque só essas?
De facto, nem mesmo seria de crer que B e C fossem IIªs villas únicas de A,
porque, neste caso, A estaria encravada entre duas só, situação possível mas tão rara
que nem nos ocorre exemplo achado de situação semelhante. Um esquema desta
hipótese (abstraindo da regularidade geométrica para a realidade concreta) será
elucidativo: as IIIªs villas não podiam ser duas só – a não ser que considerássemos
um conjunto de pelo menos três envolvidos por só duas de inadmissíveis grandes
dimen-

__________
(1 ) Fenar, com foros de 1042, os quais, sendo posteriores às leis de Leão, não podiam
infringi-las. No entanto, é o próprio medievista que mostra a discrepância com os foros locais. As leis
permitem ao júnior sair em inteira liberdade com a perda de metade dos seus «boni» (que até Sánchez-
Albornoz diz serem a «hereditas de foris», como vimos), deixada íntegra a herdade senhorial. No entanto,
ao de Fenar «podia tomar-se-lhe todo o haver se era apanhado a sair da vila». O medievista considera
isto simples matrizes, como se pouco diferissem perder metade e perder tudo. Mais ainda: o homem de
Fenar que passasse para B ou C, indicadas, nada perderia – o que é contrário às leis leonesas. Será
também um matriz – mas o que se deve crer é antes um localismo, tão próprio da Idade Média. Sánchez-
Albornoz, pois, à custa de matrizes, não vendo oposições às leis, como as interpreta, entende que B e C
são as IIIªs villas de Fenar, o que no texto discutimos.
(2 ) As villas B e C «são dois territórios muito próximos ao vale de Fenar (lugar A), sem fazer
parte dele nem precisamente poderem considerar-se colidantes» (SA 54-55). Esta ideia de não
confinantes (para poderem ser IIIªs, é muito vaga.
___48___

Sões (Fig. 2). A lei de 1020 não dá, nem podia dar, a indicação de número limite
máximo de IIIªs villas (naturalmente, sempre, muito mais que duas). Como é que os
foros de um lugar, por natureza mesmo favorecedores destes, reduziram a duas o seu
número?
- Apresenta-se Samora como IIIª mandatio (ou IIIº mandamento) de um
lugar A situado «a um quarto de légua» daquela cidade (SA 55). Não é possível
admitir Samora em relação a A ( 1) sequer como um IIº mandamento. Nem para uma
IIIa villa poderia citar-se tão reduzida distância – piormente, pois, uma IIIª manda

tio. Seria preciso que Samora, então (e de muito antes) uma cidade notável, tivesse
um território próprio pequeníssimo, ou, não o sendo, que estivesse situada no último
extremo desse território) a das bandas de A (e, mesmo assim, para se considerar
apenas como uma IIª mandatio). E como é que aos homens de A os respetivos foros
atribuíam somente Samora (uma cidade) como sua única IIIª mandatio?

__________
(1 ) Trata-se de Santa Cristina, com foros de 1062: SA 54-55. Sánchez-Albornoz afirma uma
coincidência entre os foros deste lugar e os de Fenar (nota anterior) que «não pode ser casual». Mesmo
que o não fosse, isso não habilitaria a ver na identidade as leis de 1020, no sentido de esclarecedoras
(por aplicação) de IIIª villa e de IIIº mandatio.
___49___

A leitura despreconcebida do cap. 9º redigido definitivamente em 1020 mostra


que a IIIª villa nunca podia ser uma villa diferente daquela onde o solarengo tinha a
sua herdade própria, exterior à herdade senhorial («hereditas de foris).
Mas Sánchez-Albornoz, conhecido o texto de 1017 (de fonte única, a
bracarense – o que agrava o seu caráter provisório), optou por que «nobres, homens
de beetia ou iuniores não pudessem povoar na metade comprada a um iunior e
tivessem de ir à terceira villa ou à terceira mandação», contada a partir da villa do
prédio (SA 51).
Não se diz que interesse poderia ter a lei em atirar para tão longe os novos
proprietários: favorecer o cultivo e as colheitas não podia ser. E não olhemos já à
alternativa que o medievista exprime com tanta indiferença como se tratasse do
mesmo – IIIª villa ou IIIª mandatio, o que há de mais diferente, em tamanho, e em
funções geo-humanas, pelo menos. Mas isto não nos importe para já demasiado, e
passemos antes a um confronto das duas redações.

Capº 9º (§ 1)

1017 1020

1. «Homines qui fuerint de 1. «nullus nobilis sive aliquis de


benefactoria» belefactoria».
2. «comparaverint hereditatem 2. «(nullus) emat solare aut
de homine de mandatione». ortum alicuius iunioris».
3. «non faciat intus villam 3. «in ipasam medietatem quam
populatura nec non teneat ibi solarem emerit non faciat populationem».
nec ortum sed foras villa vadat».
4. «ser cum illa media hereditate 4. «solummodo (emat) mediam
vadat de villa quos comparaverit et non hereditatis de foris et non faciat
faciat populationem usque in IIIº villa». populationem husque in tertiam villam».
___50___

1. Nota-se uma notável diferença: em 1017, apenas se legisla para as


compras feitas por «homens de beetria»; mas em 1020, como definitivo, é apenas
mais completo (1).
2. Em 1017, a venda refere-se a «homem de mandação» e em 1020,
substitui-se por «júnior». Parece ser, no texto definitivo, uma restrição, pois que nem
todos os homens de mandação eram juniores. Tratando-se de qualquer proprietário
não nobre ou de beetria, isso impediria o direito de dispor do seu prédio aos
possessores inteiramente livres. Chamar-se-lhes «de mandamento» (ou «de
mandação») significa, precisamente, a sua sujeição fiscal e judicial, etc., aos
mandantes das circunscrições por não gozarem dos privilégios da nobreza (e dos
«homines de benefactoria» que podiam escolher senhor). A restrição de 1020 aos
juniores equivalia, claramente (sem dúvida, seria o mesmo a finalidade), a limitar,
sustentar, a extensão das terras de privilegiados, isto é, as inerentes perdas fiscais.
3. Todos os problemas que de seguida surgem ao intérprete foram já
examinados; mas convém rever.
O primeiro está no sentido a dar a «villa»: ou o prédio cuja meia o nobre
comprou, ou a área ou unidade demo-agrária em que esse prédio se integra. A
proibição de residência parece referir-se a «villa» nesta segunda aceção; mas as
dúvidas e as contrariedades não surgem também de somenos:
- Uma limitação inadmissível à liberdade de residência de um privilegiado como
era o nobre (não se tratando ao menos, por condição, de uma «villa» municipalizada);

__________
(1 ) Até Sánchez-Albornoz entendeu que a falta de menção dos nobiles em 1017 se deveu a
esquecimento: só em 1030 «se caiu em conta de que também os nobres podiam comprar as herdades
dos iuniores e que importava mencioná-los expressamente» (SA 49). É uma opinião muito pouco
atendível. O que houve foram alterações e esclarecimentos. Esquecimento (bem podia ser), só do
apressado escriba de Braga, não dos legisladores, que, quando não fossem nobres, tinham nobres na
assembleia que os fariam recordar-se, lembrá-los, tao fundo a nobreza se prejudicaria.
___51___

- A redação de 1020 reportar a proibição, não à «villa» (segunda aceção), mas


à metade do prédio comprada;
- Cair logo a própria redação de 1017 na mesma aceção: «vadat de villa quos
1
( ) comparaverit».
Com estas razões, a juntar ao mais que anteriormente pudemos opor, não
parece de admitir a identidade de sentido que Sánchez-Albornoz estabelece entro o
«foras villa vadat» ou «vadat de villa» (1017) e o «non faciat populationem usque in
tertiam villam» (1020) – e, portanto, o sentido ordinal de «IIIª villa» ( 2). Não repetiremos
– e também o escusaríamos, pois que ainda há pouco o fizemos: a proibição, na meia
herdade comprada ao júnior, não impede que o comprador resida fora (logo na «villa»,
segunda aceção) e, sobretudo, que é o que interessa, que ele instala na metade
comprada um colono, um outro júnior, um solarengo, sob uma limitação: não poder
ocupar com o novo solar e horto mais que a terça da metade comprada (se não a
terça do prédio total).
Escusar-se-ia de mais; mas é sempre de lembrar que, afinal, a proibição de
residência, mesmo que respeitasse à «villa» (segunda aceção), não se referia ao
nobre, mas a pessoa muito diferente – um «homem de beetria»: para este, de facto, se
legislara «fora villa vadat» ou «vadat de villa». Não para um nobre. Na redação de
1020 é que se incluiu o nobre e a questão da residência tem nela a bem diferente
expressão de «in ipsam medietatem quam emerit».
4. Quanto à interpretação de «tertia villa» comum aos dois textos, ela foi já
realizada, e repetida sem que possa dizer-se demasiadamente. Lembremos apenas
que, uma vez mais, a redação de 1020 modifica o que pareceria resultar da de 1017:
elimina o «vadat de villa» ou «foras villa vadat» desta. Não se deverá procurar na
redac-

__________
(1 ) Sánchez-Albornoz leu «quis», mas é «quos» o que se encontra na fonte (LF 1), e não
tem qualquer valor adverbial de lugar (ubi). Mesmo que o tivesse, a nossa interpretação não ficava
prejudicada.
(2 ) Injustificado, pois, o triunfalismo do grande medievista sobre Mayer, falando de
«nuestros hallasgos en Braga» e aconselhando a que «saboreen los lectores el passaje» (SA 38 e 49).
___52___

ção de 1020 um equivalente na expressão «hereditas de foris», porque se trata de


coisa diferente: o prédio é o próprio do júnior, mas o «foris» refere-se ao seu «solare
aut ortum» (1).

O segundo parágrafo do cap. 9º estabelece que o júnior que mude de


mandação e compre aí herdade de outro júnior possui-la-á íntegra, se nela morar; se o
não fizer, tem a liberdade de se domiciliar em «villa» ingénua «husque in tertiam
mandationem», mas perderá a metade do prédio comprado, incluído o solar e o horto.
Já o tínhamos visto, mas convém repeti-lo, em razão do problema de interpretação de
«IIIª mandatio» – cuja discussão torna conveniente confrontar aqui também os dois
textos:

Capº 9º (§ 2)

1017 1020

1. «si voluerit servire pro ea 1. «si habitaverit in eam


possideat illa» possideat eam integram».
2. «sine aliud inquiret villa 2. «si noluerit in ea habitare
ingenua ubi habitet». mutet se in villam ingenuam husque in
3. «et serviat ei ipsa media villa tertiam mandationem».
usque in IIIª villa». 3. «et habeat medietatem
praefatae hereditatis excepto solare et
horto».

1. Neste ponto, atribui-se ao júnior comprador a integridade do prédio


comprado, mas com uma divergência na condição: em 1017, «servir», por ele, isto é,

__________
(1 ) Já o mostrámos na primeira nota deste capítulo – e é expressão muito vulgar: 1059, «de
tota alia villa de fora IIªs partes», DC 420¸1057, «illud casale et illas lareas de fora» LF 187; etc. «Fora da
villa», «fora do casal»: portanto, «fora do solar e do horto» respetivo.
___53___

cumprir todas as obrigações solarengas, desde as foragens aos serviços pessoais:


«habitá-lo», em 1030 – uma condição mais lata que aquela, pois que a compreende.
Ainda aqui, e ao contrário do que entende o medievista espanhol, não parece
que a redação de 1017 está a esclarecer a de 1020. Nem esta esclarece aquela: a de
1017, por provas que se acumulam, foi um apontamento apressado do delegado
bracarense à cúria, organizado durante as sessões e com que ele se afastou.
O terceiro daqueles pontos é que bem melhor esclarece realmente o primeiro
de qualquer delas: se o júnior não quer habitar o prédio (1020, porque, em 1017, mais
uma vez se fala em «servir»), poderá abandoná-lo, mas perderá meia, incluído solar e
horto. Já temos referido o facto suficientemente.
2. Este segundo ponto permite ao júnior domiciliar-se em «villa» ingénua
se não quiser habitar; mas, enquanto em 1017 se não impõe condição alguma, já em
1020 se estabelece que a «mutatio» se fará «usque in tertiam mandationem».
Também já demasiado nos referimos a esta mandação – a terceira, segundo
Sánchez-Albornoz, a contar da de procedência do júnior. Para verificar se o é ou não,
fazemos estas considerações.
Na redação de 1017, também se fala numa «tertia», mas não se refere a
mandação.
3. De facto, aí se trata de «IIIª villa»: perdida metade do prédio comprado,
o comprador servirá pela outra metade «usque in IIIª villa». É a condição em 1017,
enquanto a tal respeito nada as leis de 1020 impôem – fazendo-o, porém, para a
«mandatio». A discrepância é fortemente contrastante: e qual das duas condições
teremos de preferir: «servir até à terceira (admitamos) villa» ou «habitar (melhor,
«mudar») até à terceira (admitamos ainda) mandação»?
Notemos, primeiramente, que no texto de 1017 se designa «villa» o prédio
comprado («serviat ei ipsa media villa»), ao qual em 1020 se chama «hereditas». Mas,
na expressão imediata «IIIª villa», já o sentido tem de ser o de conjunto unitário de
prédios, de diversos possessores, a «villa» demo-agrária muitifamilial – enfim, aquilo
mesmo que se entende na «villa ingenua» imediatamente
___54___

antes aludida. Isto é, esta «IIIº villa» é a própria «villa ingenua».


Neste caso só um sentido é atendível (pois não se pode tratar, repetimos, de
ordinal, mas de fração): o «servidor» proprietário não seria admitido nessa «villa»
(ingenua) se uma terça parte dela já estivesse preenchida por pessoas nas suas
condições, ou, como hoje diríamos, se não houvesse vaga (devendo então o
interessado procura-la noutra). Significa isto que as receções deste género são
limitadas aí à terça parte – a fração disponível para tais efeitos. O que se pretende
com a limitação é óbvio: reduzir o mais possível o número de solarengos que
pretendam eximir-se da sua condição, protegendo, assim, da maneira mais
equilibrada, os interesses dos proprietários nobres, sem coartar demasiado os
movimentos de emancipação dos júniors.
Ora, em 1020, a limitação respeita, não à «villa» ingénua, mas à mandação
deste ou a partir da qual essa «villa» pode ser procurada pelo júnior emigrado, que
deixara de o ser: «usque in tertiam mandationem».
Já classificámos de pouco menos que chocante, pela indiferença com que a
encara Sánchez-Albornoz, a discrepância dos textos quanto ao movimento do júnior
eximido: 1017, «IIIª villa»; 1020, «IIIª mandatio». Contrastante a ponto de nem chegar
a admitir-se uma desatenção do delegado bracarense, que tomasse uma coisa pela
outra – tão diversas coisas são villae e mandationes: aquelas, unidades demo-agrárias
(ou frações ou hereditates delas); estas, as circunscrições administrativas (que
englobam várias «villas», naturalmente).
É, pois, forçoso concluir ser o mesmo sentido – ou, melhor, o mesmo o
resultado quanto à «mutatio» do emigrado. De modo que, na possibilidade de
estabelecer tal indiferença, temos como que uma prova da nossa interpretação
(fracionária). De facto limitar, para efeitos de tal residência, um terço de cada «villa»
ingénua, equivale a limitar, para o mesmo fim, um terço da própria mandação (na sua
extensão ingenuada).
A ordinalidade de «IIIª mandatio», portanto, não parece admissível – e nem
sequer prática ou objetivamente aceitável. Bastará pensar que tais circunscrições,
além de poderem subdividirem-se (ou até reunir-se), o que alteraria os efeitos da lei,
se esta tivesse tal sentido, eram
___55___

de extensões muito desiguais (geralmente as maiores sendo até as menos


desenvolvidas e, por isso as menos populosas), o que estabeleceria as maiores
arbitrariedades, ou pelo menos grandíssimas desigualdades. Um simples esquema
basta para disso nos apercebermos: no caso de três grandes circunscrições, de
tamanhos diferentes, a disparidade entre os casos de mutationes permitidas de A para
B e de A’ para B’. A diferença desses casos em relação aos igualmente legais de a
para b e de a’

para b’ em três pequenas mandationes torna-se chocante: o máximo neste caso (de a
para b) é inferior ao mínimo no outro (de A’ para B’). Considerar casos não extremos,
em nada altera as circunstâncias contra a tese da ordinalidade (Fig. 3).
Não parece, pois, possuir a objetividade bastante a explicação que Sánchez-
Albornoz nos dá da limitação do deslocamento do antigo júnior «usque in tertiam
mandationem»: a lei permitia-lhe não morar longe do seu prédio, precisamente para
que ele tivesse possibilidade de cultiva-lo e de fazer as colheitas (SA 52-53). Mas em
que é que se vê, em tal tese, que ele ficasse perto? O mais

___56___

natural era mesmo ficar sempre muito longe, um longe que até poderia ainda
aumentar no caso de não haver «villa» ingénua com que ele tropeçasse (para
ussamos da expressão do ilustre medievista) logo à entrada da «IIIª mandatio». E
onde se viu que uma lei se preocupasse com uma conveniência particular? De resto,
nem ela precisaria de o fazer, porque isso mesmo já estava na própria conveniência
do emigrado: domiciliar-se o mais perto possível do prédio adquirido e que, à custa da
perda de metade (com solar e com horto), lhe proporcionara a liberdade total.
A lei, portanto, não impõe distâncias: o que impõe é limites ao número de
solarengos eximidos a estabelecerem-se em cada «villa» ingénua. O próprio Sánchez-
Albornoz nota que «nas fontes mais tardias não se fixa a distância a que devia
estabelecer-se o solarengo que abandonava a villa se desejava conservar as suas
herdades» (SA 56). Mas isto mesmo só deveria servir para abandonar a tese da
ordinalidade, e tal circunstância vem apoiar a nossa – o sentido fracionário. Quanto
aos exemplos (não tardios) que o grande medievista dá, já sabemos o que valem para
o caso.
A fracionalidade de IIIª villa (ou a de IIIª mandatio), mesmo sem se atender à
argumentação que opusemos à tese de Sánchez-Albornoz, poderá, em nosso
entender, entrever-se ainda em casos como os seguintes:
- Em 1258, cita-se em Santiago de Besteiros (Tondela) a existência de
«hereditas forarias regis de cabalaria que fuit de junioribus» (1). Portanto, em época
indeterminada, mas que não deveria ser ainda então muito remota, havia-se
estabelecido aqui, pelo menos, uma família de juniores; e, ou já eles, ou os seus
descendentes mais ou menos próximos (mas de preferência essa mesma família,
tanto pela designação que ficou, «cavalaria dos juniores», como pela proteção que as
leis de 1020 davam ao júnior que tivesse cavalo, a primeira condição da condição de
cavalaria vilã) (2), eram possuidores de bens próprios suficientes para se
«defenderem» por cavalos,

__________
(1 ) Inq. 8271.
(2 ) «Si vero in ea habitare noluerit vaddat ilber ubi voluerit cum cavallo et atondo suo»:
Conc. Leg., art. 11º.
___57___

isto é, ascenderem à categoria de cavaleiros vilãos. A designação do prédio não se


deve, evidentemente, à condição de juniores, que os proprietários já não tinham, mas
à sua anterior, isto é, antes de emigrados do solar dominal: portanto, à sua
procedência ou origem social. Do lugar ou prédio de que provinham, é que nada nos
podia constar; mas também não há a mínima nota de limitação do seu deslocamento –
o qual, de resto, é circunstância que aqui não interessa, pois que o(s) emigrado(s)
deve(m) ter-se sujeitado às perdas dos «boni» legalmente estabelecidas.
Não pode pensar-se que aquele prédio tivera sido habitado e cultivado por
juniores e que, tendo eles dele emigrado, viessem a estabelecer-se aí, depois,
cavaleiros-vilãos. Não se compreenderia então que a designação do prédio se ficasse
fazendo pelos juniores emigrados, em vez de pelos cavaleiros, cuja categoria era bem
mais elevada: a circunstância, que tanto impressionara, até provocar tal designação,
deve ser que os próprios juniores se tornaram cavaleiros – e podemos, pois, admitir
que a extensão da sua cavalaria correspondia, no máximo, à IIIº villa, que era a de
Temonde, uma «villa ingénua» neste caso (1).
A atual freguesia de Borba da Montanha apresenta uma sucessão de
designações expressiva: desde simplesmente, como se esperaria, Borba (2), a Borba
de Juniores (inquirições de 1220), e de novo Borba (nas de 1258), até à atual, com
que se distingue (como outrora pelo determinativo «de Juniores») da vizinha Borba de
Godim (de início, também só Borba).
Ora quem examinar o estado da propriedade no séc. XIII (pelas ditas
inquirições) nas duas Borbas, notará diferenças fundamentais: a que aqui mais
importa é ser nobre na de Godim a propriedade, ou não, portanto, ingénua ( 3); e, na de
Juniores, ser vilã, ou de herdadores ingénuos (com reguengos avulsos, mas estes não
constituindo casais). Ainda dentro desta, deve distin-

__________
(1 ) Inp. 8262. Realmente, Temonde foi uma «villa» Teodemundi.
(2 ) No séc. XI: «dividit cum Borba», D P 51 publicado com data errada).
3
() Inq. 631-632.
___58___

guir-se, entre os diversos núclos, o de Borba propriamente – oito casais de variados e


idênticos encargos, entre os quais o da fossadeira e o serviço nos castelos («vadunt
ad chamatum castelli»), serviço este que só existe neste núcleo.
Natural, pois, ver-se em tal circunstância uma razão especial que deverá
relacionar-se com a outra, ou seja, com o determinativo de «Juniores» (até porque
este nem perseverou): sem se tratar de cavaleiros-vilãos, pois que nos pesados
encargos dos seus casais não se nota qualquer traço da «honor» vilã, talvez se
esclareça o chamado ao serviço castelático pela posse de cavalo, ao menos por
alguns dos juniores de origem, para aqui emigrados. E o local de Borba pode muito
bem ter sido, no máximo, uma IIIª de «villa ingenua» – terça de uma das várias
«villas» de outrora, as quais, a toponímia ainda aqui recorda (2).

Mas como entender objetivamente a «terça» de uma «villa», sobre a «terça» de


uma «mandatio»?
Frações de «villas» é o que mais correntemente se encontra em documentos
medievais, e não se pode pôr por isso o problema ou dúvida na sua praticabilidade,
sobretudo porque as extensões não eram nunca tais que a impedissem. Quanto ao
caso nas «mandationes», estando ele explicado nas «villas», fica-lo-ia nelas, como
aliás já o deixámos.

__________
(1 ) Inq. 641-645.
(2 ) Tresufe, Froião, Gontim, etc. : «villa» Trasulfi, «villa» Frogilani, «villa» Guntini. Borva, de
facto, apenas seria um locus de uma delas (vindo nele a ser ereta a igreja, o que estendeu à freguesia o
seu nome). Neste locus, pois, deveriam ter vindo estabelecer-se juniores emigrados e que, por tal,
deixavam de ser juniores: mas isso fora bastante impressivo para aí ficar a designação «de Juniores». E
notar-se-á que esta ou, portanto, tal estabelecimento, deve situar-se no séc. XII, dado que antes não se
encontra um tal designativo; e este foi efémero, pois que só do séc. XII para o XIII ocorre. O tempo e
estas e outras circunstâncias permitem-nos aventar a hipótese de tratar-se de solarengos da alta «stirpe»
sousã. No séc. XI, nomeadamente, o «conde» Gomes Eicaz (chefe daquela «stirpe») era dono de Vila
Boa(D P 50), que corresponde à atual freguesia de Rego, limítrofe de Borba da Montanha (Celorico de
Basto).
___59___

No entanto, pode mesmo pensar-se num terço da própria mandação – ou seja,


o número de receções de antigos solarengos em «villas» ingénuas nessa mandatio
nunca preencher além do equivalente a um terço em disponibilidade. Não faltam casos
documentados – de que daremos dois exemplos, um para villa e outro para mandatio.
Assim, nas inquirições de 1258, encontra-se que «o meyo de Panoyas devia
seer del rey» (1). Não se trata de um lugar, mas de uma extensa «terra» (antiga
mandação, que tem documentação já na época suévico-visigótica, L F 10),
correspondente a nada menos do que quatro extensos concelhos de hoje. E o que
seria, pois, a metade reguenga de Panóias? A documentação mostra aí «villas» e
lugares uns totalmente reguengos, alguns até encartadas pelos reis ou pelos ricos-
homens seus delegados administradores das «terras» ( 2), e outros totalmente de
nobres e ordens (honras e coutos). Se, portanto, em cada «villa» não era reguenga
metade para que reguenga ficasse metade de Panóias, temos de supor que essa
metade respeitava a rendimentos: isto é, metade do rendimento da circunscrição
pertencia à coroa – um rendimento real, apetece dizer, «usque in IIª mandatione». Não
se trata de residência, a a compreensão é análoga.
Também nas inquirições de 1258 pode encontrar-se para a «vila» de Meadela,
sem preâmbulo algum significativo de fração: «el rey pode ir à meyadade de toda a
vila, preter Fornelos, cum condados, se quiser, et meter todas estas erdades
davanditas a partiçom», para isso (1). Portanto, meia da «villa», exceto um lugar (hoje
povoado da respetiva freguesia); e constituem essa meia, dispersamente, terrenos de
«condado» (palavra cuja significação estudaremos noutro capítulo), além de um certo
número de prédios foreiros, tão dispersos como

__________
(1 ) Inq. 12381, 12391, 12502, etc.; «e ora non a há toda per que a t~ee [o sinal gráfico ~
sobre o primeiro e] cavaleiros e orde~s» [o sinal gráfico ~ sobre o segundo e]: Inq. 12461, 12532, etc.
(2 ) Leg. e Inq., passim.
3
() Inq. 3321.
___60___

esses mesmos terrenos. Não há uma divisão da «villa» em duas partes, naturalmente
iguais nem em cada uma das hereditates se opera tal divisão: a partição é de
rendimentos; é natural que esse direito régio, se não se baseava numa lei geral,
assentasse num localismo – o que, de resto, aqui não importa. Nesse sentido
poderíamos dizer que «ir (o rei) até metade de toda a villa» é bem um «vadat usque in
IIam villam).
Limitar, pois, o estabelecimento de antigos juniores à «IIIª mandatio» no
sentido que à expressão damos, era mesmo um meio legal de, ao mesmo tempo que
se facultava a eximição à condição solarenga (as classes populares progrediam
também fora das situações municipais, embora menos rápida e isentamente), se
impedir um número exagerado de casos desses (porque, se perder meia herdade
comprada seria um preço grande, o amor à liberdade maior seria ainda), número esse
que poderia arruinar o regime senhorial. E teremos de admitir para a lei um êxito
relativo neste sentido, pois que, pelo menos entre nós, tal regime atingiu depois o
auge, na feição não feudal que se lhe reconhece.
Se bem que tencionamos incluir num dos capítulos deste estudo algo do
assunto, é de salientar, desde já, a coincidência cronológica de dois processos
antagónicos: o crescimento das liberdades ou emancipação das classes populares
medievais e o do número de imunidades ou do privilégio das classes aristocráticas.
Dir-se-ia competência entre umas e outras – e deveria, com efeito, sê-lo.
Não só pela importância que em si mesmo tem o assunto, demos a este
capítulo a atenção e o desenvolvimento que nos foram possíveis dentro das várias
limitações, próprias e alheias, que nos inibem. Assim pudéssemos dizer que sempre
iluminadamente considerámos as coisas; mas o assunto vai ter uma aplicação não
despicienda no capítulo dedicado à nobilitação – nomeadamente o respeitante a terras
dominicatas, que possam proceder de uma relação senior-iunior.
___61___

Exemplificação no território «vimaranense» :

Em 956, Astrulfo e sua mulher Teodilde ( 1) comprometem-se com um


presbítero e certa senhora - «vobis Zamario presbiter et Farega» (Fareja» – a habitar
«in vestra casa et apud vos et in vestra villa», e a fazerem-lhes aí «servitio sicut facent
homines bonos»; e, no caso de cometerem fraude na casa daqueles senhores, e
deixá-la sem autorização destes («si in alia parte transire voluerimus sine vestro
mando»), ficarem por seus servos e da igreja local ( 2): além de pagarem de imediato
elevada multa («X. boves extra alia dilatatione»), «redeamus vestros servos» (DC 70).
Apesar de uma tal referência à servitude, não nos parece que se trate deum
pacto de adscrição: um tal estado em nada devia convir a quem, como estes esposos
(abaixo o vamos ver), era proprietário e pactua com inteira liberdade; e, além disso, a
própria servidão é lembrada, ou comprometida, para a consequeência do desrespeito
do compromisso. Este parece antes um pacto de solarengo, com finalidades que
adiante procuraremos apenas presumir. Ou, por outras palavras, parece tratar-se de
uma passagem voluntária à condição de juniors (iuniores de hereditate), e não de
simples maladia.
De facto, o género da multa e o nenhum prazo para o pagamento da dita logo
mostrariam tratar-se de proprietários; e tornaram-se eles «serviçários» por sua
vontade, sob pena de caírem na servidão, prova que eles são também livres. Nesta
época, ainda as condições de parte da população livre e opressora não eram
suficientemente seguras – e a proteção é por elas procurada de muitas

_________
(1 ) Por sobrenome Nomina, como aparece no documento de 960 que abaixo se refere:
«Teodilli cognomento Nomina» (DC 78).
(2 ) É a de S. Martinho de Rio Mau, topónimo cedo desaparecido e substituído por Fareja, o
atual, que provém daquela mesma senhora, o que já sucedia em 1059 (de muito antes, por certo): «villa
ibi que fuit de domna Farega» (DC 420). Essa «villa» era o local da igreja de S. Martinho, e, como esta
ficou a ser designada «de Fareja», daí a designação para toda a freguesia, quando a igreja se tornou
paroquial.
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maneiras. No caso presente, não se fala de proteção, mas esta implicita-se; além
disso, estes solarengos voluntários, apesar de se mostrarem proprietários noutro
documento (como já daquele aliás se deduzia), outros interesses poderiam ter que os
levavam àquela resolução, como, além do que adiante presumiremos, o de disporem
de casa e de maior extensão de terras – se bem que dominiais estas. Na verdade,
eles não vão «servir» pela casa apenas, mas, expressamente, pela «villa». Os
mesmos Astrulfo e Teudilde vendem, em 960, aos próprios presbíteros e dona,
(«Farega deovota»), os seus haveres em quatro lugares vizinhos, (o que não quer
dizer que esses bens fossem muito avultados): «vendimus nostra hereditate própria»,
quer herdada, quer comprada (DC 78).
Podem considerar-se – repetimos – juniores não de qualidade mas voluntários,
por se terem assolarengado naquelas condições? Sobretudo, depois que venderam
aos senhores os seus bens próprios, ficando assim mais dependentes deles do que o
júnior que era também proprietário. Tal seria, pois, um dos modos por que um júnior
poderia possuir propriedades, embora este não fosse o modo mais comum. Outro
eram novas arroteias, por sua própria indústria, na «villa» dominial.
É natural, de facto, que Astrulfo e Teudilde tivessem isso mesmo em vista
quando resolveram alienar aos senhores os prédios que, por qualquer motivo, lhes
não conviriam (colocando-se, agora, na situação de uma espécie de iuniores de
capite), com o fito de agenciarem outros em melhores condições, ou mesmo melhores,
nas terras dominiais, contando com o plácito senhorial e até com as leis. Os senhores
eram um clérigo e uma «devota», e, naturalmente não teriam herdeiros forçados –
circunstância a favor de cálculos que nem as leis nem os costumes preveem, mas que
eles facilitam, ou possibilitam pelo menos. E isto mesmo apesar de, no caso de
deixarem de ser juniores, terem de largar metade desses novos bens próprios – o
que , ainda assim, poderia mesmo convir-lhes: «dimissa integra hereditate (domini) et
bonorum suorum medietate» – se as leis de 1017 ou 1020 não são inovações, pelo
menos em tudo, mas regulamentação escrita.
Naturalmente que por todo o «territorium inter ambas Aves» não faltavam
solarengos, ao lado de gente
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de todas as condições sociais populares. É mesmo com este território que se dá o


interessante caso, único a bem dizer, de dois documentos nos referirem várias dessas
condições denominadamente. Assim, em 1014, no mandamento de Candoso, têm
expressa citação «ingénuos et homines fiscalia faciente» (isto ‘e, livres e outros que só
possuem encargos de servos ficais ou obrigados a funções do fisco ( 1) e ainda «servos
et ingenuatizos» (DC 223). Ora estes «ingenuadiços» devem ser aqueles indivíduos
mais próximos da ingenuação – os juniores, embora, como vimos, pagando-a
pesadamente. Outro passo do mesmo documento, depois de no mandamento de
Souto citar também os «ingénuos» e os «fiscalia facientes», refere, em vez daqueles
outros de Candoso, os seus «casata et scusatos»: estes, cremos, os que apenas
pagam fossadeira (ou servem em hoste-e-anúduva), o mesmo que, noutros passos,
fossadarios»; e os «casata», talvez os próprios «ingenuatizos» ( 2) na sua condição de
assolarengados, obrigados a morar e a trabalhar em casa e prédios dominiais.

Em 27 de Abril de 1128, a dois meses escassos do desfecho bélico da revolta


portugalense contra D. Teresa e o conde de Trava, revolta que já vinha
declaradamente pelo menos desde o ano anterior, D. Afonso Henriques, que os
barões revoltosos haviam erguido e que obtivera dos tenentes das «terras» de entre
Lima e Ave, pelo menos, os primeiros sólidos apoios, e uma participação excecional
dos burgueses de Guimarães, aos quais seu pai e sua mãe haviam concedido carta de
foral em 1095-1096, acrescentou a essa carta privilégios que aqui nos importam, como
vamos ver – privilégios esses merecidos pelo que dos burgueses diz o infante:»apud
vos fecistis honorem et cabum super me et fecistis mihi servi-

__________
(1 ) Certamente o mesmo que os «fiscalinos» de outro documento (1059, DC 420) – origem,
como cremos, do topónimo Vila Frescainha (fiscalina), em Barcelos».
() Pela mesma razão por que ora se usa para outros a designação «fiscalinos» ora a de
«fiscalia facientes».
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tium bonum et fidele». Ora, como eles lhe tinham «feito honra e defesa», também ele
lhas quer fazer a eles («facere honorem et cabo»), pelo que realmente os privilegia (1).
Certo era que seus pais não lho haviam feito verdadeiramente pois que o foral por
estes dado quase não é mais que uma carta de regulamentos internos.
Os privilégios que, de facto, mais aí interessam so nosso assunto são os
seguintes:
- «Et cavaleiro aut vassalo de infancion aut nullo homine qui fuerit ingenuo et in
Vimaranes venerit morare et ibi domum suum fecerit non donet fossadeira et sua
hereditate et suo aver sit liber et salvo».
- «Et iuniore sit libere t salvo cum suo aver si ibi venerit habitare et si voluerit
suam hereditarem habere serviat quo illa ad dominum in qua terra est» (DR 1).
Uma das mais evidentes finalidades destas disposições é a de aumentar e
tornar mais coesa a população do burgo, com a bem provada conveniência para a
causa nacional que então se tratava crucialmente ( 2). Não se hesitava até em dar
guarida, isenta de responsabilidades criminais, a todos os que nestas houvessem
incorrido, noutras terras: esses, de facto, podiam vir aqui residir, obrigando-se, porém,
a não praticar cá tais delitos.
Com mais razão, se deveria acolher o júnior que quisesse ou não plenamente
ingenuar-se, além de se privilegiar municipalmente. Não se tratava de um acinte de
revogação das leis leonesas de 1020, natural no fervor da revolta pela independência
contra Leão: é simplesmente uma disposição de direito local.
O júnior, pois, que vier para o burgo de Guimarães não só não perderá a
metade dos seus haveres (móveis e imóveis) como poderá mesmo conservar, se o
quiser, a «herdade» dominial, seja qual for a situação desta. Não se considera
qualquer ordem na situação da «terra» (não

__________
(1 ) Verdade que, nem toda a população vimaranense estava unida então no problema do
momento, porque o infante privilegia na carta especialmente só aqueles burgueses que o apoiaram:
dispensa, de facto, da fossadeira «illas hereditates de illos burgueses qui mecum sustinerunt male et pena
in Vimaranes» – o que não significava, evidentemente, que eles não ficassem, quando necessário,
sujeitos à anúduva ou ao serviço na hoste régia.
(2 ) Ver o nosso estudo AF3 210-225.
___65___

há o famoso limite «IIIª mandatio»), se era um facto o sentido ordinal (contra a nossa
tese de fracionário). Mas até por aqui se poderá ver talvez que tal sentido não é real,
pois que, de facto, o foral poderia ser imposto um limite ao deslocamento do júnior e,
portanto, respeitar a lei de 1020, sem com isso se prejudicar verdadeiramente esse
júnior emigrado, visto que, além de se lhe permitir conservar a «hereditas» de que era
solarengo, seria ele o primeiro a não ter conveniência em que tal «herdade» lhe
ficasse demasiado afastada do novo domicílio, Guimarães.
Esse júnior poderia mesmo converter-se aqui em cavaleiro municipal,
sobretudo se ele à data da emigração possuía cavalo, que as leis de 1020 lhe
garantiam: «si vero in ea (hereditate senioris) habitare non voluerit, vaddat liber ubi
voluerit cum cavalo eta tondo suo». Embora o foral o não explicite, ficará dispensado
aqui da fossadeira – o que não quer dizer livre do serviço da hoste e da anúduva.
Nisto se equipararia ao já cavaleiro e ao vassalo de infanção, do miles, cavaleiro-
fidalgo (o sentido geral que, sendo o da nossa tese, ainda aqui claramente se
manifesta).
A nobreza, que antes veria assolarengarem-se-lhes livres e até proprietários (l
presbítero e a dona do nosso exemplo do séc. X não são, porém, indubitavelmente
nobres), verá, agora, muitos indivíduos de condição ingénua ou não ingénua eximir-se-
lhe, sobretudo por efeitos dos diplomas municipais, cuja multiplicação então começa;
mas é então também que, como numa defesa, o maior número de coutos e honras, as
imunidades territoriais da nobreza, vai aparecendo.
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3. «Comites» e «infantiones»: «Comitatum e infantaticum; infanções e


«milites»: a nobreza em geral.

Em estudos anteriores (nomeadamente AF4 177), entendemos a palavra


infantiones, até inícios da independência nacional, como uma designação relativa
apenas à função político-administrativa da nobreza e não uma designação que
distinguisse determinada classe nobre da nobreza considerada condal. Não, pois, uma
designação dada a uma classe nobre de segunda ordem. Por outras palavras, ter-se-
ia chamado infanção ao nobre em função pública efetiva. Tal se contém, de facto, na
definição dos fins do séc. XI: infanções os «nobiles genere necnon et potestate», isto
é, ao que entendo, nobres natos com autoridade pública (ES XXXVI 37).
Resultava, em suma, como já nos parecia, o mesmo para o comes, um título
por vezes dado a um infanção quando a sua autoridade fosse a de delegado régio nas
circunscrições administrativas – função que não era confiada a qualquer pelo facto de
ser infanção. Ainda por outras palavras: função essa que, precisamente, dava a
designação, menos que categoria, de infanção a um nobre.
Essas circunscrições, que começam a chamar-se terre do séc. IX para o X
(mas ainda muito claramente durante os seguintes dois séculos) (1), denominavam-se,
como se sabe, mandationes em razão do «mando» ou autoridade que o delegado
régio nelas assumia ou recebia (2), e comissos, pela «comissão» ou representação
régia

__________
(1 ) «omnes terras et provintia(s) portugalensis», 873 LF 16.
(2 ) às vezes, também «mandamentos»: «ipse dux tenuit mandamento» (DC 549). Mas o
mandamento é mais uma subdivisão da «terra» (DC 223, 420, etc.), talvez correspondente à thiufa
visigótica.
___67___

deles nelas (1). Qualquer delas podia, ainda chamar-se comitatus (2), do que, por
vezes, resultava o título comes ao delegado régio.
É hoje admitida a opinião de um insigne medievista que faz atribuir a
designação comitatus à circunscrição apenas quando à sua testa está um comes,
ficando este com o título mesmo depois de ter deixado tal administração. Quer dizer, a
circunscrição recebia do comes a designação comitatus e não ele dela o título de
comes, o qual lhe provinha de investidura – aliás uma cerimónia sobre que se
confessa a inteira ignorância (3).
Por se não conhecer, pois, o melhor do que se afirma, preferível seria aceitar
que o comes da Reconquista, em origem e atribuições não é diferente do da época
visigótica. Não pareceria então de rejeitar a ideia que àquela contrarie: o comitatus ser
apenas uma das designações da circunscrição administrativa (e, assim, indiferente,
para o caso, que outros nomes se lhe dessem), vindo portanto, isso da época anterior;
ou haver, pois, uma correspondência direta entre territorium dessa mesma época, à
frente do qual estava sempre um comes, como vimos (4), e a «terra» (este nome ou
qualquer dos outros) da Reconquista. Além de tão inegável precedente, temos outras
indicações muito diretas, contrariamente à ideia do referido medievista: não se chamar
sempre condados às circunscrições mesmo quando se lhes referem condes ( 5); não se
chamar condes sempre que os seus tenentes, mesmo quando se diz condado ( 6); e
até usar-se globalmente

__________
(1 ) «commissus tenente», 1025, LF 22.
2
() «comitatum tenebat», doc. HS II 83, séc. X.
3
() Prof. Emílio Sáez, Los ascendientes de San Rosendo, p. 22, transcrevendo Sánchez-
Albornoz, Fideles y Gardingos, p. 127.
(4 ) No código visigótico, são inúmeras as ocorrências: «proximae civitatis aut territorii», IX,
1, 6; «comiti civitatis in cuius território est constitutus», IX, 2, 1. Não podemos alongar-nos aqui com a
demonstração da correspondência das terre a esses territoria. (Ver, no entanto, o nosso estudo Arouca
na Idade Média, pp. 235-238).
(5 ) 1025, «comites qui comissos tenente. LF 22; 873, «comitibus terre, LF 16.
(6 ) «infanciones tenuerunt ipsum comitatum»: doc. HS II 83, para o séc. X. Não importa
para o caso, a coincidência, que igualmente também ocorre, para perfeita variedade: «comes qui
comitatum tenebat» – nesse mesmo documento e para a mesma «terra».
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a palavra condado para circunscrições que ora são chamadas de facto condados, ora
o não são, ou até nunca algumas o são, a não ser num contexto de designação
genérica e generalizante (1). Diziam-se – repetimos – então condados porque este era
o seu nome único na época anterior.
Enfim, a designação comitatus aparece, pode dizer-se, aplicada a qualquer de
tais circunscrições – e, se falha nalguma a perfeita igualdade administrativa, não há
outra explicação para o facto que não seja uma escassez acidental de documentos (2).
Além da definição de infanção dos finais do séc. XI, naturalmente autorizada
pelo seu próprio tardio (que, com efeito, garante uma anterioridade evidente do seu
significado objetivo), tínhamos, pois, no facto de infanções aparecerem no governo de
condados uma confirmação dessa mesma definição. Ou seja, a circunscrição não de
dizia comitatus somente se à sua testa estivesse um comes: podia estar aí um
infanção, que o chamamento condal permanecia. E isto nos parece evidenciar que
entre infantiones e comites não só não havia qualquer diferença de classe que é o
menos, mas – o que é mais – também não de grau nobiliárquico. Em suma, nem uma
nobreza condal de segunda ordem: nobreza, apenas, – o que continuava o estado que
encontrámos na época visigótica a respeito de comites e duces.
No entanto, nada permite estabelecer por isso uma correspondência tal entre
as duas épocas que se fizesse também do comes da Reconquista para o dux
visigótico.

__________
(1 ) Basta ter em vista a conhecida divisão dos chamados «condados de Lugo», seja qual
for a crítica a fazer ao documento respetivo: «exquirere ab antiquis XI comitatos… comitatus vero tali
tenore sortiuntur», LF 11.
(2 ) A esta circunstância, corresponde uma outra: a de inegáveis condes nem sempre se
tratarem como tais – do que se encontram exemplos a cada passo, até entre nobres do mais elevado
poder: «comes domno Gundissalvo Menendi… ipse dux magnus», DC 138, e já «serbus Christi
Gundisalbus» DC 138; «ad Gundisalvo Menendi… et comite Menendus Gundisalvi» (filho daquele), LF 22;
«comes domnus Tellus», LF 825, e já «Tellus Alviti» (doc. Arq. Por. XXVII 149); «cum eos andante Froila
Gundisalviz» e já «comes Froila Gundisalviz», DC 194, 234, 242, etc.
___69___

Ao dux, correspondia a provintia, e esta havia, praticamente, desaparecido (1).


A hipótese de Sánchez-Albornoz talvez pretenda responder à dificuldade
inerente ao facto de aparecerem comites que não administram circunscrição alguma:
eles teriam, pois, recebido o título vitaliciamente (com investidura, da qual, como já se
reparou, nada consta), «ainda que o conde mudasse de distrito» para outro que não
fosse condado (uma nova hipótese), ou mesmo que tivesse apenas um cargo palatino,
ou até nem este nem «terra». Os documentos, parece-nos, não dão qualquer
fundamento a tais hipóteses – e, de resto, o facto de não aparecer documentada uma
«terra» para um determinado conde não prova por si só que ele a não tivesse. Nem
mesmo podemos supor que um prócer, porque tivera governado uma «terra»,
houvesse de estar sempre em tais funções. E o mesmo se diga para a cargo palatino.

Não nos parece, pois, haver qualquer relação unívoca forçosa entre «condado»
e «conde», isto é, ser forçoso que a circunscrição só se chamasse comitatus quando
tivesse um comes. Um infanção, nesse ponto de vista administrativo, era
potencialmente um conde.
Se recuarmos da época já tardia a que este problema respeita, encontramos
circunstâncias confirmativas: as leis visigóticas (como talvez já demasiado temos
lembrado) citam sempre à frente das circunscrições (territorium civitatis) um comes –
mas nunca infantiones (2), palavra que, salvo erro, nos não aparece ainda, e não
iremos crer que ela surgiu (na Reconquista, séc. IX.X, não antes) para ou por alguma
circunstância pessoal nobre e administrativa nova.
Sem sustentar hoje na integridade o nosso anterior parecer de que a
designação «infanzones» era meramente

__________
(1 ) O que afirmamos não se contradiz no facto de haver uma «provintia portugalensis»,
com o seu dux magnus ou comes magnus (aparecem as duas designações), porque até se denominam
duces próceres que só podem ter governado simples terre (doc. Arq. Port. XXVII 151). Esta circunstância
encontra-se documentada em qualquer dos nossos estudos sobre as origens de Portugal, pelo que nos
não alongamos.
(2 ) Seria útil chegar a descobrir-se a relação indiscutível, embora indefinida, que há entre a
palavra «infanção» e o lat. (in)fans ou infantia. A alteração semântica, que, sem a menor dúvida, se
___70___

funcional, político-administrativa, em gente nobre, concluímos que o que se daria era


que os mandantes das circunscrições, titulassem-se ou não de comites, seriam
escolhidos entre os infantiones. Até porque poucos esses mandantes, relativamente
natural um título que os distinguisse (e que eles não perderiam depois de o terem
assumido). É uma circunstância que se encontra na época visigótica. A conquista
muçulmana não destruiu todo aquele passado. Ideia diferente, na realidade,
historiador algum hoje a admite e, no entanto, não deixam de considerar-se efeitos
eliminadores, ou tão transformativos que valem o mesmo.
É circunstância de todos os tempos: numa mesma classe, há sempre quem,
por particulares dotes pessoais ou por favor especial dos soberanos, por vezes até
sem merecimentos que ultrapassem os de outros não distinguidos, alcança situações
proeminentes. Em nosso ver, não há duas classes nobres, comites e infantiones –
como não há classes de comites e duces, tal como sucedia também na época
visigótica (o dux deve ser um comes em funções político-administrativas (não
simplesmente palatinas), sendo, pois, um título temporário – o que se não dava com o
de comes.
No entanto, era natural ou seria mesmo forçoso que, a pouco e pouco, uma
certa diferenciação se fosse fazendo, como entre nós parece revelar-se nos dois
primeiros séculos da nossa Nacionalidade ao grau dos chamados «ricos-homens», os
divites-homines. Estes ocupavam, agora (séc. XII e XIII), em função administrativa nas
«terras», o lugar que, outrora, tinham exercitado os duces nos comissos, mandações
ou mesmo condados; mas tal função não estava de início ou em princípio vedada a
infan-

__________
verificou, talvez se operasse nesta circunstância presumível: os infanciones (palavra que se tem no séc. X
numa equiparação de cavaleiros-vilãos municipais e «infanzones de foris»: doc. In Munõz y Romero,
Colección de Fueros, nº 37, equiparação esta que vem a aparecer entre nós no séc. XII, em numerosos
forais) talvez fossem de início os filhos de nobiliores elevados, isto é, duces e comites em vida de seus
pais, cujas funções lhes estariam potencialmente reservadas (lembrando os anteriores filii primatum
visigóticos), qual se revela mais tarde na aplicação da palavra aos filhos dos reis. Tal falta de autoridade
está de acordo com o sentido originário da palavra: «que (ainda) não fala».
___71___

ções. O que de especial se nota entre nós é o facto de certas estirpes terem
alcançado influência tal que, como veremos, lhes haviam passado a pertencer certos
distritos, tacitamente, as administrações ou rico-homias. Na generalidade, porém, isso
nos não interessa por enquanto, apesar da sua importância posterior.
E, porque, como também veremos, os comites tinham agora desaparecido
entre nós, havia muito, são os divites-homines que representam então os passados
duces e comites – o que até por esta via estabelece a assimilação que nos parece
existit de uns para os outros.
Concordantemente, temos nas designações circunscricionais comitatos; mas
«ducados» é palavra que nunca aparece, apesar de se usar o título de dux: as
circunscrições dos duces são as daqueles – prova de que os duces, afinal, na
Reconquista, são comites, como na época visigótica igualmente o eram.
Seria, pois, forçoso que tais circunstâncias resultassem enfim, pouco a pouco,
numa diferenciação. E é assim que, a partir de meados do séc- XIII (se tão cedo,
segundo nos parece), se distinguem entre nós as classes nobres tradicionalmente
consideradas, e por esta ordem decrescente de importância: os ricos-homens e os
infanções (estes acabados de desnivelarem-se dos seus pares, por maior influência e
poder destes, devidos a motivos políticos e económicos),e, de seguida, os simples
cavaleiros e os escudeiros. Como veremos, seria tudo, normalmente, uma questão
económica; e, quanto à passagem do grau de escudeiro ao imediato, questão apenas
de uma cerimónia especial. E é ainda nos meados do séc. XIII uma gradação tão
pouco evidente, que as inquirições de 1258 falam, algumas vezes, de divites-homines
e raríssimas vezes de scutarii (isto é, dos graus extremos), mas constantemente em
«milites» (os cavaleiros-fidalgos), mesmo tratando-se de estirpe de algum dives-homo
– o que talvez tenhamos de ver melhor.
A circunstância acabada de apontar é, de facto, tão expressiva que merece
alguma atenção mais. Quer aquilo dizer que a diferenciação ainda nesse tempo não é
quádrupla no consenso vulgar, embora já existente – o que só em aparência pouco
importará.
Na verdade, os divites-homines são já os nobres que possuem a administração
das «terras» (às vezes, por um
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direito, ou melhor se diria, por uma tradição familial – uma espécie de hereditariedade
que, porém, não se pode considerar feudal). No extremo oposto, os scutiferi quase
assimilados aos vilãos mais evoluídos, se na verdade não confundidos mesmo, num
conceito social prático, como os milites-villani. Entre estes extremos, a multidão
impressionante dos cavaleiros fidalgos, os milites – palavra que genericamente
designa essa massa intermédia que constitui a quase totalidade da nobreza.
Para essa massa intermédia, nunca aparece a palavra «infanções», que
deveria esperar-se, nos próprios monumentos, como as inquirições do séc. XIII, em
que, constantemente, se encontram nomes de filhos-de-algo: nas de 1258, milites
apenas, pode dizer-se; nas de 1290, cavaleiros, genericamente (1). A não ser uns
casos muito especiais (de mudança de grau nobiliárquico), nem sequer nos seus
repositórios, onde eles desfilam em multidões cerradas (os livros medievais de
linhagens (2).

Não faltam textos em prol da nossa doutrina. Assim, e preparando o assunto da


«divisio» triparcial das «villas» (ou outros prédios) em reguengo, condado e igrejário,
numa determinada época (tripartição a que, de facto, tencionamos conceder alguma
demora), bastará aduzir este, de 1068: «hereditates vel divisas que dederunt vel
dederint comites potestates sive infançones vel villani ad illo episcopatu» (ES XVII
453). Não podemos, naturalmente, crer que os «potestades» são diferentes de
«comites» e «infançones», pois que potestades são-no os condes, como

__________
(1 ) Das inquirições de D. Afonso III não é preciso dar exemplos: basta abri-las, que logo se
nos deparam. O mesmo com as de D. Dinis, com a pergunta sacramental única para o caso:
«perguntando se en esta freguesia há casa de cavaleyro ou de dona que se defenda per onra». Também
escusada a exemplificação, porque basta, igualmente, abri-las. Portanto: miles, nos textos latinos de
1258, «cavaleiro» nos textos em romance de 1288 – eis a designação geral dos membros da nobreza.
(2 ) Mas outras circunstâncias levam à mesma conclusão. Assim, no foral de Guimarães, a
referência «cavaleiro aut vassalo de infancion aut nullo homine que fuerit ingenuo» Leg. 351. Trata-se de
três categorias populares: o vassalo de infanção, o cavaleiro vilão, enfim, qualquer ingénuo – e em
infanção temos, pois, a designação do nobre em geral.
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tais (governadores dos territórios), e os infanções, nesse tempo, o são também, até
por definição (ES XXXVI 37). Não se devendo, pois, considerar, neste texto, outros
poderosos funcionais, a interpretação é sempre a mesma, quer «sive» assimile aos
«infançones» apenas os «potestates» (pois que nestes se incluíam os condes), quer
ligue, expressamente e em conjunto, «comites» e «potestates» aos «infançones».
Referida ali intermediamente às outras, a designação «potestates» estabelece-lhes em
nosso ver a identidade.
Portanto, nos nossos inícios nacionais, como na época mais remota, não
haverá classes nobres: unicamente nobreza, sem divisões em si mesma. Entre a
época visigótica e a nacional é que aparece a designação «infanzones» (típica, pois,
da Reconquista); e são eles, repetimos, os que, nos séc. XII e XIII, se chamam, entre
nós, milites: nobreza, em geral (1).
Cremos que foi esta mesma circunstância, ainda não encarada no aspeto de
generalidade de designação, que nos levou a entender ser «infanção» apenas o nobre
em função pública, pela sua definição, já referida, dos fins do séc. XI, e por um dos
artigos do concílio de Coiança (2). Hoje, temos essa opinião de uma designação
genérica até depois dos meados do séc. XIII, não só pelo que acabamos de exprimir,
mas também porque, na época anterior (antes da Nacionalidade), nos apareciam
circunscrições denominadas «condados» administradas tanto

__________
(1 ) Note-se que, no nosso contacto quotidiano com estes textos, cedo se nos revelou o
facto de as inquirições de 1258 nomearam mui numerosos milites que se não encontram entre as
multidões de nobres nos livros de linhagens.
(2 ) Embora no início deste capítulo tivéssemos referido o essencial da definição, convém
transcrevê-la agora na íntegra: «et inter milites non infimis parentibus ortibus ortos, sed nobiles genere
necnon et potestate, qui vulgari língua infanzones dicuntur», ES XXXVI 37. Note-se mesmo a equivalência
de infanzones a milites generalizante, como se encontra nas inquirições do séc. XIII. Pela mesma
ocasião, redigiu-se no Conc. Coiac., cap. 7: «omnes comites et infanciones imperantes terre» – tendo a
menção especial de comites a finalidade de designar os casos de imperantes que tinham tal título, o qual
não lhes provinha da administração da «terra»; e a de infanções, a finalidade generalizante de qualquer
nobre poder ter um tal cargo, embora, na prática, isso não sucedesse, ou raramente sucedesse – que se
documente.
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por um conde como por um infanção, sem deixarem de chamar-se condados nem
impedimento de o infanção, por isso mesmo, pelo menos, poder chamar-se conde (1).
A circunstância completa-se com o facto de, na designação das autoridades
que recebem parte das multas criminais, nunca se encontrar nas escrituras menção de
«infanzones» – sendo todas elas do género «ex terre regis vel comiti qui illa terra
imperaverit» (2).
Este acordo com os outros muitos indícios que permitem ou nos obrigam a
assimilar «infanzones» a comites e vice-versa, não significa que alguma diferença não
houvesse entre o título (particularizante) de comes e o generalizante de infanção,
diferença que devia corresponder a funções especiais, mas temporárias e não
administrativas – para o comes, as militares, ou, melhor, as do tempo de guerra (3).
Se na referência a comites, com omissão de infanzones, se entendem estes, é
natural o seu inverso ou seja, aludir-se apenas aos infanzones e não àqueles. O ponto
de vista que acabámos de exprimir será talvez a sua única diferença: a função de
chefia militar do comes, a qual, na época visigótica, lhe atribuía mesmo o título de dux.
Nos forais do tipo de Salamanca dos nossos grandes concelhos, tipo esse neles
aplicado não sem algum motivo, que só pode ser o arriscado da sua situação, a qual
era fronteiriça (de mouros e cristãos, o que tem significado militar), encontra-se este
privilégio: «cavalario (ou

__________
(1 ) Para a mesma circunscrição, no séc. X: um comes titulado «qui comitatum tenebat»;
depois dele, infanções referidos «tenuerunt ipsum comitatum»: doc. HS II 83.
(2 ) DC 376, que pode servir de paradigma (tirante casos que se referem por vezes ao
iudex, o qual pode ser o próprio tenente, além do juiz da circunscrição: «coram regis vel comite aut iudcir
terre»: DC 340.
(3 ) De facto, é natural que, realmente, a diferença esteja nas funções militares, como se
encontra nas leis coiacenses de 1100: «ire in fossatum cum rege, cum comitibus, cum maiorinis» (Conc.
Leg. Cap. 17º). Não se alude ao infanção, mas ao maiorino, título, muito vago, de função bastante vária. A
outra versão daquela lei omite infanções: «omnes comites seu maiorini regales». Natural que se
correspondam.

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miles vilão) pro infanzone de todas alias terras in judicio» ( 1); e, nos do tipo de Ávila,
identicamente: «milites sunt in iudicio pro podestades et infanzones de Portugal» (2).
É um privilégio transportado ao nosso país, pois que já se encontra em Leão no
séc. X, quando a liberdade popular ia surgindo pela organização comunal que são os
municípios (3). Ora, se os infanzones podiam ter autoridade (real, em delegacia),
também os cavaleiros vilãos, equiparados assim a infanções, podiam tê-la (embora
não régia) nos seus coutos municipais (4).
Entre os infanções e os cavaleiros vilãos havia, realmente, alguma coisa de
comum que ainda neste ponto nos permite generalizar aquela designação à nobreza,
pelo menos à sua quase totalidade (pois que não devem ser excetuados mesmo os
divites homines) – e daí que milites se chamava tanto a cavaleiros-fidalgos como a
cavaleiros-vilãos (conquanto, mais vulgarmente, a estes, caballarii): a milícia a cavalo.
Havendo, pois, no militar esta identidade de situações, equipará-los-ia no judicial um
privilegiamento que teria de ser municipal (porque, para os nobres, ele existia nos
coutos e honras). Em favor da

__________
(1 ) Foral de Numão, 1136: «cavallario de Norman sit infanzone de aliis terris», Leg. 369.
Cfr. os forais de Mós, Freixo de Espada-à-Cinta, Marialva, Trancoso, Moreira do Rei, Aguiar da Beira,
Celorico da Beira, Gouveia, Linhares, Valhelhas, etc., todos para a extrema com cristãos (Leoneses).
(2 ) Foral de Évora, 1166 (Leg. 392. Cfr. os da Covilhã, São Vicente da Beira, Coruche,
Palmela, etc., geralmente para a extrema com mouros.
(3 ) No foral de Castrojeriz, 974: «damus foros bonos ad illos caballeros ut sint infanzones et
firmitur super infanzones de foras de Castro»: Muñoz y Romero, Colección de Fueros, nº 37.
(4 ) As funções de alcades e de juízes nesses grandes concelhos, para não considerar já as
de vigários e andadores. Assim, em 1242, em Trancoso (foral do tipo de Salamanca): «alcaldes P.
Gunsalvi, domno Tizon, P. Menendi, cum alio» (LDT 44 v). imediatamente antes, haviam-se citado o
tenente da terra (o rico-homem D. Abril Peres) e o alcaide (Soeiro Gonçalves, o famoso cavaleiro traidor a
D. Sancho II, Soeiro Bezerra), cuja autoridade provinha aí do rei e não, ao contrário da daqueles, do povo.
De facto, basta olhar ao foral de Sernancelhe, 1124: «et unum seniorem (tenens) habeamus. Iudice vel
sagione de nostra villa quale posuerit concilio et alcaide quem vos volueritis» (Leg. 363).
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nossa tese não se deve excluir, pois, o grau de rico-homem na categoria dos
infanções, está o facto de os cavaleiros-vilãos chegarem a ser expressamente
equipados, como há pouco vimos, a «podestades» (que são mesmo os divites
homines): quererá, por certo, acentuar-se assim o grau implícito na designação
infanções, que, noutros casos (não diferentes), é a única. Mais um indício, repetimos,
de que, entendendo-se infanções, que, noutros casos (não diferentes), é a única.

Portanto, do séc. XII para o XIII, ainda nada distinguia do simplesmente


infanção, e, princípio, o nobre que anteriormente se houvera qualificado de comes.
Depois dos meados do séc. XIII, precisamente quando se acentua a decadência da
antiga nobreza portugalense, que sobressaíra pela queda da estirpe condal
vimaranense (cerca de 1043) – o que naturalmente teremos ainda de focar –,
acentuam-se as diferenças no aspeto nobiliárquico dos quatro graus, ou já verdadeiras
classes de nobreza: ricos-homens, infanções, cavaleiros e escudeiros. Haviam
decaído as tenências; natural que, na falta deste meio de proeminência, aquele se
acentuasse, assim nascendo a nobiliarquia (séc. XIII-XIV).

No seu estudo das origens das ordens e caráter sócio-económico das beetrias,
entendeu e fez Mayer intervir o que ele considerou «associações de infanções,
rotundamente desdito por Sánchez-Albornoz: «no hay tal asociación» (SA 78, etc).
Deduzira-as o autor alemão de um documento de 1030, mas referente ao séc.
X, o qual respeitava a «illos infanziones de Spelia» (1).
De notar, ainda que de passagem, a obrigação típica destes nobres, tão de
acordo com o que por outras vias e indicações acabámos de deduzir: «ipsos
infantiones habuerunt fuero per anutba quomodo totós infantiones faciebant» (doc. AS
73). É a anúduva (ou, melhor, hoste-e-

__________
(1 ) Pretendendo Mayer deduzir dos ditos infanções o funcionamento de uma beetria, com
razão o desdisse Sánchez-Albornoz; nessa escritura, apenas «se narram os desmandos, usurpações e
violências» de «um infanção de carne e osso», e não de uma associação (SA 78).

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anúvia) precisamente o encargo a bem dizer único dos cavaleiros-vilãos municipais e


não municipais em Portugal; e é de relembrar, pois, a sua equiparação a infanções,
mesmo os de maior poder, nas nossas cartas de foral de procedências leonesas do
séc. XII.

Ora, se bem que tal escritura nada tenha com uma organização social do tipo
benefactoria ou beetria, aquelas suas expressões não são contrárias a um tipo de
agremiação de infanções, e o determinativo, na sua função locativa, «de Spelia», está
mesmo de acordo – até porque lea ocorre nesse tempo noutros casos, como os
«infanzones de Lagnelo»; e, mesmo com documentação mais tardia (o que não quer
dizer uma existência mais moderna), surgem-nos alguns casos portugueses.

Pode parecer isso estranho, mas, para o caso, de facto, não podem desprezar-
se, por insignificativas, antigas – e depois demuito usadas – expressões, tais
como«infanções de Santa Maria», constituindo um grupo definido; e poderíamos
lembrar os infanções de Alafões e, embora sem expressão documental mas com uma
inegável atuação correspondente, ainda os infanções de Arouca, tão tipicamente
notáveis no ponto de vista administrativo.

É que nem sequer faltam indícios de tal natureza destes infanções agremiados,
ou associados, fosse qual fosse o tipo da sua «associação»; e, noutros, como, no caso
de Lafões, os de certamente um foro próprio, que poderia ascender à conquista
muçulmana (se não vinha, pelo menos, da época visigótica), pelo pacto concertado
com Muça cerca de 715, ao aparecerem os invasores árabes, na região ( 1). Se
(repetimos) não de antes, asso-

__________
(1 ) Nas inquirições 1258 nesta remota mandatio, chamada agora «terra», aparece ainda
uma multidão de locais honrados ou que eram honras de nobres, de tempo não recordado. Além disso,
sabe-se que, cerca de 1025, um rei de taifas, que invadira aquela circunscrição, defrontou-se nela com
«mais de trezentos cavaleiros cristãos cujos antecessores, no séc. VIII, tinham obtido capitação» do
conquistador Muza», etc. (fontes arábicas cit. por M. Pidal, L España del Cid, p. 53). Sabe-se quanto os
conquistadores árabes foram tolerantíssimos na paz e respeitavam toda a organização local que não
contrariasse a sua política geral, deficitasse a sua máquina fiscal ou afrontasse a sua religião.
Não deve ser desprovido de significação nesta pista o facto de pertencerem precisamente a
Lafões as primeiras indicações de «tenentes» de uma antiga mandatio do nosso território: 1070,

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ciados então para o pacto, associados continuariam de pais para filhos afim de o
defenderem, pois lhes trouxera, sem dúvida, relativas vantagens sob a nova
dominação, e para o cumprirem.

Não nos repugna mesmo crer que uma das principais vantagens desse pacto
em Lafões deveria ter sido em mãos desses infanções a administração do territorium
(que era muito vasto, correspondendo a três grandes concelhos de hoje e parte de
outro). Esta circunstância transparece no caso de Santa Maria e, como para nos
capacitar do facto, muito singularmente, no de Arouca, com os seus mandantes
triunvirais no séc. IX-XII (1). Santa Maria e Arouca são os únicos distritos onde o
mando surge repartido, o que nos leva a crer que, tratando-se de um uso ou tradição,
ligado, como teria de ser, à aristocracia regional, a sua origem pode estar numa
associação, ou caso semelhantes ao de Lafões, ainda que tal caraterística não se
apresente neste último território.

Em 1088, a reunião magna da cúria régia, presidida por Afonso VI, estatuiu que
«haereditas de comite vel de infanzone vel de ullo haereditario nec currat ad rega-

__________

«mandante Alahoveinis Piniolo Garcias», DC 490. O nome manifesta um mandante que talvez seja
estranho a qualquer das linhagens da nossa antiga nobreza, o que está de acordo com a nossa tese, em
obras anteriores defendida, de que Portugal primitivo (o próprio Portugal que o conde D. Henrique
primeiro recebeu) não ultrapassava o Douro, para sul. Também pertence a Lafões (Penafiel de Covas)
este caso de 1078: «mandante ipse terre Monino Veniegas et suo maiordomo…, et judex», DC 551. Este
Mómio Viegas, embora o nome seja muito vulgar numa das cinco linhagens portuguesas tradicionais, não
é dela, e decerto se trata do pai daquele Egas Moniz que figura em 1102 no foral de Zurara (ao sul de
Viseu), Leg. 353.
(1 ) Pertence a Santa Maria, o primeiro caso que refere mandantes no território hoje
português: «ante ipsos domnos que abitantes eram in cassa de Sancta Maria de Civitate», um triunvirato
constituído por Tedo Galindes, Fernando Gonçalves e Ero Teles (DC 261). Vários triunviratos aparecem
também no mando de Arouca, na segunda metade do séc. XI (e não de antes talvez por falta de
documentos, ou não indicados por circunstâncias especiais): 1085, DC 634, 649, 660, 684, etc.

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lengum nec ad infantaticum nec… ad episcopatum vel alium sanctuarium» (doc. SA


146-148).
Para se apreciar esta notável disposição, convém lembrar alguns dados
similares.
Num conhecido pleito de 1025, que historia circunstâncias dos trezentos anos
anteriores, alegavam certos colonos que, no começo do colonato dos seus
antepassados, «extranaverunt ecclesiario de nostros avolos et de regalengo» – isto é,
haviam sido assim repartidas as terras: para uma igreja (catedral), isto é, o
«eclesiario»; para a coroa (o rei), ou seja, o «regalengo»; e para colonos estabelecidos
pelo conde presor aí referido, quer dizer, o «comitato». É precisamente o que noutro
passo da escritura se lê: «dividerunt ante ille rex eclesiario et regalengo et comitato)
(LF 22) (1).
É, pois, de relembrar o texto de 1068 já referido (E S XVII 453), para mais não
alegarmos; e este não somente porque respeita a «comites potestates sive
infançones, vel villani», doadores «ad episcopatu», mas sobretudo agora por ser mais
um documento da costumada tripartição - «hereditates vel divisas» entre o rei
(representado pelos vilãos – quer dizer, reguengo no sentido lato), um magnate (conde
ou infanção) e uma igreja (ou, neste caso, uma catedral) (2).
Se a nossa tese corresponde, pois, a uma circunstância real, teremos de
considerar em «comitatus» a parte correspondente à nobreza, ou seja, aos infanções
(note-se que as outras partes são o rei e o clero, servindo-se do povo as três), parte
essa resultada de direitos de propriedade baseados, ou adquiridos, na presúria,
geralmente com a possibilidade (senão concessão régia prévia) de exercício de
mando; e isto explicaria que, arvorados, para isso, em comites os infanções, o nome
da parte respetiva fosse aquele. Alguma vez, porém, sendo assim, deveria aparecer a
designação comitatum substituída por infantaticum, que não designaria, nesse caso,
coisa diferente. Iremos vê-lo.
Sánchez-Albornoz, pugnando contra Mayer, porque este entendera, sem
razões ou provas alegadas, ter sido o
__________

(1 ) Cfr. o nosso estudo AF2 86-87, etc.

(2 ) O tratar-se, de facto, neste texto, de doações a essa catedral não significa,


necessariamente, que ela não tivesse já aí bens – razão mesmo do interesse em mais obter ou ampliá-
los.

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infantaticum «propriedade dos infanções», considera que ele é, «pelo contrário,


propriedade dos infantes, dos príncipes da família real» (AS 68).

Uma das suas razões é a origem de infantaticum em infante, e não em


infantione (1). Mas, infantione provém igualmente (e, decerto, desde a mesma época)
de infante: infantione, nova designação pessoal (uma substituição semântica), e
infantaticum uma nova relação pessoal (pessoa-propriedade, por exemplo).

Acresce que teria sido ainda preciso que Sánchez-Albornoz tivesse provado,
praticamente, que a palavra infantaticum só principiou a usar-se depois de começar-se
a chamar «infantes» aos filhos de reis. Ora isto o referido medievista o não fez e isso
não deveria ter-lhe sido possível, pois que então não deixaria de tê-lo mostrado. De
resto, não faltam boas notícias do uso da palavra em nobres, em filhos de nobres, ou
seja, não filhos dos reis (2).

Além disto, que já é muito, não parece rigoroso dizer-se que o infantaticum
fosse propriedade dos «infantes» filhos do rei, já que o que pode observar-se é tratar-
se de bens de que o rei dispõe para dar ou não dar a seus filhos, dar ou não dar a
seus irmãos, e dar, inclusivamente, a indivíduos que nada têm com a família real, ou
até a corporações religiosas (3). Propriedades da coroa, eis o que o «infantaticum»
antes parece ser.

__________

(1 ) De facto, no latim, ou no romance: infant - + aticu(m), ou infant - + ádigo =


«infantádigo». Cp. patron - + aticu(m) = patronaticu(m), «padroádigo»: lagar - + atica(m) = lagaratica(m),
«lagarádiga»; etc.

(2 ) Lembre-se: a remotíssima tradição medieva dos sete nobres chamados «infantes de


Lara» (GE XIV 694-695); este chamamento aos nobres que traziam consigo o ataúde de D. João Afonso,
senhor de Albuquerque: «estes infantes e homens bõos», Scr. 285; «a ifante dona Enês de Crasto», Scr.
286; D. Soeiro Aires de Valadares «casou com uma infante de Galiza»: Liv. Velho I das Linhagens, p. 65
(ed. Biblion); etc. O uso não era recente nos séc. XIII-XIV.

(3 ) Nos próprios exemplos alegados por Sánchez-Albornoz, isso, por vezes, se manifesta, e
muito claramente. Assim, antes de 1065, o rei doou a duas suas filhas «totum infantaticum» – e, aqui
trata-se, de facto, de infantas. Em 1065, o rei não faz doação a filhos, mas já a uma sua irmã, de «quanto
infantazgo a yen todo um reyno»; e ainda aqui temos uma infanta. Mas, em 1110, é à sé de Santiago que
é feita a doação de «totum infantaticum inter

___81___

O grande medievista espanhol chega mesmo a confundir Infantazgo próprio,


coronímico, de distrito (na forma de romance castelhana), com «infandazgo» (de
infantaticum) nome comum. Com efeito, referindo-se à infanta D. Teresa (irmã de
Afonso VII), cita, para 1181: «omnem honorem de Infantazgo (doc. S A 68). Não
detentora de um «infantazgo» geral leonês. Bastaria a palavra honor para se ver que a
referência nada, diretamente, tem com o que Sánchez-Albornoz pretende nos outros
exemplos que dá: mostrar a existência de uma instituição vigorante – esse mesmo
«infantazgo». (1) E como entender bens, mesmo que não dispersos, reservados aos
filhos dos reis «infantes», que podiam existir ou não, ser um ou poucos, hoje, amanhã
numerosos, coexistir em gerações várias, sem possibilidade de herança, etc.?

Portanto, até por isto não é aceitável que, mal ou bem derivada de infantione
aquela palavra, ela de facto, se relacione com os infanções. O que ela poderá
significar é que já constitui uma outra questão. Como a assimilação que, por outras
vias e circunstâncias, temos feito de infanzones a comites ou destes a eles, parece-
nos que igual assimilação se possa fazer ainda de infantaticum a comitatum ou deste
ao infantaticum.

Tal como, por vezes, ocorre a discriminação de comites e infanziones, também


ela deve suceder com aquelas duas palavras, em circunstâncias que sempre terão de

__________

Tamaram et Ullam», isto é, todo o «infantado» de entre Tambre e Ula. (Docs. SA 68-69). Se se tratasse
de bens dos infantes reais, poderá crer-se que o soberano assim os diminuísse arbitrariamente?

(1 ) Que se trata de um distrito galego ou norte-leonês mostram-no dois documentos de


1220, do rei Afonso IX, assinados por vários tenentes, de tenências todas nomeadas, entre os quais
«domno Alvaro Roderici tenente Infantaticum» (LD 76 e v, 76 v-77 v). Claramente, não um prócer a quem
o rei tivesse dado o «infantazgo» geral, o conjunto de todos os haveres dos infantes (dádiva, por isso,
incompreensível, se tal instituição existia na generalidade e se se mantinha – mas, neste caso, que se
não respeitava, coisa bastante para a dúvida): é o tenente da «terra» daquele nome, como dela o havia
sido a infanta D. Elvira. Não nos surpreenda uma infanta (ou senhora) como tenente de uma «terra»:
basta olhar o caso de 1241, da infanta D. Dulce – «tenente castellum Sancte Crucis infans domna
Eldonza et sub manu eius M. Velasci», seu substituto (LD 123 v).

___82___

examinar-se. Assim, numa doação régia de 1112, em que se incluem «sive homines
sive hereditates de regalengo sive de infantático sive de comitato» (doc. ES XXII 255):
em primeiro lugar, é de crer que já no lugar houvesse «ecclesiario» (esses «homines»
podem ser os colonos da catedral à qual a doação é feita, pois o não são do rei nem
de nobres, de cujos prédios se distinguem); mas, supondo que o não haveria, temos
«regalengo» e temos «comitato», exatamente como noutros documentos se exprime.
Há apenas a mais alguma coisa que, nestes, não aparece: a menção do infantaticum.
A ligação, porém, a comitatum não parece autorizar uma distinção essencial, antes
tratar-se-á de uma explicitação do comitatum no que os comites provêm dos
infanziones. A palavra comitatum englobaria, pois, em geral o infantaticum, e, se esta
palavra ocorresse e não aquela, deveríamos considerar implícito nela o comitatum.
Ora, é facto que nós vemos o rei doar o comitatum com tanta facilidade e nos mesmos
termos com que dispões do infantaticum.

Na verdade, não haveria motivo para que, na tríplice categorização predial


«regalengo», «ecclesiario» e «comitato», se não considerasse o «infantático», se,
justamente, este era o que julga Sánchez-Albornoz – as propriedades dos infantes
filhos dos reis. Bela razão para que estes não descurassem coisa que tão de perto
tocava a seus filhos e que, por outro lado, não deveria ser distraída do «regalengo»,
pois resultaria em desfalcamento das propriedades do próprio monarca. Como a
distinção em geral se não faz, temos de deduzir que ela se implícita em «comitato» – o
que quer dizer que nada tem com o sentido que contra Mayer defende Sánchez-
Albornoz (embora Mayer possa não ter também encarado justamente a questão).

O «infantatico» não é, pois, «regalengo», como até os documentos exprimem,


mas os prédios assim designados estão na posse real. A que circunstâncias, então,
esta se deverá? Achá-las seria o mesmo que descobrir as origens de um tal tipo de
possessão real, que não é, evidentemente, tipo de propriedade. Veremos adiante
como, de harmonia com essa comum circunstância, os prédios considerados
«comitatos» andam geralmente a par dos prédios regalengos, isto é, em correlação
com eles – o que desde já é muito para notar.

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Ora os reis aparecem a doar «comitatos» a entidades que não são «comites»
(tal como vimos, doavam «infantáticos» às que não eram infantes filhos de rei), como
passamos a explicar:

- Em 1120, no território limiano português, Vilulfo Ansemondes e seu filho Nuno


Vilulfes, que são, indubitavelmente nobres (1) e podiam, pois, ser «infanziones» de riba
de Lima (o que muito parecem, como vamos ver), noticiam-se adquirentes de meio
casal, e de certa «hereditas» junto àquele rio, casal esse que havia sido de «Vimara
Lubo et de gentes suas et de Fernam Conde et de infantadigo»; e o outro prédio, sito
aí no local de Vila de Frades (2), havia sido de Muna Goda et de Nuno Pelaiz et de
ipsos condes totós vel de infanzones vel de vilanos» (CMC 17).

A situação dos prédios é a mesma, como se vê do documento e de outros.


Naquelas expressões, continua a verificar-se a tríplice partição: «regalengo», trazido
por villani; «ecclesiario», porque aí possuíam vastas possessões os monges ( 3), e
«comitato». Fala-se, de facto, aí de comites, e até de um indivíduo, que não é vilão
(pois os villani são citados à parte globalmente), denotaria ter tal alcunha. Mas o que
parece é tratar-se mesmo de título (equivalente a conde Fernando ou, de qualquer
modo, devida a essa qualidade condal na estirpe), não devendo considerar-se nele
alcunha porque o seja «Lobo» em outro possessor (do qual será antes o patronímico,
traduzido).

__________

(1 ) Basta notar que Vilulfo Ansemondes é irmão do pai de Mendo Afonso, um dos grandes
de D. Afonso Henriques, com os altos cargos palatinos de dapifer e procurador real, entre 1134 e 1154
(DR 142, 155,251, etc.).
(2 ) É o local do famoso mosteiro de Refojos do Lima: cfr. o nosso art. GE XXIV 727-728.

(3 ) Chega o topónimo «Villa de Fratres» do lugar, com outras designações locais, como
«agra de monachos» (CMC 18, 19, 21), e a existência do mosteiro assim expressa: «don Sancio qui erat
senior de ipso monasterio» (CMC 14). O seu título de «don» lembra, imediatamente, o dos «infanziones
de Spelia», por exemplo: «domno Gisando et don Kintila et don Munio» e outros (doc. SA 73). Mais,
ainda: perto daqui, fica Brandara, freguesia que estes documentos revelam então com duas
zonas:Brandara de Secas» (sic, má lição acaso de s~uis ou s~uos [ o ~por cima do u, em ambos os
casos] 0 servos) e «Brandara dos Condes»: «in octeiro de Brandara de illos condes», determinativo talvez
não toponimizado (como o outro), pois não perseverou: CMC 13 e 22.

___84___

Notar-se-á que, de seguida a esse tratamento individual de «conde», se


englobam, com a respetiva pessoa, os bens de «infantádigo», o infantaticum; e
que esta mesma circunstância se repete a seguir, ao aludir-se às possessões
de «ipsos condes todos vel de infanzones». Não deve restar dúvida, só por
isso, (que as outras circunstâncias corroboram), de que o «infantádigo» do
primeiro passo e os «infanzones» do segundo se correspondem (infanções e
não infantes reais) e de que a citação dos «infanzones» após a dos «condes«
é uma explicitação de uma qualidade social dentro destes: infanções que se
titulavam condes e outros sem tal título, mas sem diferença social.
Mas há mais ainda. Junto deste prédio, um outro (e vasto, pelo que
ocorre posteriormente dele) era da categoria chamada comitatum e, por isso
mesmo, designado «condado» (não toponimicamente, o que é relevante, mas
qualitativamente): «in villa de Frates octava de illo condado des illa triigal adta
illa agra de monachos» (CMC 19). Junto deste «condado», mas fora dos seus
limites, obtiveram os mesmos adquirentes um outro prédio, «quomodo sparte
per illo condado (CMC 21).
Haver, assim, um prédio categorizado comitatum( já de antiguidade, do
séc. XI para o XII) aí onde havia comites proprietários, e, ao mesmo tempo,
haver aí infantaticum, não se citando o comitatum quando se refere a este, e
vice-versa, podem muito bem significar que eles deveriam ser o mesmo, tendo
infantaticum a função de mero explicitador de comitatum, ou este a de
explicitador de comitatum, ou este a de explicitador daquele.
Pois bem: desse «condado» de Refojos (1), sendo acertada a nossa
exposta doutrina acerca de infantádigo, deveria a coroa ou o rei dispor, como
fazia a este, a seu talante. E assim, com efeito, é: em 1128, ainda antes da
batalha de S. Mamede (portanto, em plena revolta portugalense contra D.
Teresa), D. Afonso Henriques, que se apodera de Portugal (ao norte do
Douro), doa, em

__________

(1 ) O Prof. Rui de Azevedo, seguindo na geral esteira, isto é, julgando que este
«condado» era território de autoridade de um conde ou razão de título nobiliárquico (quando o
que é verdade é o contrário: o prédio é que recebeu do comes, essa designação, mas não
nobiliárquica), eleva este D. Mendo Afonso à categoria de «conde», em mando e nobiliarquia:
DR I pp. CIX-CXX.

___85___

prémio de serviços, a um desses «condes» (que não tem tal título, mas que é
da estirpe dos que com ele aparecem na localidade, de que é natural), isto é, a
um desses «infanzones», Mendo Afonso, sobrinho do referido adquirente
Vilulfo Ansemondes (1), «uno condado qui est in Refoios pro bono servitio quod
Mihi facis et fácies (DR 88).
Vê-se que D. Afonso Henriques, apoderando-se do Portugal primitivo
(Minho-Douro), com o apoio deste e outros próceres, tomara, naturalmente,
para si, as propriedades de seus pais, ou da coroa –, e isto vem também
concordar em que o comitatum entrava nesses bens reais e que o infantaticum
era bens reais também.
O agraciado de 1128, a quem o rei veio a coutar Refojos para o seu
mosteiro (CMC 28), doou a este «totum nostrum condadum quod est in eodem
loco de Refloribus cum suo palatio sicut illum Mihi dedit pro meo servitio inclitus
infans domnus Alfonsus» (CMC 29). No «condado«, havia, pois, um paço, que
não deve ter sido feito por Mendo Afonso, pois aquelas expressões parecem
indicar que ele se envolvera já na doação que àquele prócer fora feita em
1128. Isto mostra ainda que o comitatum, como prédio, podia ser residência de
um comes, enquanto este usufruísse o referido comitatum – do que teremos de
ver adiante outros exemplos.
De facto, como se vê, a posse do comitatum pelo comes não era senão
uma tenência (não administrativa): ele tenebat mas não habebat; o habere era
do rei, e, quando estava em poder deste, este é que tenebat et habebat. O
mesmo com o infantaticum.
- Em 1258, em riba de Minho portuguesa, existiam, em certa freguesia,
dois casais do rei: «uno casal in vale que chamam Infantadigo», e «no
reguengo de so o palácio uno casal» (2).
__________

(1 ) É primo e co-irmão de Nuno Vilulfes e de seus irmãos Mendo e Diogo, aos


quais D. Afonso Henriques, em 1130, «pro optimo servitio quod Mihi fecisti et pro amore mei
cordis» doa os seus bens (portanto «regalengo»), em Refojos: CMC 20. Como se vê, além de
patriotas, trata-se de poderosos: raça bem de «infanziones» (ou de comites).

(2 ) Inq. 3742 (Sago, concelho de Monção). O que dizemos no nosso art. GE XXVI
606, deve ser corrigido à luz disto. Citemos o topónimo «Vale de Infante» (Monteiras, c. Castro
Daire, localidade toda reguenga).

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Aqui temos dois dos termos do trinómio «regalendo-infantádigo (ou


condado)-igrejário». Não se exprime este último talvez só porque a fonte que nos
informa não tratava senão do que deveria ser de direito da coroa: e até nisto está uma
indicação mais de que tais «condados» e «infantádigos» eram bens régios.

Note-se que, como no caso do condado acima visto concretamente, também


neste concreto infantádigo, ou junto dele (no reguengo, que, para o caso, como
haveres da coroa, vale o mesmo), havia um paço que não deveria interessar muito a
infantes filhos de rei, como residências.

- E poremos já um caso meramente toponímico, que, por assim ser, revela toda
a impressividade desta circunstância, num aspeto geo-humano que já teria de esperar-
se se tal circunstância fosse, realmente, importante.

De facto e ainda na margem do Lima, a que pertence o primeiro dos exemplos


que damos, vigoram na freguesia da Facha, os topónimos Paço e Infantes, em locais
adjuntos. No segundo não há nada com infantes filhos de rei, pois estes nunca tiveram
aqui bens. Já assim não sucede com nobres – e nobres de um grau muito elevado, tal
como se necessitaria (estamo-lo vendo e encontrando) para a interpretação do nome.

Com efeito, temos aqui, no séc. XII (a época já também de esperar), o prócer
D. Soeiro Mendes, chamado «de Facha», de quem foi o paço a que se deve o
topónimo Paço, e, pela contiguidade – pelo menos – o outro, Infantes. Ora ele era de
estirpe de condes (pelo pai vinha dos deTrava, e, pela mãe, dos magnates de
Celanova), estabelecidos em Portugal e, nomeadamente, todos com bens, e até
autoridade, em riba de Lima, o que diz tudo (1).
__________

(1 ) O avô paterno de D. Soeiro Mendes foi o conde Rodrigo Peres de Trava (irmão do
conde de Trava amante da nossa rainha D. Teresa), ao qual D. Afonso Henriques, tendo ele vindo a servi-
lo, doou importantes bens cerca do Lima, não longe da Facha (1132, D R 128). Natural que ele
possuísse, pois, bens naquele mesmo lugar, onde teve o solar seu neto. Mas o mesmo se diga da estirpe
de sua mãe, por ser neto materno do conde Gomes Nunes, cujos irmãos, conde Afonso Nunes, Sancho
Nunes e D. Elvira Nunes, tiveram por aqui grandes haveres, e o segundo até autoridade (uma nova
coincidência): L F 464, CM C 1 e 3. A esposa de D. Soeiro Mendes foi a « condessa D. Elvira Gonçalves
(Scr. 292): o marido

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O topónimo Infantes, portanto, só poderá designar esses altos nobres, e vale


então o mesmo que em Infantádigo – cujo sentido, como temos visto, e, ainda aqui, se
revela na categoria condal desses «infantes» (não filhos de rei), é o mesmo de
Condado.

Mas que origem terão tido, de facto, estes «comitatos», incluídos tais
«infantáticos», como propriedades rústico-urbanas?
A palavra «comitatum» (ou comitatus) teve vários sentidos, mas por muito
afastada disso que a aceção pareça, é sempre inegável uma relação com comites: o
território administrado por um comes (uma circunscrição administrativa), que é o seu
sentido mais próprio e aquele com que nos tem aparecido ( 1); um tributo de caça e
pesca, o mesmo que «condaria» (2); e aquele de que temos dado agora exemplos. Por
não conhecer este último sentido foi que um grande historiador, referindo-se a um
documento de 1374, no qual se citam os «condados» e os «reguengos» que ainda
havia então no termo de Lisboa, declarou que «a significação que tinha a palavra
«condados» é para nós muito obscura» (GB IX 405).
No séc. XII-XIII, temos tal palavra como topónimo, prova de quanto o seu uso
já então era remoto (3). Sobre

__________
não teve tal título, ou assim parece; mas ela própria o usava (LDT 7 v), e só pelo casamento poderemos
explicar-lho, pois que, embora de muito elevada nobreza (era neta materna do ínclito Egas Moniz, e filha
do poderoso D. Gonçalo de Sousa), não o tinha de estirpe. Poderíamos, pois, chamar-lhe «infanta», como
damas não reais se disseram – e é crível que o seu título de condessa tenha precisamente esse sentido
«infantal».
(1 ) Séc. X: «tenent ipsum comitatum», doc. HS II 83; «ipso comitatum imperabat», DC 311
(séc. XI); etc.
(2 ) «condado de monte et non de rivulo», 1182, Leg. 428; «venato interfecerent in ipso
condato» (designação do encargo de montaria do lugar e não a deste), 1258, Inq. 123; «de montaria non
dent ulla condaria ad alcaide neque de caro neque de pelle», 1111, Leg. 357.
(3 ) Um sítio que «chamam Condado», onde havia um agro demarcado reguengo: 1258,
2
Inq. 369 (dois termos, pois, do trinómio – podendo não se ter citado o outro simplesmente por não
interessar às inquirições). Uma «villa» reguenga chamada Condado, encartada por D. Afonso III, Leg.,
ano 1258 – com outros dois termos do trinómio, provando que o condado, afinal, ainda quando não
reguengo simples, era da coroa.
___88___

todas interessante, uma ocorrência toponímica que ainda em 1258 oferece


particularidades que transmitem ao código predial do «comitato» tudo o que,
predialmente, encontrámos para «infantático»: «o condado de Villa Nova com sas
pertenças foi regeengo». E correspondia a uma vasta «quintãa» (prédio rural com
residência paçã), a ele se ligando por certo, diretamente, o nome de um conde que foi
uma das figuras mais notáveis (e algo enigmáticas, pelo seu comportamento político
relativamente a Portugal, seu país) nos inícios nacionais (1).
Temos até casos em que, não se empregando a palavra «condado», se usa
expressão equivalente, dizendo-se ter sido «de condes» o prédio, quando havia muito
haviam desaparecido os condes. Um deles é relativo a uma alta figura do nosso séc.
IX-X (2).
O paço nos «condados» prediais é de aparecimento constante, e corresponde,
pois, a um pormenor não pouco elucidativo.

__________
(1 ) Trata-se do conde Gomes Nunes, que tinha aqui (Folhadela, concelho de Vila Real)
muitos bens de seus antepassados da estirpe materna (sousã), entre os quais a igreja: «foi do conde D.
Gomez», Inq. 12271. Sobre este «condado», ver Inq. 11801, 12061, 12302, etc., onde ressaltam as
circunstâncias dos casos já examinados, com uma regularidade notável.
(2 ) Em Monte Córdova (concelho de Santo Tirso), que se incluía parte no couto de Ferreira
e a outra parte no próprio «couto de Monte Córdova», referem-se em 1258, sem outras elucidações, bens
que haviam sido «de comitibus», dizendo-se ainda aí, acerca de metade de certo lugar, que «est
comitum»; e outros igualmente aí «sunt comitum»: Inq. 5412 (Não deve ligar-se ao presente gramatical,
porque é frequente, nestes monumentos, ele usar-se para pessoas desaparecidas, havia muitos
decénios: por exemplo, para o conde D. Mendo, falecido em fins do séc. XII, «fuir et est» certo lugar: Inq.
10802. Ora, se as inquirições se ocupam de prédios de um couto, é que eles não eram dos senhores
deste, mas do rei – e aqui temos a equivalência de «comitum» a «comitatum». E o facto prova-se aqui
mesmo: a localidade era do antigo «comitatum» de Refojos (de Riba de Ave ou de Leça), «terra» que, de
acordo com a nossa doutrina acerca da origem das nossas circunscrições altimedievas, corresponde a
uma mandatio anterior; ora, do séc. IX para o X, tinha este comitatum ou commissum o famoso conde
portugalense Guterre Mendes (doc. Em Sáez, Los Ascendientes de San Rosendo, p. 34) – e aqui mesmo
viveu sua mulher, a condessa de Portugal, Ilduara I. São eles os pais de S. Rosendo, nascido, cerca
daqui, onde «comites palatium» suum habebant» («Sancti Rudesindi Vitae et Miracula», Scr. 34): ver o
nosso AF1 103-109.
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Uma das principais circunscrições onde a revolta de 1127-1128 pela libertação


portugalense mais se acendeu foi a de Neiva (entre o Cávado e o Lima, no litoral) ( 1).
Com este antigo «comitatum» dão-se duas circunstâncias notáveis: uma, aparecer
com um comes seu (2); outra, os numerosos casos de prédios não só chamados mas
ainda considerados «condados», ou no regime predial de condados. O facto deve
estar em relação (3), não consideramos inútil refazê-la e ampliá-la.:
Numa certa freguesia dessa «terra»:
- «et destas leiras (nove) sunt ende as meyas regaengas del rey et as meyas
condado» (4).
Noutra freguesia da mesma circunscrição:
- «et desta erdade est a meya condada et a meya regaenga», e certas leiras
(doze) consideram-se ou funcionam como «condado et regaengo», sendo também que
certo cortinhal «est meyo condado et meyo regaengo».
- De outro local aí, dizem as testemunhas de 1258 que nele «ha condado et
regaengo et as cortinas darredor do paacio cum seu chantado (sum) condado et
regaengo» (5).
- De certa ermida, dá-se a quinta dos frutos «do que lavora a condado et a
regaengo».
A função predial do «condado» é tal que chegam assim a construir-se
sintaticamente expressões adverbiais («lavrar a condado») ou adjetivais («herdade
condada»).
Na «terra» de São Martinho, da outra banda do Lima, temos, em certa
freguesia:
- «partem o pam (e o sal) et leva o mayordomo del rey as V. partes o condado
as III. Partes: et… este con-
__________
(1 ) Ver o nosso AF3 210-225, nomeadamente pp. 218-219, pelo desacordo com que hoje
interpretamos o seu «comes», etc.
(2 ) DR 86. AF3 203-210.
(3 ) Ponte de Lima na Alta Idade Média, pp. 30-33.
4
() Inq. 3041.
(5 ) Inq. 3051 e 3052.
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dado que parte este davandito pam et sal cum el rey ouve nome el conde Donãzão»;
além disso, «el rey pode ir à meyadade de toda a vila (rústica) cum condados se
quiser» (1), isto é, a coroa pode receber os réditos de metade da «villa», entre
reguengos e condados. Vê-se que os prédios desta categoria eram aí vários – e ainda
hoje há na freguesia um sítio que se chama o Condado e que corresponde a um
prédio desses.
Na antiga «terra» de Bouro (já subdividida):
- «de isto davandito levam condes quarta» (2). Trata-se de três prédios de
categoria contraposta à de outros que são «de el rey quites», ou, portanto, reguengos.
Ser «de condes» não significa mais que o regime de condado, sobrevivência de uma
situação remota – até porque entre nós não havia nesse tempo condes, na aceção
política e administrativa, e, portanto, com repercussões de natureza fiscal.
O facto era trivial no séc. XIII, embora nem sempre se cite a função condal dos
prédios, isto é, se lhes não dê o nome de «condados» ( 3). De resto, a circunstância,
que logo se vê ser antiquíssima, documenta-se entre nós antes da Nacionalidade: em
1077, com efeito, refere-se uma «hereditate de illo condato» (DC 549); e, noutro, lê-se
«in illa de comitato» (LF 268), isto é, em certa herdade de ou do condado, também em
tempo em que já não havia tais comites entre nós.

Depois de toda esta atenta investigação, se ainda não reunimos os dados para
concluir das origens (e até da
__________
(1 ) Inq. 3321. Trata-se da Meadela (concelho de Viana do Castelo). Em 1258, como se vê,
aí se recordava ainda o nome de um dos comites, Donaciano (n. pessoal que no séc. XI aparece na forma
Donazano, 1040, DC 309, de que «Donazão» é uma evolução romance).
(2 ) Inq. 4401.
3
() Por exemplo, precisamente em frente da Meadela, a que respeita o conde Donaciano,
temos, em Darque, em 1258, a citação análoga de outro conde possuidor de reguengos: «el conde don
Monio», Inq. 3151. A circunstância desta recordação onomástica é tal, pelo menos, que só podemos
deduzir um caso igual ao da Meadela, embora os jurados não tivessem usado aí a designação
«condado». Note-se, porém, a categorização fiscal (reguenga).
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natureza) destes prédios, chamados «condados» (e, às vezes, «infantádigos»), talvez


as não hajamos nunca – e então parece-nos poder pôr-se apenas uma dupla hipótese:
a) Prédios reservados pelos reis, aos quais eles pertenciam, à retribuição ou
remuneração da função pública dos comites (ou infanzones) constituindo rendimentos
fixos deles, dado que outros, inerentes às próprias funções (multas criminais, etc.),
eram precários ou incertos;
b) Ou prédios com origem nas presúrias, conduzidas pelos «forciores de
stirpe», os comites presores capitais (1), para os reis, mas reservando-se uma parte do
apreendido à sua função de mandantes das «terras». Prédios, pois, que eles
passariam a tenere, enquanto «tenebant» as circunscrições (delas «tenentes», mas
não a habere, isto é, dos quais teriam o domínio útil, enquanto funcionários, mas não o
direto, que estaria na coroa (habere).
A explicação é, afinal, única, e os seus dois aspetos podem encarar-se um
como definindo a origem, e o outro, a essência.
Um dos particulares mais melindrosos desta dissertação é relembrar mais
expressamente, agora, que não parece haver razão válida para negar ao infantaticum
a origem e a essência do comitatum, ou, afinal, a sinonímia. Quer dizer, pôr de parte a
opinião de Sánchez-Albornoz de que o infantaticum era constituído pelos bens dos
infantes filhos dos reis.
Não é aqui a ocasião de discutir se esses infantes, vivendo com seus pais,
tinham casa própria e, passando a tê-la, ou ao deixarem a vida comum, lhes servia ou
__________
(1 ) Não podemos aqui alongar-nos com o caráter das presúrias (que muito tem ocupado
dos nossos anteriores estudos). Os presores capitais atuavam nos «comissos» que administram, ou que
vêm administrar. Muitas expressões documentais mostram este fito da rapina (que, em geral, era), com o
duplo caráter político-administrativo-económico e pessoal: em 873, a «ordinatio» de Afonso III (docs. HS II
46) aos «comitibus terre ut popularent omnes terras et provincia(s) portugalenses sicut dederunt
preconem, et popularunt eas et diviserunt eas multorum filii bonorum in presoria», sendo conde de
Portugal Vímara Peres (LF 16). Dos filii bonorum, falaremos noutra dissertação: ligado a eles, basta
evocar aqui um caso típico daquela mesma região (Neiva e São Martinho) onde ocorreram tantos casos
de condados, já referidos: «venit dux… cum aliis ducibus qui de suo genere erant ad prendendem terram»
(doc. in Arq. Vian., p.7).

___92___

não de muito possuírem bens que os pais, tal como lhos davam, podiam também tirar-
lhes, bens que, pelo menos, o mais que poderiam ser eram vitalícios, não hereditários,
um préstamo ou atondo – em suma: um benefício, sem feudalidade. O que se vê,
como já notámos, é doarem os reis «infantáticos» não a filhos seus, mas a irmãos, e, o
que é mais, até a entidades que nada tinham com a família real.

Como fixadora geográfica de uma categoria pessoal, continuaremos a explorar


a toponímia.
a) Cavaleiros (milites):
No lugar de Cavaleiros da f. de Lamoso (c. Paços de Ferreira), havia uma
honor ou «dominium» (1); no de Cavaleiros da f. de Outeiro Maior (c. Vila do Conde),
pessoas de condição isenta no séc. XI, e até uma delas um conde ( 2); no de
Cavaleiros da f. de Rouças (c. Melgaço), «villa» já assim denominada antes da
Nacionalidade, pessoas nobres, entre as quais uma condessa (3). Portanto, o
comitatum pessoal sempre aqui sempre aqui assimilado a um pessoal infantaticum,
ou, indiscriminadamente (na designação «cavaleiros», milites), infantiones e comites.
O topónimo Macedo de Cavaleiros oferece um interesse especial. Ainda em
1260 apenas Macedo, o seu determinativo «de Cavaleiros» começou por então, com
os «milites de Chacim». Um deles, Nuno Martins, cavaleiro tornado, após a guerra
civil, rico-homem e tenente das «terras» brigantinas (4), locupletou-se com o vilar de
Macedo, reguengo (não, pois, ainda de cavaleiros (5). Era ele já rico-homem quando o
chamamento «de Cavaleiros» começava em Macedo – devido assim a ele e sua
estirpe: logo, sinonimizados, pelo menos num consenso popular, divites homines e
comites, milites e infantiones.
__________
(1 ) Inq. 5601.
(2 ) Scr.190 («conde dom Pero Paaez de Bagunte»). DC 265, 272, etc. (Cfr. o nosso art. GE
XVIII 763-764).
(3 ) Fernando Nunes, a «comitissa domna Fronili», «don Egas Altardit»: LD 11 e v, 11 v 28
v-29; herdeiros de seus pais e avós aí.
(4 ) Doc. ML4 259. Casara na alta «stirpe» bragançana (LV 400, etc.).
(5 ) Inq. 13151.
___93___

b) Condes (comites):
No caso de Condes da f. de Garfe (c. Póvoa de Lanhoso), temos os milites aos
quais a coroa «dedit totum» aqui, ou seja, «illis predictis militibus» (1), que eram
«ricos-homens de alto sangue» (2). Eles, pois, os «condes» do topónimo, num
consenso popular (é o povo o criador da toponímia) que reflete a realidade prática
social.
No caso de Condessa na f. de Lusim (c. Penafiel), temos, no séc. XIII, a velha
honra de Condessa. Esta é, certamente, no séc. X, a «comitissa domna Flamula» que
possuía «Lusidi» (DC 81, 223 e 76 (3), o que diz tudo.
c) Infanções (infantiones):
O respeitante a Infantas (Vila Nova), c. de Guimarães, será tratado na
aplicação ao território vimaranense.
O caso de Infantas na f. de Figueiró (c. de Amarante), ocorre certamente
«propter honorem militumqui morantur ibi» (4).
O de Parada de Infanções (c. de Bragança) apresenta-nos, indubitavelmente,
como tais infanzones, os próceres da alta «stirpe» dos Bragançãos, detentora secular
de honor «condal» ou rico-homia bragançana desde pelo menos o séc. XI (LF 400).
Ora o chamamento «de Infanções» já não era aqui novo nos meados do séc. XIII. Foi
mesmo desde então que ele declinou (5). Enfim e como os demais casos, numa
sinonímia circunstancial evidente, os conceitos de divites homines e comites, de
milites e infantiones.
__________
(1 ) Inq. 7141.
(2 ) Scr. 320; DR 112. O topónimo Condes provém de expressões usuais como «levam
condes quarta» ou a de honramento «propter comites» (Inq. 4401 e 6651, quando já não havia condes
alguns). Se esta circunstância se não desse, poderíamos considerar nisto a estirpe de Lanhoso
(Godinhos & Fafiãos, Inq. 7161 & 4992), detentora da rico-homia: 1110, «Fafila Luzi continens Laginoso»»
(DR 18), trisavó da esposa de João Tenro (Scr. 200) que, em 1290, possuía, por ela, a quintã de
Condessa (Corp. Codic., I, 291).
(3 ) Inq. 6082.
(4 ) De facto, «filli et nepotes de domno Petro Fernandi (D. Pedro Fernandes de Bragança,
tenente destas terras) quitarunt se de quanto directo habebant in villa de Parada de Infanzonibus» (exceto
três casais): Inq. 1304.
___94___

Exemplificação no território «vimaranense»:

Suposemos já que uma das origens (senão mesmo a única) dos prédios da
coroa chamados «condados» e «infantádigos» (na verdade, essencialmente não
diferentes) devia ter sido a presúria, como também a dos «regaengos» e a dos
«igrejários» quando com uma daquelas espécies (aliás uma só, repetimos) aparecem
trinomicamente. Na presúria, de facto, de um local, ou, genericamente, de uma «villa»,
havia divisão com o rei, e este cedia ou não cedia a sua parte a um conde –
naturalmente, então, o conde presor, mas, depois, qualquer outro ( 1). Devemos,
todavia, entender que o conde presor tomara já a sua parte, com independência
daquela concessão, facto este, de resto, simplesmente eventual.
Tem-se divulgdo muito nos últimos anos (e não temos nós sido os menos
ativos nesse sentido, embora sem os aspetos e até os exageros sob que outros o
fizeram) que em 868 «prenditus est Portugale ad Vimarini Petri», o conde Vímara,
reinando, de pouco, Afonso III, o Magno (2).
Para nós, o mais natural é que por Portugale não se entenda aqui tanto a
cidade que tinha esse nome como a província que daqyela o recebera – estendida do
Lima ao Douro. De acordo com tal extensão e ligando-se, certamente, ao referido
acontecimento, existem documentos vários relativos a presúrias locais; mas, deles,
dois são os que nesta exemplificação sobretudo nos interessam, por respeitarem, na
própria ocasião, a dois filhos daquele conde:
- Num deles, que, de facto, se reporta a cerca de 870 e pertence ao território
bracarense propriamente dito (o não diocesana), lê-se: «ad prehendendum villas sub
__________
(1 ) «ipsas villas que preserunt ibidem quintarunt illas et dederunt illa quinta ad ille rexe t ille
rex dedit ad ille rex com que venerunt ad presura» LF 22. Isto concorda com a nossa tese de «condados»
e «infantádigos» serem prédios reais.
(2 ) Chron. Laurb. – Scr. 20.
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gratia de rex domno Adefonso Maior et com corno de ipse res et per manu comite
Petrus Vimaranis» (LF 22) (1).
- No outro, do próprio ano de 870 e que se refere, precisamente, ao território
hoje vimaranense, lê-se: «presimus cum cornum et albende Adefonsus principem et
comité Lucidii Vimarani» (DC 5) (2).
Trata-se, como dissemos, de dois filhos do conde Vímara Peres. Deve notar-
se, pois, o facto de serem «stirpes» nobres (não dizemos «famílias», pois que esta
palavra tinha, então, sentido servil) que geralmente atuaram na presúria. E
compreende-se, até porque o ato era mais uma depredação do que uma apropriação
de terras sem dono ou, menos ainda, do que uma retomada de posse de bens que
dessas «stirpes» puderam ter sido (3).
Daqui resultou o engrandecimento dessas «stirpes». É uma circunstância que
levanta o véu do incrível logro, tornado ficção para a História, que a presúria foi, de um
modo geral; e esse engrandecimento tanto se deu em haveres materiais como pela
administração pública (a tenência das «terras»). Aqueles presores capitais ou chefes
eram, naturalmente, acompanhados, «servidos», de indivíduos de outras condições
sociais – geralmente ingénuos, mas, por vezes, nem mesmo o eram –, e todos deles
recebiam a capacidade de presúria (materializada nas insígnias do «corno» e do
«albende». Ora uns e outros, mesmo os não de todo livres, já se diziam «homines

__________
(1 ) Os autores (ou melhor, Pierre David, e logo, atrás dele, como de costume, os seus
discípulos confessos prof. Torcato Soares e prof. Avelino Costa) entenderam que o nome está errado
naquele documento – «Petrus Vimaraniz» em vez de «Vimara Petri», como se fosse admirável que este
pudesse ter um filho com o nome Pedro e não aparecesse, logo ao lado, na mesma ocasião e nas
mesmas condições (região vimaranense), seu filho Lucídio. Ver, a este respeito, o meu livro AF1 33-34.
(2 ) O conde Lucídio Vimaraniz é um dos principais da Galiza (Portugale incluso) nos séc.
IX-X, como consta de meus livros anteriores, sobretudo AF 3 15-16, 21, etc. É o tronco dos condes de
Portugale, cuja dinastia cessou de 1043 para 1044.
(3 ) Bastam dois exemplos, entre vários: «prehendiderunt villas sub nomine regis comites
vel forciores de stirpe» (comitis): doc. HS II 137; «venit dux cum allis ducibus qui de suo genere erant et
preserunt per illam terram villas»: doc. Arq. Vianense, p. 7. Aqui, evidentemente, dux não tem mais que a
equivalência a comes, que tantas vezes mostrámos.
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boni. E é bem de notar aqui uma classificação como que prematura, qual esta é, e que
nos deverá ocupar noutro capítulo.
O caso do conde Lúcidio importa na exemplificação vimaranense em tal e
outros pontos de vista. Um desses outros respeita à circunscrição administrativa – o
«território inter ambas Aves» (os rios Ave e Vizela – este nome significando, como se
sabe, Ave menor) (DC 31 de 926). Não tem designação particular, como ainda se
reafirma noutros documentos; e até por aqui, se muito mais, e bem peremptório, não
houvesse, se patenteia a nenhuma eminência de Vimaranes então: uma «villa» tal
como centenas delas no seu atual território e no expressivo conjunto cartografado que
deixámos noutro capítulo.
Apesar da falta de nome próprio, nem por isso aquele territorium deixava de ter
função administrativa indubitavelmente, e tal que, por uma circunstância documental
que com outros se não deu, ele nos aparece subdivivido en circunscrições menores –
os mandamentos (que talvez provenham das thiufadas visigóticas dentro dos territoria
civitatum). Quando se nota esta circunstância e se pensa na famosa doutrina do
ermamento (baseada naquela trapaça pretextual da presúria), teremos de excluir tal
tese por completo – dispensando o concurso de tantas outras circunstâncias que se
juntam no mesmo sentido. Já as versámos noutros estudos.
Podemos mesmo indiretamente provar a função do territorium inter ambas
Aves nesse tempo. É que, à sua volta, existiam outros, que são o de Braga
propriamente dito (não diocesano) e os de Vermuim, Refojos, Ferreira, Montelongo e
Lanhoso (2), e nenhum deles se
__________
(1 ) Baste este exemplo de 950: «facimus ibidem servitio (vobis – uma dona e um
presbítero) sicut facent homines bonos», DC 70.
(2 ) Mais tarde, resultando dos progressos sociais, deram-se subdivisões nas «terras»e – e
à roda destas, apareceram outras, naturalmente pequenas, como as de Felgueiras, Lousada, Vila Boa (de
Guilhofrei); e até um dos antigos «mandamentos» de entre Ave e Vizela, o de Travaçós, está já separado
em parte, como julgado, nos meados do séc. XIII (Inq.619-621), e sobretudo Freitas, englobando
freguesias dos mandamentos mais setentrionais (Inq. 669-675). Aliás, DC 420, de 1059, já acusa
alterações dos «mandamentos» de entre Ave e Vizela em relação a DC 223, de 1014.
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estendeu até por muito parcialmente que fosse, por esta mesopotâmia.
Os próprios documentos de 870 mostram a função. Os presores dizem ter
atuado «per manu» (também muito vulgar), significa a autoridade. Certo que, no caso
«vimaranense, os presores não se dizem expressamente «sub manu» do conde, mas
basta que referem o corno e o albende tanto a ele como ao rei.
Esses presores da «villa Negrelus» são Formarigo e Selemondo (DC 5). Não
há na antiga paróquia de Negrelos (desde há séculos chamada hoje Paraíso) qualquer
topónimo que os lembre – nem o houve, pois que nenhum documento o contém: o
local era chamado Negrelos, e Negrelos continuou a ser. Ao contrário da atual
freguesia – ao lado, pois, do local propriamente nomeado, de início ou no tempo da
presúria, Negrelos –, há dois sítios que poderia julgar-se exprimirem a presúria, isto é,
recordarem os nomes dos presores: Gavim, «villa» Gabini, e Sergude, «villa» Sisiguti,
respetivamente de Gabinus e de Sisigutus; mas nada disso.
A conclusão parece manifesta. Concordando com o facto de, em todos os
casos documentados que conhecemos de presúria, o local possuir um nome não
antroponímico e com esse nome ter continuado ( 1), não se estranhará não haver hoje
nem ter havido aqui nunca um topónimo Formariz (2) ou um topónimo Semonde –
«villa» Formarici ou «villa» Selemundi, respetivamente desses históricos presores
fundadores Formarigo e Selemondo: é que tais topónimos são muito mais antigos, e
nada, pois, têm com a Reconquista (3).
__________
(1 ) Bastam dois exemplos: 870 (o mesmo ano de Negrelos), «ecclesia fundata en villa
Sonosello de presores de ipsa villa», DC 6 (a «villa» era Souselo já havia muito, e Souselo ainda hoje é o
lugar); 882, «in villa quod vocitant Lauridosa… serbus Dei Muzara et Zamora… ipsa basilica fundamus…
in ipsa villa per ubi illa obtinuimus de presúria», DC 9 («villa» que era Lordosa e Lordosa continuou).
(2 ) Houve, de facto, «inter ambas Aves» uma «villa» Formarici, mas muito longe de
Negrelos (em Moreira de Cónegos).
(3 ) Gavim pode provir da época visigótica (e o topónimo Sá em Negrelos poderá reforçar
esta ideia), mas Sergude tem probabilidades de dever-se a uma «depraedatio» suévica.

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A presúria neste local não nos indica expressamente a tripartição que originou
os «condados» (ou «infantádigos» e «regaengos», além de «igrejários»; mas,
atendendo a tal precedente (sem o qual não deveríamos ousar tal interpretação, visto
que esta, se o não exigíssemos, poderia exercer-se em milhentas situações), não
parece difícil concluir que uma tal tripartição aqui houve – certamente porque, de um
modo geral, na presúria a deveria haver: os sôfregos depradadores, ou extorsores
(«forciores», um nome que também lhes ocorre – e bem lhes quadra), não eram só de
uma qualidade social.

De facto, ainda quatrocentos anos depois, a situação da propriedade, nessa


localidade de presúria, poderá revelar-nos vestígios daquela circunstância. Há aqui,
em 1258, sete casais que «sunt domine regis», isto é, próprios da coroa, dois deles
mesmo na «villa» de Negrelos (um dos locais que constituíam a freguesia) ( 1). Pelo
menos estes dois podem corresponder à parte real na presúria – ao «regalengum».
Existem também então na freguesia sete ou oito casais afossadeirados, o que revela o
serviço da «anúduva» primitivo (e de agora, quando necessário), serviço de início tão
típico dos prédios de infanções e cumprido por estes mesmos e seus acostadiços ou
súbditos; e não será ousadia entrever em alguns deles, de preferência os que deviam
situar-se mesmo na «villa» de Negrelos, o «infantaticum» (ou «comitatum»), visto que,
como provámos, estes prédios, embora não reguengos simples, eram também da
coroa. O facto de se não chamarem já assim ou de não terem já tal função nada
contraria.

Falta o «ecclesiarium»: mas este é mesmo o mais evidente do documento, que


respeita a fundação, pelos presores Formarigo e sua mulher Gúndilo (2) e Selemondo
__________

(1 ) Inq.7131. Deve notar-se que a paróquia (ou freguesia) veio a ser constituída por lugares
vários ou várias «villas», recebendo, naturalmente, o nome que a igreja tinha e que era, como sempre, o
do lugar onde ela se edificara: Negrelos (ou, em designação plena, S. Miguel de Negrelos – hagionímica e
toponímica como sempre, em regra). Esta circunstância tão simples e geral é, muitas vezes, esquecida
com grande prejuízo da apreciação histórica das circunstâncias.

(2 ) A propósito do nome da esposa de Formarigo, devemos lembrar que o documento


escreve Gundila, mas por erro (até

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e sua mulher Astragúndia, da igreja de S. Miguel na «villa» de Negrelos, «villa» que


eles dizem ter presurado sob autoridade do conde Lucídio Vimaraniz, – e igreja que
logo dotaram convenientemente, não só com os passais canónicos, mas também (sem
nos importarem os objetos e alfaias sagradas e do culto) com bens rústicos suficientes
para o sustento dos clérigos, regulares ou seculares: «fecesemus ei (ecclesie) date et
ingenuasemus», ou seja, expressamente, «dedimus ei in circuitum ipsa ecclesia pro
sepultura corpora et pro toleradura fratrum… in circuitum et quanto nobis tribuimus»
(DC 5) (1).

Desta circunstância ainda resta, quatrocentos anos depois, a possessão de


«searas» pela igreja (as quais, de facto, podem não ter sido todas uma aquisição
posterior), e talvez o facto de, legitimamente, o padroado dela dever ser «de
herdadores e de governadores» (2), os quais poderiam, ou deveriam ser da
descendência daqueles que haviam edificado e dotado o templo no séc. IX, ainda de
esses o tivessem ingenuado.

Outra circunstância a notar é a existência, em Negrelos, de uma «quintã»


nobre (uma honra paçã), considerada em 1288 no seu privilégio «de longo tempo, com
sas searas e com sas erdades» ( 3). Não seria de estranhar tratar-se de nobres, não da
estirpe dos presores, que nada prova que o fossem, mas uma família de infanções
que, a certa altura, possuindo em atondo aqueles prédios (de «infantáticum», ou
mesmo «comitatum»), os usurpassem, – a não ter havido doação régia –,
convertendo-os em possessões próprias e neles construindo a sua casa paçã. Enfim,
e ainda de harmonia com o facto de, geralmente, em cada comitatum, ou infantaticum,
haver um paço (naturalmente real), também aqui essa
__________

porque a versão não é original): de facto, -illa é um sufixo hipocorístico masculino, sendo –ilo o feminino.
Ora, muitas vezes, escrevia-se ilu, e, como o a e o u visigóticos são muito parecidos, daí a confusão
(auxiliada, ainda aqui, por se ver no diploma tratar-se de uma senhora).

(1 ) O documento é de um grande barbarismo latino – cumpre lembrar.

(2 ) Inq. 7122, Vim. Mon. Hist., p. 157 (Inq. 215).).

(3 ) Vim. Mon. Hist., p. 356.

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circunstância não falta, pois que ainda em 1258 e depositavam tributos devidos daqui
à coroa «in ipso palatio» (1).

A crítica feita, exposta como exemplificação da nossa tese (escolhido o caso de


Paraíso, não, por certo, como o mais típico, mas por ser «vimaranense»), poderia,
pois, ser tomado ao inverso – ou seja: poderia considerar-se mesmo uma série de
elementos para a construção dessa tese. Mas não a queremos dar aqui como tal.

Com interesse também para este assunto, ocorrem no território vimaranense


alguns topónimos.

Infantas é a designação atual de uma freguesia que se chamava apenas Vila


Nova ( ). A fixação do elemento pessoal é tardia ( 3), embora viesse a ficar ele só
2

(Infantas); mas isso não basta para lhe negar antiguidade. Natural mesmo pensar-se
em Infantes (palavra, inicialmente, de dois géneros), que uma explicação erudita
feminizou (adotada na oficialização (4)). Ora houve aqui uma honra da alta «stirpe» dos
Sousãos – cujas atribuições condais ou infantais, já no sec. XI, são documentadas em
terra vimaranense e vizinhas (5). Nada mais crível que, para se distinguir da outra, Vila
Nova (de Sande), ir-se chamando «de Infantes» a esta, até que a designação se fixou.
Os infantes devem, pois, ser os Sousãos.

O topónimo Condado aparece-nos em Freitas, cerca de 1220: »hereditate de


Condado et de Geyrosa»; e em Caíde, em 1258: «monte de Condado». Um reguengo
em Freitas, e tudo da coroa em Caíde (6): de acordo, pois, com o que expusemos
acerca do comitatum.
__________
(1 ) Inq. 7132.
(2 ) 1220, Inq.12, 84, 173 e 216: 1209, doc. ML3 262; 1209, Vim. Mon. Hist. 232, 1308, Ib.
349.
(3 ) 1258, «Villa Nova Infancium», Inq.7001. Determinativo («de Infantes»), pois, esporádico.
4
() Ver o nosso art. GE XXXV, 672 e 632.
5
() Gomes Eicaz (Gomes Eichíguiz): LF 184, DC 372 e 376. É o bisavô de D. Gonçalo de
Sousa, citado aqui em Inq. 7022. O topónimo local Fonte Donega revela, concordantemente, uma terra
dominicata, como veremos.
(6 ) Vim. Mon. Hist.178, 232, e 349.
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4. A residência senhorial: A «quintã» unitária e a «quintã» dissociada;


tipos predial e geográfico do «dominicum».

Ainda que em todas as inquirições do séc. XIII, não falta a designação «quintã»
relativa às honras, ela é sobretudo frequente nas de 1288. Esse contraste, no entanto,
não pode ser atribuído às diferenças introduzidas na quantidade num espaço de trinta
anos – que, de resto, foi um período de repressão possível no número de imunidades
nobres. E tanto assim que a 2ª alçada de 1258 pode comparar-se naquele particular
às de 1288 (julgadas ou sentenciadas em 1290).
A razão do contraste numérico ou da frequência da alusão à «quintã» nobre só
pode estar no critério dos comissários régios. Em 1288, era ele, nitidamente, o ponto
de vista do honramento por categoria pessoal, qualidade nobre, mas ligado à
residência: «se em esta freguesia há casa de cavaleiro ou de dona que se defenda por
honra» – eis a pergunta sistemática, que, no caso afirmativo, tem esta resposta: «há aí
uma quintã, etc. Já em 1258 o critério era outro, ao local advinha o privilégio,
perguntando-se, pois, «quare non intrat ibi maiordomus domini regis».
De acordo com o ponto de vista definidor em 1288, vem a forma de sentença
positiva: «esteja como está, porque é filho-de-algo, e enquanto for de filho-de-algo».
Inegável, assim, a existência e o papel da «quintã» como elemento essencial da
imunidade: mas, sem dependência dessa essência, que tipo de prédio é, pois, a
«quintã»?
A ideia que ainda se liga na História à palavra é a de «quinta» na aceção atual
– uma aceção já de séculos, mas pós-medieva. Procuraremos verificar até que ponto
é isso ou não verdadeiro.
___102___

A toponímia antiga parece estar de acordo com tal sentido, dado que nela
temos Quintã(s) e não Quinta(s), a não ser em casos muito raros, modernos (1).
Sem dúvida que «quintã» provém do lat. Quintana. Cremos mesmo que foi esta
origem e aquela aceção que levaram um autor muito seguido nesta matéria a formar
um binómio quintana-quinta (esta segunda palavra por ele considerada tão antiga
como a outra na aceção predial), para entender sinónimos os dois termos:
«subunidades de meros cultivadores, como os casales» – aleganto até que assim foi
sempre, e ainda depois da «desorganização das «villas» (2).
A definição «subunidades de meros cultivadores» é vazia de qualquer
substância, e meramente literária: por si mesma, nada define; nem exprime a
diferença que, nesse caso, deveria haver de uma designação para as outras
(quintana, quinta, casale). Acresce também, contra uma tal assimilação, o facto de na
toponímia termos representados abundantemente «quintã» e «casal», mas não
«quinta», o que não sucederia se nesta houvesse antiguidade histórica. Isto, por sua
vez, concorda, em absoluto, com a falta da designação predial «quinta» nos nossos
documentos antigos, até ao final (séc. XIII-XIV) da época que a este estudo interessa
(3). O contrário se dá com «quintã» – ou, mais expressivamente ainda, com quintana,
pois que as formas toponímicas atuais, Quintã e Quintela, aparecem sempre, nessa
época, nas formas que revelam uma origem já então remota Quintãa e Quintãella (e
jamais, pois, Quinta e Quintella) (4).
__________
(1 ) Alguns deles ilusórios, como os topónimos complexos Quinta Donega, Quintadula,
Quintadona, etc., primitivamente Quinta(n)a Do(m)nega, Quinta(n)a de Ura, Quinta(n)a de Do(m)na:
houve no conjunto uma subordinação da tónica do primeiro substantivo à do segundo. (Pc. Paço de
Sousa, Paços de Brandão, ant. Paaçôo de Sousa, Paaçoo de Brandom, etc.).
(2 ) A. Sampaio, As Villas do Norte de Portugal, p. 61.
3
() Os exemplos de sempre «quintaã» abundam ainda no séc. XV: 1422, «acima da
quintaa de Lopo Stevez» (Alvalade), Chart. Univ. Port. III nº 779; 1425, «esta quintãa que chamam de
Pero dos Paaços», TT Sé de Lam., nº 109.
(4 ) Na toponímia, temos Quinta(s) numeral, como Quarta(s), Terça(s).
___103___

A palavra «quinta», que raramente nos surge, tem sempre um sentido


fracionário (1) – bem como o seu frequentativo quintar (2).
Sendo quintana um derivado do fracionário lat. Quinta, evidente que tal palavra
teria de designar, primitivamente, uma fração de prédio – digamos, então, de uma villa
romana (não de «villa» da Reconquista, que é aquela que aqui poderia interessar-nos,
na antecedência imediata à «quintãa» nobre). Mas qual o sentido dessa fração? Se as
leis leonesas de 1020, como é de crer, não são novidade, ou, menos ainda, criação de
ocasião, a interpretação que demos ao estabelecimento de residência (ou de
povoamento) «usque in IIIª villa» poderá adotar-se aqui, com a simples diferença no
numeral. Quer dizer, se quintana designaria na origem um prédio correspondente à
quinta de uma «villa», mais tarde passaria a significar a fração de prédio máxima a
ocupar residencialmente: a habitação e uma área adjunta, geralmente distinta do
restante rústico do prédio (prédio chamado «villa»), a qual área se destinaria a outras
edificações necessárias a um estabelecimento agro-pecuário (celeiro, adega, curral,
etc.) e a um pomar ou horto – ou «solare et ortum», como se l^nas referidas leis,
embora em relação a juniores (mas vendedores a nobiles).
A interpretação que na investigação que segue encontramos para o tipo predial
que foi a «quintã» nobre (ou mesmo a não nobre contemporânea) nada deve a esta
ideia – não foi influenciada por ela. Independentes tais interpretações uma da outra,
cada uma delas resultou
__________
(1 ) 933, «nostra portione de quintana de Teuvili que est in villa», a qual porção é «in ipsa
(septima) quinta de suos pumares, etc. (DC 37).
(2 ) 1025, «et ipsas villas que preserunt quintarunt illas et dederunt illa Vª ad ille rex dedit ad
ille comite cum que venerunt ad presura», LF 22 (referente ao século IX-X). É rara, mas aparece, por
vezes (sendo mais comum a terça), de facto, uma tal fração régia: 1258, «a quinta parte de Villa da
Cigarrosa era de el rey», Inq.1230; «quinta de seara… erat regalenga et vidit illam partire pro ad regem»
Inq. 1371; etc.
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de factos e documentação especiais – de modo que a convergência de sentido


parece-nos ser, em absoluto, isenta de reciprocidades eurísticas que as desvalorizem.
Neste preliminar da nossa investigação, ainda interessam fundamentalmente
outras noções, como a de «quintã» no sentido atual, a de «quintal» de hoje, e a dos
antigos «eido» e «eixido».
A palavra «quintã» subsiste na atualidade em condições que hão-de,
forçosamente, manter caraterísticas da «quintã» medieva e que não é possível deixar
de ter em conta no seguimento do nosso trabalho. Assim se designa hoje ainda um
pátio ou «quinteiro», adjacente à morada, e geralmente cercado (pela casa e seus
apêndices urbanos e por muros). Às vezes, ela não passa de um recinto de poucos
metros quadrados, destinado a espalhar matos para estrume e onde durante algumas
horas se arejam os animais estabulados.
Esta quintã ainda é, em regra, a entrada para a casa (e, por isso mesmo,
também saída), embora não, evidentemente, a entrada da casa: é o «eido» desta
(dando-nos a compreender o que era outrora a chamada «porta da quintã») e, por
isso, por fim, inteiramente a palavra «eido» (1).
A aceção de «quintal» é hoje a de prédio adjacente à casa (não, propriamente,
uma quinta pequena, embora, dentro de certas dimensões, pudesse vir a considerar-
se como tal), prédio esse destinado a policultura de subsistência: mas também se
designa assim um recinto análogo, na situação e no tipo, à «quintã» definida, embora,
pois, com a utilização diferente desta e que até pode não ser agrícola. A palavra
«quintal» provém de quintana,
__________
(1 ) Lat. Aditu- »eido», a entrada; lat. exitu- «eixido», a saída. Mais tarde, estes vocábulos
aplicaram-se a casos análogos, como ampos cercados e até povoações (o «eido» ou o «eixido» de uma
«villa» por exemplo: Inq. 3292), o que originou os numerosos casos toponímicos de Eido, com seus
derivados e flexões, e de Enxido. Nestes casos, nada havia de relativo a campos fechados («chouso» lat.
clausu- ) e menos ainda a casas cercadas.
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mas seria absurdo ver na derivação (suf. al) a expressão de um conjunto, um sentido
coletivo: pelo contrário, um simples apêndice de quintana, o qual deve ser do tipo
definido – horto, pomar, jardim (1).
Postos estes preliminares, alinhemos algumas das mais remotas alusões a
quintanas nossas:
- 933: «nostra portione de quintana de Teuvili que est in villa… ipsos suos
pumares cum casas et lagar petrineo terras» (DC 37).
- 1045: «villa… cum sua quintana et suas terras et wuas coperturas et suo
plantado et cum sua agua» (DC 339).
- 1058: «quintana ubi parentes nostros avitaverunt domus avitationis» (DC 409)
2
( ).
- 1106: «illa quintana nova cum suo casale» (DP 230).
Em todos estes exemplos, exceto um, emprega-se o pronome «seu», o que
indica a diferença entre a «quinta» e as «terras», o «plantado», o «casal»: estes não
são ela – são dela. Precisamente o caso de 1058 não utiliza o pronome: é que de
imediato se cita o essencial da quintana – a domus habitationis. Vejamos, pois, melhor
estes casos.
Cremos que em razão destas e similares descrições se adotou a opinião de
que a quintana era uma subdivisão de «villa» «provida de casas de habitação, água,
terra lavrada, pomares, vinhas, soutos» – ou seja em tudo, a «quinta» de hoje (3).
Devemos, em primeiro lugar, ter em vista de que «villa» se haverá de
considerar fração a quintana: estamos na Reconquista e a «villa» desta época nada
tem com a villa romana fundiária: é uma simples área de dimensões
_________
(1 ) O coletivo seria tão absurdo em «quintal» como no antigo «cortinhal» (derivado mas
ainda o mesmo que «cortinha»): Inq. 3812. A palavra «quintal» já se usava, como seria de esperar, antes
do séc. XII: 1106, «in illo quintanale de Fagildo», DP 219.
(2 ) O texto, respeitante, neste passo, a uma única «villa» (depois dele é que se trata de
bens noutras), contém imediatamente a domus habitationis: «in pumares in saltos in pomiferis», etc.,
mostrando pela própria preposição in, a distinção entre a «quintana» e estes prédios (e, nestes, a posse
de apenas parte).
(3 ) Interpretação do caso de 1045 por Leite de Vasconcelos, Etnog. Port. II, p. 278.
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muito variáveis, de carater demo-agrário, sem qualquer unidade, ainda quando


conserva os limites anteriores à conquista árabe (e sem, mesmo assim, podermos
asseverar que a correspondência se faz numa villa romana de preferência a uma
thiufa visigótica).
O caso de 933 é o de uma quintana «in villa», uma «villa» que, portanto,
poderia conter mais; mas o caso de 1045 já é outro, pois é certo se refere uma «villa»,
esta, porém, «cum sua quintana», que uma interpretação despreconcebida indica ser
única na «villa» (por efeito do possessivo «sua»). A conclusão a que mais longe
poderemos ir por aqui é a de que a quintana seria um acidente predial na «villa», sem
relação forçosa com um fracionamento definido desta.
Mais indica ainda o caso de 1045: as «terras», as «cooperturas», o «plantado»
e a «água» estão relacionadas com a «villa» pelo possessivo, tal como a quintana.
Logo, esta não são as «terras», nem as «coberturas», nem o «plantado»: ela é um
acidente da «villa», como são estes. E desde já a sua espécie nem parece difícil de
descobrir: o prédio urbano, a casa de habitação, que de outro modo faltaria
inexplicavelmente na descrição, nas menções. De facto, as «coberturas» não serão,
por força, ou não o devem ser, habitações, mas quaisquer edifícios cobertos
necessários (celeiro, adega, curral, que noutros documentos se citam mesmo
frequentemente).
O caso de 1058 confirma aquela espécie e função, pela sintaxe, um aposto:
«domus habitationis», a casa de morada. E no de 1106 vinca-se bem a diferença entre
quintana e casale dela: este não é ela, pertence a ela – é «o seu casal» (1).
Igualmente, o caso de 933 exprime no possessivo «suos» a diferença entre a
quintana (que havia sido de uma
__________
(1 ) Este caso de 1106 lembra a «quintana-casale» que uma vez por outra se cita nas
inquirições de 1258: «due quintane casalia» ou «VI. quintane casalia»: Inq. 5511, 5542, etc. o sentido e o
conjunto são muito diferentes dos que estão em expressões como, em 1290, «VIII. cases que son da
quintãa» e «dous casaes seus», dela: TT Inq. de D. Din. L. 4, fls. 76 e 23. Nestes casos, há uma
dissociação; naqueles, a unidade embora binomial, ou, portanto, distintas na unidade a parte urbana (a
«quintãa») e a rústica (o «casal»).
___107___

Teudilde) e outros acidentes rústicos e urbanos – todos eles, à exceção das «terras»,
sendo mesmo os que, como veremos, caraterizam o conjunto «quintã».
Não faltam muitos outros textos a indicar a contraposição da «quintã» à parte
rústica de uma propriedade de extensão bastante variável, mas, em geral, de vulto
(caraterística a não pôr de parte, mesmo nos casos menos significativos»):
- 1105: «damus as vos illas sesigas ubi stant illas casas et sua quintana cum
suo êxito» (DP 205).
- 1106: «in illa mea quintana do vobis una casa integra» (DP 232);
- 1497: «a quintãa que shamam Silvares com seu assentamento de casas e
com vinte III. casaes de arredor que pertencem aa dicta quintãa e foreiros a ela» (1).
As expressões «illas sesigas ubi stant illas casas et sua quintana» (séc. XI.XII)
e «a quintãa com seu assentamento de casas» (séc. XV-XVI) equivalem termo a
termo, e só com isso seriam o esclarecimento completo da questão, se esta, já agora,
o exigisse. A expressão de 1106 relativa a «uma casa íntegra» na «quintana», dando
justamente a ideia de nessa existir mais do que uma casa, equivale, pois, ao mesmo.
Uma outra expressão, de 1105, «casas et sua quintana», não significa, portanto (como
até se vê da de 1497), que a «quintã» e as «casas» fossem coisa distinta: aquintã» o
conjunto urbano de qye essas casas eram a parte essencial. Quais os outros
elementos do conjunto «quintã», aliás já em parte referidos, ver-se-ão.
Também da expressão de 1497 ressalta, com a maior nitidez, algo fundamental
que já tínhamos encontrado: os casais não são a «quintã», mas pertenças dela (para
nada mais adiantarmos por agora, pois já entraríamos no campo das imunidades).
De que a «quintã» é uma casa ou conjunto de casas (com algo mais, que
veremos integrado no conjunto urbano) não escasseiam indicações. Assim, à
invariável pergunta das inquirições de 1288 acerca da existência de «casa de nobre no
lugar inquirido, responde-se, também invariavelmente, no caso afirmativo, que há aí
uma «quintã» – ou, portanto, casa e algo mais. Naquela mesma

__________
(1 ) TT Místicos L. 1, fl. 113.
___108___

data, cita-se em determinado lugar a «casa» honrada de um certo filho-de-algo, por


ele feita no conjunto de vários seus casais; ora, nas inquirições de 1258, descobre-se,
a respeito desse conjunto (casa-casais), que se tratava de «tria casalia et una
quintana» (1). Em 1290, falando-se de certa «quintã» horada fundada por um nobre,
diz-se que o rei lhe doara o «lugar em que fizesse aquela casa» – facto a que uma
memória de 1325 se refere dizendo que o agraciado pedira ao rei o local «onde
fezesse hua quintãa pera si e pera sua geraçom» (2).
Casos em que em vez de «quintã» e de «casa» se encontra «paço» também
não faltam (3) sendo um dos mais notáveis referir-se em 1290 a «quintã» de Lalim, a
qual honrava toda a «aldeia» de Lalim, e saber-se que, afinal, ela era os famosos
«paços de Lalim» (4).
A «quintã» viloa (cuja existência já seria de esperar, conhecida a tendência das
classes populares, economicamente evoluídas, para a própria nobilitação) não diferia
da «quintã» nobre, nem no fundamental do conjunto urbano, que era ela mesma, nem
no conjunto predial a que ela se ligaria. Basta esta referência descritiva de 1258: «una
quintana et una vinea et unum linare et duas leyras de hereditate» (5): estes prédios
não são a «quintã», como se vê, mas prédios a ela adstritos.
É até a respeito da «quintã» viloa que se encontra expressa a «casa» em
sinonímia imediata com «quintã». Tratando-se, em 1236, em certo lugar, de um dos
casos crimes mais graves da época, a violação domiciliária pela força, lê-se «quintana
seu domum disrupata» (LDT 22) na precida correspondência ao que, invariavelmente,
é chamado sempre «casa derrota» ou «casa rupta» (6).
Outro exemplo expressivo, de 1258 e também de «quintã» viloa é o seguinte:
«unum cavalium qui stabat circa quintanam de Domenico Petri dicto Peon euddo ad
fundum de ipsa rua» (7). Para pormenor tão pouco relevante
__________
(1 ) Corp. Codic. vol. I (Inquirições de D. Dinis); Inq. 5222.
(2 ) TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 35; doc. BR1 10.
3
() Vim. 3482, 3501, etc.
(4 ) TT. Inq de D. Din. L. 4, fl.35; v; doc. Hist. Geneal. Pr. I, p. 133-140; Mons. Enric. II 135;
etc.
(5 ) Inq. 10482.
(6 ) Leg. 418, 429, 457, etc.
7
() Inq. 7561.
___109___

como era um simples carvalho (e certamente negral, pela região em que se está), não
se iria alegar toda uma «quintã», se esta fosse o que se chama hoje uma quinta, isto
é, um vasto prédio rústico: bem claramente, pois, mesmo no caso vilão, a «quintã» é
ainda neste exemplo casa de morada com seus apêndices urbanos – e tanto que faz
aí parte de um aglomerado urbano, «ipsa rua». Voltando à «quintã» nobre, notemos
estes exemplos mais:
- 1245, no compromisso do conde de Bolonha acerca do seu governo de
Portugal; «quintanas seu casas faciam penitus demoliri» (se elas prejudicassem o
clero): doc. ML4 360. A conjunção «seu» estabelece aí a correspondência da «quintã»
a casa – e «demolir» confirma o sentido de edificação.
- 1431, «todos aquelles que em essa minha terra teverem quintâas…
poderosos ou outras quaesquer pessoas nom consentaes quando hi veerem… que
pousem em outras casas salvo cada huum em suas quintãas» (1).
Mas a equiparação «quintana seu domum», ou analogamente, não significa, já
se vê, uma mesmidade absoluta de sentido: de novo por isso se nos depara alguma
coisa mais na «quintã» e que nos falta caraterizar – o que passamos a fazer.
Antes, porém, é de notar a opinião de um professor espanhol, contrário, com
razão, ao parecer de A. Sampaio (que já conhecemos), mas, sem ela, quase do de G.
Barros (que adiante referiremos), mas, sem ela, quase do de G. Barros (que adiante
referiremos e que é o de quinta atual, em suma). Para esse professor, de facto,
quintana equivale a clusa, que é «la villa urbana, la villa rústica y los parques,
pomaradas o montes que la circundan, el dominicum (2).
__________
(1 ) Liv. I de Místicos etc. - Documentos para a Hist. da Cid. De Lisboa, 1974, nº 14, p. 67.
2
() A opinião de G. Barros reporta-se a um trecho das Inquirições de 1258 relativo à «villa»
de Onda (Maia), que adiante conheceremos e que, além de não significar o que o nosso autor e o
espanhol pretendem, foi interpretado por eles da maneira mais errónea. O espanhol é o Prof. Prieto
Bances, em La Explotación Rural etc, pp. 44-69, acreditado cá pelo Prof. Torquato Soares, in GB V 447,
onde se penitencia de não ter conhecido logo tal opinião (nem outra, aliás) «acerca de la quintana, tema
de excepcional interés» – que, de facto, é.
___110___

Evidentemente que não – pelo menos entre nós, como fica exuberantemente
exemplificado (1). De resto, que dominicum se pode conceber para uma «quintã»
viloa? E até a equiparação a clusa, em nosso entender, a nossa «chousa» (lat.
clausa), o mostra – e está de acordo com aquilo que ainda há pouco dissemos ter-nos
faltado para caraterizar por completo a «quintã», isto é, distingui-la de outra casa
qualquer: a cerca, ou, melhor, o pátio cercado.

Nas expressões há pouco referidas «quintana seu domum disrupta» e


«quintanas seu casas demoliri», existe, sem a menor dúvida, uma certa distinção entre
«casa» e «quintã», distinção que só pode estar na comezinha verdade de que,
havendo em todas as «quintãs» casa, nem em todas as casas há «quintã» ( 2). A
violação tinha, portanto, aspetos diferentes: em qualquer dos casos, poderia ser um
arrombamento de porta; mas, na «quintã», o delito ainda ser outro, ou ser outro antes
desse: derrubar um muro, ou saltar apenas esse muro.
Não vemos, de facto, outro elemento arquitetónico que possa estabelecer o
necessário grau de distinção de uma «casa» não «quintã» para uma «quintã»
propriamente, e entre forçamento de uma coisa e o da outra.
Se juntarmos a esta dedução os casos concretos de «quintãs» hoje
subsistentes e o caráter fechado do que ainda se chama «quintã» (no sentido de que
já tratámos), não podemos deixar de ser conduzidos a considerar de facto a «quintã»
a casa de habitação e seus apêndices urbanos, mas com um recinto, mais ou menos
vasto, formado de muro, mais alto ou menos alto, mais aparelhado ou menos, desde a
pedra insossa ao silhar, geralmente fechado, podendo partir de um cunhal da própria
casa e vir noutro, conveniente. Há casos como este realmente típicos e expressivos,
qual o de Vila Nova, na honra de Britiande – a «quintã» a razão do próprio topónimo
(de «villa nova»).

__________
(1 ) Quando muito, de tudo isto, diretamente ligado à quintã = casa, aparece o «pomar», que
pode existir, como uma espécie de parque, no seu recinto ou pelo menos imediações.
(2 ) 1098: «quinione in casas in quintanas in montes, LF 146.
___111___

Indicações documentais de que assim é, a juntar às objetivas já referidas, e às


razões dedutivas já apontadas, também não faltam.
- 1290:nõ soya seer onrra mays de quando hé o corpo da quintãa» (1).
- 1352: «hum cortinhal que estaa ante a porta da quintãa»; 1258, «hunum
castaneum que stat ante portam de quintana (2).
- 1282: «entregou-lhis as chaves da quintãa» (3).
Não deve negar-se que «corpo da quintã» (4), «porta da quintã» e «chaves da
quintã» constituem uma graduação expressiva, no sentido que formulamos.
O «corpo da quintã» não pode deixar de ser a casa ou paço («domus
habitationis»), os apêndices urbanos relativos à sua economia agro-pecuária e aos
recursos económicos imediatos (animais e vegetais) e a área descoberta restante, que
poderia ter diversos nomes, como «quintaal», «cortinhal» e até «eixido», porque nela
existia a «porta da quintã» (5).
Toda a documentação relativa nos leva a esta conclusão – que logo um
documento de 1057 nos permite: «illa quintana ezcabezamus illa: de spica de illo
celario quomodo vadit inprono per illos marcos petrineos et fere in suco de Badoi et
vadir per termino de Cemera ad alia spica de illo celario» (LF 91). A forma verbal
«excabezamus» significa a demarcação da «quintana» (com os elementos acima
referidos) relativamente a outros terrenos de proprietário (os quais, como temos visto,
são dela, mas não são ela); e vê-se que o muro (ou outra
__________
(1 ) TT Inq. de D. Din. L. 4, fl 33.
2
() TT Sé de Lam. Compras, nº 47; Inq.8801. Cp. «ante portam de focaria (Inq.10342),
chamando-se por vezes também «quintana» à fogueira. (Inq. 10311).
(3 ) TT Sé de Lam. Doações, fl 14 e v.
4
() Em 1258, diz-se de certa vinha reguenga «de focaria de Petro Mauro», a qual vinha
limitava com outra vinha «et per rivum et per viam», que nela, isto é, «in isto loco stabat quintanam de
Petro Mauro» (Inq. 10311). Além da equiparação de «focaroa» a «quintana» entende-se que o local onde
era tal vinha fora a «quintã» - isto é, o «corpo da quintã» (a casa-pátio).
(5 ) «quintanale» (DP 219); «quintãa… com seu cortinhal» (Vim. 3481); «quintana cum suo
êxito» (DP 205); por vezes, como veremos, também um«pomar» dentro do recinto.

___112___

espécie de vedação, mas o muro, preferivelmente), feito ou mesmo só projetado (trata-


se da «excabezare») partia de um cunhal (spica) do celeiro para vir prender a outro
cunhal deste, o que permite concluir que a «domus habitationis» era totalmente interior
neste exemplo. A demarcação faz-se em parte com outros proprietários (Badói e
Cémara), e os «marcos petríneos» completam a «excabezata»: e assim parece-nos
estar-se aqui num caso claro de limitação de fração de um prédio na qual se faz
«quintana», obedecendo, possivelmente, às leis sobre restrição de espaço a urbanizar
numa propriedade. Talvez «usque in IIIª villa» (esta, a propriedade referida), de acordo
com as leis leonesas de 1020 (1). Se assim, não se tratando, necessariamente, de
prédios próprios de iuniores, modifica-se a prática fracionária originária, tal como,
parafraseando, «usque in Vª villa», da qual já suposemos ter-se originado a
designação «quintana» (equivalente a pars quinta).
Esta feição expressa em 1057: «illas sesigas ubi stant illas casas et sua
quintana cum suo êxito» (DP 295). É nitidamente um conjunto de caráter urbano:
referiu-se, primeiro, a extensão edificada, ou a edificar, e, depois, comoelemento
principal nela, a «quintana» já edificada, no sentido de «domus habitationis» (a
distinguir entre essas «casas»), com a área descoberta anexa, ou seja, o seu êxito»
necessário.
Ao contrário do que pensam autores espanhóis, não podemos identificar a
quintana à villa e, por esta, a casale (ainda mesmo com o precedente de identificação
de casale e quintana da parte de A. Sampaio) (2).
__________
(1 ) Neste caso, a «quintã» = casa(s) + recinto (quintal) é o mesmo que «solar + horto»
destas leis. Ver o segundo capítulo deste estudo.
(2 ) Cfr. Garcia Álvarez in «Revista de Etnografia» nº 17 (J. D. do Porto), p. 5, citando Prieto
Bances para a identificação à «villa», e identificando por si próprio esta a «casal»: logo, «quintana» =
«casale», formulação matemática que não serve para o caso. Também aí se refere a uma opinião que
referença os dois tipos prediais: a quintana uma unidade agrícola cultivada por um só «tenedor», e o
casal uma exploração «en campos diversos» – o que não é mais aceitável. Casos que haja são
coincidências.
___113___

Os próprios documentos do país vizinho estão de acordo com a caraterização que da


quintana, «quintã», fazemos:
- 1036-1054: «intravit in logar ubi munquam casas fuerant… fecit quintanas III.
conclusas et populavit illas de quantum ibi necessarium est: cupos et cupas, lectos,
kathedras, mensas et alium totum quantum ibi ad prestandum est»( 1): – Não se pode
exigir maior clareza: nunca no local houvera casas, e aí se fizeram três quintanas que
se proveram do necessário, ou seja, alfaias domésticas (leitos, mesas, cadeiras) e
agrícolas (cubas, etc.), nada ali se referindo que não respeite a casas; e, mais, estas
cercadas, conclusas – «conchousas», como no nosse romance se diria.
- 1098: «superato nostro próprio cum sotalo… intus in illa quintana»: Não
menos claro que o anterior este caso, nele correspondendo intus, «dentro», à
conclusa, «cerca», daquele – e igualmente tudo referido à casa, do tipo «sodrado»
(pelo menos rés-do-chão ou lojas, e um andar, com seu sótão).
Este tipo de prédio deu, por vezes, origem a povoados, que ainda hoje, com
raríssimas exceções, são insignificantes (3). Isso sobretudo no caso da «quintã» nobre,
em razão de residência adjunta de gente «vassala» do

__________
(1 ) Doc.de Celanova, Tumbo fl. 51 v, cit. cit. por G. Álvarez, «Ver. De Etn.», p. 21.
2
() Doc. de Celanova, Tumbo fl. 35, ib. 21. Ainda aqui, o mesmo num doc. de 1027 (Tumbo
fl.124): «medietate de illa quintana cum suo lagare», que, mostrando na quintana pelo menos dois
lagares, a define como edifício,
(3 ) Em 1111, temos já uma designação de caráter tópico relativa a «casa» (morada), pelo
que pode pensar-se o mesmo de «quintã»: «in loco predicto kasa de domna Uixco» (DP 370), que é uma
alta dona, Únisco Viegas (AF5 33, etc.). É evidente que não seria apenas a «casa» ou a «quintã» a
consolidar um núcleo populacional, mas todo o prédio que a uma ou outra pertencia – aquilo mesmo que,
no conjunto habitação e prédios, veio a chamar-se «quinta». Esta palavra substituiu depois da Idade
Média, inegavelmente, a designação «quintã», talvez apenas por um fenómeno fonético, ao qual já nos
referimos, operado no conjunto morfológico-sintático «quintã de N.» (com N. nome de pessoa e, ainda
mais, de local): o acento de «quintã» subordinar-se-ia ao de N., e, deixando de mencionar-se N., ficou
«quinta». Notemos que nunca as duas palavras coexistem, prova também de substituição.
___114___

paço ou sua serviçal. O caso poderia dever-se também a repartição da «quintã» por
herdeiros (1).
Tal circunstância não surpreende, dado que uma «quintã» podia ser bastante
complexa: pelo menos várias habitações da família possuidora e os competentes
anexos. Podemos dar como exemplos notáveis a honra de Lourosa e o couto de
Lumiares – sobretudo este, onde restam fracos mas venerandos fragmentos, cuja
relativa solidez lhes não subtrai tal caráter venerável (mesmo não lembrando um dos
maiores próceres do séc. XIII).
A «quintã» da honra de Lourosa (Santo Adrião de Vizela – Felgueiras) «feze-a
dom Vaasco Martiinz (2) em hum seu casal que lhy ficou de sa madre, em que morava
hum jugueiro, e fez hy (no casal) quintãa e paaços muitos… e fez ende onrra» (3).
A «quintã» do couto de Lumiares (Armamar), que foi do alto prócer D. Abril
Peres (chamado, por isso, «de Lumiares») era constituída pelo menos pelo seguinte –
segundo a partição que em 1334 dela foi feita entre as três irmãs herdeiras:
- «a torre em que pousava dona Sancha (4) com a adega e com a serviçaria,
como parte com a carreira de trá-la eigreja, com todas sas entradas e sahidas e
ressios de a par das ditas casas»;

__________
(1 ) E isto mesmo em casos de «quintãs» viloas: 1258, «quantos morarem in esta quintana
devem e ham de fazer este foro cada uno per si» (Inq. 2951). Refere-se este passo à «quintana de don
Lobo de Prado», com seu foro (certas direituras; alguns serviços pessoais, ao rei; comida uma vez por
mês ao mordomo da coroa; lutuosa, por falecimento; voz-e-coima, se a fazem – mas nada de produtos da
agricultura); fora ele o proprietário (único) inicial, e dera-se a divisão por herdeiros. O «foro» da «quintã» à
coroa seria cumprido por todos estes, cada qual com sua quota, ou no seu caso.
A divisão não pode causar estranheza, visto que tanto se dá hoje: nem seria preciso haver o que
muitas vezes acontecia, isto é, mais que uma habitação, pois sucedia mesmo com uma só: é o caso da
divisão do paço de Resende (a grande honra que havia sido de Egas Moniz), em 1290, até então intacto –
para tal divisão abrindo-se-lhe uma outra porta: doc. Arq. Hist. Port.. IV, p. 40.
(2 ) O famoso D. Vasco Pimentel: Scr. 313.
3
() Vim. 361-362.
4
() D. Sancha Nunes «de Barbosa», esposa de D. Abril Peres, Scr. 321.
I
___115___

- «as casas do Coural, com todo seu curral e com todos seus pomares assi
como estaa pola porta de a par da eigreja a fundo, hu soya a pousar dona Urraca ( 1),
com todas sas pertenças e sahidas»;
- «o paaço grande com seu alpendre e cano e com as casas que estam a par
da eigreja contra a corredoura, com todalas casas das aveenças e com a torre de a
par do paaço e paredeiros que hy estam» (2).
Na partição a que esta distribuição respeita, segue-se a divisão dos casais que
pertenciam à «quintã», mas que não eram esta – como sempre se encontra. E esta
«quintã» de Lumiares constitui para nós o tipo do que chamaremos «quintã
dissociada»: mais dentro da realidade, trata-se, de facto, de três, todas vizinhas, ou
adjuntas, na povoação de S. Martinho das Chãs ( 3), dispostas em volta da igreja (que
é românica) e separadas por vielas, como, de acordo com aquele documento, ainda
mostram irrecusavelmente as suas ruínas e restos. A «quintã» da honra de Lourosa,
com seus «paços muitos», deve ter sido de idêntico tipo.
Não parece, pois, agora, oferecer-nos qualquer dúvida séria a significação
urbana de «quintã». Quando da nobreza, é ela a casa paçã, mas não (contra o que,
por vezes, noutros escritos, menos advertivamente, possamos ter dito) a honra paçã,
senão o núcleo pação de uma imunidade (honra ou couto).
Convém, todavia, reparar que, com o tempo, o nome «quintã» se iria
estendendo da morada e seus apêndices urbanos à adjacência rústica, aos seus
prédios adjuntos, constituindo, no caso da nobreza, umas vezes a totalidade da honra
ou couto, e, mais vezes ainda, uma parte

__________
(1 ) D. Urraca Afonso, esposa de D. Pedro Anes, neto materno de D. Abril Peres, e sua
herdeira – de preferência à sua sogra (D. Urraca Abril, Scr. 297), pois que a partição é feita entre as três
filhas de D. Urraca Afonso, bastarda de S. Afonso III.
(2 ) TT Sé de Lam. Testam. Nº 30, fl. 42 v.-43. A partição corresponde, respetivamente, a D.
Leonor, a D. Guiomar (solteira) e a D. Maria (as casadas, com seus maridos).
(3 ) O facto de a D. Fernão Peres «Pelegrim» (irmão de D. Abril Peres, mas «de outra
madre», LV 62) ter-se chamado «das Chãs» (LV2 10) leva-nos a supor que havia outra a par destas –
1

todo o conjunto tendo sido de D. Pedro Afonso (filho de D. Moço Viegas e neto de Egas Moniz), o pai
daqueles próceres.
___116___

(na primitividade, sendo esta a parte domnica ou domnicum, que teremos de estudar
num dos capítulos seguintes, enquanto o dominicum a totalidade). A extensão da
designação «quintã» não poderia deixar de verificar-se (restaurando-se, em parte, o
sentido primitivo – não inteiramente urbano); e parece-nos que, por isso mesmo,
quando, por motivos que reputámos sobretudo fonéticos (numa expressão sintática),
desapareceu, nesse sentido, a palavra «quintã», logo a palavra «quinta», que, sem
interrupção, a substituiu, designava o prédio rústico, geralmente vasto mas sempre
(outro traço caraterístico, e este essencial) com casa de habitação, casa esta aí quase
sempre isolada.
Por isso, na época em que nos situamos e na multidão de referências a
«quintã», ocorrem já alguns casos em que a palavra está designando mais que a casa
e seus apêndices urbanos:
- «outra quintãa… jaz y regendo del rey»;
- «a quintãa era regaenga com seu termo e ora nõ há ende el rey ergo Iª
sessega hu see h~un [ ~sobre o u] seu casal»;
- «homines de Aldagam (Aldegão) qui morantur in ipsa quintana de Aldagam»
(1).
Apesar da raridade do fenómeno geo-humano, o terceiro caso mostra como
seria possível formar-se uma povoação na «quintã», ou adjunta ao seu paço – assim
se explicando um topónimo como Quintã de Pêro Martins, hoje sede de freguesia, na
fronteira beiroa, e, ainda nesta região, Quinta de Mendo Gordo (primitivamente, como
vimos, Quintã), etc.
Estamos, pois, em presença do tipo de habitação que os geógrafos humanos
chamam «casa-pátio», um tipo de casa dissociada em si mesma e que pode ser
rodeada de muro (e o era geralmente na «quintã»), ou às vezes casa-bloco de
qualquer tipo, seja ele elementar, seja de elementos justapostos – neste caso, rés-do
chão

__________
(1 ) Inq. 12131, 12142, 11491, respetivamente. O primeiro caso é o de «quintã» de vilão
foreiro; o segundo, o de «quintã» reguenga; o terceiro (Aldegão) é de «quintã» nobre, que deve ter sido
de estirpe nobre como as de Mirelhe e de Cem (Zaim), que, como Aldegão, são lugares de atual freguesia
de Folhada (Marco de Canaveses).
___117___
e, quando muito, um andar. Uma verdadeira casa-fotim típica da Idade Média (1).
Não quer isto dizer que nalguns casos não pudesse tratar-se de casa-pátio
aberta, o que significa só parcialmente vedada – mas aberta, geralmente, para os
campos de cultivo e as pastagens. E estes prédios é que estariam vedados: o tipo de
propriedade «campo fechado» e cujo muro, mais tarde, se chamaria «cerca», é o caso
mais frequente depois da Idade Média, e que é o das mais famosas «quintas» nobres
– evoluídas, muitas vezes, de «quintãs» medievas. O caso da «quintana excabezata»
de 1057 a que nos referimos pode já, porventura, considerar-se um dos casos de
casa-pátio aberta, ou próxima desse tipo, na qual os «marcos pedrinhos» demarcavam
a área residencial (a «quintana» do restante da propriedade rústica ( 2). O comum,
porém, não era esse, mas o de vedação total, por muro, formando um pátio («quintal»,
«cortinhal», «eisido», etc.), mais ou menos vasto.
Posta de lado a «quintã» viloa, temos de encarar na «quintã» nobre (para lá do
ponto de vista material, ou seja, o tipo de casa ou prédio) o ponto de vista espiritual,
que, ligado à pessoa nobre, teria de ser forçosamente o do enobrecimento da casa.
Mas convém examinar ainda, rapidamente, como se encara hoje a «quintã» entre nós.
Aparece primeiro uma opinião que a identifica à «quinta pós-medieva: «As
quintas (sic) pertencentes a proprietários não lavradores, com morada para senhores e
caseiros, podiam, à semelhança dos casais, ter um ou mais fogos» – do que se
apresentam exemplos:

__________
(1 ) Pensamos que é a isto e ao material (a pedra) que se deve a designação «pena» ou
«castro» para casas residenciais (sobretudo quando se nomeia proprietário): «pena de don Tello» (Inq.
4371); «crasto que fuit de Froila» (DC 952). Ainda que «pena» signifique, muitas vezes, castelo roqueiro
(DC 81) e «castro» seja, mais propriamente, a fortificação de povos antigos, não há dúvida tratar-se, por
vezes, segundo cremos, de casas.
(2 ) O documento respeita às quartas partes (vendidas) de terrenos (agro e pomario) cuja
«quintã» foi daquele modo delimitada: por muro próprio (de cunhal a cunhal do celeiro), por muro de outro
proprietário e pela divisão com um outro; mas, numa interrupção da cerca, havia marcos de pedra, que
estremavam da «quintã» os prédios rústicos (LF 91).
___118___
- 1049, «kasa cum sua quintana que fuit de avio meo» (DC 371).
- 1258, «quintana que fuit domni Egidii cum omnibus domibus suis» ( 1);
«quantos morarem in esta quintana» (2).
O facto de se citarem várias casas não mostra inegavelmente caseiros, pois
podem muito bem ser todas do dono da «quintã», constituindo esta; no entanto, nada,
com efeito, impede, a certa altura, a existência de vários moradores, «vassalos» do
senhor – mas não porque assim fosse de essência. A segunda citação está mesmo
incompleta, porque o que se tem é «cum omnibus domibus suis qui stant extra
vallum», valo este, inegavelmente, a caraterística de muro – pelo que se trata de
casas que pertencem à quintã, mas não são a quintã; e deste modo o terceiro exemplo
pode muito bem reportar-se a um caso tal – e era este o mais espontâneo como
génese de povoação: as casas construídas fora do muro (cerca ou valo), trate-se de
«quintã» nobre, trate-se dela viloa (que é mesmo o caso). Notar-se-á a essência dos
exemplos na morada, na casa; e uma outra referência aduzida pelo mesmo autor –
«quintana nostra… ad profectum domorum ipsius quentane vel casale seu casalium ad
dictam quintanam pertinentium» (3) –, além de mostrar bem a distinção entre a
«quintã» e o seu casal, ou seus casais, pode também exemplificar essa génese (4).
Evidencia-se, enfim, perfeitamente a falta de conhecimento do que na realidade
era não só a «quintã», mas a quintana anterior. Merecem, todavia, ser referidas e
criticadas outras ideias de hoje sobre essa quintana.

__________
(1 ) Inq. 7372.
(2 ) Inq. 2941
(3 ) A opinião que estamos referindo é a do prof. Avelino de J. da Costa, O bispo D. Pedro, I,
pág. 215.
(4 ) «et est ibi una quintana de qua habet rex duas qintas… et omnes qui ibi habitant in ipsa
quintana tam in parte regis quam in aliis», etc. Inq.492. Trata-se de quintã viloa, e nada obsta a que, já
então se estendendo a designação «quintã» aos prédios que à «quintã» pertenciam ou haviam pertencido
quando de um só proprietário, a coroa viesse aí a adquirir parte (confiscos, descida a reguengos pela falta
de cumprimentos dos encargos próprios da quintã, etc.).
___119___
Esta, de facto, considera-se subordinada ao tipo casales, e com ela os villares
– estes e as quintanas, portanto, igualmente «unidades de exploração menos
extensas que as «villae» (1). Os domínios, ou se trate de persistência das villae
primitivas (romano-germânicas), que se pensa ter-se procurado reconstituir, da parte
dos presores, na Reconquista (como se a presúria não tivesse passado de um
latrocínio, frequente, é certo, mas longe de generalizado ou mesmo institucionalizado
– sobre o que não queremos alongar-nos aqui para lá do que já opinámos em estudos
anteriores), ou se trate de criações recentes pela agregação de alódios, terras novas,
etc., na dita época, seriam distinguidos, respetivamente, por palatia (ou palatioli) e por
quintanae (2). Nada, documentalmente, pode autorizar uma tal opinião. De facto, se a
designação quintana não é tão abundante como deveria esperar-se, palatium e
palatiolum é que nem surgem, a bem dizer (com os casos toponímicos de Paço ou
Paçô mais antigos devendo remontar à época romano-germânica das villae e
evocando a morada do dominus villae; e as quintanae, ou, pelo menos, as «quintãs»
das nossas épocas, não oferecem o caráter igualmente apontado de domínios
constituídos por reserva (senhorial) e «tenências» (caseiros, como hoje se diria), ou só
tenência ou só domínio direto (tenere e habere): porque, nos domínios de «quintã»,
chamemos-lhes «honras» ou chamemos-lhes «coutos»» (3). Não é necessário mesmo
alegar tudo o que vimos expondo, para contrariar tal doutrina, mas com isto
introduzimo-nos no ponto de vista dominial da «quintã» – o que agora mais interessa.
É nesta casa-pátio, nesta «casa-fortim», provida, muitas vezes, de torre (as
famosas torres senhoriais de que subsistem, aqui e além, alguns exemplares, mas em
quantidade mínima em relação ao número primitivo, a julgar da abundância do
topónimo Torre – mesmo que

__________
(1 ) J. Mattoso, Le Monachisme Ibérique et Cluny, p. 166.
2
() Aut. e ob. cit., pp. 244-245.
3
() As exemplificações alegadas pelo aut. cit. na ob. cit., pp. 247-248, não chegariam,
mesmo, que exatamente apreciadas, o que é discutível.
___120___
este nem sempre remonte à Idade Média ou nem sempre indique propriamente uma
torre), é, pois, na «quintã» que, como principiámos por lembrar ao iniciar este capítulo,
se materializa, digamos, a essência do regime senhorial – a de uma honra ou de um
couto nobre.
Como de facto vimos, a pergunta acerca da existência de honra num lugar nas
inquirições de 1290 é sempre – se há esta – respondida com a referência a «quintã»,
numa sinonímia evidente. E até nas de 1258 se encontra a expressão da imunidade
«propter honorem ipsius quintane que est onrata» (1) – honrada como, de um modo
geral (vamos vê-lo), todas as «quintãs» nobres. Ou – o que significa o mesmo (até
porque se trata sempre de honras nos casos em que em 1290 se revela a «quintã») –
«propter dominium» (2), expressão cujo significado será exposto.
Não nos surpreenda esta simbiose, esta fusão morado-dono. A habitação,
como o principal preservador físico da pessoa, foi sempre a transposição material da
dupla entidade pessoal (moral e física): uma representação em que se insuflava o
espírito dessa entidade. A honorabilidade da casa era a do dono; a deste, a daquela
(3). E, nas famílias nobres (e nem só nelas, mas são essas as que aqui nos
interessam), esta fusão espiritual pessoa-casa foi sempre o caráter como que
materializado dos seus brios e privilégios. A honra da pessoa era a da casa;

__________
(1 ) Inq. 4881, etc.; «et ipse fecit ibi unam quintanam» que, desde então, «sempre fuit
onrrata»: Inq. 4472. Não deve dar-se valor ao que diz GB II 501: «parece-nos fora de dúvida que a palavra
quintana abrange aqui (o exemplo acabado de dar) o grupo de casais que formavam a aldeia». Trata-se
de um caso que respeita uma licalidade de muitos casais, os quais são referidos com seus proprietários,
mas todos sem foro, «propter honorem ipsius quintane que est onrrata» (Inq. 4881). Ora tal quintana não
fora antes citada; mas não o fora por mero lapso (quando há quintana, é geral, nesta alçada, de 1258, a
referência), e daí aquela ideia do autor. Ora, bastar-lhe-ia ter reparado que, dos trinta e cinco casais,
apenas vinte e seis se disignaram. Portanto, os nove não definidos eram possessões da «quintã» (não a
«quintã», razão porque, citada esta, esqueceu aí citá-los. (Cfr. o nosso art. GE XXIV 93, cujas
discrepâncias com o que aqui doutrinamos acerca da «quintã» devem ter-se por matéria agora rejeitável).
(2 ) Inq. 4772, 5211, etc.
(3 ) Não deve perder-se de vista que domus «a casa» e dominus «o dono» contêm a
mesma ideia, dom-.
___121___
a desonra desta, a da pessoa – tal como os recíprocos. Daí que a honor, sentimento
pessoal, se haja convertido em designação dominial, no que a casa representava de
centro irradiador de quantos os privilégios próprios do nobre ou dos que ele tem por
credor. Enfim, pois, a «quintã» (como casa de morada, como paço) o foco do
dominium em irradiação; e também centro atrativo de hominium.
Estas ideias apenas na aparência são literárias. Correspondem antes a
realidades que em capítulo posterior se explanarão – o que pode aqui dispensar-nos
totalmente até de um resumo.
Com a noção que temos dado da «quintã» (ou mesmo da quintana anterior à
proliferação das imunidades nobres, ainda que contrariamente à ideia geral a seu
respeito), concorda a recíproca correspondência dominium-dominicum: a «quintã»,
como representação material da pessia di «domno» (dominus), corresponde ao
domenicum; os prédios adstritos à «quintã», ao seu domenicum.
Se, ao tratarmos de dominium e dominicum precisássemos de uma
materialização destes conceitos, materialização (com personalização) que,
forçosamente, teria de existir, aqui a teríamos – e não é isto menos confirmativo da
nossa doutrina predial de quintana.
Vejamos, pois, objetivamente, os casos mais típicos deste domenicum de
«quintã» nobre, desde o mais simples ao mais complexo (tal como vimos as feições da
«quintã» como zona urbana que encabeçava a imunidade):
- «honrada quante o corpo da quintãa e nom mais» ou «a quintãa com seu
cortinhal e nom mais» (1).
- «honrada quante a quintãa com sas searas e com sas herdades» (2);
- »nom honra mais de quanto hé hum casal» (3);

__________
(1 ) Vim. 3521, 3481, etc. Inq. de D. Din. L. 4, fl. 33, etc. E assim o mesmo para a «casa»
(Vim. 3522, 3581).
(2 ) Vim. 3561. Tomamos aqui «herdades» por prédios não organizados em casais.
3
() Inclua-se o caso da «quintana-casale», que já vimos: Inq. 5511, 5542, etc. Temos
mesmo o caso interessante de uma «quintã» com um casal único, a qual fora transferida de lugar,
bastante afastado do primeiro, mas de onde a «quintã» (prova de esta ser a casa transferida) continuava
a honrar esse casal, seu único dominicum: Inq. de D. Dinis. L. 4. Fl. 33.
___122___
- «honrada com seus casaes» (1);
- »honra toda a aldeia» (2);
- «honra toda a freguesia» (3).
Estes seis casos, numa espécie de progressão de âmbito, exemplificam o
dominicum de uma «quintã» nobre – toda uma honra; e distinguem-na bem dele, ou
seja, ela não é «as suas searas» ou «as suas herdades», como não é «os seus
casais», e menosa ainda a «aldeia» ou a «freguesia». Que resta, pois, a não ser a
casa e seus apêndices, o «corpo murado»? O dominicum, no entanto, mesmo pondo
de parte diferenças de extensão territorial e de montantes populacionais, que, de facto,
não importam na sua índole, não é sempre do mesmo tipo, como passamos a ver.

Nas inquirições de 1290, consta a chamada «honra de Louredo», que aí se diz


abranger as três freguesias de Louredo, Beire e Gondalães. Os seus moradores
deviam ir «a dereito perante o juiz da terra» (o juiz régio da respetiva circunscrição
administrativa), depois de citados pelo mordomo da coroa. É, portanto, uma imunidade
que diremos honor simples – cujo senhor não tem jurisdição (visto não haver escusa
da «peita» com a coroa).
Ora nas inquirições de 1258 não aparece uma «honra de Louredo» constituída
pelas ditas freguesias: cada uma destas é tratada sobre si, não havendo a mínima
indicação de qualquer laço (que naturalmente teria de ser senhorial) a uni-las então
num dominicum único. Não existiria? Verdade é, também, que nem em 1258 nem em
1090 se refere a existência de «quintã» quer na dita honra quer em qualquer das
freguesias; e, no entanto, essa «quintã» existia – e situava-se em Louredo. É citada,
de facto, em

__________
(1 ) Vim. 3612, etc.; «IIIor casalia et I. quintana» que os honra: Inq. 7171; «nom onrra esta
quintãa mays de dous casaes seus»: TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 22 v; etc.
(2 ) TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 22 v; etc.
3
() É, entre muitos outros, o caso da «quintã» de Briteiros; em razão da «quintã», «trage
dom Joham Rodriguez toda a freguesia por honra», 1290, Vim. 3941.
___123___
1276, como tendo sido de duas altas donas, a condessa de Toda e D. Châmoa (1).
Em 1258, o estado da propriedade nas três freguesias em que 1288 vigorava
esta honra de Louredo é o seguinte:
- Gondalães: Dezoito casais, sendo dez deles de diversos nobres e os
restantes de «ordens», por doações. Três casais das «ordens» davam renda à coroa
(direituras e dinheiro), mas nesse ano dois deles (do mesmo mosteiro) não a pagavem
e «defendunt se per domnum Roderico Froya et per Gomeciao Laurencii». Todos os
outros (exceto, pois, esses três) não faziam foro à coroa: «quia est honor miane
domne Orrace».
Trata-se, indubitavelmente, de D. Urraca Viegas, falecida uns quarenta anos
antes. Fora sogra da referida condessa, que é D. Toda Palazim; e esta havia sido a
avó materna da também referida D. Châmoa, que é D. Châmoa Gomes, com quem foi
casado o dito D. Rodrigo Froia (Froiaz) (2).
- Beire: Trinta e quatro casais, dos quais uns vinte de diversos nobres e os
restantes de «ordens», afora dois de herdadores vilãos – não havendo qualquer foro à
coroa em toda a paróquia, «quod est onrata de veteri», à única exceção de um casal
(de um mosteiro) em que entrava o mordomo da coroa.
Assim, Beire, em 1258, era «honra de velho», isto é, antiga – e, embora não se
diga de quem, certamente com o mesmo senhorio (pelo menos inicial) de Gondalães
–, pois que igual silêncio se encontra a tal respeito em Louredo e disso não há aqui
dúvida:
- Louredo: vinte e dois casais, cerca de metade de nobres e os outros de
«ordens», exceto um, que era reguengo – sem entrada de mordomo da coroa, em
todos eles, do que se diz não se saber a razão. No entanto, o

__________
(1 ) Doc. em Meireles, Mem, do Most. de Paço de Sousa, p. 274. Ver uma das notas
imediatas seguintes.
(2 ) Acerca destes nomes e parentescos, ver Scr. 325 (e o obituário de Salzedas BR2 59).
Nas inquirições de 1258, são ditas como outrora padroeiras da igreja de Louredo D. Maria Rodrigues (tia
materna de D. Châmoa) e a infanta-rainha D. Mafalda (Inq. 5711), a qual foi pupima e herdeira de D.
Urraca Viegas (doc. Hist. Geneal. Pe. I nº 17).
___124___
que se declara acerca do honramento nas outras freguesias seria já o bastante para
se deduzir tratar-se de «dominium» antigo. Disso, realmente, temos prova pelo
documento de partição da «quintã» de Louredo em 1276, no qual se manifesta o
mesmo senhorio de Gondalães (proveniente de «meana» D. Urraca). Naturalmente,
pois, também assim de Beire.
Os filhos-de-algo citados em 1258 como então possuidores de casais nas três
freguesias são o dito prócer leonês D. Rodrigo Froiaz (com mais de vinte casais), três
irmãs, ou que o parecem, das quais nada sabemos (cm oito casais), os «milites
Mofarros (com cinco), e mais três cavaleiros, de que nada sabemos também (com
quatro) (1).
Portanto, dos setenta e quatro casais, descontados dois de herdadores vilãos,
são de nobres metade, e apenas cinco são (ou deviam ser) foreiro à coroa: os outros,
que eram «ordens», deviam ter sido também de nobres, o que significa que a quase
totalidade dos casais das três freguesias haviam sido de tais filhos-de-algo. O senhorio
inicial, pelo menos até D. Urraca Viegas (séc. XII-XIII), deveria ter sido único, visto que
se pode aplicar às três freguesias o que se diz numa: foi de longe «honor miane
domne Orrace». Mas, do que sabemos da «quintã», que nas inquirições não consta,
podemos estender esse senhorio único até à sua bisneta D. Châmoa Gomes, esposa
do dito D. Rodrigo Froiaz, a qual ainda vivia em 1258 ( 2). Como destes não ficaram
filhos (LV1 4 e LV2 12), a partição da «quintã» em 1276 pode ter-se originado da morte
daquele senhor sem descendência: porque, de facto, os partilhantes são da estirpe (3).

__________
(1 ) As referidas três irmãs e os três cavaleiros não se relacionam com a estirpe de D.
Urraca Viegas, e nem mesmo deles se fala nos nobiliários medievos. Os Mofarros têm num destes uma
referência acidental (Scr. 344), e eram senhores de duas «quintãs» na vizinha Besteiros (Inq. 5671)
(2 ) LV1 86; doc. Vit. Eluc., s. v. Algo, etc. Como ela estava recolhida em mosteiro, parece
citar-se nos bens o marido por ela.
() Inq. 5082, 5702 e 5711; Inq. de D. Din. In Corp. Cod., vol. I. A divisão da «quinta» em
1276 foi feita entre o mosteiro de Paço de Sousa e os esposos D. Gonçalo Anes «de Aguiar» e D.
Berengária, que é D. Berengária de Cardona, alta dama aragonesa (Scr. 370), mas de ascendência
portuguesa. Num doc. de 1287,

___125___
Nas inquirições de 1290, cita-se na freguesia de Lavra a «quintâ» que «foy de
dom Pero Paáez o alférez» (de D. Afonso Henriques, e de Leão depois de saído de
Portugal), honrada «de longe»: «e por razom desta quintãa, traguun por honra toda a
vila de Onda e Lavra e Angeses e Calvílhi e Paaçôo e Cabanellas linhagem de dom
Pedro Paáaez o alférez». (Deve reparar-se que, sendo Lavra a freguesia, é Onda a
primeira citada). Moravam ao todo uns «oitenta homens» (famílias, talvez mesmo
casais, como veremos: um por família), não tendo os senhores da honra mais que uns
trinta e sete e pertencendo os restantes a «ordens» e a vilãos herdadores, exceto um,
que era da coroa.
A distribuição da propriedade é, pois, análoga à da «quintã» de Louredo, mas
convém particularizar pelas inquirições de 1258.
- Lavra (a «villa» deste nome, e não a freguesia, a que esta e as outras
pertenciam): Vinte e três casais, dos quais eram dez da coroa ( 1), e treze de «ordens»,
às quais os haviam doado o conde D. Mendo de Sousa. Estes treze casais não faziam
foro algum à coroa «propter honorem comitis domni Menendi».
- Cabanelas: vinte e um casais, todos de herdadores sem foro à coroa, porque
estes vilãos proprietários «sempre fecerunt servicium uno diviti nomini per quem
defendantur ab omni foro regali» (2).
- Paçô: Oito casais, que eram, ou haviam sido,

__________

diz ela que «vem dereytamente do linhagem de miana donna Orraca Veegas», pois «he neta de donna
Maria Rodriguez irmã de dona Tareija Rodriguiz» (CP 171). De facto, a dita D. Maria, filha de D. Rodrigo
Vasques (filho de D. Urraca), e da condessa D. Toda, «foi casada em Aragom e decendeo della
Reymondo Cardona, o que veo a Portugal, e dona Biringueyra Cardona que casou com dom Gonçalo
Anes de Aguiar o velho» (Scr.), chamado assim porque seu filho e seu neto sucessores tiveram esse
nome.
(1 ) Cinco deles parece (não havia no lugar certeza) tê-los doado D, Sancho I à sua amante
D. Maria Pais, a Ribeirinha.
(2 ) Por este processo, os moradores tinham sido «homines» de D. João Peres «da Maia»
(filho de D. Pedro Pais, o Alferes) e eram-no de D. Gil Martins. Este foi neto de uma prima co-irmã do
referido conde D. Mendo de Sousa. Sobre estes dois nobres, ver LV2 22, etc. e Scr. 347.

___126___
de três altas senhoras e, por isso, sem foro à coroa, «propter honorem illarum
dominarum» (1).
- Onda: sete casais, que tinham sido todos de herdadores vilãos e sido
comprados pelo prócer da «stirpe» maiata D. João Peres «da Maia» (filho do referido
D. Pedro Pais «Alferes», o qual «fecit ibi unam quintana» – e assim o lugar andava
honrado, «propter dominium quaod habent»
- Angeiras: Dezoito casais, todos de nobres, e de «ordens» (os destas, por
certo, de nobres, primitivamente), nunca aí se tendo dado foro à coroa, «propter
honorem illorum divitum hominum» (2).
- Calvilhe: Sete casais, sendo de nobres metade da «villa» (3) e de herdadores
vilãos a outra metade. Embora dos quatro casais se desse à coroa certo foro, não
entrava em toda a «villa» o mordomo, «propter dominium quod habent».
Ao todo, em 1258, oitenta e seis casais (referem-se, em 1290,
aproximadamente «oitenta homnes»), dos quais de nobres, por herança, quarenta e
dois. Apesar de

__________
(1 ) São elas: D. Guiomar Mendes, filha do conde D. Mendo de Sousa e esposa do dito D.
João Peres «da Maia»: LV2 22, Scr.289; D. Teresa Martins, irmã do referido D. Gil Martins (netos de uma
filha de D. Soeiro Mendes de Sousa, um tio do conde D. Mendo de Sousa, LV 2 16 e 17, etc.); e D. Teresa
Garcia, acerca da qual ver a nota seguinte.
(2 ) Aqueles nobres de 1258 são os referidos irmãos de D. Gil e D. Teresa Martins «de Riba
de Vizela», D. Fernando Anes «de Galiza» e D. Álvaro Dias «de Castela». D. Fernando Anes é o «de
Limia» (ou Baticela), filho de D. João Fernandes, que havia casado, depois da morte de D. Sancho, com a
que fora amante deste, a referida D. Maria Pais. Esta era bisneta de uma irmã de D. Gonçalo de Sousa
(tia do conde D. Mendo): Scr.326. Quanto a D. Álvaro Dias, é sobrinho (filho de sua irmã Elvira) da
referida D. Teresa Garcia (ver nota anterior), filha de uma sobrinha do conde D. Mendo de Sousa (LV1 4);
ou é um filho dele, que ele teve de igual nome, Álvaro Dias (LV1 5).
(3 ) Esses nobres são os referidos irmãos D. Gil e D. Teresa Martins, o já nomeado D.
Fernando Anes (nota anterior), e filhos e filhas de D. Rui Gomes «de Briteiros». Quanto a estes, eram
herdeiros certamente pelo pai, que herdara da esposa, D. Elvira Anes, filha do sobredito prócer maiato. D.
João Peres «da Maia» (a mesma a quem ele cantava: «Pois nom hei de D. Elvira/seu amor e hei sa ira»,
Canc. Da Ajuda, nº 62, e a quem raptou para com ela casar: Scr. 291.
___127___
em 1290 se dizer que o senhorio da honra ou «quintã» andava na linhagem «da Maia»
(descendentes de D. Pedro Pais), a que se encontra geralmente na posse é a do
conde D. Mendo de Sousa, ou melhor, já o pai deste, D. Gonçalo de Sousa ( 1): Lavra
(1): Lavra, Paçô, Angueiras, pelo menos. A «estirpe» maiata aparece em parte em
Calvilhe, e, se possui Onda, tal deveu-se a um facto relativamente recente: a compra
do lugar por D. João Peres ao(s) vilão(s) seu(s) possessor(es). Quanto a Cabanelas,
era uma encensoria que funcionava como beetria, escolhendo o seu senhor, ora numa
estirpe ora em outra.
Não se refere em 1258 outra «quintã» que não seja a que D. João Peres «da
Maia» fez na sua sobredita aquisição de Onda: esta, por isso, e de acordo ainda com
o facto de ser Onda a primeira das seis «villas» da honra referidas, é que deve ser
«quintã» em Lavra, o nome da paróquia a que pertenciam todos aqueles lugares, que
em 1290 andavam honrados «por razom desta quintãa». Ora isto, trinta anos antes,
dir-se-ia ainda se não verificava: a «unificação» dominial ter-se-ia dado depois de
1258. Mas, tal como em Louredo, ela já devia existir, logo de fundação da «quintã»,
embora naquele anos se não manifeste (o que repetimos, deve concluir-se à luz de
uma análoga circunstância na «quintã» de Louredo). Quanto à categoria da
imunidade, ela como Louredo é uma honor simples – cujas caraterísticas se verão
num dos capítulos seguintes.
A unificação tem duplo processo: «todos estes casais tragen ora por onrra», a
saber: «fôrom de sa avoenga». E os dos moradores (incluídos os de outros quaisquer
nobres) porque «lhi facem serviço» (2).

__________
(1 ) Lavra foi pertença da «stirpe» amiata no séc. XI: tinha aqui bens de antepassados o
grande Soeiro Mendes «da Maia» nos fins do séc. XI (DC 871). A maneira de compreender os da «stirpe»
sousã só pode ser por ligações cognáticas – pelo que não deve deixar de corresponder à realidade o
casamento de uma tia materna daquele prócer com D. Egas Gomes «de Sousa» (Scr. 289).
(2 ) Inq. de D. Dinis. L. 4, fl. 33 v; etc. Esse «servitium» já o cumpriam ao «senhor»
escolhido em Cabanelas: Inq. 4771. Tal encensoria deveria ter passado a fazer-se com os senhores da
«quintã», que assim transformaram um lugar foreiro de origem em honra (ou parte de uma honra).
Encensoriar considerava-se, de facto,
___128___
___129___
nobre, materializada na «quintã» – a residência do senhor e, por isso, a cabaça, o
«cabo» desse dominicum ). Não há limites assinados: a honra é constituída por uns
tantos casais, que podem ser toda a «villa» ou uma parte, uma freguesia ou parte, ou
até várias «villas» ou freguesias. Os limites da(s) «villa(s)» ou da(s) freguesia(s) não
são, necessariamente, limites para a honra. Um novo casal que venha a organizar-se
ma localidade não fica, necessariamente, sob dominium: não pertencerá só por isso à
honra, embora nada impeça o seu eventual honramento.

O dominicum «predial», por sua própria essência originária, exige a residência


do senhor: ou, melhor, há sempre a «quintã» – embora o senhor não seja obrigado a
residir permanentemente, e até possa vir a desertar-se a casa, ou mesmo a arruinar-
se. Mas, para início, ela terá de existir, pois é ela que cria o privilégio, é ela que
garante a persistência desse previlégio (1). Seria por

__________

(1 ) Ao pedido de esclarecimento formulado pelos inquiridores de 1258 sobre certa honra


que vigorava «propter dominium» – quale est ipsum dominium» – a resposta foi: «quod sibi domni
Subgerii Reymondi», ou «est onrata per domnum Subgerium Reymondi»: Inq. 5211. O «dominium» é,
aqui, identificado à pessoa do «dominus». Uma exploração do caso leva ao seguinte:

O nobre em questão é D. Soeiro Reimondo «de Riba de Vizela». Em 1258, na sua referida
honra, são sete os casais, sem se falar aí de qualquer «quintana», ou de «casa». Esses casais têm os
seguintes possuidores: dois de um genro daquele senhor (considerado aí seu neto pelos inquiridos, mas
ele é Giraldo Afonso, da estirpe da honra de Resende: Scr. 301 e 922); outros dois que haviam sido da
esposa de D. Soeiro Reimondo (chamada aí «domna Orraca» – e, de facto, é D. Urraca Viegas, neta de
uma irmã de D. Gonçalo de Sousa, certamente a proveniência desta honra: Scr. 301), a qual senhora os
doara a uma ordem militar; dois de um mosteiro, não se sabia porquê; e um da catedral do Porto, que o
comprara um vilão herdador.

Ora em 1290 encontra-se, a este respeito, o seguinte: se os casais são seis (contra sete
alegados em 1258): um terço deles, da dita ordem; outro terço, do dito mosteiro; e o outro terço, dos
«filhos e netos» de D. Soeiro Reimondo, que não viviam nela, nem este vivera também – isto é, a mesma
situação de 1258, exceto no que respeita ao outro casal. Verificou-se que sobre este (apesar de ser da sé
portuense) se havia ampliado a honra, pelo que foi desligado dela – devassado. Ora a honra existia por
haver nesse lugar «a casa que foy de dom Soeiro Reymondo» (Inq. de D. Din., in Corp. Cod. Vol. I).
Conclusão: a pessoa do senhor, em 1258, e a sua casa («quintã»), em 1290, equivalem como fator de
honramento e à razão «propter dominium» (igual a «propter quintanam»).

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esta firmeza temporal na imunidade que, no séc. XIII, uma tal honra se consideraria
com a antiguidade suficiente («de veteri» ou «de longe») para que o uso lhe garantisse
o respeito por parte do poder real.

É que, na verdade, este tipo de dominicum não devia ser reputado de origem
«legítima»: não fora instituído por ato de soberania régia; e só a complacência da
pessoa real (séc. XI-XIII) e, depois, a antiguidade (séc. XIII-XIV) lhe concederiam a
permanência, tal como por ato régio instituidor.

Casos mais recentes não interessam aqui tanto: não exigem a existência de
«quintã» para que a coroa lhes reconheça ou respeite o honramento. Este existe
porque o lugar ou o prédio «é de filho-de-algo», mas a imunidade só nele
permanecerá «enquanto for filho-de-algo». São as chamadas «honras novas» – que
uma das alçadas de 1258 tinha em mira sobretudo conhecer.

Com o tipo predial de dominicum, existe um outro tipo, em nosso entender: o


«geográfico».

Corresponde ao honramento «per divisiones», e provém, pois, da ação real,


geralmente direta (um diploma) e algumas vezes delegada ( 1). Como veremos
(embora a designação vulgar do diploma instituidor possa ser, e algumas vezes é,
«carta da hora»), o ato régio, quando designado, é sempre «facio cautum». Na
verdade, a concessão «per divisiones», régia, é jurisdicional: um cautum, pode não ser
honor (cautum simples), mas que pode ser criado sobre uma honor – devendo ser tal
caso mais vulgar. Basta pensar que o privilegiamento cautal seria sobretudo um
resultado de interesses locais de um senhor,

___________

(1 ) Ou também somente por efeito de senhorio, como nos parece o caso da infanta-rainha
D. Mafalda em Bouças (e seu julgado, claro está): assim, a «villa» de S. João da Foz «est cautata» e
«cautavit eam domina regina domina Maphalda» – ou talvez só porque «per mandatum dela» aí se
«plantabant cautos». Expressões que ocorrem nos livros de linhagens, como a respeitante ao mosteiro de
Santo Tirso e aos irmãos Soeiro Mendes e Gonçalo Mendes «da Maia», «que o coutassem ambos» (LV 1
40), significam o couto do mosteiro sob a proteção desses próceres – do que é confirmação o facto de tal
couto ter sido feito para o primeiro deles pelo conde D. Henrique; e esse prócer o doou dpois ao seu
mosteiro (DC 864 e 871).
___131___

e os melhores desses interesses seriam a sua honor pré-existente (o que não quer
dizer que o cautum se não estabelece sem isso e o senhor não pudesse vir a criar
nele, por sua qualidade, a honor – ou, portanto, ele a transformar-se, pela dupla
função, em cautum-honor, como veremos). Nestas condições, não seria obrigatória a
existência de «quintã» num dominicum de tipo geográfico, dada a sua origem régia:
mas, atento o que acabamos de dizer (possessões ou interesses pré-existentes do
agraciado, ou pré-existentes mesmo, por vezes, a sua honor), a «quintã» pederia
existir – e geralmente existiria mesmo.

Devemos ter ainda em vista o emprego quease exclusivo da designação


«honra» que fazemos a respeito dos tipos de dominicum. Não faltam razões para isso:
funcionalmente, não se nota a distinção nas próprias fontes, e, assim, enquanto os
atos régios (sobretudo os do séc. XII, os que mais nos interessam, como primeiros)
são sempre «facio cautum», os inquiridores de 1298 interrogam sempre acerca de
«honra» (por «casa» = «quintã» expressamente), tal como se nem coutos houvesse.

No dominicum «geográfico», ao contrário do dominicum «predial», honra-se


uma área, que se delimita, isto é, «per divisiones» (assinaladas com lápides especiais:
coutos, no honramento por pendão, ou padrões, no honramento por carta – como
veremos): portanto, todo o prédio novo, como, por exemplo, um casal que se organize
dentro do perímetro da honra, pertencerá a esta.

Tal como fizemos para o dominicum «predial», daremos dois exemplos típicos
de dominicum «geográfico».

As inquirições de 1290 «de parrochia Sancte Marie de Lalim que chamam


onrra», informam, entre outras coisas, o seguinte, acerca da designada «honra de
Lalim»:

- «há hy h~ua quintã que chamam Lalim» que se vira «sempre onrrada», e
«onrra esta quintãa essa aldeya de Lalim»;

- «nom entra hy ora o mordomo del rey nem porteyro» e is senhores de «esta
onrra tragem seu juiz e seu chegador e (nom vam a juízo de outrem»;

- Cada um dos jurados «víou h~ua carta de onrra ler e disse que em esta carta
seía hum sinal de ~ua roda» (o sinal régio), e citou ainda «el reu don Affonso
Anrríquiz»;
___132___

- e, segundo se discriminava nesse diploma régio, cada um desses jurados


indicou os limites, envolvendo uma área geograficamente variada: a ribeira ou vale
cortado pelo rio, e, de cada banda, grandes elevações, especialmente ao sul,onde
eles atingiam um castro a cerca de mil metros de altitude.

A paróquia era constituída por três «villas» e povoações, mas só duas «villas»
(e ainda estas parcialmente) ficavam dentro dos limites (Lalim e Ribacelas, e não a
outra, Várzea da Serra, apesar de honra também, e do mesmo senhor); e na honra de
Lalim havia casais do mesmo senhor); e na honra de Lalim havia casais do senhor da
honra, alguns de parentes seus, e ainda de outros nobres (estranhos à estirpe do
senhorio e de não nobres (1).

Um outro exemplo típico de dominicum «geográfico» é o do couto de Lumiares:


o seu senhor da primeira metade do séc. XIII, D. Abril Peres, chamado por isso «de
Luniares», era mesmo de sangue régio, embora por bastardia, e seu neto, também
sehor do couto, D. Pedro Anes, casou com uma bastarda real, que aqui chegou a viver
– talvez todos os seus últimos anos; e o privilégio era tal que nem as inquirições de
258 nem as de 1290 se ocuparam dele. Constituíam-no as paróquias de S. Martinho
das Chãs (2) e de Santa Cruz

__________

(1 ) «honor de Lalim fuit de honore de meono domno Egea et postea descendit in domnum
gunsalvum de Sausa»: Inq. 10841. Herdara-a ele da esposa, D. Dordia Viegas, filha de Egas Moniz (Scr.
289), a qual, de facto, doou a um mosteiro «in villa Lalim quatuor casales» (doc. nas Mem. de Paço de
Sousa, Pr. Nº 44). Em 1209, sendo senhor da honra seu neto D. Gonçalo Mendes, tinha aqui bens D.
Elvira Vasques, parenta próxima deste (Scr. 293, LDT 15 v). em 1232, «afora aqui um seu casal o
mosteiro de S. João de Tarouca (LDT 15 v). em 1318 uma Teresa Vaz, que talvez não seja filha-de-algo
(docs. BR2 77). (Ver nossos arts. GE XIV 584-586 e XXV 631-633).

(2 ) Em 1152, sendo senhor deste couto D. Moço Viegas (filho de Egas Moniz), o couto de
Argeriz partia «per Sancto Martino das Chãas» (DR 292); e igualmente o de Leomil (DR 230). A
residência senhorial, a «quintã», era na povoação de São Martinho (à volta de cuja igreja a «quintã» se
dispunha), enquanto que a sede do couto (cujo jioz era de nomeação popular, e só de confirmação
senhorial) estava na povoação de Lumiares – o que mostra que, em certos casos, mesmo nas
imunidades, havia certa separação entre o popular e o senhorial, o nobre.
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(chamada hoje de Lumiares para se distinguir de outras localidades do nome: ou


sejam, cinco «villas», as de São Martinho, ou Chãs, Godim, Lumiares, Santa Cruz e
Vila Nova). Portanto, com uma panorâmica topográfica análoga à da honra de Lalim,
apenas bastante menos acidentada. O facto de não se conhecer carta régia desta
imunidade resulta, certamente, da perda da sua documentação do séc. XII e do total
silêncio das inquirições; e, como aquelas paróquias são de remota limitação, de limites
de couto ficaram servindo os limites exteriores delas – isto é, eles não foram criados
para o efeito, mas aproveitados (embora isso não fosse a regra).

Já nos referiremos ao complexo urbano da «quintã» deste couto – a «quintã»


de Lumiares, nas Chãs, com seus três paços, duas torres, etc. É o exemplo flagrante e
feliz da tripla concorrência urbana «elementar», geo-humana, das designações
«quintã», «paaço» e «torre» (embora, neste caso, a «quintã» abrangesse os paços e
as suas torres, pois não se trata de uma «quintã» simples, mas dissociadas): uma
«quintã» poderia não ter torre, mas a sua domus habitationes era (ou pelo menos
considerava-se) um «paço».

Versámos, asso, a «quintã» nobre com toda a sua preponderância geo-


humana sobre as designações «paço» e «torre» – esta, praticamente, quase por nós
ainda nem referida. Mas estes dois outros tipos de residência nobre (pois que, de
facto, devem ter sido, muitas vezes, distintos da «quintã») merecem também uma
atenção especial. A razão da secundariedade que demos à torre foi apenas a muito
menor frequência documental, e porque esta só não pode explicar-se pela sua não
independência elementar em relação à «quintã», quando nesta existe.

Vamos encarar, pois, os três tipos (entendidos assim distintos) na toponímia


(visto que as subsistências são raras e só a toponímia as documenta) – sem isso
querer dizer que o topónimo Quintã não se deva a um paçoo como habitação nobre;
que o topónimo Paço não corresponda a uma «quintã»; ou que o topónimo Torre não
corresponda a uma «quintã»; ou que o topónimo Torre exclua a existência de um paço
no local. Todavia, salvo documentação contrária, que não conhecemos, é de
considerar que a toponímia se refira em regra a torre ou a paço sem
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«quintã» (1). De facto, ao que encontramos, por exemplo, nas inquirições de 1288
(1290), esta, se no caso existisse, prevaleceria, como designativo, sobre «torre» e
«paço».

Cartografando, como convém, os três topónimos Quintã, Paço e Torre,


ressalta, imediatamente, a sua coincidência territorial, ou o que pode quase
considerar-se uma sobreposição de distribuições; e estas verificam-se no nosso
Noroeste. Ora, como é esta, afinal, a região tradicional da nobreza portugalense
(segunda expressiva coincidência), apenas temos que considerar que, de facto, os
três topónimos, na maioria das vezes ( 1), respeitam a casas nobres medievais – com
uma terceira concordância: as povoações ou os povoamentos nesses locais, por muito
pouco relevantes que sejam, são factos antigos, o que nos coloca na nossa Idade
Média, os inícios (séc. X-XIII).

__________

(1 ) Escusado é dizer que a escrita Passo(s) é absolutamente rejeitável em todos os casos:


a palavra «passos» no sentido topográfico nunca doi usada popularmente entre nós (e entender o sentido
de passada seria risível). No entanto,é mesmo a tão absurda ideia que tal escrita se deve. De resto, não
um caso único documentado que não seja Paço(s), e o seu diminutivo Paçô (lat. palatiu-), quando o som
ç e c (e, i) era diferente de ss. O plural Paços, em geral, não deve significar mais que um paço, mas
magnificência – de resto, muito subjetiva, como pode compreender-se.

Quanto a Quintã, incluímos os casos de Quintão, que são aqueles com um alongamento ditongal
próprio da região que nos interessa historicamente (a demasiada nasalação que nela leva à pronúncia
«lão» por «lã», etc.). Não é trabalhoso demonstrá-lo: assim, Quintão, em Negrelos (S. Tomé), em 1258,
«in Quintana tria casalia» (Inq. 5361); Quintão em Árvore (ant. Pindelo), «villa que vocatur Quintana» (Inq.
4832). Este segundo exemplo ainda hoje ora é Quintão ora Quintã (cfr. GE XXXVIII 586, e Dic. Univ. X 58.
Deve rejeitar-se totalmente «quintã» atual, no sentido de uma quinta grande: basta o que
dissemos da palavra «quinta». Pensar que algum caso de Quintão possa ser antroponímico
germânico, «villa» *Quintani (*Kintani), como já chegámos a admitir (GE XXIX 92-93, tem contra si
nunca nos aparecer tal antropónimo (apenas um hipocorístico, Kintila), pelo menos.

(1 ) Não esquecemos, como cumpre, que o topónimo Torre pode, às vezes, ter um sentido
metafórico (aglomerado litológico ou outro), ou simplesmente figurado num tipo de casa semelhante a
uma torre, mas não torre; que o topónimo Quintã poderá por vezes aludir a «quintºa» não nobre, tal como
já encontrámos, e que itualmente, nem sempre, o «paço» era designação de casa nobre. Mas, na
generalidade, referem-se à nobreza.
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A nobreza, era, pois, um elemento polarizador em numerosos casos – uma


polarização, geralmente, em área reduzida e em reduzida escala prpulacional (as
povoações grandes que foram honras já existiam antes do seu honramento, na maior
parte dos casos – que, diga-se, nem eram os mais numerosos), apesar de todo o
odioso que o regime senhorial poderia representar quase sempre para as classes
populares. Mas esta aproximação de moradas vilãs e nobres pode compreender-se,
tanto como os casos, frequentíssimos no séc. XIII, em que as populações vilãs
procuram a proteção nobre contra os vexames de outros nobres e as extorsões fiscais
(1). Este papel aglutinador da nobreza num ponto de vista geo-humano e sócio-
económico não pode ser minimizado de forma alguma na história da ocupação e
exploração da terra e, portanto, na distribuição das populações – embora geralmente o
haja sido, pela falta do mais perfuntório estudo do facto.

Só em muito raros casos poderão tais topónimos remontar à época anterior à


que fixámos (séc. X-XIII), nomeadamente a romana e a germânica – isto é, a uma
quintana ou uma turris, e estas menos ainda que a um palatium (2). Ora isto parece
duplamente contraditório de duas teses nossas:

- Uma, aquela que se opõe rotundamente à doutrina do ermamento na


Reconquista (e faz parte de vários dos nossos trabalhos anteriores): de facto, se tão
densa toponímia «nobre» se acumula na região reputada do ermamento, é que este
permitia nela um número elevado de estabelecimentos nobres.

Note-se, porém, que a nobreza era na Reconquista uma minoria (como aliás
sempre havia sido); e que nas zonas de Portugal ainda hoje as menos povoadas, o
estabelecimento da nobreza fazia-se muitas vezes em locais

__________

(1 ) Muitas vezes, vilãos iam morar em prédios nobres, chegando mesmo a abandonar as
anteriores moradas.

(2 ) De notar que estas designações, uma sobretudo fundiária (quintana) e as outras


urbanas, são da época romana: mas é interessante, a julgar pela toponímia, que quintanella tenha sido
muito vulgar,e, a olhar ais documentos pré-nacionais, que palatiolum era muito mais frequente que
palatium.
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já agricultados e povoados. A contrariedade, sendo assim, converte-se em apoio.

- Outra, a tese de uma ascendência à nobreza suévica e visigótica (doutrina


que expusemos no primeiro capítulo deste trabalho): ou seja, da ligação da nossa
nobreza a uma aristocracia suévico-visigótica que substituíra ou, quando a não
substituiu, havia prevalecido sobre a hispano-romana: individual, hierárquico-
administrativa, esta, e de base económica; e, aquela, baseada, como não podia deixar
de ser, também economicamente, mas, mais ainda, num profundo espírito de
linhagem ou casta que, para contrastar a submetida, teria de tomar dela a hierarquia
funcional, como dela em inúmeros casos tomara a parte leonina nos seus haveres
fundiários.

De facto, considerar dos séc. X e XIII uma tal toponímia é estabelecer o corte
entre a nossa nobreza e a anterior, germânica: mas o topónimo Sá vem restabelecer a
ligação. A significação e a panorâmica da respetiva cartografia são, precisamente, as
mesmas de Quintã – Paço – Torre, fundamentalmente (1).

A nossa palavra «sala» relaciona-se com sala germânica, mas (por causa do l)
não provém desta: todavia, o sentido não pode ser muito diferente – e entendemo-lo
de habitação (e, pelo próprio sentido da nossa «sala», uma habitação distinta (2), com
carateres capazes de lhe garantir uma fixação toponímica –, ou, enfim, quanto a nós, o
correspondente germânico do lat. palatium.

A distribuição deste topónimo «nobre» pertence unicamente ao noroeste


peninsular (3), e, dentro deste,

__________

(1 ) A palavra «sá» é de origem germânica, sala, e o topónimo Sela (ant. Saella), prova o
diminutivo salella. Agregamos, pois, Sela à toponímia de «sá», sempre que as formas antigas o permitem:
ou seja, quando não se trata de lat. cella (pequena casa) ou do lat. sella, «sólio» (assento, trono).

(2 ) Cremos que «sá» (saa < sala) veio a ser substituído entre nós por «sobrado» (lat.
superatu-), palavra que se não prova no sentido vegetal (de suber): era a «casa sobrada», como às vezes
se lhe chama nos nossos documentos dos séc. XII-XIV, num sentido perfeitamente conforme à
significação da nossa palavra «sala».

(3 ) Dois ou três casos de Saavedra («saa vedra») no sudeste da Península, até pela
igualdade qualificativa, que é única, não são transportes toponímicos ou de apeledo (gente de Saavedra,
na Galiza). A qualificação «vedra» significa a existência de outra,
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ao nosso noroeste, coincidindo, precisamente, com a região de mais densa habitação


pelos Suevos. E, para admitirmos que o topónimo Sá vem de então, basta que
reparemos que, enquanto as palavras «quintã», «paço» e «torre» aparecem, com
maior ou menor frequência, nos nossos documentos pré-nacionais (e depois), jamais
neles se nos depara a palavra «sá» (saa) – sendo a verdade que a toponímia é a
prova inconcussa do uso vulgar de uma palavra. De tudo isto, resulta, pois, o papel de
ligação de uma época a outra, ou de uma a outra nobreza, que ao topónimo Sá
atribuímos.

Devemos agora referir Sá, reforçando-se mutuamente em doros os sentidos, a


abundandíssima toponímia antroponímica genitiva, germânica, que atribuímos à época
suévica, sobretudo, e de que já demos o impressionante exemplo «vimaranense» (1).

O topónimo Torre merece ais algumas considerações, porque ainda entre nós
subsistem torres senhoriais – mas num número mínimo, que contrasta com as
abundantíssimas alusões toponímicas. Da demolição (por vezes, como vamos ver, já
na Idade Média), não podemos duvidar, não só pela raridade das que nos ficaram mas
por indicações documentais: assim, na «quintã» de Lumiares, que resta da «torre em
que pousava D. Sancha» e da outra «torre de a par do paço» (2)?

__________

«nova», a par dessa, mas que não perseverou como designação – fenómeno toponímico dos mais
vulgares. Não há, pois, a mínima razão para supor uma aplicação posterior à época suévico-visigótica.

(1 ) Além do que de passagem temos já dito a respeito de tal toponímia, consideramos


meras coincidências os casos em que um proprietário da Reconquista tem o nome que originou o do lugar
do seu prédio ou da «villa». Assim, na Galiza: 877, o presor servil Frontiano na «villa nomine Frontianini»
(doc. GB IV 443); 950, Oduarius Didacidiz na «villa Ovar» (doc. ES XX 71); 977, Manni Ovecoz na «villa
de Manni» (doc. «Compostellanum» XI 721). Assim também em Portugal: 917, o comprador Sunila na
«villa Sunilani» (DC 957, etc.); 1088, o adquirente Teoderigo na «villa Teoderiz» (DC 713). Nem
surpreende: ninguém irá pensar que um determinado nome era usado por uma só pessoa e nenhuma
outra, ou nunca mais. Por vezes, é mesmo o nome do lugar que sugere o da pessoa: «Gueteanda, Bona
nomine», em Gatiande («villa Guetenandi») – ela chamada Bona, mas cognomentum Gueteanda
(Gatianda, como hoje se diria) (doc. BF 302, etc).

(2 ) TT Sé de Lam. Test. Nº 30.


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Da sua existência sobretudo anterior ao séc. XIII, é apenas uma aparência


negativa a raridade de alusões que a torres senhoriais se faz nas inquirições de 1258,
pois trata-se de casos de edificações em terras da coroa (o local), ou em que as
rendas desta são desfalcadas:
- «in loco in quo fecit Laurencius Pelagii turrem intrabat ibi maiordomus, et erat
forarius domini regi set modo non faciunt inde aliquod fórum» (1).
Em Vila Boa do Bispo – onde, que saibamos, não existe o topónimo Torre (pelo
menos um local povoado). O facto mostra que um mapa toponímico, mesmo completo
que seja, não garante uma totalidade de casos. Aquele nobre é Lourenço Pais de
Alvarenga, que então vivia (2). Mas note-se que há aí o topónimo Quintãs – que pode
ser um plural proveniente de Quintã inicial ou indicar um local com mais que uma
quintã: uma delas com essa torre.
- «tenent filii et filie de Furacasis… campos forarios in ipso loco et I. pedem de
turre et… rex mandavit tollere ipsum pedem de turre» (3).
Em Folhada, na parte do lugar de Merelhe chamado então o Merelhe Vilão. Os
nobres são os do Merelhe não vilão – os «milites de Furacasas», ou «mulites de
Mirilli» (4). Também aqui não há o topónimo Torre, mas há Quintã.
- «a torre que estaa compeçada em Quinteela et I. peza dessas casas e dessa
quintaa contra fondo estaa en regaengo… o campo que jaz so essa quintaa» (5).
Em Vila Marim (Vila Real), a famosa torre de Quintela, hoje ainda existente. No
entanto, não há aqui propriamente o topónimo Torre, e nem mesmo Quintã, embora
tivesse havido pelo menos uma «quintã» (6).

__________
(1 ) Inq. 13851, Cfr. o nosso art. GE XXX 363-369.
(2 ) Scr. 320. Inq. 13851
(3 ) Inq. 11481. Quanto a estes milites: Inq. 11502 e 11552.
(4 ) Inq. 11552.
(5 ) Inq. 12281.

(6 ) Este topónimo Quintela nada tem com uma «quintã» senhorial da época que nos ocupa,
porque é muito anterior: em 1088, a condessa Gotronde Nunes (filha da condessa de Portugal D. Ilduara)
tinha bens aqui, «villa que vocitant Quintanela» (LF 122). Pela arquitetura, disse-a Herculano anterior à
Naciona-
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- «ista hereditate foraria regis… fecit in ea principium de turre et casas et


lagar».

Em Ribeiradio (Ribeira de Io), obra do miles Gomes Peres «de Ribeira» (1),
cerca de «via que venit de ecclesia pro ad quintanam que fuit de Gomecio Petri» (esse
mesmo nobre). Nesta freguesia, além de Quintãs, temos, de facto, o topónimo Torre:
se este se refere a tal torre, que se fundava em 1258, esta torre foi acabada.

Dizemos foi acabada porque a -se de tais casas fortes (acasteladas), serem um
perigo para a paz (guerras entre nobres) e até para a autoridade real (2).

- «meam turrem cum sua sessione et cum ipso monte in quo sedet ipse turris»
(doc. De 1280, BF 13).

Doação a um mosteiro no couto de Vila Chã (f. Cerzedo, c. V. N. de Gaia) pelo


seu senhor. Este caso parece diferente dos anteriores – isto é, a torre não ser de

__________

lidade (GE XXX 109), sendo verdade que em 1258 esta apenas estava começada. Atendendo aos bens
que aqui mesmo tinha a alta «stirpe» dos Sousãos, nos séc. XII-XIII, marcámos esta fundação do séc. XII
para o XIII no nosso art. GE XXX 573-576, o que é erro cronológico menor, mas não menos erro que o de
Herculano. D. Elvira Vasques (neta de D. Gonçalo de Sousa), senhora de grandes haveres aqui, os quais
em 1258 eram seus filhos e netos ((Inq.) 12281), foi avó de Pêro Botelho (Pedro Martins Botelho) que
naquele ano tinha reguengos «a par de a torre de Quinteela» (Inq. 12292), um deles «sô essa quintãa»
(Inq. 12281). D. Alda Vasques, irmã da dita D. Elvira, é que teve aqui uma «quintã» – a sua «quintã de
Quinteela», mas que ela doou à ordem do Hospital – pelo que não se trata de torre ereta por ela, não só
porque esta Ordem a não teve mas ainda porque D. Alda morreu muito antes de 1258. (Ver o nosso art.
GE XXX 573-577, onde se emende o que não concordar com o que aqui dizemos). Parece de crer que se
trata da fundação de Pêro Botelho (D. Pedro Martins). (Scr. 296, etc.).

(1 ) Inq. 9172. Este fundador era irmão de D. Urraca Peres de Ribeiradio, por certo: Scr. 347.
Cff. o nosso art. GE XXV 557-560.

(2 ) Pela defesa que de Guimarães fez Mem Rodrigues de Vasconcelos em favor de D.


Dinis contra o infante D. Afonso, herdeiro da coroa, receou tanto deste aquele fidalgo que pediu licença
ao rei para erigir, em seu couto de Penagate, uma torre: 1300, TT Chanc. de D. Din. L. 3, fl. 154. Frei F.
Brandão diz que então, de facto, «tais casas fortes e torres estavam proibidas»: Mon. Lus. VI, L 19, c. 27.
___140___

«quintã», embora sessio sugira apêndices terrenos. É ainda notável a sua situação em
monte, onde talvez deve ser hoje a povoação chamada o Monte, que, sendo assim, se
não surgiu à sombra da torre, se formou pela ação dos novos possuidores (os
monges, que, em menos de vinte anos depois têm na freguesia sete casais). Uma
edificação em altura, num couto, sem pertencer a «quintã», não pode considerar-se
facto insólito, ou, pois, inesperado.

No tempo de D. Sancho II, por ordem deste rei (1), foram totalmente destruídos
os casais e outras possessões móveis e imóveis de D. Lourenço Fernandes de Cunha,
incluída a «sua quintana de Cuina», a qual «cremaverunt totam quia pro idne nichil ibi
remansit et derribaverunt de ipsa turre quantam potuerunt, tudo, por fogo e demolição,
de tal modo «quod munquam potest esse emendata», porque lhe custaria uma quantia
demasiada: «magis custaret eam facere quod mille et quingentos moribitinos» ( 2).
Estas torres nem sempre, pois eram construções rudimentares.

Parece tratar-se da Cunha em Paredes de Doura, porque um filho de D.


Lourenço Fernandes, D. Egas Lourenço de Cunha, foi «morador em terra de Coura
aquém Valença» (LV2 69). E note-se como a «queima» está de acordo com o que era
a «quintã», em nosso entender –, e quanto a torre aparece como elemento
naturalíssimo (ipsa turre = «a torre») da «quintã».

__________

(1 ) Na aparência, porque o executor da devastação foi D. Vasco Mendes «de Sousa», cuja
«stirpe» dominava então o reino e raptara o pequeno rei. (Inq. 12951).

() Doc. GB V 381-382. Ora diz o nobre, protestando a sua inocência de atos, não
praticados, e de palavras, não proferidas: «non feci nec dixi quod recepisse hanc destructionem et
malefectoriam quod recepi»; e o filho referido (Egas Lourenço) foi um dos mais fiéis partidários de D.
Sancho II, a quem acompanhou no exílio e a quem o rei doou em testamento bens: docs. AH V 79, ML
123 – embora, regressando a Portugal, servisse o novo rei, como em geral os fidalgos que hostilizaram o
conde de Bolonha fizeram. Este caso é bem prova da escandalosa cabala urdida pelo clero e a nobreza
contra o infeliz rei culpando-o daquilo que em seu nome (sem autoridades para isso) praticavam.
___141___

Exemplificação no território «vimaranense»:

A exemplificação «vimaranense» de várias honras quanto à origem «propter


dominium» (não nos interessam os casos «per regem»), a qual daremos noutro
capítulo, conduz-nos neste, naturalmente, a uma explanação sob o ponto de vista que
aqui versamos («propter quintanam») e acerca da estrutura predial, mas só nalguns
poucos casos mais típicos. O ponto de vista pessoal (ou, melhor, de linhagem) não
tem, de facto, por que ser encarado aqui, a não ser subsidiariamente: a exemplificação
far-se-á, assim, por agora, só por honras, e não por estirpes.

a) «Quintã de Arões:

1258: quarenta e dois casais na freguesia (S. Romão) pertencentes a «ordens»


(dezanove) a burgueses de Guimarães (pelo menos seis: de Vervas, Cadilhos, etc), a
filhos-de-algo e a herdadores vilãos; e acresce o que diretamente nos interessa – uma
«quintã», «et quintana est Martini Egidi et eius sororis».

1288: «A quintãa que chamam Arões que he de dom Gómez e de Lourenço


Ganso», a qual honrava três casais de um mosteiro e um de uma ordem militar, e
ainda uma «herdade» de vilão – e só isto «todo tragem por onrra», porque «em todo o
al da freguesia entra o mordomo, salvo em os três casaes de filhos-de-algo» (1).

Sem dúvida os «três casaes de filhos-de-algo são os que pertencem à


«quintã»: a honra desta constituída, pois, por eles, pelos referidos quatro e pela
herdade vilã (devendo entender-se como mais natural que os ditos quatro haviam sido
da própria estirpe – ou «de sa avoenga», como era costume dizer-se).

Os senhores citados em 1258 são Martim Gil «de Arões» e sua irmã D. Teresa
Gil. Esta foi casada com Gomes Lourenço «de Cunha» (o «dom Gomez» que, viúvo,
possuía ainda parte da honra em 1288); e Lou-

__________

(1 ) Inq. 2152 e 7261, Vim. 347-348.


___142__

renço Ganço é Lourenço Martins, filho de Martim Gil «de Arões» (1).

Vê-se que o senhorio da honra deve ter sido único até D. Gil Guédaz, pai dos
dois irmãos senhores de 1258.

O seu dominicum era de tipo predial – até porque as indicações anteriores são
todas contrárias a um ato régio de privilegiamento (2).

b) «Quintã» do Monte:

1258: vinte e oito casais na freguesia (Asorém) assim distribuídos: nove da


igreja vimaranense (Santa Maria), sete de burgueses de Guimarães e nove da coroa
(reguengos), e ainda três «sunt Menendi Fafiz et eius sororis».

1288: «O lugar que chamam o Monte, que he de Giraldo Afonso», e, aí, um


casal honrado de Sarracim Mendes.

1308: A freguesia é toda da devassa (isto é, não honrada), «salvo hum casal
de Sarracinho Meendiz no Monte o outro de Giraldo Afonso» (3).

As informações das inquirições de 1288 respeitam apenas a dois casais,


enquanto que em 1258 eles são três. Há-de ter havido naquelas um lapso, que deverá
esclarecer-se pela existência de uma família nobre chamada «do Monte» e que
descende, imediatamente, de D. Urraca Fafes: esta é a irmã de Mem Fafes, que com
ela possuía a honra em 1258, e foi casada com um cavaleiros de Lodares, que nada
tinha aqui e que «fez em ella Pêro do Monte e três filhas. Pelo menos os filhos e os
netos desse Pêro Anes «do Monte» usaram este chamamento (4).

__________

(1 ) Scr. 356; LV1 6 e 88.

(2 ) Veremos, num dos capítulos seguintes, que a honra procede da alta «stirpe» dos
Sousãos (desde pelo menos Gomes Eicaz, séc. XI); e este caso de Arões repete-se mesmo noutras
honras. Assim: em Paincela (Basto) tinham uma quintã e vários casais Martins Gil de Arões e seu
cunhado Gomes Lourenço de Cunha, tudo tendo sido dos Sousãos (Inq. 6641, e exatamente o mesmo em
Refontoura (Felgueiras), Inq. 5512 – e até em Recesinhos (S. Mamede) temos os de Arões e de
Portocarreiro, estirpe a que pertencia a mãe de Gil Guedaz (Inq. 6011): Scr. 306, 299, etc.

(3 ) Inq, 7231; Vim. 348 e 381.

(4 ) Scr. 300, 330, etc.


___143___

Esta honra parece pior pois ter tido um senhorio único até D. Godinho Fafes,
avô paternos dos dois irmãos Fafes seus senhores em 1258 (1), pelo que passamos a
ver.
Parece-nos de crer que também em 1258 houve inexatidão dos jurados: na
honra do Monte, os três casais deviam ser um de cada um dos dois irmãos Fafes e um
de sua tia paterna D. Gontina Godins, que casou na estirpe de Riba de Vizela. Ora
Giraldo Afonso (que vivia naquela data) (2) foi nesta casado, e, embora a esposa não
descenda da dita D. Urraca, deve ser daqui que o seu casal procede (3).
Já não deveria ser vivo em 1288 (embora a forma verbal usada dê a entender
que sim), e já em 1308 o seu casal é de um seu neto ( 4). Sarracim Mendes deve ser
filho de Mem Fafes (5). O terceiro casal e «quintã» era em 1308 de «dona Maria
molher que foy de Joham de Sândi» (Sande), a qual deve ser filha de Martim do
Monte, abade de Telões (6). As inquirições não falam aqui de «quintã», mas havia
duas – e a outra devia ter caído naquela D. Urraca, precisamente.
c) «Quintã» em Conde:
1258: dezanove casais na freguesia, a saber: um da coroa (reguengo), três de
um mosteiro, alguns de burgueses vimaranenses e de outros herdadoresm e dois de
nobres, com «quintã»: »et duo sunt inde et quintana Martini Dade».
1288: «há y hum paaço de Martim Dade», honrado «de longe».
1301 e 1308: há «o paaço que foy de don Martin Dade» honrado; e Pêro
Fernandes de Crasto fez honra

__________
(1 ) Scr. 329.
2
() Inq. 9902.
(3 ) Scr. 322, 329, 347-348.
4
() «outro casal de Giraldo Afonso» e «esse casal que foy de Giraldo Afonso é de um seu
neto que nom he cavaleyro nem escudeyro» – diz-se em 1308 (Vim. 381). Por isso, foi devassado esse
casal. Parece estar-se num caso de perda de fidalguia, como por vezes acontece, desde que o indivíduo
não levava, por qualquer motivo, vida de filho-de-algo. Realmente a descendência imediata de Giraldo
Afonso parece decaída: Scr. 322-323.
(5 ) Em Scr. 329 não se cita senão um filho, o que permite crer ter tido mais.
6
() Scr. 300; Vim. 382.
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na freguesia «exetelo paaço» (isto é, exceto o paço», que já era honrado com seus
casaes, e que ele então tinha), honra essa constituída pelo lugar de Covelas: porque
ele «tevera ali muyto a terra (aquisição?) e faziam-lhi serviço» (1).

Fácil saber como é que Martim Dade, filho-de-algo de uma estirpe beiroa, havia
aqui esses bens: pelo casamento de seu pai (homónimo) na estirpe de Riba de Vizela.
Mas os Dades já nos princípios do séc. XIV tinham deixado de possuir tais haveres:
além de estranhos à região por naturalidade, eles mais estranhos se haviam feito
vivendo em Santarém, de que tinham a alcaidaria e onde casavam ( 2). O longínquo
paço do Conde foi por isso alienado – ao dito Pedro Fernandes de Castro, que não
ousamos afirmar ser aquele que viria a ser o pai de D. Inês de Castro, apesar de o seu
nome ser esse e até de ter casado com uma neta materna de D. Maria Vicente, da
honra de Urgeses (3).

d) «Quintã em Corvite:

1258: Na freguesia, dezasseis casais e duas «quintãs», mas paenas se


identificam catorze deles e uma delas: seis casais de «ordem», dois de burgueses de
Guimarães, e seis filhos-de-algo – a saber, dois de D. Maior Viegas e quatro de uma
«quintã» de Martim Mendes de Calvos.

1288: «O logar que chamam Paaço que foy quintãa de dom Rodrigo Gomes de
Briteiros», honrado «de longo tempo, com quatro casaes que hy estam a cabo delle»;
e «a quintãa que foy de Martim Meendez de Calvos que comprou dom Men
Rodriguez», honrada «de longo tempo quante o corpo da quintãa e nom mais», e «em
quatro casaes dessa quintã vírom hy sempre entrar o mordomo».

As inquirições de 1288 e 1258 quanto a esta segunda «quintã» são concordes


em tudo – haver duas (de que em 1258 nada se diz) e só esta dar à coroa foro pelos
quatro casais: «dat ipsa quintana» cada ano uma vara de bragal «pro fossadaria»
(além dos encargos de voz-e-

__________

(1 ) Inq. 7002; 350, 371 e 383.

(2 ) LV1 18; assistentes mesmo em Lisboa, com influência na corte (doc. ML4 331 e 332).

(3 ) Scr. 327.
___145___

coima e do chamado). É um caso bem explícito do que era a «quintã» (o paço),


porque os seus casais não tinham o privilégio dela, e daí em 1258 se ter falado dela
apenas, por ser isenta a outra.

Veremos que a honra de Corvite procedeu dos Sousãos à estirpe de Briteiros,


e era formada pela «quintã» e pelo seu dominicum de quatro casais adjacentes («a
cabo» dela): e ela era mesmo o paço que designava o local – o que concorda com o
que foi uma «quintã».

e) «Quintã» de Rendufe:

1258: Há na freguesia vinte e três casais, assim distribuídos: três de burgueses


e outros herdadores, seis da coroa (reguengos), dois de filhos-de-algo (Egas Lourenço
«de Cunha» e Pedro do Rego) e doze de «ordens»; e ainda uma «quintã», do miles
Pero Lourenço.

1288: «a quintãa que foy de dom Egas Lourenço de C~uia e que fez em um
seu casal» (portanto, parece que depois de 1258, em que esse casal dele se cita); e
«a quintãa de Pêro Lourenço Vencelho», honrada «de longo tempo» (o que não se diz
da outra).

1308: «nom leixam entrar o porteyro na onrra que foy de Pêro Lourençi
Vencelho, e soya hy entrar o porteyro».

Esta honra tinha um dominicum por limites próprios, mas não se devia a ato
real: era uma criação da estirpe da «quintã» – pelo que em 1308 se sentenciou a
entrada do porteiro (uma honor simples de origem, e «propter dominium»), ao
contrário do que se fizera em 1290, porque o senhor de 1288 não proibia a entrada do
porteiro. De facto, a estrutura predial e o tipo desta honra são deste modo expressos:
«E dentro em esto que tragem por onrra moram quatorze homens (famílias), deles do
Esprital e deles de moesteiros e deles de herdadores e deles ragaengos; e nom há hi
Pêro Vencelho senom esta quintãa e trage todo por onrra, e trage hy seu vigairo e
nom leixa hy entrar o mordomo nem porteyro, senom quando nom quer chegar o seu
vigairo entra hy porteyro» (1).

__________

(1 ) Inq. 7322; Vim. 358 e 385.


___146___

Nota-se da constituição da paróquia por seus casais em 1258 que esta honra
se estendia a vários dos acima mencionados, de diferentes possuidores: parte dos de
herdadores, parte dos da coroa e parte dos das «ordens»: ora, entre os destas, estão,
em 1258, nove do mosteiro de Souto que tinham sido de D. Gomes Peres «de Souto»
e que nada davam então à coroa «propter honorem domni Gomecii Petri de Sauto».

Indubitavelmente, portanto, estes nove casais eram alguns dos que pertenciam
à honra da «quintãa» velha, e esta havia sido, pois, daquele D. Gomes Peres, que
noutro capítulo teremos de verificar ser da estirpe de Longos-Briteiros (filho de D.
Pedro Coroa e irmão de Mem Peres «de Longoa» ou D. Mem Cativo). Trata-se, sem
dúvida, em nosso entender, do avô do miles Lourenço Vencelho, e este era tio
materno de Egas Lourenço da Cunha (1).

f) «Quintã» em Guardizela:

1258: Na freguesia, trinta e oito casais, a saber: sete de herdadores vilãos, um


de um burguês de Guimarães (parece que já enobrecido) ( 2), quatro de filhos-de-algo,
e vinte e seis de «ordens» (dos quais vinte e seis se incluíam onze no couto de
Palmeira).

1288: «em Asperandey há hùa quintã que foy de Roy Faffez e outra que foy de
Tareija Faffez», honradas «de longe».

__________

(1 ) Gomes Peres que nas inquirições se chama «de Souto» não é de facto senão aquele
que as linhagens designam por «de Maceeira», cujo folho Lourenço Gomes (sem dúvida o pai de Pêro
Lourenço «Vencelho») foi dono da «quintã» de Sobrado, em Souto (S. Salvador): Inq. 7142, Vim. 360-361.
Por esta mesma ocasião, era dono da «quintã» de Penela, em Souto (Santa Maria), Gomes Lourenço «de
Cunha», irmão do referido Egas Lourenço, filhos de D. Maria Lourenço (Scr. 355 e 356), irmã do dito
miles Pêro Vencelho. O miles Pedro do Rego (da estirpe «de Gundar», pela mãe.

(2 ) Trata-se em 1258 de Reimondo Martins (a que num dos capítulos seguintes nos
referiremos a propósito da nobilitação burguesa), e seu filho Martim Reimondo honrava os seus bens em
várias partes, uns devassados, em razão sas inquirições de 1290 (Vim. 365), e outros já não, por se tratar
de «escudeiros» e, como tal, reconhecidos por filho-de-algo» (Vim. 367).

___147___
Aqui temos, pois, uma honra com limites próprios, mas originados como os da
de Rendufe – aqui mais facilmente ainda, por se tratar do honramento de uma «villa»
inteira, a qual tinha os seus limites próprios ou termo próprio.

Teremos de ver que esta honra provém dos Sousãos (desde, pelo menos, o
séc. XI, com o «conde» Gomes Eicaz), mas em 1258 não se cita «quintã» alguma, o
que não significa inexistência. Assim, como se compreende, deve ter sido uma só de
início, a qual quinda teria sido única com D. Fafe Godins, que é pai dos dois irmãos
Fafes, Rui (citado em 1258 aqui com dois casais) e Teresa referidos. Ora tudo indica
que esta D. Teresa Fafes com seu marido (João Peres «de Urgeses»), estabeleceu
uma «quintã» no seu casal honrado, a qual era em 1258 de Martim Anes «de
Formoselhe» (1). Este foi, de facto, um seu filho ( 2), razão porque ela (ao contrário do
irmão) se não cita aqui em 1258.

A estrutura predial desta honra de Esperandei era a seguinte: «E per razom


destas quintãs tragem toda a villa de Esperandey por honra, que som onze casaes: de
Santo Tirso (parte, pois, dos onze casais deste mosteiro citados em 1258), de Rooriz
(citam-se nesse mesmo ano seis deste mosteiro) e de herdadores; e nom hão hy os
que se chamam senhores da honra mais que três casaes» (3).

Estes três casais são, indubitavelmente, os dois de Rui Fafes e o de seu


sobrinho Martim Anes referidos em 1258, o que significa que nada tinha com a honra o
casal de uma dona sem dúvida da estirpe dos de Riba de Vizela, D. Maior Martins (4).

Do funcionamento desta honra, são uma expressão as circunstâncias


seguintes: «Em tempo de el rey dom Sancho prestumeiro (D. Sancho II), entrou hy um
moodomo a penhorar em ovelhas de uma mulher e matou-o

__________

(1 ) Inq. 6991. Martim Anes é da estirpe de Urgeses, de que falamos adiante.

(2 ) «foy créligo e nom ouve semel», Scr. 329.

(3 ) Vim. 365.

(4 ) Scr. 347.

___148___
por em Godinho Fafez (1), e ora tragem hy seu vigairo e des entom nunca hy entrou
moordomo nem porteiro, salvo se nom quer chegar o seu vigairo».

Estudaremos o que este comportamento significa: os senhores da honra não


admitiam que os oficiais da coroa levantem nelas coimas ou «peita», pois têm vigário
próprio que fará as entregas (entrando aqueles apenas quando ele o não faça).

g) «Quintãs» em Tagilde:

1258: há na freguesia trinta e sete casais, assim distribuídos: seis da coroa


(reguengos), vinte e três de «ordens» (dezoito dos quais incluídos no couto do
mosteiro de Vilarinho), e os oito restantes de filhos-de-algo.

1288: «A quintãa que chamam as Quintãas que foy de dom Gil Martinz»,
honrada «de longe» com dois casais da igreja paroquial («e per razom desta quintãa
honram dous casaes que estam a par della da eigreja de Taagildi»). E também: «A
quintãa que chamam Santiago de Padroso que foy de Vicente Rodríguez de Penella»,
também honrada «de longe», com todo o lugar: «e per razom dessa quintãa tragem
toda a vila por onra e ha hy (na honra) nove casaes de moesteiros e de eigrejas» (2).

Já vimos que a primeira destas duas «quintãs» procede da estirpe dos «de
Riba de Vizela», mas, em 1258, não se cita mais que um casal «domni Egidii», que é o
D. Gil Martins dessa alta linhagem. Todavia, há nesse ano na freguesia um casal de
Pedro Anes «de Paiva» e dois de Martim Fernandes «Pimentel», casais esses que
devem pertencer à honra das Quintãs, porque aquele nobre (Pedro Anes) é sobrinho
materno de D. Gil Martins, e o outro (Pimentel) é cunhado deste – casado com D.
Sancha Martins, de quem ele fora amante em vida do marido ( 3). Esta estirpe era aqui
tão preponderante que em 1220 os casais reguengos da freguesia eram trazidos

__________

(1 ) Gonçalo Fafes por erro, mas é Godinho Fafes «o Velho» (que tinha a «quintã» por sua
esposa da estirpe dos Sousãos), porque Godinho Fafes seu neto (irmão de Rui Fafes) não teve aqui
bens.

(2 ) Vim. 361.

(3 ) Scr. 311; LV1 23, etc.

___149___
em prestimónio por D. Fernando Anes, tio dos ditos D. Gil e D. Sancha (1).

A outra «quintã» (Padroso) também não é referida em 1258, mas igualmente


apenas um casal daquele que foi dono dela: «aliud est Vincencii Roderici», que é o
citado Vicente Rodrigues «de Penela». Não vemos nos antepassados deste miles
qualquer ligação com o termo vimaranense: o pai é da estirpe alto-minhota «de
Valadares» e a mãe da «de Penegate» e foi casado na «de Portocarreiro»; e o próprio
Vicente Rodrigues casou com uma cuvilheira da rainha D. Urraca (esposa de D.
Afonso II) «e era molher pouco filha-de-algo» (LV 1 65). De preferir, pois, que esta
honra tenha sido da estirpe da honra ou couto de Penagate.

h) «Quintã» de Urgeses:

1220: Seis dos casais reguengos são trazidos em préstamo por D. Vicente
Peres «Salvadores» e cinco casais e outros mais prédios, igualmente reguengos,
também em préstamo, por D. Fernando Peres «Salvadores».

1258: Trinta e oito casais na freguesia, com esta distribuição: sete de


herdadores (alguns deles burgueses de Guimarães), onze da coroa (reguengos – os
mesmos, pois, de 1220), dez de «ordens», e dez de filhos-de-algo; e ainda quatro
«quintãs», uma delas de herdadores não nobres, outra de Miguel Mendes, que deve
ser nobre (pois, não se lhe diz foro à coroa), outra de herdadores burgueses de
Guimarães, nada se dizendo da restante. Esta, pois, era propriamente a da estirpe
nobre «de Urgeses».

1288: «a quintãa que chamam Ulgeses», honrada «de longo tempo, quanto à
quintãa com seus casaes»; e uma outra «quintã», que tinha sido de Pêro Nunes,
honrada somente «quante o corpo da quintãa».

Em 258, de facto, citara-se a «casa» deste nobre, «domus Petri Nuniz», mas
não como «quintã»: devia, porém, sê-lo.

A estirpe «de Urgeses» entronca, como veremos, no miles teresiano e afonsino


Salvador Mendes (Salvador Dente) – e daí o chamamento Salvadores aposto aos

__________

(1 ) Inq. 4; Scr. 347.

___150___
patronímicos dos dois referidos irmãos de 1220, Vicente Peres e Fernando Peres. São
filhos de seu filho Pedro Salvadores, que desempenhou altos cargos na cúria (1170,
mordomo, 1183, dapífer: DR 296, 308, 354).

Vicente Peres «de Urgeses» casou na estirpe «de Pereira» – com D. Maior
Peres, que, enviuvando, passou a novas núpcias, com o rico-homem D. João Peres
«Redondo» (que, por isso, viúvo, tem aqui três casais em 1258). Um seu irmão, João
Peres «de Urgeses», casou com D. Teresa Fafes (cujos filhos têm por isso aqui, em
1258, quatro casais). O outro irmão, Fernando Peres «de Urgeses», casou na alta
estirpe «de Riba de Vizela» (com D. Teresa Martins), pelo que os filhos tinham aqui
em 1258 três casais (um desses filhos, o traidor a D. Sancho II, Martim Fernandes,
que, por dádivas, entregou o castelo de Leiria ao usurpador conde de Bolonha, em
1246). Enfim, a irmã daqueles três, D. Estefânia Peres, deve estar relacionada com a
«quintã» de Miguel Mendes, ou com a de Pedro Nunes (1).

Nove a dez «quintãs» realmente notáveis, quanto à nobreza, em entre Ave e


Vizela, são muito pouco se compararmos com a situação nas regiões circundantes –
sobretudo logo além dos rios. Entendemos nisto – repetimos – um efeito de
predomínio burguês, o dos «cidadãos» vimaranences. Mas não devemos daí deduzir
que a «quintã» nobre sofresse no número pelo da «quintã» burguesa: é que aqueles
moravam na Villa (Guimarães) – o que concorda com o silêncio sobre «quintãs» suas
através do território nas inquirições que lhes poderiam denunciar a existência, se esta
fosse um facto. No entanto, essa residência na Villa nem assim facilitava, no território,
a da alta nobreza – o que é bem a prova da enorme influência burguesa vimaranense
nele, pela nova ordem consequente dos acontecimentos de 1127-1128 (2).

__________

(1 ) Inq. 121 e 6991; Vim. 351.

(2 ) Cf. O nosso estudo Guimarães, 24 de Junho de 1128, final do cap. 4.

___151___
5. «Terras domnicas» e «dominicum-dominium»; donos e «donegos»;
acessões à nobreza.

Nenhuma das classes da população era fechada às outras na nossa Idade


Média; e o mesmo sucedia dentro de cada uma, com os diversos graus.

Mesmo que disso não houvesse as provas diretas que temos (as quais se
indicarão num dos capítulos seguintes), nada nos impediria de concluir – porque a
própria razão humana o exige – que a força impulsionadora principal desta mobilidade
haja sido o nível económico, a influência económica, alcançados pelo trabalho.

Nenhum indivíduo da nobreza ou do povo estaria, pois, impedido pela sua


própria condição de entrar no clero e atingir aí os mais altos níveis; nenhum do povo o
estaria por igual de entrar na nobreza, desde que, na conveniente liberdade pessoal,
se equiparasse, no grau económico, naturalmente, ao nível nobre mais acessível. E
nem mesmo podemos julgar que este houvesse de ser o nível imediato, isto é, o mais
baixo da classe acedida.

De reparar que até os diplomas régios, como os forais do séc. XIII, se não
instituem propriamente a nobreza no âmago do povo, criam neste as condições para
uma verdadeira aristocracia popular, que poderia vir a transformar-se naquela. As
equiparações de vilãos municipalizados a infanções em certos casos ( 1) não podem ter
outro significado consequente. Todavia e para maior relevo da nossa tese, nem será
sobretudo nos grémios

__________

() 1130: «cavaleiro (vilão) de Normam sit infanzone de aliis terris». Leg. 369); 166, «milites
de Elbora sint in iudicio pro podestades et infanzones de Portugal» (Leg. 392); 1179, «milites Conimbrie
testificentur cum infancionibus de Portugal» (Leg. 417) – são três exemplos suficientes para se considerar
estendida tal circunstância a todo o País.

___152___
municipais (ou pelo menos só nestes) que teremos de observar um tal género de
acessão. É que os privilégios municipalistas, além de suficientes para fixarem ou virem
a fixar uma condição social satisfatória dentro do setor do trabalho, nem sequer
tacitamente reivindicativa, eram contrários ao próprio estabelecimento ou residência
de pessoas nobres, sobretudo elevadas, no termo municipal ( 1). Não obstante isso, as
antinomias de classe existiam; mas essas mesmas antinomias significam, de um lado,
a tendência para a progressão e, do outro, a defesa contra essa tendência – que,
portanto, é indesmentível.

Tal acessão teremos, assim, de presenciá-la, em especial (ou de início), fora


desses grémios – e, por isso, lá onde precisamente povo e nobreza se misturavam,
viviam paredes meias, o paço nobre em geral junto das moradas vilãs,
independentemente de sujeição ou não sujeição senhorial destas a ele ( 2); ou,
portanto, em tudo a ruralidade que vemos marcar a nossa nobreza por uma herança
económica e até ética que deveria vir das origens que, num dos capítulos anteriores,
procurámos.

Não conhecemos, com efeito, caso algum de passagem de uma classe a outra
ou, dentro de uma classe de um nível a outro, obtida por efeito de violência ou luta
social, e ainda menos por estas como meio – o que nos inclina para, materialmente,
como temos dito, ver no facto um efeito de progresso económico obtido

__________

(1 ) Basta o exemplo da vila de Castro Rei (hoje Tarouca): 1263, «et meus ricus homo non
debet ibi pausare» e não só isso: se ele aí estiver de passagem e quiser comer, faça-o, mas pagando
devidamente, «pro suis denariis» (TT Doaç. de D. Af. III, L. 1, fl. 120). Aponte-se, ainda, o caso de
Guimarães, cujo burguês não dará pousada a qualquer nobre a não ser «pro amore» ou com paga (Leg.
350); e isto nos faz lembrar uma figura de um vimaranense (Domingos Anes «Mouro») «cidadão muito
honrado», isto é, um burguês dos meados do séc. XIII o qual «abria as portas a escudeiros e a
cavaleiros» (Scr. 343).

(2 ) Os paços senhoriais, vários subsistentes ainda materialmente, outros apenas


recordados na toponímia (Paço, Quintã, Torre, e até, para confirmação do recuo que desta ruralidade
fazemos à época sueva, o topónimo Sá – assunto que já constitui pelo menos parte de um capítulo deste
estudo), erguiam-se em geral em locais que só depois da construção se honravam sobre uma área demo-
agrária mais ou menos extensa. Não é preciso dar exemplos, porque basta abrir a esmo as inquirições do
séc. XIII (1220, 1258, 1290).

___153___
pelo trabalho, e, moralmente, até uma capacidade de receção ou acolhimento
benevolente da parte dos altivos membros da classe ou nível acedido (1).

Podemos assim principiar por evocar o que se passa evolutivamente com os


juniores, que, por sua condição solarenga, não sendo inteiramente livres, podem,
primeiro, embora sob duras privações, adquirir a liberdade (tanto no caso do iunior de
hereditate como no do iunior de capite), e, depois, com essa liberdade e o nível
económico, atingidos por efeito do seu trabalho, chegarem mesmo a fazer parte da
«aristocracia» popular tanto nos grandes municípios como fora destes – nas condições
decorrentes do capítulo que, precisamente, em grande parte, para esta finalidade,
dedicámos ao iunior nos pontos de vista pertinentes (2). Daí à nobilitação, em
circunstâncias sociais favoráveis, já a distância não seria inviável – e não nos
surpreenderia que surgissem mesmo casos em que ela é atingida por antigos iuniores
(3). Antes disso,

__________

(1 ) Os casos conviventes, não faltam: 1258, indivíduos que possuíam prédios da coroa
«vam morar nas herdades dos cavaleiros e ficam as herdades (do rei) mal paradas» (Inq. 12212, etc.). Os
exemplos seriam inúmeros. A convivência levava mesmo a casamentos «desiguais» – sobretudo de
nobre com viloa (esta nobilitada desse modo), mas também de dona nobre com vilão: 1258, «casavit se
cum una domna» (Inq. 6172, 7741 8092, etc.). Perdia ela assim a isenção tributária e a nobreza, que,
enviuvando, poderia readquirir pela pitoresca cerimónia simbólica da albarda de burro por ela batida na
sepultura do finado com a declaração oral simultânea de repelir de si a vilania do marido (Cf. Fuero Viejo
I, 5, 17 – o que não prova que isto alguma vez vigorasse ou se usasse entre nós).

(2 ) Conc. Leg. IX e XI; Leg. 351; Inq. 8271, etc.

(3 ) A família nobre Casado, em Viana do Castelo e arredor imediato, é um bom exemplo.


Pruridos aristocráticos mudaram, tarde, Casado em Quesado (aproximando-o os genealogistas,
colaboradores desses pruridos, de Quesada nobre, espanhol, com que nada tem). Os Casados são,
ainda no séc. XIII, «fossadeiros»: o chefe, Paio Casado, vive, em 1258, na Meadela – meio bastante
favorecido socialmente então e em que é esta família a mais qualificada (Inq. 3312). Nos séc. X e XI,
temos «casata» e «fossadarios» (DC 223): os Casados são, em origem, meros «casados» (casata),
solarengos – iuniores que evoluíram a cavaleiros-vilãos, o passo para acabarem por enobrecer-se. Menos
dubitativamente que nunca, repomos a nossa doutrina do capítulo dedicado aos iuniores.

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porém, ou na maioria das vezes, seriam burgueses municipais ou então burgueses
fisiocratas (estes os que aqui mais interessam, pelo ruralismo), esses antigos iuniores
– «donegos», como veremos, muitas vezes, e a que devem reportar-se numerosos
casos de terras dominicatas ou rationes domnicas de terras.

Podemos igualmente invocar a possibilidade de um peão (jugadeiro),


naturalmente a primeira metamorfose do iunior, passar a cavaleiro-vilão (que o iunior
poderia logo vir a ser, se possuía cavalo com atondo suficiente e o mais, necessários
à milícia) (1), ou seja, ter bens que tudo isso lhe permitissem. Nisto mesmo se nota
uma vez mais a dependência económica que sempre subjaz a pertencer-se ou não a
um certo grau da classe popular (como vimos suceder na classe nobre).

Não haveria, pois, uma dificuldade insuperável na transição vilã à não vilâ – e
nem precisaríamos de relembrar a equiparação feita por vezes de milites villani a
infanzones (até porque respeita a municipalizações). Na realidade, os encargos eram
praticamente os mesmos dos milites nobres: o serviço militar a cavalo com
apetrechamento à própria custa, aquilo mesmo que se chamava a honor vilã nos
municípios (2) e, na mesma categoria popular, também fora deles. E não desconvém
lembrar que a anúduva (além do serviço no exército em tempo de guerra) era
precisamente o encargo dos infanções já na época em que temos as primeiras
notícias deles (3):

__________

(1 ) 1020: «liber ubi voluerit cum cavallo e atondo suo»: Conc. Leg. C. 11; 1258, «tenebat
caballum pro ad defendendum ipsam cabalariam», e assim «servire regi cum caballo et armis quod est
cabalariam», e, assim «servire regi cum caballo et armis quod est cabalarias»: Inq. 8321. Dispensamo-nos
de dar mais que este exemplo entre inúmeros de uma situação generalizada.

(2 ) 1111: em caso justificado de «aliquis militum non possit militare sit in honore militum» ou
«stet honoratus» (foral de Coimbra, Leg. 356). O mesmo que «stare in suo foro», ter a sua «hereditate
bene defensa» ou «sint cautata» (Leg. 360, 361, 376). O contrário, na pessoa e nos bens, seria uma
desonra: 1174, «percursserit vel desonraverit caballarium» (foral de Monsanto, Leg.397). E para vilãos o
que se encontra para nobres: 1258, a entrada de oficiais públicos como «desonra a fidalgos» (Inq. 4391).

(3 ) Baste-nos recordar um caso do séc. X: ipsos infanciones de Spelia abuerunt fuero per
anutba tenere» (cumprida em praças ou castelos determinados): doc. SA IV 73.

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ora esse mesmo encargo é o dos nossos milites villani (1), tão caraterísticos dos
grandes municípios urbanos (acastelados).

Enfim, tudo isto nos dá a compreender a existência de uma camada social tão
vizinha da nobreza, que se lhe chama milites per naturam – o que não quer dizer
integrados nela todos os milites do município, e, menos ainda, o geral dos milites
villani (os não municipalizados). Sem embargo, era natural a tendência destes para
esse privilégio; e temos de ver nestas circunstâncias, exprimindo-se na própria
designação «per naturam», a existência de uma certa hereditariedade de condição –
uma sorte de aristocracia vilã de sangue (2). O facto não impedia que o miles villanus
que não cumprisse o encargo militar perdesse a categoria, passando a peão, ou seja,
à obrigação militar a pé e à de todos os encargos tributários, por vezes muito pesados,
dos jugadeiros.

No entanto, não era uma demasiada onerosidade que impedia o jugadeiro de


conquistar um nível económico que lhe proporcionasse o de vida análogo ao do
cavaleiro-vilão – e nada repugna crer que muitos jugadeiros, tendo podido passar a
esta categoria e não ingressando nela, o faziam por preferência cujos motivos seriam
mais psicológicos talvez do que materiais. De qualquer forma, tão proprietários eram
os cavaleiros-vilãos como os jugadeiros – o que é de importância fundamental para a
compreensão do chamamento «nobiliárquico» que uns e outros muitas vezes usavam,
o de «dom».

__________

(1 ) Por exemplo, os de Tarouca (um município de género diferente dos da Beira, onde os
milites villani não parecem dependentes de tal organização popular) têm por único encargo «ire in hostem
et anuduvam cum caballo et armis et permanere in hoste sive in anúduva per sex ebdomadas», além da
revista anual perante o juiz de Tarouca no dia de S. João. (Inq. 10711 e 10751).

(2 ) 1142: «si miles per naturam ibi perdiderit equum suum et recuperare non potuerit senper
stet in foro militis. Alius vero miles qui non fuerit per naturam si perdiderit equum suum set in foro militis
per duos anos» (foral de Leiria, Leg. 376). Em Tarouca, o cavaleiro que não cumprisse passaria a
jugadeiro: «si non aparuerint (no alardo) dabit jugatam»: Inq. 10751 (cp. Inq. 8362). Era sempre uma
questão económica: «de jugata descendit in regalengum» (Inq. 8362), etc.

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Uma outra circunstância é apreciável neste ponto de vista da aproximação à
nobreza que a condição vilã poderia alcançar: os nobres moravam nos seus paços,
edificados numa área demo-agrária mais ou menos privilegiada chamada «honra» e
até «couto» (como teremos de estudar atentamente); de parecido modo, as famílias da
camada superior vilã (os cavaleiros municipais, per naturam ou não) viviam nas suas
vilas, geralmente acasteladas e protegidas por uma imunidade territorial à volta delas
e igualmente chamada «couto» – os coutos municipais (1). Os cavaleiros vilãos não
municipais encerravam-se em casas-pátios, que eram verdadeiros fortins e se
denominavam «quintãs». Estas encontram-se em qualquer das classes nobre e vilã
(nesta, peões e cavaleiros), mas sobretudo na nobre; todavia, para a vilã, eles
constituíam a defesa quase única ante a força abusiva da nobreza (2).

Em suma, a distância social que separasse um miles villanus de, por exemplo,
um «cavaleiro de um escudo e de uma lança» (3) não poderia ser sensível – ou, pelo
menos, de difícil anulamento (4).

Toda esta solicitação natural para a nobilitação mediante o progresso


económico que concretizava uma

__________

(1 ) Criação régia em geral expressa, como nos casos nobres: 1125, «cauto et decreto
facio» (foral de Ponte de Lima, Leg. 165). Os exemplos são numerosos.

(2 ) Da «quintã» nobre, pudemos já ocupar-nos detidamente, e por ela se fará agora a ideia
material da não nobre. Por isso mesmo, era nos municípios um dos crimes mais graves a violação da
«casa» (Leg. 347, 384, 385, etc.), da «quintã» («quintana seu domus dirupta»: LDT 22 e v) ou, no mesmo
sentido, «eira» («eyra disruperit», Leg. 379) – porque a casa do cavaleiro-vilão deve ser sempre uma
«casa honorata» (Leg. 385).

(3 ) Scr. 345. Esta condição não era forçosamente uniforme numa mesma família: mais uma
vez, questão de economia.

(4 ) A alcunha Cavaleiro Novo não pode ter outro sentido: 1258, «Alfonsus Suariz et
Johannes Petri Cavaler Novo milites» com bens cerca de Viseu (Inq. 8042 e 8022. Uma sua filha aparece
em 1230 com parte do padroado de Santa Cruz da Maia: Sancha Anes «filia Johannes Petri dicti
Cavallarii Novi» (doc. CP 118). Aliás, é o caso de todas as épocas, podendo lembrar-se, em 1416,
Gonçalo Vasques de Melo «cavaleiro velho» (por condição social), isto é, da nobreza anterior à que se
ergueu com a crise de 1383-1385: Chartularium Universitatis Portucalensis, III, p. 90.

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tendência psicológica (a ambição de superação social é fenómeno de todos os
tempos) explica o chamamento de «dom» que já do séc. X para o XI, e cada vez com
mais frequência, se usa individualmente entre gente vilã ou de condição comum. Se
não tivéssemos muito mais, e até, talvez melhor, por onde deduzi-lo, como já o
fizemos, seria mesmo tal tratamento um ponto de partida. É que a palavra «dom», pela
sua própria origem, tinha o significado de proprietário, tornando-se concomitantemente
honorífico – até que o sentido primitivo desapareceu.

Com o início do tratamento de «dom» em gente do povo, coincidiu o final, ou


pelo menos a rápida decadência do tratamento de «tio», que se dava nas condições
pessoais e sociais em que passou a dar-se o de «dom». Quer dizer, a qualquer
pessoa possuidora de «algo», a um «filho-de-algo» inicial («filius honorum», ou outra
designação), o «dono» atual desse «algo»: porque os «tios», de facto, são sempre
proprietários (1). A sucessão cronológica de «dom» a «tio», sem que esta palavra se
refira a parentesco, significará a sinonímia (2).

__________

(1 ) Num documento de finais do séc. X (embora sem data): «hereditate de tiu Gontado
medietate de tiu Justu medietate de hereditate de tia Emiso» (DC 9529, DC 416, 420, 477; LF 349, etc.).

(2 ) O termo «tio» não tinha de origem o sentido de parentesco que hoje tem. As leis
visigóticas, que na Reconquista vigoravam, como sempre, são a tio e tia maternos as de avunculus e
matertara – e ainda se usavam estas designações do séc. XI para o XII: 1084, «matartara nostra domna
Leta» (LF 412), etc. (Cód. Vis. II, 4, 12; IV, I, 3: nunca aparece «tio» ou «tia»). Talvez já na Reconquista a
palavra se fosse usando no sentido atual, mas duvidamos: os casos que conhecemos sõ os da condessa
Mumadona I «tia» de Raimundo II (este assim a chama, e ela diz «tio» deste rei o irmão dela, conde
Ximeno) e da condessa de Portugal D. Toda «tia» de Afonso V (DC 71, 76, 81, 223), mas não deverá
esquecer-se que, apesar de muitos esforços dos investigadores, não se tem conseguido demonstrar entre
eles um tal tratamento como parentesco. Será ele antes honorífico, de especial veneração, como na
origem da palavra: lat. thius, do gr. theios; e, sendo os irmãos dos pais os parentes mais venerados, nada
de surpreender que se lhes fosse dando um tratamento de veneração «paterna» e «materna», tio e tia.

Certamente na persistência do antigo sentido, ainda se usa a palavra «tio» entre o povo como
tratamento carinhoso e de

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A tendência plebeia para a nobilitação, por muito desfavorável que nessas
épocas, ainda a situação das classes populares fosse, tem, sendo assim,
manifestações anteriores ao séc. XI – e devem, pois, considerar-se de todos os
tempos.

Portanto, esses possessores «tios» (ou, depois, «donos») deviam possuir, em


muitos casos a divitia condicional da aquisição da nobilitas (de acordo com o tão
expressivo esquema social de 968: «dives pauper nobilis innobilis», DC 99), ou uma
divitia fisiocrática que já havia sido a origem da nobreza romana. Do séc. XII ao XIV,
são singularmente abundantes esses indivíduos de condição comum tratados de
«dom» (proprietários ou artífices, ou simultaneamente uma coisa e outra, dado o
caráter único da riqueza então – a posse da terra), tratamento esse muitas vezes
aposto a alcunhas (1).

Isto encontra-se tanto fora dos grandes municípios (de caráter urbano), ou seja,
onde a ruralidade o traço dominante, o de uma fisiocracia elucidativa, como dentro
deles, e nestes ocupavam tais «donos» geralmente as magistraturas ( 2) – o que está
de acordo com a sua qualidade de «homens-bons». Estes, porém, existiam nos
municípios rurais e ainda fora de qualquer organização municipal, verificando-se assim
o necessário caráter de generalidade.

__________

familiaridade amiga, nada tendo em contrário deste sentido o intento pejorativo que gente mais
«evoluída» lhe imprime (sobretudo no diminutivo) ao tratar com o «povo».

(1 ) Casos de agricultores: os «homens lavradores» dom Belói e dom Rando (Inq. 9272),
«domnus Reimondus herdatoris» e «dom Vivas herdador» (Inq. 5331 e 9601), alguns deles pesadamente
tributados (fossadeira, etc.), como se revela nas designações prediais «casal de don Mido», «erdade de
don Luzo», «erdade de don Jordano» (Inq. 2952, 3202, 2972). Casos de artífices, que deveriam ser ao
mesmo tempo agricultores: «domno Durando carpentario», «domno Tome faber» (ferreiro», «dom
Meendo sapateiro» (Inq. 6001, LDT 56, Inq. 10371); e também «domno Silvester Mercator» (comerciante):
Inq. 5221, e até «domnus Sebastianus homo spiscopi» (Inq. 5541; etc. Casos de alcunhas «donificadas»:
«don Costal», «dom Pássaro», «dom Bispo», «dom Várzea», «dom Cogão», «dom Villão» (Inq. 3312,,
3441, 8622, 10732, 7782, 5382), «dom Guimarães» (LDC 22 v), frequentíssimos.

(2 ) «don Bono alcalde» (1190, Gouveia, LDT 62); «domno Tizõ» alcalde (1242, Trancoso,
LDT 44 v); «domno Paris» alcalde (1218, Trancoso, LDT 45 v), etc.

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Compreende-se que nem todos esses homens-bons do povo fossem tratados
de «dom». É que isso partia de terceiros para eles, porque nestes, além da condição
material, se encontrasse alguma razão moral e até física, ou um conjunto de
condições que nem sempre concorreriam no indivíduo; mas também casos há de dar-
se «dom» a si próprio (). São geralmente além de artífices, «homens lavradores», e
estes nem sempre cavaleiros-vilãos, mas «peões melhorados» ou de condição
jugadeiros (2).

Tudo o que acabámos de expor, para além da necessidade doutrinal no nosso


trabalho, constitui o indispensável introito à compreensão do sentido da palavra
«donego», «donega», ignorado por completo pelos nossos autores. O seu significado
fornece importantes dados para um estudo do nosso regime senhorial e da
emancipação das classes populares.

Temos todas as razões para crer que o facto de não ter sido ainda notada uma
tal designação se deve a confusões com o nome pessoal Onego, Onega (3), pelo me-

__________

(1 ) 1208, «ergo dona Ovaya Johannis» e «ego Ovaya», a mesma (LDY 17); «ergo dom
Felix de Tarauca» (1175, LDT 17 v). Umas vezes só «dom» o marido, outras só a esposa (Inq. 10491).
(2 ) 1288, um prédio trazido por honra era «de omnens que nom som filhos de algo, mays
som peões melhorados»: Vim. Mon. Hist. 356, em 1288, tempo em que, como veremos, já se ia
confinando o tratamento «filho-de-algo» a pessoas nobres. Enfim, em geral, «homens lavradores», Vim.
385.
(3 ) Onégo e não Ónego (Onega e não Ónega), ao contrário do que, ultimamente, alguns
autores (P. Merêa, J. Mattoso), começaram a escrever. A forma romance foi sempre aquela, e teria de ser
Ongo (Onga) se se tratasse de esdrúxula. De resto, temos na toponímia formas aferéticas Nego e Nega
(quando não provêm de Donego e Donega). Cfr. Oveco (e não Óveco), «D. Enhego de Mendoça», LV 1 83
(cp. O esp. Iñigo), etc.
Da confusão bastam alguns exemplos. Como em 1032 nos aparece «si senra donega» (LF 181),
o publicador do documento (prof. Avelino Costa, Lib. Fid. I, p. 214, nota) pretendeu esclarecer a
estranheza que ali achou:«este nome repete-se noutros documentos, mas parece que deveria ser antes
de Onega como está marco de Ildebredo e não Dildebredo».
Em 1054, temos »vallo donnego» e «senra donega» (LF 187), e o mesmo publicador persistiu
nas explicações equivocadas: «parece que devia ser antes de Omnego e de Onega».
Um doc. De 1112, em que ocorre «illa domnega» (DP 391) foi publicado por Rui de Azevedo com
esta nota: «No original,

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nos (1). Os casos concorrentes, porém, são tais e tantos que nunca será possível a um
exame superficial, mas exame (o qual nunca se fez), pensar em tal antónimo. Caso
contrário, quando por mais e muito melhor não fosse, teríamos de supor neste um uso
extraordinariamente vulgar, muito superior ao de qualquer outro nome pessoal, o que
está deveras longe de suceder, além de nem poder explicar-se uma tal predileção por
um nome basco, que ele de origem é.

__________

está, as três vezes, domnega» – pelo que resolveu explicitar «Illa d Omnega (?)».

Verdade que já nos ocorre no séc. XII uma certa confusão: num mesmo doc., temos «Omnega
Cidiz» e «Onega Cidiz» (DP 91), e noutro «Omnega Vermudiz» e «Onega Vermudiz» (DP 132). Somente
os segundos casos são exatos – e, de qualquer modo, isso em nada justifica o motivo dos autores
referidos, porque o nome é sempre Onega (e não se contém Donega ou «d Onega».

(1 ) Um notário toponimista, que foi considerado cerimonialmente entre nós o pontifex


maximus no setor de que o geral dos historiadores ou historiógrafos tudo mostra ignorar (até o mais
rudimentar da ciência fonética), explica o topónimo Donegas por «don’Egas», baseado em Valdenaires,
que siz ser o mesmo que «Vale de don’Aires» (Joaquim da Silveira, A Nossa Toponímia, 1961, p. 43).

Não lhe objetaremos aqui o facto de, sem qualquer provocação e sem a menor justificação
científica, lhe devemos a amabilidade do arremesso de algumas frechas ervadas (ob. Cit, p. 3), mas por
necessidade de basearmos a tese que pretendemos explanar. Num tom tão eminente como descabido,
ironizava um equívoco nosso de GE XXX 723 1, de que não fôramos verdadeiramente culpados, pois
assentava numa forma que andava errada em todos os dicionários corográficos – desculpando, com a
mais subserviente camaradagem, a outros autores (mas de grande prestígio) erro iguais, ou piores,
devidos também a formas erradas, e expulsando a GE da lista bibliográfica. Ora, até nesta incluira
Camilo, apenas pelo título de uma obra em que se aplicava o artigo a um topónimo, e só por isso
constituía documento, ou merecia citação para este toponimista.

Aliás, já muito antes desse autor havíamos dado nós a «sua» explicação Donegas = Don Egas
(1957, GE XXXIV 236, o que deve esclarecer a expulsão da GE da sua bibliografia consultada, como se
de facto a não houvesse conhecido), mas não o diz.

Hoje, não temos tal opinião acerca do topónimo Donegas, porque, pelo menos, não poderíamos
explicar o seu singular e masculino Donego (Inq. 3022, 6402, etc.). Dizemos singular e masculino, pois
revela-se-nos de facto um nome comum. De resto, os nossos documentos escrevem sempre «dõ Egas»,
o que mostra que n se não pronunciava em «Don Egas» – nem sequer quando o nome próprio era
iniciado por vogal. Eis porque também não temos

___161___
De acordo com o que acabamos de dizer, vem o facto de, salvo os casos
isolados, que são muito poucos (Donego e Donega e seus plurais), a palavra aparecer
ligada a substantivos que designam prédios, limites de prédios e acidentes (naturais e
humanos) de prédios. Assim, à circunstância de a palavra «domnego» poder provir de
«domno» (para não recuarmos aos antecedentes latinos), liga-se, agora, a de ela se
referir portanto a propriedades rústicas designando-as ou às suas particularidades –
pelo menos de início. Não se trata, porém, de duas funções de um mesmo vocábulo,
uma de substantivo e a outra de adjetivo: são, mesmo, vocábulos diferentes, tornados
homónimos, um por formação e o outro, o mais antigo, por evolução fonética.

A forma adjetiva feminina «donega» nunca aparece ligada a substantivos


masculinos, e nunca «donego», masculina, a femininos – o que, por se tratar de
função sintática, prova uma categoria morfológica: assim, «quintã donega» e jamais
«quintã donego»; «pomar donego» e nunca «pomar donega». Não ocorre qualquer
exceção, o que é bastante para excluir-se da consideração o nome pessoal (Onego,
Onega) no segundo termo, ou seja que se trate de «quintã de Onega» e de «pomar de
Onego».

Certo que nada impede ter havido uma «eira de Onega» ou uma «leira de
Onega»: mas porque nunca uma «leira de Onego», uma «eira de Onego»? Certo
também que nada impede um «agro de Onego» ou «souto de Onego» mas porque
nunca, pois, um «souto de Onega», um «agro de Onega» – se de tal antropónimo se
tratasse?

Nas duas relações que seguem, procedentes de uma busca exaustiva


(«donega» sempre ligada a substantivos femininos

__________

«don Alvaro» ou «don Afonso» pronunciados Donálvaro e Donafonso: o n é apenas nasalador. São mal
entendidos como o do referido toponimista os casos publicados de «Donegas test.» (1032, DC 275),
Doneita (1156, DR 433), Doneiro (1258, Inq. 342 2), que não são «don Egas», «don Eita», «don Eiro» (Inq.
3422, mas também com «domno Eiro», Inq. 4171).Vale Donaires pode muito bem ter sido Vale de Nuno
Aires ou até Vale deMónio Aires. (Para outras fantasias daquele autor, ver o nosso opúsculo Vinte
Opiniões Ilustres, pp. 5-7 e 16-20).

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e «donego» sempre a masculinos), cada documento alegado indica um caso diferente:

- Para donega:

«cortinha donega»: 1258 (Inq. 4352),


«eira donega»: 1258 (Inq.6191 e 7101),
«fonte donega»: 1258 (Inq. 6972, Vit. Eluc. S. v. Coomha,
«lama donega»: 1088 (LF 297),
«leira donega» 1032 (LF 179, 1258 (Inq. 7272),
«quintã donega»: 1024 (DC 254), 258 (Inq.1),
«senra donega»: 1031 (LF 178), 1032 (LF 181), 1054 (LF 187),
«travessa donega»: 1068 (LF 243),
«várzea donega»: 1062 (DC 432),
«villa donega»: 1102 (DP 49), 1128 (DR p. 787), 1258 (Inq. 3031, 3252, 3831).

- Para donego:

«agro donego»: 1258 (Inq.4102 e 7252),


«casal donego»: 1258 (Inq. 6722 e 6751),
«paul donego»: 1258 (Inq. 6721),
«pomar donego»: 1143 (LD 33 v), 1258 (Inq. 3111, 2462, 3721),
«pomario donego»: 1258 (Inq. 5031, 5231),
«prado donego»: 1258 (Inq. 3781),
«souto donego»: 1137 (DR 162), 1258 (Inq.7252 e 8942),
«suco donego»: 1004 (LF 241), 1031 (LF 177, 178, 179 e 180), 1032 (LF 181),
1064 (LF 241),
«talho donego»: 1069 (LF 2432),
«vale donego»; 1258 (Inq. 6432),
«valo donego»: 1054 (LF 187).

E outros casos relacionados diretamente com tal qualificação serão adiante


tratados – e veremos que, ainda neles, a concordância sintática é sempre a mesma.

À primeira vista, dir-se-ia que estes casos são aparentes adjetivos devidos a
uma haplologia que, em tais complexos (tornados em geral toponímicos), teria
dissolvido a preposição da primeira sílaba do nome seguinte. Não quer dizer isto que
este seria, pois, antroponímico, evidentemente; mas, que o fosse, já objetáramos a tal
possibilidade, até com o uso bastante restrito do nome pessoal a considerar. Mesmo
desaparecendo a função adjetiva «domnego», naquela hipótese, ficava ainda mais

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abundantemente documentado o em tudo igual substantivo «domnego»: «eira de
domnega», «agro de domnego. Impossível, porém, admiti-la, pensar em tais
complexos preposicionais, porque:

- Em tantas dezenas de casos, há sempre aquela concordância («domnega»


para nomes femininos e «domnego» para masculinos), o que significa efetivamente a
função adjetival (qualificativa ou classificadora), e, portanto, que, aqui, se não tratava
de substantivo;

- Em todas as dezenas de casos exposto, nunca a preposição surge – quando


o contrário é que deveria esperar-se, ao menos nos casos mais «antigos
documentados (séc. X e XI).

Alguns daqueles casos são, atualmente, designações de povoações, e outros,


são-no de sítios habitados ou simplesmente com cultivo. Também os topónimos que
ainda existem e que não encontramos documentados (motivo por que não faríamos
figurar como elementos das relações expostas) não fogem à regra da concordância
sintática – de modo que, se de tal se necessitasse depois de tanta evidência, teríamos
nisso a própria corroboração. Podemos, de facto, acrescentar pelo menos os casos
seguintes, nomes de povoações hoje:

Eira Donega: f. Moreira de Rei, c. Fafe;

Fonte Donega: f. Infantas, c. Guimarães; e f. Sequiade, c. Barcelos;

Quinta Donega: f. Atei, c. Mondim de Basto.

Também nestes quatro casos, que fixaram toponimicamente três das espécies
atrás documentadas, não aparece uma forma masculina, e a razão é ser substantivo
feminino o primeiro termo (1).

Os casos documentados respeitam a um nome comum «domnego»,domnega»,


o qual, efetivamente, se pode comprovar:

- 1050, «tálios que fuerunt de domnega (DC 718):

__________

(1) São percisos certos reparos a algumas espécies daquelas listas. Não faremos grande
nota ao facto de o prof. J. Piel em Os Nomes Germânicos, p. 81, amalgamar nomes de origem latina com
nomes de origem germânica, supondo desta alguns que são nítida-

___164___
- 1112, prédio situado «inter illa domnega et illa de villaos» e «inter illa
domnega et illa de monasterio» (DP 391).

E os numerosos casos do topónimo respetivo Donego(s) e Donega(s),


confirmam a realidade desse nome, como veremos.

Com ele, porém, surgem-nos várias formas (várias na aparência) de uma


palavra muito semelhante, que se diria de facto uma variante fonética daquela, até
porque, também sem exceção, ela obedece à sintaxe da referida:

- 963, «pro illo vallo antiquo inter senra donica et gramocellas» (1).

- 1013 «hereditates in loco predicto super illo palacio domnigo» (2);

- 1032, «exceptis quarta que est ratione donniga et est ipsa corte» (DC 274);

- 1071, «illo plantato que plantarum nostros parentes in terra domnica» (DC
497;

- 1079, «torna per larea donniga et infesto per alia larea donniga» (DC 570) (3).

Bastam estes casos, não só para a documentação procurada mas também


para nos dispensarmos por uma

__________

mente daquela (Dono, Donelo, Domnica, etc.), do que, certamente, já ele próprio se deu conta há muito.
Em Inq. 3781, não se publicou «prado donego» (romance), mas «prado anoo», palavra
inexistente: deve ser a abreviatura «dñco» de donico, donnico, domnico, como logo verá quem tiver umas
luzes paleográficas – até porque «domnico» (donnico) está documentado (DC 459, etc.).
Em LF 241, não se publicou «suco donico», mas «suco domoo», que também é palavra
inexistente, aliás sem serem correntíssimos, como se sabe, os casos de se ler ni por m, co por oo, etc. O
que ali está de facto é «donico», que várias vezes surge.
Em LF 249, o publicador (ou o copista do séc. XIII) entendeu «talio do nego» (nem ao menos o
que poderia ser: «talio d Onego», em vez de «talio donego», forma que não falta.
(1 ) Doc. In Arq. Port. XXVII, p. 153.
2
() Publicou-se «obdinigo», palavra não só inexistente como linguisticamente inexplicável.
Umas tinturas paleográficas explicam que do- inicial poderia ler-se ob-, e o m ler-se do, sobretudo por se
não poder ler «obmigo».
(3 ) A publicitação fez-se «doninga», que é forma inaceitável, embora possa admitir-se uma
nasalação da tónica por efeito do mn anterior; e nem por isso o significado se alteraria. Mas é muito mais
natural a correntíssima confusão de m e n, u e i (vogais ou consoantes) isolados ou em grupo: ou seja,
ler-se nin em vez de nni.

___165___
vez de insistir no que representa a invariabilidade sintática ( 1). Mas serão domnica
(domniga) e domnega, para não nos reputarmos ao masculino, palavras diferentes, ou,
sendo uma só, em variante fonética, terão significações diversas?

É indispensável lembrar que, no latim clássico, já existia a forma domnica (2), a


qual não pode deixar de ser a origem das formas já documentadas e que reputamos
sucessivas (na evolução fonológica daquela): domniga e donniga (3).

A evolução, de resto, parece ter-se feito bastante divergentemente, conforme


aos hábitos glóticos das populações. A coleção completa e a comparação cuidadosa a
que procedemos sobre as formas documentadas nos nossos diplomas e
representadas (essas e outras) na toponímia, podem habilitar-nos a arquitetar a
seguinte genealogia fonética de domníca (que, nos nossos casos, é sempre palavra
adjetiva):

__________

(1 ) Um caso único que conhecemos que pareceria exceção à concordância: 1258, «per
medida do nego (sic, Inq. 3481), que se poderia julgar estar por «medida donego». Mas trata-se de uma
medida de capacidade (não se refere a prédio ou acidente de prédio): «medida d Onego». Não faltam, de
facto, casos análogos: os mordomos da coroa davam por vezes o seu nome a certas medidas que se
usavam na «terra», onde ficavam a ser assim designadas: cfr. «talida de Jogundo» em «terra» de
Lamego, o qual Jogundo foi aí mordomo do aro (Inq. 10501, etc.).

(2 ) Séc. II, imperatriz Júlia Domna; séc. VII, o papa Domnus, Domno; 976, Domnicon, DC
112. Nas inscrições, «domnícus» como variante de dominicus: Magnum Lex. Lat.-Lusit. (1833) p. 223. Ora
a síncope do i exigia uma acentuação *dominicus (paroxítona), palavra que estará para dominare como
amicus para amare, apricus para apricare, siccus para siccare, etc. Donégo e Donéga (e não Dónego e
Dónega) estão de acordo.

(3 ) As formas domnica (DC 497) e «donnica» (Arq. Port. XXVII 153) são variantes destas.
Cp. as duas pronúncias Donegas e Donecas em Várzea da Serra, onde há este topónimo.

___166___
As formas encontráveis nos nossos documentos escritos aparecem na
toponímia: Presa Dónica; Vinha Dóniga; Vinha Dónia e Souto Dónio; Pena Donga.

Evidentemente que o sentido dominical carateriza totalmente o termo


*dominícus em qualquer prédio rústico ou urbano, ou em acidente do mesmo – dos
quais ficam os numerosos exemplos. E tudo nos conduz a concluir uma relação com a
nobreza, e não com a vilania fisiocraticamente melhorada. Para o julgarmos, nem será
preciso aprofundar a análise daqueles casos e as suas situações históricas ou a de
outros.

a) O palacio domingo de 1013 pertence a São Martinho de Conde (c.


Guimarães): bastaria o velho topónimo Conde para estabelecer tal relação (DC 420); e
nem mesmo nos interessa mais a identificação desse conde (que é o marido da
condessa de Portugal Mumadona II: AF3 134-135 e 148-154) que a identificação desse
mesmo «palacio domingo» à «casa de Sancto Martino», que era aí a residência condal
(de Mumadona II, pelo menos, antes de, já viúva, se recolher ao mosteiro de
Guimarães: DC 212). Na localidade, há também o topónimo Donegas, que não se
refere à nobreza, como veremos, mas que é uma feliz combinação, por se tratar da
vilania melhorada ao lado daquela.

b) O caso da ratio domniga de 1032 combina também nobreza e vilania:


trata-se da doação de talhos de salinas ao mosteiro de Matosinhos (antepassado do
de Bouças), excetuada uma parte, que era ratio domnica. Deviam ser prédios
organizados por iuniores em terras dominicais (de seus seniores), ficando propriedade
desses iuniores com uma reserva domnica (dominical), da qual eles, portanto, não
podem dispor.

c) O caso da terra domnica de 1071 é o mesmo, e as expressões sob que


se nos apresenta esclarecem o caso anterior. Trata-se da venda de parte do
«chantado» (ou plantação) que os pais ou avós dos vendedores haviam organizado
em terra dos senhores (a terra domnica), ou seja, as suas «rationes integras de ipso
plantato» e que eles, efetivamente, possuem «de parentela»: solarengos, pois, que, de
acordo com a doutrina exposta no segundo capítulo deste trabalho (cfr. ainda DC 263,
etc), se haviam tornado proprietários de uma parte desses «chantados» em terra
dominíca.

___167___
E não devemos deixar de comparar este caso com as expressões de outro
documento do mesmo ano de 1071:

-ipsos quiniones… illo plantato que plantarum nostros parentes in terra


domnica (DC 497);

- «et plantatos nostros que fecimus in terras extraneas» (DC 504).

Neste segundo caso, não se fala de quinhões, porque os proprietários são


livres, tendo arroteado em «terra extranea», terra que não é de ninguém em particular,
ou é pelo menos alodial: por isso mesmo, não há referência a terra domnica. Neste
caso, não se trata, pois, de iuniores de qualquer categoria – e a «terra extrânea» é
uma terra indominicata, enquanto que a dos solarengos é terra dominicata.

Um outro caso, de 1067, a que ainda não nos referimos nesta documentação,
exprime-se na frase «divide sursum in cima cum domnica» (DC 459). Não podemos
dizer se «domnica» é o substantivo referido e de cujo sentido ainda não tratámos
devidamente (embora já adiantássemos que deve reportar-se à vilania melhorada), se
é um adjetivo substantivado: «domnica» sc. terra. Se este segundo caso, temos aqui
uma contraposição de terra dominicata a terra indominicata, colindantes: uma, de
nobres, a outa de vilãos escusos.

Deve ser o caso do casal de que em 1157 dispões um alto prócer ou senhor:
«ipsum kasalem cum formale et cum suis terris de foris» (doc. BF 180). Os prédios de
um casal podiam não ser conjuntos, e esta possibilidade de um formal disperso ( 1)
parece-nos facilitar a interpretação do que seriam as «terras de foris», que eram do
casal e não faziam propriamente parte dele: quanto a nós, são elas as de um iunior, do
solarengo desse casal (ou colaço, cuja situação jurídica devia ser análoga), o qual
iunior, apesar de suas próprias, devia delas foro ao seu senior. Não eram elas, de
facto, de todo alodiais, porque nem ele era inteiramente livre: e tanto assim que o
iunior só poderia vender metade a homem de beetria ou a nobre (2) – ou naturalmente
todas a outro iunior.

__________

(1 ) TT Sé de Lam. Compras etc. nº 47 (séc. XIV).

(2 ) «nisi solummodo mediam hereditatis de foris»: Conc. Leg. C. 9 § 1.

___168___
Ora, a outra metade, em nosso entender, é que deveria ser a «terra domnica» de que
vimos tratando.

d) Os casos toponímicos sem documentação escrita só indireta ou


circunstancialmente podem ser tratados, mas os resultados não são menos de
considerar:

Presa Dónica pertence a uma localidade onde existiu uma honra estendida a
numerosos casais, «propter dominium quod habent» (1).

Vinha Dóniga e Vinha Dónia são o mesmo, com «dónia» (2). O segundo destes
casos encontra-se em localidade que foi uma honra típica de uma das mais alteas
«stirpes» e herdada por outra, não menos alta, a «honor de Ribadellas» (3). O
primeiro, embora o não localizemos precisamente, pertence a uma zona em que tinha
os seus principais domínios uma daquelas altas «stirpes» já muito antes da
Nacionalidade (4). De Souto Dónio é natural que afirmemos parecidamente, embora
não possamos precisá-lo (5).

Pena Donga (ou Penadonga) pertence a uma localidade que conta na sua
história pré-nacional altas figuras daquela e outras linhagens, e o lugar entrou no couto
de Tarouquela (6).

__________
(1 ) Marecos, c. Penafiel; 1258, Inq. 5892. Não quer dizer que o topónimo seja deste tempo:
a honra ou o dominium era aí antigo. Por outro lado, «presa» (a represa de água) é palavra de uso
remotíssimo: «presa aque», BF55; «presa de molino», DR 300. Tudo se combina aqui para uma
antiguidade pré-nacional da circunstância.
(2 ) A terminação -nia átona não podia ter sido a primitiva (seria hoje, nesse caso, Donha):
de origem, «vinha do(m)niga» e, depois, Vinha Donia; mas, como o o era aberto, verificou-se o mesmo
fenómeno de pronúncia popular que em «sádia» (por sàdia) e «hótel» (por hòtél). A perda do g já se devia
ter dado pelo menos no séc. XIII: 1258, «sautum qui vocatur Donio» (Inq. 8941). Cp. Petra de Aquila (DR
49) > Pera de Aiga (Scr. 344) > P(e)radaia (topónimo)): cfr. o popular «aua», por «auga» (lat. aqua). (Não
confundir com Donia = Donina, LF 233 e 234.
(3 ) Primeiro, na famosa honra de Lalim (TT. Inq. de D. Din. L. 4, fl 35 v), e depois separada
1
(Inq. 1084 ) – da «stirpe» gascã passada à sousã.
(4 ) A do mosteiro de Pendorada, da «stirpe» gascã: «ajudar à vinha doniga»: doc. Vit. Eluc.
s. v. Coronio (onde o autor julga tratar-se de um nome pessoal, Oniga, que aliás nunca existiu).
(5 ) Inq. 8941.
(6 ) Cfr. o nosso art. GE XXX 754-758. Hoje, já se vai dizendo Pendoa (Pendõa), que
absolutamente nada tem com «pendão» (Dic. Univ. IX 492, dir. Ed. de Noronha).

___169___
De todas as formas divergentes do lat. domnica, é «donega» aquela que tem a
mais vasta representação toponímica, certamente por se tratar da mais normal (pois
que as outras resultaram de uma translação regressiva do acento tónico, fenómeno
que, sem ser raro, é muito menos frequente): não será, pois, de desprezar o
significado de cada caso numa tese que poderá causar certa surpresa.

a) Agro Donego: 1258, f. Nespereira (c. Guimarães), «in Agro Donego


jacet ibi unis sautus… et jacet ibi una vinea»; 1258, f. S. Pedro de Vade (c. Ponte da
Barca), «in Agro Donego IIII. Leiras» (1).

Os prédios referidos são reguengos simples, o que parece contradizer a


interpretação de terra dominicata que damos ao topónimo no seu qualificativo
«donego» (< domnico): basta, porém, lembrar que a «villa Nesperaria» foi do conde
Ermenegildo Gonçalves e da «stirpe» condal vimaranense que dele descendeu,
passando ao mosteiro de Vimaranes (DC 61, 76 429) e deste à coroa (AF 3 1776-186):
daí os reguengos.

Exatamente o caso de Vade, no séc. X: os mesmos possuidores de «stirpe» e


o mesmo destino de «terras et pumares in Sancto Petro de Vanati» (DC 61).

b) Casal Donego: 1258, f. São Torcato (c. Guimarães), «in loco qui dicitur
Casale Donego jacet una maxima leira»; 1258, f. Sobradelo (c. Póvoa de Lanhoso),
«et Casale Donego pectant vocem et calumniam»; 1258, f. Vila Cova (c. Fafe), «in loco
qui dicitur Casale Donegum jacet una peza regaenga» (2).

O primeiro e o terceiro caso são de reguengos simples. Em Vila Cova, temos a


«stirpe» vimaranense, desde pelo menos a condessa Mumadona I («ganabit illa
domna Mumadomna e suos abbates», DC 225 e 138), bem expressamente; e o
primeiro, que conta ainda outros topónimos do género (Leira Donega e Paul Donego),
temos o mesmo, embora menos explicitamente (mas bem clara a situação com «suos
abbates» e «domnos» vimaranenses, DC 201

__________

(1 ) Inq. 7252 e 410-411.

(2 ) Inq. 7281, 6722 e 6781. Note-se a sintaxe de Casale Donegum, provando que este termo
era adjetivo, visto por «casale» ser neutro. Os notários medievais conheciam, pois, bem a significação da
palavra.

___170___
e 407): estamos nos casos da al. A). Em Sobrado, de novo expressamente o mesmo,
desde o dominium nos séc. IX-X até à passagem à coroa (bastando aparecer a dita
condessa com a «tertia parte de villa de Subpratello», que ela herdara dos pais, os
condes Diogo Fernandes e Teresa Eres, e por ela doada ao seu cenóbio DC 76, 138,
etc.) (1).
c) Eira Donega: 1258, f. Creixomil (c. Guimarães), «in alio loco qui dicitur
Area Donega iacet alia vinea» (2).
Basta lembrar a posse da «villa nuncupata Crexemir» pelos condes
Ermenegildo e Mumadona I (DC 31), passada ao mosteiro vimaranense e deste à
coroa, para explicar o reguengo em terra domnica outrora.
Temos também na f. Moreira (c. Fafe) a povoação de Eira Donega, chamada
ainda não há muito mais de meio século Eira Doniga (3), um arcaísmo chegado muito
perto de nós e que é um documento claro da origem e evolução que propusemos:
domnica > domniga > doniga > donega. Em Vila Cova, temos no séc. X a condessa
Mumadona I e seus filhos Gonçalo e Ramiro (e a viúva deste, Adosinda Guterres, por
isso, em 964, com sua herança «in cauto de Moreira», DC 82), citando o primeiro,
conde Gonçalo Mendes, a sua «villa Moraria» (DC 99).
d) Fonte Donega: 1258, f. Calvos (c. Guimarães), «et in Fonte Donega II
castinarios» (4).
De «in riba Avizela villa Calvos» conhece-se a posse por altos nobres
aparentados à «stirpe» vimaranense (Ermenegildo Froilaz e sua mulher Gontrode
Ordonhes), a qual era a do mosteiro (DC 340, 374, 420).
Este topónimo também existe na f. Infantas (c. Guimarães), cuja designação,
aliás já tratada no sentido dos infantiones, dispensa comentários, e na f. Cequiade (c.
Barcelos), que nos lembra imediatamente a estirpe nobre remota «de onde vêm os de
Cequiádi e os de Ayroo», lugar limítrofe (LV1 66) (5).

__________

(1 ) Cfr. Os nossos art. GE XXVII 656 e XXX 411.


2
() Inq. 7101.
(3 ) Cfr. GE XXVII 861 (cerca de 1950) e o cit. Dic. Univ. V 126 (cerca de 1915).
4
() Inq. 6972.
(5 ) Os «milites de Cequadi» (Azquiadi, Inq. 4782, etc.). Ao caso das Infantas, voltaremos a
referir-nos.

___171___
e) Leira Donega: 1258, f. São Torcato (c. Guimarães), «de casalia de Leira
Donega dant annuatim domino regi quartam unius bracalis» (1).

Reportamo-nos ao caso de Casal Donego na mesma freguesia.

A dominicação de «leiras» tem um documento interessante de 1032 na f.


Nogueira ou Nogueiró (c. Braga), o qual pode exemplificar a origem e o sentido que
para estes qualificativos achámos. Naquela data, a condessa Ilduara II de Portugal,
para ampliação da sua «casa de Nogaria» (LF 176), prosseguia na sua longa e vasta
aquisição de bens nos arredores – neste caso, um prédio que aí limita «per succum de
comitessa et ferit in larea donega» (LF 179). Não cremos se trate aí (pelo menos já
então) de topónimos: nem Suco da Condessa nem Leira Donega. Esta não seria mais
que uma designação comum «leira donega», assim qualificada por ter sido «terra
dominicata» dos antepassados da condessa (que era da «stirpe» de Mumadona I pelo
pai). Assim, o então chamado «succo de comitessa» ainda não tivera tempo de se
dizer (o que aliás não era forçoso) «succo donego»; e havia ainda aí, por tudo isso
mesmo, uma «senra de comitissa» (ainda não «senra donega», que não era forçoso,
repetimos, assim viesse a dizer-se), mas precisamente também já um «suco denego»
(LF 178). Talvez em parte, pois, uma questão de cronologia, que, de acordo com toda
a documentação que desta toponímia temos posto e teremos de expor, nos leva a crer
que este tipo «domenico» de topónimos é anterior ao séc. XI – o que, por outro lado,
concorda com a origem que lhe demos.

f) Paul Donego: 1258, f. São Torcato (c. Guimarães), «in Paul Donego
jacente ibi IIII leire» (2).
or

Reportamo-nos aos casos de Casal Donego e de Leira Donega, nesta mesma


localidade.

g) Pena Donega: f. Espadanedo (c. Cinfães).

A forma atual é Pendõa, ainda há cerca de meio século Pendonga, cuja origem
em «penna domnica» já explicámos. A palavra «penna», além de designar

__________

(1 ) Inq. 7272.

(2 ) Inq. 6721.

___172___
castelo roqueiro (DC 81, 420, etc.), denominava uma casa de tipo e construção
semelhante (1). Assim, se em Pena do Dono (hoje Penedono, que o povo diz, e bem,
Penadono), se tem um castelo (DC 81), já em Pena de Donas (hoje Penedones) se
não prova, e é mais natural um sentido análogo ao que damos a Pena Dónega (2).

h) Pomar Donego: 1258, f. Curvos (c. Esposende), «una seara que jaz in
Pomar Donego; 1258, f. Pias (c. Monção), «de Pomar Donego quomo parte pelas
testas da vessada de Pomar Donego dam cada anno al rey de todo fructo tertia»;
1258, f. Rebordões (c. Ponte de Lima), «comprarom in Pomar Donego erdade de
Pelagio Galee» (3).

Para o primeiro caso, basta atender à existência do couto de Curvos como


processo de dominicação – e talvez também no terceiro, se a expressão «os padroes
deste couto» se não reportar, como parece que não, a um couto municipal (popular).

O segundo caso deve ser o mesmo a que se refere um documento de 1234:


«partem meam de casali de Pomar Donego quam habeo de successione patrina» (LD
33 v-34). Natural que se trate de estirpe nobre, numa região que sob o ponto de vista
da aristocracia temos mal documentada.

i) Pomario Donego: 1258, f- Fênzeres (c. Gondomar), «in Sancta Ovaya in


Pomario Donego iacet ibi unus ager» (4).

Trata-se do local que do séc. IX para o X se chamava «Sancta Eolalia de


Gondomar» e cuja igreja era em 897

__________

() Pena de Amigo (Inq. 12231, com Amigo nome pessoal, Inq, 12441), Pena de Conde (Inq.
13352, Pena de Dom Telo (LF 237, Inq. 4321), Pena de Dono» (DC 81), etc.

() A evolução fonética completa pode considerar-se: penna domnica > penna domniga >
pena dónica > pena dónega > Penadonga > Penedonga > Pendonga (> Pendôa).

() Inq. 3111, 3462 e 3721, respetivamente.

() Inq. 5231. A palavra «pomario» ou «pomerio» (dupla forma que nos leva a excluir o
«pomerio» romano) não parece diminutivo (portanto, de «pomar»), mas é uma designação de prédio
correntíssima até ao séc. XIII-XIV: 983, «cum vineis pomeriis harboribus» (DC 138), 1042 (DC 320), 1258
(Inq. 7101), etc. Não podemos asseverar que o topónimo Pomarinho provenha de «pomario».

___173___
do conde ou dux Gundesindo Eres (DC. 12), filho do conde Erro Fernandes e um dos
maiores de então (AF3 14): nada mais se precisa para a possibilidade de uma
dominicação toponímica pela institucional; mas há mais, porque tal privilégio ainda se
mantinha no local no séc. XIII, visto incluir-se numa honra cuja imunidade se define
com uma expressiva frase: «propter dominium bonum» (1).

j) Prado Donego: 1258, f. Prado (c. Melgaço), «et a vila de Prado Donico
de IIIIor casaes» (2).

O qualitativo distingue uma parte de «villa» de Prado, a parte domnica, na qual


agora exixtiam quatro casais da coroa. Para compreendermos tal denominação, basta
lembrar as possessões que do séc. XI para o XII aqui tinha D. Oneca Fernandes (3).

l) Quintã Donega: 1124, f. Adães (c. Barcelos), «in villa Adalanes subtus
mons Bastucio in illo predicto Quintana Donega XIIIIim» (4).

Para o primeiro caso, temos a velha honra do lugar na sua «quintã» nobre
remota: 1224, «in termino de onra ipsius quintane» (LF 886). Podemos, perfeitamente
aceitar que foi esta mesma quintana a origem do topónimo Quintã Donega no início
dela – embora já no séc. XII-XIII não se lhe ligue o qualificativo dominial.

O segundo caso pertence a uma localidade em que no séc. X, pelo menos, a


mais alta nobreza tinha grandes haveres, como o conde Galindo Gonçalves e sua
descendência (DP 179) (5).

Este topónimo vigora também em Atei (c. Mondim de Basto), honra da alta
«stirpe» dos Sousãos, o que diz

__________
(1 ) Inq. 5231.
(2 ) Inq. 3781, mal entendido «prado anoo», como vimos.
(3 ) Cfr. o nosso art. GE XXIII 14, para a sua documentação, e não para o caso da
dominicação, que aí não versámos, por nos ser então ignorado (como geralmente ainda é). A
coincidência desta «domna» Oneca pelo seu nome nada tem com o qualificativo «domnego»: aliás, se a
tal nome se devesse o topónimo do séc. XIII, teria ele de ser Prado d Onega. O adjetivo não subsistiu em
razão de só uma parte de Prado ter sido dominicata.
(4 ) DC 254, Inq. 5791.
5
() Sobre a ilustre estirpe, ver JM1 472-473. Para a «stirpe» gascã so local (aparentemente
tarde), Inq. 5781.
___174___

o bastante e tem nas tradições linhagísticas medievas o caso dos sete condes que
«jazem em S. Pedro dde Atey» (1).
m) Souto Donego: 1137, f. Louredo (c. Feira), «per illum rivulo qui vadit
inter Sautum Donego et Azevedo»; 1258, f. Nespereira (c. Guimarães), «et in Sauto
Donego iacet unus sautus et est regalengo» (2).
No primeiro caso, lembram-se os antepassados dos possuidores de 1137 aos
quais então coutou D. Afonso Henriques este lugar (DR 162), deles devendo ser
descendente (e aí senhor) o miles «Fernam Louredo de Terra de Santa Maria» (LV1
19), chamado Louredo por isso mesmo (3). É um dos «infanções de Santa Maria» de
que falaremos quando tratarmos das «associações» de infanções (num dos capítulos
seguintes) (4).
O segundo caso pertence a uma localidade onde há também Agro Donego: a
explicação é inteiramente a deste – e fica reforçada assim, se preciso, de um caso
para outro.
n) Vale Donego: 1258, f. Borba da Montanha (c. Celorico de Basto), «et in
alio loco qui dicitur Paredes in Valle Donego jacente ibi IIlIor leiras» (5).
A origem deve estar na alta «stirpe» sousã, que ainda tinha por aqui grandes
haveres no séc. XIII, e a presença do «conde» Gomes Eicaz ainda aí nos meados do
séc. XI (DP 51) estabelece a ligação com os seus antepassados sousãos dos séc. IX e
X.
__________
(1 ) Portanto, sete túmulos nesta igreja, de domini do lugar: Scr. 176.
2
() DR 162; Inq. 7252.
(3 ) Scr. 309.
4
() Como no caso da quintana de Adães a razão do topónimo Quintã Donega, «quintã»
essa que ainda existia muitos séculos depois (séc. XIII, podemos considerar o «souto» que em 1258
se cita no lugar de Souto Donego como razão material deste, atendendo à milenária
longevidade do castanheiro. Não diz o povo que ele dispõe de «300 anos para crescer, 300 no
seu ser e 300 para morrer»?
(5) Inq. 6431. O «vale» não tem aqui sentido topográfico, mas o de prédio, com que
muitas vezes surge: 1258, «vallis que fuit de Egea Fiinz» e «vallis que fuit de Egea Oogildiz»,
Inq. 10772 – casos numa localidade pertencente a uma região onde ainda são sumerosos os
prédios ou os terrenos toponimicamente designados «valle», com nome de pessoa medieval
ligado.
___175___

De notar que as duas Borbas atuais (Borba de Godim e Borba da Montanha)


eram uma só, que se dividiu paroquialmente; e que esta onde há Vale Donego teve,
por tempos, a designação Borba de Juniores, qo que já nos referimos no segundo
capítulo deste trabalho: e podemos acrescentar este facto corroborante da nossa
interpretação – um «valle» organizado em terras de seniores (esses nobres) por
iuniores que àqueles o reservaram como ratio ou terra domnica (1).
o) Várzea Donega: 1162, f. Rial (c. Castelo de Paiva), «hic in Varcena
Donega» (DC 255).
Basta lembrar as possessões do prócer da «stirpe» gascã Garcia Moniz nos
meados do séc. XI, por ele havidas de antepassados, «in villa Rial» (DC 451 e 491).
p) Villa Donega: 1258, f. Galegos – Santa Maria (c. Barcelos), «de
quintana de Villa Donega dam I. dinheiro de fossadeira»; 1128, f. Manhente (c.
Barcelos), «dividit cum Villa Donega; 1258, f. Panque (c. Barcelos), «et est ibi una
seara in Villa Donega»; 1258, f. Rio Frio (c. Arcos de Vale de Vez), «o monte que
chamavam Villa Donega é regaengo per seus difiimentos et per seus marcos» (2).
O primeiro caso carece de documentação que nos explique haver no séc. XIII
numa área outrora dominicata um prédio foreiro à coroa de fossadeira – e prédio esse
de certa categoria, uma «quintã» (elemento geo-humano a que haveremos de dedicar
o melhor de um capítulo deste estudo), a qual transmite ao seu proprietário essa
categoria, ou, melhor, dele a recebe. A falta de documentação não obsta à realidade:
por qualquer motivo (confisco,

__________
(1 ) Esta circunstância é efetivamente digna de uma atenção particular. Nada nos prova que
o chamamento de Juniores que se tem numa fração da única Borba primitiva do séc. XII para o XIII não
seja, como em tempos fizemos notar, sensivelmente anterior (séc. XI), como em tempos fizemos notar,
sensivelmente anterior (séc. XI), e ligado, como igualmente então sugerimos, aos Sousãos dessa época,
o mais tardar. O facto de se tratar de uma designação que parece efémera deve significar que o chamar-
se «de Juniores», sem embargo de ser caso antigo, não constituía um uso generalizado ou fixo: mas por
isso mesmo se recordava aí com ele um facto que, sem ser excecional (um povoamento por iuniores
eximidos à sua condição), ficara suficientemente impressivo.
(2 ) Inq. 3031; DR p. 787; Inq. 3522; Inq. 3831.
___176___

ou outro), essa villa dominicata torna-se em villa ingenua, e um iunior eximido da sua
condição solarenga «cum cavallo et atondo suo» pode aí estabelecer-se, dentro dos
limites impostos a iuniores (ou seja, «usque in IIIa villa») (1), obtendo bens que com o
cavalo lhe permitirão sustentar-se no foro de cavaleiro-vilão. Quer isto dizer que o
caráter domnico da localidade é já muito antigo, no séc. XIII, de acordo com a época
que por outros indícios temos deduzido para estas dominicações; e que o
estabelecimento de um iunior quando esse caráter quando esse caráter já no lugar
desaparecera nada tem desta vez com uma relação senior-iunior do tempo em que
esse caráter existia e em que, pois, era possível essa dominicação (essa «villa» inicial
sendo então um prédio que constituía uma ratio domnica).
O segundo caso liga-se à «stirpe» dos Ramirãos, patronos e naturais de
Tebosa e Manhente, vizinhas dali, nomeadamente Gomes Ramires (DR p. 786).
O terceiro caso evoca as figuras de Pedro Gonçalves e seu avô na «villa»
Pananqui (Panque), com couto por D. Afonso Henriques em 1164 (LF 599).
No último caso, a situação reguenga do monte que tinha o nome reporta-nos
ao primeiro: já muito remotamente, uma passagem à coroa de um prédio dominicato
que ali se havia organizado, em pleno reguengo.
Esses numerosos casos toponímicos exemplificam, pois, a existência de um
estado da propriedade que se considerava, e certamente mesmo se denominava,
«terra domnica» (1071, DC 497), cuja origem, pelo menos em muitos casos, pode
estar numa fração de livranças novas em terras dominiais por solarengos, que as
adquiriam com uma reserva senhorial, considerada a «ratio domnico» (1034, DC 274).
E essa fração, conforme o tipo do prédio, tomaria designações específicas: o casal e o
agro, a «villa» e a «quintã», «valle», bem como os acidentes de prédios – a leira, a
várzea, a vinha, o souto, o paul, o pomar, o pomeiro, o talho, a entrada, e ainda o
suco, a fonte, a eira, o valo, e mesmo o paço ou a «pena». Todos eles dominicatos e
por isso denominados domnicos.

__________
() Conc. Leg. C. 9 e c. 11. (Ver o segundo capítulo deste estudo).
___177___

O termo originário, «dominícus (paraxítono), como temos visto, pode revelar


uma relação senior-iunior.

Até mesmo os casos que se hajam originado em presúrias se podem


caraterizar nessa mesma relação.

E todas aquelas designações prediais domnicas não se documentam apenas


na toponímia, que aliás seria já bastante: elas surgem-nos em expressões de caráter
tópico mas que ainda não revelam uma função propriamente toponímica (além de uma
terceira categoria de indicações que nada têm de tópicas e que temos encontrado
documentadas, como as duas acabadas de referir: «terra domnica» e «ratio domnica»,
e ainda «palatio domnico»).

Esses casos não merecem menos atenção que os toponímicos: mais até, se
nos lembrarmos de que eles explicam estes.

Os exemplos respeitantes à condessa de Portugal Ilduara II para acrescente da


sua «casa de Nogaria», tanto no tempo da plenitude do seu «comitatum» como já
arredade dele, são expressivos do uso comum do termo e da génese semântica da
sua aplicação tópica: 1031, «vadit per succu domnego et ferit in senra donega» (LF
178); 1031, «vadit per succu domnego et figit in senra de comitissa» (LF 177); 1031,
«vadit per succu domnego et ferit in senra donega» (LF 178); 1032, «per succum de
comitessa et ferit in larea donega» (LF 179) e «levat se de succo de comitessa… vadit
per succo domnego» (LF 180); 1054, «et in larea usque in vallo domnego» (LF 187) –
uma tal multidão de casos num só local e para uma só família (e esta a mais elevada
de então, em condição social e política), e ligada, para mais, a um paço residencial da
mesma, já bastariam ter significado e do género de circunstâncias geo-económicas
que os determinaram. Essa investigação fica como pudemos operá-la.

Evidentemente que tão grande quantidade de casos não pode significar senão
um uso e, portanto, uma organização já então remota: bastariam eles para o
concluirmos. Mas há prova documental: 963, «pro illo vallo antiquo inter senra donica
et Gramocellas» (1) – referente a uma

__________

() Doc. Arq. Port. XXVII 153.


___178___

«villa» do conde Telo Alvites, marido da condessa de Portugal Mumadona II: e o


«vallo» dividia esta «villa dominicata» de um prédio (uma «senra», seara) que se havia
dominicado (f. Mazarefes, c. Viana do Castelo).

Em 1059, lemos «iacet in illa agra in longo de talio donego et figet in illa de
Vimaranes» (LF 249); e em 1068, na mesma localidade (f. Lage, c. Vila Verde), «de illo
comitatu testarunt… vadit per traversa donega et fer in illa de Vimaranenses» (LF 243).
Os dois prédios domnicos, a travessa e o talho, se não são lindantes, como podem
ser, são, pelo menos, vizinhos, pois atingiam ambos os limites de um terceiro prédio.
Acrescente-se a contiguidade de um comitatum, que nos permite referir essa
dominicação a comites, os quais só podem ser os de Portugal da dinastia vimaranense
(pois a eles, com efeito, pertencem vários documentos da mesma localidade).

Perto dali, outro caso ocorre, em 1064: «per illum auterium de Penellas que
nunc vocatur Pennagati et ferit in suco donico que vocitant Lareas de Quintila» (f.
Carreiras, c. Vila Verde) (LF 241). Lembre-se, para este caso, a «stirpe» de Barvudo,
dona da honra e couto de Penagate (1), mas melhor ainda, a condal vimaranense.

Em 1112, encontramos: «comparamus duas entradas…. una entrada de don


Rabaldo clerico… et alia entrada que vocitant donega que comparavi et servi a
Mumadona Arangunti pro X,.a módios de pane et pro duos anales de missas» (DP
395). O comprador é um clérigo plebeu, e doa as duas entradas a um mosteiro: uma
sem encargos, mas outra com eles – aquela que ele havia comprado àquela senhora,
certamente nobre: uma «entrada donega» que à referida «domna» devia foro, o que
indica a sua provável origem numa ratio domnica reservada ao senior pelo iunior que
outrora arroteara terrenos deste. E o mosteiro adquirente por certo ficará agora com tal
encargo (salvo cessão da «domna»), inclusive os «dois anais de missas»

__________

(1 ) As linhagens, confundido uu = vu com un, publicam Barundo. Recorde-se a figura do


prócer «D. Egas Pais de Boiro de Penagate» (Scr. 134), e que Penegate foi uma notável honra, que
também se designava couto (o que teremos de explicar noutro capítulo).
___179___

E nisto encerramos o nosso estudo sócio-económico do termo «domnico»


adjetivo. Falta-nos o do termo «donego», que, embora como aquele assente no lat.
domnus «dono», não tem a mesma formação nem o mesmo sentido – porque este é
um substantivo (e nome pessoal), enquanto aquele um qualificativo (de prédios e de
acidentes de prédios).

Regressemos, pois, a considerar as pessoas.

Tenhamos em atenção situações como as que se apresentam e se definem


dos seguintes modos, que são exemplificativos:

- 1290: Certa «quintã» era honra de um mosteiro, «porque a tragia (trouxera)


assy don Payan por onrra; per dõ Payam nõ era cavaleyro nen scudeyro, mays era
homem bõo e tragia assy sa quintãa honrada, e nõ sabiã per que razõ». (No lugar de
Bafueiras, f. São Romão, c. Resende) (1).

Trinta nos antes, há aqui uma «quintã» honrada, de um nobre, e uma «focaria
regis» foreira de cavalaria, com o encargo único do serviço militar (2): tudo, pois, indica
que essa «fogueira» (tipo de prédio não distinto da «quintã» viloa) era aquela «quintã»
do dito «dom» Paião – tanto mais que a «quintã» do nobre de 1258 era de um outro
nobre (nomeado) em 1290.

Aquele dom Paião é, sem qualquer dúvida, um cavaleiro-vilão – que passara a


comportar-se em género de vida como cavaleiro-fidalgo, porque nada nos encargos os
distinguia: era comum a obrigação militar a cavalo, a única; vivia como nobre; tratava-
se ou era tratado de «dom»; e fizera honra da sua fogueira – que passara a chamar
«quintã» para mais se aproximar do nível, trato e designações de nobreza de sangue.

- 1290 e 1308: Certa «quintã», analogamente, «he de homens que nom som
filhos de algo mays peões melhorados e tragen-a por honrra, mais nom sabem as
testemunhas per que razom» (3), visto que eles são «homens lavradores» (4).

__________
(1 ) TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 27 v.
2
() Inq. 9871. A obrigação da lutuosa não conta.
(3 ) Vim. Mon. Hist. 356.
4
() Vim. Mon. Hist. 385.
___180___

Este caso já nem é de cavaleiro-vilão, mas de peão-jugadeiro. (No lugar de


Friães, f. Penacova, c. Felgueiras).

- Não menos expressivos agora os casos de «Auri conomento Cidi» (DP 124 e
311) que, várias vezes, se chama «Cidi donno» (DP 124 e 311) que, várias vezes, se
chama «Cidi donno» (DP 195 e 307), o qual era herdador vilão no séc. XI
precisamente nos lugares e na ocasião em que o era também um «donno Beloy».
Deste se sabia, mais de século e meio depois, que «fuit homo laborador» (lavrador),
isto é, um «homine villano erede (proprietário) que per nomen vocatus fuit donnus
Beloy», ou, enfim, um «donnus Beloy villanus», mas tão rico que possuía grandes
extensões de certas «villas» e, numa delas, «in sua hereditate», fundou mesmo uma
igreja que se tornou, e ainda hoje é, paroquial (2). E rico assim o era também então por
aí um Rando Baltáriz, ou só Rando (DP 308), que , ainda século e meio depois, pelo
menos, se recordava nos locais como «donno Rando» (3).

Ora, de acordo com a definida categoria social do pai, os filhos do referido


«Cidi donno» são considerados «ipsos homines» (DP 204): exatamente, pois, o que
pode concluir-se quanto aos descendentes dos outros (4).

Assim, a estes vilãos lavradores (por certo jugadeiros) e proprietários não


faltava de todo já do séc. X para o XII a fatorização de uma categorização social
superior ou superiorizadora – a divitia, como condição necessária da nobilitas qual se
entendia o séc. X (DC 99).

- Não seria de surpreender que tratamentos como «Cidi dono» populares se


tivessem gravado na toponímia, o que, em cada caso, constitui um exemplo análogo
aos acabados de documentar. Assim temoos o topónimo Maria

__________

() Inq. 9272, 9271, 9271 e 9262, respetivamente.


() A. De S. Martinho de Gafanhão (hoje são Martinho das Moitas, c. São Pedro do Sul),
2
Inq. 926 : cfr. o nosso artigo, GE XXVII 357-359.
() Inq. 9272.
() Em 1105, na venda «de ereditate de Cidi donno» pelos que a tinham «de abiorum vel
parentum», figuram duas senhoras de patronímico Doni (DP 195); mas tal não se atribua a «Cidi Donno»,
pois que os filhos deste têm o patronímico correspondente, Cidiz (DP 311). De outro modo, aquele dono
vilão teria tido nada menos de três nomes (Auri, Cidi e Donno), um caso absolutamente único. As duas
senhoras o que devem é ser esposas de descendentes dele.
__181__

Dona (f. Sarzedaas, c. Castelo Branco), cuja génese está numa expressão análoga a
«hereditate Petri Doni» (1).

Encontrámos já o tratamento de «dom» em pessoas de condição comum,


como o são todas estas, e demos-lhe o devido relevo na sua significação de «dono»
atual, o proprietário, usado, porém, numa evidente pretensão de saída dessa condição
e aproximação da nobre. Como vemos, até nesse chamamento proposto ao nome
pessoal (os casos de «Maria dona», toponímico, «Pedro dono» e Cídi dono»
documentados, este último já no séc. XI) essa intenção se revela, pois que uma tal
posposição era distintiva dos mais altos níveis nobres, sendo até nestes bastante rara
(2). Mais geralmente, contudo, o tratamento prepunha-se ao nome pessoal.

Natural, pois, que na toponímia se revele a circunstância com frequência: Don


Fins ( ), Dom Flores (4), Dom Durão, Dona Inês, etc., por vezes já desfigurados, por
3

aglutinações ou por falsas interpretações populares, como Nacomba (Dona Comba)


(5), Nafroio e Onafroio (Dona Froio) (6), Dansoeiro (Dom Soeiro) Donairia (Dona Iria).
Notáveis ainda neste conspecto Aldeia de Dona Comba, Vila de Dom Sando (7), Torre
de Dona Chama (8), etc.

__________

(1 ) Inq. 7012.

(2 ) Estes casos aparecem mesmo no centro e até sul do país, pertencendo, por isso, a uma
época (séc. XII-XIII) de povoamento com gente do norte, tanto nobre como vilã. Maria Dona, além do
caso já indicado, existe ainda na Sertã e em Sintra. Quanto ao uso no mais alto grau nobre, basta lembrar
o tratamento «Tuta domna» dado à condessa de Portugal (séc. X-XI) D. Toda, DC 259; e o elemento
«dommna» chegou mesmo cedo a aglutinar-se ao nome pessoal, estereotipando-se num novo
antropónimo com perda do sentido originário (Mumadomna, Matredomna = Madreana, Aurodomna =
Ouroana). A origem desta expressão antroponímica está já, em nosso entender, na época romana: Julia
Domna, imperatriz do séc. II.

(3 ) F. Jarmelo (c. Guarda): Fins o romance de Félix.

(4 ) Lazarim (c. Lamego); 1105, «don Flores conf.», DR p. 181.

(5 ) Hoje Aldeia de Nacomba (c. Moimenta da Beira).

(6 ) F. Almofala (c. Castro Daire) e f. Tarouca: uma «dona Froio» do séc. XII (LDT 22 v, ano
de 1210).

(7 ) Hoje, Vila de Um Santo, f. Cota, c. V. N. do Paiva (docs BR 2 140, 143, etc.); 1128, «don
Sando» possessor vilão cerca de Viseu (DR 74).
(8 ) Ao caso deste topónimo, referir-nos-emos pouco adiante.

___182___

A estes casos, devemos juntar os de proprietários cujos nomes se fixaram na


toponímia sem «dom», na maioria não nobres, mas neles se revelando as realidades
sócio-económicas que possibilitavam a ascenção de gente vilã à nobreza (1).

E não faltam exemplos bem documentados de que, muitas vezes, a


alcançavam, sobretudo os cavaleiros-vilãos e, mais ainda que estes, os monteiros
(que tinham o único encargo da montaria – no que não devem ser confundidos com os
«foramontãos», que o sofriam já com outros, por vezes pesados):

- É o caso dos chamados «milites de Gouviães» (termo de Tarouca),


descendentes de um monteiro de D. Afonso Henriques (Paio Cortez), ao qual se doou
ali um lugar onde construísse casa. E ele transformou esta em «quintã» honrada, o
núcleo da chamada «onra de Gouviães» – uma «vila» que, por isso mesmo, cem anos
depois (mas já de muito antes), não dava foro à coroa porque «est militum». Ora estes
cavaleiros-fidalgos são, precisamente, os descendentes desse monteiro (2).

- Certa «villa» (Figueiró, no termo de Algodres) fora vendida pelo mesmo rei a
um seu monteiro, Egas Loução: passado também um século, se tanto, ele era
considerado nobre, e nobre com ele sua mulher: «una donna uxore ipsius militis et
vocabatur domna Aldara Froiaz» (3).

- A Pedro Ramires, um morador e munícipe de S. João da Pesqueira


(município já existente, com carta, nos meados do séc. XI), deu D. Afonso Henriques
«carta de quitacione de foro» em 1134, do que resul-

__________

(1 ) Casos numerosíssimos no centro do País, com o significado referido numa das notas
anteriores: Vascoveiro, Souropires, Muxagata, Marialva, Paipenela, Martingança, Peroledo, etc.

(2 ) Paio Moniz, de alcunha «Cortês». Por isso, em 1290, «todo (o lugar) tragem por onrra
per razom daquela casa daquele monteiro» (TT Inq. de D. Din. L. 4 fl. 35), o que em 1258 se exprimia por
«nullum forunt faciunt regi» de toda a «villa de Gouveães» (Inq. 1084 2, doc. BR1 12). Cfr. o nosso trabalho
A Honra de Gouviães e Sua Estirpe, pp. 23-35.
(3 ) Era ele «Egea Gunsalvi dicto Lauzano qui erat suus montarius»: Inq. 7901. O seu neto,
morador e vizinho da vila de Algodres, porém, não se considerava nobre: preferira à nobreza o
arreigamento municipal por algum especial motivo – prova da unilateralidade

___183___

tou que a sua descendência, cem anos depois, (mas de antes), se considerasse
socialmente nobre, já que trazia toda a sua «hereditas» praticamente honrada: «salva
et nullum forum facit» (1).

Seriam supérfluos (até porque outros conhecemos na aplicação ao território


vimaranense) mais exemplos de tais «donos» vilãos, ou municipais, tornados nobres,
com «dom», agora nobre, nos seus nomes; mas a maioria, enquanto não atingia a
nobreza (que ainda com maior não seria alcançada), mas tratando-se ou sendo
tratada, como vimos, de «dom», eram, por isso, os «donegos», de que passamos a
ocupar-nos em condições de melhor compreensão da sua origem e da sua evolução
social. Mas, antes, convêm umas prévias notas.

O facto de os exemplos apresentados terem na origem uma dádiva régia nada


representa num «processos» de nobilitação espontânea: isto é, tais casos ficaram
memorados apenas num efeito desse ato soberano; mas aqueles em que ele falta são,
afinal, os confirmativos da independência de tal «processos» em relação à pessoa do
monarca.

Não quer dizer que do rei não pudesse proceder um ato de nobilitação: todavia,
não conhecemos exemplos entre nós no período que nos interessa: quanto mais, a
concessão de um germe da mesma, o qual deve ver-se nos casos exemplificados,
mas sem qualquer finalidade objetiva no sentido. A ação real exerceu de preferência
uma influência decisiva na maior elevação de uma nobilitação já conseguida,
sobretudo por circunstâncias políticas prementes – do que convém apresentar aquele
exemplo que tenhamos por mais expressivo.

É o caso da estirpe nobre «de Morais» (atual c. de Macedo de Cavaleiros).


Ainda em 1258 sabia-se bem aí que «villa de Morales erat (havia sido) tota foraria
domini

__________

(1 ) Inq. 10991 e 11002. Frei Bernardo de Brito recolheu e ampliou uma lenda que esta
estirpe de origem burguesa (ou municipal) fez surgir para desvanecer um tal princípio, a que se prende
uma das famílias mais aristocráticas de Portugal, os Távoras – o que diz tudo. Por nossa parte, depois
deste trabalho, teremos de eliminar da aceitação que outrora lhes demos (embora criticando, e
procurando documentar) várias personagens e suas condições sociais respeitantes a este caso. Ver a
Mon. Lus. II fl. 272 v.

___184___

regis, et modo non habet ibi (o rei) ergo medietatem» ( 1); mas, por outro lado, «tota
ipsa villa fuit de Petro Ayrie milite et de suis germanis qui non erant milites, et de
domino rege (2). Combinando os dois informes, temos que metade haviam sido de
uma única família vilã foreira, a de Pedro Aires (nobiliarquicamente o primeiro que
consideraremos, pois, «de Morais»), sendo de outro(s) foreiro(s) vilão(s) a outra
metade. Que se havia, pois, passado? Parte desta família (de Pedro Aires) de vilãos
foreiros havia chegado entretanto à nobilitação, constuindo agora a estirpe já
conhecida em 1258 por «Milites de Moraes» (3).

Por outro lado, o que na família se passara repercutira fatalmente na «villa»


foreira: nobilitada parte daquela (Pedro Aires era já miles quando os irmãos ainda o
não eram), ficara honrada e metade da «villa» que essa família possuía – os prédios
dos ainda não nobres honrando-se aí (sem questão de legitimidade) pela honor do já
nobre.

Essa nossa expressão «já nobre» justifica-se. De facto, do caráter evolutivo de


um tal «processos» de nobilitação é um exemplo a expressão «est jam scutifer»
aplicada em 1258 a um sobrinho (do qual se não diz sequer o nome) de Nuno Martins
«de Chacim», ao qual nos referimos no final do terceiro capítulo deste estudo ( 4).
Aquele jam diz o suficiente do caráter paulatino da acessão à nobreza, acessão esta
que não foi simultânea em toda a estirpe «de Morais».

O caso de «jam scutifer» em 1258 assume ainda maior relevo quando


verificamos o seguinte: os «de Chacim» são, afinal, um ramo imediato dos «de
Morais»: aquele nobre, que é de longe o mais citado pelos seus imensos bens na
região transmontana em 1258 (5), era filho de

__________
(1 ) Inq. 13082.
(2 ) Inq. 13141.
(3 ) Inq. 13131. Ainda com esta estirpe de tão modestos inícios vilãos se nota a preocupação
dos genealogistas de «limpar» de plebeísmos originários as famílias aristocráticas quando não têm para
elas um princípio épico.
(4 ) Inq. 13142
(5 ) Inq. 1267-1373. Em muitos casos, efeito de usurpações, facilitadas pelas tenências de
Bragança, Ledra, etc., que ele exer-

___185___

uma filha bastarda de um prócer da alta «stirpe dos Bragançãos, e de um Martim


Peres «de Chacim», de que as linhagens medievais nada dizem, mas que era, sem
dúvida, um dos filhos do referido Pedro Aires «de Morais» ( 1). Ora Nuno Martins «de
Chacim», neto deste, tendo apoiado a usurpação do conde de Bolona, conseguira
subir (como Rodrigo Gomes «de Briteiros», raptor de jovem rica-dona, com a qual
casou, e assim se elevou) aos mais altos cargos palatinos e administrativos; e logo
netas suas casariam na família real (2). No entanto, do sobrinho ainda se dizia «é já
escudeiro», sendo de não pequena idade, senão idoso.

Não longe de Morais de Chacim, na «villa» de Sarzedo, é ainda de referir o


caso de «donna Châmoa una mulier de ipsa villa», com bens também na mesma zona,
na freguesia de Espanadelo e em Sarzedo, cerca da Torre de Dona Chama atual. A
ela, pois, estamos crentes, se refere este interessante e expressivo topónimo, do qual
não há o mínimo vestígio ainda em 1258 (e menos ainda da povoação, que foi depois
uma vila notável): a honorificação dessa dama, que já o seu tratamento de «dona»
(uma domnega) prenunciava, materializou-se, digamos assim, na talvez solitária torre
paçã do seu nome e que aí originou o topónimo Torre de Dona Chama (3).

Vimos (e cremos ter deixado esclarecido) que o lat. domnica divergiu, na


evolução, em «dóniga» (que aparece

__________

ceu: facto tão singular que os livros de linhagens, contra a sua regra, o registam: «adeantado (de D. Dinis)
entre Doyro e Minho e na Beyra» (Scr. 327).

(1 ) Bens em Morais «de domna Fruylli et de Martino Petri»: Inq. 13141. São,
indubitavelmente, D. Froylhe Nunes e seu marido, Martim Peres «de Chacim»: LV2 27; e note-se que este
consórcio era tido na época por «casamento desaguisado» (LV1 36), talvez por desigual.

(2 ) Uma com um filho bastardo de D. Dinis (D. João Afonso), e outra com um filho de um
irmão bastardo deste soberano: LV1 21 e 26. Mas outra neta foi amante do rei (LV1 36).
(3 ) Inq. 13181 e 13231. Neste local, mandou D. Dinis fundar uma «pobra» ou vila, que ficou
com esta designação. (Ver o nosso art. GE XXXII, 209-212, que deve ser emendado no que discrepar
com o que daqui resulta).

___186___

ainda evoluído em «donga» e «dónia» na toponímia) e donega, e que se tratava de um


adjetivo – portanto, um qualificativo e classificador, mas só de prédios (e acidentes de
prédios), significando, historicamente, a dominicação predial, de preferência (pode
haver outras) numa relação senior-iunior.

Temos, agora, o termo «donega» (e seu masculino), um substantivo


categorizador de pessoas socialmente. Enquanto o seu homónimo adjetivo era um
derivado muito remoto (dominu- + icus = dominícus > domnicus), este substantivo é
um derivado relativamente moderno: «domno» + ego (1). O termo «domnego» tem,
pois, precisamente, a mesma formação de «condego»: conde (cómide) + ego (2); e já o
encontrámos documentado nos séc. XI-XII – o que aqui repetimos pela sua
importância:

- 1050: «talios fuerunt de «domnega» (DC 718);

- 1112: «inter illa domnega et illa de villaos» e «inter illa domnega et illa de
monasterio» (DP 391) (3).

As «domnegas» destes exemplos eram tão consideradas socialmente que nem


os nomes se lhes dizem, tal como se usava para pessoas da mais alta posição social

__________

() Este sufixo não tem o sentido depreciativo de hoje do sufixo -eco. Não podemos no
entanto, deixar de achar-lhe, neste caso uma intenção, não propriamente de inferiorizar, mas de marcar a
posição inferior do «donego» em relação ao «dono» nobre. De resto, é um sufixo antigo sem finalidade
depreciativa: «borrego» = borro + ego (borro, lat. burru- «vermelho», etc., (embora já a tenha em palavras
de formação moderna («pelego», «patego», etc.).

() Lembremos o caso de D. Fernán Fernández de Lara, séc. XIII, chamado Condego pelas
suas pretensões ao título de «conde», que ele usou, mas nunca «o el rey fez conde» (LV1 83).

() Já nos referimos aos equívocos da publicação académica deste documento, sobretudo


acerca do erro «uinaos» Interessa-nos mais, agora, um caso de contraposição toponímica análogo a este
de 1112 (de caráter tópico, mas que significa o mesmo): o do lugar de Mirelhe, com parte nobre (s dos
«milites de Mirelhe», Inq. 11551 e 11852) e parte não nobre, o chamado «Merelhe vilão» (Inq. 1156 1). Se
as expressões tópicas análogas do caso de 1112 se houvessem toponimizado, teríamos hoje aí sítios
designados Donega, A de Vilãos e A de Mosteiro, no tipo possessivo tão característico dos séc. XI a XIII
«A de N.»: 1153, «in a de Romanos» ou, 1200, «illa qui dicitur de Romanos» (LDT 20 e 26), hoje A de
Romão, em Várzea da Serra (c. Tarouca), onde, por sinal, temos o topónimo Donegas. O pronome «illa»
indica o prédio.

___187___

(«o conde», «a condessa» – como veremos). É por isso mesmo que temos tão
representado na toponímia este nome (como só temos Conde, Donas, Condessa,
etc.).

a) Donega (f. Gondoriz, c. Arcos de Vale de Vez). No séc. XIII, havia aqui
proprietários que procuravam honrar os seus haveres por amádigos, em casos
numerosos (´1): sem necessidade de tal recurso, mas podendo dever-se a ele, nada
mais natural que uma «ama militis» se qualificasse de «domnega», assim ficando
designado o seu prédio – qualificação muito mais fácil ainda que a isenção foreira do
prédio pelas «crianças».

b) Donegas (f. Conde, c. Guimarães; f. Ferreira de Aves, c. Satão; f. São


Pedro de Solis, c. Mértola; f. Várzea da Serra, c. Tarouca): do caso de Conde,
falaremos na aplicação ao território vimaranense. No caso de Ferreira de Aves, temos
a distinguir nesta localidade uma zona nobre ( 2) e uma zona vilã, que se municipalizou
como aquela (3): é preferível, pois, atribuir a gente desta o topónimo. Em Várzea da
Serra, encontramos igualmente uma «villa», repartida em parte nobre ( 4) e em parte
reguenga (5): mas não parece que as «donegas» do topónimo residam nesta, ou
mesmo em Várzea, porque tudo indica burguesas do vizinho castelo de Tarouca (6).

__________

(1 ) Inq. 3841. Repare-se que não nos constam aqui propriedades de nobres, o que mais
reforça o caráter popular de «domnega».

(2 ) Honra de Soeiro Viegas, fundador do mosteiro de Ferreira e progenitor da ilustre estirpe


dos Pachecos. As duas filhas dele deram em 1156, com seus maridos, o foral à Ferreira nobre (Leg. 385-
386).

(3 ) À Ferreira «vilã» deu foral D. Teresa em 1113-1120 (DR 37).

(4 ) A «honor de Varzea», Inq. 10801.

(5 ) 1290: «des o rego que vay polla villa a suso que era todo regaengo… ca de começo nim
forom os da onrra mais de nove casaes»: TT Inq. de D. Din. L. 4, fl 35 v.

(6 ) Burgueses de Tarouca comproprietárias aqui: 1141, as irmãs Eugénia, Gontina,


Ouroana e Maria Froiaz (LDT 21); 1152, Froio Anes e suas duas irmãs Marias (LDT 17), à primeira se
devendo aqui mesmo o topónimo Nafroio ( = dona Froio) e Vale de Froio; 1155, as irmãs Ousenda e Eio
Afonso (LDT 19). As de 152 são sobrinhas das de 1141. Cfr. os nossos Esparsos de História, pp 17-32 e
185-216. De facto, estes burgueses de Tarouca possuíam muitos prédios «ultra Serram» (Várzea da
Serra): 1152, LDT 17.

___188___

Quase no extremo sul do país, o caso de Mértola pode indicar-nos aquilo que
já por outras vias (uma delas uma não remot formação deste vocábulo) preveríamos o
uso da palavra «donega» ainda nos sécs. XII e XIII – pois estamos em zona de
colonização após a reconquista por D. Sancho II ( 1). Veremos de seguida casos do
mesmo sentido e cronologia no centro do país, a reforçar o que dizemos deste.

c) Donego: 1258, f. Galegos – S. Martinho (c. Barcelos), «in Donego I


leira» reguenga (2); 1258, f. Santa Tecla (c. Celorico de Basto), «in loco qui dicitur
Donego jacet ibi ilius campus magnus» reguengo ( 3). Se bem que havia nestas
freguesias o couto de Galegos e a honra de Santa Tecla (esta «villa fuit sempre
onrata» na estirpe sousã), isso nada tem com o significado «popular» dos topónimos.
Basta reparar que nos locais até há reguengos – e nem preciso é pensar nestes,
porque proprietários foreiros cultivavam prédios reguengos avulsos que eles tomavam
ao Estado de renda e geralmente por «ofreção». Enfim, o mais que poderíamos
interpretar seria uma contraposição do nível «donego» de certos proprietários destes
lugares ao nível nobre dos senhores da vizinha honra ou vizinho couto.

d) Vale das Donegas (f. Alcaravela, c. Sardoal). Cerca do séc. XII, o


significado deste topónimo é o já atribuído a Donegas em Mértola; e vimos que «valle»
é nome altimedievo de prédio (4), transportado para as regiões meridionais como ou
com «donega» – uma coincidência preciosa para o caso que se discute.

__________

(1 ) Hoje diz-se Negas, mas ainda cerca de 1915 era Donegas: cfr. GE XXVII 598, e o cit.
Dic. Uni. V 135. A queda da primeira sílaba deve-se à confusão com a preposição: «de Negas», (Cp.
Argoncilhe < Dragoncilhe).

(2 ) Inq. 3021. Lembre-se Vila Donega na Galegos vizinha.

(3 ) Inq. 6402.
(4 ) Hoje Vale da Onegas, forma que não pode ter sido a primeiras. Nesse tempo, o uso do
nome Onega é raríssimo, complicando-se com um plural; e nem então se usava artigo em nome de
pessoa. A alteração é regular: Vale das Do(m)negas > Vale das Onegas, com a síncope do d de
«domnegas» por dissimilação, e tão natural como a de «dos» ou «de» nos topónimos Casa dos Freires <
Casfreires, e Casa de Lopo > Caslopo, etc.

___189___

e) Vale de Donegas (f. Sortelha, c. Sabugal). O significado deste topónimo


1
( ) é o de Vale das Donegas e o de Donegas em Mértola: insere-se historicamente
numa colonização por gente do Norte, onde a palavra «donega» se usava. E este caso
de Sortelha vem fornecer-nos disso a prova documental: é que a localidade foi
povoada municipalmente por D. Sancho I (que a encartou) com gente vinda de
Valença do Minho (2). Escusado acrescentar mais.

Esta situação, como já deveria esperar-se, não se observa apenas na


sociedade portuguesa medieval.

Sem se tratar de historiador, mas de um escritor que, porém, conhecia a


sociedade da época dos seus romances, lembraremos a maneira como um grande
autor francês define as chamadas «boas burguesas» da cidade de Paris dos meados
do séc. XV (note-se o qualificativo de «bom», que a seu tempo estudaremos): «o meio
termo» entre as que se chamavam «uma mulher» e «uma dama» (e não se desdiga
que ainda entre nós temos isto: «uma mulher» e «uma senhora»), havia muito
designadas damoiselles as primeiras, e dames, as nobres, as segundas (3).

Em Portugal medievo, tivemos o mesmo: respetivamente, a «donega» e a


«dona» – aquela, burguesa (ou «cidadã», como se dizia também); e esta, nobre. Os
exemplos não faltam:

- «alia (bona) mulier que vocatur domna Stephania» (4);

__________

(1 ) Doc. de 1395, de que se transcreveu «Val d Onegas» (Arq. Hist. Port. X 270), por se
ignorar este assunto – do que já demos as provas suficientes, e numerosas.

(2 ) Ver, quanto ao povoamento, o nosso at. GE XXIX 701-705.

(3 ) Vitor Hugo, Nossa Senhora de Paris, II, p. 151-152, (ed. 1901). Já ao assunto nos
referimos em A Honra de Gouviães, p. 14, mas não podemos dispensá-lo aqui. Nota-se que a palavra
damoiselle teve a evolução de sentido que se encontra na atual mademoiselle, a mulher solteira. O
equivalente português de damoiselle, «donzela» (lat. domnicella, diminutivo de domina, de que provieram
o port. «dona» e o fr. «dame»), significava então o que hoje significa mademoiselle. O fr. damoisele é a
nossa «donega».

(4 ) Inq. 4861.

___190___

- «casale de una bona muliere nomine domna Elvira» (1);

- «illum casale de una muliere que erat foraria regis deitavit eum in pignore
donne Miine unne donne que tenebat suum maritum (ipsius mulieris) captum» (2).

Neste terceiro exemplo, temos a expressiva contraposição de mulier a donna


ou de donna a mulier – e, melhor ainda, «uma mulher» e «uma donna» (dama) como
no caso francês, que ainda essa «mulier» fosse proprietária foreira (à coroa) ( 3). O
«meio termo » entre elas seria, pois, uma possessora na especial situação de haveres
e honorabilidade conjugados, pelos quais se tratasse ou fosse tratada de «dona»
(como são os dois primeiros casos) – ou seja, uma «donega», na sinonímia de «boa
mulher» (feminino de «homem-bom») (4).

A toponímia permite-nos ainda concluir que, em vez de «donega», se usava


por vezes, no mesmo sentido, «donella» e «doninha» – do que são exemplos Casal de
Donela (f. Telhado, c. V.N. de Famalicão) e Albergaria de Doninhas (f. Talhadas, c.
Sever do Vouga) (5).

__________
() Inq. 8411.
() Inq. 13221, «Donna Miina» = «donna Minina» (nome pessoal bastante usado: 1085, LF
116; 1258, Inq. 3461).
() Aquele trecho respeita a prisão por justiça (crime ou confisco), em que era parte
queixosa a «donna» (pois não é uma mandante da «terra»).
() Essas possessoras vilãs tinham com frequência possibilidades económicas que
faltavam muitas vezes a nobres: «quidam mulier habebat hereditatem forariam et fuit ad Jerusalem»: Inq.
13301 (cerca de 1256).
() Atual lugar de Doninhas: 1258, um morador «de Albergaria de Donias» (Inq. 9182, i
nasal); e para um lugar vizinho: «comparavit de Martino Gunsalvi et de Stephano Gunsalvi et de Donia
unum casale forarium»: Inq. 9181- Aqui temos uma proprietária cujo nome se não diz e é conhecida por a
«Donia» (Doninha). Em 1039, temos «Fontanela de Donia» (LF 234), no mesmo local en que em 1061 se
diz «Fontanela de Donina» (LF 233): vê-se que, no primeiro exemplo, temos Donia forma romance de
Donima (com a elisão da preposição por haplologia). As preocupações explicativas do prof. A. Costa (Lib.
Fid. p. 277) são erróneas: «Donia deve ser o nome de Fontanela» – mas não, porque havia sido o nome
(ou o tratamento) da possuidora da «fontella». O que não podemos aqui dizer é se se trata de um nome
próprio pessoal (Donnina < Domnina) ou se do comum, «donnina» (< domnina), também pessoal – sendo
este segundo caso aquele que aqui nos poderá interessar (e cuja existência se confirma no plural
Doninhas).

___191___

Mas, nos exemplos que há pouco apresentámos da ascenção de vilãos à


nobreza, não fizemos constar o fator ou comportamento que concretizaria a acessão,
ou seja, uma dispensa do foro – sem uma quitação que, por vezes, a coroa fazia dele,
como notámos (verdade seja que longe de uma nobilitação como objetivo direto) ( 1).
Vejamos, pois, o caso, para final – tanto mais que há exemplos o mais expressivos
possível, em nosso ver.

Se essa quitação não tivera sido concedida – o que corresponde à


generalidade dos casos –, evidente é que o candidato à nobilitação (já em nossa tese
um «filho-de-algo», da divitia suficiente para a nobilitas, DC 99) teria de deixar de
tributar à coroa o foro – dado ser isso a própria prática de honramento. Não se trataria
obviamente de fuga sua ao foro real «pro defensoribus» (2): é que não seria essa a
prática que levaria à nobilitação, dado que o vilão defendido ficaria sendo «homem»
do defensor, considerado este precisamente o seu «senhor» (3).

Assim, a transição à nobreza só pode processar-se numa atitude que –


escusado dizê-lo – apenas em circunstâncias muito especiais resultaria em tal: uma
prática abusiva e que conseguisse manter-se, como a seguinte (ou análoga), que se
refere a certa «villa» em tempo de D. Afonso III: «filiaverunt ipsam villam Hospitalis et
Michael Gunsalvi vilanus et modo (isti) non faciunt inde fórum regi» (4).

E as coisas iam por vezes tão longe que um vilão, mesmo não sendo ainda
enobrecido, mas já possuidor do nível económico que lhe permitiria praticamente sê-
lo, chega a defender de foro, por si, outros vilãos, tal como se fosse nobre: e, o que é
mais, vilãos estes de prédios de entidades poderosas, como um mosteiro, – tal o que
sucede em 1258 en dois casais que, estando obrigados à «vida» (refeição) ao
mordomo e à voz-e-coima, «modo

__________

(1 ) Inq. 10991 e 11002.


(2 ) É a expressão sintética, Inq. 11502, que se explicita em «ut sint defensi ab omni foro
regali», ou expressões semelhantes, Inq. 4761 5422, etc. (passim).

(3 ) Inq. 12542, etc.

(4 ) Inq. 13632.

___192___

non dant illam, quia defendit illa (et illos) Petrus Johannis laborator» (1).

Tendo nós alegado complete a lista de documentos dos termos domnico


(adjetivo) e domnego (substantive), dois outros casos, afinal, nos surgiram (2):

- 1088: «de illa lama donega IIIIª integra et de illo pumarino que iacet inter ella
donega et Tagi medietate» (LF 297);

- 1258: «in cortina donega III. Almudes de pam» (Inq. 4352).

Sempre, como se vê, a concordância sintática, que já seria em si garante da


realidade destes termos: domnico, no feminino, porque aplicado aos nomes femininos
«cortinha» (3) e «Iama» (4); e, além disso, documentado, mais uma vez, o substantivo
«domnega» (LF 297, DC 718, DP 391).

Trata-se de venda de vários prédios, entre eles um naquela «Iama donega» e


um no limite de outro que era ou havia sido de certa «donega» (5). O vendedor não se

__________
(1 ) Inq. 11731 e até 11762, etc.
(2 ) À última hora do trabalho tipográfico, pudemos ainda incluílos na lista de «donega». Um
deve-se à publicação do vol. II do Liber Fidei (1978), a qual ignorávamos, tendo-nos passado
despercebido na busca direta naquele cartulário, por fadiga – o que também sucedeu com o outro, no
texto das inquirições.
(3 ) São coisa muito diferente, nestas localidades, «casal que foy d Onega» e «cortinal d
Onega» (Inq. 4342 e 4371). A cortinha é um campo fechado: séc. X-XI, «cortinas antiquas, DC 952;
«cortinas darredor do paácio», Inq. 3051.
(4 ) A «lama» é hoje lameiro, lameira: 904, «terras cum suis lamis», doc. in «Bolet. del Inst.
de Est. Ast.» nº 55; 1258, «ad lamam donni Arie», Inq. 5602.
(5 ) Como se esperaria depois do equívoco nos LF 181 e 187, o prof. padre A. de J. da
Costa, na publicação do Lib. Fid. II p. 330, recai aqui no mesmo: de «Lama Donega» (copiado Danega,
por erro, no cartulário), diz «talvez por de Onega»; e de «illa Donega» informa corrigindo Denega, tavez
por de Onega». (Não considerando nós aqui legítimos topónimos essas designações tópicas, não usamos
maiúsculas).
Sempre na sua ideia de Onega, o mesmo publicador transcreve «vila d’Onega» (1134, LF 423) a
já tratada Vila Donega (c. Barcelos); e aqui já não se usa a dúvida «talvez».
Depois de tantas emendas (aqui e noutras obras nossas),

___193___

apresenta com «dom» («ego Pelagius Alfinsi»), mas é citado depois com ele («dom
Pelagio», sem ser nobre, pelo menos provável): portanto, um donego cuja categoria
social acorda aí com a menção dessa donega.

Estes casos são da mesma localidade (e não os únicos aí): Barbudo, ou


imediações, e Soutelo (c. Vila Verde). Da sua ligação à nobreza pré-nacional, falámos
a propósito de «souto donego» (1); e, melhor que qualquer outra estirpe, como já
dissemos, e de seguida diremos (na aplicação ao território vimaranense), é para
considerar a vimaranense condal (séc. IX-XI). Portanto, na origem da dominicação:
iuniores, casati daquela (2) – enquanto se não prove outra relação dominium-hominium
que melhor satisfaça que senior-iunior ao que acabamos de investigar.

De todo o estudo feito, parece-nos dever deduzir-se que os sentidos sócio-


económicos dos termos «domnego» e «domnicus» nada têm de comum – pela
diferente formação morfológica das palavras e pelas suas aplicações diferentes,
respetivamente a pessoas (estas de condição vulgar) e a prédios dominicados por
pessoas de outra condição (nobre): as terras domnicas.

E teremos de distinguir domínicum e dominícum (domnicum) – o domínicum


todo o espaço geo-humano relativo a um senhor (dominus), com o correspondente
dominium, o senhorio nesse espaço (terras e habitantes); enquanto o dominícum, ou
domnicum, a propriedade de terras reservadas ao dominus (ou senior) por um iunior
em lavranças próprias em terras dominiais ou noutras («terras extrâneas»), ou por
outros processos.

__________

somos o primeiro a lamentar mais estas àquele catedrático: tão desagradado que, ao ensejo da
publicação de LF 551 (Paroquial suevo), nos aspou do Lib. Fid. II p. 348 – tratando-se de dar uma
informação de registadores (e comentadores, duplo título sob que se cita a si mesmo) e sendo nós o autor
que mais extensamente (depois de P. David) se ocupou do Paroquial.

(1 ) Mal lido «suco domoo» pelo mesmo publicador (L F 241, Lib. Fid. I p. 284), em vez de
«suco donico».

(2 ) Sempre «in termino de Barbuto» ou «sub alpe Barbuto», ou imediações, referimo-nos


aos domínios da condessa Flâmula (960 DC 81) e do conde Nuno Mendes (1071 LF 253): neles, esses
prédios domnicos e o da domnega. Deve ter-se em vista a passagem à coroa por confisco (AF3 185).
___195___

Exemplificação no território «vimaranense»:

Para uma melhor compreensão sócio-económica do termo domnico, há ainda


um conjunto de circunstâncias de que propriamente nos não ocupámos e que vai
agora servir para melhor caraterizar as situações históricas respetivas com o seu
exemplo em entre Ave e Vizela:

- À exceção de uma ocorrência no extremo sul e dua no centro do país


(quantas conhecemos, sem descrermos que possa haver ainda mais), as quais temos
por um efeito de transporte de povoadores nortenhos dessas regiões, todos os casos
em que essa palavra se revela toponimicamente pertencem à metade norte do país.
Isto já nos permitiria datá-los até séc. XI-XII – o que por tal circunstância faríamos
mesmo que esses casos não nos surgissem então tal como acontece, isto é, sem
qualquer nota de necessidade.

- Mas, dentro dessa metade norte do país, a maioria dos casos situam-se ao
norte do Douro e, neste, à sua parte ocidental, circunstância que, por si só, nos levaria
a retrotrair tal datação para antes dos meados do séc. XI (ou seja, antes da acessão
definitiva ao território português da região que vai de Lamego a Seia e a Coimbra).
Não pode, pois, ser ocasional uma tal coincidência, ainda mesmo que o próprio termo
domnico, contra o que acontece, a não reforçasse – pelo seu próprio sentido e até
pela sua formação vocabular.

- Por fim, dessas aproximadas três dezenas de casos toponímicos em que o


vocábulo tem uma função qualificativa e classificadora de prédio ou acidente de
prédio, cerca de um terço são do território de entre Ave e Vizela – o território histórico
vimaranense. Esta acumulação singular (reforçada pelo documentado uso da palavra
na fala corrente ainda então) vai permitir-nos fazer recuar a fixação destes topónimos
ao séc. IX-XI. E já o esperaríamos: é esse o tempo mais coerente com a sua
existência já não recente nos séc. XII-XIII, por ser esse um tempo mais avizinhado da
origem do termo domnicus, o qual deveria ter sido usado correntemente na época
suévico-visigótica, sem isto querer dizer que dela datem os topónimos que o fixaram e
por isso o recordam. Um tempo, portanto, em que a dominicação por uma
___196___

relação senior-iunior, ou outra, ainda permanecia ou se restauraria com a recuperação


cristã da «pátria».

A redução territorial que fomos efetuando por aquelas mesmas circunstâncias,


redução essa que nos conduziu ao território vimaranense, e o recuo temporal que por
efeito delas mesmas íamos operando, detendo-nos nos séc. IX.X, são o suficiente
para impor à nossa consideração, em tais circunstâncias domnicas, a alta «stirpe» que
dominou Portugale desde a presúria da segunda metade do séc. IX.

E também nisto poderemos dizer que já o esperaríamos. É essa a «stirpe»


condal vimaranense, a da condessa Mumadona I – para antes e para depois dela. E o
facto ainda mais se nos impõe ao verificarmos a pssobilidade de fazemos uma nova
redução territorial dentro do já reduzido «territorium inter ambas Aves»: da aproximada
dezena de casos que existem entre Ave e Vizela, pertencem oito às proximidades de
Guimarães – sem esquecer que um outro podemos considerar com estes, por muito
vizinho deles, mas da outra banda do Vizela.

A relação dominical com a dinastia condal vimaranense, parece-nos o bastante


para dar aos casos não vimaranenses, aproximadamente, o mesmo tempo – tal como
deduzíramos já, por outras vias e circunstâncias.

Uma outra questão põem-se agora: sendo um facto a identificação da «stirpe»


condal ao mosteiro vimaranense ou deste a ela, deveremos na origem dominicada
desses topónimos (ou das respetivas situações) considerar o mosteiro ou a sua
«stirpe»? Sabemos que o cenóbio atingiu rapidamente um esplendor e expansão
económicos talvez excecionais em toda a península, com os seus bens desde a média
Galiza ao Vouga, e do litoral ao Tâmega e ao Águeda-Coa (DC 420, etc.). Ora, como
tais topónimos se acumulam à roda de Guimarães, deveremos preferir os próceres ou
condes – até porque se trata de relações pessoais, embora incidentes na propriedade,
ou, portanto, porque os condes residiam em Guimarães (1).

__________

(1 ) Temos ainda uma certa prova deste facto «pessoal» no execional número de prédios
domnicos à roda da «Casa de Nogaria» (Braga, LF 176 de 1027) dos condes de Portugal, pais e talvez já
___197___

Convém notar ainda que a documentação do termo domnica no seu uso vulgar
(sem tratar-se, pois, de topónimos) pertencente quase totalmente a uma estreita faixa
de território que se estende do final do curso do rio Homem, por Braga e Guimarães,
ao rio Vizela; e que os seus documentos respeitam em geral à «stirpe» condal
vimaranense: cerca do rio Homem, junto ao Cávado, bens da condessa Flâmula e do
conde Nuno Mendes /DC 81, LF 253); junto a Braga, a «casa de Nogueira» com seus
apêndices prediais, da condessa Ilduara II (LF 177, 178, 179, 187); em Guimarães, o
cenóbio e residência condal da «stirpe»; cerca do Vizela, a «casa de S. Martinho»
(Conde, DC 121) da condessa Mumadona II – e, sempre como possessões de
antepassados. Mais uma circunstância esta a indicar-nos a explicação do caráter
domnico de determinadas possessões ou prédios recordados na toponímia.

Passamos, pois, de setor circunstancial e documental genérico ao toponímico


entre Ave e Vizela, cujos casos, de resto, foram já arrolados; mas convém reforça-los:

Agro Donego (Nespereira) (1): O ager domnicus e o santus domnicus da «villa»


(há também aqui Souto Donego) devem referir-se à «stirpe» do conde Ermenegildo
Gonçalves (se não mesmo a seus pais, condes Gonçalo Bototiz e Teresa Eres, ou a
seu avô, o conde presor Afonso «cognomento «Betóti), tendo do conde Ermenegildo
ficado a seu filho, conde Gonçalo Mende: «evenit in pars Gunsalvi Nesperaria» (DC
61); e dele a obteve por troca a mãe, condessa Mumadona I, que a doou em 959 ao
mosteiro, «cum omnia que ab ea pertinet» (DC 76). A alusão a pertenças da «vila»
pode muito bem englobar tais rationes domnicas («ager, «sautus», etc.).

Casal Donego (São Torcato e Vila Cova) ( 2): o casale domnicum de Vila Cova
pode relacionar-se com as possessões da condessa Mumadona I: «illa villa de Vila
Cova ganabit illa domna Mummadomna» (DC 225); e seu filho,

__________

avós de Mumadona I, e antepassados diretos de Ilduara II: leira donega, suco donego, valo donego, senra
donega (LF 179, 178, 187, 178).

() Inq. 7252.

() Inq. 6781 e 7281.


___198___

o conde Gonçalo, refere também «in Villa Cova quantum comparavimus» (DC 138).
Quanto ao casale domnicum em São Torcato, e, ainda aqui, a larea domnica e o
padulis domnicus (Leiria Donega e Paul Donego), nada temos a acrescentar.

Eira Domnega (Creixomil) (1): As mesmas circunstâncias: em 926, a doação


régia da «villa nuncupara Crexemir» aos futuros condes (se já o não eram)
Ermenegildo e Mumadona (DC 31), vindo a condessa a doá-la em 959, ao seu
mosteiro: «et villa adicio Crescimir» (DC 76). A area domnica tem, pois, mais
possibilidades no séc. X por ser da coroa a «villa» antes de 926.

Fonte Donega (Calvos e Infantas) (2): em 1045, Ermenegildo Froilaz (ou Mendo
Froilaz) e sua mulher Gontrode Ordonhes, de alta estirpe aparentada à vimarense,
possuíam «in riba Avizela villa Calvos» (DC 340 e 374): a fons domnica, porém, ou,
por outra, a dominicação dessa fonte deve ser muito anterior a eles. Do mesmo modo
pensaremos no caso de Vila Nova, pela ligação que fazemos, em algumas partes
deste estudo, a possessões locais de infanzones.

Leira Donega (São Torcato) (3): Nada temos a acrescentar ao que dissemos
dos três casos aqui (casale, larea e padule), a não ser lembrar a documentação do
termo domnico para uma larea no território vimaranense, em Silvares: 1079, «larea
domniga»» (DC 570).

Paul Donego (São Torcato) (4): lembramos apenas os outros casos (casale
domnicum e larea domnica) desta localidade.

Souto Donego (Nespereira) (4): As mesmas circunstâncias de Agro Donego,


nesta localidade também.

__________

(1 ) Inq. 7191.

(2 ) Inq. 6972, 1379, «por coomha, se acontecia, havia el rei de aver huuma taça de auga de
huuma fonte que está a par da igreja de Villa Nova, que chamam Fonte Donega, e hum careiro»: doc. Vit.
Elucid. s. v. Coomba (cujos publicadores, como sempre sucede – e já o vimos de sobra – transcrevem «d
Onega», entendendo o nome pessoal Onega).

(3 ) Inq. 7272

(4 ) Inq. 6721 (antiga freguesia de S. Romão de Xisto, hoje extinta).

(4 ) Inq. 7252.
___199___

Como documentação do termo domnico, relembraremos o «palacium


domnicum» de 1013 em São Martinho (Conde), a «casa de São Martinho» da
condessa Mumadona II (DC 121), mas a ela muito anterior (4).

Estes o exemplos de casos vimaranenses do termo domnicus – o adjetivo


referente a prédios ou a seus acidentes.

Os casos vimaranenses expressos do substantivo «donego», respetivo a


pessoas, devem ser muito escassos, se há mais do que o único que aqui
conhecemos: o topónimo Donegas, em Conde. Nada temos que relacioná-lo com o
adjetivo domnicus, que aqui mesmo, como acabamos de relembrar, aparece na
expressão «palacio domnico».

Com efeito, diz-se em 1258 que no sítio da Fonte Boa, daquela freguesia,
existem três campos que dão à coroa fossadeira ( 1). Ora o prédio (ou atual quinta)
chamada ainda hoje Donegas inclui-se nesse sítio (2). A fossadeira indica a
propriedade de herdadores vilãos, talvez cavaleiros – e não admirará o tratamento
«donegas» se lembrado aquele que se dá a um desses proprietários da primeira
metade do séc. XIII, um «dom Ousidro» (3).

Mas, se a toponímia vimaranense é falha na representação do substantivo


«donego», já a sua documentação é abundante para indivíduos de condição comum a
que se concede ou que usam o chamamento de «dom». Nas inquirições de 1258,
contamos cerca de meia centena de casos típicos, podendo dizer-se que eles em
nenhuma freguesia faltam:

__________

(4 ) Mais uma vez chamamos a atenção para o erro «obdonigo» da publicação, ou melhor,
do apógrafo- Cp. o erro Folienz (que nada tem com Florêncio) em vez de Froilaz (DC 340, 374).

(1 ) Inq. 7002.

(2 ) Esse sítio é hoje correspondente às «quintas do Avenal, Assento e Donegas»: Vim.


Mon. Hist. p. 242, nota.

(3 ) Um casal aqui de filhos dele («filiorum domni Ousidri») tem o encargo da fossadeira e
os do chamado ao castelo e da voz-e-coima (estes dois, portanto, pouco de considerar, por serem
acidentais): Inq. 7011. Devia, de facto, tratar-se de cavalaria vilã, já transformada tributariamente.
___200___

- Umas vezes trata-se de burgueses de Guimarães ou até «cidadãos» de


outras povoações importantes: a vimaranense Ousenda Salvadores, também, de
facto, chamada «domna Ousenda», com um casal da coroa em Aldão; uma «domne
Guede Santarene, com um casal em Arões (São Romão»; a hereditate domni Geraldi
vimaranensis», em Candoso (S. Martinho); o casal de «domna Elvira bracarense», em
Fermemtões (1): prédios ora apenas afossadeirados, ora só com o encargo do
chamado (ao castelo – isto é, funcionalmente privilegiados).

- Muitos casos são de proprietários encarregados praticamente apenas de


fossadeira, com a consequência de um real privilegiamento, como o acabamos de
referir para «cidadãos»: em Agrela, o «castinario de domna Euva» (2); em Conde, o
casal «filiorum domni Ousidri» já citado; em Pinheiro, a «hereditate done Gullodo»; em
Prazins (Santa Eufémia), o casal «nepotum domni Midi» e a herdade «domni
Domingo»; em Selho (S. Cristóvão), o «casale que fuit de domna Anais»; em Souto S.
Salvador), a «hereditate que fuit de domno Oveco» (3).

- Casos ainda mais isentos, como, em Fermentões, o casal que «est domni
Simeonis» e o da bracarense «domna Elvira»: apenas chamado e voz-e-coima (ou,
portanto, acidentais) – o que se pode encontrar também em Vizela (S. Jorge), em
casais «domne Marie et una quintana» (4).

- Um caso de monteiro, de que se não define foro algum (de acordo com o que
já dissemos, e provámos, acerca da prática nobilitação dos monteiros reais): «domnus
Facundus montarius», em Asorém; e outro caso referido com os de vários herdadores
foreiros, em Cerzedo, não se indicando foro algum para o casal «filiorum et nepotum
domne Lupe» (5). De citar ainda o caso da «quintana que fuit domne Ouruane»,
burguesa vimaranense, em Gui-

__________

(1 ) Inq. 7261, 7261, 7262 e 7202, respetivamente.

(2 ) Romance de Eleúva: Vim. 1852. Em várias localidades do território vimaranense


chamava-se «castinheiro» ao casal (doc. Vim. 178-186).

(3 ) Inq. 7011, 6962, 786, 782 e 7152.

(4 ) Inq. 7202 e 8811.

(5 ) Inq. 7231 e 7041.


___201___

marães, como uma das casas que nunca haviam pago «soldada», ou, portanto,
honradas ().

- O tratamento (ou a pretensão a ele inerente) chega a manifestar-se da parte


de proprietários encarregados de funções públicas – certamente por casta, o que nos
leva a supô-los descendentes de «famílias» de servos fiscais, que não nos
surpreenderia tivessem sido, de início, iuniores eximidos da condição solarenga e
adquirentes de prédios cujos possuidores seriam obrigados ao serviço de exatores do
fisco (2).

São os casos de Infias: «filii et nepotes domni Frisom debent esse maiordomi»,
citando-se esse, não como o primeiro sujeito ao encargo, mas o único então de nome
recordado nele (3); de Nespereira: «isti fuerunt maiordomi de terra et de pane
(residentes e proprietários nesta freguesia): Menendus molneirus et domnus Erus…
don Toereus» (4); de Souto (Santa Maria): «filii et nepotes domni Guimarei debent esse
maiordomi terres» (5).

- Nem em casos de pesados encargos tributários (sobretudo direituras) faltava


o «dom», embora raro em tais condições, como é de compreender: em Tagilde, o caso
do casal onde vivia «domnus Silvester» (6).

Por vezes, dava-se a circunstância de numa localidade se referirem cavaleiros-


fidalgos (milites) possuidores de prédios honrados (sem foro) e não se lhes chamar
«dom», mas dar-se este chamamento a foreiros – como em Paços, a «domna
Seniorina», dona de um casal (7).

__________
(1 ) Inq. 7272. Certamente ao abrigo do foral de 1128: certos burgueses «non donent
fossadeira» ou «munquam donent fossadeiras»: Leg. 351.
(2 ) Ver o segundo capítulo este estudo (pelas leis de Leão de 1020, cap. IX e XI).
3
() Inq. 6952. Um dos filhos desse «dom Frissom» foi «unum hominem qui vocabutur
Johannes Frissom… et erat maiordomus domini regis», de facto (mas sem «dom»): Inq. 6972.
(4 ) Inq. 1721. Note-se que ao «moleiro» não se dá «dom», apesar da sua identidade
funcional fiscal com os outros. O facto de haver nesta localidade dois topónimos domnicos (Agro Donego
e Souto Donego) nada tem, como é evidente, com a circunstância pessoal de que tratamos.
(5 ) Inq. 715-716.
6
() Inq. 6912.
(7 ) Inq. 7332. As senhoras psrece terem mais este privilégio – e compreende-se.
___202___

Outras vezes, surgem no mesmo lugar proprietários diversos em iguais


condições e apenas a algum ou alguns se dá o tratamento – como, em Polvoreira, o
casal «filiorum domni Egee herdatorum» (com encargos apenas acidentais: chamado,
lutuosa e voz-e-coima) (1).
Da antiguidade do uso ou da existência de «donegos» dão, enfim, ideia os
topónimos «Fonte de dona Plaza» em Fareja (2), «Casale de Domno» em Infantas,
«Tio Dono» em Infias (3).
A unir num mesmo interesse (no ponto de vista que aqui nos ocupa) e num
mesmo circunstancial históricos Guimarães e seu território, durge-nos a singular figura
da burguesia vimaranense Urraca Manteiga–Urraca Nunes de seu nome, chamada
também «dona Urraca» ou «dona Urraca Manteiga» (4). Constitui o tipo acabado da
«donega» burguesa, pela sua condição e os grandes haveres e pela aristocracia que
dela, poderá dizer-se, procedeu. Falta seria não lhe conceder aqui, embora de
passagem, o relevo que merece, por si mesma e pelo que exemplifiquei na nossa
tese.
Por certo já idosa, ainda vivia em 1258, ano em que aparece proprietária única
de nada menos que vinte e três casais e meio e de parte em mais dezasseis (se não
integralmente em alguns destes) (5). Além disto, possuía

__________

(1 ) Inq. 6892. Já salientámos que o tratamento não dependia apenas dos bens possuídos.

(2 ) Inq. 7051. Lembre-se «dona Fareja» que aqui vivia no séc. X (DC 70, 78, 420) e que não
parece nobre de sangue, mas deixou o seu nome à freguesia.

(3 ) Inq. 7002 e 6951. Considere-se o que acerca do tratamento «tio» idêntico a «dom» que
lhe sucedeu, já pudemos dizer.

(4 ) «Orraca Nuniz», «domna Orraca Nuniz» ou só «domna Orraca»: Inq. 7122, 7241, 7132,
etc. Sem ser nobre, mas pelas ligações da nobreza à sua família, um dos livros de linhagens faz-lhe uma
referência acidental: «filha de Urraca Nunes Manteiga» (filha essa de que não se diz o nome: LV1 35).

(5 ) Em 1258, «sunt Orrace Manteiga» quatro casais em Asorém, três em Fermentões, um


em Fins (Santa Eufémia de Prazins), um em Selho (S. Cristóvão) e três e meio em São Torcato: Inq. 7231,
7202, 7161, 702-703 e 7281; «sunt Orrace Nunionis» (Nuniz) dois em Gominhães e um em Ponte (S.
João): Inq. 7312 e 7171; «sunt domne Orrace Nuniz» cinco em Gondar, dois em Penselo, um em Prazins
(Santo Tirso), Inq. 7071, 7241, 7221. Os outros casais por ela partilhados (ou íntegros talvez alguns) eram
___203___

a sua casa em Guimarães, não longe da igreja colegiada de Santa Maria (1).

São sobretudo de considerar os seus haveres em Asorém, no lugar de


Pousada – e neste mesmo lugar deviam ser os quatro casais que na paróquia «sunt
Orrace Manteigas» em 1258, bens que ela ampliou à custa de um outro casal, que era
reguengo e andava ermo (2). Foi nestes bens dela em Pousada que veio a erigir-se o
notável edifício torreado que ainda existe e que se tem por «solar» da família nobre
dos Peixotos (3).

Para julgarmos da classe e nível social desta dama e sua família, faça-se uma
comparação do estado da propriedade de Asorém em 1258 com o estado da mesma
em 1220.

Inquirições de 1220: Inquirições de 1258

a) Na «villa» de Aso- a) Em toda a paró-


rém, 5 casais reguengos; quia de Asorém, 8 casais
na de Cezil, 3; em Pou- reguengos, além do de
sada, 1. Pousada, ermo.

__________

em Gémeos, Negrelos (Paraíso), Ponte, Selho (S. Jorge), Vizela (S. Paio), Silvares e Xisto (São Torcato):
Inq. 6922, 7121, 7171, 7111, 6871, 7191 e 6712. Por exemplo, um em Gémeos e outro em Vizela eram
partilhados com o mosteiro de Arouca. Este mosteiro era um «mosteiro de donas» (nobres), como se dizia
– o que já poderá exprimir algo acerca da categoria social que os Manteigas vimaranenses iam atingido.
De facto, todos os membros da sua família própria eram considerados «cidadãos» (burgueses) de
Guimarães: em Xisto, certo casal, em 1258, «est Orrace Manteiga cum suis fratribus vimaranensis»: Inq.
6172 (um deles, João Manteiga, Inq. 7132).

(1 ) 1258, «de ecclesia Sancte Marie usque portam domne Orrace, Inq. 7372. Em 1288,
ainda aí se recordava a alminha que ela em Guimarães doara aos cónegos daquela colegiada (entre os
quais ela tinha parentes): «donavit donna Orraca dicta Manteiga»: doc. Vim. Mon. Hist. p. 346.

(2 ) «fecit Orraca Manteiga in terrenis ipsius casalis bonas víneas» – as «víneas domne
Orrace» ou «vinea Orrace Nuniz de Pausada» (de Pousada as vinhas e não ela, que vivia em
Guimarães); naturalmente, pois, com o «lagare domne Orrace»: Inq. 7231.

(3 ) «medietam turris Sancie Alvim est domini regis», Inq. 7301, é um exemplo da
possibilidade de torres burguesas (esta em Golães).
___204___

b) Em toda a paró- b) Em toda a paró-


quia, 9 casais de três «or- quia, 9 casais, de uma «or-
dens». dem».
c) (Nada mencio- c) Em toda a paró-
nado). quia, 10 casais de proprietários.

Nas duas datas, as situações a) e b) são as mesmas (1). As Inquirições de


1220, além de foros (situação c), não se ocupavam senão de reguengos e de bens
das «ordens» – estes dois últimos, respetivamente, as situações a) e b): a situação c)
de 1258 devia também ser a mesma em 1220 – portanto, quanto a proprietários. Ora
estes tanto podiam ser nobres como não nobres: vejamos, pois, quem eles são.

É possível sabê-lo pelas inquirições de 1258 e as de 1290: três filhos-de-algo


de «stirpe» (nobres) (2), e os restantes sete de burgueses vimaranenses, sendo quatro
de Urraca Manteiga (3).

As inquirições de 1220, para a situação (c), a dos foros à coroa, nada apontam:
os dez casais de proprietários eram, pois, todos considerados privilegiados – sem
distinção dos de nobres para os dos burgueses. Mas as inquirições de 1258 indicam
para todos os «homines» (condição comum) da paróquia os encargos do «chamado»
(ao castelo) e criminais (voz-e-coima) (4): praticamente inexistentes, visto que o seu
cumprimento seria puramente

__________

(1 ) Entre 1220 e 1258, despovoara-se o casal reguengo de Pousada (e fizera nele as


vinhas Urraca Manteiga). Quanto aos casais das «ordens», também não houvera diferença: apenas os
nove casais eram agora todos da colegiada vimaranense (que em 1220 tinha sete, tendo adquirido
entretanto os outros»).

(2 ) Da «stirpe» de Lanhoso (Fafiãos & Godinhos), incluída a pequena honra do Monte: Inq.
1
723 e Vim. Mon. Hist. p. 348. (Cfr. Scr. 329 e 330).

(3 ) Os outros são respetivamente do burguês João Corrudo, de um cónego e do chantre da


colegiada. (Cfr. Inq. 6861, etc.).
(4 ) 1258, «omnes isti homines qui morantur in ista collatione pectant vocem et calumpniam
et vadunt ad chamatum»: Inq. 7232. Os moradores nos casais reguengos não nos interessam, mas os
caseiros, «homines», que habitavam e cultivavam os dos burgueses (e também dos nobres).

___205___

acidental (defesa do castelo, ou crime cometido). Não havia diferença dos burgueses
para os nobres, pois que estes tinham as obrigações da milícia próprias da sua classe
social; e, quase sempre, os seus domínios (quando honras simples, como veremos),
pelo menos legitimamente, peitavam também a voz-e-coima.

Temos de concluir que a diferença de condição entre os nobres e os burgueses


era aqui apenas teórica – ou, melhor, uma questão d categoria ou posição social., bem
frágil barreira a separá-los. E, como nas outras freguesias que interessam a Urraca
Manteiga a situação é exatamente aquela (1), aqui temos categorizada socio-
economicamente a «donega» – o que não significa que neste nível popular melhorado
(gente de condição comum) a situação fosse sempre esta mesma. Desigualdades,
porém, por vezes grandes, como exuberantemente veremos, até com a nobreza se
verificavam.

Estes burgueses vimaranenses possuíam numerosos casais no termo, o


território entre Ave e Vizela; mas, como viviam em Guimarães, tinham-nos habituados
e cultivados pelos seus «vassalos»: «homines Alfonsi Bexudo et homines Orrace
Manteiga» (2), etc. – chamados, pois, (até nisto) «homines» como os caseiros de
nobres.

A opulência destes burgueses «donegos» não poderia deixar de atrair a


nobreza, geralmente cobiçosa. Como, porém, estes estavam bem defendidos (por
uma boa carta de foral e uma fortaleza, talvez a primeira do Reino), não se conhecem
violências: conhecem-se, sim, casamentos nobres. E, a este respeito, basta lembrar a
figura de um «donego» burguês pouco menos de notar que Urraca Manteiga:
Domingos Anes «Mouro», cuja irmã Ousenda casou com um nobre, Gonçalo Gomes.
A este «Domingos Anes Mouro de Guimarães» se refere, por isso, um livro de
linhagens medievo, que o diz «muy bõo cidadão e muito honrado, a abrir as portas a
escudeiros

__________

(1 ) Assim, em Gondar, em 1220, havia onze casais reguengos e sete casais de «ordens», e
nada consta de proprietários, nobres ou não nobres; em 1258, exatamente o mesmo quanto a reguengos
e «ordens», e sete casais de proprietários, todos burgueses (entre os quais, Urraca Manteiga, com cinco):
Inq, 7071.

(2 ) Inq. 7121.

___206___

e a cavaleiros» (1). Aquela sua irmã tem-se por mãe do cónego vimaranense e abade
de Vila Cova e Tolões, Gonçalo Gonçalves, que em 1290 aw si< neto de Urraca
Manteiga e «homem filho-de-algo» (2). O grau e a razão de parentesco aguardam
investigação, pois talvez não possam ser os que os autores supõem.

Pelo seu acordo com a nossa doutrina, não é menos relevante o que concerne
aos Vervas burgueses da vila de Guimarães ( 3): ou suas casas aqui (dizia-se em
1290), nunca se vira entrar mordomo da coroa, porque eles eram «homens-bons e
filhos-de-algo, e envergonçavam-nos os mordomos», ou seja: por vezes, os oficiais do
fisco pretendiam não respeitar-lhes tal qualidade (para o que sem a menor dúvida se
baseavam na origem social deles) (4).

Os exemplos poderiam multiplicar-se – mas bastem dois mais:

- Uma «quintã» em Gonça, era trazida por honra por «homens lavradores» em
1290, só por serem parentes de dois «cavaleiros», fidalgos (cuja origem, pelo
parentesco, se está já a notar). Estes, de facto, honravam essa «quintã», sem terem
«hy rem» (coisa nenhuma), porque esses seus parentes «son taes que nom vingam

__________

(1 ) Scr. 343. Os burgueses vimaranenses estavam dispensados pelo foral de 1128 de


fornecer quaisquer pousadas, a não ser «pro amore», por sua vontade (Leg. 350): era o que este
«cidadão» fazia, a nobres. Provavelmente a irmã lucrou com isso. O seu casamento nobre na honra de
Pardelhas (Fafe). Em 1258, de facto, ainda aí vivia «domna Ousenda uxor que fuit Gunsalvi Gomecii»
(Inq. 343 e 348). Os genealogistas chamam Peixoto a este cavaleiro-fidalgo Gonçalo Gomes, e têm os
Peixotos como descendentes de Urraca Manteiga, mas nobres por ele. Deve notar-se que Peixoto nos
parece ser uma transformação fonética de Beixodo (Beixudo), alcunha que encontramos em burgueses
de Guimarães, muitas vezes, nos meados do séc. XIII, até ao lado de Urraca Manteiga: Inq. 712. É um
caso a tratar num eventual estudo da burguesia medieval de Guimarães. Ficamo-nos aqui nisto.

(2 ) Vim. Mon. Hist. p. 352. A mãe não era de facto nobre (notabilizara-se por casamento):
além do que se diz do irmão, um «cidadão», diz-de se uma sobrinha dela (filha dele) que «nom era filha
de cavaleiro nem de escudeyro» (Vim. p. 373).
(3 ) Sujeitando-se à voz-e-coima e ao chamado típico dos burgueses, têm estes Vervas
numerosos bens em Selho (S. Lourenço), Fermentões, Arões (S. Romão), Ponte, Mesão Frio, etc.: Inq.
7181, 7201, 7261, 7171, 7311, etc.

(4 ) Vim. 353.

___207___

honra» (1). Se as coisas continuassem, chegariam a «vingá-la». Portanto, mesmo


quando a fidalguia (nobreza) se firmasse pela via condicional (a divitia dos antigos
tempos, o «algo» bastante de agora), ela não se estenderia só por isso a toda a
família (2).

- Giraldo Afonso era um nobre filho-de-algo em 1258 (3), e em 1308 tinha bens
em Asorém «um seu neto, que nom hé cavaleyro nem escudeyro», e, apesar disso,
pretendia continuar a honra do avô (4).

Manteigas, Mouros, Vervas, Corrudos, Beixodos (Peixotos, fantasticamente


entroncados pelos genealogistas para seu «lustre» na «stirpe» de Portocarreiro) ( 5)
são, pois, burgueses vimaranenses: mas burgueses de grandes haveres que lhes
traziam por vezes a nobilitação mesmo sem os casamentos nobres. Ora nem estes
lhes faltaram: o de uma filha de Urraca Manteiga (LV1 35); o de Domingos Anes
«Mouro» na estirpe de Freitas; os de sua irmã Ousenda na honra de Pardelhas, e de
uma filha dele, Maria, na estirpe de Sande, ramo bastarso da alta linhagem dos de
Riba de Vizela (6). Valeu, pois, a pena ao «honrado» cidadão Domingos Anes «abrir as
portas a cavaleiros e a escudeiros», prescindindo nisso do foral – por si, por sua filha e
por sua irmã.

__________

(1 ) Vim. p. 365.

(2 ) É um caso análogo ao dos vilãos foreiros de que saiu, como vimos, a estirpe «de
Morais» (tornados cavaleiros, depressa equiparados a ricos-homens).

(3 ) Inq. 732, etc.


(4 ) Vim. 348 e 381.

(5 ) Até o que dos Peixotos consta em Scr. 300 deve ser intrusão posterior ao séc. XIV.

(6 ) Scr. 348, 343, 300.

__208__

6. «Boni homines» e «filii benenatorum»: Os «filhos-de-algo» nobres e


não nobres; relacionações.

As perturbações sociais e políticas, sobretudo de caráter dinástico, atingiram


sempre a nobreza, não aniquilando-a, mas refazendo-a, tanto pela ascenção a graus
superiores como pela acessão de indivíduos que lhe não pertenciam. No fundo e em
geral, o fenómeno não terá passado de efeito de uma decadência cíclica. Devido, pois,
mais à evolução que a revolução (1).

A inhabitatio suévica do séc. IV, tendo sido um desses momentos, foi,


provavelmente, o de efeitos mais radicais: podemos mesmo falar numa substituição, e
não num renovamento; e pensamos que, ao longo da Idade Média, se hão-de
encontrar entre nós circunstâncias reconhecíveis ligadas a esse facto. A nova nobreza
germânica não prevaleceu apenas sobre a aristocracia hispano-romana. Não a terá
unicamente inferiorizado, mas sem longo período de

__________

(1 ) Assim parece observar-se nos momentos cruciais da nossa História: a queda da


dinastia condal vimaranense, de 1043 para 1044 (AF3 157-172), a desordem cívica que desfechou na
guerra civil de 1245-1246, a crise europeia ocidental em que se inseriu a nossa independência
preservada, em 1383-1385 (uma guerra precipitada por crise de sucessão dinástica), para não sairmos da
época a que se confina este estudo, são três exemplos de decadências cujos efeitos se tornariam
inelutáveis desde que criado um clima de suficiente tensão social e política. Ora essa decadência, levaria,
de cada vez, a uma renovação que, num ponto de vista bio-humano, poderemos dizer de sangue.

___209___

coexistência, substituído: assimilado ou, portanto, descaraterizado nos estratos mais


vivazes – no seu caráter individual e na função hierárquico-administrativa, dando vez a
uma aristocracia de profundo espírito de casta ou linhagem, que teria em geral de
tomar daquela a hierarquização administrativa, tal como em inúmeros casos lhe
arrebatara a parte leonina dos prédios. Base económica e, daí, o exercício político-
administrativo são condicionais em qualquer classe poderosa, ou para uma classe o
ser; mas do espírito de casta provirá o de linhagem da nobreza portugalense, o que
não provará ilusoriamente a permanência em todas as vicissitudes; e as classes
acedidas, por mutação e necessidade, foram-se sempre imbuindo desse espírito, sem
quebra, porém, de convivência com as inferiores.

A primeira dessas vicissitudes, respeitando à nobreza sueva e assente numa


firme base económica proveniente das depraedationes sobre a hispano-romana, foi a
substituição do poder suévico pelo visigótico nos fins do séc. VI. Mas isso não deve ter
feito mais que acentuar as caraterísticas dessa nobreza, quer os anexados se
mantivessem no seu nível social, quer – o mais crível – houvessem sofrido a perda de
preponderância. Uma perda natural de vencidos e subjugados, e de tal modo que,
como é facto, a entidade sueva desaparece totalmente.

Mas em tais condições, o ruralismo essencial dos Suevos não deveria ter
diminuído, no contraste da mentalidade visigótica, que se havia tornado
acentuadamente urbana – do que é uma expressão iniludível a constante referência
das leis às civitates, e não somente aos territoria destas. Tal modo de ser suevo ( 1)
deveria ter sido assim

__________

(1 ) Será ocasião de referir uma vez mais (noutras obras, para outros fins, o temos feito)
certos indícios toponímicos do facto, além da denominação genitiva antroponímica das villae, a qual seria
bastante: cerca de Braga (que não se prova ter sido uma capital sueva, que não devia existir), uma «villa»
Miri que tradicionalmente se atribui ao rei Miro; na margem do Lima e sobre Arouca, dois casos de
Serreleis (ant. Sellarreis), topónimo de sintaxe latina e, por isso, remotíssimo como raros (de «sella
regis», paço real: «in sella regis consedisse capital foret»: Rufus, De Rebus Gestis Alex. Magni VIII 40); o
topónimo Meir (hoje Mei), local «u morarom os rex», cerca do Lima, como se recordava em 1258 (Inq.
3842), reis que não podem ter sido portugueses, nem mesmo leoneses, mas «autóctones», com o
remotíssimo culto local de S. Martinho como eco da Suévia.

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o último a ser contrariado pelos dominadores visigodos, que em tal oposição não
deveriam pôr interesse algum, além de nenhuma conveniência, numa convergência de
paz e unidade que entre estes dois povos não voltou a ser desmentida e que
preservaria aquela aristocracia agrária, instaurada pelas depraedationes. Cremos que
nisto mesmo se poderá entender uma das razões da ruralidade da nossa nobreza
altimedieva, a principal das quais a posse da terra, como base económica da
sustentação de um nível social. Uma nobreza esta, pois, sempre intimamente
convivedoura com as classes não aristocráticas.

Sempre considerado o caso particular do Noroeste peninsular, nomeadamente


o nosso território norte-atlântico, aquela circunstância não deve ter-se alterado com a
conquista muçulmana. Não falamos de dominação, pois esta nunca foi efetiva, e
porque, ainda que o tivera sido, bastaria considerar o respeito muçulmano pelas
organizações cristãs, exceto a fiscal e a político-administrativa. E estas, ainda assim,
ao nível superior ou de soberania. Mas tudo isso, precisamente, deveria ter, se não
acentuado, pelo menos preservado o ruralismo das nossas populações nobres: a sua
submissão era, sobretudo, fiscal, ou seja, de natureza económica (1).

__________

(1 ) Continuamos a considerar um equívoco dos historiadores (senão um simples mal-


entendido) dois pontos de vista principais, que constituem a tese do ermamento, verdadeira patologia
histórica que os paralisa. Um desses pontos é o refúgio das populações nas Astúrias (precisamente um
refúgio da região onde quase não houve luta, mas rendições e pactos, como última a ser submetida pelos
muçulmanos), com a expressão só inteligível ao inverso do que aparenta para a atuação de Afonso I:
«omnes quoque arabes occupatores interficiens, christianos secum ad patriam duxit» (Chr. Seb. § 13).
Acerca do que era a «pátria» dos cristãos exules, notar DC 816 e 817, ES XL 356, etc. Não as Astúrias,
porque estas eram terra de exílio para os «portugalenses», e não também os domínios muçulmanos, que,
naturalmente, eles não procurariam. (Cfr. os nossos estudos AF1 10-13, AF2 93-119, AF4 101-120, etc.).

Quanto à decantada presúria, já por aí se veria o que representa – e seria demasiado repetir o
que temos procurado demonstrar nesses anteriores trabalhos: tal como a despovoação é um atentado à
razão humana, é a presúria (diremos um conjunto de latrocínios, quase sempre) um logro lançado por
poderosos da época.

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Temo-nos servido da dedução nestas considerações, que as circunstâncias


confirmam (ou, noutra direção, que elas exprimem), a ponto de quase podermos
reputá-las indutivas. Serão talvez mais objetivas a partir de agora.

A proeminência com que começam a surgir, do séc. X para o XI, algumas


famílias («stirpes») que virão pelos linhagistas de três a quatro séculos depois a ser
consideradas as originárias da nobreza portugalense (porque eles nada sabem de
anterior ao séc. XI – delas, mas menos ainda, se possível, de outras, que existiam),
não poderá explicar-se senão pelo declínio da imperante, que a todas eclipsava: a
condal vimaranense. Não nos repetiremos no que a este respeito temos dito noutros
trabalhos, mas é necessário ao menos lembrá-lo neste, como fator da mais alta
importância.

Precisamente dessas cinco «partes» (assim lhes chamam as linhagens


medievais que nos restam, denotando a sua «participação» em grupos consanguíneos
já tradicional em textos anteriores hoje perdidos), hão-de sair os mais altos
representantes da nossa nobreza altimedieva nacional. Por acordo com a doutrina que
neste estudo desenvolvemos, não dizemos as classes mais elevadas ou sequer a
mais alta da nobreza. É que nem todos os membros destas cinco linhagens seriam, de
facto, ricos-homens – ainda que potencialmente pudessem vir a sê-lo, isto é,
sobretudo desempenhar cargos político-administrativos que naquele nível os
categorizavam. Na segunda parte deste trabalho se mostrará.

Nos séc. XII e XIII, são esses divites-homines (os ricos-homens) os


representantes dos comites da época anterir – os primeiros deles conhecidos
chamados ainda vulgarmente «condes». Este título torna-se desde os meados do séc.
XI de tão grande raridade entre nós quão vulgaríssimo ainda no reino vizinho, incluída,
para relevo de tal contraste, a Galiza. E nota-se que os escritores do séc. XIII-XIV,
considerando ou titulando de «conde» esses próceres, chamavamlhes, ao mesmo
tempo, «adiantados de el-rei» em Portugal (séc. XI), o que resultava da sua
autoridade. Esse título funcional de «adiantado» em tais escritores (em que o de
«conde» é apenas honorificador) corresponde, nos documentos daquela ocasião, a
vicarius regis (por vezes especificado em mandantes,

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imperantes e até maiorini, pelo menos), mas comites nunca ou quase nunca (1).
A prática abolição desse título funcional entre nós parece-nos dever alguma
coisa a uma sorte de política execração que parece ter-se criado (talvez melhor,
simulado) entre nós, em vias de independência política, com as medidas de Fernando
Magno contra a dinastia condal vimaranense, extinguindo-a e logo substituindo-a por
burocratas (de início mesmo em triunvirato): estes, apesar de nobres, pois são
precisamente os membros mais representativos das «partes» portugalenses referidas,
evitariam atribuir-se o título condal por prudência ou simples conformidade com o novo
rei, não despertando nele assim suspeitas ou meras recordações desagradáveis. O
que primeiro se evitava conscientemente converteu-se em circunstância estável, ainda
depois de obliterado o motivo.
Verdade seja que já de antes se vinha facilitando o declínio do título condal,
embora só entre nós esse declínio se consumasse. As leis de Leão de 1020, que já
aqui estudámos para os inerentes fins, como os que nos podiam interessar, mostram
que se iam preferindo à designação comes dos representantes superiores do rei as de
maiorini e vicarii. Assim, no cap. 5º, em casos em que nem «ecclesia iustitia adipisci
non potuerit»: «concedat maiorinos regis vocem iudicii» – e não é de crer a exclusão
de tais «maiorini regis» do número dos aí citados «optimates regni Hispaniae».
Não desconvém, pois, a este respeito a confrontação dos seguintes textos:

Leão: art. 5º Coiança: art. 7º

«… ut omnes comites seu «… ut omnes comites et

maiorinos regales populum sibi infantiones imperantes terre et

subditum per iustitiam regant». regales villici per iustitiam

subditos regant.
__________

() Em referência a encargos de montaria em municípios que têm as cartas régias de foral


mais antigas entre nós, aparece a expressão significativa ou definitória: cerca de 1060, «quando correrint
ad montem ipse rex vel vicarius eius»: Leg. 344. Nas referências posteriores ao mesmo encargo (até com
populações não municipalizadas), temos igual expressão: 1258, «correm monte

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Visto que a menção de comites é comum aos dois textos, a conclusão de que
maiorini regales eram infantiones e regales villici seria fácil de tirar. Englobar-se-iam
assim num certo grau de identidade infantiones e villici.

Conclusão apenas aparentemente demasiado simplista, já que num dos


capítulos anteriores vimos que os infantiones eram não só sempre nobres, mas mais:
eles a própria nobreza, de um modo muito geral ( 1). De sorte que, à primeira vista,
poderiam não fazer parte dela os viliici, porque assim sucedia na época visigótica ( 2).
Mas a categoria, agora, é outra: as suas funções são, nitidamente, as dos próceres
antes nomeados, e villicus e maiorinus, neste caso, pelo menos, sinónimos.

Portanto, parece bem claro que, enquanto até ao séc. XI não aparece, a bem
dizer, na alta administração pública, senão o título de comes (ou dux), agora dizem-se
maiorini (ou vicarii) e villici regales esses altos funcionários – que do séc. XI para o XII
são chamados tenens terram.

__________

cum el rey ou com o (seu) ricomem da terra» (Inq. 3751, 3782, 3821, 3872, etc.). A «terra» é a circunscrição
(antigo territorium civitatis) e o «rico homem» o passado «conde» (o comes civitatis), que na época
visigótica, como vimos, era um verdadeiro vicarius regis (embora também ele tivesse o seu vicarius e
fosse imediato ao dux: «vicarius dux», sem anotação expressa); «meus dives homo», como diriam os
nossos reis (1179, DR 337, etc). A sucessão de nomes é manifesta: comes, vicarius, tenens, ricus homo
(dives homo), mas o cargo, a representação régia, o mesmo.

(1 ) Apesar de todos os exemplos apresentados neste sentido, não é inconveniente um


outro agora, como fator da permanência da nossa tese: 1187, «et barones (homines) vestre civitatis
serviant cui voluerint: regi, scilicet aut comiti aut infanzionibus» (Leg. 463). Não é uma hierarquia
funcional, mas, aqui, sobretudo pessoal – faculdade dada a uma população municipalizada e em que
nada interessavam funcionalmente rei, conde, infanção, quanto ao «serviço», voluntário na prestação e
livre escolha do «senhor» (sem se tratar de beetria na feição de benefactoria original). Mas este sempre
nobre, como teria de ser com munícipes de grande concelho. Há a citação de apenas duas pessoas: a do
rei, que pode ser representado no seu dives-homo na «terra»; e a de um nobre qualquer, um infanção, um
miles. Mas este nome não se lhe dá: emprega-se o de infanzon porque no concelho havia «milites», os
seus cavaleiros-vilãos, que logo se citam; e ao representante do rei chama-se comes por tradição, numa
época, como esta, em que não havia comes em Portugal.

(2 ) Podiam ser de natureza servil e apenas tinham funções fiscais e policiais (cfr. GB VII
437). Estes, aqui, são próceres, «villici curie».

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Mas a verdade é que nos parece que as condições então não deviam diferir das da
época visigótica – estas, como vimos no primeiro capítulo (para este fim, entre outros),
com os seus seniores palacii (1), o mesmo que, no nosso séc. XI, os maiores palacii
(2).

Quando surge então entre nós um «conde», este título já não procede
necessariamente de exercício de função pública ou condal – e não devem ser dezena
os casos que, desde a queda do regime teresiano até fins do século XIII, se nos
deparam; e, mesmo assim, nem sempre o título se estende de um ao outro cônjuge.
Temos deste caso os seguintes exemplos:

- «Condessa D. Elvira». «Ego comitissa Elvira Gunsalvi» (LDT 7 v): uma filha
do chefe da linhagem sousã (D. Gonçalo de Sousa) e neta materna do aio do primeiro
rei (Egas Moniz), nunca titulados conde; e nem seu marido se chamou assim (3).

- «Condessa D. Toda»: Toda Palazim (LV1 6), que deve ser leonesa, esposa de
um neto do referido aio real, o qual nunca se intitulou conde (4).

- «Conde D. Vasco»: Vasco Sanches, sobrinho materno de D. Afonso


Henriques (DR 280 e 288, LV1 3),

__________

(1 ) Cód. Vis. VIII, 5, 6; IX, 2,9; etc.

(2 ) «rex domnus Alfonsus (Afonso VI)… coram comitibus et cunctis maioribus sui palacii»,
1088 DC 699. Evidente que entre os maiores palacii (regis) estavam os comites: como de outro modo, se
até aos comites se alude antes da expressão maiores? Evidentemente, os comites os maiores entre todos
(digamos mesmo, na toga palacii), de acordo com a nossa doutrina relativa a comites e duces, entre os
quais não havia verdadeira diferença – como aquela expressão ainda vem provar para o séc. XI. O que
nela transparece é que havia maiores palacii (e na época visigótica o mesmo – contados, por exemplo, os
seniores loci, Cód. Vis. IX, 2, 5, etc.) que não tinham tais títulos, ou nem mesmo outros, a não ser a
designação meramente relativa às funções desempenhadas. O nosso conde D. Henrique usa a mesma
expressão que o rei, bem dentro das suas ambições de independente: 1097 «nostri palacii maioribus» DC
866.

(3 ) Scr. 293. Apenas se note que até Gomes Eicaz (séc. XI), trisavô da condessa, os chefes
sousãos eram considerados «condes».

(4 ) 1210 «vobis comitise domne Tode Palazini»: Docs. de d. Sancho I, nº 188. O marido, D.
Rodrigo Vasques, filho do conde Vasco Sanches (que a seguir se cita), é dito uma única vez «conde» –
num dos livros de linhagens (LV2 5), talvez porque a esposa era condessa.

___215___

e cujos pais não eram condes; e a esposa (uma ilustre filha do referido aio) nunca foi
chamada condessa (1), ao contrário da primeira mulher que, sem ele se dizer conde
desde logo, é já intitulada «comitessa» (D. Berengária) (LF 509).

- «Condessa D. Froilhe»: Froilhe Sanches, sobrinha materna de D. Afonso


Henriques e irmã do conde D. Vasco referido, e cujos pais e cujo marido (da «stirpe»
bragançana) não foram nunca chamados condes – como também nem sempre a ela
se chamava condessa (2).

- «Conde D. Fernando»: Fernando Vermudes, filho de Vermudo Peres «de


Trava» e da infanta D. Urraca Henriques (irmã do nosso primeiro rei e, portanto, um
primo co-irmão do conde Vasco Sanches), o qual começa a figurar na cúria de D.
Afonso Henriques, seu tio, sem título, desde 1162 (DR 280, 285), título que, porém,
tem já em 1172 (DR 311, etc.) (3).

- «Conde D. Mendo»: Mendo (Gonçalves) de Sousa, meio irmão paterno da


condessa D. Elvira, o qual começou a usar o título entre Junho e Agosto de 1187,
título esse que à esposa se não estendeu (4).

O único caso que da sua comunidade nos cônjuges conhecemos até fins do
séc. XIII é o de D. Gonçalo Garcia (de Sousa, neto do conde D. Mendo) e sua esposa
D. Leonor Afonso, filha bastarda de D. Afondo III, a qual,

__________

(1 ) D. Urraca Viegas, quando tem tratamento, é sempre o de «meana» (= minha senhora):


Scr. 324, etc.

(2 ) Falando-se de D. Pedro Fernandes «de Bragança», lê-se: «de uxore sua comitissa» em
1258 (falecida havia decénios), a qual é, de facto, como se lê na mesma fonte e ano, sua esposa
identificada: «de domno Petri Fernandi Braganciano et domna Frulye Sancii» (Inq. 12682 e 12752). Talvez
de trate da «comitissa domna Fronilli» que aparece depois dos meados do séc. XII na região de bens e
autoridade paternos (Melgaço-Celanova): LD 11 v.

(3 ) Ver o nosso estudo Guimarães, 24 de Junho de 1128, pp. 112 e 113.

(4 ) Docs. de D. Sancho I, nºs 24 e 25; Scr. 289, etc. Apenas conhecemos um caso de se
chamar à esposa (D. Maria Rodrigues, cujo pai era um conde galego) «condessa»: certamente, pois, pelo
título do marido: ADB Gav. das Propr. do Cab. nº 23.

___216___

mesmo depois de viúva, continuou a intitular-se condessa (1).

O que fica parece-nos suficiente para provar não só a raridade mas sobretudo
a arbitrariedade do uso do título de conde entre nós numa época em que ele em Leão
(inclusa a Galiza) era frequente. A irregularidade no uso e ainda na transmissão
conjugal talvez se expliquem, ao menos entre nós, por não ter havido expressa
concessão régia ou, portanto, uma investidura, da qual não temos, com efeito, a
mínima indicação documental. E, na verdade, nenhum caso se reporta a um
determinado lugar. O primeiro desta espécie é o de Barcelos (finais do séc. XIII),
acontecendo que, com este, se verifica já a instituição ou nomeação pelo rei. Àparte a
maior frequência de casos, o mesmo se deve ter dado no reino vizinho; mas até neste
sucedia, por vezes, que um nobre se tratasse a si próprio de «conde» sem o ser ( 2), e
entre nós, conquanto não conheçamos um tal caso expresso, o povo ainda no meado
do séc. XIII denominava condes aos nobres que tinham a administração das
circunscrições, isto é, os ricos-homens (3). Deles se estenderia a

__________

(1 ) Scr. 290; TT Guadiana L. 8, fl. 12 v; «casou o conde com dona Leonor e fez ende o
conde honra»: TT Inq. da Beira e Al. Douro, fl. 3 e v. Não se lhe diz o nome, e, por vezes, a ela também
se chama apenas «a condessa»; é que eram então os únicos condes em Portugal (segunda metade do
séc. XIII).

(2 ) O caso de um nobre da casa (aliás condal) de Lara: «o conde D. Fernando o Condego


nunca o el rey fez conde mas chamava-se assim (LV1 83), um «se» tão reflexo como passivo.

(3 ) Assim vimos no capítulo anterior e o temos num caso respeitante à então vila de
Guimarães: 1290, «o lugar do Paaço fôrom casas dos condes de dom Meendo e de dom Joam
Rodriguez» (VMH 3531). Esses «condes» são os chefes (ricos-homens) da alta estirpe sousã (com os
quais até já explicámos o topónimo Vila Nova das Infantas cerca dali), e é por isso que ali se não chama
expressamente conde a D. Mendo, que usou o título (conde D. Mendo de Sousa). Ele tinha esses bens aí
de seu pai (Inq. 7371). O outro, nomeado, é filho do raptor de uma sua neta com a qual casou depois, e
fê-lo D. Afonso III rico-homem (como prémio dos seus serviços na usurpação), mas não o fez conde, nem
ele de tal se intitulou (Scr. 291, etc.)

Num doc. 1132 «Brandara de illos condes» (CMC 13 (e 22), atual f. Brandara, c. Ponte de Lima,
o determinativo «de illos comites» não é toponímico, mas simples maneira de distinguir a parte de nobres
na localidade da de não nobres (da «de villanos», expressamente, 1120 CMC 17). Todavia, ainda que o
seu caráter fosse

___217___

certos parentes. Parecem-nos aquelas duas as mais natuais maneiras de explicar os


nossos.

O chamamento «conde» que popularmente se encontrava ainda em uso entre


nós do séc. XIII para o XIV, tempo em que já a nobiliarquia se especificara (extintas as
rico-homias), parece dar a entender que o povo não usava sempre ou não usava todos
os graus da mesma: por ordem decrescente, ricos-homens, infanções, cavaleiros e
escudeiros (e ainda donzéis). Antes de lhes fazermos outras referências, convém
continuemos um assunto que, conforme as necessidades do momento, temos
dispersado.

Sánchez-Alburnoz entendeu que os infanzones da Reconquista eram os


descendentes dos filii primatum visigóticos, doutrina que um notável medievista
português, para lha contestar, resumiu do seguinte modo: «Os infanzones são filii
primatum que, ao refugiar-se no Norte após a invasão árabe, mantiveram na nova
pátria o estatudo privilegiado, representando assim a origem da nobreza de sangue
que veio substituir a aristocracia palatina» (1).

A essa nobreza de sangue pertence a nossa, antes e depois da Nacionalidade.


Se tal tese fosse aceitável, teríamos nela, precisamente, o que temos afirmado: os
infanções a nobreza em geral. Mas não o pode ser, quanto a nós: seria preciso que se
explicasse qual a razão por que parece não se considerar de sangue a aristocracia
palatina visigótica, ou pelo menos porque não uma substituição em vez de uma
naturalíssima continuação; que a nobreza que se conservou sob a égide muçulmana
(aliás a maior parte dela – até com pactos e, possivelmente,

__________
toponímico, o significado, até pelo plural, seria o mesmo. Bastam estes exemplos do séc. XI-XII e do séc.
XIII-XIV. Cf. 1258 «Varazim de militibus» e «Varazim domini regis» IS 1417 1 (Varzim nobre e Varzim não
nobre), os milites correspondendo a «condes»; 1258 «Merilhi paação» e «Merilhi vilão» IS 14861 (o
Mirelhe «pação» o dos nobres, e o outro a parte do rei); etc.

() O Prof. P. Merea acentua ainda, a este propósito, toda a aceitação que os autores
espanhóis dão à tese de Sánchez-Albornhoz, e indica, logo de seguida, os dois únicos autores que ao
assunto se haviam referido: o alemão Wolf-Dieter Lange e (como acentua), «de passagem» por esse
tema, nós, pelo nosso AF1 55: História e Direito, I, pp. 57-58. Não será «de passagem» que o faremos
desta vez.

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com a autoridade que tivera) se extinguiu, quando a sua maior estabilidade económica
e social tenderia precisamente ao contrário; e, enfim, significando aquela tese a
unicidade da nobreza, que ela considera de sangue, como é que parece esquecer-se
uma tal unicidade para se considerarem depois esses infanzones uma das classes
nobres e não todos os nobres (que é, repetimos, a nossa tese). Cremos bem que uma
explicação de circunstâncias tais contrariantes nos não parece muito possível na
doutrina que criticamos.

Na lei visigótica que se refere aos filii primatum o que parece conter-se é,
apenas, aquilo que se não permite com os pais não se permite com os filhos ( 1) –
longe de insinuar sequer duas classes, cuja existência seria necessário admitir para
supor o desaparecimento de uma delas (digamos, «patres primates»), coisa que – seja
dito – não se entenderia lá muito bem: é que filii primatum eram primates
necessariamente (2).

Assim, aceitando a realidade de tão estranha tese, teremos, porventura, na


Reconquista, em que os comites representam os antigos primates (3), alguma
diferença entre aqueles e, digamos, «filii comitum»? Ou seja: serão, porventura, estes
só os infanzones e não seus pais? Cremos que na origem (mas apenas na origem) da
palavra infantiones, como noutro capítulo demos a entender, estará precisamente
tratar-se de filhos (infantes) de magnates (digamos optimates regni); mas então entre
pais e filhos, na idade conveniente, não se manifesta a diferença social e duncional
que se tem mais tarde entre comites e infantiones quanto à filiação destes – que é a
circunstância condicional na aventada correspondência.

Tudo assim nos leva a crer que a tese dessa correspondência de infanzones
da Reconquista aos filii primatum
__________

(1 ) «nobiles ob hoc potentiones personae ut sunt primates palacii nostri (regis) eorumque
filii nulla permittimus ratione quaestionibus agitari»: Cód. Vis. VI, 1, 2.

(2 ) Seria frequente que filii primatum se arrogassem tanto como primates (patres eorum),
pelo mesmo nível social: e é só o que a lei previne. Assim se deduz de outros casos: «si de primatibus
palacii fuerit», etc.: Cód. Vis. IX, 2, 9.

(3 ) Os «maiores palacii» (regis) 1088 DC 699, como pouco atrás relembramos,


assimilando-os aos seniores palacii visigóticos – estes no número dos primates palacii.

___219___

visigóticos foi sugerida a Sánchez-Albornoz pela semelhança vocabular (e


supostamente semântica) entre filii primatum e filii benatorum, ou filii bonorum, da
época leonesa-portugalense. Para ele, pois, estes filii bonorum os infanzones, o
mesmo que a contraposição dos filii benenatorum à alta nobreza. A nossa tese, pelo
que já dela expusemos, não pode permitir uma tal contraposição, e os exemplos disso
não faltam.

Vamos limitar-nos a alguns exemplos, expressivos no seu conteúdo e na sua


cronologia, que nos faz retroceder longe.

- 873. A pretexto de ermação de «omnes terras et provincia portugalensis» (LF


16), foi lançada a «ordinatio» régia de presúria (docs. HS II ap. 16, corroborado por LF
16, etc.), e, para a cumprir, «diviserunt eas multorum filium bonorum» (LF 16): não a
divisão da província (Portugale) em «terras» ou circunscrições (pois ela e estas já
existiam, como é bem explícito), mas a divisio de «villas» presuráveis em cada uma
dessas «terras» da província portugalense. Pelo menos em muitos casos, as «divisas»
triparciais (reguengo, condado-infantádigo e igrejário).

Ora quem são esses filii bonorum? Alguns deles nomeiam-se expressamente:

O próprio conde Vímara Peres, que governava a província (1) e confirma este
ato de 873 em termos diferentes dos de outros próceres: «Vimarani comitis confirmans
et oculis meis presens vidi» (LF 16). E o dux magnus, bem conhecido.

Outros próceres são seus filhos, como resulta de vários documentos (uns
quatro ou cinco) que a este mesmo ato se suportam, embora nestes eles se não
nomeiem expressa-
__________

(1 ) Não participamos do entusiasmo que levou os nossos atuais historiógrafos a pensar


(parece que exclusivamente) na presúria de Portugale cidade. Cremos, hoje, que talvez nem deva
englobar-se esta na referência em questão. Trata-se de Portugale província, uma ação bélica sobre uma
efémera dominação arábica que o destronamento de Afonso III por um conde provocara. De resto,
«prendere» (que é o que se lê na notícia da ação do conde Vímara) não significa necessariamente
presúria; e, quanto a nós, até Afonso III define essa mesma ação desde o Minho para o sul: «christiani
gaudentes novam adprehenderunt regionem» (doc. HS II ap. 15).

___220___

mente: Pedro Vimarániz, presor na região bracarense («per manu comité Petrus
Vimarani», LF 22) e Lucídio Vimarániz, presor entre Ave e Vizela («presimus cum
comité Lucidii Vimarani», DC 5). Cada um deles, como outros mais, subordinado ao
dux magnus.

Por fim, outros indivíduos, também presores condais (em cada «terra»): são
também eles filii bonorum do número dos apresentados naquela notícia – mas,
certamente, nem todos eram da nobreza (1), designando mesmo o rei a um deles por
«vir quidem» (2).

- 911. Em «congregatio magna» da cúria régia, foram pelo rei, a requerimento e


para identificação e fixação de certos limites, escolhidos «previsores» de ipso concilio»
(a «congregatio») «qui ipsos términos previderent», a saber: dois bispos, dois condes
de alta jerarquia e bem conhecidos da História (Lucídio Vimaraniz e Nuno Guterres), e
outros que, se acaso não são condes, são indivíduos da nobreza régia, vários abades
e presbíteros «et homines bonos qui solent antiquitum comprovare» (LF 19).

Ora não faltam casos em que a conjunção «et» tem o significado explicitador
de «scilicet» (3), o que aqui importa pelo facto de todos os referidos serem os
«previsores» para o efeito pedidos; e, assim, a expressão homines boni, que dir-se-ia
respeitar ali apenas aos «comprobatores», deve considerar-se para esses e para
todos os «colecti omnes: episcopi comites capetanei».

São o mesmo filii bonorum e boni homines, e, se bem que neste documento
não ressalte uma tal qualidade em todos os referidos, não vão faltar escrituras para lhe
dar

__________
(1 ) Por certo que o não eram Formarigo e Selemondo (em Negrelos, hoje Paraíso, cerca de
Guimarães, DC 5); Muzar e Zamora (presores de Lordosa, perto de Penafiel atual, DC 9); e talvez mesmo
Paio Peres, presor nas imediações de Braga (São Vitor, doc. HS II ap. 15); etc.

(2 ) «in ipsa populatione (o mesmo que o «populare» do doc. de 873 referido, LF 16) vir
quidem nomine Romaricus… adprehendivit plures «villas» nas margens do Minho (como Nogueira, cerca
de Cerveira, doc. HS II ap. 15).

(3 ) Damos vários exemplos indubitáveis em AF4 221-222.

___221___

toda a plausibilidade. Sendo assim, aqui teremos, de um modo progressivamente


incisivo, os boni homines como gente de condição diversificada: desde a alta
aristocracia até ao povo. Tal, pois, como, no caso anterior, os filii bonorum.

- 960. A «comitissa domna Flamula» (DC 223), doente em Lalim (cerca do


Cávado), «ordinavit ad homines bonos id est sue Godo Eroni, Guntemiro conversi», e
mais três nomeados, «et cum eos alios multos filios bonorum hominum, ducerent eam
ad locum monasterii Vimaranes et ad tie sue Mumadona» (DC 81).

Esta é a condessa de Portugal Mumadona I. E temos a dupla menção homines


boni e filii bonorum perfeitamente sinonimizada pelo indefinido «alios» que é um
verdadeiro operador semântico. Dele resulta serem daquelas categorias individuais
pessoas de condição muito diversa: «domna» Godo Eres é uma irmã da que fora
condessa de Portugal, Ilduara I, (filhas ambas do conde Ero Fernandes: AF 2 13 e 14,
24, etc); o «conversus» Gontemiro não sabemos se era (devia ser) da nobreza, mas é,
indubitavelmente, um dos mais categorizados «domnos de Vimaranes» (de onde
então se moviam todos os cordéis da política portugalense, sendo ele aí citado a
miúde: DC 111, 592, etc.). Os restantes nomeados não dão qualquer ideia de serem
gente nobre – mas, tanto como a alta dona condal e o converso «domno», todos eles
são filii bonorum = boni homines (igualdade que aí mesmo se estabelece) (1).

- 1008. Numa venda sem qualquer significado ou circunstância especial, são


ditos «qui presentes fuerunt» dez indivíduos, apenas deles nomeados com o seu
patronímico, «et aliorum filii bonorum», estes sem nomes (DC 598). E em 1016, numa
questão em que foi parte um prócer (e sua mãe) com o convento de um seu mosteiro,
em «terra» da Maia (a quem também pertence o caso anterior), «juntatos fuerunt in
ipsa villa ante iudices (seguem seis indivíduos, designados por nomes e patro-

__________

(1 ) A explicação «id est» corrobora a interpretação de «et» = «scilicet» do caso anterior.


Sem qualquer forçamento exegético, as dúvidas vão-se eliminando.

___222___

nímicos) et filii benenatorum hominum», tendo sido reconhecido àqueles o direito pelos
seus opositores «cum hominibus bonis» (DC 228); e, entre os «que ibi fuerunt»,
designados como «testes», se não são apenas eles, estão onze indivíduos, cujos
nomes só em três casos se seguem dos patronímicos.

Nenhum destes indivíduos, em ambos os documentos, sugere, a quem


conhece a aristocracia da região na época, a mínima ideia de não se tratar de gente
de condição comum, à única exceção de «ipsos domnos» – os dois (mãe e filho)
referidos. Estes, de resto, nem sequer parecem ser englobados expressamente
naquelas designações, «filii bonorum» ou «filii benenatorum hominum», ou mesmo
«homines boni», embora plenamente lhes conciessem. Tudo revela, pois, gente de
condição comum; e o facto de um daqueles onze se tratar de «domnus», não é,
necessariamente, sinal, como já vimos, de nobreza. O caso de 1016 sinonimiza assim,
nesses indivíduos, «filii benenatorum» e «homines boni», ou «filii bonorum» todos
eles.

- 1050. Certos linguistas comparecem em presença «de Gomize Eicaz que illa
terra imperabat» (Portugale) e na de um abade, de um prepósito «et (de) Menendo
Gundisalviz et Gudinu Beniegas e alii multorum bebedadorum, et per manus
tiufaudus». No final, confirmam os referidos e, depois deles, mais cinco, que são, por
certo, do número daqueles «alii multi» depois evocados (DC 276).

Destes últimos (como do tiufado) nada sabemos, e é muito natural não se tratar
de pessoas influentes (1). Já não assim com os outros: Gomes Eicaz, «conde», é o
chefe da alta «stirpe» maiata, e Godinho Viegas parece ser o da de Baião (futura), e
qualquer deles veio a ser vicarius regis ou administrador de Portugal (2).

__________
(1 ) A condição do tiufado na época visigótica, era, como vimos, a das «humiliores
personae» (Dód. Vis. IX, 2, 9), e parece mesmo ter diminuído – agora, um simples oficial de justiça, que já
nem teria a sua capacidade de julgar daquela época (Cód. Vis. II, 1, 25). Do «praepositus», o mesmo
poderá dizer-se.

(2 ) Seria demasia (até porque muito destes próceres teremos de falar na segunda parte
deste estudo) insistir na categoria primacial destes nobres quando já tanto o fizemos: AF 2 45-50, etc.; AF1
150-157; AF2 41-50, etc.

___223___

A identidade deste caso com o anterior é um facto; e temos, pois, agora, filii
bonorum = filii benenatorum.

- 1059. Certos litigantes comparecem em tribunal presidido pelo próprio rei,


com a presença de cinco bispos e de cinco condes (1); dos mesmos três que
acabámos de nomear (e que são o triunvirato administrativo de Portugale, ditos, agora,
«illos infanzones que erant in Portugale»); «et aliorum multorum filium hominum
benenadorum» (DC 421).

Estamos precisamente no caso de 960 – e nem mesmo lhe falta o operador


semântico de função identificadora «alios». Completa-se assim o nexo identificante:
filii bonorum = boni homines = filii benenatorum = filii hominum benenatorum.

Mais se não necessitará para excluir o parecer de Sánchez-Albornoz de que


todos estes que podemos designar geralmente boni homines são descendentes dos
filii primatum visigóticos: além de se não poder provar-lhes a sucessão, as condições
sociais daqueles são demasiado diversas para isso, incluindo mesmo,
indubitavelmente, gente não nobre.

Continuemos, porém, o assunto com casos que pareçam oferecer aspetos que
se não encontrem naqueles exemplos.

- 895. Julga-se em pleito perante o rei «cum omne togam palatinii sui filii
benenatorum et pontificum multum» (ES XXXIV 474).

Os autores espanhóis entereram aí três classes: os componentes da toga


palatina, os filii benenatorum e os pontifices (estes, sete bispos nomeados); e, ainda,
que os componentos do segundo grupo eram aqueles condes que não pertenciam ao
primeiro (a toga), ou simples infanções, isto é, nobres das duas categorias que nós
aqui chamamos condal e infantal. Mas estarão ali expressos, de facto, três grupos?

__________

(1 ) Só um deles se intitula comes, mas é ele o primeiro dos cinco, pelo que o título
implicitamente os afeta (um deles, o nosso conde Nuno Mendes). De resto, uma versão deste documento
antecede de «condes» os mesmos cinco nomes (CP 368).

___224___

Aquela interpretação dever-se-à à ideia da existência de próprias classes de


nobreza: uma, superior, constituindo a toga em que estaria a representação dos
primeiros palatii visigóticos; a outra, inferior, os filii benenatorum, que então
representariam os filii primatum. Em cada caso, uma biunivocidade muito simples, mas
com o efeito de preconcebimento derivado da organização visigótica, além do ilogismo
de nesta se considerarem distintos em condição primates e filii primatum.

Quem lê sem uma ideia feita vê que «filii benenatorum et pontificum» não
passa de aposto explicativo da «toga palatii sui» (regis): é o «concelho» real,
composto de nobres e eclesiásticos. Faltou ali a locução usual «id est» ou «scilicet», e,
como se trata do concílio régio, todos os filii benenatorum são de alta nobreza, tal
como os pontífices são aí os eclesiásticos mais elevados.

Naquela cúria, portanto, em nada surpreende falte gente de condição comum


(eclesiástica e não eclesiástica). Mas ressalta a unicidade da nobreza, que é a nossa
tese.

- 1017. Um tribunal presidido pelo rei, com certos bispos e condes nomeados
«et alii filii benenatorum primates toga palatii» (1).

Aqui temos o operador semântico explicitador «alios» que já encontrámos em


960 e 1059: todos os condes e bispos nomeados e todos os dignitários e próceres não
nomeados (o grupo dos nomeados e o dos não nomeados unidos pelo referido
operador semântico» são a «toga palatii» e todos eles filii benenatorum; e, como se
trata da cúria régia, todos eles «primates» (poderíamos dizerm como na época
visigótica: primates palatii).

Este caso repete, pois, flagrantemente e com uma regularidade expressiva, o


caso anterior (agnição de 895). Nenhum dos filii benenatorum é, aqui, o que poderia
ser (e noutros casos, que podemos dizer «populares», eram): gente de condição
comum, ou não nobre. E isto porque se trata da «toga» palatina.

Se, de facto, esta se não menciona, mesmo que esteja o rei, já as coisas
diferem naquele ponto de vista.

__________

(1 ) Doc. cit. por Sánchez-Albornoz, Origines del Feudalismo, I, p. 176.

___225___

Para isso verificarmos, continuaremos com casos cuja cronologia, para melhor
evidência, interrompemos com os dois acabados de examinar.~

- 1106. Um tribunal cerca de Braga presidido por Múnio Ermige, «triumphator»


ou «maiorinos» do conde D. Henrique e talvez o chefe de alta «stirpe» portugalense (a
de Ribadouro ou gascã): «ante Monio Ermigiz… et alios homines multos bonos que ibi
fuerunt in ipso concilio» (DP 225).

Daquele prócer para «alios», nenhum outro indivíduo se cita: logo é ele um dos
«homines bonos» – e os que no final se nomeiam como confirmantes são apenas três
arcediagos (naturalmente da Sé de Braga), e Ramiro Aires (da estirpe dos Ramirãos,
LV1 75), o próprio Múnio Ermiges (1) e Guterre Pais (prócer da cúria henriquina, DR 21,
LF 170, etc., e filho de um antigo imperator portugalense). Os outros desses «alios
multos» devem ser de categoria inferior – mas igualmente filii benenatorum ou
benenati homines. Não temos aqui a menção de uma «toga palatii» ou semelhante só
porque não se está na cúria régia ou em tribunal presidido pelo rei – e, certamente por
isso mesmo, também se não mencionam aqui bispos, pois só arcediagos; mas a
situação é a mesma.

- 1125. No foral de Ponte de Lima por D. Teresa, temos como confirmantes


«comes Fernandus comes Gomizoni Pelagius Velasquiz curie dapifer sub manu regine
dominante ripa Limie (2) Sesnandus Ramirez et alii multorum benenatorum hominum»
(3).

Caso perfeitamente análogo ao de 1059 (DC 421), mas que poderá assimilar-
se aos dois acabados de examinar, baste-nos notar nele a função do indefinido
explicitador, do operador semântico, alii.
__________

(1 ) Scr. 316, etc.

(2 ) Respetivamente o conde de Trava (o da nossa D. D. Teresa), o conde Gomes Nunes


(seu cunhado) e o mordomo da cúria. Mas não se trata propriamente de uma reunião desta: é o ato
corrente de administração, ainda que lhe compete.

(3 ) Leg. 366.

___226___

- 1152. Certos litigantes «venerunt coram maiordomus de Sancta Maria» ( 1) e


«corum Nunu Suariz et Johanne Midiz et Suerio Guterris et aliorum filiorum bonorum
virorum» (BF 138).

Quem são estes personagens? Os «mordomos de Santa Maria» (o notável


distrito entre Douro e Vouga que temos referido) são indicados: entre eles um «saion»
e um «iustitia regis», ou seja, oficiais da coroa e dos representantes desta naquela
circunscrição. Esta é notável pelo seu grupo ou «associação» multissecular de
infanções, grupo que regularmente tenebat a «terra», sendo eles nesta ocasião, Nuno
Soares, João Mides e Soeiro Guterres, todos da sai alta nobreza (1).

Reaparece o operador «alii» conetivo entre os tenentes do distrito e os


«mordomos» régios (devendo notar-se que estes não são necessariamente nobres –
ou nem mesmo o deverão ser) ( 2) e os filii bonorum virorum não nomeados. Ou seja,
dois grupos híbridos (nobres e não nobres): um deles, os indivíduos revestidos de
autoridade, e o outro, naturalmente, de testemunhantes qualificados – mas todos os
de um e todos os de outro por aquele «alii» considerados filii bonorum virorum = filii
benenatorum = boni homines, etc.

Poderíamos chamar-lhes, sempre e a todos, aquilo que algumas vezes ocorre:


«caras honradas» – a honorabilidade pessoal independentemente de nobilitas e de
ignobilitas (3). E vamos, por fim, dar disso a comprovação expressa.

Em 1079, por sentença de Egas Ermiges «qui erat senior Inter Ambos Rivulos»
(«terra» de Benviver, entre Tâmega e Douro), foi ordenado juramento para agnição «in
Pavia» (a «terra» da outra margem do Douro) «in
__________

(1 ) Sobre estes altos nobres, que constituíam então o triunvirato de infanções que
administrava Santa Maria (regime aqui tradicional, de acordo com a nossa doutrina da «associação», que
veremos: DC 261, 853, etc.), cfr Chr. Got. § 21, DR 211, ML1 36, LV1 2, etc.

(2 ) Baste-nos apontar o caso do «concelho» de Armamar em 1152: «iudice Gunsalvo


iustiza» e mais sete «totus de terra pequenos e grandes» (LDT 72).

(3 ) Em 1030, num julgamento presidido pelos infanções da «terra» (Lafões), comparável


em tudo a este exemplo de 1152, as partes compareceram «ante multas faces bonas» (DC 258).

___227___

Sancto Pelagio de Fuornos», e, para testemunho, confirmação e solenidade, «ibi


fuerunt filii nobiles et ignobiles» (DC 572).

Estes «nobiles et ignobiles» são, indubitavelmente, os três únicos «quos


viderunt», Garcia Ramires, Fernando Jeremias e Vasco Froilaz, e os três únicos
confirmantes, Ero Recemires, «dom» Romano e «dom» Cartemiro. Aqueles primeiros
três pertencem à alta nobreza da região (o primeiro deles chamado mesmo, em 1070,
pelo rei Garcia «fidele meo», DC 433, 471, 803, etc. ( 1): são os nobiles; os outros três
não constam nela, e dois deles até se intitulam carateristicamente como vilãos
melhorados, tal como vimos num dos anteriores capítulos (donegos, possessores):
são os ignobiles. As quatro testemunhas dispensam-se nesta apreciação.

Tanto bastaria para concluir o que já pudemos deduzir, isto é, os filii


benenatotum (= boni homines) tanto serem nobiles como innobiles (ignobiles) – tanto,
pois, de nobreza como de condição não nobre. Mas os daquela eram considerados
maiores – e os outros, naturalmente, minores.

Ora até entre os minores havia uma distinção: a de «pequenos e grandes»


(1152 LDT 72). E compreende-se: minores é comparativo (tal como maiores, em que,
como vimos, vários graus existem) e é um facto a existência de graus não nobres –
entre os quais o melhorado atá ao uso do «dom» (como também noutro capítulo
vimos).

Em 1098, numa grande reunião, convocada por um bispo e a que foram por ele
«vocati viri et femine nobiles», considerados, noutro passo do mesmo documento,
«homines bonos et maiores», juntaram-se a estes «alii multi filii bonorum hominum» (o
constante operador semântico alii a estender a todos esta categorização boni
homines), entre os quais – se estes alii, como parece, não são só os participantes de
condição comum – um certo número constituía o concilium popular local, aí citado sem
qualquer identificação possível à dita assembleia: ou, portanto, os ignobiles entre
esses «multi filii bonorum hominum».

Note-se, ainda, um caso de 1008 e em que os nomes das testemunhas, gente


indubitavelmente de condição

__________

(1 ) Sobre estes nobres, ver o nosso estudo AF5 pp. 52 e 60, etc.

___228___

comum, não nobre, se segue a expressão «et alii filii bene nadorum» (DC 198) – o que
nos parece decisivo.

Enfim, uma persistência dos «honesti viri a iudice convocatis» («nobiles» ou


não) do Cód. Vis. VI, 1, 2. E assim se nos afigura provada a nossa doutrina – sem
necessitar-se de outra documentação (que aliás não escassearia): os filii benenatorum
ou filii bonorum (ou boni homines) eram todos os de condição nobre e ainda todos os
da camada dos «grandes» de condição não nobre – ou seja, os nobiles e os
domnecos (estes já estudados para o efeito), não apenas pela sua condição livre,
necessária, mas não suficiente, senão também por se tratar de proprietários (nos não
nobres com concurso de outros títulos pessoais, como vimos). A categorização «filhos-
de-algo» que passamos a ver ter sido comum de origem a uns e outros, não resulta
deste asserto, porque tem outros motivos documentados, mas vem reforça-lo.

Vamos, pois, saber melhor do que seria o nono «filho-de-algo» inicial – o


«honestus vir» visigótico.

Com efeito, é frequente a designação de «homens-bons» para homens das


estirpes mais elevadas, incluídos ricos-homens (1). Por outro lado é bem sabido que a
designação «homem-bom» se dava a gente de condição comum – neste caso,
naturalmente, por um motivo bastante de honorabilidade pessoal, que proviria,
sobretudo, do peso dos seus bens próprios, mas também de qualidades morais, e,
sem dúvida, mesmo físicas.

Tudo isto nos permitirá aproximar a designação «homem-bom» da designação


«filho-de-algo», tanto dentro da nobreza como fora dela: ou seja, por muito que
surpreenda, um filho-de-algo não era, necessariamente, um nobre.
Esta afirmação de que então entre nós um «filho-de-algo» tanto pode ser um
«filius benenatorum» como um

__________

(1 ) Note-se o caso referido em Scr. 294, em que intervêm «aqueles homens bons que hy
estavam com o poder de el rey» (altos próceres das «stirpes» sousã, maiata, etc., tenentes de «terras»)
«e outros ricos-homens muytos». O operador «outros» (o conhecido «alii» latino), aqui referente apenas à
alta nobreza, é identificador de «homens bons» a «ricos-homens».

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«filius bonorum» significa, de facto, que o fidalgo (palavra proveniente de «filho-de-


algo») tanto podia então ser nobre como não nobre, atendendo à provada extensão do
significado daquelas designações (ou similares) às duas categorias (1). Não dizemos
às duas oposições: o aspeto talvez mais vivaz da nossa nobreza desde os inícios, que
propositadamente estudámos (época suévico-visigótica), é a sua ruralidade, a
convivência constante com as massas que numa expressão atual chamaríamos
trabalhadoras – e nunca só para as explorar, apesar de todos os excessos. É não
menos a possibilidade de acessão de um nível não nobre a nível nobre, por natural
evolução, que uma perturbação social (política ou mesmo económica, se são de
distinguir – o que hoje se não pode) naturalmente precipitaria, e consolidaria. Nestes
termos foi que iniciámos este capítulo melindroso.

O que acima dissemos pode definir-se de outro modo: a nobreza uma parte da
fidalguia, da «bom’homia» (2). O que temos exposto já nos esclareceria o facto; mas
não escasseiam outras razões, que explicam tais circunstâncias:

- A designação «filho-de-algo» surge só depois de extintas aquelas que temos


documentado e discutido, ou seja, após meados do séc. XII, o que inculcaria já uma
substituição, uma sucessão;

- Não podia, de facto, deixar de haver uma designação que fosse substituindo
aquelas na permanência do fator individual ou coletivo que as originara, isto é,
camadas populacionais em situações privilegiadas (no sentido mais diferenciado da
palavra), ou, pois, tanto nobres como não nobres;

- O elemento «algo» da expressão «filho-de-algo» não podis dignificar ou provir


senão de aliquod, os bens
__________

(1 ) Em 1131, o doc. Liv. Pr. 273 chama «boni homines» um alto conde, um arcebispo, três
ou quatro ricos-homens, quatro arcediagos, etc. (uso já não novo no séc. XII). Tanta basta – atendendo a
«boni homines» villani ou innobiles.

(2 ) Depois da Idade Média (se não já um tanto antes), a situação inverteu-se, de certo
modo – o que nos faz lembrar para a segunda metade do séc. XIX, em que o governo criava nobres
concedendo ou vendendo títulos nobiliárquicos, a intervenção de um parlamentar fidalgo: «Nobres poderá
fazê-los el-rei, mas fidalgos, só nós, os fidalgos, com nossas mulheres e senhoras».

___230___

materiais, e não de aliquis, referente a pessoa. Nem deste vocábulo poderia ser
resultado foneticamente «algo», o que não se dá com aliquod (sem mesmo, em
qualquer dos casos, ser permisso pensar no ablativo aliquo para origem) (1).

Teremos, pois, de admitir uma implicitação de sentido na expressão plena:


«filho de homem-de-algo» (2).

Resultado de todos os tempos, sobretudo em épocas de decadência de uma


camada privilegiada pelos seus constrastes económicos ou de posse «de algo» com
outra, em especial se popular esta. Expressões dos livros de linhagens (que, nesta
matéria, são as fontes mais autorizadas) tais «um peão filho de algo», ou mesmo «um
vilão filho de algo», são, como muitas mais, bem claras (3).

Nem precisarão, pois, de ser comparadas a outras, do género: «muitos e bons


cavaleiros e muitos e bons escudeiros filhos de algo», como se cavaleiros e
escudeiros que não fossem filhos-de-algo houvesse; e «rico homem e mui fidalgo»,
mas rico homem não aqui tanto no sentido nobiliárquico, e menos ainda de ordem da
nobreza, como no de possuidor de riquezas; ou, para mais não citar, «nobres
fidalgos», uma expressão que, como todas as outras, (esta não se referindo a
qualidades morais), indica claramente que nem toda a fidalguia era nobreza; e, ainda,
«homens bons e fidalgos» na significação de que não eram fidalgos todos os homens-
bons (4).

E não podemos por fim deixar de fazer notar que as deduções que disto
mesmo operámos nada devem a

__________
(1 ) Realmente, «algo» de aliquod: J. J. Nunes, Gramática Histórica, p. 141; «o deixasse ir
em salvo com os seus e seus algos» (Crón. do Contest., cap. 46; cfr. GE I 930); 1258, «si ibi intraret vel
pignoraret, ibi aliquod», algo: Inq. 5181. Lembre-se a anedota satírica da origem da estirpe de Novais, cujo
primeiro fora «homem pobre» e sem nobreza, mas que, pedindo de terra em terra (por ter sido cativo de
mouros), «dérom-lhe algo» com que pôde enriquecer e tornar-se «filho de algo», casando um filho na
estirpe dos Velhos: Scr.374-375. Em 1074, temos uma forma já portuguesa: «si inde áligo abuistis» DC
513.
(2 ) Já a encontrámos aliás de «filii hominum benenatorum» (DC 421) para «filii
benenatorum».
(3 ) Scr. 334, etc.
4
() Scr. 316, 339, 230, 193.

___231___

estas expressões, mas à documentação e circunstâncias criticadas (1). No entanto,


para melhor apreciação da existência de «filhos-de-algo» não da nobreza, nesta época
(«filhos-de-algo» = «filhos de homens de algo»), é de lembrar a designação maiores
loci das leis visigóticas contraposta a «inferiores»: mas não podemos deduzir daí uma
contraposição da condição nobre à condição comum. Quer dizer que nem todos os
maiores loci seriam nobiles; mas também nem todos estes seriam maiores loci, pois
que entre estes, por certo, se contavam ignobiles (2).

A situação na nossa época leonesa-portugalense deve ter tido aquele


precedente; e ela verifica-se, por exemplo, na constituição dos concilia locais, nos
quais figuram «maiores et minores» ou «pequenos e grandes», mas todos «da terra» –
e todos, porém, considerados «filii bonorum hominum», com gente de ambas as
condições. Isto é, em conjunto: homens-bons nobres e homens-bons vilãos (3).

É natural pensar-se que o qualidicativo «bons» contenha também, ao menos


parcialmente, uma ideia de haveres pessoais, tal como «algo» na expressão «filho-de-
algo», visto que a esses haveres tanto se chamava

__________

() Não desejamos, pois, afirmá-lo sob garantia somente da honestidade que jamais o
trabalhador da História deve perder de vista. Naquelas expressões das linhagens apenas encontramos a
confirmação respetiva às deduções já arquitetadas. Não que partíssemos daquelas.
() «si maiores loci persona fuerit id est dux comes seu etiam gardingos» contrapõe-se a
«inferiores sane vilioresque personae tuifadi», etc. (Cód. Vis. IX, 2, 9); mas trata-se aí de indicar apenas
os indivíduos que, entre os maiores e entre os minores, tinham autoridade – como, aliás, bem claramente
resulta da segunda frase. Portanto, nem só os primeiros seriam os maiores loci – embora esses aí fossem
os superiores.

() Os casos dos concilia de Arouca, no séc. xi (DC 765, 910, etc.), e, no séc. XII, o de
«ego toto concílio de Ermamar iudice Gunsalvo iustiza» e mais sete «totus de terra pequenos e grandes»
(LDT 72). Lembremos ainda a referência de Fernão Lopes a «um bom escudeiro» que, entre os
moradores de Beja, em 1383, «nom era dos grandes nem dos pequenos» (Crón. de D. João I) – embora
os escudeiros fossem filhos-de-algo (Vim. 3671, 3811, etc.). O conceito, pois, de minores loci definido no
Cód. Vis. IX, 2, 9), não desaparecera totalmente em setecentos ou oitocentos anos, entre nós.

___232___

«bona» (bõa) como boni (1). A «bõa» corresponde a «algo», e os «bõos» a «algos»,
que também se documentam, como vimos: assim, não admiraria que o «filho-de-algo»
(expressão simplificada de «filho-de-homem de algo») fosse, de início, um «homem-
bom» (2). Facto nada de surpreender numa organização social em que tinha parte
fundamental num tanto a herança de bens e, noutro tanto, a herança de sangue.

Continuamos, por isso a crer que foram sobretudo o nível económico e o


género de vida resultante (3) que determinaram a nossa nobreza originária
(consequentemente da base económica assente nas depraedationes suevas), e que
permitiam depois acessões a ela – mais ou menos demoradas. Não seria, pois, sem
fundamentos que, nos séc. XIII e XIV, muitos nobres, «não fazendo de nenhum modo
vida de fidalgos» (4), conservavam ou pretendiam conservar as suas imunidades de
classe; e é bem conhecido o mandado de D. Dinis de não dexar de considerar-se
nobre, para os devidos efeitos, aquele nobre que era, ao mesmo tempo, lavrador. Esta
disposição régia não prova uma ilegitimidade, que agora se eliminasse, mas antes
procede de um reparo – derivado da estranheza ou dúvida de cultivar a terra o
membro de uma classe cuja índole ou distinção estava precisamente na isenção de
tais ocupações.

De acordo com a origem económica, a principal, da nossa aristocracia, temos,


nos meados do séc. X, um esquema da organização social, definida, quanto a nós
(depois de todo o exposto), pelo duplo binomial, ao mesmo tempo uma definição
material e moral, «dives (et) pauper,

__________
(1 ) Do lat. bona, «os bens», a «herança». Exemplos do uso do vocábulo «bõa» em Viterbo,
Elucid. S. v. Bona. Na época visigótica: «a bonis propriis ex toto privatus», Cód. Vis. IX, 2, 9; no séc. XI,
«bonorum suorum medietate» (Conc. Leg. Cap. XI).

(2 ) Homens-bons «os indivíduos mais ricos ou mais notáveis por qualquer título», AH 119:
os seus bens, a riqueza, qualidades pessoais, etc., os outros «títulos». E são já para notar: «dom Belói»
que «fuit bónus homo laborador (lavrador, Inq. 9271); «homine bono villano» (Inq. 8692), etc., o que foi
explorado em capítulo anterior.

(3 ) Nobres casavam mesmo com mulheres plebeias de «algo»: uma vilã ou «cidadã mui
rica» (Scr. 338).

(4 ) Documentação alegada por GB II 453.

___233___

nobilis (et) innobilis» (968, DC 99), perfeitamente relacionável, no seu chocante


realismo, com o «rico» e o «pobre» nos nossos livros de linhagens.

A divitia era a condição necessária da nobilitas (embora nem todos os divites


fossem, ou viessem a ser, nobilis) (1); mas a nobilitas não era perdida se o nobilis caía
na paupertas (2). O esquema dispensa as mais considerações que dele poderão
deduzir-se (3), mas uma é de salientar: não é sem uma relação com estas situações
que os antigos comites, chamados depois vicarii regis, e, de seguida, tenentes terram,
como vimos (sendo equivalentes a estas quaisquer outras designações que
apareçam), passaram a chamar-se divites homines – os «ricos homens», no grau mais
elevado do poder (que, pelas razões a encarar, não diremos propriamente o mais
elevado grau da nobreza). A divitia é o elemento fundamental inegável, e vamos vê-lo
manifestar-se suficientemente.

Quando nos meados do séc. XIII, aproximadamente, se tornava inegável a


decadência das tenências (rico-

__________
(1 ) Recordaremos o já referido caso anedótico, mas expressivo (e mais ainda se não
autêntico) da estirpe ribaminhota de Novais: Scr. 374-375.

(2 ) D. Nuno Soares, da alta estirpe dos Velhos, com sua esposa D. Maior Peres (de estirpe
não menos elevada), não deixou de ser o grande prócer de D. Afonso Henriques (DR 236, 269, etc.) pelo
facto de, caídos em pobreza (não sabemos se momentânea, mas talvez o não fosse), se terem
empenhado com o arcebispo de Braga: «et eorum nobilitati valde indigenti et auxilium petenti subveniret»
(LF 729).

(3 ) Escusado salientar a finalidade essencial dos sentidos marcados pelas setas do


esquema e que o tornam mais completo do que pareceria à primeira vista (pelo que DC 99 não é tão
simples em si como se diria): ou são direções de evolução (a mais acidentada uma que parte de innobilis)
ou de estagnação.

___234___

homias, as funções públicas mais elevadas), ou seja, a preponderância político-


administrativa das nossas altas linhagens, consumando-se, do séc. XIII para o XIV,
com a criação das grandes comarcas (à testa das quais aparecem indivíduos sem
grande nobreza ou não condicionalmente nobres), deveria surgir nessas levadas
famílias, mais ou menos as tradicionais detentoras dessa alta administração, uma
designação genérica de categorização pessoal que ainda das outras se distinguisse: e
nenhuma tão adequada ao desiderato e tão incontestável como a de «ricos-homens»,
uma recordação que se desejaria perene das altas funções e proeminências de
outrora. Nem se compreende, de outro modo, ter perseverado, finda a função.

Ora este facto é importante: quanto a nós, significa o aparecimento da


nobiliarquia dentro da nobreza. É a sua primeira manifestação.

Essencialmente de caráter moral numa intitulação graduada ou gradativa, a


nobiliarquia não poderia ou mal poderia ter existido como tal nas épocas em que havia
no seio da nobreza uma graduação por funções públicas, que era uma graduação de
nível – mas não diferenciação cerrada de graus e ainda menos de classes nobres,
visto que, potencialmente, nenhum deles era impenetrável ao outro. A gradação
funcional passava a nobiliarquia.

Quando se tornou nítido o facto acabado de indicar, iniciou-se, com o vigor e a


rapidez próprios das novidades ou inovações, uma série de designações distintivas
dos graus, os quais só assim poderiam ser diferenciados, visto que então cessava o
fator funcional (político-administrativo). E assim foi que, desde que ao nível mais
elevado, ou que como tal se destacou, se ficou aplicando a designação que lhe fora
própria nessas funções, «rico-homem» (agora de caráter honorífico, que é, no fundo, o
do sentido destas designações ou graus), tomou o imediato a de «infanções», que
havia sido a genérica da nobreza (em nossa tese) e muito bem explica a tendência
para uma não inferiorização depreciativa em relação àquele grau. Para se enternder o
espírito que presidia à relatividade, é de salientar, uma vez mais, que, pelo menos
nestes dois indícios, não se verificava qualquer embargo sério, que não fosse
económico, à interpenetração (por contiguidade) dos quatros graus nobiliárquicos (os
outros, os de «cavaleiro» e «escudeiro»). Os preconceitos ou pundo-

___235___

nores de sangue, se bem que não deveriam ter demorado a manifestar-se (1), são
mais tardios.

No entanto, cremos dever entender-se para a graduação «rico-homem» –


«infanção» um precedente na distinção comites-infanzones, distinção esta que vimos
ser aparência, porque um infanzon poderia vir a ser comes pelo menos
funcionalmente. Ora, se isto era possível quando, de certo modo, menos fácil
(condição o comitatum função pública), não menos o deveria ser nobiliarquicamente –
a transição de infanção a rico-homem, transição esta que, se não fosse espontânea
(uma questão económica, como temos dito e veremos), poderia resultar de um ato
soberano (2).

Concordante com o início da nobiliarquia pelos meados do séc. XIII é o facto de


os livros de linhagens, que são da época, muito raramente fazerem alusão a ricos-
homens e a infanções, alusão que, dado o caráter daqueles escritos, só poderia ter
neles um sentido nobiliárquico. Pelo contrário, eles parecem ainda generalizar a todos
os níveis a designação «cavaleiros» (por vezes mesmo expressa), de acordo com a
nossa tese de unicidade da nobreza e dessa sua designação (milites), tal como no
capítulo anterior estabelecemos (3).

A lei de 1261 é já uma lei de distinção de graus e de designações que


podemos considerar nobiliárquicos, sem terem deixado de ser de distinção funcional,
visto que ainda era o dives-homo o mais elevado funcionário administrativo.
Mas não são graus fechados: um membro de um pode entrar no contíguo, tal
como nessa lei se explicita com o de rico-homem: «aquele que tever de dous mil a
fundo (dois mil maravedis de renda para baixo) vá assi

__________

(1 ) Scr. 313-314, etc.

(2 ) Infanções elevados a ricos-homens por D. Afonso III (com tenências, como ainda teria
de ser, pois não se tratava ainda de mera nobiliarquia) foram Nuno Martins «de Chacim», João Peres «de
Aboim» e Rodrigo Gomes «de Briteiros», em prémio de serviços na usurpação: Scr. 161 e 187, e ainda
294. Por «infanções» entenda-se ainda milites = cavaleiros-fidalgos.

(3 ) Nas inquirições de 1258, também ocorre por vezes a distinção entre riqui homines
(divites homines) e milites, mas aquela categoria tem sentido funcional, pois que não são raros os casos a
que a próceres divites homines se chame aí também milites.

___236___

como infançom» (1). É certo que se trata de estabelecer diferenças nas comitivas ( 2),
mas a disposição não deixa de fazer pelo menos equiparações que poderiam volver-
se praticamente em estado definitivo. É natural, pois, que o inverso também se
devesse dar – quando o infanção possuísse de dois mil para cima.
Identicamente para o terceiro grau (o de cavaleiro), no que basta a expressão
«o cavaleiro que nom for infançom» (3). Não entrando em conta um rei ou até um rico-
homem armar ou «fazer cavaleiros» (LV1 63, 84, etc.), a economia é a condição
fundamental nas acessões, como se vê.
Quanto ao escudeiro, podia sê-lo um filho de cavaleiro ( 4), e, de acordo com a
nossa tese de unicidade da nobreza, até um filho de rico-homem (5); e é bem sabido

__________
(1 ) Scr. 161, 287, etc.; Leg. 204.
(2 ) Acerca destas, lembremos um passo das inquirições de 1258: certos casais tinham o
encargo de «dare annuatim de foro três vices quis comedat illi que tenuerit villam in prestimónio, et non
debent essa magis quam três, scilicet miles et scutifer et rapax» (Inq. 4822), isto é, o cavaleiro, o «seu»
escudeiro e o donzel. Note-se que se não cita o dives bomo, o que só prova o que dissemos: ele não se
deve distinguir do miles oficialmente (ou nobiliarquicamente ser muito raro).
(3 ) Lembre-se a bonita e irónica cantiga do séc. XIII: «em casa de um cavaleiro/ que se tem
por infançom» (Canc. da Vat. nº 1002).
(4 ) Sem ser, pois, necessário, em nosso entender, para a finalidade deste trabalho, levar
no texto mais longe as considerações, convém, no entanto, notar aqui como cavaleiros e escudeiros eram
(digamos assim) nobres da mesma nobreza (podendo considerar-se também o rico-homem pela sua falta
de distinção em relação ao cavaleiro nesse ponto de vista): 1316, «eu Johane Meendez escudeyro filho
de Meem Paez cavaleyri» (doc. em Meireles, Mem. do Most. de Pomb., p. 170). O filho não era de classe
diferente da do pai – nem diferentes os seus sangues.
Mas note-se que, pelo menos do séc. XV para o XVI, havia escudeiros não nobres, como
demonstra a qualificação pessoal «escudeiro fidalgo» («fidalgo» no sentido de não nobre): doc. em
Meireles, Mem. do Most. de Paço de Sousa, p. 385. Mas isso vinha já de antes: basta o caso de 1383, de
um «bom escudeiro» morador em Elvas e que não era «dos grandes» do lugar, mas também «não era
dos mais pequenos» – o que demonstra que, afinal, fazia aí parte dos moradores «pequenos».
(5 ) O caso do filho de D. Pedro de Portugal (rico-homem 1223 AH IV 33; 1229 Leg 620; Inq.
944), de nome Abril Peres (que nada tem com o senhor de Lumiares), o qual «morreo escudeiro» (LV 2
25).

___237___

que uma simples cerimónia operava a transição daquele a este grau.


E não devemos pensar que aquela condição (a que poderíamos chamar
função), não atuasse também nas classes populares tanto no seu seio como na sua
comunicação relativa à nobreza – no contacto entre a camada popular mais evoluída e
a camada nobre inferior, entre as quais havia contiguidade e pelo menos igualdade
económica, quando mesmo a nobre não estivesse já em inferioridade neste ponto de
vista. Temos em consideração nisto o nível mais baixo da nobreza, o escudeiro, e o
mais elevado do povo, o cavaleiro-vilão, tanto o municipal como o não municipal. A
qualificação de cavaleiro, comum a nobres e a certas camadas de não nobres, não
poderia deixar de contribuir para tais resultados – e já vimos como no séc. XII os
milites vilãos eram equiparados a milites não vilãos (nobres, ou por isso ditos da
generalidade infanzones) para certos efeitos, sobretudo em juízo ( 1), quando não
mesmo equiparados nesses casos a ricos-homens (2).
Assunto não novo neste passo do nosso trabalho, mas aqui mesmo
imprescindível (ainda que tencionemos explorá-lo em nota final – para não dilatar esta
exposição), convém-lhe, expressivamente, este duplo exemplo:
- Para nobres: certo nobre «ouve linhagem de cavalleiros de hum escudo e de
huma lança» (3), isentos, pois, como nobres, de tributação (isto é, desta «defesos»);
- Para vilãos: «si aliquis de istis populatoribus habuerit equum et scutum et
lanceam, defendit suum tributum» (4), isto é, igualmente isento (da tributação).
Em matéria de equiparação (sem ser feito por foral) de «nobiles et ignobiles»,
em determinadas condições
__________
(1 ) Leg. 369, etc.
2
() Leg. 392, etc. Este caso não deve diferir do anterior: revelará, preferivelmente, a
unicidade da nobreza – a não diferença «nobre» de miles (chamado aí infanzon) para dives homo (aí
chamado podestade).
(3 ) Scr. 381 (e 356).
4
() Numa localidade do planalto barrosão, na qual se dá mesmo, a esta gente assim
privilegiada, a já estudada designação «donecos» ou «donegos» expressamente: Inq. 1513-1514 – o que,
como já prevenimos, melhor será mostrado em nota final.
___238___

– ou, pois, com os não nobres em tudo «funcionais» como nobres –, de mais
expressivo se não necessita.
Para finalizar este capítulo, convém lembrar certas normas de nobreza
conhecidas com as quais não podem concordar plenamente as considerações que
fizemos e sempre temos procurado documentar – ideias essas resumidas por um dos
nossos maiores historiadores sociais (GB II 346-347):

«Fidalguia era a nobreza que vinha do nascimento ( 1). Se a mãe era plebeia e
o pai fidalgo, fidalgo era o filho; pelo contrário, a fidalguia da mãe não se transmitia ao
filho quando o pai era plebeu» (2). «Para ser nobre por linhagem, parece que se exigia
ascendência fidalga até pelo menos os bisavós» ( 3). «O fidalgo podia dar fidalguia ao
filho que houvesse de barregã, mas estes filhos não herdavam do pai» (4).
O autor baseia-se em fontes não portuguesas ou, portanto, referentes a uma
sociedade que, embora vizinha da nossa, podia ser diferente – e bem o era, por certo.
Pelo menos a partir de certa época, daquela a que respeita o nosso trabalho, o que
quer dizer que tais proposições (que são sobretudo nobiliárquicas) podem não
corresponder às situações históricas e às originárias (5).
__________
(1 ) Esta expressão parece provar o que adiante dizemos: a possibilidade de as proposições
que seguem serem de uma época posterior à que nos interessa, relativas a uma sociedade diferente da
nossa – e até constituírem antes normas, ou estatutos criados e a respeitar, do que de nobreza histórica,
«espontânea».
(2 ) Partida II, 21, 3.
3
() Part. II, 21, 2.
4
() Fuero Viejo V, 6, 1.
(5 ) O respeitante à situação tributária em que por casamentos desiguais ficavam os bens
dos cônjuges, segundo o Fuero, I, 5, 17 (ver GB II 347-348), também não nos parece verificarç-se entre
nós, pelo menos ainda do séc. XIII para o XIV: Inq. 8092, 13382, etc.

___239___

Exemplificação no território «vimaranense»:

Em 1014, correu um aceso pleito entre o mosteiro de Guimarães e um Ordonho


Sentares «pro illa villa de Villa Cova», no território de Entre Ambas as Aves (depois,
«terra» de Guimarães e, então, «comissorium» do mosteiro, DC 223, 272 etc.). Essa
«villa» houvera-a Ordonho Sentares do cenóbio, por certo em atondo; mas ele
depressa pretendeu apoderar-se dela, para o que chegou a destruir as escrituras que
provavam a posse monástica. Perante o facto, o mosteiro apresentou queixa à
condessa de Portugal, D. Toda (viúva do conde de Portugal, D. Mendo Gonçalves,
seis anos antes assassinado), e um primeiro tribunal reunido «hic in Pena Maior» (ao
sul do Vizela), e outro «hic in Sancto Michael in Occulis Calidarum» (Caldas de Vizela)
(DC 225) julgaram o pleito.
O julgamento em Pena Maior fez-se «ante illa comitissa et comites Rudesindo
Gonçalviz et Nuno Menendiz et Gunsalvo Menendiz, Ranimiro Menendiz et Gutierre
Roderici, ordinavit ipsa comitissa et ipsos comités suos iudices que legem docebant id
sunt Froila Erotiz, Honoricus Zuleimaz, Vermudo Todemiriz, Menedus Gaviniz, Egas
Menendiz, Ranemiro Menendiz, et alii plures filii venenatorum que in ipso concilio erant
ut audissent legentes scribturas de amborum partes et iudicassent eos per vera
veritate».
A tradução deste trecho é facílima (por isso o transcrevemos): a sua
compreensão é que já não tanto, no que nos interessa aqui – a referência aos filii
benenatorum, que demanda exame; mas é possível.
Os cinco condes são, respetivamente, um cunhado da condessa de Portugal
(irmão do marido), três filhos dela ( 1), e o outro não o identificámos. Podemos porém
afoitamente afirmar que se está perante a «stirpe» condal vimaranense, embora a D.
Toda não tivesse sucedido um daqueles seus filhos no governo do condado (mas, por
motivos que em AF3 150-157 procurámos determinar, sua filha Ilduara, esposa do
conde Nuno Alvites).

__________
(1 ) Docs. Tombo de Celanova, fls. 106-107, 158-159, etc., cits. por García Alvarez, La
Batalha de Aguioncha, p. 13. Ver AF3 154-155.
___240___

Os seis indivíduos que aos cinco condes se seguem e que o diploma designa
por «suos iudices que legem docebant» (provavelmente juízes nas «terras» ou
comissos desses condes, cada um dos quais poderia ter mais que uma) não hão-de
ser da nobreza; mas, aos seus nomes, segue-se, imediatamente, a expressão «et alii
plures filii venenatorum». Ora, a menção desses iudices igualmente se fizera logo de
seguida à dos cinco condes – pelo que a designação filii benenatorum se refere, sem
qualquer dúvida, a todos. Este um exemplo mais de quanto ela se aplicava
indistintamente a nobiles e a ignobiles – numa base, por certo, de honorabilidade
pessoal e económica. Até porque, se uns são condes e outros são juízes, os anónimos
«alii» (operador semântico de emprego quase invariável) não são uma coisa nem
outra.
E a circunstância ainda pode observar-se se interpretarmos as confirmações.
No final, depois da sessão nas Caldas de Vizela, confirmam de facto a condessa de
Portugal e sua filha Ildôncia; nenhum dos cinco condes, se Múnio Mendes, que
confirma com Froila Guterres (ambos, sem a menor dúvida, da «stirpe» condal
vimaranense) não é Nuno Mendes – que aliás poderá bem ser; depois mais seis
indivíduos, cujos nomes não são integráveis nessa «stirpe», nem poderemos dizê-los
indubitavelmente nobres, até porque, se o fossem, o natural seria pertencerem à dita
«stirpe», que era a patrona do mosteiro (uma das partes em questão), e nela seriam
reconhecíveis; de seguida, quatro dos cinco juízes que haviam julgado em Pena
Maior; e, por fim, mais dois indivíduos (um deles presbítero), certamente sem nobilitas,
pelo menos que possa provar-se-lhes. Todos estes nomes estão, pois, de acordo com
a conclusão, logo do contexto tirada, de que os filii benenatorum presentes no tribunal
tanto eram da nobreza (e esta aqui altíssima) como não.

Em 1038, outra acesa questão se travava ente «inimici maligni» (Mendo


Formarigues e o presbítero Auderico) que, com o apoio «de domnos de Zersedelo»
(Cerzedelo) dos quais deviam ser acostadiços, se haviam apoderado da igreja de
Gandarela e de S. Cristóvão de Selho, que era de Gondemaro Soares, do qual, «de
manu sua», a trazia o presbítero Ermorigo: «tunc pervenerunt

___241___

proinde in presentia Honoricus abba, Pelagius Guntemiriz, Mirto Arias, Teton


Adefonsiz, Odoiro Sinandiz, Oveco Ennegoz, Roderico Tructemiris et alii multorum
bonorum ominum». O queixoso alegava que essas igrejas tinham sido fundadas pelos
seus antepassados no tempo da presúria (séc. IX-X) e sempre haviam sido possuídas
pelos descendentes dos fundadores: «venerunt suos bisavolos de Gondemarus Suariz
ad presúria et ad populandum terram per iussione domni Adefonsi principis et in ipsa
presúria edificaverunt ibidem ecclesias» referidas. A outra parte não conseguiu provar
o que alegava, isto é, que «fuerunt ipsas ecclesias de illorum avolo nomine Cartenio»
–, no julgamento em que «pervenerunt iudices ad exquirendam veritatem in ipsa casa
de Sancti Christofori, Oveco Ennegoz, Roderico Tructemiriz, Ermias Flomarigoz, que
lex docente» (DC 304).
Não se nota indivíduo algum de comprovada nobreza neste «concilium»
judicial, mas nada prova que pelo menos alguns o não fossem – como Paio
Gontemires, grande benfeitor do mosteiro (DC 420) e então um dos «domnus de
Vimaranes» que aparecem, por exemplo, com a condessa de Portugal (D. Toda) e o
abade (o mesmo Honorigo) (DC 251, etc.). Ora estes abade e Paio Gontemires, como
se vê, são incluídos na designação «alii multorum bonorum hominum» – mas nela
estão também considerados, expressamente, pelo menos dois dos juízes (Rodrigo
Troitemires e Oveco Enegues), que bem parece não tinham qualquer nobilitas de
sangue. Tirante o pormenor de uma nobreza superior (a condal portugalense) no caso
de 1014, este, de 1038, é-lhe inteiramente análogo e reforça – de resto, já
escusadamente – as nossas conclusões. O que com ele fazemos não tem o intento da
prova, mas o de uma informação para a circunscrição vimaranense.

O caso de 1050, respeitante a Matamá, foi já referido na exposição geral desta


doutrina; mas, como pertence ao território vimaranense, merece ainda aqui uma
menção especial.
Travara-se a questão da posse de «ipsa villa de Matamala» entre frei Fafildo,
que a reclamava, em nome do mosteiro de Guimarães, e Soeiro Ximenes, que a dizia

___242___

sua, por herança dos seus antepassados. A questão suscitara-se quando Soeiro
Ximenes pretendera «sacar» ali um homicídio e um rouço (isto é, cobrar as multas
devidas por estes crimes), o que o mosteiro, tendo-se por dono do lugar, naturalmente
reivindicava para si. Posta a questão em tribunal, as duas partes «coniuncti fuerunt pro
inde terra unoerabat sub imperio ipsius rex et ipsa regina, et in presentia Petrus abba
et Petrus prepositus et Menendo Gundisalbiz et Gudini Ibeniegas et alii multorum
benenatorum et per manus tiufaudus Pelagio Mitiz… et elegerunt iudice Pelagio
Sagatiz que erat constitutus pro iudice in illa terra» (DC 376).
Já sabemos que Gomes Eicaz (e não Eitaz) ( 1) é o vicarius regis de Portugal,
que ele administrava em triunvirato com aqueles Mendo Gonçalves («stirpe» da Maia)
e Godinho Viegas («stirpe» de Baião?). Os dois Pedros são o abade do mosteiro e seu
prepósito.
Os confirmantes vêm a ser esses clérigos e os três próceres; depois, Cristóvão
Viliamíriz, Paio Sagades (o juíz), Paio Medes (o tiufado, ou meirinho) e dois outros
indivíduos que se nomeiam sem patronímico; e há ainda um só «quos vidi». Sem
mesmo olhar aos outros documentos, não podemos duvidar de que estes indivíduos
nomeados, nobres e não nobres, são apenas alguns dos filii benenatorum: alguns, de
facto, porque aí se diz que estes, nesse julgamento, eram «multi». Se todos se não
citam, ou muito poucos, é porque a sua categoria social não seria elevada, isto é, fraca
seria a sua representação social.
Em 1128, D. Afonso Henriques confirmou, ou, melhor, ampliou, aos
vimaranenses, a carta de foral que seus pais lhes haviam dado (até 1096) ( 2). Já em
trabalhos anteriores tivemos de aflorar este assunto, pelo que, propriamente, nos não
repetiremos, atentando aqui, ape-

__________
(1 ) Realmente Eicaz: TT Livro de Mumadona, nº 30; CP 369. Embora os autores continuem
a teimar em Eitaz (devido ao equívoco do prof. Paulo Mereia, sem dúvida), continuaremos na nossa
convicção, com razões que àqueles totalmente faltam.
(2 ) 1098, Leg. 350; 1128, DR 87.
___243___

nas, em circunstâncias ainda não tratadas ou nas novamente necessárias.


É uma delas a expressão «quod faciam ad vos bonos homines de Vimaranes».
Quem são estes «homens-bons» – que, no estudo, atrás feito, vimos assimilável à
camada ignobiles dos «filii benenatorum» ou dos «filii bonorum»?
A carta do conde D. Henrique e de D. Teresa é dada a um concelho que já em
Guimarães existia: não o cria a carta – que, de resto, nem confere verdadeiramente
privilégios ao lugar, pois quase mais não é que um regulamento interno, se
excetuarmos a proteção aos gados, a proibição da exigência de pousadas pelos
cavaleiros, e a limitação do apelido a um dia, contado o tempo da ida e do regresso.
Uma carta dos mesmos, de 1100 (1), concede outro privilégio aos moradores ou
burgueses: nenhum poderoso, com sua família e seus acostadiços, poderá edificar
aqui casa contra a vontade dos habitantes – ou seja, do seu representante, o «concílio
de Vimaranes».
Várias vezes esta expressão ocorre durante o século XI para Guimarães.
Convém referi-las, embora passageiramente – só no que interesse, de facto, ao nosso
ponto de vista.
A primeira que se tem considerado é a de cerca de 870 (o bem conhecido doc.
LF 16): «consilio acepto in Vimarani comitis et episcopis» (2). Ora é bem evidente que
não se alude aqui a Guimarães, mas ao conde Vímara. Pertencem, no entanto,à
ilustre urbe estes casos:
- 1013: uma carta que «fuit facta in concilio de Vimaranes» (reparação de uns
danos causados ao mosteiro) ( DC 221);

__________
(1 ) Publicada nos Vim. Mon. Hist. nº 80, com a data de 1130. Isto é impossível de admitir
em razão dos concessores (forçosamente anterior a Maio de 1112, data da morte de um deles). Trata-se
de um evidente complemento da carta de foral: logo, posterior, mas pouco. A era devia ser MCXXXVIII.
(2 ) O abade de Tagilde diz ser «o mais antigo (doc.) em que encontramos os termos
concilio de Vimaranes» – o lembra Alfredo Pimenta, que porém,se não pronuncia (Vim. Mon. Hist., p.
76c). É erro logo evidente de no LF 16 estar consílio e não concílio.

__244__

- 1021: uma escritura feita «in concílio de Vimaranes» (doação feita por certa
particular a outros particulares) (DC 24);

- 1046: uma doação ao mosteiro confirmada ou presenciada por elevadas


personagens e por outras de diversa condição, «et alii multorum filii benenatorum qui
erant in concílio de Vimaranes» (DC 152) (1).

São atos que não respeitavam propriamente a questões judiciais e que por isso
fazem lembrar imediatamente a ligação que o foral dado até 1096 estabelece entre o
«concílio de Vimaranes» e atos de tal natureza: «qui vendiderit aut compataverit nullo
aver in Vimaranes ante illo concilio». Tudo nos leva a identificar entre si tais atos e tais
expressões, e, portanto,, ou por isto só, concluir que, já do séc. X para o XI (a data de
1013 não é, forçosamente, a do primeiro ato do «concílio» ou seja, a da instituição
deste), funcionava em Guimarães um município. Não precisaremos de repetir aqui as
várias razões (diferentes desta), pelas quais, sobre aquelas mesmas notícias (1013,
1021 e 1046), o havíamos já deduzido (no nosso AF3 187-197 – considerando o que aí
chamámos os «inícios do período burguês vimaranense».

Em vista do exposto, ou de toda a história desta época, que em relação a


Guimarães temos construído, não hesitaremos em atribuir uma tal emancipação
popular, tão cedo e no próprio coração do Portugal de então, à influência da «stirpe»
condal, que no mosteiro tinha a sua sede religiosa, política e administrativa – a ca+ital
do seu condado. Um condado praticamente livre que nem a truculência do primeiro rei
leonês da dinastia navarra conseguiu de todo eliminar – apenas atrasando, e ainda
assim de muito menos de um século, uma independência mais que significativa agora
(1128) do que nos séc. X e XI poderia ser: a formação de um reino suficientemente
poderoso não só para resistir aos seus adversários cristãos, o que era muito, mas
também capaz de logo se expandir para o Sul, numa emulação a que os vizinhos não
puderam opor-se mais do qua à sua independência.

Os concilia de Vimaranes do séc. XI são, pois, formados por filii benenatorum


(DC 132), que muitos documentos,

__________

(1 ) Sobre a data, ver o nosso AF3 191-192.

__245__

como vimos, levam a identificar a filii bonorum hominum. O foral de D. Afonso


Henriques chama-lhes a isso mesmo, em 1128: «ad vos bonos homines de
Vimaranes» (2). Nem precisaríamos, pois, de tais documentos, para a equiparação.
Ora esta camada popular não se estabeleceu aqui com o conde D. Henrique, como,
por várias razões, é óbvio: a frase do primeiro foral «ad vos homines qui venistis
populare in Vimaranes» (1) é correntia em diplomas similares e, quando muito, indica
estabelecimentos novos mas estes a juntar aos pré-existentes habitantes (). O
segundo foral atrai vassalos de infanções, atrai mesmo iuniores, e até delituosos
foragidos, os quais são obrigados a comportar-se normalmente aqui. Serão eles todos
também do número desse boni homines – mas os que nos interessam para a nossa
finalidade são os anteriores, cujo número já deveria ser avultado ( 3). Só na parte da
Vila (assim chamada em razão de tratar-se do espaço da antiga «villa Vimaranes»
demo-agrária) se arrolaram, em 1258, quatrocentas casas que não pagavam
«soldada» à coroa e pertencentes tanto a igrejas locais como aos burgueses – «quam
aliorum bonorum hominum ville Vimaranes» (4). Notar-se-á que elas estão muito longe
de ser as únicas: são apenas as isentas ou que pretendiam isentar-se, e só num dos
núcleos do duplo burgo, a Villa, não contado pois o Castelo. Não podemos duvidar de
que do séc. XI para o XII a situação era proporcionada. Guimarães deveria ser, então,
o núcleo urbano mais importante de Portugal, atendendo mesmo à decadência da
cidade de Portugale (Porto, dada à própria sé local) e até, relativamente, à de Braga
(senhoriada também praticamente pela sua sé). Estas circunstâncias permitem crer
que o conde D. Henrique pretendeu transformar Guimarães num grande centro
populacional, económico e político – e o conseguiu, com tanta facilidade que, se não
fora a sua existência e a sua força, provavelmente não existiria Portugal hoje. Foi
neste burgo, de facto, pela

__________

(1 ) Leg. 351.

(2 ) Leg.350.

(3 ) O caso de franco-franceses a que o conde de Portugal fez uma doação no lugar:


«omnibus francigenis in villa de Vimaranes nunc comorantibus» (doc. Vim. Mon. Hist. p. 62.

(4 ) Inq. 7381.

__246__

resistência da nobreza portugalense e a dos boni homines dele, que a independência


de Portugal se efetivou en 1128 – como já se havia originado e até praticamente
existido no período dos condes da «stirpe» da condessa Mumadona I.

Se esses condes desejavam e, de facto, conseguiam a liberdade do seu


condado, eles não poderiam segurar-se, para conquistá-la e defendê-la, apenas nos
seus nobiliores, mas em todo o povo portugalense. Ora, por força da própria
residência condal em Guimarães e da existência, aqui, da impressionante fortaleza
que ainda hoje simboliza Portugal, estaria no primeiro plano da sua atuação a
população do burgo – a do Castelo e a da Vila. Os burgueses vimaranenses tanto
nasceram da fortaleza como do mosteiro: portanto, nascidos, como tais, da ação da
alta Condessa que castelo e mosteiro havia edificado; e, por isso mesmo, cedo
organizados em concilium.

Mas um outro aspeto, fundamental para os intentos deste estudo, há a encarar


aqui: a convivência que em Guimarães, desde logo, tiveram povo e nobreza –
exatamente como nos meios rurais. Só poderemos explicá-la, em razão,
precisamente, do papel fundamental que o burgo representou na fundação da
Nacionalidade, com os condes descendentes de Mumadona I e, mais tarde, na
conquista efetiva da independência.
De facto, em 1258 fala-se ainda das «domus que fuerunt domni Gunsalvi
Sause» e das «casae que fuerunt domni Petri Pelagii alferez» – as quais casas
«semper fuerunt onrate» (1).

Ora D. Gonçalo de Sousa foi, em 1128, com seu irmão Soeiro Mendes, o
organizador da defesa de Guimarães contra Afonso VII (2) – quando os seus
burgueses, os seus boni homines, aí sustentaram, como ficou escrito para eterna
memória, com graves perdas e tormentos, a causa nacional – «male et pena», diz
deles o próprio Infante (DR 1). E D. Pedro Pais, que viria a ser o alferes-mor do reino,
foi, naturalmente, um ativo colaborador dessa defesa, como membro da estirpe dos da
Maia (primo co-irmão do arcebispo de Braga, um dos mais ardorosos combatentes
pela mesma).

__________
(1 ) Inq. 7371.
2
() Doc. DR, p. 520. Ver o nosso Guimarães, 24 de Junho de 1128, pp.101-103.

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Irmanados então assim nobres e burgueses, não surpreende o sgnificado que


teremos de achar na existência da tais casas, que a carta de 1100 dificultava aos
poderosos – o que prova a sua construção, ou aquisição, por aqueles próceres fora
consentida pelas burguesia de acordo com a referida carta. Burgueses e nobilioris
(estes mesmo do mais alto grau, o dos divites homines), portanto, igualados então
aqui como vizinhos do concelho – tão «homens-bons» uns como os outros.

A matéria do capítulo anterior em exemplificação vimaranense tem na


aplicação da do presente capítulo a mais perfeita propriedade e relevância.

De facto, os burgueses vimaranenses são, verdadeiramente, entre o Ave o


Vizela, o grosso da classe vilã melhorada dos «donegos» que já estudámos com o seu
título de «dom», imitado da nobreza – ou, melhor, em expressa correspondência ao
«dom» nobre pela própria origem e significação inicial da palavra (origem e
significação assentes na qualidade possessora – na propriedade ou seu «áligo», algo).

Temos de concluir, ainda agora, mas por motivos diferentes dos que já no
mesmo sentido nos serviram e concorrentes todavia com esses, que os «donegos»
são, afinal, aqui aqueles que, anteriormente, se diziam filii benenatorum ou filii
bonorum (bonorum hominum), com um certo tempo de concomitância das diversas
mas sinónimas designações: ou seja, tanto os boni homines municipais (na Vila e,
depois, também no Castelo) como os não municipais (de entre os dois rios).

E muito se nos afigura notar que o título de «dom» aparece com muito maior
frequência na «terra» vimaranense (como exemplificámos no capítulo anterior) do que
em Guimarães, onde ele se encontra sobretudo em senhoras. Isto, como é óbvio, não
deve explicar-se pelo facto de a população ser mais numerosa fora de Guimarães,
mas porque aos «Vimaranenses» (o seu chamamento oficial, que é um verdadeiro
título – distintivo aqui, dos burgueses em relação aos não burgueses no séc. XIII-XIV)
bastava, para expressão da sua honor, a qualidade municipal, com prinilégios que os
equiparavam, praticamente, à nobreza de sangue. Em suma e na realidade,
verdadeiros filii benentorum, como vimos, se diziam os nobres de linhagem.

__248__

7. As imunidades: «Honores» e «cauta» simples; os casos completos: «honor-


cautum» e «cautum-honor».

São muito correntes as ideias distintivas de «couto» e «honra»: a primeira, que


a diferença não era essencial; outra, que a honra resultava sobretudo da nobreza do
possuidor; a terceira, que o couto, geralmente, era a imunidade eclesiástica.

O incompleto e unilateral do competente estudo (até da parte dos nossos


melhores historiadores) e um que seja mais aprofundado e devidamente comparativo,
ou, portanto, num número suficiente de casos, não nos permitem aceitar tais ideias –
ou, pelo menos, aceitá-las inteiramente.

De relance e porque de imunidades se trataria sempre, a primeira dessas


ideias pareceria a inteira realidade. Veremos, porém, que uma questão de diferença,
mais ou menos contrastada, apenas pode ser posta dentro de uma graduação
bastante de casos – considerados mais próximos ou menos próximos. A terceira
dessas ideias quase não é senão uma aparência, porque, além dos muitos coutos
feitos a nobres (os primeiros que encontramos concedidos eram-no em regra, à família
patronal (1).

__________

(1 ) Excetuam-se, claro está, os coutos a instituições não «próprias», como as catedrais. Os


exemplos abundam: em 1112 o couto ao mosteiro de Pombeiro, patronal dos Sousãos, é feito «ad ipsa
parte de Menendo Venegs et Gomez Nuniz» (DR 35); em 1121-1128, o do mosteiro de Cete, «vobis» os
quatro filhos de Gonçalo Oveques: «facio kartulam vel cautum» (DR 58).

Compreendem-se assim expressões dos livros de linhagens medievais que, a uma pessoa mal
advertida, dariam a ideia de que os nobres é que coutavam, com grave equívoco. Assim, «dom Pero Pais
Escacha que coutou Tibaes» (LV1 66), quando a verdade é que o couto foi feito a ele e seus irmãos: 1110
«vobis Petro Pelaiz» (DR 17); o caso do couto do mosteiro de Santo Tirso quanto aos dois irmãos Soeiro
Mendes e Gonçalo Mendes, da estirpe

__249__

Quanto à segunda, ela aceitar-se-á como essência – e, de facto, como uma das
procedências do honramento.

De qualquer modo, tal como teria de ser, estava em foco a nobreza, ou esta,
nitidamente, preponderava para o efeito – o que em nada favorece a ideia contrária à
opinião de um possível «feudalismo» protugalense-português, um feudalismo sui
generis.

De facto, a honra é ou partiu, sobretudo, de um sentimento: já assim vimos ao


tratar da «quintã» – e até a palavra honor assim deveria significar de origem. Deste
modo, a entrada dos oficiais da coroa no prédio de um nobre era para este uma
«desonra», uma «vergonha» – expressões literais em pleno período senhorial (séc.
XIII-XIV) (1). A ligação do sentimento que é a honor à propriedade nobre aparece-nos
clara no séc. XI: «pro nostro servitio et pro sua onore» – diz um beneficiado de bens
que, muitos anos antes, um prócer de «stirpe» condal lhe havia concedido (DP 60) ( 2).
E note-se que, em localidade contígua à deste caso (e da mesma estirpe), a honra que
ela constitui se define com esta expressão em 1220:
__________
da Maia, em dissensão para «que o coutassem ambos» (Scr. 157), tendo esse couto sido feito ao
primeiro: 1097, «cartam vel commissorium» (DR 4). O monarca é quem couta – mas atende, ou como que
se subordina nisso, à categoria pessoal, ao nobre.
Por vezes, os fidalgos obtinham do poder régio o couto para si, e só depois o transferem: o couto
de Moreira (do Ave) acabado de referir, feito a Soeiro Mendes, foi transferido em 1098 por este ao
mosteiro de Santo Tirso aí existente (DC 871; o couto de Argeriz, concedido a D. Teresa Afonso em 1152
(DR 238), foi por ela transferido, em 1156 (doc. ML 2 209, BR1 67 = LDS fls. q e 3), com autorização régia
de 1156, ao seu mosteiro de Salzeda, nele fundado (DR 234); etc.
(1 ) Assim, na honra ou couto de Penegate tinha entrado o mordomo da coroa só em casos
que não afetassem diretamente os nobres do mesmo couto ou honra, isto é, cuidadosamente, que não
constituíssem «desonra a fidalgos» (Inq. 4391), que os não «envergonhassem». Quanto ao sentimento de
«vergonha», até burgueses que pretendiam o honramento a sentiam quando os exatores fiscais entravam
nos seus prédios: é que com isso «envergonçavam-nos os moordomos», como dos Vervas vimaranenses
se dizia em 1290: Vim. p.3532. Isto explica mortes, mutilações e outras incríveis violências sobre os
agentes fiscais.
(2 ) A concessão havia sido feita por D. Soeiro Pais (o «don Soeiro» de DP 60 referido), filho
da condessa Ximena Fernandes (DC 282, 284, etc.) e, pela localidade, Bagunte, decerto um irmão do
semilendário «conde dõ Pero Paaez de Beconde» (Scr. 190, etc.).

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em Outeiro (c. Vila do Conde), «non intrat ibi maiordomus (regis) quia est in onra» IS
1101 (não havendo al qualquer reguengo, IS 302), uma «honor militum de veteri» (IS
14202) (1) - um conceito cuja secular persistência local só pode significar a sua
generalidade e, com esta, a génese subjetiva de uma honor, que só objetivamente se
realizaria (sobre a propriedade, pois). Aquela expressão «est in onra» não significa
localização, mas privilégio em abstrato – o gozo deste (2).

Esse sentimento, como é natural, teria de manifestar-se num comportamento, e


este apenas poderia ser a instauração do privilégio pela própria ação dos nobiles,
quando não o pudes sem exercer de direito. Daí as diversas feições (ou graus) das
imunidades.

Mas esse sentimento devia ter tido uma origem que não poderia ter sido
meramente subjetiva sem ela própria o ser, de todo, incapaz, pois, de levar a atos.
Deveria, assim, ter havido em época anterior, uma prática ou uma circunstância
objetiva; e essa época poderá considerar-se aquela a que temos recuado: a da
inhabitatio germânica pelas depraedationes suevas no noroeste peninsular. Já delas
dissemos quanto basta para, agora, lhes não devermos dar desenvolvimento.
Convém, no entanto, relembrar o exposto: os prédios das depraedationes não ficavam
sendo possessões dos depraedatores, mas régias; o rei é que cederia depois uma
parte àqueles a título prestimonial (ou, portanto, não isenta de encargos fiscais por
natureza), sob certas obrigações – sobretudo a milícia, que deveria ter caraterizado
desde então essa camada «nobre», os futuros infantiones. Bens imunes próprios
destes, realmente, deveriam

__________

(1 ) Isto é, «honor militum de veteri de genere domni Fafie Goterri 1258 IS 14202 – isto é, da
descendência de D. Fafe Guterres, da família patronal do mosteiro de S. Simão da Junqueira: 1084
«domnus Fafia Guteriz» DC 633. E note-se que toda esta documentação é daquele mosteiro, e que
respeita toda a esta mesma estirpe – o que mais vinca o carater genético subjetivo (mas predialmente
realizado) da honor dominial.

(2 ) Os casos deste género são raros – e só conhecemos este para a honra. Para o couto,
também um só, o da f. Rio Covo (c. Barcelos): todo o local 1258 «est cautum cautatum per patrones»,
declaração a que se segue «tota ista parochia est in cauto» IS 1444-1445 – o que deve significar que toda
ela anda no gozo de tal privilégio, in cauto, isto é, por couto (não querendo isto, de facto, significar
situação – porque o couto é a paróquia e esta é aquele).

__251__

tê-los eles organizado nas vastas disponibilidades geo-humanas encontradas em cada


uma «villa» depraedata (1).

Em nosso entender, possuímos mesmo um indício desta circunstância na


abundante toponímia germânica antroponímica genitiva, no significado possessório de
«villae» organizadas de novo e com imunidade fiscal: tão numerosos casos, por vezes,
em localidades de pequena extensão, que não podemos pensar que se trate das
próprias villae depredadas, mas do que se diria hoje «terras novas», dentro ou fora
daquelas – «villae» novas, como ainda por toda a Reconquista (com esta mesma
designação, «villa nova») se encontra (2). Essa toponímia antroponímica não se refere,
diretamente, às depraedationes e respetivos depraedatores, mas indiretamente –
indicando-as e indicando-os (3).

Não há que forçar o sentido das coisas para se ligar um sentimento de honor
pessoal à propriedade pessoal – ao prédio possuído. Esta mesma razão, num plano
mais subjetivo (que abona a subjetividade inicial da honor imunidade), é a designação
honor que encontramos a dar-se ao que foi, sucessivamente, como vimos o comitatum
e commissum, e a «tenência» administrativa

__________

(1 ) Nestes prédios não se aplicaria a doutrina do Cód. Vis. X, 1, 6, «ut nihil fisco debeat
deperire». A toponímia antroponímica germânica, cuja abundância demonstra a frequência e a extensão
do esbulho suevo, como dissemos no primeiro capítulo, devemos entendê-la em relação com a
circunstância que apontamos – como segue no texto e então não podíamos ainda estabelecer.

(2 ) Basta-nos um exemplo: cerca de Britiande (uma »villa» Bertenandi de origem), fundou o


senhor desta honra (Egas Moniz) «quintã» com seu prédio, a que chamou «Villa Nova», em
contraposição àquela, a «villa velha»: Inq. 1063-1064, TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 35; doc. BR1 10. Isto
entre 1128 e 1140 mostra bem maiores possibilidades antes (note-se o caso expresso de uma
organização antes de 1086 «nomen impossuimus Villam Novam» DC 666): só que o modo de designar
era, agora, outro.

(3 ) E não há nisto apenas a contiguidade de sítios assim denominados mas ainda a sua
situação em locais ásperos e hoje até totalmente incultos. As opiniões de A. Sampaio acerca das «villas»
indicadas por esta toponímia não é aceitável quanto à área e os nomes haviam-se estendido a áreas
maiores, por função paroquial ou outra. Geralmente errónea mesmo a sua doutrina acerca delas em As
Vilas do Norte de Portugal (cf. o nosso art. GE XXXV 337-346, sem significar concordância atual nossa
com tudo o que aí formulamos).

__252__

(a rico-homia); e não é sem alguma relação – relação essa que numa sucessão
parece manifestar-se – que o declínio e o desaparecimento de honor na aceção
administrativa coincidem ou correspondem ao início e fixação de honor no seu
significado senhorial, ou, portanto, do séc. XI para o XII (1).

Uma outra circunstância poderá ter relação com a passagem da designação


honor da circunscrição administrada pelo alto nobre para o seu prédio imune: é que as
honras típicas, as mais notáveis e, como mais antigas, as sempre respeitadas pelo
poder real, pertencem, precisamente, às quatro «stirpes» principais da nobreza
portugalense, que são as imperantes terram familialmente; e situam-se sobretudo
através do território da sua honor administrativa (2).

__________

(1 ) Esta circunstância ficou mesmo vincada nos sécs. XIII e XIV nos nobiliários: Scr. 143.
(2 ) Esta notável particularidade, quanto às linhagens portugalenses principais, pusemo-la,
há muito, em foco no nosso trabalho AF5 83-95, com dois mapas elucidativos, devidamente legendados
(pp. 88-89 e 120-121).

O Prof. J. Mattoso, na Revista de Guimarães, LXXXVIII, pp. 175-176 (1978), em nota, manda
«ver» essa nossa representação cartográfica - «embora (avisa), sobretudo no primeiro desses dois
mapas, se dê a ideia falsa de que as quatro linhagens possuíam ou senhoreavam territórios contínuos e
que abrangiam, sem enclaves, todo o norte de Portugal». Pela importância do assunto, fazemos um
aborrecido reparo:

Para as quatro linhagens (até mesmo para as cinco), não se trata senão de uma pequena parte
do norte. Mas isso é o que menos importa: o impossível é, com efeito, se possa tirar dessa nossa
representação uma conclusão de tal género (que, sem falta de consideração, poderíamos dizer estranha).
São tão claras as legendas desses mapas, que nem sequer se precisa de ler o texto que a elas
respeitam:

a) O primeiro mapa (o principal da «ideia falsa») tem por título: «Da presúria inicial à
tenência ou honor». Portanto, nada com «possuir ou senhorear» em tais termos: a presúria é evocada
unicamente como uma origem de possessões próprias (e nem todas, evidentemente), possessões essas
que até o segundo mapa esclarece; e a honor (honor administrativa, que não honor imunidade) significa
autoridade dos próceres, a administração pública nas «terras», não possessão ou senhorio. As «terras» é
que se sucediam em continuidade (não os senhorios ou possessões, vê-se bem) – e nada temos que
alterar nesta doutrina, a qual será reabordada na segunda parte deste mesmo trabalho, além de não ser,
de resto, o objeto da apreciação que estranho.

__256__

Esta situação já tardia não deverá talvez diferir daquela que vigorava na época
visigótica quanto a «potentiores personae», poderosas não apenas pelos cargos
palatinos «internos», mas também nas circunscrições ou «civitates», onde entrariam,
preponderantemente, no número dos «priores loci» ou «maiores loci» – ou até
«seniores loci», como eram já «seniores palacii» (1). Além do facto de aos «tenentes»
das nossas circunscrições se chamar por vezes «senior», sc. terre (2), não parece
distante da condição e designação «primates palacii» visigótica (3) aquela de «palacii
maiores» que ainda entre nós se usava do séc. XI para o XII (DC 866) ( 4): até porque,
como com aqueles se dava, se observa com estes a nomeação para cargos palatinos
«externos» – tais como, outrora repetimos, entre esses «primates palacii erorumque
filii» (5), os de dux e comes, ou até mesmo um gardingus destacado possivelmente
para esses cargos como aqueles (6).
__________
b) O segundo mapa tem por título: «exemplo da profusão de possessões (honras) de um
chefe de linhagem no séc. XIII através da sua honor» (isto é, através do território da tenência). Marcam-se
dispersamente, aqui e além e, por vezes, a grandes distâncias, essas honras. Portanto, nada que se
pareça com aquilo de que estes mapas são acusados: «possuir e senhoriar territórios contínuos, sem
enclave» – porque (repetimos) não sse trata de «possuir e senhorear» de tal modo no primeiro mapa; e,
no segundo (relativo a possessões), não de «territórios contínuos» (estes os da honor administrativa: não
os das honras imunidades), de territórios «sem enclaves», mas de locais dispersos, distantes.
Não compreendemos (dizemo-lo com toda a consideração e afetuosa lembrança que daquele
nosso amigo temos) como é que esquemas e legendas tão claros possam dar ideias ditas falsas. Só por
aquilo que já há muito lamentávamos: em geral, «nenhuma alusão a pontos de vista nossos manifestar ao
menos a sua leitura atenta» e, pior, «me não acusar do que eu não disse», nem fiz, etc. (AF 2 10). Como
sempre, não estamos dispostos a olhar muito a isso – a não ser em casos propositados. Não cremos seja
o presente.
(1 ) Cód. Vis. VI, 1, 2; IX, 2, 5; IX, 2, 9; VII, 5, 6; VIII, 5, 6. Os nossos «maiores palacii»
(regis), 1088 DC 599.
(2 ) Leg. 363, etc.; 1135 «dominus in Nevia» DR 114; «senior de ipsa terra» DR 188 e 221.
3
() Cód. Vis. VI, 1, 2.
4
() Por exemplo, para um prócer do conde D. Henrique e que antes deste havia sido, ao
mesmo tempo que vicarius regis, um grande senhor de terras: ver sobretudo o nosso trabalho AF 5 56-63,
e os docs. 1099 LF 622, 654, etc.
(5 ) Cód. Vis. VI, 1, 2.
6
() Cód. Vis. IX, 2, 8 e 9.

__254__

Ora não é possível imaginar que tais próceres não aproveitassem a sua
autoridade e a sua residência para angariar bens e possuí-los diferentemente dos
tributários (1). Se esta situação não fora uma persistência contínua da visigótica, pelo
menos teria sido uma restauração desta, indicada pela analogia de situação em todos
os pontos de vista pessoais, quer públicos quer particulares.

A propriedade imune, no entanto, quase não aparece expressa antes dos finais
do séc. XI, sendo pois, ou devendo sê-lo, raros até então os casos de domínios do
caráter dos que depois sugem, as honras e os coutos ( 2). Já mostrámos que estas
imunidades ainda nesse tempo não parecem resultar da qualidade nobre do senhor:
provavelmente, só o seriam os prédios organizados pelo próprio nobre ou seus
solarengos (no caso destes, as rationes domnicas).

Demos já num dos capítulos anteriores o exemplo, que parece claro, das
possessões que haviam sido do conde Paio Vermudes no litoral de entre Minho e Lima
nos meados do séc. X, o que não quer dizer que aquele prócer não possuísse imunes
algumas. Os coutamentos (que, por vezes, não são senão honramentos) aos nobres
são, em geral, feitos sobre as suas «hereditates», o que prova por si mesmo não
existir antes a imunidade em qualquer grau: «cautum de vestra hereditate» é
declaração bem expressiva da parte do rei, que, apesar do coutamento, aí conserva
direitos ou mesmo prédios, «ipsum regalengum» ou foros. De facto, o coutamento não
é uma transferência de propriedade para o agraciado: é o privilegiamento dessa
propriedade na pessoa dele, podendo mesmo o rei, se não se tiver feito uma
declaração em contrário,

__________

(1 ) 1066 «nostras hereditates quicquid visi sumus havere de ... comparatorum vel
profilicatorum» DC 451 – diz Garcia Moniz tenente de «terras» ou de vasta honor em Ribadouro; 1258
«mandavit eis capere (omnibus forariis) omnia que habebant, et fecit illam quintanam in ipso loco» –
origem da «quintã» de Barbosa por Mem Moniz, que então «tenebat terram de Penafiel», Inq. 5841; etc.

(2 ) Antes do final do século XI, apenas dois casos conhecemos: o do comissório (sinónimo
então de couto) de entre Ave e Vizela, do mosteiro vimaranense (DC 223, cf. nº 872), e o do «cabo de
Moreira, no mesmo território: «sit ipsa in suo capo (968, DC 99; cfr. DC 82, Inq. 2161), Vim. p. 3552.

__255__

conservar aí, repetimos, os prédios ou os foros que aí possuísse (1).

Ainda antes que exploremos mais detidamente estas situações, aqui temos
definida, pois, a caraterística essencial do couto: não um senhorio predial, mas uma
jurisdição sobre a população que habita a área respetiva.

A honra, condicionalmente, também não é uma propriedade, ou, melhor, não é


uma «hereditas» ou conjunto de «hereditates» próprias do senhor. Mas, antes de
procurarmos a diferença entre a honra e o couto, devemos notar que não conhecemos
caso de concessão régia de tipo designado em que se diga «facio honorem», porque é
sempre «facio cautum». À primeira vista, a conclusão seria que o rei não criava honras
(não que ainda as não houvesse) e que, portanto, elas resultavam apenas do
comportamnto do nobre, psicológica e materialmente motivado para ele.

Assim, de facto, sucedia, mas sobretudo mais tarde – e dizemos sobretudo


porque estes casos deviam ser ainda muito raros nos meados do séc. XII. Ora, se bem
que nas concessões cujos textos nos restam se leia sempre «facio cautum», a
verdade é que, mais tarde, na índole e no funcionamento, a designação vulgar do ato
régio do privilegiamento é «fazer honra», mesmo quando se trata de coutos (2).

__________

(1 ) O caso do couto de Paredes, criado em 1130, DR 114, Inq. 1138 2, para um nobre e
esposa e seus descendentes; e o caso do couto de Pombeiro, para um mosteiro e criado em 1112 «do ibi
quantum ibi habeat de regalengo», etc. (DR 35), sem que isto significasse que o monarca concessor não
conservasse aí avultados bens, «hereditas» foreira (no caso de Paredes, talvez um reguengo, se não é
apenas foro), a qual ele cedeu em 1155 ao mosteiro, em atenção ao seu prócer D. Gonçalo de Sousa,
patrono do cenóbio (DR 253).

(2 ) Assim, nas inquirições de D. Dinis (1288), tratando-se de honras, a pergunta


sacramental é «se esta honra foi feita por rei» – ao que se responde, conforme os casos, afirmativamente
(que é o que aqui nos interessa) ou negativamente (o que significa a outra origem da honra: não um ato
da autoridade real, mas um comportamento do nobre). E, no entanto, repetimos o que lembramos acima,
nunca lemos nos textos das concessões régias «facio honorem».

Um exemplo, numa honra típica, é o de Lalim, por D. Afonso Henriques, a Egas Moniz: em 1390,
apontavam-se no lugar aos inquiridores os limites dela como tinham sido ouvidos em «hua

__256__

Daqui resulta, aparentemente, a indiferença de se chamar uma coisa e outra a


uma mesma imunidade (1), o que cremos motivo de todas as indecisões em que os
autores têm deixado este fundamental aspeto do nosso regime senhorial. Quanto a
nós, como o veremos, a razão não está na indiferença de nomes, indiferença que não
existia, mas no facto de certos lugares serem honra e couto ao mesmo tempo – ou
seja, as nossas imunidades mais completas.

Em 1117, D, Teresa coutou certo lugar dispensando a este e ao nobre que


recebeu o couto os encargos reais – dispensa esta e designação aquela que não
impediram uma outra disposição, ou concessão, no mesmo ato de couto: «et desuper
honorifico ad te tuam villam» (a «villa» coutada). Ora esta honorificação consistiu
apenas na dispensa de tributos ou foros de caça (o condado de

__________
carta da onra leer» – carta dessa mesma «honor de Lalim» (TT Inq. de D. Din. L 4, fl. 35 v.-36; Inq.
10761).

De lembrar, igualmente, os casos de Tuías e Canaveses, pelo mesmo rei e ao mesmo prócer:
em 1258, dizem os jurados de Tuías a «cautavit» aquele rei, e em Canaveses a «honravit» (Inq. 11442 e
11452). No entanto, o funcionamento era o mesmo (os dois lugares foram até honras especiais: beetrias).
O que nos parece ter causado a diferença é que a honra de Tuías passara ao mosteiro local (mosteiro
que fora também de Egas Moniz): doc. Erdmann, Papsturkunden, nº 69. Ora os domínios dos mosteiros
nunca se dizem «honras», mas «coutos», mesmo que o funcionamento seja o da honra (ou o devesse
ser, como o caso do couto de S. João de Tarouca, LDT 122 v). Deve ainda notar-se que esta questão de
nome se revela diferencialmente numa época em que a honra resultava da qualidade nobre e se
respeitava por ela, em facto consumado.

() Nota-se o mais nitidamente possível em concessões régias a Egas Moniz (ver a nota
anterior), nomeadamente Caria e Resende: «honra de Resende» (Inq. 9902, Inq. de D. Din. L. 4 fl. 28 v.) e
«couto de Resende» (TT Chanc. de D. Af. IV L, 4 fl 46 v.); «honra de Caria» (Inq. 11032, TT Inq. de D.
Din. L, 4 fl 35 v.); e «couto de Caria» (assim chamado pelo próprio senhor, 1265, TT Chanc. de D, Af. III L.
3, fl 30 v.). De notar, ainda, o caso da f. Carreira (c. Barcelos): 1258 «est ibi (existe aí) cautum cautatum
per patrones IS 14441, o qual couto a seguir se diz «honor vetus de Pousada» IS 14462 (Pousada, de
facto, ainda lugar daquela freguesia, mas a honra estendida a dois da f. Nine, limítrofe); e o caso de f.
Veatodos (c. Barcelos): 1258 «aut est cautum ipsius ecclesie aut est honor de Farlães aut honor vetus de
Ulvar» IS 14471: para o declarante, o funcionamento não bastava para ele distinguir se de couto se de
honra.

__257__

monte, como se lhes chamava) (DR 49). O agraciado era um nobre de alta estirpe ( 1),
e isto prova que ainda deste tempo, conforme ao que por outras indicações temos dito,
a qualidade nobre não produzia a «honra», e que, portanto, coutar e honrar eram atos,
legitimamente, só da autoridade real.

Podemos, assim, compreender a expressão régia «in vestro dominio sit tradito
et a meo abraso», quanto ao couto ( 2), e a expressão vulgar «nullum forum facit regi»
na honra (3).

Em nenhum caso a posse da propriedade rústica ou da urbana ou a de ambas


pelo eventual senhor é condição para a instituição e funcionamento de um couto ou de
uma honra (4). As expressões do coutamento, como «facimus cautum illius
hereditatis», ou «kautum vel testamentum facerem», ou equivalentes (DR 238, 42,
etc), não significam que à coroa se não reservem todos os direitos que ela tem, desde
que não sejam a jurisdição (total ou parcial) sobre os habitantes. Isto é, a coroa
poderia continuar a receber ou foros na área coutada, tanto de reguengos como de
proprietários foreiros, ou de uns e outros, se os havia aí ( 5). Nada têm tais aspetos
com a essência do couto (nem sequer significando graus de privilegiamento): resultam
da detenção da propriedade – que tanto poderia ser toda como não toda ou

__________

(1 ) Da «stirpe» de Marnel, de origem condal no séc. X: sobre ela, ver JM1 509,
nomeadamente para este nobre.

(2 ) 1097, DR 4; 1136, DR 151; etc. Da parte soberana, esta frase não pode ter o sentido ou
a extensão que tem entre particulares nos seus contratos legais (1101, DP 23, etc., o que há de mais
correntio, ou uma frase estereotipada).

(3 ) Embora se trate do aspeto primacial na nossa doutrina, como a vamos desenvolvendo,


deve notar-se que, aparecendo esta expressão também nos coutos, o facto não pode justificar um
confusão entre honra e couto: simplesmente a inteira possibilidade de uma localidade poder ser couto
(pela jurisdição senhorial) a honra simultaneamente.

(4 ) O coutamento de 1097 de Santo Tirso pelo conde D. Henrique a Soeiro Mendes «da
Maia» foi feito sobre prédios e «homens» que o agraciado aí possui («tu ibi abes»), sobre os que possui o
conde («quos tibi damus») e sobre os que possui o conde («quos tibi damus») e sobre os do mosteiro,
excetuando os da colegiada de Guimarães (DR 3, DC 871).

(5 ) Os casos, já referidos, dos coutos de Paredes (de nobres) e de Pombeiro (de mosteiro):
DR 114 e DR 35 e 253; etc.

__258__

nenhuma da coroa (isto é, reguenga simples ou foreira), toda ou não toda ou até
nenhuma do senhor do couto.

O mesmo se observa nas honras – e bastaria esta circunstância, se muito mais


não houvesse, para se deduzir que a diferença essencial apenas estava na jurisdição:
couto, quando o senhor a tinha; honra, quando a não tinha. A conclusão só pode ser
que a honra se caraterizava pelo direito senhorial a(os) foro(s).

Portanto, numa jurisdição mais ou menos completa não podemos dizer


repousassem graus diversos de coutamento; numa perspeção mais cerrada ou menos
cerrada dos foros também não estariam os graus de honramento: mas já o que da
combinação de umas e outras situações resultava eram diversos graus de privilégio.

O prosseguimento da nossa tese não pode fazer-se, agora, sem um exame à


bem conhecida definição dionísia de «coutar uma terra»: «escusar os seus moradores
de hoste e de fossado, e de foro, e de toda a peita» (1), ou seja, respetivamente, de
qualquer serviço militar, de todos os serviços pessoais e tributos (foro), e das multas
fiscais.

Não será precisa uma investigação muito aturada para se encontrarem


desmentidos em todos os pontos desta definição – anteriores, porém, a ela, o que tem
toda a importância na sua apreciação como norma:

- Umas vezes, não se dispensa a milícia ( 2): «quitavit cautum de anudva», que
antes, pois, se cumpria (3); «et os erdadores deste couto vam in annudva et in fossado
(et os erdadores deste couto vam in anuduva et in fossado (et vam a montaria) et
guardar os portos de Minio quando

__________
(1 ) TT Chanc. de D. Din. L. 2, fl 72.
2
() Este serviço (a milícia) tem diversas manifestações e, por isso, diversos nomes: «vadunt
nin hostem et anuduvam» (Inq. 15702); «ad chamatum castilli» (Inq. 6361, tão típico dos burgueses
vimaranenses, como vimos); «vadant in apellido» Leg 351); «de fossato» (Leg. 356), etc., convertendo-se
por vezes em tributação, como o «castellatico», (DR 70), a «fossadeira» ao castelo de Vermoim», Vim.
3781).
(3 ) Couto de Coja, com essa quitação depois de 1248 (Inq. 7822), couto esse há existente
em 1132 (DR 129).

__259__

os chamam por voz de el rey»; ou «van in oste» real ( 1); «cautatum et demarcatum per
patrones... honores intus ville (no couto) vadunt cum domigo rege in exercitu suo» (2).

Esta situação, quando não haja sido expressamente recebida, pode ser um
resultado implícito de caso como: 1124, couto «liber ad omni fisco et regali tributo et
«ab omnia calumpnia» (portanto, livre do «foro» e «peita», ou exigida, pois, a milícia)
(DR 63).

- Outras vezes, não são dispensados os tributos (o foro): «quando ipse rex
cautavit ipsum cautum quinque modios remanserunt» (3).

Também esta situação, quando não expressamente estabelecida, resultaria


implicitamente de caso como este: 1125, couto «liber de toto castellatico et de tota
voce regia» (dispensados, pois, o serviço militar e a peita, mas não o foro) (4).
- Outras vezes, não se dispensa a peita: «entra hy (no couto) o porteyro del
rey»» ou os moradores do couto «vã per ante o juiz da terra» ( 5); «estt cautum... et
solebat pectare vocem et calumpniam» (6).

O primeiro destes três casos corresponde àquilo que adiante classificaremos


de cautum simples; o segundo, ao cautum-honor (análogo, como veremos, à honor-
cautum);

__________
(1 ) Inq. 14302.
(2 ) Couto de Merufe, cerca do Minho: Inq. 3722, couto da Pendorada, Inq. 13811, coutos de
Vilar de Mouros e de Nogueira (Cerveira), Inq. 3521, etc.
(3 ) Couto de Paredes, 1130 (DR 1149): Inq. 11382.
(4 ) Couto de Azere, DR 70. Em 1112, couto de Pombeiro: «do ibi quantum ibi habeat de
regalengo sive et mandato similiter, cum suo saione et caritel... de juri meo abrasa»: DR 35. No entanto, a
coroa tinha aí «hereditas», certamente foreira, pois que o reguengo tinha sido cedido naquela data e ela
em 1155 recebia daí foros (DR 252).
(5 ) Coutos de Rebelo, de Tarouquela, de Águas Santas, por exemplo: o primeiro, de nobres
1
(Inq. 926 , por D. Afonso III; TT, Inq. de D. Din. L. 4, fl. 37 v. – ver o nosso art. GE XXV 214-217); o
segundo, de nobres, passado a mosteiro (Inq. 9541, por D. Sancho I; TT Inq. de D. Din. L., 4, fl. 22 v – cf.
o nosso art. GE XXXVII 725-758); o terceiro, de mosteiro (Inq. 5041: cfr. o nosso artigo GE XXXVII 725-
729), e dele consta nas inquirições de D. Dinis (Corp. Codic. I 289): «há hi um couto de Águas Santas e
nom há hi juiz mas vam a julgado da Maya» (o caso do mosteiro de Tarouquela, afinal).
(6 ) Inq. 1434 e 1435.

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e o terceiro chama-se cautum talvez só porque provém de ato régio, porque, na índole,
é o que entenderemos por villa honorata.

A juntar a estas excetuações, temos ainda as muitas vezes em que uma


imunidade ora se chama «couto» ora «honra» (1), expressões que se identificam no
aspeto geral do privilegiamento: para uma mesma imunidade, chaga a dizer-se que «é
onra et que non fazem nen uno foro al rey» (2). Esta identidade mostra o quanto uma
honra poderia confundir-se com um couto, ou, melhor, que um couto podia ser uma
honra, ou, por outra, que uma honra poderia também ser um couto: simples questão
de extensão de privilégios (3).

Não é preciso, de facto, um grande esforço de raciocínio para se concluir que,


de um couto, poderia pagar-se foro à coroa, porque o essencial do couto era a escusa
da peita (ou, portanto, a jurisdição do senhor); e que de uma honra poderia pagar-se a
peita, porque o essencial da honra era a escusa do foro. A milícia é elemento neutro:
nada por si decide, pois pode cumprir-se ou não se cumprir, quer numa honra quer
num couto.

Naturalmente que esta indecisão não deve ter sido própria apenas da época
em que o regime senhorial

__________
(1 ) Demos os exemplos típicos, e documentámo-los, numa das notas imediatas.
2
() O caso do couto de Penagate, que já não parece recente em 1133: «ad cautum de
Pena Gati» (LF 457). Dele se diz em 1258: «Penagati é onra e non peita voz nem caomia nen vam in
anuduva» (por isso podendo considerar-se couto, que, de facto, logo a seguir se lhe chama, Inq. 4391)
«nem entra hy o mayordomo del rey senon a estas davanditas cousas» (coisas essas que se haviam
chamado «fossadeiras» e «censorias»: bragal e dinheiros, Inq. 4391). Penagate, pois, pela dispensa da
voz-e-coima, é couto, mas chama-se-lhe «honra»; pelo foro referido, não é honra, mas tal se diz. Solução:
um couto com encargos – mas cobrados pelo exator fiscal em condições que não constituam (e diz-se aí)
«desonra a fidalgos».
(3 ) 1258 «est quintana cautata et onorata cum suis casalibus et terminis», Inq. 14182 ; «tota
ista parrochia aut est cautum ipsius eclesie aut honor de Farlaes», Inq. 14471 (mostrando bem nos
próprios contemporâneos a indecisão corrente na distinção); «est cautum cautatum per terminis», Inq.
14182; «tota ista parrochia aut est cautum ipsius eclesie aut honor de Farlaes, Inq. 14471 (mostrando
bem nos próprios contemporâneos a indecisão corrente na distinção); «est cautum cautatum per
terminos… erat cautum et honor domne Gontine Petri», Inq. 14831.

__261__

atinge entre nós a sua pujança (séc. XIII): teria de sê-lo já da época em que ele se
esboça, ou, melhor, em que dele não temos as suas claras manifestações posteriores
(1).

Em suma, o que a definição dionísia representa não deve passar de um


modelo, uma norma, mais ou menos recente, de couto. De outra maneira, nem se
compreenderia bem o cuidado de dar uma tal definição num documento onde ela,
depois de séculos de coutamentos, não devia vir a propósito. Sobretudo para o futuro,
sem compromisso com casos passados. Era uma situação absolutamente limite, que
não deveria ter sido até então muito frequente, e parece representar um recurso do rei
para reduzir as possibilidades de imunidade, atendendo a que, sendo o couto, desde
agora (como, de resto, parece tê-lo sido antes sempre), um resultado de ato real, só
em casos muito excecionais é que a coroa se disporia a consumar uma tal perda nos
direitos régios ou públicos.

Quase íamos a dizer perda de soberania real – no que se envolveria um aspeto


de feudalidade que os negativistas da instituição entre nós não querem considerar –,
como se a eminência régia, que, por exemplo, nunca desapareceu até no feudalismo
inglês, fosse, realmente um elemento impeditivo. Na verdade, o couto total, se
concedido, como teria de ser, pelo rei, constituía um perfeito benefício hereditário; e a
sua estrutura predial quase se hierarquiza. E não irá cuidar-se que o coutamento,
como ato de «escusar» uma população de milícia, do foro e da peita (o trinómio
essencial dionísio), a libertava, realmente, desse encargo: a não ser, ao que nos
parece (pelo menos por vezes), no caso de reguengo(s) encravado(s) no couto e dos
quais se daria ou poderia

__________

(1 ) Em 1050, o dono de certa «villa» dentro do comissório (ou couto) do mosteiro de


Guimarães pretendia «sacar» na sua referida «villa» a coima de um homicídio nela perpetrado por um
morador, ao que o mosteiro se opôs (DC 376). Esta oposição só pode explicar-se pelo senhorio do couto
no mosteiro (do Ave ao Vizela, DC 223). E aqui temos o essencial dominial num couto, a jurisdição
(criminal, neste caso), tão claramente, para o séc. XIII, que foi neste século que, ao documento de
confirmação do couto por Fernando Magno, se apôs o título «de calumnia non danda», isto é, não a dar à
coroa (DC 342), em vez de, por exemplo, «de cauto». Equivalente, pois.

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dever-se a «peita» ao rei (1), eles seriam cumpridos em relação ao senhor ( 2). Se o
couto era alienado, tais direitos passavam mesmo para o novo senhor (3). De
contrário, um couto e uma honra seriam paraísos populares e o que se tem neles é por
vezes fugas, tensões sociais, por preferências municipalistas.

Não pode, repetimos, supor-se que anteriormente a D. Dinis, ainda que poucas
vezes, se não houvessem instituído coutos, que obedeciam antecipadamente à sua
definição: na tríplice isenção ou, pelo menos as escusas do foro e da peita – numa
expressão sucinta, que devemos comparar com as outras mais ou menos
pormenorizadas; ou seja, à isenção de «quicquid ad nos peão de «quicquid ad nos
pertinet scilicet regalia, fiscalia vel servilia» (DR 131), ou apenas «cautum» – mas
significando, como em qualquer caso, «de iuri meo abrasa» (DR 36).

Contudo, a situação limite não pode considerar-se um desaparecimento da


soberania real: há sempre a usa ressalva por vezes explícita, embora não definida –
cautatum et separatum nisi in casibus que iura volunt» (LF 687).

__________

(1 ) Dentro do couto de Covelo (a parte atual de Amarante à esquerda do Tâmega), havia


um casal reguengo: ora, «si fecerint in ipsa quairela cooma pectabunt eam» (Inq.11492). Portanto, por se
tratar de reguengo dentro do couto. O que não podemos dizer é que o exator fiscal entrasse neste, no
caso (sendo de crer a entrega pelo vigário senhorial).

(2 ) 1117, couto de Assilhó; «homines qui ibi fecerint calumpniam pectent tibi (ao senhor)
per forum Vaugam», pelo uso da «terra» (DR 49); 1258, couto de São Paio (Gouveia): «pectant regi
medietatem» dos quatro casos crimes mais graves, ou, portanto, metade para o senhor do couto: Inq.
7882. Em certa paróquia da «terra» de Faria, uma «herdade» dava à coroa foro «antequam fuisset cautum
factum» ao mosteiro da Várzea, e, depois de feito esse couto, «dederunt istud (forum) monasterio», isto é,
passou a solver-se ao mosteiro: Inq. 1092.

(3 ) Em 1165, D. Sancha Vermudes doou à sé bracarense o seu couto de Soutelo: «quod


cautum fecit mihi regina domna Tarasia et infans Alfonsus filius eius» (logo, entre 1120 e 1128), couto
esse para a sua «quintã», illam meam quintanam de Soutelo» (Vila Verde), o qual foi feito para dona e é,
agora, por ela doado «cum calumpniis et fossadeiras»: LF 492. Portanto: com o «foro», porque o tinha a
«quintã»; com a «peita» (as calumnias ou coimas); e tinha a hoste e fossado (as «fossadeiras») – ou seja,
tudo o que se fazia à dona e dela passa, agora, para a catedral.

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Havia sempre um direito (jus) a respeitar: direito certamente consuetudinário (1). A sua
menção ter-se-ia por dispensa nas concessões, razão por que a isenção total não
passa de uma aparência que teria de supor-se resolúvel apenas caso por caso se o
pudesse ser. Na situação limite, que engloba todos os direitos reais no trinómio milícia-
foro-peita, não vemos pois como, senão no sentido dos direitos pessoais que haviam
sido (e ainda por certo eram) as antigas fidelitas e securitas, os antigos consilium e
auxilium (justitia e a militia inclusas), que essencializavam os deveres feudais (2).

Isto quanto à relação rei-senhor (quase íamos dizendo suserano-vassalo).


Por fim, não serão inúteis ainda umas considerações acerca do mais antigo
teor que de um coutamento nos resta – o da carta de couto (a mais antiga que de facto
temos) feito em 1097 sobre a «villa Moraria» (hoje Santo Tirso) pelo conde D.
Henrique a Soeiro Mendes «da Maia».

É nitidamente um cautum com honor, uma imunidade portanto plena: o conde


cede «cunctas hereditates et homines (3) calumniis omnibus, cum karacteribus simul
omne vectigale nostrum tributumque et fiscalia regalitas». E as expressões definidoras
são incisivas, e claras:

- «ut nullus homo ibi ingrediatur pro malefaciendum» (seja «rapina», seja
«penora», isto é, atos de qualquer pessoa revestida de autoridade ou de pessoa que
não dis-

__________

(1 ) Não nos referimos ao direito real soberano, ainda que seria o suficiente – de que é
exemplo o mandado de D. Afonso IV de se lhe trazer preso à presença o juíz do couto de Lumiares, por
desobediência, tratando-se de um dos coutos mais perfeitos e pertencente a poderosos nobres. Ver Vit.
Elucid. s. v. Correr (sem se tratar, evidentemente, deste assunto).

(2 ) No couto de São Paio (Gouveia) referido numa das notas imediatas anteriores, na
obrigação militar: «vadunt in anuduvam regis»: Inq. 7682. Temos de deduzir que havia anúduva não real:
embora devida ao rei, cumprida com o senhor (vincada, porém, nesta espécie de «meio couto»).

(3 ) Umas do concessor,«quos tibi damus» (isto é, «ibidem abemus sibe eredidates


quomodo et omines» estes os adstritos às «hereditates»), e outras do agraciado («tu ibi abes») (DC 864 e
872).

__264__

põe desta, e sejam essas ou sejam outras quaisquer ações de malfazer), deste modo:
- «non pro caractere nec pro rausso nec pro omicidio nec nulla calumnia» (DC
864 e 872).
A «peita» e o «foro» são cedidos, pois, expressamente. O serviço militar não
tem qualquer referência (facto que seria de estranhar em toda aquela discriminação se
tivera sido dispensado); e não podemos pensar que o faça o termo «caracter», o único
que, sendo claro o sentido dos outros, poderia causar dúvidas se se desconhecesse o
sentido que geralmente lhe é dado – os casos crimes.
Mas não nos parece esse o significado de «caracter». Basta notar que já
naquela carta de couto os casos crimes são referidos simultaneamente com o «caritel»
(a forma romance, como cremos, de «caractere»). São, de facto, citados dois deles
entre todos («nulla calumnia») pela sua natureza (estupro e homicídio), e até mais: um
deles é precisamente aquele a que mais se costuma identificar a palavra «caritel», o
rousso (1).
Vejam, pois, mais alguns exemplos do emprego daquela palavra, que ainda do
séc.XIII para o XIV se usava:
- 1112, couto de Pombeiro em atenção à casa dos Sousãos: «do ibi quantum
ibi habeat de regalengo sive et mandato similiter, cum suo saione et caritel» (DR 35);
- 1290: «per razom desta quintãa tragem por onrra toda a villa assy o regaengo
de el rey como todo o al, que nom entra hy moordomo do caritel nem peitam voz nem
coomia» (2);
- 1258: «maiordomus refis solebat ponere caritelum in nogeyra (nogueira
reguenda) que stabat in loco… et modo cindit eam prior de ecclesia», isto é, «rex
habebat unan nogariam… et cindit illam abbas de ipsa ecclesia, et unam nogariam…
et cindit illam abbas de ipsa ecclesia, et levebat (solebat levare) inde maiordomus
fructum» (3).
Bastam estes exemplos – e em qualquer deles é nítida uma relação com
regalengos. Relação tão clara no pri-

__________
(1 ) O equívoco parece-nos provir de se ligar à palavra «caracter» o lat. quiritare «gritar», o
ato necessário da vítima. Mas a impossibilidade fonética basta para revelar, quanto a nós, um tal absurdo
– tratando-se até de inscrição, letras (911 LF 19).
(2 ) Vim. 3511.
(3 ) Inq. 11522 e 11572.

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meiro caso quão certo que, além de o «mandato» respeitar a reguengueiros, o


possessivo «suo» liga-lhes «saione et caritel». Isto mesmo se confirma com o facto de,
não obstante o ato de 1112, ainda em 1155 a coroa possuir aí bens (certamente
foreiros, pois o reguengo fora já concedido), os quais ela então cedeu a outro Sousão
(DR 253). Neste caso, o referido «saion» é um exato, que, como sucede na Idade
Média, poderia ter (e vamos ver que tinha) outras designações. O facto de não se
referir neste caso a «peita» (voz-e-coima, os casos crimes) é explicável por se tratar
de um ato designado de couto, cuja essência estava precisamente na sua dispensa e,
portanto, tanto poderia como não exprimir-se. Assim, quanto à palavra «caritel», não
se segue que necessariamente a designe.

O segundo caso é o de uma imunidade chamada em 1258 honor, mas que, de


origem e índole, era um cautum simples, porque, sendo reguenga metade da «villa»
(Cunha, c. Braga), como em 1290 se diz (treze casais da coroa em 1258 IS 1478 2), se
pagava daí ainda em 1290 foro à coroa: «entra hy o moordomo pellas teygas» (foro
apenas de pão). Ora em 1258 pagava-se aí à coroa muito mais que isso (a mais,
direituras várias, etc.), o que denuncia um comportamento senhorial tendente à
evolução do cautum a cautum-honor, a uma imunização completa (1). Nestas
inegáveis condições, o «mordomo do caritel» )1112 «saion» DR 35) citado aqui em
1290 não se relaciona com a «voz-e-coima» (os casos crimes):

___________

(1 ) Vím. 351. Mas em 1258 citam-se de facto nesta «villa» muitos outros foros,o que
esclarece o sentido da evolução. De tais encargos, restavam as teigas em 1290 – teigas essas que
justificavam a entrado do mordomo do pão –, o que aliás se refere em1258: «vocant maiordomus domini
regis ad colligendum panem, et non levant extra villam» esse pão (IS 1478 2), devendo, pois, o referido
funcionário fiscal entrar aí para carregá-lo – uma entrada bastante estranha, atendendo a que os
senhores consideravam em geral tal entrada uma desonra: mas a Idade Média tem destes contrastes – e,
de resto, deve notar-se que os senhores, neste caso, estavam usurpando todos os outros foros e não
poderiam, sem inconvenientes graves, levar a sonegação a totalidade (pelo menos subitamente, como, de
resto, passamos a ver).

Para melhor contraste entre 1258 e 1290, deve notar-se que, dizendo-se em 1290 funcionar toda
a «villa» como imunidade (apenas se dando à coroa o pão devido pela meia «villa» reguenga), temos em
1258, além de muitos encargos, a declaração de uma imu-

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não só porque estes dois aspetos se distinguem aí (o que, a tratar-se da mesma coisa,
seria uma inusitada redundância), mas porque da organização e funcionamento
anterior da imunidade se deduz que a menção de um tal mordomo, ou seja, a do
caritel, significa que os senhores não admitem aqui reivindicação alguma da coroa
sobre os reguengos incluídos, uma reivindicação que poderia concretizar-se pela
realização (o ponere caracterem) onde se considerasse justificado. O caritel refere-se,
pois, aqui aos prédios reguengos inclusos na imunidade (meia «villa»), enquanto que a
voz-e-coima respeita à jurisdição senhorial (a toda a «villa»).

O terceiro caso, o de uma árvore de fruto reguenga, parece elucidativo, enfim,


do significado que já a própria palavra «caracter», por si mesma, sugeriria:
entendemos aqui por «pôr caritel», colocar, insculpir ou até pintar um «caracter» –
portanto um sinal (naturalmente já um sinal próprio, o sinal régio, em quaisquer
pertenças materiais da coroa, propriamente suas ou que a ela, por qualquer via,
revertessem (por exemplo, por falta de cumprimentos dos encargos dos foreiros,
fossem cavaleiros-vilãos ou fossem jugueiros) e que se necessitasse distinguir de
análogas e entre as que o não fossem, ou nas quais se quisesse marcar o sinalde que
haviam passado a tal situação (1).

___________

nidade apenas em parte (ou seja, na metade) da «villa»: «habet ibi honor de vetus domni Gunsalvi
Ramiriz» IS 14782 (um dos «Ramirãos» do séc. XI-XII, Scr. 359 e LV1 73). É para notar também que este
não teve descendência e de admitir que, assim, os novos senhores tendessem a dilatar as possessões –
além de que a localidade nem foi inquirida em 1220. Este estranho facto faz-nos suspeitar de uma
imunização então total que, denunciada à coroa, viesse a ser eliminada – passando-se aí a um
procedimento senhorial menos radical, definido por variados foros em 1258 e pela sua redução a «teigas»
(de pão) em 1290: uma transição de cautum a cautum-honor mais paulatina ou mais cautelosa – de tal
modo que, em 1290, pela aparência derivada da solvência das teigas, foi respeitada: «estê como estaa»
(Vim. 3511).

(1 ) 1014 «adfirmavit ipse rex ipsos testamentos et suas scripturas et posuit suos
caracteres» DC 223 – «caracteres» no sentido de assinatura ou subscrição; 1135, numa carta de couto, a
concessão é feita com «homines» columnas cum characteribus… omne vectigal», etc., DR 151 – aqui,
bem nitidamente, padrões com sua inscrição, certamente em função limitante (se não é «calumnias»). Ver
o que segue no texto e as notas seguintes.

__267__

Ligado com este terceiro caso, cremos estar o seguinte exemplo relativo à
habitação de certa ermida (Quintiães, c. Barcelos), certamente para haver sempre
quem dela cuidasse: «quem quer morar in Sancto Júrgio (S. Jorge), pelo regaengo
que usa dá cada ano al rey I. ansar, por pacer et por guardar as devesas, et seya
quite doutro foro, et non seya mais que de uno omem» (uma família só) – o que se
exprimira em 1220 deste modo: «homo qui habitaverit in heremita se Sancto Georgeo
dat I ansar pro talliare in ipso monte de Freúfe, et non recepit caritel» (1). Parece clara
a correspondência de «non recepit caritel» a «seya quite doutro foro», isto é, o poder
público não limitará ao «homem» o corte nas devesas reguengas (em troca dos
encargos definidos), limitação essa que se faria assinalando (por sinais, portanto
«caracteres») as espécies ou as zonas a não usar.

Quanto a nós, pois, «ponere caritelum», é, de início, aquilo mesmo que, uns
cem anos adiante, também se dizia «ponere cautum» ou «ponere incautum», ainda
com «caracter», pois não se compreeenderia a falta de sinalização; ou, ainda,
«ponere munitionem» (moyzon) (2) – indo

__________
(1 ) Inq. 3231 e 1282, respetivamente.
(2 ) Ver uma das notas atrás. Acerca de certos reguengos ou «herdade» que andava
sonegada e que, por inquirição, se averiguara sê-lo, lê-se em 1258: «et portarius predictus (o «porteiro»
da coroa na cabeça da «terra») recepit eam pro ad regem et possuit in ea cautum» (Inq. 10782),
analogamente sucedendo e se dizendo de outra: «et posuit in ea incautum regis» (Inq. 10781).
Do mesmo modo, num outro prédio, de que não se cumpriam os encargos que tinha com a
coroa, o mesmo funcionário «tunc posuit illi moyzon in regalengo regis» (Inq. 1017 1, 7571, etc.). A
sinonímia «caracter» = «munitio» («incautum» ou mesmo «cautum») parece-nos bem clara nestes
exemplos (portarius regis) posuit moyzon = «maiordomus ponit caritellum» (Inq. 6042), sempre em
referência a reguengos, tanto de origem como reversos, não interessando a diferença de funcionários no
ato.
(De notar que já no latim clássico munitio significava bloqueio: César, in Magn. Lex. Lat.-Lus. p.
460. Daí, em nosso ver, os topónimos Caritel e Caritelo, e alguns casos, pelo menos, do topónimo
Monção).
Viterbo, se não foi ele mesmo que a estabeleceu, recorre à falsíssima relação entre «caritel» e o
lat. quiritare (Eluc. s. v. Caritel), e o mesmo faz Amaral Mem. V p. 160 (ed. Civil.), certamente por seu
intermédio, como tantas vezes. Deve ter contribuído para tal ideia a semelhança de palavras, e a
disposição do foral de Barcelos «non pectent caritel de nassum, et si fecerint calumpniam in alia parte

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desde o seu reconhecimento de se tratar de prédio da coroa, ou sua reivindicação, ao


sequestro de prédios foreiros que haviam perdido essa categoria ( 1). O mesmo enfim,
na atualidade (2).

Para esta função, existia, pois, um oficial da coroa próprio – o «mordomo do


caritel», cujas arriscadas funções eram restritas como o eram também as de outros
(entre estes, por exemplo, o chamado «mordomo galinheiro» – designação que logo o
define. (3)

O caso das honras só poderá compreender-se em melhores perspetivas


atendendo ao que já dissemos acerca da «quintã» como núcleo ou parte paçã de um
domínio residenciado, o centro de irradiação do honramento (ou do privilégio) à área
demo-territorial sujeita.

1ª A qualidade nobre da pessoa. É o que se exprime em

__________

(corporis) pectent», etc.: Leg. 432 (que publicou «deuasum» ou «de uasum», vasum – já se vê,por má
leitura). Daí, também, entender-se que «caritel» era a «voz-e-coima» (os casos crimes denunciados). O
que nos parece é que, tratando-se, sempre, como é facto, de agressão física, o «caritel», ainda aqui, é
um sinal – o da ferida ou contusão, ou outro, comprovativo da agressão corporal, necessário para um
judicial procedimento. Em suma, uma extensão às pessoas do sentido ligado a coisas – e, como
extensão, sentido aquele posterior a este. Este, porém, o originário (como, de resto, a origem de
«caritelo» < lat. caractere-, e não quiritare, claramente exige).

(1 ) O termo «munitio», no foral de Soure, 1111 Leg. 357, «villas et municiones», é traduzido
por «herdades», o que parece um tanto forçado da época da tradução, e aquela frase significará,
respetivamente, prédios não da coroa (o que não quer dizer de nobres) a prédios dela (encravados nos
municipais, ou municipalizados, tal como os havia nas imunidades nobres).

Não surpreende que o chanceler da cúria régia tivesse como que representantes em cada
distrito, encarregados do uso da espécie de «chancela» wur bem parece ser o «caritel».

(2 ) A palavra «carácter», de origem erudita, tem, hoje, ora um sentido ideal, ora um sentido
material, e o seu plural se obriga a ser pronunciado «caractéres». Como se vê, deveria admitir-se
«caractér» nos sentidos materiais, se de facto não poderemos restaurar «caritelo».

(3 ) 1258 «foy maiordomo galineiro» Inq. 3411.

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duas especiais declarações, que podemos considerar equivalentes:

- «propter honorem» de um nobre, cujo nome geralmente se diz, vincando-se


nisso a bem essência pessoal da instituição ( 1): um facto subjetivo que nos permite
estabelecer a relação concreta «pessoa-privilégio» como essência do honramento
(derivada do sentimento de honor) (2);
- «propter privilegium» da pessoa, esta individual (o caso mais frequente) ou
coletiva, e de caráter subjetivo tanto como o da expressão anterior ( 3): mas que
estabelece a relação concreta «dominium-hominium» – o primeiro termo, a eminência
senhorial, e o segundo, a sujeição ou «vassalagem», que, quando por menos, se
manifesta em serviços (4).

2ª A ação régia. É o que se define na expressão «honorata per regem» (5).

Quanto a nós, este já não é o genuíno honramento. É que não se trata de


honras verdadeiras, mas de coutos, por daí resultar um privilegiamento jurisdicional –
embora na designação do ato se utilize a palavra honorare, e um dos meios (que
conherecemos), o diploma, se diga «carta de honore» (6).

Entre múltiplos exemplos, bastará o seguinte: «in tota Madia («terra» da Maia)
non habebet quintana unde dominus rex non debebat levare vocem et calumpniam,
nisi Palmazanos et Gemundi, Parada et Guidonis, que sunt onrate et cautate per
cautus et per reges» (7).

__________
(1 ) Em qualquer parte das inquirições do séc. XIII se encontram exemplos: 1258 «propter
honorem domni Johannis Petri Madie» (D. João Peres «da Maia»), Inq. 5121; «propter honorem domni
Egee Moniz» (D. Egas Moniz), Inq. 5921; etc.
(2 ) Por vezes, em lugar de «propter honorem», encontra-se «propter quintanam» (Inq. 5491,
etc.), com a recorrência da pessoa para a sua morada – que já pudemos estudar.
(3 ) Inq. 5631, 5051, etc.
(4 ) Inq. 6231, etc. A procedência pessoal é, por vezes, mesmo explicitada: «non facit ullum
forum quia est miles» (cavaleiro-fidalgo): Inq. 6372.
(5 ) Inq. 8101. Por vezes, explicita-se: «si est onrata per pendonem sive per cautus (vel
patrones) sive per carta»:Inq. 5491,6572, etc.
(6 ) Inq. 11372; TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 35 ; etc.
7
() Inq. 4912. Os «coutos», como veremos, são marcos divisórios.

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Em «terra» da Maia, as honras abundavam (de notar que nenhuma daquelas


quatro pertencia à alta «stirpe» dos mandantes da «terra», do séc. XI ao XIII), mas
aquelas eram honras especiais: nelas, existe o coutamento cumulativamente com o
honramento: «sunt honrate et cautate» (1) porque não se faz delas «foro» (o segundo
termo trinomial) e estão escudadas de «peita» (o terceiro).
Na verdade, se aparecer um couto em que se responda aos juízes da coroa,
não se trata de couto verdadeiro, mas de honra; se aparecer honra em que se não
responda aos juízes régios, ela não é genuína honra, mas couto – do que resultam
diversos matizes da imunização que teremos de denominar (coisa que, aliás, já em
parte e de passagem fizemos). Aqueles casos correspondem aos em que se verificam
as duas circunstâncias definitivas da honra e do couto – e daí designarem-se ora de
uma maneira, ora de outra, ora de ambas juntamente.

Isto mesmo pode explicar que, como vimos, tanto de uma honra como de um
couto se declare não se dar foro algum à coroa (2), sem isso ser uma realidade (3)

__________
(1 ) De facto: Palmazãos (dos Babilões, Scr. 382), honrada «per patronos» (Inq. 4921);
Gemunde, «cautum» (Inq. 5011); Parada «est cautata» Inq. 5041): Guidões, «semper onrata et cautata
(Inq. 4911) – três maneiras diferentes de exprimir uma mesma situação de privilégio total: «honra»,
«coutos» e «honra e couto», o que dependia do modo de ver da pessoa que acerca daquele privilégio se
pronunciava.
(2 ) «non fazem nullo foro al rey cá é onra», Inq. 3732, ou «é onra que non fazem nem uno
foro al rey», Inq. 4301, 4311, 4322, 4331, 4332, etc. – a comparar com «quam dicunt esse cautum nullum
forum faciunt regi», Inq. 8632, etc.
(3 ) Caso de Caria: 1258, «de Caria de Susaa et de Caria de Jusaa que sunt de honore de
domno Menendo Moniz et de domno Egea Moniz nullum forum faciunt regi», Inq. 11032 (aqueles
senhores, apesar do «sunt», falecidos cerca de um século antes desta declaração): 1290 «destas honras
dam al rey colheita e nom al», TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 36. Mas não se vai crer que em 1258 se não
dava a colheita; e em 1265, o próprio senhor (D. Pedro Anes, bisneto de Egas Moniz) chama a esta honra
couto: «in cauto Sancti Martini de Chaas (Lumiares) et in cauto de Caria»: TT Chanc. de D. Af. III L. 3, fl.
30 v. Neste cauto se nota a falta de harmonia com a do caráter da honra (pois que se dava esse foro). E
outros muitos casos análogos ocorrem, como aquele a que se refere a nota seguinte.

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– embora, por vezes, se indique o ponto excetuado (1). Compreende-se também que
uma honra pudesse transformar-se num couto de privilégio limite ou máximo: a
ambição dos senhores não conhecia peias, sobretudo no séc. XIII, antes e depois da
guerra civil (1245-1246).
Assim, quando num couto se revelarem direitos da coroa, teremos
probabilidades de se tratar, originalmente, de uma honra; e, em geral, quando de uma
honra se diz que do respetivo lugar não se faz qualquer foro à coroa, isso não significa
forçosamente a isenção de encargos militares e criminais, porque a caraterística da
honra é apenas a dispensa do foro (segundo termo trinomial).

Por quanto temos visto neste capítulo e nos anteriores, as imunidades iniciais
eram sobretudo o que depois se chamaria «honra»: entendemos dever procurar-se a
sua origem a partir das depraedationes suevas, nos prédios organizados pelos futuros
infantiones, prédios esses isentos de encargos fiscais. Nas terras depraedatas, de
facto, o fisco nada deveria perder – embora elas pudessem vir e viessem a ser, muitas
vezes, concedidas em praestimonium ou, sob condições militares, em verdadeiros
benefícium, aos mesmos infantiones. Destes proveio a nossa nobreza, cujo caráter
económico era agrário e cujo caráter funcional público era, sobretudo, militar (milites).
Esta situação não deveria ter-se alterado entre nós até aos finais do séc. XI. Daí por
diante, tais imunidades multiplicaram-se, embora raras vezes por concessão régia
relativamente às inúmeras da iniciativa do nobre, por este tomadas pela sua própria
condição pessoal (a sua nobilitas – que era a sua honor) (2).

Esta multiplicação assenta em três circunstâncias absorventes principais,


políticas, sociais e económicas, que então se revelaram em Portugal, fermentando no

__________

(1 ) «esta collatione (freguesia) tragen de onrra et non fazem outro foro al rey ergo que vam
in anuduva: Inq. 4061. Aqui, como se vê, o serviço nos castelos, pelo que, pela escusa da peita, poderia
ser chamado couto. Tal não sucedeu por uma indecisão vulgar de terminologia, ou por mero uso.

(2 ) Note-se que a entrada dos oficiais da coroa numa honra era, como temos visto, para os
fidalgos uma «desonra» (Inq. 4391), antónimo expressivo do «sentimento» ou subjetividade originária – o
que sucedia com os próprios cavaleiros-vilãos (Leg. 397).

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ambiente de libertação nacional e de expansão territorial que desde os finais do séc.


XI se tornou a caraterística da nossa sociedade:
- O desenvolvimento intensivo da agricultura, com expansão dos arroteamentos
nas terras virgens, ajudado por mão de obra fornecida pelos prisioneiros de guerra
muçulmanos, no que, naturalmente, teriam os nobres a parte principal;

- A competência estabelecida, quanto a privilégios, ante a aristocracia de


sangue e a vilania, que se ia protegendo nos municípios – estes cada vez mais
numerosos e sobretudo de caráter urbano e acastelados, com a instituição de coutos
municipais, que eram uma evidente réplica popular às imunidades dos nobres;

- As incessantes perturbações políticas e administrativas: as lutas entre o


Estado e a Igreja e a guerra civil de 1245-1246, com os antecedentes da menoridade
de D. Sancho II e as suas sequelas com D. Afonso III (enquanto este não completou a
Reconquista e não pôde sacudir a tutela dos poderosos a que se submetera no pacto
de Paris de 1245), e, antes mesmo destas perturbações, a relativa impotência em que
a coroa se encontrava, que principiava com o ajuste de contas com o clero (à testa, o
bracarense); e a de D. Afonso III, no seu relativo êxito contra aquele e já também
contra a nobreza (com o apoio popular deliberadamente procurado), não foi muito
além disso. A hostilidade à família real no séc, XIII viria daí sobretudo. Apenas D. Dinis
conseguiria a melhoria ou, diremos, a paralização do sistema: de facto, pouco melhor
pôde que manter o status quo e legislar no sentido daquela paralisação, finalidade a
que, em nosso entender, se deve a sua definição de «coutar uma terra» – um caso tão
extremo de privilegimento que, daí por diante, só condições muito especiais e portanto
muito raras pderiam justificar ao próprio poder real criar um couto, uma imunidade,
paralisando-se nesse campo, intencionalmente, a si próprio.

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As medidas tomadas pelo rei em tal sentido manifestaram-se nas sentenças de


1290 sobre as inquirições de 1288, e em que as frases decisórias são quatro:
- «estee como estaa», no caso de honramento antigo e legítimo (conservação,
pois, das honras consideradas «velhas»);

- «estee como estaa porque hé filho-de-algo, e enquanto for de filho-de-algo»,


quando a origem não é reputada ou provada legítima, o que revela ainda uma
contemporização real com a nobreza;

- «estee como estaa ataes que saiba el rey mais do feito», quando há dúvidas,
mas não suficientemente fundadas;

- «seja devasso e entre hy o moordomo del rey por seus dereitos», quando a
irregularidade e a ilegitimidade eram ou pareciam ser factos patentes ou provados.

Em certos casos negativos, não se excluía o recurso para o tribunal da coroa: o


possível lesado «chame el rey, se quiser» (1).

São expressivos da dupla origem que considerámos para as honras os


interrogatórios e as respostas nas inquirições de 1258 e 1288 (1290). Fazemos de
seguida uma comparação simples, com uma correspondência evidente nas situações
expressas por (a) e (b) – as quais, às vezes, têm outras formas (algumas delas
desenvolvidas mesmo em processos de honramento por ação régia), mas sem que
nisso o sentido ofereça qualquer diferença:

A pergunta põe uma das possibilidades; a resposta, negando-a, põe a outra (por vezes
definindo-a). Logo, como a pergunta é sempre feita no mesmo sentido (ação

__________

(1 ) Aqui, «chamar» < lat. clamare significa invocar a justiça do rei, ou, melhor, recorrer a
esse supremo tribunal.

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do rei), sobretudo em 1288, entende-se que, para os comissários, zelosos da


autoridade real, havia uma ideia única norteadora: a legitimidade estaria
apenas no ato régio. Ora, já vimos que este, em regra, não criava propriamente
honras, mas coutos (o que no séc. XII se exprime nos diplomas pela frase
«facio cautum», e não «facio honorem»).

Sendo a entrada de oficiais da coroa na imunidade, ou, digamos, na


honra (melhor diríamos ainda, na «quintã»), uma «desonra» para o nobre, e
por isso, uma vergonça (1), o único caminho que o nobre tinha, para tal evitar,
seria atingir o privilégio limite – o do couto limite: este, pois, o procedimento a
que aquele sentimento teria de levar. Neste conspecto, o couto seria o
acautelamento da «honra» (2), a sua defesa contra os funcionários régios,
como princípio (3), e contra o fisco

__________

(1 ) Já demasiadas vezes temos apontado o facto e o temos documentado: Inq. 4391; Vim.
3532; até para vilãos privilegiados, como o cavaleiro municipal, que «stet honoratus», na sua «casa
honorata» como fora dela: «qui percusserit vel desonraverit cavallarium» (Leg. 397).

(2 ) A palavra «couto» vem do lat. cautum, de caveo «acautelar». A origem da palavra,


apesar desta perfeita conformidade fonética, tem sido discutida, muito como reflexo do desconhecimento
da essência do «couto». Nos latinismos tabeliónicos, aparece por vezes captum (de captare, «capturar»,
1113, Leg. 375), Inq. 6191; mas isto só pode significar o desconhecimento da origem já então e a
interpretação à luz de um dos privilégios essenciais do verdadeiro couto – dentro das suas balizas não se
fazerem capturas, tal como se exprime na mais antiga concessão de teor conhecido: 1097, «ut nullus
homo ibi ingrediatur pro malefaciendum» (DC 864), expressão que, evidentemente, não se refere apenas
a este caso. Em cautum e captum temos em nosso ver simples paronímia da segunda destas palavras
para expressão latina.

(3 ) O sentimento de «honra» ou «desonra» era levado tão longe que, muitas vezesm não
se tratava de uma questão de cumprir ou não cumprir os encargos, e até, por vezes, nem de funcionário,
porque, rejeitando-se o de uma certa categoria, já se admitia outro, ou com outra. Basta um exemplo:
certo lugar «tragem por onrra que nom entra hi o moordomo mays entra hi o porteyro; pero peytam ande a
voz e a coomia os vilãos, se a facem, mays penhora-os o moordomo fora, ou senom penhora-os com o
porteyro pela voz e pela coomia... mays nom entra alá o moordomo, mai sol que os colhe fora penhora-os
e enfia-os perante o juiz... ou, se er quer, o moordomo penhora-os com o porteyro e leva-os deante o juiz;
mays pero nom querem os filhos de algo que alá entre o mordomo»: TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 33 v. (O
juiz, claro está, é o magistrado régio, o da «terra»).

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como resultado – ou, enfim, uma honra no máximo ou mais lato privilegiamento
(situação limite que serviu à definição dionísia de couto tendente ao entrave ou
prática impossibilização de criação de novas situações análogas).

Consequentemente, o couto que chamaremos simples, isto é, o couto


em que pelo menos se pagava foro à coroa, teria de tomar o caráter da honra
(a escusa desse «foro»), para se atingir num couto o limite àquele desiderato:
neste caso, o complemento do couto pela honra; no outro, a extensão desta
àquele. Verdadeiros cautum honor e honor-cautum, respetivamente – e daí,
além da confusão de honra com couto, muitas vezes a dipla designação para
uma mesma imunidade, como temos visto.

Para atingir tal objetivo, o comportamento do nobre teria de ser, com


frequência, violento: para além da proibição de entrada dos extratores fiscais,
os assassínios e as mutilações de que estes, muitas vezes, eram vítimas ( 1).
Isto fazia retrair os mordomos da coroa, dei-

__________

Por vezes, o pundonoroso da questão era tão claro, que não se admitindo ao mordomo a entrada,
admitia-se a do porteiro, que faria dentro as penhoras e as entregaria fora àquele: «non intrat ibi
moaiordomus sed portatius pignorat pro ea et dat pignore maiordomo in loco qui dicitur Ruvios, et hoc
factum est propter multos honores que ibi sunt de veteri», Inq. 14532.
(1 ) Não se tratava, propriamente, de ferocidade, embora instintos desta se não possam
negar, mas de pundonores nobres agravados, uma «desonra» ou a «vergonha», como nos seguintes
casos:
- Na honra de Arões (Maia), o pai de Gonçalo Babilom («stirpe» dos Babilões, Scr. 382), senhor
dessa honra, porque «entrou hi hum moordomo a penhorar», tirou-lhe um dos olhos e matou-o.
- Na honra da «stirpe» dos Gulfares )«milites Gulfares», Inq. 527, 5521), entrou um mordomo «a
penhorar hi e levou ende hua pelle, e foi (o senhor) depós elle... e matou-o no rio de Leça» (Inq. de D.
Din., Corp. Cod. I 236).
- Numa honra da «stirpe» dos de Riba de Vizela, «soya hy entrar o moordomo e cegou-o Duram
Martins» (filho de Martim Fernandes, Scr. 347).
- A outro mordomo, conduziu-o um senhor preso a toda a volta da honra, dizendo-lhe, em cada
marco que nesta pusera:«Ca por aqui honra!», e acabou por enforcá-lo; e a um outro cortou-lhe as mãos
e enforcou-o também (TT Inq. de D. Din. L. 1, fl 75).
- Uma violência deste género criou mesmo um topónimo que subastituiu Busto Covo. O senhor
da honra prendera um mor-

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xando de vez de entrar, ou então executando aí o porteiro da coroa o que
àquele competia, o que já não era tomado como tão grande «desonra» –
certamente pela mais elevada categoria do funcionário. Este, no que toca às
imunidades, atuava positiva ou negativamente, em condições que são
sobretudo as dos dois primeiros casos seguintes:

1º Quando num lugar «nom entra hy moordomo mays pero entra hy o


pporteyro» (1): Estamos no caso da honra simples: o senhor tem nela o seu
vigário ou mordomo privativo, mas que nada pode aí exercer que impeça ou
sequer substitua a função do porteiro régio, representante da soberania real.
Quer dizer, total ou, por vezes, parcialmente (porque ainda nisto se notam
diferenças ou matizes), não há aí «foro» à coroa; mas há a «peita», a jurisdição
pelo menos criminal daquela (a voz e coima).

2º Quando num lugar o senhor «trage hy o seu vigario e nom entra hy o


porteiro, ergo se nom quer chegar o seu vigairo» (2):

__________
domo (que nela entrara) ao rabo de um cavalo, e assim o fez arrastar por todo o perímetro dela, até tornar
ao sítio de partida: daí o topónimo Tornar (TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 67 v).
- O senhor de uma «quintã» em Valbom (Gondomar) ameaçava o mordomo de lhe cortar as
mãos e de o transformar em marco da honra: «si ibi intraret vel pignoraret ibi aliquod, quod cinderer ei
manus et quod faceret de illi marcum»; e, também ali o senhor de outra «quintã» chegou a ligar as mãos
de um mordomo a um madeiro, para lhas cortar: «quod non miteret ibi pedem quia cortaret ei manus, et
filiavit ei manus et possuit eas ligatas in uno madeyro et voluit eas cindere»: Inq. 5181.
Sem se tratar de honramento desrespeitado, mas de um nobre da estirpe «de Moles», ocorrido
no Alentejo (onde ele deveria ter agravado um concelho, que reagiu expulsando-o do termo): «foi o que
matou os doze homeens melhores que morávom na villa de Alter do Chão por desonrra que lhe fezérom
correndo com ele: e el querelou-se a el rey dom Afonso o quarto e (este) nom o quis estranhar (aos
munícipes) e el filhou vingança» (Scr. 300).
(Aqueles e muitos mais exemplos nas inquirições de 1220, 1258 e 1288).
(1 ) TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 33 v.
2
() Vim. 3492. A isto se chama «chegar o senhor da honra», para isso utilizando o seu
vigário ou «chegador»: Vim. 3602 – o que evitaria a entrada do mordomo nos limites da honra.
O termo «chegar», além de significar a «entrega» ou pagamento dos direitos reais, tem ainda o
sentido de citar – o que se

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Temos ainda o caso da honra simples, mas com um certo matriz de couto: se o senhor
promover as «chegas» (citações e entregas dos réditos criminais que competiam ao
porteiro e pelas quais este deveria aí entrar) utilizando nisso o senhor o seu mordomo
próprio ou vigário (que «chegará» e entregará ao porteiro nos limites), o porteiro não
entrará na honra; caso contrário, o porteiro entrará.

3º Quando num lugar «peitam a voz e a coomia mays nom entra alá o
moordomo, mai sol que os colhe fora penhora-os e enfia-os per ante o juíz» (1): temos
ainda uma honra, que mais que o caso anterior se vai aproximando do couto: não é
permitida a captura dos delituosos dentro dos limites.

__________

compreende como também relativo a coimas (sobretudo os casos crimes) e estas resultariam de
julgamento ou de casos imediatos de direito: 1342, «homem que vem a juyzo perante o juyz, ao dia do
concelho, sobre aquela cousa sobre que foy chegado…enom foy chegado com sa molher»: Inéd. de Hist.
Port., IV, 588; «o dicto abbade metia mordomo no dicto couto... para fazer as chegas e as penhoras e as
entregas»: 1335, LDT 123. Neste enunciado, as «entregas» são as «chegas» no outro sentido (o
pagamento), e as «chegas» enunciadas são as citações: ou, sucessivamente, pois, a citação, a penhora,
a solvência.

Esta circunstância ocorre mesmo em grémios populares. Por exemplo, as três freguesias da
Montaria (serra de Arga), arrendadas anualmente com a coroa nos três casos crimes considerados aí
mais graves («rouso et merda et morte», Inq. 3342, isto é, estupro, a dita atirada à pessoa, e o homicídio,
respetivamente), deveriam fazer as respetivas «chegas» ou entrega chamando o mordomo da coroa, sob
pena de esta ficar com todo o valor das coimas (cuja metade pertencia ao grémio local):: «se o nom
quiserem chegar a dereito» e «se nom quiserem chamar o moyordomo del rey» são aí expressões
sinónimas (Inq. 3351 e 3361). Até nestes casos humildes o mordomo não devia ultrapassar os limites de
cada lugar – tal como sucedia em Viana: a renda da coroa dever ser paga («chegada») «in cabo de vestro
cauto», diz o rei no foral deste grande concelho (1258, Leg. 692).

(1 ) TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 35 v. Já um pouco atrás pudemos anotar este caso como
demonstrativo da execração nobre pela entrada de um funcionário inferior (o mordomo), e não
propriamente pela jurisdição da coroa (com entrada consentida do porteiro, ou do mordomo deste desde
que acompanhado deste), Esta execração revela-se ainda em casos em que o senhor, para não ver o
mordomo dentro da honra, dá «algo ao porteiro» para qye ele «chegue» (Vim. 3671).

__278__
4º Quando num lugar «nom entra hy o moordomo nem peitam ende voz nem
coómia» (1): temos o caso do couto e da honra evoluída ou equiparada a couto, pela
dispensa do «foro» e a da «peita» (2).

Nas condições expostas e que a cada passo têm os seus exemplos, podemos
resumir linearmente esta nossa doutrina em relação a dois dos três modos de sujeição
à coroa (a milícia de qualquer tipo, o foro de qualquer tipo e a peita criminal – o
triónimo dionísio).

- de um lado, a honor (imunidade apenas de foro), e a honor-cautum, uma


evolução da honra a couto (imunidade no foro e na peita);

- do outro lado, o cautum (imunidade de peita, ou uma jurisdição senhorial), e o


cautum-honor, caso limite em que o couto assumira as prerrogativas da honra
(imunidade de foro).

- o caso intermédio, em que a honra vigora e há uma imunidade de couto para


os moradores, mas só dentro dos limites (não no exterior»: é a villa honorata (3).

O matiz da villa honorata merece, porém, algumas considerações, sendo que,


muito facilmente, poderia assumir a função ou caráter de couto, por ação senhorial.
Assim, em Ajude (Lanhoso), encontra-se mesmo o caso notável de ser uma «villa per
se», o que quer dizer de jurisdição própria (com o seu juiz), e, ao mesmo tempo, em
1220, «villa honorata», que em 1258 se diz havia sido «honor» de certo rico-homem
do séc. XII, com uma parte

__________

(1 ) TT Inq. de D. Din., L.4, fl 35 v.

(2 ) Por vezes, esta dispensa explicita-se: «per razom desta quintã tragem por honra toda a
villa, assy o regaengo de el rey como todo o al, que nom entra hi moordomo do caritel nem peitam voz
nem coomia»: Vim. 351.

(3 ) Note-se que esta classificação não excluía considerar-se honra efetiva o lugar: 1258
«fuit et est villa honorata et fuit honor de domno Johanne Rania» Inq. 9661; 1258 «est villa honorata et fuit
honor de Domna de Sandi», Inq. 10161; 1258 «est honor vetus domni Petri Pelagii alferez» IS 14402,
dizendo-se em 1220 «est villa honorata» IS 1141. É também de notar a qualificação domus honorata, que
pode ser o paço de villa honorata: 1258 «fecit ibi (certo nobre, em prédios obtidos) noviter domum
honoratam super regalengum domini regis» IS 14112.

__279__
pertencente à coroa (1). Estas circunstâncias mostram a transformação cautum – villa
honorata – honor, sucessivamente – ou, em resultado, cautum-honor (2).

A honor simples procedia, em geral, da própria qualidade nobre do senhor (3);


mas, de abuso em abuso, poderia atingir o grau completo, o de honor-cautum. O
cautum simples procedia em geral de um ato régio, como também o cautum total (tudo
dependendo da extensão das suas imunidades) (4), mas também podia por abusos
chegar-se ao grau completo, o de cautum-honor – que equivalia à honor-cautum no
exercício ou na função, com a só diferença de esta não proceder da autoridade régia.

Como bem se nota, a definição destas variantes da

__________

(1 ) De facto: 1258 «fuit honor domni Egee Fafiz» IS 14971 (D. Egas Fages, Scr. 329; 1146
D R 214), com doze casais povoados, um deles reguengo e os outros de mosteiros: seis do de Bouro,
três do de Fonte Arcada e dois do de Rendufe, sendo da coroa a sexta parte da «villa». Ora em 1220,
quanto a casais, o que se encontra aí +e que eles são do mosteiro de Rendufe (dois), do de Fonte Arcada
(só dois) e da igreja de Pousada (um), além de menos de meio casal da igreja de Ajude, citando-se o
pároco, o juiz do lugar e cinco testemunhas das inquirições, sem outros moradores («et non sunt ibi
plures») – e dizendo-se que «rex nullum habet ibi forum quia est villa honorata», IS 571, 1461 e 2472. Não
interessa aqui a crítica à grande alteração operada entre 1220 e 1258 no número de casais e nos seus
detentores: o que deve notar-se é que a «villa», tendo jurisdição sobre si, é imunidade nobre (villa
honorata em 1220, dita honor em 1258 para o séc. XII) e que a nobreza não possuía prédio algum seu,
devendo, porém, entender-se que os dos mosteiros são da avoenga da estirpe (pelo menos os de
Rendufe e Fonte Arcada, Scr. 329) e era esta, pois, que os imunizava e não os detentores atuais. A
circunstância foi certamente, o motor principal da imunização ao grau de couto (cautum-honor, embora
por intermédio de villa honorata). Ver a nota seguinte.

(2 ) Deve notar-se que o facto de Ajude se qualificar em 1220 villa honorata e em 1258
honor antiga não significa que primeiro fosse honor. Além de a jurisdição em imunidade (como é o caso)
significar o cautum, mesmo que o juiz fosse de eleição popular, o dizer-se honor significa apenas o
privilégio senhorial (sem ser preciso sequer pensar que se trata da vulgar indecisão, já vista, entre
cautum e honor).

(3 ) Relembremos que igualmente poderia proceder de ato régio, o único com legitimidade,
como vimos. É o caso da honorificação de uma «villa» em montaria apenas, em 1117, ao mesmo tempo
que era coutada (DR 49).

(4 ) O caso do couto de Santo Tirso, em 1097: «cunctas hereditates (nostras) et homines;


calumnis omnibus cum karacteribus, (caritel) simul omne vectigale nostrum, tributumque et fiscalia
regalitas», diz o conde D. Henrique (DC 864).

__280__
imunidade repousa suficientemente em dois dos três termos do trinómio dionísio: o
foro e a peita. A milícia, como já vimos, não tem importância distintiva, dado que,
tratando-se sempre de uma classe militar, como era a nobreza, tal encargo existia em
qualquer caso (1) ou em condições que para aqui, pois, não importam.

Já uma vez por outra nos temos referido à indecisão corrente dos conceitos de
honra e couto. Este esquema pode dar a compreendê-la, mas ao mesmo tempo pode
estabelecer distinções que não seriam imediatamente nítidas nem mesmo aos
referenciadores da época – falta de nitidez essa que já em 1150 se documenta:
«cautum cautatum cum iurisditionibus aliorum cautorum sive sint cauta sive onore» (LF
687). As próprias «onores» são aqui integradas no conjunto «cauta», manifestando-se
neste mesmo exemplo designadamente «em lutuosas, jeiras, palhas, serviços e rodas
as demais condições sob que nos outros coutos os moradores e habitantes fazem e
servem «dominibus suis», aos seus senhores (2).

É este um exemplo documental de caso limite (cautum-honor) de instituição


real, pois há sabemos que podia haver cautum sem haver honor, mas esta vir a
estabelecer-se nele por iniciativa do senhor: couto, pelas iurisditiones; honra, pelo
mais – que são, de facto, sobretudo foros (3).

__________

(1 ) Mesmo em coutos de mosteiros, como o de Pendorada: 1258, «homines de couto ipso


fuerunt cum eo (rege) in oste, et modo non vadunt iiluc», Inq. 13811.

(2 ) Um outro exemplo digno de nota (DR 153, que pertence ao séc. XII-XIII, embora
pretenda ser de 1135), é o de certa quintana que «est honorata», sem «pectare calumniam vel vocem
(por isto, uma honra): uma honor-cautum; e, por isso mesmo, é ela designada pela sua origem (honor).
Se essa origem tivera sido cautum simples, chegar-se-ia ao resultado equivalente, cautum-honor.

(3 ) Claramente aqui contrapostos às iurisditiones (essenciais ao cautum) estão os encargos


respetivos às atividades agrícolas: portanto, ao foro. As jeiras deviam ser sobretudo dias de trabalho
(certamente gratuito) nas terras do senhor; e a importância das palhas (para lojas e sustento do gado,
estrume, cobertura de casas, leitos, etc.), era, como se vê, tal que até se citam especialmente neste caso.
De lembrar, pois, o das disposições superiores de 1342, sobre a tomadia de palhas pelos senhores de
dez honras (Fonseca, Cardoso, etc.) em S. Martinho de Mouros, cada uma das quais tinha os seus
lugares para isso e regulada neles a quantidade – «hum feyxe da eyra», por cada «casa de lavrador»:
Inéd. de Hist. de Port. IV, 594-596.

__281__
Toda a doutrina deste capítulo (preparada pelos anteriores) poderá
esquematizar-se no seu complexo de atos régios e atos nobres (e ainda de iniciativa
popular), com a duplicidade genética, nobre e régia, das evoluções (estas, geralmente,
resultado de abusos da nobreza), e ainda com as equivalências que explicam as
indecisões do emprego de honor e de cautum em frequentes casos:

Tudo o que temos doutrinado respeita à essência da instituição senhorial,


nestes seus vários aspetos. Não é, porém, menos fundamental definir-lhe um território
– o dominicum, onde inter-reagiam dominium e hominium senhorio e «vassalagem»,
ira harmonicamente ora contrastando-se.

Mas, transitando, antes disso, do material ao propriamente espiritual, para


assim completarmos o conjunto circunstancial que leva à compreensão deste assunto,
poderíamos repetir textualmente um passo de um dos capítulos anteriores, capítulo
esse dedicado à residência senhorial e passo por neste momento assume toda a sua
capital importância. Bastar-nos-á porém transcrever dele o seguinte: «Daí que a honor
sentimento pessoal, se haja convertido em designação dominial, no que a casa
representava de centro irridiador de quantos os privilégios próprios do nobre ou dos
que ele se tem por credor. Enfim, pois, a quintã o núcleo domnicum, urbano (como
casa de morada, como paço), o foco do dominium em irradiação; e também centro
atrativo de hominium. Mostra-o assim tudo o que fica, dispensando exemplos – mas
nem estes diretamente faltam. Baste-nos o seguinte:

__282__
A paróquia de Seixelo (do julgado de Gaia), certamente por antepassados, fora
honra de um dos mais altos próceres dos primeiros decénios do séc. XIII, D. Gil
Vasques («de Soverosa»); «tragia dom Gil Vasquez toda esta freeguesia por onrra» –
mas ele apenas, apesar de possessões de uma irmã (D. Alda Vasques) (1). Ora o
notável para a questão é que, já em tempos desse senhor, todos os casais da
freguesia pertenciam a três «ordens» (mosteiros de Grijó, Pedroso e Santa Maria de
Rocamador), sendo de D. Vasco e da irmã já só o paço – e este mesmo foi pelos dois
irmãos alienado (ele tendo doado a sua parte a Rocamador, e ela a sua a Grijó). Nos
finais do séc. XIII, a honra mantinha-se, mesmo assim, senhoriando-a cerca de 1290
D. Maria Anes, mas esta, portanto, já não tinha possessões algumas, propriedades
suas; e, assim, a honra não resistiu às inquirições: D. Dinis ordenou a sua devassa (2).

Quer isto dizer que, enquanto os senhores tiveram bens e até só a casa, a
honra conservou-se: alienada mesmo a casa, a honra desapareceu – tal como com a
pessoa desaparece um sentimento; e eis a identificação ou identidade quintã = honra
bem um facto. Extinto, com efeito, totalmente, o dominium pela última alienação no
domnicum (a do paço), não se justificava já o dominicum – e, com este, o
correspondente hominium. Assim, tudo indica que a categoria nobre não teria sido o
bastante para o honramento, uma razão reconhecível como tal: seria precisa, ao
menos, ainda a residência, habitada – com permanência ou sem esta, mas existente.
E esta conclusão está perfeitamente de acordo com o teor da pergunta sacramental
daquelas inquirições, à qual, por várias vezes, nos temos reportado: «se há casa de
cavaleiro ou de dona que se defenda por honra» – e, não menos certamente

__________

(1 ) Inquirições de D. Dinis in Corp. Codic. I 326. A referida D. Maria Anes deve ser uma
neta de D. Gil Vasques – filha de D. Guiomar Gil (a tia desta, D. Alda referida, não teve descendência,
Scr. 295), apesar de os livros de linhagens apenas lhe indicarem dois filhos e duas filhas diferentes desta
(Scr. 195), o que não surpreende, dado o seu caráter com tanta frequência omisso.

(2 ) Para mais perfeita concordância com a nossa doutrina, é de notar que nesta honra de
Seixeselo tinha entrada o porteiro da coroa (mas não o mordomo), o que concordantemente incide noutro
ponto essencialíssimo da nossa tese.

__283__
também de acordo com a invariável resposta, no caso positivo, «há hi h~ua quintãa»,
etc. É que, havendo a casa, havia a honra – ou poderia havê-la.

Passemos, posto isto, à definição da área imune.

O ponto de vista territorial a que nos referimos decorre, naturalmente, dos


processos ou meios sob que os honramentos pela ação régia eram feitos, meios esses
expressos na estrutura de interrogações nas inquirições de 1258, tais como: «si est
onrata per cautus vel per pendonem domini regis, vel si per patrones vel per cartam
domni regis» (1).

Em qualquer destes casos, sempre o duplo resultado essencial: um


privilegiamento sobre os bens próprios do nobre (dominium) e a sua determinação
territorial ou geo-humana (dominicum); e ainda um duplo meio: o pendão real ou a
carta régia, para aquele, e os coutos ou os padrões («lapides cautales», DP 158,
pedras afeiçoadas que serviam de termini ou fines), para este. Mas, como dominium e
dominicum não podiam existir separados, a um processo de instauração «dominial»
teria de corresponder um de definição «dominical». Por isso mesmo é que, por
exemplo, uma honra estabelecida por carta (criação de dominium) é sempre
demarcada por padrões ou por coutos (definição do respetivo dominicum), os quais
estabeleciam as «divisões». Deve notar-se, desde já, que, de preferência a «honra»,
deveríamos considerar aqui «couto» – o que até devia suceder com aquela expressão
inquiridora (a qual estabelece, aliás a sinonímia imediatamente, com a palavra
«cautus», designativa das lápides).

Sendo as lápides designadas, nessa mesma frase, por «coutos» e por


«padrões», isso, necessariamente, estabelece alguma diferença. Esta, porém, não
pode ser material (eram sempre de pedra – e daí a designação genérica «lápides»),
nem deve ser de forma ou dimensões (as subsistências não as mostram), pelo que
temos de procurar a solução na própria frase que examinamos, a mais completa que
sobre o assunto se tem.

Parece-nos nela evidente uma dicotomia «si – vel si»

__________

(1 ) Inq. 5211.

__284__
que nos deve permitir pensar que ao processo «dominial» do pendão correspondia o
«dominical» dos «coutos», e que, portanto, ao «dominial» da carta o «dominical» dos
padrões. E que assim deveria ser nos parece provar-se com o facto de todas as
imunidades criadas por carta, diploma régio, serem ditas «por padrões» (1).

Isto o que, realmente, nos parece deixarmos provado: mas qual a razão de tal
diferença? Como o fator material (as lápides) é o mesmo, e o mesmo o resultado dos
atos (o privilegiamento de uma certa área, com suas populações), não podemos deixar
de entender, na razão a achar, um certo grau de subjetividade, visto tratar-se sempre,
neste caso, de uma só origem, um privilegiamento por autoridade real. O pendão, que
continha sempre os «sinais de el-rei» (2), apenas deveria usar-se em casos de
especial solenidade, a qual lhes daria só a própria presença do soberano, isto é,
quando esta não fosse possível. O pendão representaria naturalmente a pessoa real
(3); e, bem de acordo com o facto de os atos reais de privilegiamento serem sempre
designados couto (sempre «facio cautum», e nunca «facio honorem»), está, pois, a
designação «coutos» para as lápides demarcadoras. É expressivo este caso de D.
Afonso Henriques: 1135, «cautatum de petra que in presentia mea posita est» (LF
687).

Certo é que a carta (o diploma) procedia também da pessoa do rei: mas ela era
mais uma emanação deste,

__________

(1 ) Quase invariável, a afirmação «est cautum patronos» em casos de que se conhece a


carta, o diploma régio instituidor: 1258, «Azer é couto per padroes et o cautou a rayna domna Tarasia»;
Inq. 3801, e, de facto, foi feito em 1125 por ela (DR 70), para não darmos senão um exemplo a esmo.
Uma expressão como «Varzea é onra et non é per padroes» (Inq. 4041) vale o mesmo na negativa –
certamente honra por categoria nobre.

(2 ) Estes sinais até em vestuários de pessoas afetas à família real aparecem, como no
caso de uma ilustre senhora que, em 1348 se dizia «criada» de D. Afonso IV e da esposa: «vestimentas
com sinaes de el rey e (= sc.) com castellos de ouro» (doc. Hist. Gen. – Pr. I, p. 134).

(3 ) A presença do rei far-se-ia por «apeegamento», o percurso do perímetro «a pé», o que


não evitaria se viesse a fazer o cavalo, como procedeu D. Sancho I em pessoa quando fez delimitar o
núcleo do Castelo, em Guimarães: Inq. 7362. De notar que este caso pertence ao privilégio popular.

__285__
não um ato de presença, que só o pendão, simbolicamente, poderia executar.

A multidão de casos conhecidos permite-nos estabelecer tal regra. As


exceções, que há (1), devem-se ao grau já prevenido de subjetividade destes
procedimentos (2). De resto, elas pertencem ao campo das imprecisões da
terminologia medieval.

Nos casos em que o nobre atuava por si mesmo, por sua categoria pessoal, ou
seja, sem carta nem pendão, nunca a designação «coutos» deveria aparecer (3): como
havia apenas outra (4), «padrões», para as imunidades, será essa a que tem de
encontrar-se em tais casos (5) – se é, como nos parece, acertada esta nossa solução
de uma questão que os historiadores não têm resolvido (6).

__________

(1 ) 1187 «karta firmissimi cauti... ex inde ad cautum» – e citam-se dez cauta: Docs. de D.
Sancho I, nº 26.

(2 ) Até nos «coutos» populares o procedimento era o mesmo e idêntico o significado. D.


SanchoI ordenara ao seu delegado em «terra» de Froião (o rico-homem D. Martim Peres), fosse «erguer
os coutos» de Valença; e aí, de facto, se «pusérom os padroes» do couto municipal (Inq. 3652). A carta de
foral, que era o diploma de privilegiamento popular, explica a designação «padrões»; mas certamente o
uso do pendão real no ato (já que o rei não estava presente) explica a de «coutos» (além de se tratar de
um couto municipal). Poderiam, de certo modo, existir, pois, casos mistos – que só abonam o nosso ponto
de vista. Num caso de presença real, a designação não é uma nem outra, como no caso do couto de
Santa Senhorinha (Basto) por D. Sancho I: «pedibus meis ipsa loca perambulavi et... vidi petras erigere
jussique per manus domni Gundisalvi Menendi (de Sousa) qui tunc temporis princeps erat» (tenente de
Basto), Docs. de D. Sancho I, nº 130 (ano 1200). Todavia nas Inq. 661-662, não se cita este couto.

(3 ) Notem-se estes dois casos, respetivo um a uma honra: 1258 «é onra de cavaleiros et
non per el rey, et an-a de uso» IS 3762; e o outro a um couto: 1258 «é couto et non é per padroes nem
por carta, nem dixérom qual rey o coutou» IS 3771 – ambos os casos de iniciativa nobre, como
transparece.

(4 ) Usava-se a de «marcos» (certamente, como hoje, sem qualquer forma ou dimensões


especiais, que já havia nos padrões e nos coutos) para limitação de áreas reguengas e de prédios
reguengos avulsos (considerados, pois, «per seus defiimentos», palavra derivada do lat. fines: Inq. 3031,
etc.).

(5 ) O caso do miles Soeiro Peres, da estirpe de Azevedo, que, em prédios que ele
comprara a certo herdador vilão, fez honra, e nela «chantou padrões» (Inq. 3262).

(6 ) O caso da delimitação dos termos dados ao Castello em Guimarães por D. Sancho I é


digno de especial nota neste assunto:

__286__
Não deve acrescentar-se aos processos indicados um que, além deles, se julga
– «per termini» e, sobretudo, «per divisiones» (1). Trata-se de uma simples designação
genérica dos sinais materiais de qualquer espécie ( até sinais de cruz, etc.), utilizados
na demarcação, e não de um meio particular de honramento ou de coutamento em
direta relação.

De facto, esses termini ou divisiones podem significar a demarcação da


imunidade diretamente, isto é, terem sido criados ou definidos para ela; mas as mais
das vezes tratar-se-á de limites que ficaram servindo à imunidade porque já eram os
da «villa» ou mesmo da paróquia (conjunto de «villas») a que essa imunidade ficara
correspondendo. Bastam estes dois exemplos de 1258:

- «in ipsa collatione (freguesia) nec judex nec maiordomus non intrat ibi, nec
domino regi non faciunt ullum forum, propter honorem domni Gonsalvi Sause» (D.
Gonçalo de Sousa, alto prócer sousão afonsino, cuja última notícia é de 1166 DR 290):
«Interrogatus si est onrrata per pendonem vel per cartam aut per cautus, dixit quod per
divisiones, et semper fuerunt cautati omnes morantes ibi» (2). Trata-se da paróquia de
Carvalhosa (c. Paços de Ferreira), a qual, de facto, em 1220, surge sem reguengos
alguns e sem foro algum à coroa (3):

__________

Aquele rei «autorizavit predictos terminos et ambulavit equitatus cum multis militibus et cum aliis bonis
hominibus... ponere pedes equi sui per divisiones predictas». Esses termos não foram pois dados «per
cartam vel per cautos sive per aliquod strumentum» (Inq. 7362). A dicotomia a que atrás nos reportamos é
estabelecida aqui por «carta» sem se referirem os padrões correspondentes, e por «cautos», sem se
aludir ao pendão; mas os meios omissos estão incluídos em «aliquod strumentum». Estando o rei em
pessoa, nada mais se exigia num ato testemunhado por várias classes sociais, incluídos os moradores; e
assim entravam no uso – o título mais tarde aí invocado: «sempre uti fuerunt». Não é esse o caso da
ausência do soberano, que, por exemplo, está em «honoravit ei (cuidam militi) loca ipsa cum suo
pendone» (GB II 501), no que se exprime que o pendão era arvorado, sucessivamente, e sucessivamente
transportado de local para local a prover de marco.

(1 ) «per divisiones, et sempre fuerunt cautati omnes morantur» – coutados numa honra (de
D. Gonçalo de Sousa): Inq. 5582.

(2 ) Inq. 5582.

(3 ) Inq. 712 e 1641.

__287__
as «divisiones» são as das paróquia – ou, portanto, pré-existentes à honra: pelo
menos, não fixadas para efeitos precisamente desta. Note-se a dicotomia estabelecida
por aut e que define a correspondência «pendão-coutos», mas não como se entende,
uma correspondência «carta-padrões», pois deve tratar-se de honramento por
qualidade nobre. Em vez de padrões, citam-se as «divisiones», sendo lícito, assim,
entender estas como padrões.

- «herdatores morantur in ipsa villa XVII. (famílias), et non faciunt ullum forum
domino regi quod tota illa villa fuit domni Subgerii Menendi Boni quod tota illa villa fuit
domni Subgerii Menendi Boni quod est onrrata» (D. Soeiro Mendes o Bom, da alta
estirpe maiata, já falecido em 1133 LF 441) (1): Interrogatus quis onrravit cam, si est
onrrata per cautos vel per pendonem vel per cartam domini regis, dixit quod non, sed
semprer ita fuerunt per terminos suos nominatos quod habent» (2). Temos o caso
anterior, mas este respeitante apenas a uma «villa» (Aboim, f. Rebordosa, c. Paredes):
os termini nominati são os limites dela e que ficaram sendo os da honra (significando
nominati, não que tivessem sido nomeados – pois o não foram –, mas, precisamente,
a sua independência da imunidade em origem, de acordo com serem eles «suos», isto
é, da população), nada também impedindo aqui, pois, tratar-se de padrões.

De qualquer modo, no caso de um dominicum de tipo geográfico em que não


tenha havido ato régio de privilegiamento, o que tudo sucede nestes dois casos, as
correspondências «pendão-coutos» e «carta-padrões» não têm de ser encartadas,
visto não ter havido carta nem pendão; mas os termini ou divisiones devem
considerar-se «padrões» neste caso, como se a carta de imunidade tivera havido (3).

__________

(1 ) Scr. 277.

(2 ) Inq. 5761.

(3 ) Assim nos parece de numerosos casos, sendo de comparar estes dois, em localidades
vizinhas (atual c. de Guimarães): Oleiros, 1258 «alii vero heredadores deffendunt se (do foro à coroa) per
cautum cautatum per patronos domni Petri Escachia» IS 14812; e Lanhas, 1258 «est cautum cautatum per
terminos... domni Pelagii Goterriz et domni Petri Escacha» (seu filho) IS 14812. Este segundo caso é de
freguesia inteira, e, portanto, as divisiones são as dela transmitidas ao couto, coincidente – enquanto que
o couto do primeiros caso é só parte da freguesia, o que explica ter sido necessário

__288__
Nestas circunstâncias, parece-nos compreender-se um certo caso de
honramento inquirido «si per pendonem sive per cautus sive per cartas» e respondido
«nunquam inde vidit carta nec cautos» – o que exprimirá, pois, uma contraposição
destes àquela, ou seja, a correspondência dos «coutos» ao «pendão» (que entrara na
pergunta mas não se mencionou, diretamente, ou correspondentemente, na resposta
(1).

A colocação das lápides era, pois, sempre um ato solene, no qual se


pertetuava o caráter sagrado originário dos termini ou fines na época romana: daí, na
Reconquista, e já entre nós, quando não a presença do rei e de gente da sua corte
(laicos e eclesiásticos) (2), a de altos funcionários – desde o rico-homem da «terra» e
do sobre-juiz régio (ou do juiz da «terra») ao porteiro da coroa (3).

A honra «por pendão» do rei deve ser uma sobrevivência do uso do «albende»
régio nos latrocínios autorizados durante cerca de um século (a partir de 868), os
quais foram e ficaram sendo, eufemisticamente, chamados «presúria» (4), tão
ingenuamente, em nosso ver, encarada pelos tratadistas.

Quanto à pergunta «si est honrata per pendonem»

__________

nela assinalá-lo (por padrões, para distinguir das divisiones paroquiais). E que as divisiones deviam
também ser patronos mostra-se, ainda aí, no caso de Ronfe, pois toda a freguesia era «cautum cautatum
per patronos... erat cautum et honor domne Gontina Petri» IS 14831. Assim, no caso de coincidência de
limitações paroquiais e de imunidade, poderiam referir-se indiferentemente divisiones e patronos. E, de
facto, na f. Parada de Bouro (toda ela), 1258 «est cautum cautatum per patronos divisos» (por D. Sancho
I à sua amante, a Ribeirinha. D. Maria Pais) IS 15061; «padrões», pois, correspondentes às «divisões» já
existentes – tanto deve bastar.
(1 ) Inq. 6531. Outro caso, Inq. 6602, etc.
(2 ) 873: «previsores (terminorum) sapientissimos», LF 16; conde e bispos testemunhantes,
911 (LF 19); Inq. 6572, 7362 etc.
(3 ) «in vice mei portarii lapides eleves et firmes»: mandado de D. Afonso Henriques ao
«justitia» de Arouca (DR 308); «superiudex domini regis venit ibi mittere marcos et cautare ipsum locum
ex parte domini regis» (doc. in Amaral, Mon. V, p. 135); «comes domnus Fernandus lapides erexit», como
tenente da «terra» (DR 319). É neste sentido (ação de coutamento pelo delegado régio ou rico-homem
por ordem do rei) que devem interpretar-se casos como 1220 «domnus Martinus Fernandiz tenebat
(terram) Fariam incautavit ipsam villam» IS 1142 (1258 IS 14402).
(4 ) «cum cornum et albende» do rei: DC 5 e 6.

__289__
ou pelos outros meios referidos se respondia «quod non» (o que na maioria dos casos
sucedia em relação ao já pequeno número de vezes em que ela se formulava
naqueles termos – prova de já no séc. XIII ser pouco comum qualquer desses usos,
quer dizer, a própria ação régia), a conclusão a tirar é que o honramento provinha da
ação do nobre. Foi mesmo esta extraordinária frequência de casos uma das principais
causas das inquirições, desde pelo menos 1258.

Portanto, as «divisiones», seja qual for o modo ou meio por que se


concretizem, demarcando um território bem determinado, definem na imunidade o
dominicum, isto é, como já mostrámos, o correspondente demo agrário ou geo-
humano tanto do dominium, o fator pessoal «senhor», como de hominium, o fator
pessoal «vassalo»: portanto, dominium-domenicum, o mesmo que senhor-terra
senhoriada em correspondência; e dominium-hominium, o mesmo que,
correspondentemente, senhor-súbditos. E assim, naturalmente, também em
correspondência resultam dominicum-hominium.

Honramento «propter dominium» ou «propter honorem», ou mesmo «propter


quintanam» (1), honra «non per el rey» ou honra porque o «ham de uso» (2) – são tudo
expressões quase sempre de uma realidade genética: a qualidade pessoal. E, se o
senhor tinha prédios propriamente seus na honra, ou no seu couto (o que geralmente
sucedia), eram esses prédios, ainda que, outrora, como noutro capítulo vimos, se
chamara dominícum (dominicum).

Finalmente, atendendo ao duplo tipo que estabelecemos no dominicum, o


predial (propter dominium) e o geográfico (propter divisiones), e também a que a
maioria das imunidades procedia da ação pessoal nobre, é o caso de procurar agora
saber se ambos, e em ou sob que condições, como a sua própria qualidade, honrava

__________

(1 ) Inq. 4772, 5582 e 5491, respetivamente. Expressões mais completas são: «propter
dominium militum quod habent» (Inq. 5231) e «propter dominium bonum quod habent (Inq. 5231).

(2 ) Inq. 3761 e 3771, respetivamente.

__290__
o seu casal, ou os seus casais, pela casa ou «quintã», sem, como se tem visto, ser
necessário em tal tipo de dominicum que esses casais fossem juntos, pois podia até
suceder que a casa estivesse fora de qualquer deles, isto é, deles isolada e mais ou
menos distante (quando muito, tendo um horto ou pomar no seu recinto murado) (1); e,
com o seu casal, ou seus casais, ou simplesmente, se mais não tivesse, com a sua
casa, honraria casais não seus, sem qualquer condição de contiguidade neles – sem
embargo de que a extensão a estes poderia suceder ou não, ou seja, de que o
dominicum predial confinar-se-ia, neste caso, aos prédios próprios.

Menos espontâneo, ou, de outro modo, mais por abuso de ação do nobre,
podia estabelecer-se o tipo geográfico, embora, como se compreende, mais
raramente: o honramento, pela mais ou menos forçada aquiscência dos proprietários
dos casais, fazia-se sobre uma área delimitada, conquanto não assinalada (de acordo
com o facto de não se tratar de ação real, que só esta autorizava a colocação dos
cauta ou dos patrones, precedentes as divisiones): neste caso, os limites seriam por
acidentes naturais ou humanos, mas estes bem definidos – para assim se reduzir ao
mínimo as possibilidades de contestações no ao ato ou seja, definindo-o
geograficamente como base e até como justificação para a definição humana.

Temos nestas condições a honra de Arões (S. Romão), no antigo território


vimaranense:

Em 1288, de facto, a honra era afirmada existente «de longe, pelo rego das
Lameiras que vai para Vila Pouca, e ende pelo ribeiro das Lamas que vai para Vila
Pouca, e ende pelo ribeiro que chamam Gonderiz, e ende per sô a quintãa de Crespos
hu moram as mulheres» (esta, uma quintã não nobre: de vilãs herdadoras).

Tal a definição territorial: um dominicum geográfico. A estrutura predial era esta


então: «dentro em estes termos jazem três casaes de Refoyos e hum do Esprital, e jaz
herdade de Joham do Subaco, da qual fazem foro al rey de pam e carne». Quanto ao
funcionamento: «no mais da freguesia entra o moordomo, salvo em os tres casaes de
filhos-de-algo» (2).

__________

(1 ) TT Inq. de D. Din. L 4, fl 33.

(2 ) Vim. 347-348.

__291__
Estes casais dos filhos-de-algo não tinham sido ainda citados (de facto, falara-
se de quatro: três do mosteiro e um da Ordem hospitalária), pelo que, corroborando-se
com a diferença desses quatro, temos de entendê-los como sendo os da honra
primitiva ou, na nossa designação, o dominium inicial e o domnicum ainda atual. Este,
de princípio, pois, um grande casal só – ainda assim sendo em 1258. O dominicum era
predial de início.

De facto, nesta última data, os casais da freguesia são quarenta e dois, mas as
inquirições referem quarenta e um: em vez do restante, lê-se nelas «et quintana est
Martini Egidii et sororis eius», isto é, como em capítulo anterior vimos: dos irmãos D.
Martim Gil, «de Arões», notável nobre de então, e D. Teresa Gil. Temos nesse casal
uma honra do tipo «quintana-casale» (1), e nela entre 1258 e 1290 se fizeram mais
dois casais (2). O dominicum, pois, era de tipo predial e simplicíssimo; mas, depois de
1258, passara a geográfico (por aquelas delimitações – naturais nos ribeiros, e
artificiais no rego e talvez no próprio muro da quintã das «mulheres»), estendendo-se,
nesse perímetro, a três dos cinco casais do mosteiro e a um dos três que eram então
da Ordem, e ainda talvez à herdade do vilão, que dava foro à coroa (3).

Os jurados de 1288 não foram, pois, exatos afirmando «de longe» esta honra:
antiga era apenas a quintana-casale da estirpe; o mais, um abuso recente de um
nobre prestigioso e de poder (4). Compreende-se por ele,

__________

(1 ) Inq. 5511, 5542, etc.

(2 ) Inq. 726-727.

(3 ) 1258 «et tria sunt Hospitalis... et V. sunt monasterii de Refoios»: Inq. 7261; «et de
hereditate de Subaco Johannis Petri (deve ser o mesmo João de Subaco de trinta anos depois, Vim. 3481)
cum sua germanitate, dava-se fossadeira constante de duas varas de bragal e um corazil, mais ou
menos. (Em 1290, diz-se «pam e carne» – esta o corazil; mas, em 1258, em vez do pão, temos o bragal;
e, em 1220, com o pai daqueles indivíduos, somente dois corazis, aproximadamente: Inq. 831). Os
«homines» do mosteiro e da milícia hospitalária e estes herdadores, além do foro devido aos donos dos
prédios, respetivamente o mosteiro, o Hospital e a coroa, fariam «serviço» aos senhores da quintã nobre,
honra de Arões.

(4 ) Foi um dos fiéis de D. Sancho II, e tão pundonoroso que o seguiu no exílio: doc. HP V
79, nota.

__292__
e por aquela declaração, a sentença de 1290: «estee como estaa por honra pelas
divisões de suso ditas» (1).

Um dos temas mais aliciantes deste estudo, um tema que supomos ainda entre
nós não abordado, é o da relação (que por certo existe) entre o aumento do número
das imunidades nobres e o concomitante aumento do das imunidades populares –
uma designação que não duvidamos dar-lhes.

A primeira coincidência encontramo-la precisamente numa mesma época de


primeiras manifestações incontroversas de umas e outras. No que nisso se entrevê de
comum, parece-nos revelar o efeito de incentivos conscientes para a sua conquista
sem cedências, embora a parte popular em condições muito mais desfavoráveis à
partida. Escusado apontar circunstâncias que o mostram, bem conhecido como é o
estado servil de então de uma grande parte do povo, e porque, se neste há numerosos
proprietários, na nobreza são-no, em geral, todos os indivíduos. Esta desigualdade,
em que massas populares se vêem ora privadas de liberdade pessoal, ora sem
qualquer independência económica, ou sem uma coisa e sem a outra, não chegava a
ser compensada pela inferioridade numérica relativa da nobreza: porque, mesmo a
existir equilíbrio quantitativo, a verdade é que era a nobreza que dispunha do poder
político e militar. É no campo administrativo, por isso mesmo, que o povo há-de
encontrar a sua condição isenta, a sua própria dignidade pessoal: o regime senhorial e
o regime municipal defrontar-se-ão, embora por vezes procurem equilibrar-se numa
coexistência local.

Pois que deve tratar-se de um facto que, embora ténue e, sobretudo,


esporádico, é anterior a tal tempo, o início aparente desse regime está nos meados do
séc. XI: encontramos então o deseclipse da nobreza portugalense (nobreza que logo
se manifesta, quando, até então – sob a administração da dinastia condal
vimaranense –, raramente se entrevê, e, mesmo assim, apenas com as pessoas de
alguns membros das que hão-se ser as «stirpes» funda-

__________

(1 ) Vim. 3481.

__293__
mentais da nobreza portugalense) e as primeiras manifestações municipalistas – estas
no próprio burgo de Guimarães (1).

E não há dúvida de que a própria coroa incentivava a constituição de grémios


populares com um grau variável mas sempre apreciável de independência
administrativa. É que, além da sua conveniência em não se servir apenas do braço
nobre, o poder real tinha a necessidade de utilizar o povo no restauro das terras da
coroa (a nobreza não podia ser a indicada para isso) e na defesa contra as invasões
(2).

Como temos acentuado, e é a inteira realidade, os livros de linhagens do séc.


XIII-XIV põem em relevo o facto de as honras e os coutos, as imunidades nobres, se
revelarem sobretudo a partir dos fins do séc. XI. Ora é precisamente também dos
finais do séc. XI que datam os primeiros forais que nos restam dados a terras do
Portugal de então: o de Guimarães (3), imediatamente transmitido a Constantim,
cabeça da «terra» de Panóias (4). Num e noutro, é de um relevo primacial a burguesia.
«Burgueses» de facto, se chama aos munícipes de uma e outra vila.

As classes populares, desde precisamente então, revelam, pois, um duplo


processo evolutivo: sobretudo nas terras fronteiriças, acasteladas, a formação de
núcleos urbanos municipalizados, os coutos populares (coutos, realmente, a
designação que logo se lhes dá, ainda antes, pode dizer-se, de a imunidade nobre
homónima a ter) (5); e a paulatina ascenção a um nível económico que aproxi-

__________

(1 ) Poderíamos lembrar que são daquela mesma ocasião as primeiras cartas de foral
conhecidas a terras hoje portuguesas (Pesqueira, Ansiães, etc., Leg. 343-348), mas que não faziam parte
do Portugal de então.

(2 ) O foro aos castelos da Estremadura (referidos na nota anterior) di-lo expressamente:


«extremitatem amplificare» (Leg. 343-344), ou seja, preservação desta fronteira de Cristãos e Mouros; e
os forais dos decénios seguintes obedecem, quase sempre declaradamente, a tal objetivo.

(3 ) Leg. 350-351. Sobre a anterioridade do concilium municipal vimaranense, ver o nosso


3
AF 187-197.

(4 ) Leg. 352-353.

(5 ) 1102, Zurara (Mangualde), «illo cauto», Leg. 353; 1112, Tavares, «nostro caucto», Leg.
360, etc.

__294__
maria da nobreza, e nela os faria integrarem-se, muitos indivíduos (cujo progresso
material e de condição lhes valia já o tratamento popular de «dom», tal como
estudámos num dos capítulos anteriores). Esta acessão à nobreza, no entanto, além
de demorada, seria mais difícil: as vantagens do municipalismo, sem proporcionarem
por si mesmas essa acessão (que não parece, ao menos nesta época, ser perseguida
nestas organizações), eram quase sempre de uma instituição ou, pelo menos, de uma
proteção e uma regularização (íamos a dizer oficialização) que tomavam quase
imediatas vantagens semelhantes.

Para além de simples instrumento económico ou de produção, o povo


principiava a ser aproveitado como defensor da sociedade em geral. Isto explica que,
nestes inícios, até os já grandes senhores que houvessem se utilizassem
municipalmente dele nas regiões arriscadas (1). As concessões régias, porém,
eximiam-no totalmente da exploração deles, ou tendiam rapidamente para isso, e tanto
mais quanto mais numerosas e latas iam sendo – o que se verifica até D. Afonso II,
um rei que procede sobretudo a confirmações. Com D. Sancho II menor e sua
fraqueza posterior face aos magnates, estes precipitam-se, enfim, sobre os grandes
concelhos, extorquindo-lhes vastas extensões ou «hereditates» nos respetivos termos,
por vezes à custa de violências sanguinárias (2). E isso tanto nos municípios beirões
orientais, fronteiriços, como nos do Centro e do Sul. A época e a violência provam que,
se as extorsões se não verificaram antes, é que as circunstâncias políticas não eram
oportunas.

Estava-se, de facto, na época em que o municipalismo tinha atingido o seu


zénite entre nós. Ora, sendo aquelas as regiões que podemos dizer as
municipalizadas (nas outras, municípios tão categorizados eram raros, porque, ao
contrário, o regime senhorial, a partir das «quintãs» ou paços residenciais dos nobres,
existia sobretudo nelas), o facto há-de significar enfim o confronto

__________

(1 ) Caso do foral de Nomão em 1130, pelo prócer bragançano Fernando Mendes: «civitate
Nomam», Leg. 368-370).

(2 ) Casos inúmeros na TT Inq. da Beira e Além-Douro, fls 1-20 (um assunto de que se
poderia tratar nesta parte do nosso trabalho por ser principal no estudo da nobreza nortenha).

__295__
deste antagonismo – o da nobreza (que havia muito guardaria o ensejo) com o povo
emancipado.

Na competência travada entre as duas classes (a outra, o clero), era-lhes


comum e, no seu «foro» especial, devido ao caráter espiritual do seu múnus, não nos
interessa aqui), é notável uma série de pontos de vista que a definem perfeitamente.

- Digno de primeira nota o significativo facto de as designações «couto» e


«honra» surgirem também nas imunidades populares, como um evidente produto da
inter-reação das outras classes. É o caso de qualquer município «que est regalengum
cum sua honore» (1), ou o daquele que «est cautum domini regis (2) – expressões

_________

(1 ) O caso de Mesão Frio, Inq. 9272 e 9281, com foral de 1152 e denominado logo «burgo
de Meigion Frigido» (Leg. 381-382 e LDT 74). A expressão «cum sua honore» nada tem com o facto de
Mesão Frio surgir como beetria do séc. XIV para o XV, porque ainda então o não era, mas, como se
expressa bem, uma vila da coroa, «regalenga»: trata-se da honorificação pessoal coletivizada pela
municipalização, com o sentido de «honor et cabo» do foral de outro burgo, o de Guimarães, em 1128
(Leg. 351), honorificação pessoa-coletividade que transparece nos milites municipais: «sit in honorem
militum» ou «stet honoratus» (Leg. 356).

(2 ) O caso de Vila Nova de Famalicão, com carta de foral de 1205 (Leg. 507). De notar que
um grande historiador como Gama Barros, perante esta frase, respeitante à inclusão, nesse «cautum
domini regis», de um lugar por isso isento da entrada dos oficiais da coroa (como sucedia em honra ou
couto da nobreza), denota não ter compreendido o que ela significa; e não também mais o seu publicador
e anotador Prof. Torcato Soares. (Cfr. o nosso art. GE XXXV 637-647). Ver a nota seguinte.

(Convém proceder ao seguinte reparo, para que se não possa cuidar que fazemos a
identificação de V. N. de Famalicão, naquele foral, sem dizer de quem ou de onde colhemos –
comportamento muito fora dos nossos costumes. O Doutor Avelino de J. da Costa, nos Docs. de D.
Sancho I, nº 159, publ. de 1979, manda ver, para essa identificação, Viterbo, Eluc. s. v. Feira, e Pinho
Leal, sem notar o obrigatório: que Pinho Leal copiou quanto pôde de Viterbo, sem nunca o citar; que
Viterbo não diz a mais leve razão da sua identificação; e que quem fez

demonstradamente esta fomos nós, no nosso art. GE XXXI 638-647, em 1957-1958, muito antes da
publicação das IS 1462, em 1977. São vários os autores de muita ciência que fingem desconhecer a dita
GE no que lhes convém, para dar por seu o que o não é, ou, como neste caso, e mais uma vez, não se
citar a nossa autoria, mesmo que anónima – e, todavia, conhecida, ou facilmente averiguável).

__296__
certamente sinónimas, visto, que temos também «honor illlustris regis» (1).

É neste caso que a palavra «cautum» (caso em que, repetimos, ela talvez
tivesse tido a sua primeira aplicação própria – dos casos populares se tendo
porventura transmitido aos casos nobres (2) tem a perfeita significação da sua origem
– o acautelamento, a preservação, a segurança (neste caso, a do foro ou estatuto
privilegiado de um grémio popular) (3).

- De notar também um certo paralelismo competitivo entre o Eigenklöster nobre


e Eigenkirchen popular. Logo que a nobreza portugalense até então eclipsada pela
alte estirpe condal vimaranense começa a sobressair, com ela sobressai um
Eigenklöster que parece ter querido substituir o da referida estirpe, concentrado no
poderosíssimo mosteiro de Guimarães, mosteiro que com ela cai, sem a menor
dúvida: ora, é precisamente então que o Eigenklöster das «stirpes» fundamentais
portugalenses se revela, por fundações feitas ou padroados instituídos (4).

Pois paralelamente àquele Eigenklöster nobre desenvolve-se, inegavelmente e


pelos mesmos meios (fundações e instituições), um Eigenkirchen popular (5). O povo
não

__________

(1 ) O mesmo historiador referido na nota anterior também aqui denota não ter
compreendido a situação quanto a um lugar que em 1258 se dizia simultaneamente «aut est honor
illustris regis» D. Afonso Henriques «aut est honor domni Pelagii Corrigie» (D. Paio Correia): GB II 506-
507. É evidente que a localidade estava dividida em duas partes privilegiadas: a senhorial («honra»
daquel fidalgo) e a municipal (a «honra» do rei) É o caso de Ferreira de Aves, com parte senhorial e parte
régia, cada uma com seu foral próprio, dado , respetivamente, pelo senhorio e pela coroa (Leg. 385-386 e
367-368).

(2 ) Aparece em 1097: Santo Tirso «cautum vel comissorium» (DC 871). Antes, só
«comissorio»: o do mosteiro de Guimarães «de Ave in Avizela» (DC 223).

(3 ) Daí uma individualidade que cedo se impõe já no diploma senhorial, como em


Sernancelhe, 1124: «contra vestros inimicos ibimus vobiscum et non ad aliam partem», etc. (Leg. 363).

(4 ) Ver o nosso trabalho AF4 181-186.

(5 ) Em geral, aas origens populares de uma igreja denunciam-se nas inquirições de 1258
por frases como «ipsa ecclesia est herdatorum ipsius loci», Inq. 6191 – opostas a «ipsa ecclesia est
militum, Inq. 6172, para não dar senão um exemplo de cada caso, entre os inúmeros. Claro que há casos
mistos: «est militum et herdatorum» (Inq. 5792), e casos em que os nobres se apoderam de igrejas,

__297__
dispunha de meios bastantes para um Eigenklöster verdadeiro, mas tinha-os para um
Eigenkirchen como muito menos exigente – e neste, de certo modo, ele se apoiava, tal
como, naquele, a aristocracia de sangue. É realmente digna de especial consideração
tal circunstância.

O assunto merecia, pois, um capítulo especial, se a extensão a limitar no


presente trabalho o consentisse. O estudo das nossas igrejas «próprias», está por
fazer: cingimo-nos a esta breve referência, apenas para salientar a sua importância
primacial na competição nobreza-povo que já nos parece desenvolver-se a partir de
antes da Nacionalidade. Sobretudo – com aquelas origens – desde que a coroa
começou a servir-se do povo como braço político (segunda metade do séc. XIII). As
tensões sociais, que desde então se vão elevando, não resultaram pouco daí –, o que
também deveria ser aqui tratado se o espaço no-lo permitisse (circunstância negativa
que deveras inibe, e isto com demasiada frequência, as problematizações, e sua
tentativa de solução, neste trabalho).

- O povo, porém, nesta luta, como aliás sempre que se embate em


organizações mais poderosas, era quem mais sofria – o que entre nós sucedeu
sobretudo na primeira metade do séc. XIII.

Como nem tudo poderia ser contraste, passava-se no povo alguma coisa que
também a nobreza encarava num aspeto desonrador ou extremamente odioso (a
entrada dos oficiais do fisco nas suas imunidades, como vimos): para o povo, as
extorsões a que da parte desses exatores ele se via sujeito, o que deu em resultado a
encensoriação, ora de famílias ora de lugares inteiros, a nobres que os protegessem
mediante o pagamento de um certo censo. Podemos, pois, juntar aos domínios nobres
(honras e coutos) as encensorias (1).

__________

por motivos diversos (Inq. 578-579, 6171, etc.); mas isto em nada impede dever considerar-se um
Eigenkirchen popular, por fundação: «erant inde patrones parrochiani qui fecerunt ipsam ecclesiam» (Inq.
13822); «somos naturaes e padroeyros verdadeyros per socissam» dos «que a fundárom e dotárom por
sas almas que fôrom verdadeyris padroeyros», CP 183 (Inq. 11621); etc.

(1 ) São muito frequentes estes casos «ut sint defensi ab omni foro regale» ou frase
semelhante: Inq. 4761 e passim. Mais antiga que a encensoria, neste aspeto, parece ser a incomuniação
de bens por um possessor innobilis a um nobilis: DC 420, etc.

__298__
Cremos que foi destas que nasceram a nossas beetrias – lugares que, sendo já
honras ou que por isso passavam a sê-lo, tinham ou se arrogavam o privilégio de
escolher o seu próprio senhor (1). Não nos parece, de facto, que algum caso das
beetrias que entre nós se conhecem corresponda, originariamente, a uma
benefactoria pré-nacional (embora tal palavra seja o étimo de «beetria»). Este assunto,
como o anterior demandaria um capítulo especial num estudo da nobreza – capítulo,
porém, aqui impraticável (2).

- Um outro aspeto, entre os mais a que ainda poderíamos referir-nos, se o


objeto deste estudo estivesse propriamente nas classes populares, era a imposição de
amádigos e de filiações de nobres em proprietários vilãos – com o fim, respetivamente,
de o «criado» e o «filho» virem ter a herança nessas propriedades. De facto, um
caráter voluntário nestes casos seria absurdo de crer – mesmo naqueles em que do
vilão proprietário partia a iniciativa de criar ou de adotar, iniciativa essa que teria as
mesmas causas das encensorias: o medo, a necessidade de uma proteção. Muitas
honras tiveram origem em encensorias, «crianças» e adoções.

Quando a ameaça do nobre se exercia sobre um concelho e este era


suficientemente poderoso, mais que o expulsar (1), chegava-se até ao assassínio dos
nobres exigentes ou ameaçadores, tal como o concelho de Elvas fez a dois nobres da
alta estirpe de Ribadouro; ou entrava-se

__________

(1 ) A maioria das nossas beetrias já eram honras antes de aparecer nelas tal privilégio
(pois que antes di séc. XIV não se nota nelas o mínimo indício da sua existência); mas outras, como
Mesão Frio e anexas, nunca o haviam sido. A razão do facto nestas, como nas outras que já eram
honras, talvez seja um pacto de proteção, o qual se transformou em uso depois de desaparecida a causa.

(2 ) Muito há que tencionamos proceder a um estudo das beetrias portuguesas (até porque
somos natural de uma que encabeçava um grupo de quatro, sem que as três tivessem contiguidade
territorial com ela), estudo esse em que se demonstrasse que a sua origem não deve ser a das beetrias
castelhanas. Bastaria esse projeto para o não fazer aqui, nem agora; mas há as razões que no texto
acabamos de indicar.

(3 ) Scr. 300, para o de Alter do Chão, que «correu com ele» – o nobre vexador, que se
desforrou depois matando os «doze melhores» (reinado de D. Afonso IV).

__299__
mesmo na guerra armada, como a do concelho de Bragança com os cavaleiros das
estirpes da região (1), circunstância deveras importante.

O próprio povo desprovido de proteção municipal se desembaraçava, por


vezes, dos seus violentadores nobres assassinando-os, embora depois, em
consequênciade não possuírem o seu couto popular, que seria o seu refúgio
legalmente intransponível, tivessem de homiziar-se, abandonando famílias e bens (2).

A tal propósito, referimos mais uma vez o sentido da palavra «couto» para
compreendermos a excecional importância que os seus coutos tinham para as classes
populares: se os da nobreza possuíam, muitas vezes, uma torre, ou até mais (como é,
com duas, o caso do couto de Lumiares), ou, ao menos, a casa-fortim que é a
«quintã» (a qual foi já aqui o cuidadoso objeto de um capítulo), a verdade é que os
grandes concelhos urbanos, com poucas exceções, dispunham de um castelo – que
tanto poderia servir contra inimigos estrangeiros (sua razão de ser) como contra os
inimigos nacionais (3).

E, a propósito da existência de imunidades urbano-rústicas municipais não


deixaremos de citar uma outra espécie popular, a do tipo chamado «villas franquidas»,
nas quais a coroa não tem direito algum: «nullum forum faciunt, de ea(s) regi», não
dão delas peita à coroa (voz e coima, ou tudo isto, expressamente declarado,
nenhuma «est cautum, e todas são «de homines villa-

__________

(1 ) «matou-os o concelho de Elvas» (Scr. 323, LV1 55); «concilium de Bragancia habebat
guerram cum militibus» (Inq. 13121): os nobres das estirpes de Bragança e de Ledra (seu ramo), os da de
Chacim, os Cogominhos, Mascarenhas, etc.

(2 ) Em 1220, a maior parte dos moradores de duas freguesias de entre Cávado e Lima
«fugierunt propter homicidum de Fernando Acha», com quem tinham «inimicicia» (Inq. 381 e 372). Aquele
nobre era senhor aí do couto de Gondiães (Inq. 222). No entanto, «homicídio» pode significar apenas a
«inimicicia».

(3 ) Dignos de especial nota, os coutos populares fronteiriços, encravados nas «terras»:


Caminha, Valença, Monção, Melgaço, Montalegre, Chaves, Bragança, etc., por toda a faixa fronteiriça de
Leoneses e Árabes.

__300__
nos (1). De certo modo, um privilégio superior ao do couto nobre: minúsculas
«repúblicas independentes.

Fora dos casos municipais, temos, pois, mesmo verdadeiras honras de vilãos:
não se lhes chama «honras», mas são as «quintãs franquidas» (2).

Ficam, pois, pouco mais que enunciados, neste final de capítulo, variados
problemas do maior interesse e ainda muito pouco estudados entre nós (alguns deles,
salvo erro, nem sequer ainda aflorados). Cada um deles poderia, mais
adequadamente, e como já dissemos, preencher, neste trabalho, um capítulo próprio,
na aproximada extensão em que se desenvolvem aqueles que constituem esta sua
primeira parte (e, mesmo estes, sem a extensão que poderiam e deveriam ter). Por
motivos óbvios, sobretudo o problema do espaço, em publicação anual, e ainda
porque há uma segunda parte neste estudo (parte essa cuja publicação, por esse
mesmo motivo, se nos vai antolhando cada vez mais incerta), não é possível fazê-lo.
Parece-nos de interesse para os próprios créditos deste nosso estudo, deixar aqui
estas prevenções.

__________

(1 ) Inq. 9272 e 9281. O topónimo Vila Franca (salvo o caso a provar de colonização franca)
deve recordar esta situação inicial. O papel do juiz seria desempenhado por um ou mais «louvados», aí
escolhidos ad hoc em cada caso.

(2 ) O caso da «quintana de Bulfeyne (Bulfenes, f. Cambres) que est de villanis, pectam


regis vocem et calumpniam tantum... semper habuerunt istum usum cum regibus», não entrando nela
sequer o mordomo, mas o «sobremordomo» (pela voz-e-coima): Inq. 10071, 10091 r 10101. O caso desta
«fogueira» (também assim se chama( é exatamente o da vizinha honra de Repolos de nobres qualificados
(só voz-e-coima e entrada do sobremordomo): Inq. 10192 LDT 11, TT Inq. de D. Din. L. 4 fl. 31. Repolos é
«honor» de nobres (Inq. 10191) e Bulfenes «est franquida» vilã (Inq. 10071).

__301__
Exemplificação no território «vimaranense»:

A doutrina exposta poderá explicar-nos a notável circunstância de o território


vimaranense histórico, a despeito da sua prolífica nobreza pós-medieva, não ser,
nesta época da Idade Média (à qual corresponde o zénite do nosso regime senhorial),
um dos que acusam maior abundância de imunidades nobres. Este facto pode e deve
estar, como vimos, em relação com outro não menos notável: talvez circunscrição
alguma nos apresentar tão proliferada uma burguesia de tão vultuosos e privilegiados
bens, como em todo ele sucede. Repetimos, esta asserção as vezes necessárias, que
se sucederão como já sucedeu.

Um exame às inquirições do séc. XIII, sobretudo as de 1290, seria suficiente


para nos convencer da correspondência genérica a tais circunstâncias; mas convém
apresentar os exemplos dos não muitos casos autênticos de imunidades nobres – ou
seja, aqueles que não procedem de atos reais («cartas de honra») nem de usurpações
ou abusos por parte nobre sobre a popular ou pública. Iremos, pois, referir tais casos
às «stirpes» honradoras, depois de termos exemplificado já o concernente às suas
moradas paçãs (as «quintãs»).

Antes, porém, de o fazermos, é de notar que em 1290 se afirma


expressamente que «nom ha hy onrra nem h~ua» nas seguintes freguesias: Abação
(S. Cristóvão), Atães, Caíde, Calvos. Candoso (S. Martinho), Cerafão, Cerzeso,
Creixomil (1), Fareja, Fermemtões, Gandarela, Gondar, Infias, Mascotelos, Mesão Frio,
Nespereira, Penselo, Pentieiros, Pinheiros, Pinheiro, Selho (S. Jorge), Selho (S.
Lourenço).

Noutras, também não pode dizer-se que existam

__________

(1 ) Os nobres chamados «de Creixomil» (Treixemil por erro, Scr. 313, 348, etc.) não
devem, pois, pertencer a esta freguesia vimaranense, mas à barcelense. A doação de uma «quintana»
em 1149, por D. Afonso Henriques, a Dordia Reinaldes e seu marido em Creixomil de Guimarães, a
instâncias de D. Gonçalo de Sousa, a qual eles já traziam, nada tem com honramento. Ela é uma
burguesa vimaranense, filha de um Reinaldo (cuja origem franca é patente no nome), e será seu
descendente Mourão Reinaldes vimaranense que vivia em 1220 (Vim. 831 e 1861), Reinaldo seria, pois,
um nome preferido por origem nesta casta burguesa.

__302__
honras legítimas ou típicas, na sua origem, nos seus privilégios e na sua extensão;
mas casos ocasionais e mais ou menos efémeros, duvidosos un, e outros
expressamente ilegítimos. Casos tais pertencem a Abação (S. Tomé), Caldas de
Vizela (S. Miguel), Costa, Lobeira, Prazins (Santo Tirso), Silvares, Tabuadelo, Vizela
(S. Jorge), além de outros destes que se verificam em freguesias em que os há
legítimos.
Nem mesmo nos ocuparemos de todos os casos legítimos, porque, para o
plano deste trabalho e suas exemplificações vimaranenses, apenas nos interessam
alguns dos mais típicos, que são, como é natural, do número dos mais antigamente
estabelecidos ou de mais remotas origens. E, tal como prevenimos quanto ao tipo
residencial (a «quintã»), deixaremos para capítulo mais apropriado as referências à
estrutura predial e ao funcionamento dominial naquelas a que passamos já a regerir-
nos.
Mesmo com estas, a vastidão daria para uma monografia independente.
Limitar-nos-emos, pois, a uma exposição sintética, e a indicar para cada caso a
documentação de cuja combinação resultaram os nossos pontos de vista – porquanto
nos parece que Guimarães carece ainda, por completo, de um estudo acerca da sua
nobreza altimedieva nacional.

Uma combinação criteriosa e bem informada e interpretada dos dados


documentais e nobiliários permite-nos de facto, chegar à conclusão de que as
principais honras de entre o Ave e o Vizela são originários nas altas estirpes dos
Sousãos e de Riba de Vizela, as quais foram linhagens de ricos-homens de sangue (a
dos Sousãos teve princípio condal); nas estirpes de Cunha e de Longos-Briteiros; na
que se chamou «de Urgeses»; e em uma ou outra mais ou menos obscura.

a) «Stirpe» dos Sousãos:

Temos todas as razões para concluir que a origem das honras desta

«stirpe» em «terra» de Guimarães está nas possessões de Gomes Eicaz, que, sob
Fernando Magno, foi administrador de Portugal e residiu nesta mesma região
(esquerda do Vizela, ao sul), conhe-

__303__
cendo-se pelo menos um caso da sua autoridade «julgado» por ele em Guimarães
(DC 376) (1).

Os senhores da honra que em Arões (S. Romão) existem são, por varonia, da
linhagem dos Guedeãos; mas esta, como hoje diríamos, era «transmontana»
(Panóias), tendo-se expandido para estas bandas precisamente pelas suas ligações
aos Sousãos. Um daqueles, Gomes Mendes, casou com D. Châmoa Mendes, bisneta
por varonia do «conde» Gomes Eicaz. (2) Se esta honra com este mesmo ainda não
existisse, ter-lhes-iam pelo menos pertencido os prédios que vieram a constituí-la e daí
os haver a bisneta referida. Certamente como primeiro que teve nela residência
«oficial», o primeiro que se chamou «de Arões» foi Gil Guédaz (séc. XII-XIII), neto
paterno daquela mesma senhora sousã. O chamamento, porém, durou só uma
geração mais (3).

A honra do Monte, em Asorém, a qual, como a de Arões (S. Romão), originou


um chamamento nobre, «do Monte», um pouco mais duradouro que o chamamento
«de Arões», apresenta-nos, na sua época diretamente documentada, o senhorio da
«stirpe» dos «Godinhos & Fafiãos» (4) pelo de Fafe Godins, dele herdado por uma filha
e um filho (primeira metade do séc. XIII). De crer, porém, que a origem esteja
igualmente na «stirpe» sousã desde Vieira e Basto a Montelongo e Felgueiras, etc.,
com o entre Ave e Vizela, e ainda o facto de os próceres «Godinho & Fafiãos» terem
sido os ricos-homens da «terra» de Lanhoso e não os daquelas, mas sobretudo,
combinado

__________

(1 ) Ver os nossos estudos AF1 151, AF2 47- 49, etc.

(2 ) A esta senhora coutou D. Afonso Henriques por padrões uma parte da f. Eiró (onde hoje
está a vila de Boticas), em «terra» de Barroso: 1258, «est ibi cautum cautatum per patronos quod cautavit
dominus rex Alfonsus primus domne Chamoe Menendi» IS 15251. Seu filho Egas Gomes foi chamado
«Barroso», Scr. 361.

(3 ) Combinação de DC 376 e DP 54 (data errada); Inq. 7261; Vim, Mon. Hist., pp.347-348;
LV1 e 88; Scr. 356, etc.

(4 ) Esta designação aparece «os Fafes e os Godinhos» em Scr. 329; mas temos nas
inquirições «milites Fafianis» e «milites Godinis» (Inq. 7161, 5541, 5002, etc.), afinal uma só estirpe.

__304__
com essas circunstâncias, o casamento de uma filha de D. Groína Mendes com um
rico-homem dessa «stirpe», tendo deles sido filho o referido Fafe Godins. O primeiro
nobre chamado «do Monte» foi precisamente Pedro Anes (Pêro do Monte), um filho de
D. Urraca Fafes (filha de Fafe Godins e casada com um cavaleiro de Lodares), a qual
possuía em 1258 esta honra, com o irmão (Mem Fafes) (1).

O mesmo, quanto à origem sousã, pode dizer-se da honra de Esperandei, em


Guardizela (2), e da de Gandarela (3).

Em Vila Nova (Infantas), existiu também uma honra do «stirpe» sousã,


nomeadamente de D. Gonçalo de Sousa (séc. XII, o que está de acordo com o
referido – além de nos ter já parecido provir das remotas possessões desta alta
«stirpe» de «infanzones» pré-nacionais o epíteto de Infantas, que hoje funciona como
nome da freguesia (4).

Outra honra notável nesta alta «stirpe» é a do Paço em Corvite. Esta honra –
diz-se em 1290 – havia sido de D. Rodrigo Gomes «de Briteiros». Este fora um nobre
secundário que, tendo raptado uma neta materna do conde D. Mendo de Sousa (D.
Elvira Anes «da Maia»), de categoria social superior, casou com ela (5).

__________
(1 ) Combinação de Scr. 300, 329, 330, 374; Inq. 5002, 5541, 6181, 7161, 7231; Vim. 3481.
(2 ) Inq. 6222 e 6231; Vim. 3651; Scr. 310, 313-314, 329, 347.
(3 ) Inq. 2551 e 7021.
(4 ) Inq. 7001. No final do terceiro capítulo, documentámos o epíteto toponímico «de
Infantas» desde 1258, mas prevenindo que esta data «não basta para lhe negar antiguidade» maior. De
facto, já em 1162 «Villa Nova Infantissarum» (doc. P. Avelino de J. da Costa, o bispo D. Pedro II, 508):
não se prova a nossa explicação da forma feminina «Infantas», mas não desmente a origem em
infantiones – enquanto não houver prova do contrário.
(5 ) Este «infançom» fê-lo D. Afonso III rico-homem pelo seu auxílio na conspiração e guerra
civil que derrubaram D. Sancho II (Scr. 291). Os ricos-homens de linhagem, certamente invejosos,
ridicularizavam-no pelos meios pouco pundonorosos adotados para a tal nível se erguer, do que é reflexo
a interessante cantiga:
Se eu netas de conde, sem seu grado,
tomo, em tanto como eu vivo for,
nunca por em serei desafiado:
– Netas de conde quero eu cometer.

(Canc. da Bibl. Nac. I 145).

__305__
E aqui está, em nosso entender, a razão dessa posse dele nesta honra de Corvite: a
herança da esposa (1).

b) «Stirpe» de Longos-Briteiros:

Usamos esta dupla designação porque encontramos chamado Pêro Longos, isto é,
Pêro de Longos) um dos seus membros e Mem de Briteiros, um seu filho, que também
é dito Mem Peres, de Longos». A duplicidade explica-se pelas honras que esta estirpe
tinha nos dois lugares – e chegamos à conclusão de que Pêro Longos é, afinal, D.
Pedro Coroa, e aquele seu filho o mesmo que D. Mem Cativo, os quais as inquirições
de 1220 citam como tendo sido senhoras das honras de Longos e de Briteiros (2).

Em 1258, existia em Rendufe uma imunidade, «propter honorem domni Gomecii Petri
de Sauto». Cremos que este filho-de-algo é daquela estirpe (aliás Longos e Briteiros
são vizinhas de Souto, onde ele devia ter o seu paço), ou, pois, um filho provável de
Pêro Longos (ou Pêro Coroa), e, por isso, irmão de Mem Peres «de Longos» (3).

c) «Stirpe» de Riba de Vizela:

Esta linhagem, cujos primeiros se chamavam «de Guimarães», provém de um


D. Pedro Formarigues de que nada documentalmente nos consta, e a ele os seus
filhos «chamaram-lhes este sobrenome de Guimarães por «bue riba de Avizella era
perto di» – quer dizer, porque Riba de Vizela era perto de Guimarães (4). Mas a
designação «de Riba de Vizela» foi a que na geração seguinte,

__________
(1 ) Combinação de Vim. 350 e 351; Scr. 287 (LV 88); Inq. 771 e 2031; Vim. 2291 e 2692.
(2 ) LV1 33; Inq. 14851, 14872.
(3 ) Combinação de Scr. 356 e 369, LV1 34, Inq. 3721, Vim. 358 e 385. Esta honra era em
1258 dos miles Pêro Lourenço (Inq. 7321), o qual deve ser neto de D. Gomes Peres «de Souto» e tinha
por alcunha Vencelho, como se recorda em 1290: Vim. 385. Apesar de esta honra compreender casais do
mosteiro de Souto e este passar por fundação do tronco da estirpe dos «de Cunha» (D. Paio Guterres,
Scr. 356), e de esta ter possuído entre Ave e Vizela bens e honras, não cremos que se trata de milites
dessa estirpe, os quais eram todos chamados «milites de Cunha» (Inq. 714 e 715).
(4 ) Scr. 346.
__306__
já com ricos-homens, se impôs – o que não quer dizer (ao contrário do corrente) que o
chamamento alguma vez se usasse como apelido pessoal – pois que, quando muito,
apenas surge como distintivo de estirpe, oficialmente que seja.
A honra de Conde era de Martim Dade nos finais do séc. XIII, mas a origem
beiroa, inegável, dos Dades, afasta-os inteiramente dos primórdios senhoriais dela. O
facto resolve-se facilmente pelo casamento de Martim Dade «o Velho» com D. Maria
Reimondo, bisneta por varonia do referido Pedro Formarigues e filha de uma senhora
da linhagem dos Correiãos (Correias), que de origem nada têm que ver aqui. De notar
a referência especial que se faz em 1290 ao «paço de Conde», residência desta
honra, paço esse que ainda deve ser o próprio «palacio domnigo» que do séc. X para
o XI aqui existia e que pertencia à condessa Mumadona II vimaranense (DC 121) (1).
A honra das Quintãs em Tagilde – diz-se em 1290 – havia sido de D. Gil
Martins, que, inegávelmente, é o de Riba de Vizela e um dos ricos-homens mais
notáveis do séc. XIII. Um bisneto por varonia de D. Fernando Peres, irmão do avô de
D. Maria Reimondo (neta paterna de D. Pedro Peres «de Guimarães») o que basta
para explicar o senhorio (2).
Em Candoso (Sant’Iago), cita-se em 1258 a honra paçã de D. Martim
Fernandes, notável rico-homem da estirpe de Riba de Vizela, primo co-irmão do pai de
D. Maria Reimondo (ou seja, irmão do avô paterno do sobredito D. Gil Martins) (3).

d) «Stirpe» de Cunha:
Na origem desta linhagem, está nos nobiliários medievais a figura de um «dom
Guterre», a quem o conde D. Henrique teria dado «o porto de Varazim» (Póvoa de
Varzim) e «muitas herdades e possessões em terra de

__________
(1 ) Vim. 350; Inq. 7002, 8431 e 8451; Scr. 346 e 366, etc.
(2 ) Vim. 3611; Inq. 4; LV1 23 e 48; Scr. 364-365; AH IV 331 e 357.
(3 ) Esta honra foi herdada por sua filha D. Maior Martins (teve duas deste nome), abadessa
do mosteiro de Arouca, ao qual ele a doou: LV1 21; Inq. 7081; Vim. 3501.

__307__
Guimarães e de Braga» (1). O próprio facto de nos apareceram honras de tal linhagem
em «terra» de Guimarães é uma confirmação: mas temos de pôr de lado, em nosso
entender, o conde D. Henrique, já que se trata do pai de D. Paio Guterres, segundo os
mesmos nobiliários. O paço de Cunha era cerca de Braga, e sabemos também o quão
diretamente se relaciona com esta região e as imediações bracarenses a figura de
Paio Guterres, mandante de Portugal (vicarius regis e imperator) no tempo de D.
Afonso VI e depois ainda prócer da «schola» do conde D. Henrique. Feito este reoaro,
que em nada influi no substancial do proposto nas linhagens medievais quanto a «dom
Guterre» (nome alterado com Paio nas primeiras sucessões da linha da estirpe) ( 2),
pode compreender-se o caso das honras «vimaranenses» dos de Cunha.
A honra de Rendufe não era notável, nem sequer residencial ou paçã, ao
contrário das que estamos referindo: o paço fê-lo num seu casal D. Egas Lourenço
«de Cunha», casal esse citado como dele em 1258. Coisa, portanto, módica, e que lhe
deve ter vindo daquele seu remoto antepassado direto ( 3). Mas já deveria ser honra
velha e era mais vulto a de Souto (Santa Maria), que, efetivamente, em 1258 se diz
dos «milites de Cuyna» (4).
e) «Stirpe» de Urgeses, e outras:
Mais honras, poucas, existiam entre Ave e Vizela, como outra em Corvite, de
um «miles» de Calvos, que a vendeu a D. Mem Rodrigues «de Briteiros» ( 5); uma em
Sobradelo, dos «milites» Redondos, talvez, proveniente das de Urgeses ( 6); mais outra
em Souto (Santa Maria), dos «milites» de Outeiro (7); mais uma em Tagilde, dos
«milites» de Penela (8); e uma em Vizela (S. Paio) (9).

__________
(1 ) Scr. 356.
2
() Cfr. os nossos AF1 163-169 e AF2 36- 65.
(3 ) Inq. 732; Vim. 3581.
4
() Inq. 714 e 715; Vim. 360. Portanto, convém prevenir a não confusão do Paio Guterres
tronco desta estirpe com o seu homónimo tronco da «de Silva» (que até se distinguem em Scr. 356 e 363,
de acordo com os documentos).
(5 ) Inq. 717; Vim. 3502.
(6 ) Inq. 6722; Vim. 367; LV1 15.
(7 ) Inq. 7152 e 7142; Vim. 3602.
(8 ) Inq. 6911; Vim. 3611.
(9 ) Inq. 6872; Vim. 3621.
__308__
Por fim, digna de especial nota a honra de Urgeses, da estirpe que nos livros de
linhagens tem precisamente esse chamamento «de Urgeses». Quanto a nós, procede
de um «miles» de D. Teresa e de D. Afonso Henriques, Salvador Mendes (Salvador
Dente) (1).

Não é apenas o número (relativamente pequeno) de imunidades nobres que,


como principiámos por lembrar, está em relação de causa e efeito com a proliferação
humana e a ascenção económica da burguesia vimaranense por toda a «terra»:
também a antiguidade dessas imunidades.
Com uma única exceção (e esta num simples casal, feito «quintã» honrada),
todas estas honras são ditas em 1290 «de longe», ao que sabiam e sempre tinham
ouvido dizer os habitantes. Mas que «longe» esse?
A necessidade tem-nos obrigado por mais que uma vez a lembrar uma
realidade tradicionalizada nos séc. XIII-XIV: a de o maior número de honras e coutos
se terem instituído desde os finais do séc. XI. Isto, por toda a parte: mas no território
«vimaranense», notando-se bem a circunstância, já não se verifica a proliferação
dessas imunidades nobres.
Se, contra o que sucede, o clima sócio-económico antes do séc. XII facilitasse
aqui tal proliferação, ela não teria relevo notável, por uma razão tão rara quanto forte:
o domínio da «stirpe» condal sobre prédios e populações, simbiótico com um radicado
Eigenklöster. Por ação real, é este eliminado e, como por fatalidade daí derivada, a
«stirpe» morre depressa, literalmente, perdidos os bens: a última representante, nos
fins do séc. XI, se ainda viva, sai do país com o marido. É a neta, única, do conde
morto em combate uns vinte e cinco anos antes. E, entretanto, passados os bens da
«stirpe», a bem dizer, à coroa, ia-se revelando e avultando a burguesia em
Guimarães, agora de privilégios encartados: é ela que impedirá a proliferação predial e
pessoal da nobreza entre Ave e Vizela. As poucas honras ditas «de longe» em 1290
até por isso não poderiam recuar ao séc. XI; mas, sobretudo

__________
(1 ) Inq. 122 e 6991; Scr. 351; Vim. 3612; DR 185 e 354.
__309__
nos casos dos Sousãos e dos de Riba de Vizela, essas viriam a instituir-se sobre dos
bens que elas no séc. XI aí teriam adquirido por quaisquer processos, deste a
autoridade (Sousãos). Daí mais este contraste da «terra» de Guimarães com as do
seu redor.
No que concerne ao grau de imunidade em cada um dos casos apontados
neste território, temos a notar os das honras em Guardizela e em Rendufe e o de uma
em Tagilde (chamada Padroso), as quais andavam isentas da entrada de mordomo da
coroa e, no caso de os senhores quererem fazer as «chegas» pelo seu vigário, isentas
também da entrada de porteiro régio.
São, como vemos, honores simples, mas com um certo matiz de couto. Quanto
às outras, como apenas se diz que nelas não entra mordomo e não se fala de porteiro,
teríamos de entender que se trataria de imunidades mais completas, ao grau funcional
de cautum, de acordo com a nossa construída doutrina: ou, melhor (conforme o nível
da partida ou a origem), ora uma honor-cautum, ora um cautum-honor – mais
naturalmente o primeiro caso, dado que não há o mínimo indício de uma concessão
régia (carta de cautum ou, sinonimicamente, carta de honor), e visto ser ainda muito
mais credível um efeito de ação nobre. E esta solução parece ser mesmo a mais óbvia
simplesmente porque em alguns dos casos em que não se fala de isenção de porteiro
em 1288 se
manda entrar este na imunidade, por efeito de investigações posteriores sobre a
origem e regime da mesma. Tivera, pois, havido aí um «abuso» senhorial.
Nem tal terá de surpreender, ou seja, que a nobreza procurasse coutar-se
numa circunscrição onde tinham toda a proeminência os burgueses – coutados estes
em dois núcleos prestigiosos um (o Castelo), prestigioso pela fortaleza, primacial do
país, e o outro (a Vila), prestigioso pela instituição religiosa que era a sua igreja
colegiada, predominantemente de dignitários burgueses. De outro modo, a
inferiorização regional da nobreza em entre Ave e Vizela teria sido muito mais
flagrante.
Escusado dizer que a matéria desta aplicação se deve conjugar diretamente
com a aplicação feita da matéria dos três capítulos anteriores imediatos.

__310__
8. Um «feudalismo» portugalense-português: Associações de infanções e
prestimónios; honores administrativos e honras imunidades: a «benefactoria» e as
beetrias; transmissão do «cominicum-dominium»; justiça de municipalismo dominial.

O problema do feudalismo em Portugal, de novo flutuante, merece aqui, por


obrigação da índole deste estudo, algumas palavras sem pretensões.
Pela sua importância fundamental neste capítulo, reabordaremos com mais
explícita exploração a doutrina decorrente de dois já conhecidos passos documentais
do séc. XI. A razão é termo-los por inteiramente correspondentes na definição dos
possíveis estados da propriedade quanto aos detentores: o «reguengo», o «condado»
e o «igrejário» – a que adiante juntaremos o coutro, a «beetria» (que naqueles poderia
instituir-se):

A correspondência, em que nada há a precisar quanto ao «reguengo», faz-se


do «igrejário» para o «santuário», e do «condado» para o «infantado».

__311__
O doc. 1089 é um decreto de Afonso VI para todo o reino de Leão («affirmavit
in toto suo regno», Portugal incluído) e define – embora para as proibir, quanto aos
detentores atuais – as possibilidades que cada um desses estados tinha para transitar
aos outros. Nota-se neles serem em síntese, e dentro dessa evolução, precisamente
os três do doc. 1025 (apenas se não notando o mesmo na «beetria» pela sua índole
especial). E dizemos em síntese por haver aí pelo menos duas expressões analíticas,
uma para a instituição ecclesiarium desdobrado em «hereditas de episcopatu vel de
aliquo sanctuario» em 1089) (1); e a outra para as pessoas, os «nobiles», como em
«hereditas de comite vel de infanzone», a qual interessa para a noção de comitatum
ou infantaticum.
Já noutro capítulo deste estudo mostrámos que o comes é um «infanzon»
especial e, de acordo com o facto, que o infantaticum é o mesmo que comitatum
nessa especial situação (ou não que uma coisa compreendesse a outra). Mas o
episcopatum e o sanctuarium são casos especiais do ecclesiarium – melhor se diria as
duas feições deste.
Isto quanto a dois dos referidos estados, o «condado» e o «igrejário». O
«reguengo» tem também no doc. 1089 uma definição analítica, mas por omissão. É
que ele surge aí no seu aspeto relativo, não a bens propriamente do rei (aspeto esse
um dos seus dois), mas no outro, o de bens foreiros, o de proprietários plenos e livres,
expresso na restrição «nec de ullo heredario». De facto, compreende-se: aqueles, ou
seja, os reguengos simples, estão aí fora de toda a consideração em pleito – e por
isso o monarca, ordenando ou dispondo acerca dos vários estados da propriedade,
não precisa de o fazer quanto aos seus próprios. O mesmo documento, como em
breve veremos, o indica claramente.

__________
(1 ) A única e insólita referência concreta e que sempre nas transcrições omitiremos, «ad
Sanctum Pelagium», só poderá explicar-se por especial privilégio pelas razões de especial devoção
àquele mártir do séc. X, indicadas por P. David, Ét. Hist., p. 220 (sem tratar do nosso assunto).
__312__
Este decreto de 1089 mostra ainda como se realizava o quarto estado, a
«beetria», na expressão «nec ad benefactoriam de ulla potestate vel de ullo heredario»
(herdador). Como também veremos, aquele decreto é endereçado nominalmente à
nobreza (incluida a família real): «aliquis de genere suo (sc. regis) aut de genere
comitum aut nobilium» – o que nos leva a concluir que aquele «heredario» não é o
vilão herdador, mas o herdador nobre. Resulta a «beetria» como transformação de tipo
senhorial no «reguengo» por ação nobre. E, pelas maiores garantias de proteção
eficaz aos patrocinados, distingue-se a ação dos mais poderosos, as «potestates»,
que são, claramente, os mais poderosos, as «potestates», que são, claramente, os
«infanzones» na sua função pública de mandantes (tal como até nesta mesma ocasião
eles se definem: «nobiles genere necnon et potestate», doc. ES XXXVI 37).
Para melhor compreensão destes vários processos e também melhor
verificação de que este decreto se endereça à nobreza em geral, é útil notar que, dos
respetivos parágrafos, respeitam três a instituições, e o outro a pessoas singulares:

a) Instituições:
- «hereditas de regalengo ad infantaticum (non curreret) nec ad episcopatum
vel ad alium sanctuarium, nec ad benefactoriam de ulla potestare nec de ullo
heredario».
Trata-se, pois, do reguengo», herdade foreira à coroa (e não o próprio rei).
Como acabamos de exprimir, a transformação do mesmo em «beetria» é operada por
qualquer nobre, sobretudo os mandantes (digamos os «infanções» no seu cargo
condal), o que explica a especial menção das «potestates» entre os «hereditarios»
nobres.
- «et hereditas de illo infantatico non curreret nec ad regalengum nec ad
episcopatum vel alium sanctuarium nec ad benefactoriam de ullo heredario».
Trata-se, agora, do «infantado» (ou «condado»). A sua vigoração, como é
natural dentro do caráter que lhe demos (já no terceiro capítulo deste estudo), é, pois,
muito anterior e geral. Cremos, até, que por

__313__
isso mesmo é que agora se proibe, como resultado de uma evolução que afetaria os
atuais detentores (1).
- «similiter hereditas de episcopatu vel aliquo sanctuario non curreret ad
regalengum nec ad infantaticum nec ad benefactoriam de ulla potestate aut de aliquo
heredario».
Este caso, pois, o de «igrejário», proibido de passagem a «reguengo», a
«condado» ou a «beetria».
Falta um parágrafo para este quarto estado, aparentemente; mas tal não se dá.
A «beetria» processava-se nos «reguengos» foreiros, e não poderia regredir a este
simples estado sem se destruir como tal. Por outro lado, dentro da sua própria
essência, a sua prática teria como resultado a identificação exterior a «igrejário»
(quando realizado por entidades eclesiásticas) e, sobretudo, a «condado». É que o
caso mais frequente vem a ser fatorização da «beetria» em pessoas da nobreza (com
maiores probabilidades os mandantes).
b) Pessoas:
- «hereditas de comites vel de infanzone vel de ullo heredario non curreret ad
regalengum nec ad infantaticum nec ad episcopatum vel ad aliud sancturarium».
Este passo dá margem pelo menos a três reparos, que passamos a
sucintamente esclarecer.
Fala-se de «comite vel de infanzone» como se se tratasse de entidades
diferentes. Ora não o são, embora distintas: já demasiado dissemos e mostrámos que
o comes se há-de ter por um «infanzone» especial.
Aquela expressão, em tal conspecto, é idêntica à que a seguir se encontra «de
genere comitum et nobilium», como se entre condes e nobres houvesse diferença:
distinção, sim, que não diferença, pois o comes é um especial nobilis. Isto mesmo
reforça – sem o necessi-

__________
(1 ) A mais antiga notícia do «condado» predial entre nós creio ser uma de 1057 «ipsa
hereditate de ipso condato» DC 549 – sendo de notar que se refere com a menção de «ille dux» dos
inícios do séc. XI que na circunscrição «tenuit regalengo et condatu et mandamento». Falta o outro termo
do trinómio, o «ecclesiário», porque este o não podia ter o «dux»: o «condado» sim, como apanágio
funcional, e o «reguengo» como mercê régia no seu «mandamento» (aqui, a circunscrição).
__314__
tarmos – a identificação dos infantiones aos nobiles sem geral, qual já havíamos
concluído no terceiro capítulo deste estudo.
Impedindo-se para o estado atual a transição «ad infantaricum» da
«hereditas de infanzone» (seu caso particular é de «comite»), dir-se-ia que o
«infantado», afinal, não era o que temos dito, mas o que dizia Sánchez-Albornoz
servindo-se precisamente deste decreto de 1089 contra Mayer, que nele se apoiara:
ou seja, que ele «prueba a las claras que, como todos los españoles sabem, el
infantzago era propriedad de los infantes» filhos dos reis (SA 70). Claro que não prova,
senão que o medievista espanhol tombou num grave equívoco cronológico ( 1) –
estando o germânico, embora sem ter atingido com clareza a noção, muito mais
próximo desta. Não iremos repetir o que a tal respeito dissemos noutro capítulo. O que
temos naquele documento, e nesse passo, não são haveres dos infanções,
pessoalmente considerados, mas o conjunto de prédios reservados aos infantiones
como potestates, isto é, em função pública de mandantes, tal como na própria ocasião
se definiam (doc. ES XXXVI 37) ( 2). Isto é, proíbe-se em 1089 que um prédio próprio
do nobre, do «infanção», seja incluído no «infantado», o que, como bens da coroa,
afinal (embora de utilidade destinada), só poderia fazer-se por abuso de autoridade
sobre eles de outro infanção poderoso, interessado.
Finalmente, dentro da aceção foreira que atrás reputámos para o «reguengo»
deste decreto, a proibição da passagem, a esse estado, do prédio «de ullo heredario»,
reforça esta nossa interpretação do que eram esses «heredarios» neste passo, ou
seja, proprietários

__________
(1 ) É, de facto, tão grave equívoco (já que se fala do que «saben todos los españoles»)
como se para esse mesmo tempo nós, «todos os portugueses», fôssemos pensar existente o nosso
infantado – a Casa do Infantado, instituida em 1654 para o segundo filho dos nossos monarcas.
(2 ) Neste justificado jogo de identificações, não é de surpreender as expressemos a cada
passo e, com elas (como este caráter de mandantes potenciais dos infantiones), façamos a referência a
este notável documento.
__315__
plenos e, certamente, livres, e de condição tanto nobre como comum.
O decreto leonês de 1089 não pode, evidentemente, considerar-se uma
definição instituidora de estados da propriedade em correspondências pessoais ou a
níveis sociais: mas refletem uma realidade secular que a prática tornava inconveniente
a certos interesses pessoais (individuais ou coletivos); e tanto é isto, que, quanto a
mim, já a encontramos em documentos nossos muito anteriores:
De facto, basta olhar do séc. IX para o X à proibição de alienações de bens
doados a certa igreja por dois esposos: 924 «cum episcopo cum comite vel cum
aliquis homo alienare (non) presumat» DC 28 – referências pessoais em nítida
correspondência, respetivamente às institucionais ecclesiarium (pelo episcopus),
comitatum-infantaticum (pelo comes) e regalengum-forarius-benefactoria (por aliquis
bono).
Perante estas circunstâncias, também poderemos compreender, agora, que as
leis leonesas de 1020 hajam proibido a nobres e homens de beetria a compra a um
junior do «solar» e seu horto. Foi coisa que no respetivo capítulo procurámos
esclarecer, sem lhe encontrarmos ou melhor, lhe indicarmos o móbil, por ainda não ser
possível: «nullus nobilis sive aliquis de benefactoria emat», etc. De facto, a aquisição
por eles converter-se-ia, praticamente, em privilegiamento do prédio comprado. Ora
isso far-se-ia assim em favor de um nobiles em qualquer caso, quer fosse ele o
imediato adquirente quer o fosse esse «aliquis de benefactoria». A razão é que este,
então e a bem dizer, não passaria de interposta pessoa daquele. E daí resultaria,
repetimos, transformar-se em terra «de benefactoria» o prédio comprado – além do
inevitável confronto entre o senior deste e o nobilis da «beetria».

Com razão se opôs Sánches-Albornoz à tese de Mayer sobretudo quanto à


origem do infantaticum, as «sortes» góticas, e à da classe dos homines de
benefactoria, os possuidores das «terças» romanas – na época da partição tercenária
da Hispânia, a que nos referimos no primeiro capítulo deste trabalho (SA 70 e 140,
etc.).
Mayer ia mais longe, dando ao seu infantaticum um caráter associativo:
pertença não deste o aquele indi-

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víduo dessa categoria, mas de uma «associação», que Sánchez-Alborõz
rotundamente negou (SA 78, etc.). O exame dos seus argumentos, ainda que destrói
um tal aspeto dessa tese, fornece-nos, porém, preciosos dados para a construção da
nossa, em que esse caráter associativo, embora em diferentes aspetos, nos parece
inegável.
Servia de base a Mayer sobretudo um documento de 1030, em que aos bens
considerados próprios de cada infanção se chama hereditatelias (1), «herdadelhas».
Sánchez-Alborñoz, admitindo a associação entendida por Mayer para lha discutir (a
refutar), principia por denunciar o contraste entre «divisa», isto é, a participação de
cada um dos infanções nos bens de tal associação, e a posse das tais «herdadelhas»
como bens próprios de cada um: e pergunta de onde vêm essas «herdadelhas» a
cada um deles, já que, como quer Mayer, tudo fora repartido em «infantaticum» (as
«sortes») e em benefactoria (as «terças»); e qual o documento onde isso se encontra
ou de que tal possa deduzir-se.
Verdade seja, o documento, como dissemos, é de 1030 – mas Sánchez-
Alborñoz contesta-lho acerbamente como tal. Veremos que dele resulta, de facto, a
existência de uma determinada associação.
Quanto à partição tercenária, já vimos que ela não foi nem poderia ter sido
total, nos próprios terrenos já explorados – ficando ademais livres, pelo menos em
grande parte, os terrenos não explorados e que deviam ser vastíssimos. E que
admiraria, pois, aparecessem desde então as «herdadelhas» como bens próprios de
cada infanção, se até há ainda hoje o que se chama «terras novas» que, no
aproveitamento novo, tão bem lhes correspondem? Sendo, pois, um ato de todos os
tempos, temos através da Idade Média casos de terrenos tais definidos: «qui sunt rupti
de veteri et qui sunt rupti de novo (isto é, estes pela primeira vez) (1258 IS 472)

__________
(1 ) Esse documento foi já por nós explorado em parte no terceiro capítulo deste trabalho, e
publica-se em SA 72-74. O diminutivo convém a estes prédios, tanto, sobretudo, pela extensão (inferior à
das concessões), como pela falta, ou quase, de encargos, ou a não inerência destes a eles.

__317__
– os prédios próprios, no todo ou em parte, dos arroteadores (a «portio de ruptores»
906 DC 13) (1).
Portanto, a posse de tais «herdadelhas» não oferece singularidade alguma.
Aquele diminutivo deve ter-se tornado mesmo, quanto a nós, uma designação
estereotipada – já no séc. X-XI, sem verdadeira relação com a pequenez de que ela
dá a ideia (2): sobretudo entendendo-a em relação com a extensão do latifúndio
romano ou, até naquele tempo (sé. X-XI), com a «associação» em divisa.
Também não precisamos de alegar o instinto individual da propriedade como
inconforme com uma posse coletiva – ou, ao invés, tempo apreciável conforme com
ela. Nem repararemos que no nosso território nortenho, que é o que aqui interessa,
não deve considerar-se a divisio tercenária (gótica), mas a depraedatio suévica, que,
no radicalismo, sem dúvidaa a ultrapassou.
Seja como for, no Estado, que não se deve considerar não organizado ainda no
tempo dessa ocupação, não pode ter sido posto de parte. Por outras palavras, ela não
deve ter sido operada em condições que mais ou menos diretamente não visassem
um interesse geral. Ocupação, pois, feita com obrigações públicas, o mesmo que
relativamente ao soberano (de outro modo, para que existia este mesmo, nesse
tempo?), responsável, como personificador do Estado, por esse mesmo inter-

__________
(1 ) Embora o não lembre neste ponto da sua refutação (a qual, por nossa vez, estamos
refutando), até Sánchez-Alborñoz anota o facto de iuniores poderem adquirir bens próprios nas terras
senhoriais, desde que arroteadas por eles. Do nosso lado, confirmativamente, temos visto que uma parte
dessas arroteias devia ser reservada pelo juniore ao senior, constituindo as terras dominicatae, as
rationes domnicae de que no quinto capítulo deste trabalho nos ocupámos originalmente.
(2 ) Essas hereditatelias «herdadelhas» foram um facto sócio-agrário tão real que nos
parece estar, pelo menos em muitos casos, nelas a explicação da toponímia predial agrária diminutiva:
Agrelo, Leiró, Pomarelho, Linharelho, Vinhó, etc., cujos vocábulos se documentam em uso: 906 «cum
suos linearelios» e «agrelo ubi habitat» DC 13; 960 «alio pumarelio» DC 79; 985 «una lareolina» DC 149;
séc. X-XI «novalelios» DC 952; 1107 nabaelio LF 366, etc. (sem significarmos que nestes documentos se
trate de bens de infanziones: é antes uma circunstância geral).

__318__
resse. A mais notável teria sido aquela que – talvez mesmo a partir daí – se tornou a
caraterística dos infantiones: a da milícia, que, restritivamente, na Reconquista, era a
anutba «anúduva».
Outra pergunta de Sánchez-Albornoz a Mayer, é «por que artes ou magia
desapareceu também o infanticum, tal como este o entende, visto que (alega o
medievista espanhol), não há dele texto algum no séc. XIII-XV (SA 71). Tal pergunta
não surpreende, de facto, em quem está convencido de que se trata de bens dos filhos
dos reis.
Ora devemos uma vez mais lembrar a divisio praticada até essa época (a qual
deve ter sido o comportamento inicial), e que o trinómio regalengum-infantaticum-
ecclesiarium define, respetivamente, as possessões próprias do rei, as reservadas por
este aos infanções em função pública, e as consignadas à Igreja, em atondo. De
qualquer modo, sempre bens do Estado, representado pela coroa; mas o rei podia
dispensar, em maior ou menor extensão, de encargos o infantaticum (comitatum) e o
ecclesiarium. Um, no entanto, teria de permanecer como essencial à conservação de
uma sociedade, o da defesa desta, naturalmente confiada aos infantiones: a milícia – e
daqui a designação genérica millites para os cavaleiros-fidalgos, a qual substituiu
aquela na designação geral de classe.
Como, naturalmente, os infantiones não poderiam ser os mais numerosos, não
devemos crer que só eles ficassem sujeitos a tal serviço, nomeadamente a anutba:
também os seus colonos e outras mais pessoas a eles em qualquer grau sujeitas, bem
como à coroa. É o que na nossa Nacionalidade se revela, localidade por localidade, a
cada passo. Neste aspeto, tremos precisamente a encarar a designação milites para a
«aristocracia» vilã (os chamados cavaleiros-vilãos), não faltando mesmo, a certa
altura, pelo menos (mas que devia vir de longe), sem questão de número, uma
hereditariedade de condição, tal como na nobreza, «per naturam» explicitamente (1).
Estas situações nobres e não nobres

__________
(1 ) 1141 Leg. 376, etc. Ver o início do capítulo V.
__319__
são correlativas, e podem esclarecer-se de origem, mutuamente.
As outras terras dos infanções, suas próprias – chamar-se-lhes ou não
hereditatelias –, deveriam ser as isentas de encargos fiscais ( 1). E esta isenção,
mesmo que tivesse havido quebra de continuidade pela invasão e ocupação arábica,
não poderiam deixar de repor-se. Até porque a legislação visigótica se utilizava
predominantemente na Reconquista (2) – e não só como fonte de direito, mas o que
mais aqui importa: informação do passado e sugestão para o presente. Sem poder
considerar-se um raciocínio simplista, parece-nos dever entender-se aqui a origem da
propriedade imune, que viria a assumir os diversos aspetos já estudados, tanto no
privilégio como na extensão.
Estabelecida esta distinção entre bens próprios dos infanções e os concedidos
com obrigações, sobretudo a militar, compreende-se que aqueles – as suas
«herdadelhas» – lhes não fossem retirados quando aquelas não eram cumpridas.
Nomeadamente a essencial, a anutba, não andando ligada inicialmente senão a
concessões, permite ver nestas uma certa situação feudal. De facto, num caso
ocorrido nos inícios do séc. XI, enquanto toda a terra da divisa (ou «associação» de
Mayer) «pro inde intravit in comitato», isto é, se reintegrava, pela falta de cumprimento,
das obrigações, na parte soberana imediata (3), as terras próprias ficavam-lhes: «non
eis laxabit nisi suas hereditatelias» (doc. SA 73).
Uma terceira objeção de Sánchez-Alborñoz a Mayer consiste em aquele
entender que as propriedades plenas dos infanções se converteram «no extensíssimo
solarengo» constituído pelas muitas beetrias que se

__________
(1 ) De harmonia com o Cód. Vis. X, 1, 6.
(2 ) Tanto como as leis canónicas: 924 «ut canonica sententia docet et lex logica ordenat»
DC 28 (com constantes referências à lex gothorum: «in liber godorum CD 470; «in lega gotorum» DP 18,
etc.
(3 ) Este comitatum, aqui, não é sinónimo de infantaticum, mas o condado soberano de
Castela: por isso se não escreveu «in regalengo». Equivale, porém.
__320__
documentam em Castela. Mas muito mais há que objetar a isto. Principiar-se-á por
notar que, não se documentando, a bem dizer, nenhumas no nosso território (as
nossas beetrias funcionam tarde, e são, como veremos, muito poucas – além de
termos de ver nelas uma origem especial que se não coaduna com os pareceres
daquele medievista acerca da sua geral origem), este mesmo nosso território, ou
Portugal de então, vivia num estado social muito diferente, o que é impossível
sustentar. Aquela ideia parece ter sido sugerida pela pequenez (relativa, como vimos)
de cada hereditatelia, mas compensada pelo grande número (também aparente,
quanto às beetrias).
Se bem nos apercebemos, como julgamos, da ideia de Sánchez-Alborñoz,
cremos que há nisso um total equívoco. De facto, Mayer vê nas beetrias um avatar
das terças romanas; por outro lado, as herdades próprias dos infanções, alegadas por
Sánchez-Alborñoz, só podem ser, ao que cremos, as «herdadelhas» dos infanções.
Ora estas, como bens pessoais e logo patrimoniais, nada tinham com as beetrias, nem
podiam ter. Assim, contra o que o medievista espanhol (um «tal solarengo ter sido
continuação do infantaticum), sem com isso apoiar o alemão, basta notar-se que este
fazia repousar o infantaticum nas sortes para desencontrarmos em absoluto o seu
crítico daquilo que Mayer pretendia significar. Para este, de facto, repitamo-lo, o
«solarengo» daquele não se identificaria às sortes, para onde o dirige o outro na sua
refutação. Esta, neste ponto, parece-nos desviar-se totalmente do pretendido alvo.

Em direta relação com o que acabamos de verifiar, e entendendo em Mayer


uma aproximação das realidades para as quais um exagerado criticismo, mais
chauvinista que filosófico, da parte de Sánchez-Alborños, obnubilou este, parece-nos
termos a considerar os seguintes fatores:
- a depraedatio suévica: não dizemos para o caso português (que é o que nos
interessa) a divisio gótica, que servirá para outras regiões peninsulares;´- a fração
romana: chamar-lhe-emos por brevidade «parte», já que, tendo-se tratado de um
esbulho,

__321__
nada indica uma fração determinada (como era a da divisio, a terça);
- os prédios novos: sobretudo os dos novos dominadores sucedidos pelos
infanções, aos quais prédios, ainda por comodidade, chamaremos «herdadelhas»
(heriditatelias), tipo de muitos prédios designados com este sufixo e que a toponímia
recorda a cada passo (confirmada nos documentos).
Respetivamente (sem embargo de matizes regionais): a propriedade que veio a
chamar-se infantaticum; a propriedade que só acidentalmente poderia ser benefactoria
e era sempre tributária (foreira, como se diria na Reconquista); a propriedade que só
acidentalmente era privilegiada (quando própria dos infantiones ou apenas neste caso
distinta da segunda).
No que toca a esta última, cada proprietário a tenet et habet, ou, portanto,
alodialmente – cada um deles o seu senhor ou dono, no sentido inicial deste termo.
Quanto à segunda, também um tenet et habet, hispano-romano de origem e tributário
– isto é, sujeito aos infantiones, que no território ou circunscrição respetiva (não
discutiremos, por agora, se em «associação») tinham autoridade representativa (novo
aspeto – o das «tenências» da Reconquista – a dar à situação). No concernente à
primeira, apenas um tenet, pelo menos de início ou de direito (sendo do Estado ou da
coroa o habet): os infantiones como «tenentes» (neste caso, prediais), ou então «sub
manu» régia, como nas tenências administrativas (circunscricionais). Escusado, sendo
assim, insistir na possibilidade e prática, mais ou menos imediata, de o regime da
propriedade, neste terceiro caso, vir a identificar-se aos outros – tão óbvia como se
apresenta uma tal evolução: a mesma que, a partir do séc. XI-XII, levada ao extremo,
desfecharia nas já estudadas imuniddes (a honra e o couto, em todas as suas
variantes e seus matizes).
Não tendo sido aqueles três os regimes da propriedade, definida pela condição
social dos seus detentores e o seu processo originário, o que restaria pois para a
coroa e para as camadas sociais que desta dependiam imediatamente, ou seja, os
seus tributários – os ignobiles (para usarmos mais uma designação posterior)? O
foedus germânico com a autoridade romana não deveria per-

__322__
mitir, originariamente, senão esses três aspetos na posse predial; mas uma vez mais
não deverá esquecer-se que um tal foedus não pode ter-se aplicado a todas as
explorações agrícolas vigentes no tempo (por divisio gótica ou por depraedatio
suévica), e menos ainda àquelas que em terra virgem poderiam vir a estabelecer-se,
sendo tão vastas as disponibilidades nesta.
Um mero tenere não devia, pois, ser a verdadeira conveniência dos infantiones.
Daí o seu imediato interesse em organizar prédios propriamente seus, isto é, em
regime de tenere et habere – ou só habere, quando relegado por eles o domínio útil a
colonos (homines seus, como na Reconquista se diriam), por não quererem ou não
poderem encarregar-se diretamente das explorações. Neste ponto de vista,
poderemos entender como é que também a propriedade nobre se dava entre nós, nos
séc. XII-XIV, a qualificação de «ingénua» quando imune: uma alodialidade, pois, mas
relativa ao rei (1).
Contra a tese da associação de infanções, alega Sánchez-Alborñoz, referindo-
se à partição tercenária, que as fontes visigóticas, ao aludirem a ela, não dizem que
esta se fez a associações, senão «a cada godo em particular» (SA 72). Ora é bem
evidente que, como tais associações, a quando da divisa, ainda não existiam, tal, de
facto, não poderia suceder; e nosso está o absurdo da tese. A menos que se provasse
outra coisa, que já seria demasiada – e é que tais associações se constituiram então e
para esse mesmo efeito de partilha. No entanto, nada impede, antes tudo o indica, na
linha das conveniências, que os diviseiros viessem, mais tarde ou mais cedo, a
associar-se numa espécie de comunidade agrária que não eliminava a propriedade
individual, para fins como:
- cooperação nos trabalhos de exploração, e sobretudo auxílio e defesa mútuos
em região ainda inimiga,

__________
(1 ) Basta este exemplo, entre muitos: em 1258, certo casal reguengo «tenebat domos in
regalengo et tolluerunt istas domos de regalengo et fecerunt inde alias domos in hereditade ingenia, et
modo stat casale domini regis hermum», IS 718. Vê-se, perfeitamente, que o ingénuo não respeita às
terras senhoriais, neste e análogos passos.
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internamente, e que, na vizinhança, na Reconquista, só tarde se isentou de tal perigo
(1);
- autoridade civil (administrativa), que é um ponto fundamental em qualquer
grau da sua diferenciação;
- autoridade militar, com prioridade na defesa da respetiva dircunscrição (como,
no início, sucedia no territorium da respetiva civitas), outro ponto de vista não menos
fundamental.
Estas duas autoridades vamos, de facto, encontrá-las em casos duunvirais e
sobretudo triunvirais de infanções, nos liminares da nossa Nacionalidade. A última
liga-se à obrigação da anutba, fundamentalmente – sobretudo como prevenção de
defesa em tempos de paz. E pode mesmo entender-se (porque temos entre nós
situações mais flagrantes) que a natural necessidade de um chefe regional fizesse por
vezes relevar na circunscrição um dos infantiones sobre os demais, com
consequências profundas. Assim a proeminência de uma estirpe que soube aproveitar
o poder dos seus chefes para retê-lo em si própria com uma sorte de hereditariedade
tacitamente respeitada pelo poder real. É o que acontece, desde antes da nossa
Nacionalidade, em várias famílias «sedentes» em vastas circunscrições nortenhas.
Como não temos conhecimento de uma tal circunstância fora de Portugal de então (a
não ser muito execionalmente), cremos que algo de particular numa tal circunstância
geral levou a um tal efeito e que ele deve encontrar-se na instauração política e
agrária (esta pela depraedatio) do poder suevo. Um tão importante assunto não deve
ficar apenas nisto neste trabalho: mas seja apenas isto por agora.
Parece-nos de entender que o referido tenere da propriedade – o infantaticum
– não é senão o que se chamará na Reconquista um préstimo, sem isso significar que
os praestimonia tivessem sempre tal origem. Não existindo ainda honores e cauta,
pelo menos nos aspetos com que os temos desde o séc. XI, o encargo

__________
(1 ) Cremos que muitos casos populares de comunitarismo agropecuário devem ter tido
origem neste a nível inferior, ou tê-lo imitado.
__324__
monopolista da nobreza, a milícia, seria de início remunerado com a concessão ou
confirmação desses préstimos – o infantaticum (ou comitatum predial correspondente
ao comitatum circunscricional, administrativo). E este, depois de instauradas as
verdadeiras imunidades nobres, manteve-se – mas com manifestações cada vez
menos frequentes (vai acabando mesmo com essa plena instauração), como
remuneração dos mais altos magistrados, os quais eram sempre os mais altos nobres.
Relativamente à divisio gótica, apenas a terça romana deveria ter ficado
tributada na prática – ou, por outra, diretamente (em relação à pessoa real). É que o
tributo nas sortes seria absorvido pelos diviseiros como estipêndio das suas
obrigações (pois elas eram sobretudo militares), concretizando-se socialmente em
nobilitas (1). No nosso território, a diferença resde em não se considerar em nosso ver
– repetimos – um diviseiro gótico, mas um depraedator suevo: e este aspeto, que no
capítulo inicial não podíamos ainda referir, pode explicar como essa nobreza se
formou e foi a antepassada da nossa, nas suas evoluções mais cíclicas.
Esta nossa tese parece-nos ter a sua confirmação na própria classe popular.
De facto, tal remuneração estipendiária (por dever miliciano) dos infanções aparece
também nos por isso chamados milites villani, os cavaleiros-vilãos (contrapostos ou
homólogos dos cavaleiros-fidalgos, os milites nobiles, outrora infantiones), com a
equiparação desses cavaleiros não nobres, em juízo a infanções, e até a próceres
(ainda nisto havendo a correlatividade dos infantiones a potestates que alguns desses
infanções eram) (1). E no mesmo sentido se encantará até a concessão de atondos,
tais como os préstamos aos nobres e, como com estes, por obrigação de anúduva,
sem esses atondos dispensada (2). Pois note-se que a anúduva parece que havia
praticamente desaparecido da nobreza: tornara-se a obrigação militar mais

__________
(1 ) Assim se esclarece a nossa afirmação do primeiro capítulo de que «apenas a terça
romana ficava diretamente tributada «ut nihil fisco deperire», Cód. Vis. X, 1, 16.
(1 ) Leg. 369, 379, etc.
2
() Leg. 371.
__325__
isenta da vilania (sem ser a sua única militar), cuja promoção social se ia assim
processando na retaguarda da nobreza até atingi-la, como em muitos casos deve ter
sucedido (1).
Parece poder compreender-se agora o seguinte: Deixando de conceder-se à
nobreza, pela obrigação militar, a remuneração referida (o antigo infantaticum), essa
mesma obrigação deveria de facto ter desaparecido. Ora o infantado foi-se diluindo até
desaparecer vagamente, na mesmo obrigação, agora não estipendiada (pelo menos
na feição anterior). Ou, melhor, a obrigação conservou-se sem um estipêndio desse
caráter, tornando-se mesmo o dever caraterístico da classe nobre. A razão, pois, em
nosso entender, terá sido que os préstamos desapareceram, com esse sentido, da
nobreza (a não ser quando concedidos expressamente pela coroa, como veremos).
Ora essa desaparição gradual coincide, gradualmente, com o aparecimento das
imunidades (coutos e honras) e, o que é mais, com a transição delas à camada
popular mais evoluída. De facto, é esta, agora, que se encarrega desse serviço militar
(com outros da milícia), recebendo por ele uma remuneração «privilegiada» sui
generis – ou atondos, ou dispensa de todo o foro à coroa, ou, nos casos instituidos
coletivamente, regalias municipais.
Estes traços de uma tal evolução terão de mostrar, em nosso entender, que
ela, na nobreza (como se revela também no progresso popular), tem uma origem
militar que, por muito vaga que possa antolhar-se (mas que realmente o não é), levou
à instauração paulativamente diferenciada das honras e coutos.
De acordo com tudo o que acabamos de formular, está o facto de ser cautal a
primeira manifestação dessas imunidades – aquilo que chamamos o cautum simples,
a dispensa da milícia na população da imunidade (com-

__________
(1 ) Sem entrarmos em pormenor, não esquecer que a palavra «infante» (e «infantaria»)
ainda se usa militarmente. A ligação é manifestam embora ignoremos como e quando se fez. Não
significa o que no texto dizemos que a nobreza não exercesse de todo a anúduva mais tarde – em casos
especiais.

__326__
pensação dada ao senhor desta de não ser dispensada nele), relativamente ao poder
real. A honor simples, como a estudámos, mostra-se ainda de início estipendiária,
nesse mesmo aspeto. É que a obrigação miliciana persiste (a população apenas
dispensada do foro à coroa); e, para melhor clareza, lembremos que os
privilegiamentos totais, os casos da imunidade perfeita (que tinham no povo o
correspondente nos municípios perfeitos), ou seja, a honor-cautum e o cautum-honor,
que se equivalem, são sempre pontos de chegada de ações nobres (a não serem
casos especiais, dimanados da própria coroa).
Não deve deixar de notar-se que, muitas vezes, o rendimento senhorial das
imunidades poderia ser insuficiente: nobres cuja influência e serviços os
recomendassem particularmente ao soberano, receberiam então deste préstamos
como renda suplementar (o que, mais tarde, se substituirá, sem alteração de sentido,
pelas «contias») – dir-se-ia por sua «vassalagem».
Poderemos com tudo isto pensar que o encaro de um «feudalismo» peninsular,
nomeadamente entre nós, não se pode dar por decidido na negativa em que há muito
os historiadores o colocaram. As maiores autorias não são intocáveis, nem há na
História decisões monolíticas.
O praestimonium (para não dizer o mesmo, como se deveria, das honores e
dos cauta aparece assim como um beneficium no sentido próprio ou mais simples
desta palavra. Não nos poderá surpreender que, do séc. X para o XI, os «infanzones
de Spelia», por exemplo (para não procurar outro), se nos apresentem em situação e
funções vassálicas que haviam sido liges: «fuerunt bassalos de illo comite» (como
outros o eram «de illo rege»), mas ainda livres capazmente de proceder «nulla ligienza
faciendo». Quer dizer, segundo entendemos, poder faltar «à ligença homágica», à
homenagem (doc. SA 73, onde, de resto, nada se interpreta propriamente neste
sentido). É esta uma expressão que indica que a homenagem lige pelo prestimónio
tinha sido de início prestada.

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Ficam deste modo melhormente explicadas (um ponto de vista, entre outros
que possa haver a tal respeito), a origem e até a natureza que no terceiro capítulo
representámos para o «infantado» ou condado predial – o que, a este nível, ainda não
era então possível. De facto, possuíssem eles já ou não imunidades (coutos e honras),
os infanções foram, inicialmente, tenentes dos prédios – por isso chamados
infantaticum no conjunto, com as obrigações já referidas.
Na Reconquista, os casos de presúrias repetiriam, na aparência, as
depraedationes suevas. Dizemos na aparência porque a divisio para aquela (868 LF
16) deve ter-se feito num regime de tenere et habere para todos os diviseiros, entre
estes incluído o rei, e constituindo os prédios deste os reguengos simples e os dos
outros os forarii. Na depraedatio, o regime predial deveria ter sido geralmente do
regalengum. Isto não quer dizer que não tivesse havido uma mais ou menos rápida
transição ao regime foreiro na maior parte dos tenentes prediais, os quais iam
constituindo a nobreza.
Com um número avultado de tais casos, a nobilitação pela mesma via
(económica) não seria depois tão fácil em face de uma nobreza já vigorante – embora
não impedida, como temos visto, enquanto esses «primeiros» (nos sentidos
cronológicos e social) continuavam a sua evolução para as condições prediais isentas
que resultaram nas imunidades, seguidos, mais ou menos de perto, pelos ainda não
nobres. Estes, à parte os casos de acesso à nobreza, conseguiam, como temos
também dito, privilegiar-se, já tarde e numa feição diferente – a municipalização no
seu grau perfeito (no que o nosso ponto de vista está de acordo com a negativas da
origem dos municípios nos romanos).
Regressando ao regime de tenência do infantaticum, é ele tão evidente ainda
no séc. X para o XI como se mostra no caso dos «infanzones de Spelia» referidos: não
se tratava de possessões hereditárias. Quando já o fossem, poderiam ser eliminadas
em caso de falta de cumprimento dos encargos inerentes. E é o mais crível, em época
já tão adiantada ou distante da origem. Não há, de facto, em nosso entender, razão
alguma para não admitir aplicada a infanções a retrocessão de regime foreiro ao de
simples reguengo que ocorria com os pro-

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prietários (foreiros) que não solviam as foragens ou não cumpriam os serviços do seu
foro. E isso tanto mais que até os cavaleiros-vilãos retrocederiam a jugadeiros, em tais
circunstâncias.
O esquema que apresentamos, sem significar absolutos ou exclusivismos,
resume os nossos pontos de vista quanto à evolução predial – e, portanto, nos seus
detentores, quanto à evolução social.
Sem isso significar que seguimos a tese da associação de infanções de Mayer
– dizemo-lo novamente –, não parecem ajustadas à negativa as razões de Sánchez-
Alborñoz: «nem uma só fonte antiga nem moderna permite distinguir entre a
propriedade de associação de infanções e as herdades particulares destes» (SA 72).
Isto o que significa é negar tais associações.
Convém notar que, mesmo que fossem aceitáveis as alegações daquele
medievista espanhol, elas, respeitando a territórios diferentes dos nossos – que são os
que aqui interessam –, há as particularidades da depraedatio sueva (enquanto nos
outros a divisio romano-gótica tercenária) e da presúria na Reconquista, circunstâncias
que depressa irão ser apreciadas para tal ponto de vista.
Que fontes antigas podemos considerar (alegando-as Sánchez-Alborñoz) a não
serem, a bem dizer, unicamente as leis? Estas não pretenderam contemplar todos os
casos possíveis, e o que nelas se não priobisse expressamente seria admitido. É o
caso das hereditatelias, prédios de organização individual nos terrenos abandonados
ou incultos. A não associatividade ou não condomínio compreende-se com elas; mas
já não assim com a divisio, tão negativamente.
De facto, a divisio romano-gótica, tal como entre nós a depraedatio sueva, tinha
o caráter individual; mas isso não quer dizer que na Reconquista sucedesse o mesmo
– e é onde pretendemos situar-nos. É, como vimos, também uma divisio tercenária
(diferente, porém, da romano-gótica), tal como já demasiado a temos designado: a
parte régia (um quinto, ao que parece, propriamente do rei), o regalengum; a parte
reservada aos próceres como estipêndio de funções públicas (o infantaticum, ou
comitatum); e o ecclesiarium (o dote das igre-
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jas, sobretudo catedrais – o episcopatum) (1). Num ponto de vista geral, eram sempre
bens reguengos, com encargos cujo âmbito e natureza aqui não interessa discutir;
mas temos de distinguir o regalengum diretamente da coroa (uma das duas
presumidas quintas) e compreender que esta não poderia encarregar-se diretamente
dele. Daí a interira plausibilidade, em nosso entender, de uma concessão aos
próceres, ou, melhor, à nobreza (para não nos cingirmos a uma camada superior). E
tão fácil até de entender como a realidade de uma concessão análoga a pessoas de
condição comum, sendo forarii, pois, uns e outros concessionários – nobres e não
nobres, sem entrar aqui em concessionários – nobres e não nobres, sem entrar aqui
em pormenores acerca da índole e das condições da concessão.
Dentro destas, prece compreensível o movimento de promoção social: a
imunização (honras e coutos, na nobreza) e o municipalismo (na burguesia fisiocrática
e mesteiral), circunstâncias de evidência ou plena vigoração já tardia (sua evidência
como facto a partir do séc. XI-XII) e que não são o que mais aqui interessa.
O que, com efeito, realmente aqui importa é que a divisio da Reconquista (para
presúria, mas não apenas esta) se fez por circunscrições (868 LF 16). Isto concorda
perfeitamente com a existência de grupos bem diferenciados de nobres. Em breve os
verificaremos, e que constituem mesmo um ótimo indício de uma associatividade de
infanções.

__________
(1 ) De notar, no respeitante a presores não nobres, presores «par manu comite» 868
«ipsas villas que preserunt quintarunt illas et dederunt illa Vª ad ille rex», LF 22. A referida quinta, pois, o
regalengum (simples); as outras quintas repartidas por foreiros presores (regalengum de outra espécie) e
por comites, naturalmente presores naquele aspeto (o comitatum), e por episcopi (o ecclesiarium). Isto
naquele aspeto (o comitatum), e por episcopi (o ecclesiarium). Isto mesmo explicará a questão a que
respeita esse doc. 1025 LF 22, que é uma questão entre a Sé de Lugo (em nome da de Braga) e os
habitantes dessas «villas», descendentes dos seus presores, os quais a dita sé reclamava por seus
servos, enquanto eles se reclamavam de ingénuos por tal ascendência. Apesar da agnição, cedendo ao
episcopado, não e prova a sua falta de razão: a dita sé apenas teria uma fração, mas, entretanto,
reclamaria o total; e, sendo a mais poderosa das partes, venceu. Não queiramos afirmar que a justiça,
antigamente, era de uma imparcialidade que daria exemplo às épocas posteriores.
__330__
Ora este indício não se observa apenas entre nós, facto que sugere pelo
menos certo caráter de generalidade. Com efeito, o próprio documento criticado contra
Mayer por Sánchez-Alborñoz no-lo parece apresentar; e (digamos mais) distinguindo-
se mesmo nele os prédios próprios de cada infanção e os outros – cujo estatuto, de
uma maneira despreconcebida (que foi a que orientou Mayer, e já o não pôde ser da
parte de Sánchez-Alborñoz, disposto a refutá-lo em tudo), nos conduz à ideia
associativista.
Basta notar, de facto, que o soberano (não importa tratar-se do conde de
Castela, neste caso, porque este era o imediato soberano para eles), não tendo certo
grupo de infanções cumprido o encargo principal (senão único), a anutba, que era a
sua ligença homágica, privou-os dos bens da divisio de que esses bens provinham, e
apenas lhes deixou as «herdadelhas». Certamente porque lhas não podia tirar, pois
não por benevolência: e, se não lhas podia tirar, é que eram bens próprios dos
infanções punidos. Logo, sendo bem distintas as «herdades particulares» destes
daquelas outras, temos, pois, de distingui-las, por contraste, como «propriedade de
associação».
A questão oferece ainda um outro aspeto: seria essa propriedade precisamente
da associação, ou individualmente, de cada associado? E, sendo o caso este
segundo, deixaria por isso de haver associação?
Já dissemos que admitimos, mas não no aspeto em que a pôs Mayer: quer
dizer, admitimos os bens individuais dos infanções, ou, melhor, em grupos de
infanções, cujo nexo associativo era, sobretudo, a condição da tenência desses bens,
que o soberano lhes distribuíra como grupo compromissório (daí a sua unidade) e que
eles depois repartiriam entre sim como diviseiros – sem com isso a tal associação se
anular.
Esta espécie de associação, sendo, sem dúvida, vastos os limites de cada
concessão desse tipo, teria de ser mesmo a única aconselhada contra o inconveniente
dela ser individual. O mesmo, de facto, seria neste caso que um latifúndio que, além
das inconveniências no próprio aproveitamento, teria de as de converter em entidade
influente e poderosa o concessionário. Isso tanto mais quanto mais profícuo fosse tal
aproveita-
__331__

mento (número de pessoas sujeitas, rendimentos, etc.), e com as naturais


consequências contrárias ou perniciosas aos direitos e poderes do soberano.
Tendo escapado a Sánchez-Alborñoz aquele caráter associativo, daí a
inanimidade de outro seu argumento contra o medievista alemão: referir-se o mesmo
documento as questões travadas entre si sobre os bens pelos infanções, com recurso
ao poder soberano (1).
Ora o recurso a este mesmo poder superior concorda com uma soberania
(quase apetece dizê-la uma suserania) instituidora ou mantenedora de um género de
beneficium, que era de finalidade sobretudo militar (se outra havia). Podemos mesmo
assim interpretar, fora do âmbito exclusivo das pessoas, o facto de entre nós ainda se
conservarem no séc. XV-XVI situações que nos parece não poderem ter de origem
senão a explicação de um tal tipo de concessões a infanções. Assim a de grupos de
lugares não obrigatoriamente colindantes que, sendo préstamos independentes, se
conservavam como préstamo único. Tal como se a coroa não pudesse alterar-lhes
uma tal categoria predial e dominical (semelhantemente ao respeito por uma honra ou
por um couto). Além disso e o que é mais, eram sempre concedidos em conjunto – ao
mesmo usufrutuário (2).
Feita a concessão grupal, pelo soberano, a divisa tornava-se uma tarefa
digamos interna do grupo:

__________
(1 ) «habuerunt in terra intentione per earum hereditates de Spelia et fuerunt ad comite»,
etc. SA 76: trata-se de uma intentio dos «infanzones de Spelia». Esta mesma intentio poderia até
compreender-se por questões de limites do prédio de um infanção com os de outro – o que há de mais
frequente em todas as épocas.
(2 ) Temos este caso cerca de Lamego – um conjunto prestimonial constituido pelos lugares
de Belães, Alvelos, Gondim, Mesquinhata, etc., que uma concessão régia de 1497 considera «bens e
coisas da coroa do reino», TT Mist. L. fl. 113 – cada um dos lugares um préstamo à parte (mas, repita-se,
sempre ligado aos outros quando numa concessão única – o que parece refletir o processo inicial: uma
divisa, cada lugar para seu diviseiro): 1258 «prestimonium de Verlaes», «prestimonio de Gundim», «de
Avelos», Inq. 10662, 10642, 10481 – já então de antigo uso (Belães TT Ch. de D. Af. III L. I, fl. 97), que
deverá ser pré-nacional.
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cada infanção com seu prédio, mais naturalmente um lugar ou «villa», ou pelo menos
uma área de «villa» cuja suficiência se completasse com prédios de outra, limítrofes
ou naturalmente vizinhoa (se limítrofes não eram) (1). E não podemos pôr de parte que
algumas áreas se reservassem a condomínio, por qualquer motivo – o que nos parece
mesmo revelar-se na toponímia (2). Mas este regime devia ser o caso mais raro, não
porque a sua representação toponímica seja, como é, fraca, embora expressiva, mas
por contrário ao interesse individual, que é o mais poderoso. De qualquer modo, e
repetindo o que já dissemos, não é de excluir uma atuação comunitária em muitos
aspetos (logradouros para pastos, cortes de lenhas, distribuição de águas, etc.).
Como o mesmo documento refere que certos infanções diviseiros «fuerunt
maneros pro inde entrarunt divisas in cometato» (noutro caso, isto é, sendo o rei o
soberano – dir-se-ia que «entrarunt in regno»), e como ele prova, assim, a
hireditariedade nas divisas – ou, pelo menos, que ela poderia existir –, Sánchez-
Alborñoz vê nesta reversão predial uma contrariedade à tese associacionista de
Mayer. De facto, se se tratasse de associação – alega –, os bens dos maneiros
passariam a ela e não ao soberano, como neste caso sucedeu (3).

__________
(1 ) Assim, certos prédios de cavalaria em Magustim andavam adstritos ao préstamo de
Gondim (separados deste por vários reguengos e uma notável honra): 1258 «ambulant cum prestimonio
de Gundim» IS 10642.
(2 ) Explicamos deste modo o topónimo Condominha(s), certamente de um arcaico
«*condominha» < lat. condominia (de condominium). Cp.1258 «in Agro de Comum», Inq. 14691 – o campo
Comum, no sítio deste nome, nome este aí antigo, pois.
(3 ) Sánchez-Alborñoz interpreta mal aquele passo, pois que, entre mais, entende que
aquele «cometato» se refere, nessa reversão, ao «comes do distrito». Não há no documento a mínima
alusão a este, nem mesmo de que ele se subentenda: trata-se do próprio conde de Castela (o soberano,
neste período de Castela independente). O medievista alega contra Mayer que tal reversão se deveria ter
feito (no caso concreto com que contesta este) para o conde de Castela, se a associação fosse o que
pretende Mayer. Ora é mesmo isso que acontece – reversão para o conde soberano (e não para o do
«distrito»); mas a verdade é que, defendido Mayer nesta nossa verificação, nem por isso a sua tese
associacionista se pode admitir na feição que lhe deu. Quanto a Sánchez-Alborñoz, é facto que não
chegou a entender o caráter do préstimo (como veremos), pois chega a identificar-lhes exercícios de
autoridade.
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O facto é que não se tratava de bens próprios, embora possivelmente hereditários


(pagando dos herdeiros o imposto da transmissão, o núncio): antes um beneficium,
precário, nesse ponto de vista, mas sem deixar de o ser – assim se explicando bem a
reversão ao soberano (diríamos até o suserano), e não à associação. De resto, esta
não existia como proprietária do conjunto dos bens do grupo dos infanções.
Com a origem no período romano-germânico, mesmo que esta instituição, que
veio a assumir o caráter prestimonial, tivesse sido quebrada pela dominação arábica –
o que nada prova –, ela repor-se-ia por seu natural com a presúria, ou mesmo com a
simples reinstauração do domínio cristão. Sendo verdade que a presúria, em nosso
entender, não teve o caráter de generalidade bastante para ela só explicar essa
circunstância, também é verdade, concordantemente, que dos prestimónios da
Reconquista não aparecem mais numerosas manifestações. No entanto, necessário
se torna notar que a hereditariedade firmada (pelo menos a certa altura como a
maneria indica) transformaria esses prestimónios em imunidades «próprias». Quando
a coroa atuasse sobre tais prestimónios, deveria ser sobretudo para concessão de
jurisdições – o que esclarece agora uma circunstância já por nós estudada mas ainda
então sem podermos explicá-la: os atos reais, de um modo geral, são «facio cautum».
Um couto que, sendo já dos agraciados o «foro», assumia, desde logo, a feição de
cautum-honor. Ou, melhor, de honor-cautum, o equivalente, visto que aquilo que se
chamaria – ou até já se chamava – honor existia já pela evolução do prestimónio.
Escusado dizer que seria esta a génese de imunidades completas apenas num certo
número de casos, entre os próprios mais antigos – e não será preciso também recorrer
aqui ao que no capítulo anterior ficou exposto (1).

__________
(1 ) Há motivo para, uma vez mais, e agora com exemplos, obedientes apenas à nossa
preocupação de documentar, lembrar que ainda em pleno séc. XII a propriedade nobre não era
privilegiada pela simples razão de ser de nobres; e quem diz a de nobres diz a propriedade eclesiástica.
Um exemplo para esta está nos muitos bens do mosteiro de S. Salvador da Torre entre Minho
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Aquela relação que estabelecemos da presúria com os grupos de infanções


não força a ter de considerar-se que um grupo fosse de uma mesma estirpe; mas
poderia sê-lo muitas vezes (1); e até parece que preferivelmente se trataria de uma só,
em cada estabelecimento (2). No entanto, essa circunstância não poderia ser a
condicional de um tal ato; onde, porém, o fosse, explicaria a instauração (ou mesmo
uma reposição) de autoridade na circunscrição respetiva – ou seja, uma determinada
estirpe na administração da «terra», com hereditariedade tacitamente reconhecida
pela autoridade real.
Nestes casos, explicar-se-ia também que, com a tenência (da «terra»), a
mesma estirpe possuisse por vezes o prestimónio (da mesma «terra»). Mas isto não
significa, que tenência e prestimónio coexistissem sempre: isso até sucederia
raramente. Todavia, quando verificado, nas tenências «hereditárias», só se
compreenderia na mesma estirpe, por óbvios motivos – sem ser regra absoluta (3).

__________
e Lima litoral, com avultados foros (sem coutamento, também) à coroa, 1258 IS 330, etc.: ora estes bens
haviam sido se uma estirpe condal das mais qualificadas: doc. AV 5-9, séc. IX-X e XI. Em 1163 (exemplo
agora só para a mais alta nobreza) a ilustre D. Teresa Afonso, viúva do ínclito Egas Moniz e aia do rei,
obtém de outro nobre numerosos haveres na região de Lamego – mas que não eram privilegiados na
posse do vendedor, nem o ficando pela posse dela, porque é o rei que os privilegia a esta: «totam
hereditatem quae in ea discribitur ab omni foro regali fisco vel debito deinceps liberam et salvam esse
concedo»: doc. nos nossos Esparsos de História, pp 180-181.
(1 ) Para o séc. IX-X, o caso da recuperação entre Minho e Lima litoral pelo dux Paio
Vermudes e outros «duces de suo genere» doc. AV 5-9 – um grupo familial.
(2 ) Não faltam exemplos de presúria dita «de stirpe», apresentados em obras nossas
anteriores, pelo que não daremos aqui exemplos: ver AF1 26, AF2 107, AF3 25.
(3 ) O caso da «terra» de Baião, da estirpe fundamental assim designada; sendo em 1144
tenente da «terra» João Viegas (D. João Ranha), é prestameiro de toda a «terra» seu irmão Pedro Viegas
(D. Pedro Pai): DR 205; o da «terra» de Aguiar (de Pena), da stirpe fundamental dos Sousãos: sendo em
1206 tenente daquela «terra» D. Gomes Soares, é dela o prestameiro seu co-irmão D. Vasco Mendes,
netos de D. Gonçalo de Sousa, que foi tenente de Aguiar, IS 1366 2: Docs. de D. Sancho I, nº 163.
(Quanto ao parentesco, ver Scr. 289 e 292). Em 1187, tenente de Baião e Ges-
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O prestimónio, porém, quando possa considerar-se, no fundo, um «benefício»,


nada tem de essencial com a autoridade. Os casos em que esta se junta ao
prestameiro são, repetimos, meras coincidências – porque, na verdade, nada impedia
que um tenens terram, isto é, o administrador desta «terra» representante nela da
autoridade suprema, fosse aí o prestamarius, o detentor dos rendimentos reais ou
públicos. De resto, se havia (económica) em préstamos.
E – mais ainda – nem um tal duplo caráter poderia ser uma circunstância geral
(situação em que a coroa teria, então, disposto de todos os seus rendimentos na
«terra», em favor de terceiros – o que, além da impossibilidade, realça o caráter
beneficiário do préstameiro) (1): e isso,

__________
taçô D. Afonso Ermiges e prestameiro Lourenço Gundiar (cits. Docs. nº 27), deve estar no caso, embora
desconheçamos o laço de parentesco (somente sendo certo que a estirpe «de Gundar», Scr. 368, é
«natural» da região, ou melhor, da «terra» de Gestaçô). Teremos, claro está, de excluir do prestamónio
geral de uma «terra» os prédios avulsos concedidos pela coros nela a nobres e outros indivíduos a tal
título.
Certamente, são muito raros (e cremos que muito temporários) os préstamos correspondentes a
circunscrições inteiras, como no exemplo da nota anterior, e os outros, abundantes e temporários, são
geralmente muito pequenos: 1220, IS 61, 112, 261, 341, 1032, etc. Também raros os préstamos, como
aquele de que demos exemplo cerca de Lamego (ver uma das notas anteriores).
(1 ) Neste ponto de vista, é notável o equívoco que Sánchez-Alborñoz estabelece sobre o
préstamo – por exemplo, no que toca (como matéria de caráter geral) ao prestimónio de Belães (um dos
de junto de Lamego a que imediatamente atrás nos referimos): acerca de um prestameiro desse
prestimónio, que em 1250 pretendia aí aposentadoria da igreja, define-o aquele autor por isso como um
«governador da terra de Belães»: La Curia Regia Regia Portuguesa, p. 71.
Não governava absolutamente nada: quem «mandava» era o tenente de Lamego (a «terra» em
que Belães se incluía), então D. João Garcia «de Sousãos», LDT 36, 69, 76, etc. – um prócer da alta
linhagem dos Sousãos, sendo o dito prestameiro de Belães de então um simples miles da linhagem «de
Fonseca». O autor espanhol julga que Belães é uma «terra» (por isso que lhe refere o caráter de
«governador» – como se intrínseco ao de prestameiro, repitamos): trata-se de uma mui pequena
paróquia, ainda
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pela própria dupla qualidade tenens e prestamarius, mostra bem que se tratava de
áreas diferentes, não necessariamente cumulativas, ou seja, a administração e a
economia (naturalmente, esta no seu caráter privado); e esta mesma, ainda, nas suas
espécies (foragens da terra e serviços) e na forma de as satisfazer (o forum terre ou
«uso da terra», consuetudinário ou escrito), andava sujeito às situações político-
administrativas e económicas estabelecidas na circunscrição, ou, melhor, próprias
desta.

Os exemplos de situações que nos parecem corresponder a associações de


infanções documentadas entre nós já antes da Nacionalidade não escasseiam – mas
sem podermos de modo algum dizer tratar-se de uma circunstância geral. Se o foi,
pelo menos deixara já de sê-lo – perseverando os casos a que vamos fazer referência,
os quais são flagrantes no seu sentido.
O que desde logo temos de notar é, eferivamente, que as primeiras tenências
administrativas que pessoalmente se definem se nos apresentam multivirais, e isso
denota a existência de grupo: Santa Maria DC 261, 853, etc.; Arouca DC 634, 649, etc;
Neiva DR 89 (para não contarmos o próprio Portugal pós-condal) (1). Um deles,

_____________
hoje localidade insignificante. Dela dizia o seu pároco ek 1758: «povo muito lemittado e pobre», TT Mem.
Par., t. VI, n. 78 – no tempo daquele caso, uma simples «villa», reguenga, «foraria regis de jugata», Inq.,
10671.
A situação é meramente económica: rendimentos, que são autoridade, concedidos a um nobre,
debaixo, como é natural, de obrigação (o serviço militar de homens por ele sustentados e equipados) ou
para pagar serviços já prestados. Tal como nas arras de uma esposa ao nível social da circunstância –
naturalmente, pessoa real: os casos dos castelos cujos rendimentos o rei cedia à esposa, ou que o havia
sido, como no de D. Teresa, filha de D. Sancho I por parte do ex-marido (Afonso IX de Leão), castelos
esses entregues a um nobre que deles prestava ao rei o homagium: Docs. de D. Sancho I, nº 74.
(1 ) Quanto a Neiva, referimo-nos à dupla tenência em 1127-1128, caráter que hoje damos
ao facto de aparecerem no mesmo documento dois próceres governantes desta «terra» e com que agora
pomos de parte as explicações que disso temos procurado, desarmónicas com esta. Ver o nosso
Guimarães, 24 de Junho de 1128, pp. 54-55. O caso portugalense, expresso em vários triunviratos
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naturalmente, o praesidens e o(s) outro (s) o (s) seu (s) acessor (es); e tais casos
deveriam mesmo ser os mais frequentes, porque a sua relativamente fraca expressão
documental se explicará pela citação do principal por brevidade.
Pela importância para a confirmação do nosso parecer associacionista,
daremos alguns exemplos:

- 1026 «abitantes eram in casa de Sancta Maria» (na fortaleza desta notável
circunscrição) três próceres administradores e defensores (cita-se aí mesmo um
desembarque normando), DC 261.
- 1030 (cerca deste ano), defesa de um ataque arábico na região de Viseu feita
em Lafões por «mais de trezentos cavaleiros cristãos cujos antecessores, no séc. VIII,
tinham obtido capitulação perante o conquistador Muça» (1).
Nada mais crível, pois, que uma associação, correspondente já no tempo
dessa conquista (cerca de 715), a qual tratou com os árabes e por pacto, certamente,
a sua preservação económica e talvez mesmo a administrativa. (2)
Deve notar-se que estes dois exemplos respeitam a duas «terras» cujos grupos
correspondentes (os «infanções de Santa Maria» e os «infanções de Lafões»)
aparecem designativamente expressos ainda muito dentro da nossa Nacionalidade.
De ambos eles, sobretudo o dos de Santa Maria, não faltam as provas da sua
individualidade: assim digamos de uma coletividade tal porque incompatibilidade é que
não a há nas significações.

__________
administrativos, foi também explorado em outros trabalhos nossos (AF1 150-157, AF2 43-60, etc.), mas
releve-se para o nosso ponto de vista 1059 «illos infanzones que erant (praerant) in Portugal» DC 421,
cujos nomes são referidos neste documento. Muitas vezes, porém, aparece apenas um deles (o
praesidens do triunvirato, ao que se vê): LF 23, LF 184, etc. Isto, não obstante certa ou mal velada
resistência que, apesar das provas que demos, se tem feito à nossa tese triunviral para todo o período
que lhe atribuímos (1043-1064).
(1 ) Em fonte arábica citada por Menéndez Pidal, La España del Cid, p. 53.
(2 ) Esta circunstância parece-nos revelar-se como origem de estirpes nobres notáveis (vê-
lo-emos talvez na segunda parte), além do moçarabismo antroponímico da região, etc.

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- 1110 «ante infanzones et barones de Alafonte et de Viseo», em presença do


conde D. Henrique e de D. Teresa, julgamento de uma causa (1).
A dupla qualificação não significa diferença entre infanzones e barones: trata-
se de uma redundância enfática da qualidade social desses nobiles. Se é que
infanzones não significa aí, simplesmente, a distinção ocasional entre os tenentes da
«terra», ao mesmo tempo, e os restantes, que eventualmente o podiam ser. Tanto
mais que, como veremos, não faltam exemplos de chamar-se-lhes indiferentemente
barones, ou mesmo milites (2).
Por vezes, os milites «infanções» de um determinado grupo (ou continuemos a
chamar-lhe associação) não tinham origem ou o seu paço (nobiliarquicamente solar),
de que lhes vinha o nome, na «terra» que associativamente os designava. É esta uma
circunstância que reputamos muito expressiva do que temos exposto e de que nos
dispensamos de dar elucidações, bastando olhar a alguns exemplos esclarecedores,
entre os que há (3).

__________
(1 ) Sé de Coimbra, Liv. Preto, nº 235, em que a esses infanzones et barones se chama
também milites – o que dispensaria a nota que segue e que reforça a sinonímia.
(2 ) 1112 «coram regina domna Tarasia et suos baronibus: doc. ML1 186 (altos nobres fáceis
de identificar); 1258 «carta que non est domini regis sed honorum terre» (tenentes de Faria), Inq. 14132;
são expressões que não respeitam a associações, mas que documentam o alto grau de nobreza dos
barones.
O mesmo quanto a milites, sinónimo de barones: 1188 «a militibus (regis) qui castra (regia)
tenuerint cum ea fidelitate cum qua corpus meum tenentur», Docs. de D. Sancho I, nº 30 (testamento
deste rei), sendo esses milites os mesmos que figuram em 1223 nas questões sobre o cumprimento do
testamento daquele soberano, doc. 1223 ML3 270.
Quanto a barones e milites em função associativa, como a entendemos, ver-se-ão noutro passo
os exemplos.
(3 ) Bastam dois casos, para a mesma «terra», a de Santa Maria – ou seja, para a respetiva
associação de infanções: «ego domnus Stephanus Reymondi de terra de Sancta Maria et de Sequeyra»,
doc. CP 200; o outro, «huum cavalleiro que ouve nome Vaasco Affonso e era natural de Lobom de terra
de Santa Maria e de Raveelo de riba de Payva», Scr. 339 e Inq. 9251. Aquele era da estirpe de Sequeira
(junto a Braga), mas casou em estirpe de Santa Maria, Scr. 356, 337 e 339 (ver o nosso art. GE XXVII
__339__

Um documento de 1435 revela algo do que «seria, naturalmente, em privilégios


(ou «foro» de classe), uma associação de infanções, como a entendemos: os
moradores de Lisboa tinham por foro «que eles hajam igual honra dos infanções de
Santa Maria», como, reclamadamente:
- que eles «non seja metidos a tormento, salvo em aqueles factos que o devem
seer os fidalgos» (tais infanções);
- «que houvessem de trazer armas per todo o seu senhorio» (senhorio real, ou,
portanto, poderem andar armados por todo o País (1).
Não deixa de ter grande interessem neste caso concreto, a concessão, no foral
de Lisboa, 1179 «milites de Ulixbona testificentur cum infantionibus de Portugal» (2):
não se trata de nobres, e tal privilégio é concedido aos milites vilãos de numerosos
municípios (testemunharem em juízo como os infanções). Mostra, no entanto, que
uma tal concessão do séc. XII e o foro dos munícipes no séc. XV devem ter uma
relação. Esta a interpretamos, para além da amplificação (dos milites municipais a
todos os vizinhos do município), como uma escolha que neste depois se fez dos
infanções de Santa Maria como paradigma, expressão e prática do seu foro. Cremos
que não haverá outra explicação do facto – e mais uma vez se salienta bem
claramente a existência de grupos nobres que têm, na verdade, o caráter de uma
associação dentro de como a vemos (sem necessidade de constantemente prevenir
que nos poderemos equivocar).
Devendo relacionar-se com esta mesma prática de um especial foro
associativo, há que notar-se ainda o seguinte, que vai dar a casos destes uma
expansão que ultrapassa em muito as expressões documentais na forma

__________
361-363: note-se o poder que teve os eu casamento – e que só pode explicar-se pelo ingresso numa
«sociedade» distinta em seu foro. O segundo caso é menos claro, mas deve ser idêntico, por motivos
que aqui não interessa apresentar: aquele exemplo basta.
(1 ) Liv. 1º de Místicos, etc., «Docs. para a Hist. da Cid. de Lisboa», 1947, p. 74 (nº 16).
2
() Leges, p. 414.
__340__

que temos encontrado (ou seja, novos casos ainda, que devem juntar-se a esses):
Fazendo-se em geral as designações senhoriais pelo nome do lugar onde o
senhor tem o seu paço de estirpe (a sua residência «oficial»), como é bem sabido ( 1),
havia uma outra maneira também de as fazer di séc. XII para o XIII; não, pois, pelo
local, mas pela «terra». Ou seja, não pelo paço (isto é, a estirpe própria), mas pela
circunscrição, o que, no aspeto aparentemente vago desta, só pode significar algo
definitivo e plenamente definidor. Não, pois, como aquele caso, uma família, mas,
neste caso, um conjunto de famílias – uma associação com foro próprio. É o
significado, quanto a nós, de designações de conjuntos sociais nobres como,
documentadamente, «milites de Sancta Maria» e «milites de Alafões», «milites de
Amaia» e «milites de Caambria», etc, tanto nesta mesma expressão genérica como
numa aplicação individual (2).
Esta maneira associativa de designar um cavaleiro-fidalgo estava em extinção
naquele tempo de proeminências paçãs e já orgulhos de solar, os quais se constituíam
à medida da organização das honras e coutos. E até isto, ainda de harmonia com um
conceito associativo inicial, nos leva a concluir que as designações de

__________
(1 ) Em expressão individual de paço ou solar (lugar), a qual deve comparar-se ao
significado com a expressão individual de grupo (pela «terra»), expressão esta que documentamos na
nota seguinte, bastam estes casos, entre multidão deles (origem de muitos apelidos, que foram nobres de
origem e hoje se usam sem tal sentido): «Joham Díaz de Freytas», «Rodrigo Meéndez de Teixeira», «dõ
Pêro Rodrigues de Pereyra», etc., Scr. 343, 309, 311, pessoas nobres, pelos seus solares e honras de
Freitas, de Teixeira, de Pereira. O seu sentido familiar comprova-se em constantes casos: 1258 «milites
de Médãas», «milites de Carapezos», «milites de Cunia», Inq. 5201, 6081, 7152, pelos solares e honras de
Medas, Carapeços, Cunha. E assim, numa certa «terra», grupos de famílias deste tipo é que, com seus
usos e privilégios próprios (seu foro), constituíam outrora a associação.
(2 ) Casos de certo nobre «miles de Penela»; outro e outro «miles de Faria» e «miles de
Caambria»; «miles de Terra de Sancta Maria», «milites de Madia» (Maia), etc.: docs. CP 86, 120, 123,
125, 134.
__341__

solar, isto é, as individualizadas, são posteriores às generalizadas, ou seja, às de


grupo. O facto significará desaparecimento das obrigações e direitos coletivos num
exercício de conjunto. Quer dizer, o das primitivas associações, por diluição em casos
similares entre si, mas independentes: as famílias sobrepostas às associações, até à
total obliteração destas – que não é possível, pois, negarem-se.

II

Sem dúvida que não esquecemos da prevenção que um dos nossos principais
historiadores faz de ser fácil receber-se a impressão de feudalidade em atos estranhos
a esta e até anteriores a ela (GB I 166).
Nem por isso são de pôr de lado circunstâncias, situações ou casos que podem
tê-la gerado ou não gerado, consoante a estrutura económica e a social e política em
que eles se verificavam: ou, por outras palavras, que tanto se afastariam dela, nos
seus tipos europeus considerados paradigmáticos (não se percebe muito bem porquê,
pois todos o podem ser), como dela se aproximariam – ou até essencializaram.
Portanto, um feudalismo sob formas peculiares, sui generis: no nosso caso, um
«feudalismo» portugalense-português.
Pelo seu perfeito acordo com todas as nossas teses, pomos desde já em foco
o facto de ser do séc. XI para o XII, que começa, ao que parece, a usar-se para a
nossa nobreza a designação milites (1). Ora esta notável circunstância coincide
perfeitamente com as seguintes:
- Ser ainda de então (devendo por então ter acabado) a designação infantiones
enquanto dada, como temos
__________
(1 ) 1106 «Gutterre Pelaiz miles conf. Odorio Menendiz maiorinu ville Sancti Victoris conf.
Suerius Sendiniz miles conf. Pelagius Gutterriz miles conf.» LF 642. O segundo, com função pública, nem
por isso é chamado «miles»: é que não pertencia à nobreza (fugindo, pois, à definição do «infanção» ES
XXVI 37). Casos anteriores (e não muitos) devem ser raríssimos.
__342__

visto, aos nobres em função pública (embora ela se mantivesse durante o séc. XII nas
designações oficiais, sobretudo as cartas de foral, para a nobreza no seu âmbito
genérico);
- Simultaneamente, ter cessado entre nós então, mais ou menos, a designação
comites (ou duces) para esses nobres em função administrativa (substituída, nas
«terras», por tenens e sinónimas) (1);
- Ser, por isso, necessária uma nova designação, a qual, a pouco e pouco, à
medida que o da milícia se ia tornando o encargo típico ou quase monopolista da
nobreza, foi sendo a de milites (sem excluir do número destes os tenentes das
«terras», chamados agora ricos-homens) (2);

__________
(1 ) Ainda cerca de 1140 se nota a sinonímia de miles para dux num prócer em função
militar de fronteira (como o caso de Sarracino Viegas do exemplo que adiante apresentamos): Paio
Guterres «strenuus dux» Scr. 121 ou ele mesmo «miles strenuus», Scr. 122 (numa mesma crónica) – ou
seja, o mesmo que, antes do séc. X-XI, como vimos, o comes ou dux (nesse tempo, um «infanzon» em
alto cargo, e, agora, neste mesmo cargo, um miles).
Mas já muito antes temos outra notável educidação: 1117 «barones et infanzones... erant boni
milites et sui parentes», Liv. Pr. nº 235 – isto é, parentes desses «barões e infanções» (duas qualificações
sinónimas, aliás), ou, portanto, milites estes barones et infanzones (de perfeito acordo com o contexto do
documento). E aquela qualificação «boni milites» lembra perfeitamente, equivalendo-lhe, a expressão
relativa a nobres «bons homens, filhos-de-algo» considerados «dos que devem a armar e criar»), Scr.
175.
(2 ) Além dos exemplos da designação miles dados nas notas anteriores, é de notar este:
1141 «non damus eam plantandum (hereditatem) militibus neque potentibus hominibus vel tributum
defendentibus sed illis solis qui solent esse semper laboratores et tributum dare et de humili plebe
existum», Liv. Pr. nº 182.
Neste trecho, referemse de um lado (o outro são não nobres, «lavradores?): «milites»; «potentes
homines»; «defendentes tributum» – aparentemente três categorias. Na realidade, uma única; e esta, os
milites, a primeira designação, que é um enunciado sociológico, ou, melhor, de que são uma explicitação
as outras: estas, respetivamente, pessoas poderosas, tanto por qualidade como, sobretudo, por
autoridade (os mandantes das «terras»), ou pessoas capazes de «defesa» do foro, isto é, de «honrar»
(ver a nota seguinte), por autoridade e sobretudo, por qualidade (tal como com o foro régio nas
encensorias e beetrias, de que falaremos). Em suma, uma perfeita definição dos milites para além do
encargo significado por esta palavra.
__343__

- Começarem, desde então também, a diferenciar-se as imunidades ou


«benefícios» cauta e honores (1), numa espécie de correspondência «estipendiária»
(embora eminentemente de natureza pessoal) àquela mesma obrigação pessoal
(militar) da nobreza – a qual teria de ser cumprida e, por isso, de achar-se estruturada
em graus sobrepostos e subpostos de um «feudalismo» nosso.
Como se vê, são demasiado numerosas e ponderosas tais circunstâncias
coevas para podermos supô-las estranhas umas às outras. Elas pertencem a uma
mesma orgânica social – que superiormente prende à pessoa régia e se sustenta
inferiormente sobre as classes populares.
Mas, sem pretensões a estabelecer doutrina, vejamos melhor, com algumas
circunstâncias nossas notáveis. Assim, em 1123, a rainha D. Teresa coutou a
Sarracino Viegas o mosteiro de Pendorada, atendendo, expressamente ao seguinte:
- Serviços por ele prestados à sua custa, ou gratuitamente (em parte, pelo
menos, de natureza militar), no castelo de Lobeira, e sempre «fideliter in terra
sarrazenorum et christianorum»;
- Quitação de uma dívida pecuniária que ela com ele tinha;
- Restituição que ele lhe faz de metade do castelo de Benviver – «quod de me
tenebas», diz ela (DR 65).
Três circunstâncias que implicam, respetivamente, a militia, o auxilium, o
homagium feudais – ou, portanto, em qualquer caso, a fidelitas. Há mesmo na terceira
daquelas circunstâncias, para nada faltar, o caráter de um beneficium (o castelo
significa também a circunscrição respetiva); e não é de excluir da significação feudal a
própria expressão fideliter relativa aos serviços (2).

__________
(1 ) «dês o tempo del reu D. Afonso (Afonso VI, falecido em 1109) acá fôrom feitos os mais
dos coutos e das honras», Scr. 143 – tempo de perfeito acordo com a época em que nos estamos
colocando.
(2 ) Embora adiante tenhamos de voltar ao assunto, notar desde já esta realidade homágica
e a terminologia vassalática em 1194 «Gunsalvus Pelagii antequam recipiat ista castella («quatuor
castella in Turonio»), debet facere (h) ominium regi... quod det ei servitium de istis castellis sicut vassallus
domino bona fide et sine malo
__344__

Para melhor se alcançar a extensão desta fidelitas, deve notar-se que essa
outra espécie de beneficium que é a imunidade demo-territorial concedida ao mosteiro
na pessoa dele, o couto, deveria respeitar a toda a estirpe patrona do mesmo. Isto é, a
todos esses nobres que, precisamente nesse mesmo ano, se dizem «omnes qui
sumus heredes et possessores» dele, entre os quais os três famosos irmãos Ermígio,
Mendo e Egas Moniz, ou seja, uma das quatro linhagens fundamentais de Portugal de
então (1). No entanto, é só a ele que o couto é feito, sem embargo de ele nem mesmo
pertencer cognaticamente a essa linhagem (casara nela seu pai) ( 2) e de não ser
membro proeminente nela (são-no precisamente aqueles três). E mais ainda: a
concessão é feita no ano em que a estirpe, nas pessoas desses mesmos três,
consuma o seu afastamento da concessora por motivos políticos, mas que devem ter
muito de pessoais (3). Isto mesmo só pode salientar a expressão da fidelitas relativa ao
beneficiado contra a sua falta nos outros.
Estamos num ponto de vista estritamente pessoal quanto ao beneficiado. Ora o
serviço da milícia prestado por ele, especialmente no extremo castelo de Lobeira

__________
ingenio secundum valorem terre», Docs. de D. Sancho I, nº 74 (a «terra» a circunscrição respetiva a cada
castelo da honor constituída pelas quatro «terras»). É precisamente o caso de Sarracino Viegas.
(1 ) A linhagem gascã, que detinha tradicional e familialmente a administração em
Ribadouro, de uma banda e outra do rio: numerosas «terras», uma delas a referida de Benviver – e que
ela patrona do sobredito mosteiro. Cfr. os nossos estudos AF 3 252, AF3 31-47, etc., quanto à estirpe, e o
nosso art. GE XXXVIII 177-181, e J. Mattoso, L’Abbaye de Pendorada, pp. 14-30, quanto ao mosteiro. Ver
o doc. J. P. Ribeiro, Diss. Cron. e Crít. I, 247.
(2 ) Com uma neta paterna de Múnio Viegas, tenente de Benviver (1068 DC 473) e outras
«terras», e fundador ou pelo menos primeiro patrono de Pendorada. (Acerca daquela dona, ver o nosso
art. AF5 31-47 e JM1 490-491). E note-se que nesse mesmo ano o beneficiado e outros, dizendo-se
«sumus filii et nepotes de Monio Venegas et Ermigio Venegas», e como tais, do número dos «heredes et
possessores» do mosteiro, fazem um convénio sobre estes com os referidos três Monizes, as figuras
mais representativas da estirpe patrona.
(3 ) Sobre este notável afastamento ver o nosso estudo Guimarães, 24 de Junho de 1128,
pp. 63-69.
__345__

(uma verdadeira anutba de infanção, como a temos visto), não podia tê-lo ele prestado
com sua única pessoa, mas com a de outros que estavam com ele em relações de
dependência (e não diretamente com ela, isto é, não com o poder soberano). Quer
dizer, sendo ele aquilo que, antigamente, havia sido um comes (ou dux), o que é
inegável (1), pois é mesmo tenente de Benviver ou princeps desta «terra», tinha
naturalmente vassalos filhos-de-algo, nobres (barones ou milites seus) e não nobres
(homines dele). Esta circunstância prova-se-lhe com o que ocasionalmente se
encontra para próceres da sua categoria, serviços e funções:
- 1226 «meus (regis) ricus homo et sui vassalli et suus maiordomuns» (2);
- 1032 «ipsi comes cum omnes suos barones» (3), «princeps Annofrice et
milites eius» (4);
- 1086, o alvazir soberano de Coimbra «cum suos barones et cum suos
vassallos et fideles» DC 656 (sem diferença senão de grau, tratando-se de definição
de dupla qualidade – a fidelitas expressa aí como alavanca da vassalagem). (5)
E mais não é necessário documentar (6) quanto a nobres sujeitos a um prócere.
No que toca a não nobres, tanto homens livres como colonos, livres ou não, basta
notar as obrigações militares com um poder eminente: séc. IX-X, o seu «fossado de
rex et de comites» LF 22. Esse poder eminente podia ser feudal, ou pelo menos

__________
(1 ) 1150 «hec fuit in iuditio de Sarrazino Venegas» DC 424 (com errada data de 1060, em
que o prócer nem seria nascido – vivos seus pais, e ativos, ainda em 1030 DR 114 e 139, e ele ainda em
funções em 1153, doc. ML1, 196.
(2 ) Leg. 605.
3
() Doc. ES XL 410.
(4 ) Doc. N. Malta II § 112.
5
() Nas fontes narrativas e outras, encontra-se o mesmo. Assim, certo prócer «houve
muitos cavaleiros por vassalos», Scr. 319; e falando-se de vários próceres: «cada um deles eram
senhores de mui bons cavaleiros e outros muitos bons vassalos» (séc. X-XI), LV 2 21. (Ver adiante, no
texto, as duas origens da vassalagem expressas por uma fonte não portuguesa, mas que vale para o
efeito como se o fosse).
(6 ) Sobre os poderes do «cônsul» Sisnando, ver 1088 DC 699, etc. (Acerca da pessoa, o
nosso art. GE XXIX 259-264).
__346__

não incompatível com feudalismo, fosse qual fosse o matiz deste (1).
Tudo, ainda, nos induz a concluir que Sarracino Viegas fizera o «serviço de
milícia a D. Teresa cum militibus suis (dele) e também cum hominibus suis – estes
milites e estes homines prestando-o diretamente a ele. E um caso de igual concessão
(nas pessoas de três próceres), por serviço militar, vem confirmar expressamente este:
o da concessão do couto ao mosteiro de S. Salvador da Torre, por D. Afonso
Henriques, em 1129. Nela se atendia, quanto a um dos beneficiados, que este servira
aquele (vê-se logo que não só na guerra da libertação, após a queda de D. Teresa,
mas também, antes, já na rebelião contra o governo desta, desde 1127), durante três
anos, sem soldada (exatamente o que diz D. Teresa no caso de Serracino Viegas, ou,
portanto, como com este, «cum tua própria expensa»): à sua custa, e, agora,
expressamente, ele «cum suis militibus» (DR 99).
Temos, pois, a prestação de serviço militar por um «senhor» (que tanto poderia
ser tenente de «terra», como não), cum militibus suis; e ele e cada um destes,
naturalmente, cum omnibus suis, a expensas dele. E àquele sui pode dar-se a
significação de sujeição vassálica que lhe compete, definida pelos sabidos deveres.
Beneficiados uns e outros, sem dúvida: mas não do Estado (a que, de resto prestam o
serviço – ou, por outra, o Estado recebendo-o deles).
Nota-se o encadeado de dependências: nos exemplos que apresentamos, a
«rainha» D. Teresa e o «infante» D. Afonso, os soberanos (para não referir acima
deles Afonso VII), com os seus barones ou fideles (ou milites em relação a esses
soberanos) (2); estes barones com os
__________
(1 ) Para nobres e não nobres «vassalos», note-se o caso do conde D. Pedro: este foi
celebrado no seu tempo porque «houve (teve) os melhores vassalos que houve outro conde nem
homens-bons que dantes forom», Scr. 290 – e não só nobres como esses (sui milites) mas também não
nobres, designados no seu próprio testamento por «homens do conde» em contraposição aos nele
chamados «vassalos do conde»: doc. Hist. Gen., Pr.I, p. 135.
(2 ) 1145 «miles regius» LF 807; 1258 «milites regis stabant in Ulgoso (castelo e sua
«terra») de manu regis» Inq. 1284 (serviço militar, fiscal, etc.).
__347__

seus milites e também seus homines, seus vassalos; e, enfim, até possivelmente cada
miles com homines seus, que eles sempre tinham. Em cada caso, uma evidente
Geffollschaft (o passado comitatum germânico que nunca os tratadistas puderam, nem
hão-de poder, arredar das origens feudais, por mais que o sistema seja entre nós
posto em dúvida, tal como tem sucedido.
Da maneira menos prevista – ou de certo modo, portanto, uma confirmação
deste nosso parecer –, pode surgir-nos esta mesma situação. Têmo-la, de facto, do
séc. XII para o XIII, com uma alta dona (linhagem de ricos-homens), Froilhe Ermiges, a
quem D. Sancho I doou em1206 Cira (Vila Franca de Xira), a que ela viria a dar foral
em 1212 (1). Nos respetivos documentos, ressaltam as seguintes circunstâncias
«feudais»:
- Dela em relação ao rei: este diz fazer-lhe a doação «quia estis multum
naturalis mea» (2) – com naturalis a expressão nossa da «feudalidade», neste caso;
- Dela em relação aos povoadores daquele seu lugar: «et meus homo nobilis
que Cira de me tenuerit non mitat ibi alium alcayde nisi de Cira» e «maiordomus vel
sagion (de Cira) nin eant ad domum militis» (que não cremos seja aqui o cavaleiro
vilão). Revela-se claramente ter a dona os seus nobres próprios, «milites sui», com as
obrigações de esperar (as militares, por ecemplo, uma delas relativa à tenência, que a
dona num deles delegava – devendo ser esse a escolher o alcaida, entre moradores
de Cira), e com o seu estatuto de classe (o honramento das casas – compreendendo-
se que não o dos prédios rústicos, visto que há senhora do lugar, isto é, não deles o
senhorio). Nestas condições, nada surpreende – o contrário é que não seria
compreensível – que a dona dirija a carta de foral «vobis meis hominibus atque
vasalis»:
__________
(1 ) Os publicadores dos Docs. De D. Sancho I, pp. 252 e 325, chamam a esta senhora
«Dona Froila», traduzindo mal «domna Fronili».Ora Froila é n. masc. (gót. Frauja): trata-se do n. feminino
Fronilli (suév. frôn-) <Froílli <Froílhe. Desconhecem que se trata da ilustre neta paterna de Mem Moniz
(irmão do ínclito Egas Moniz), que foi casada em Leão – onde enviuvou, o que tudo explica não figurar o
marido, tendo regressado a Portugal. Sobre esta estirpe e dona, ver a nossa Acç. dos Cist., pp. 108-111.
(2 ) Docs. De D. Sancho I, nº 164.
__348__

Estes (os «vassalos»), os milites sui, e aqueles (os «homens»), homines sui, os
restantes moradores (de condição comum) (1). Embora uma designação e outra
pudessem, indiscriminadamente, aplicar-se a ambas as categorias sociais ( 2) nota-se
uma certa propriedade da designação «vassalos» mais para o lado da nobreza (3).
Bem nítida, pois, a graduação hierárquica feudal neste caso: no topo, o rei (de
quem a dona é multum naturalis); de seguida, a dona; depois, os povoadores nobres e
não nobres, milites sui e homines sui – sem exclusão de os milites sui poderem ter aí,
por sua vez, homines suorum.
Finalmente, o ponto de vista militar merece algumas reflexões mais, visto que
se vê aí a característica essencial do feudalismo.
As concessões reais no nosso país não introduzem expressamente, no período
que nos interessa, a sua obrigação. Daí, certamente, a principal das razões de
negativa da sua vigência entre nós; mas todas as circunstâncias se conjugam a
afirmá-la.
A primeira está na própria obrigação inerente à qualidade nobre, a milícia – ou
seja, a nossa organização social quanto àquela classe já apontada implicitamente
àquele efeito. Assim, como acabámos de ver, D.Sancho I, na doação a uma dona
(com que, por o ser, poderia até compreender-se uma exceção), não introduz cláusula
alguma em tal ponto de vista (1206); mas a própria dona exprime taxativamente a
circunstância vassálica milital (1212). Isto, dentro do período que nos interessa; mas
até depois deste ocorrem circunstâncias que vêm dele e que de modo nenhum
poderão ser esquecidas num estudo deste árduo problema entre nós,
__________
(1 ) Leg., 562-564.
2
() Sob a designação vassalática homines, basta que lembremos o texto do pacto
sucessório, em que o conde Raimundo estabelece com o conde D. Henrique: «sis inde meus homo et de
me habeas eam (terram) domino», DR 2. O mesmo poderia dizer em Cira a ilustre dona – nomeadamente
àquele miles suus que aí ficava como seu tenens (terram); mas não só a esse.
(3 ) Cfr. o ainda não há muito referido doc. Hist. Gen., Pr.I, p. 135, distinguindo entre
«vassalos» do conde D. Pedro os vassalos (nobres) e os homens (plebeus).
__349__

De facto não pode considerar-se inovação um caso (para mais não apontar) de
1372: o rei faz a certo nobre a doação de dois lugares ou vilas, reservando apenas à
coroa a jurisdição criminal, com esta obrigação: o nobre e, após ele, seus filhos e
sucessores «devem fazer feu (feudo) dos ditos lugares a nós e a nossos sucessores,
para servir a nós e a eles, cada que fossem requeridos, com tantas lanças armadas de
todo o ponto quantas montar na renda dos dictos lugares, scilicet CL.ª libras a cada
hũa lança armada a guisa de França ou de Inglaterra» (1).
Definindo-se assim o serviço feudal entre nós no séc. XIV, por terra concedida
a nobre, significa que antes não existia nas mesmas condições beneficiárias?
Bem parece que a sua imposição não deverá querer dizer a posse de terras em
condições diferentes das do período anterior. É que, de facto, não pode ser condição
uma concessão régia, mas a posse pelo nobre – ou seja, um dever recaído sobre a
imunidade honra ou couto (tão indecisas, como vimos, as linhas que separam tais
categorias). No caso da concessão exemplificada, foi precisa a menção, cremos que
por um duplo motivo:
- ser aquele a bem dizer, o único encargo sobre o lugar com a coroa;
- o novo ou estrito conceito de couto estabelecido pela legislação dionísia:
dispensa total de «foro», de peita e de milícia. É assunto que foi já devidamente
ventilado neste trabalho e tem nisto a fundamental importância. Não se dispensava
aqui a milícia, antes se impunha. Isto esclarecerá situação dominial ou vassalática:
não se tratava de um couta (na nova fórmula).
Na época, as novas «honras» teriam de ser criadas (pelo rei): a obrigação
militar assim instituída corresponde à inerente anterior (séc. XII-XIII).
Por outro lado, a milícia é um dever geral da nossa nobreza. Daí a sua
qualificação milites (como também largamente comentámos), sucessória da de
infantiones (com as suas obrigações de anutba, que não seriam as militares únicas). A
imposição do encargo militar deveria, pois, ser escusada: assim, se no caso de 1372
se fez, não foi para instituí-la, mas para defini-la. E defini-la
__________
(1 ) TT Chanc. de D. Fern. L. 1, fl. 112 v.
__350__

Pois, no quantitativo, no estipêndio e na feição – inglesa ou francesa, ainda que sem


obrigação taxativa de a cumprir com gente do lugar, embora mais devidamente o fosse
(1).
Na verdade, o facto de determinada obrigação, como esta da milícia, não ser
expressamente referida numa concessão ou numa imunidade não significa que ela aí
não vigorasse. Ao propósito da distinção dos diversos tipos de imunidades, vimos
suficientemente como assim era. E, de resto, como também vimos, que sentido dar ao
facto de um miles ter milites sui, sendo mesmo estes da nobreza? O dever militar não
recaía, pois, unicamente, sobre o senhor da concessão ou da imunidade. Igualmente
sobre outros indivíduos, nobres ou não nobres, todos debaixo de um elo comum de
ligação àquele – chame-se ao elo um feudo (e não só à terra) e chame-se a esses
indivíduos vassalos ou homines. O facto de o monarca poder pagar aquele dever não
nos parece atentar em nada contra uma tal situação feudal, com graus de suserania
diferentes. Ou, por outras palavras, uma hierarquia – e nem poderemos dizer em
absoluto que se não trate mesmo de uma se não sociedade geral, ao menos
generalizada.

__________
(1 ) O próprio grau inferior dos milites, o de scutifer (o escudeiro), tem um sentido
nitidamente militar (de «escudo» – e os escudeiros acompanhavam na guerra os cavaleiros dos quais o
eram); e, quanto aos cavaleiros, para não olhar à significação militar da designação (o serviço militar a
cavalo), a relação com o caso de 1372, exemplificado, manifestava-se claramente em expressões dos
séc. XIII e XIV como «fôrom cavaleiros de um escudo e de uma lança» (Scr. 356). Quanto aos ricos-
homens e, com mais razão, os infanções, quando esta designação passou a ser de categoria
nobiliárquica, eles são designados também de milites, o que, quanto ao dever militar, diz tudo. Assim, os
senhores da honra de Lalim são chamados, genericamente, em 1258, «milites de Lalim» (Inq. 10821: ora
eles são, sucessivamente, os próprios chefes divites-homines da estirpe dos Sousãos. Do mesmo modo,
individualmente, temos em 1240 «sigilo domni Martini Egidii militis» (doc. CP 52), o qual, apesar desta
designação miles, é o famoso rico-homem valido de D. Sancho II e então a primeira personagem do reino,
na política (causa pretextual da guerra civil que levou à deposição daquele monarca) e na administração
(então tenente de vastas honores, como a de todo o entre Minho e Lima: docs. LD fls. 9, 29, 38, 97 v, 98,
etc.).
__351__

Havia, pois,uma militia regis no sentido lato: isto é, englobando os milites regii
(que podiam não ser condicionalmente nobres de alta estirpe) e a militia magnática
(que reunia «vassalos» do nobre pertencentes à nobreza e «soldados» de condição
comum: aqueles, como cavaleiros e estes, com cavalo, ou sendo apenas peões).
A subordinação tinha as económicas por causas verdadeiras, senão únicas,
pois que do poder económico dependeu sempre o poder social e, dentro deste, o
político. Deve lembrar-se aqui o já estudado esquema social do séc. X «dives et
pauper, nobilis et innobilis» DC 99, com as naturais significações sociais – políticas,
económicas. Temos, no entanto, de entrar em conta com o objectivismo da divitia
tanto como da paupertas, ou a sua relatividade, manifestando-se numa série de
relações subpostas ou sobrepostas. Nos graus da paupertas, devemos considerar
como operador da relação o patrocinium, mais compreensível com gente de condição
comum (os innobiles), enquanto propriamente o beneficium deverá entender-se mais
num sentido restrito nos graus da divitia (o fator da nobilitas), instruindo-se,
porventura, com algum ato cerimonial. Nada constar deste entre nós não deve servir
para negar-se a feudalidade – sendo que relações tão naturais, nesta época
mediévica, quase impossível fora não se terem espontaneamente estabelecido.
Por outro lado, o estudo que do nosso regime senhorial fizemos deve revelar a
preocupação do nobre, tantas vezes por ele realizada, de identificar propriedade com
soberania mediante a negativa de entrada ou expulsão de funcionários da coroa
(fiscais, judiciais e militares, na correspondência ao trinómio da imunidade completa:
escusa do foro, escusa da peita, escusa da hoste – nas suas diversas manifestações).
Ou sejam, os casos atingidos de cautum-honor ou honor-cautum, ponto de chegada
correspondente de dois pontos de partida, o qual, como se mostra na sua feição
uniforme em resultado senhorial, está perfeitamente de acordo com uma tal
preocupação. E até mais: que nos tenta considera-lo o único daquela, e, sendo assim,
um fator de feudalidade muito pronunciada.
Não quer isto dizer que se tivesse entre nós instaurado uma sociedade geral
desse tipo: mas, embora um «feu-
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dalismo» disperso, fragmentário, não é de rejeitar um aspeto que o caracteriza como


nosso. Porquê teimar-se em negar, só porque ele não corresponde a um modelo –
franco-francês, italiano, mesmo inglês que seja?
Deixando nele os aspetos de relações pessoais sobre que vimos insistindo,
deveria atender-se, agora, aos económicos. Não nos repetiremos, tanto mais que este
é um estudo perfunctório: atenda-se ao que lhes respeita no capítulo quarto: aí se
definiu pelo esquema dominial de pessoas e prédios respetivos – esquema, pois, ao
mesmo tempo, de subordinações e que daremos por transportado para aqui, seu mais
próprio lugar (embora necessário naquele).
«El rico-ome puede aver vassalos em dos maneras: los unos que crian e
arman, e casanlos e eredanlos; e outrossi puede aver vassalos assoldadados» ( 1). Isto
é, o prócere pode ter vassalos (os milites sui) quer por «quantia», isto é, pagos, quer
por «criação» (cavalaria), isto é, que ele armou cavaleiros, geralmente os casou e,
para isso, os dotou. Um dos nossos livros de linhagens medievais diz o mesmo (séc.
XIII-XIV) ao indicar as linhagens que se propõe tratar: apenas as de «os bons homens
filhos-de-algo (2) do reyno de Portugal, dos que devem a armar e criar, e que andárom
a la guerra a filhar o reyno de Portugal» (L V 2 3) (3). E, na verdade, os exemplos não
faltam (4).

__________
(1 ) Fuero Viejo I, 4, 4.
(2 ) Este tratamento, que é de ricos-homens também, como vimos, e assim o utiliza o Fuero
citado, está de acordo com a nossa doutrina acerca do que era, inicialmente, o «filho-de-algo» (exposta
no capítulo sexto).
(3 ) Clara intenção de minimizar a ação real nestes pontos de vista, para enaltecer a da
nobreza (que, realmente – seu permanente motivo de orgulho –, levara Portugal em 1127-1128 à
independência de facto).
(4 ) O caso de D. Fernando Garcia, da alta estirpe bragançana, prócer que «fez cavaleiro
Nuno Martins de Chacim» (LV1 63, Scr. 326, vindo Nuno Martins, referido no final do terceiro capítulo
deste estudo, a ultrapassá-lo em influência). O caso ainda
__353__

Isto ao nível superior, ou, por outra, na camada mais alta da nobreza; mas
outras camadas desta poderiam ter vassalos desde que economicamente pudessem
sustentá-los, dado que o seu nível (em geral eles mesmos feitos cavaleiros pelos
próceres) não permitia a todos a «criação», com todos os seus pesados mecanismos
– ou seja, tê-los apenas por quantia, pagos (1).

Busquemos agora a situação «feudatária» que nos parece inerente às nossas


honores administrativas (constituídas por uma ou mais «terras» – circunscrições
relativas ao poder central e sucedidas dos territoria romano-germânicos). Para isso,
parece-nos indispensável uma observação aos dois tratados que, em vários pontos de
vista, e sobretudo no que nos interessa, são muito semelhantes: o «pacto sucessório»,
entre os condes Raimundo, o superior, e Henrique, o «inferior» (2).

__________
de D.Gonçalo Anes «o bom rico-homem que fez D. Soeiro Aires de Valadares cavaleiro», L V 1 84 (com
Pires em vez de Aires), cavaleiro este que veio a ser depois rico-homem (tenente de Valadares: Inq. 3771,
doc. 1187 L D fl. 87 v, etc.) – estando as ascensões destes cavaleiros bem de acordo com a nossa
doutrina dos capítulos quinto e sexto. Não deixar de notar como um rico-homem faz um cavaleiro e este
chegou, por sua vez, a rico-homem.
(1 ) Não podemos dizer que o «casamento e herança» criasse imediatamente a nobreza..
Referimo-nos no capítulo anterior, por exemplo, ao enobrecimento da descendência imediata de um Paio
Cortês, a quem D. Afonso Henriques, a instâncias de Egas Moniz, doara Gouviães para aí fazer casa ou
paço, «quintã». Eleera um monteiro real, e os seus netos (pelo menos) aparecem já milites. A acessão à
nobreza foi-lhes facilitada pelo casamento de Paio Cortês com uma donzela do séquito da esposa
daquele barão. Egas Moniz e a esposa «casárom-nos ambos (BR 1 11) e, in casamento, como se diziam
foram dotados por eles de bens (entre estes uma «hereditas» em Lama Redonda, c. Armamar, LDS 55,
BR1 12-13). Visivelmente e «cásanlos e éredanlos» do Fuero Viego, I, 4, 4: assim se avassalando – sem
criar-se nobreza ipso facto, mas, repetimos, facilitando a acessão a ela. O Fuero respeita ao país vizinho,
e é natural que no nosso as coisas não fossem exactamente as mesmas.
(2 ) Da paz de Tui fizemos um estudo nos nossos trabalhos AF4 255-286 e AF2 160-161.
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Dizemos estes porque a sua principal utilidade para o ponto de vista que aqui
importa é ser em ambos elemento fundamental uma honor, cuja concessão se reveste
de aspetos feudais inegáveis.
Naquele pacto e naquela «paz», o nosso Conde e o Infante, respetivamante,
não passam de mal disfarçados tenentes de Portugal e claramente de tenentes da
honor que na periferia de Portugal se lhes concedia – esta honor um benefícium que
tinha semelhantes consequências sobre a hereditas que Portugal era juridicamente.
De tal ângulo devem ser tratados os dois documentos – e eis, pois, o só que aqui nos
interessa deles:
- No «pacto», o juramento do nosso Conde exprime fidelitas e auxilium,
implicitadores, respetivamente de securitas e concilium (1) – tão perfeito vassalo
quanto o conde Raimundo suserano. Este promete-lhe, além de domínios territoriais,
preservação física e liberdade, posse pacífica e sua defesa – «tali pacto ut sis inde
meus homo et de me habeas domino», significando hominium de um lado e dominium
do outro, com beneficium concedidos àquele: honor ou tenência do novo conjunto
territorial (2).
- Na «paz», sem quaisquer compromissos expressos da parte de Afonso VII,
encontramos do lado do nosso Infante aqueles mesmos – os vassaláricos da fidelitas-
concilium e da securitas-auxilium (3), no tocante também a uma honor (não muito
diferente da do pacto), a qual lhe é ardilosamente concedida numa situação
portugalense dificílima.

__________
(1 ) «membrorum tuorum sanitatem, tuaeque vitae integram diletionem, tuique carceris in
vitam Mihi occursionem juro», e «tibi defendere fideliter et domino singular atque acquirere praeparatus
occurram» (DR2).
(2 ) Ardilosamente, não se compromete nesta cláusula Portugal (a hereditas do inferior,
aliás direta apenas nos alódios da coroa); mas comprometido ficaria o seu príncipe por territórios que não
eram Portugal, se, como cremos ter provado (noutro estudo), Henrique não fosse aqui o que era (isto é,
sujeito a Raimundo), e Raimundo ignorasse o que lhe deveria ser bem patente (as ambições de
independência de Henrique). O mesmo entre o nosso infante e Afonso CII.
(3 ) «bonus amicus et fidele bona fide et sine male ingenio» e «facit ei securitatem de suo
corpore nec… sit mortuus aut ingenido aut preso… Facit etiam illi securitatem de sua terra quod non
perdat illam neque ingeniet, etc.
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Não precisamos de argumentar com as condicionais sempre pretendidas e


elementares da fusão da soberania com a propriedade e de uma hierarquia mais ou
menos ampla e diversificada – que aliás não falta nas tenências ou honores dos
magnates. Ora nada podemos imaginar naquela honor apanágio que não tenhamos de
aplicar nas honores administrativas, ou seja, nas relações dos seus tenentes com o
respectivo suserano.
Com efeito, cada um desses magnates – chamados pelo tempo,
sucessivamente, como sabemos, comes (dux), tenens (ou prínceps ou senior) e dives-
homo – devia ser nelas homo do seu superior e dele tenere domino (como no «pacto»,
ser nelas do seu superior um «bonus amicus et fidele bona fide et sine malo ingenio»
(como na «paz»).
Não nos surpreende que de facto assim tenhamos, por exemplo, no tratado
entre o nosso D. Sancho I e Afonso IX de Leão (por motivo das arras da esposa deste,
filha do nosso rei, e separada do marido por imposição da Igreja); «et Gunsalvus
Pelagii (1) antequam recipiat ista castella (sc «quatuor castella in Turonio», Galiza, que
entrariam nessa arras) debet facere hominium regi Legionis (para que o não faça à
rainha divorciada) quod det ei servitium de istis castellis sicut vassallus domino, bona
fide et sine malo ingenio» (2). É a própria terminologia dos referidos pacto e paz (DR 2
e 160), como vimos – e ninguém duvidará do caráter vassálico destes. Havia, pois,
como também se vê («antequam facere») a cerimónia do homagium.
Se, pois, descemos de degrau, encontramos com a mesma naturalidade os
barones ou fideles (ou milites) desses magnates; e, de cada um destes para cada um
daqueles, não podemos deixar de considerar o mesmo género de relações. Um novo
degrau descido pode mesmo garantir igual situação entre cada uma desses milites e
outros que são nobres ou não nobres (filii benenatorum todos) e que, para fins que
aqui não importam, e sob mecanismos sociais que se devem encontrar sobretudo
__________
(1 ) D. Gonçalo Pais chamado «de Toronho», cuja filha Elvira casou com um filho do conde
D. Mendo de Sousa, em Portugal, Scr. N290.
(2 ) Docs. de D. Sancho I, nº 74.

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Nas imunidades, se lhes subordinassem ou avassalassem, podendo e devendo


mesmo incluir-se no número destes os proprietários livres.
Correspondentemente a estes degraus de relações pessoais e não pequena
prova da sua realidade, temos as duas espécies de honores (para agora não
considerarmos a honor apanágio, superior, o Portugal do tempo em relação ao
soberano leonês, por se tratar de situação quenunca o inferior reconheceu
honestamente ou sine male ingenio e que ele transformou, com auxílio das armas,
numa independência): a honor circunstancial pública, administrativa, e a honor
imunidade – ou seja, a tenência de «terra(s)» e o domínio de honras e coutos.
Uma circunstância que num estudo de feudalidade oferece entre nós uma
importância especial é a inegável hereditariedade administrativa nas mais importantes
honores, ou, melhor, em toda uma grande mancha do território português de então.
Sem deixar de observar-se algumas vezes noutras linhagens essa hereditariedade
encontra-se a bem dizer ininterrupta durante dois séculos, pelo menos (desde antes
da Nacionalidade), nas quatro ou cinco linhagens fundamentais da nobreza
portugalense.
Visto que demos exemplo (aliás pouco evidente como tenência, embora
inegável) com Sarracino Viegas, em razão da concessão teresiana de 1123, é de notar
que o prócer trazia neste ano ou «tenbat», de manu de D. Teresa a metade do castelo
(e «terra») de Benviver, «tendo» Afonso Pais, seu parente (1), a outra, (uma
administração duunviral) (2). O facto de D. Teresa declarar que ele tem esse
beneficium «de me», ou seja’, por mercê dela, não deve iludir-nos: o soberano diz
sempre o mesmo – o que apenas significa uma declaração de poder superior, o seu. E
isto tanto mais certo quão documentada temos a certeza que na respetiva estirpe
existia da sua sucessão familial da honor – como, na própria estirpe a que respeita o
caso
__________
(1 ) «Ter» um castelo (não como alcaide) significa a tenência da respetiva «terra». Os
exemplos são inúmeros: D. Abril Peres «tenente Lamecum et alia castra», LDT fls. 24, 23, v., etc.,
significa isso mesmo.
(2 ) Sobre este prócer e tal parentesco, ver JM1 489.
__357__

Sarracino Viegas, as disposições que nela se chagaram a fazer para a circunstância


pessoal de «qualibet de ista generatione qui ipsa terra imperavit» (1).
Nestes casos, o muito que a autoridade real possuía era a escolha do tenens
dentro da estirpe (embora nada impedisse a nomeação de um estranho a ela – o que,
como se vê, o poder superior ao menos evitaria).
Encontram-se mesmo exemplos de um tenens nomear outro da sua própria
estirpe por seu substituto (no geral, o tenens exerce algum cargo palatino) ( 2) e de
conceder uma «terra» como prestimónio a outro nobre ( 3), além de constituir
préstamos com reguengos dela – os quais préstamos concedia a quem lhe
aprouvesse (4); e até de nomear alcaides para o seu castelo ( 5) – o que é uma dilatada
dose de soberania (6).
Esta situação começa a observar-se desde os meados do séc. XI, em que os
primeiros tenentes são nomeados; mas não pode julgar-se que se trata então de
inovação (7): corresponde simplesmente a um formulário ou uso tabeliónico,
dependendo do scriptorium de lavra do documento. E tanto assim que, em pleno
período de tenências (séc. XII-XIII), há scriptoria que nunca referem o tenente da
«terra», e outros que a nomeiam sistematicamente (8). De resto, bastaria notar que as
«terras», com

__________
(1 ) Doc. Diss. Cron. e Crit., I ap. 37.
2
() O caso de D. Pedro Fernandes «Portugal» que colocou como tenente da «terra» de
Parada a Lourenço Pais «de Alvarenga» (Inq. 9442), seu genro, da alta estirpe gascã (Scr. 352). E outras
mais se poderiam aqui mencionar.
(3 ) O caso de D. Martim Fernandes «de Riba de Vizela», que entregou o castelo da sua
«terra» de Vermuim a certo nobre e, com ele, metade de certa «villa», «pro prestimónio» Inq. 641.
(4 ) Além do caso anterior, daremos o exemplo de D. Afonso Lopes, tenente da «terra», ter
dado em «préstamo» ao cavaleiro fidalgo Lopo Gato os reguengos de certa «villa»: TT Inq. de D. Din. L.
4, fl. 49.
(5 ) O caso citado de uma das notas anteriores relativo à «terra» de Vermuim: «dedit
castellum», etc., Inq. 641.
(6 ) Note-se que estes prestameiros nomeados pelo rico-homem aparecem também com
homines seus: Inq. 672.
(7 ) Basta reparar em 870 «a domno qui illa terra imperavit» DC 6 – a tradição, ou, melhor,
sequência visigótica dos comites civitatis, pelo menos (ver o cap. 1).
(8 ) Respetivamente o scriptorium da catedral bacarense (verificar no LF) e do mosteiro de
Fiães (verificar no LD).
__358__

seu tenens, sucederam aos territoria civitatum com seus comites (1).
Como se teria instaurado esta inegável autoridade de tenências administrativas
em grandes conjuntos de «terras» e com famílias nobres aí estabelecidas? Já
anteriormente, tratando de associações de infanções, nos referimos de passagem à
que temos por mais provável origem, atendendo, sobretudo, então a autoridades não
univirais.
Na presúria, de facto, a proeminência das grandes famílias parece-nos bem
clara numa realização «de stirpe» (por vezes qualificada de «antiqua», ou seja, por
«comites vel forciores de stirpe antico») ( 2). Por outro lado, ela foi para o efeito
antecedida de «precones», e estes obedeciam a uma «ordinatio» regia (cerca de 868),
assim cumprida por «multi filii bonorum» mediante «divisa» ( a expressão aplicada
precisamente, com todas aquelas, às «terras» na «provincia portugalense» – aí assim
mesmo também designada) (3). Cremos que o estudo feito num dos capítulos
anteriores demonstrou que aqueles «filii bonorum» (ou filii benenatorum») tanto são
nobiles como innobiles. Compreende-se no entanto a preominência natural dos
nobiles (na disposição de hereditates ou «villas» e na autoridade nas «terras»),
sobretudo pelo próprio contraste de um presor direto poder ser de condição servil. Isto
deve talvez significar-nos uma realização sub mandato ou sub manu de um senior (a
que, num caso servil menos fixo, corresponderia um iunior) (4).

__________
(1 ) Tenha-se em vista, a prova destes imperantes terrae já no séc. IX (DC 6), prestada
numa das notas anteriores imediatas e que de modo algum significa inovação. Por grande audiência que
tenha perante quem nunca estudou o assunto, pomos de parte por completo o estudo dos Prof. P. Merea
e A. Girão publicado na «Ver. Port. de Hist.», II, 255-263. (Ver o nosso estudo Arouca na Idade Média, pp.
221-230).
(2 ) LF 16; docs. HS II p.46 e ap. 37; doc. Sáez Los Ascendientes de S. Rosendo, pág. 17;
doc. Arq. Vian., pp. 5-7.
(3 ) São realmente as expressões que se encontram em LF 16, o nosso mais antigo
documento da realização.
(4 ) Basta apontar o exemplo de 877 «habuit de suo servo Frontiano que presui de stirpe»
(doc. GB IV 443), isto é, um servo que atuou como presor para o seu dominus (ou seu senior, sendo
como mais crível, ele um iunior), isto é, para a «stirpe» da qual era servo. (Aquele Frontiano fora, de facto
servo de certo Daildi,
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A presúria, praticada assim em bens e com autoridade, assumida, e podendo ser de


estirpes (de um dux com outros duces, consanguíneos seus) (1), seria, muitas vezes,
um ato associativo das mesmas. Tudo isto nos dará a compreender tanto os casos
singulares de autoridade numa só família e hereditariamente, como os colectivos
(duunvirais ou triunvirais): ou seja, de mais que uma, estes os de infantiones
associados.
Feitas estas reflexões acerca das honores administrativas, convirão outras,
agora, respeitantes às honores imunidades (mais diferenciadamente, os coutos e as
honras, nos seus diversos aspetos).

O respeitante às imunidades nobres foi já estudado pelo menos em dois


capítulos deste trabalho. Quanto à origem da propriedade nobre imune, dissemos já o
bastante. Tudo relacionado com a depraedatio sueva e com a presúria da
Reconquista.
Analisemos, agora, apenas um exemplo, sem preocupações de escolha, pois
muitos se poderia optar – e seja ele a honra de Unhão. Da alta estirpe dos Sousãos,
estendia-se pelas três freguesias de Unhão, Rande e Lordelo, com um tipo predial de
dominicum que preciso é ter em vista para a sua melhor compreensão. O seu estado
em 1258 era o seguinte:
- Unhão: Não há prédio reguengo algum, nem se dá qualquer foro à coroa
«propter honorem ipsius quintane filiorum domni Garcia Menendi» (2). Existe aqui,
pois, a «quintã» (o paço senhorial), que havia sido de D. Garcia Mendes «de Sousa»,
por ele herdada de seu pai, o conde D. Mendo de Sousa, como este a herdara já do
__________
que era o senior da hereditas ou «villa» presurada, a qual passou a seu filho Fagini e deste a uma filha,
Núnilo, que a alienou aos esposos Ermenegildo e Paterna – estes, de alta nobreza, enquanto que aqueles
eram, certamente, innobiles).
(1 ) Um «dux cum alii duces de suo genere» precisamente a expressão no doc. Arq.
Vian.,pp. 5-7 (séc. IX-X).
(2 ) Inq. 5581: lê-se aqui «filiarum», mas é erro (seja qual for a causa ou sua origem),
porque, além de não se entender bem que a herança fosse só das filhas, a seguir se fala aí de filhos – e,
sobretudo, porque D. Garcia Mendes teve apenas uma filha: Scr. 290, LV1 16, LV2 13, etc.
__360__

seu (D. Gonçalo Mendes ou D. Gonçalo de Sousa, o grande prócer de D. Afonso


Henriques) (1). Quanto à detenção da propriedade, que são aqui quarenta casais,
sucedia o seguinte: quinze deles eram dos referidos Sousãos, senhores da «quintã»;
doze de «ordens» (mosteiros ou igrejas); dez, de vários nobres (dois deles da
categoria e parentesco do senhorio da honra, D. Rodrigo Froiaz e D. Urraca
Fernandes) (2), dois de um burguês vimaranense (qualidade comparada em
Guimarães à nobre, como já sabemos); e o outro, de um herdador (vilão). Existia ainda
uma outra «quintã» (de Domingos Mendes, que possuía com ela quatro dos dez
casasis dos vários nobres referidos).
Como encarar, senhorialmente – pois que estamos numa honra –, esta
distribuição possessória da propriedade?
Quanto à «quintã» dos senhores, não podemos dizer que ela pertencia a um só
dos filhos do senhor único anterior (único, realmente, como já mostrámos) ou que fora
já dividida, como vinha acontecendo, e tal como entre os referidos filhos se havia feito
com quinze casais. Não podemos dizer que aquele deles que era o senhor da honra
(um senhorio de facto único, mesmo com uma partição da «quintã») tivesse assim por
sujeitos ou vassalos os seus irmãos: o que será força entender é que os seus caseiros
seriam homines desse senhor, mediante serviços a este (dado o foro aos donos dos
respetivos casais). O mesmo devemos supor quanto aos casais das «ordens»: se eles
não deviam dar foro à coroa, como deve ser o caso, pois que tinham sido de nobres,
isto é, naturalmente da estirpe da «quintã» senhorial (os Sousãos), ou seja «de sa
avoenga» (3), nem por isso
__________
(1 ) Scr. 190, onde se relata o episódio ocorrido nesta «quinta de Unhom»: um conflito entre
D. Gonçalo de Sousa, o senhor, que nela recebera o rei, e este, que lhe desonestara a jovem esposa aí
mesmo e nessa ocasião.
(2 ) Scr. 325, 326, etc.
(3 ) TT Inq. de D. Din., L. 4, fl. 33 v. Dar-se-ia neste caso um foro (com serviços) ao senhor
da «quintã» pela mesma razão por que, se houvesse foros à coroa nos casais das «ordens», não seriam
estas a dá-lo, mas a estirpe dos doadores a elas: 1258 «sed faciunt inde forum illi qui remanserunt in
erancia de illis que mandaverunt hereditatem» às «ordens», Inq. 13231.
__361__

deviam deixar de o satisfazer, mas ao senhor daquela. No caso dos casais de outros
nobres, poderia haver diferenças: por certo que os de nobres ao nível social do senhor
da «quintã» e com ele aparentados deverão considerar-se naquela situação; mas o
caso da «quintã» e casais de Domingos Mendes tem de ser encarado à parte.
Parece ele ser o da situação de um nobre que herda ou estabelece morada em
imunidade de um outro nobre – uma «quintã» e, nesse casom ainda, com seus quatro
casais (1). Forçosamente haveria de estabelecer-se entre a «quintã» senhorial e esta
(que pertence ao dominicum daquela) um nexo de relações; e este, porque se trata de
um nobre, cuja «honra» não admitira o foro, só poderia ser o mais isento, ou, melhor, o
mais consentâneo com a sua qualidade social, a milícia. Esse, pois, deverá
considerar-se um vassalo nobre do senhor da honta de Unhão – um seu miles.
O caso do burguês vimaranense, equiparado a nobre nos encargos, exceto no
«chamado» ao castelo, que aqui se não especifica, deve ser o dos nobres; mas já o do
herdeiro vilão o de um vassalo inferior – melhor, pois, diremos, o de um homo do
senhor da honra, em foros e em serviços: entre estes, certamente, o militar, com o dito
senhor, quando requerido por este.
Rande: Há alguns reguengos avulsos (não habitados), mas não se dá foro
algum à coroa «propter honorem de Unom» – isto é, devida à «honra» de Unhão: o
caso de Unhão acabado de examinar (2). E tudo o mais se deve aqui considerar nos
mesmos pontos de vista, pois que a distribuição da propriedade é perfeitamente
idêntica: são dez casais de «ordens», seis de nobres (entre eles o referido D, Rodrigo
Froiaz) e de um antigo meirinho, mas nenhum fos senhores da
__________
(1 ) Caso análogo ao do cavaleiro-fidalgo que fizera «honorem novum et casam» onde esta
nunca houvera, alegando tê-lo praticado «in unum de cadalibus honoratis de quintana» de um outro
nobre: Inq. 14592. Isto é, tal miles honrava-se dentro da honra de outro miles, não pela qualidade nobre,
mas por se ter introduzido no domínio de outro – e forçosamente teria de ficar com este em relação de
sujeição.
(2 ) Inq. 5571.
__362__

«quintã» senhorial. Para maior analogia, há também aqui uma «quintã» nobre, de D.
Sancha Peres (1) – de que devemos dizer o mesmo que apontámos da de Domingos
Mendes em Unhão, a não ser que a milícia não seria cumprida por ela, mas que ela
pagaria se não interpusesse pessoa que por si a fizesse (2).
Lordelo: freguesia com dezoito casais, catorze deles de «ordens» e os outros
de herdadores vilãos, não se faz foro algum à coroa: destes quatro e de sete daqueles
catorze «propter honorem nepotis domni comitis Menendi» (3),o pai de D. Garcia
Mendes, e de todos porque «parrochiani istius ecclesie sunt vassalli dominorum de
Unom et faciunt fórum et servicium dominis de Unom ut sint defensi ab omni foro
regali» (4).
Deve notar-se que não havia aqui – ao menos então – qualquer casal de
nobres; e nem temos a certeza se anteriormente os houvera. Pelo menos o não
fazerem foro à coroa sete dos catorze casais das «ordens» deve reputar-se efeito de
uma encensoria com os senhores da honra de Unhão com a natural finalidade
apontada – a defesa de todo o foro real (5).

__________
(1 ) Refere-se ela apenas como «domna Sancia», mas é esta mesma senhora, cuja
linhagem desconhecemos, e que foi chamada «de Baldemar», nome do local desta sua «quintã»: em
1269, ela mesma doou o que aqui tinha a seu neto D. Martim Peres «Leitão»: doc. Meireles, Mem. do
Most. de Paço de Sousa p. 238 – e a «quintã» de Baldemar (esta a sua designação) veio a ser do
mosteiro de Salzedas (doc. BR1 173).
(2 ) O caso, já visto, de D. Froilhe Ermiges senhora de Vila Franca de Xira, Leg. 562-564,
etc.
(3 ) O conde D. Mendo de Sousa (com prova da anterior unidade senhorial, que ainda se
verifica com D. Garcia Mendes, filho dele). Note-se que se diz ser «nepotis» e não «nepotum», e cremos
que se refere ao dono (nesse caso, ainda único) da «quintã» – muito naturalmente, Dom Mem Garcia.
Neste caso, repartidos os casais, não o havia sido a «quintã» ainda.
(4 ) Inq. 5572.
(5 ) De notar que o que poderemos ou não conhecer de uma honra depende da maior ou
menor explicitação que da sua orgânica interna fazem os monumentos. Assim, neste caso, se
conhecemos este aspeto, é porque se exprimiu nas Inquirições de 1258, pois as de 1220 apenas dizem
que em Lordelo não há foro à coroa «quia est in onra de Onom», Inq. 721 e 1641.
__363__

E assim são considerados aqueles moradores detentores dos casais (por si ou


pelas «ordens») «vassalli dominorum de Unom»,dos senhores de Unhão.
Não pode deixar de atentar-se em que, além de um certo encadamento de
subordinações, a que não podemos negar de todo um aspeto hierárquico ou, portanto,
de feudalidade, a situação na honra de Unhão (que nos pode agora servir de
paradigma), concretizando-se na sua orgânica senhorial (económica e administrativa,
fiscal e militar) tanto provém do estado da propriedade, vindo já de longe, como de
iniciativas pessoais. No caso destas, estão os moradores de Lordelo, que «faciunt
fórum et servicium» aos senhores de Unhão para fuga ao fisco – «ut sint defensi ab
omni foro regali». Portanto, uma combinação de situações existentes com situações
promovidas.
Estas, isto é, a encensoria, de que resultou ampliar-se com Lordelo a primitiva
honra (cujo dominicum predial o permitia mais facilmente que o dominicum geográfico,
pois não alteraria limites), eram uma tomada de senhor. Eram-no, com efeito,diga-se o
que se disser no sentido de negar-se algo de comum com a beetria. Esta, aqui, não se
estabeleceu de facto; mas é que a encensoria se estabilizou como imunidade numa
entidade fixa, a «quintã» de Unhão – com os senhores desta honra, em que a
encensoria perdeu a individualidade ou a possibilidade de outra opção (digamos
eleição).
Mas nem sempre ou raro as coisas eram assim: a encensoria mudava de
defensor e, fazendo-o e fixando-se, não nos parece possível negar a sua equiparação
a beetria, por muito simplista que esta nossa conclusão pareça. Não é difícil vê-lo,
porque assim mesmo se encontra no maior número de casos. E isto quer eles hajam
permanecido (raramente, deve dizer-se) quer sido efémeros, extintos por intervenção
real contra uma protecção senhorialmente débil, mas já não tão facilmente se a
protecção era poderosa. Sucedia também o lugar encensoriado (e, com isso, defeso)
se integrar num domínio, isto é, não constituir imunidade à parte, mas passar a fazer
parte de uma honra ou de um couto pré-existente. É o que temos em Lordelo
relativamente à honra de Unhão; todavia, ainda assim se podiam verificar as

__364__

duas soluções – ou escapar à ação real de um regresso à coroa, ou não se isentar.


Estes casos são frequentíssimos: raras vezes abrangendo todo um lugar,
encontram-se eles em geral em casais avulsos a que os senhores de uma «quintã»
vizinha estendessem a sua proteção. E a isto se chama «honrar» – tão semelhante à
origem das imunidades indiscutidas era, externamente, a destes casos (que as
inquirições de 1288 em geral eliminavam). Não nos detemos com eles, por
desnecessário – como, por igual motivo, não acrescentamos ao caso da honra de
Unhão algum dos muito numerosos que há e em que se faz a constante menção dos
«serviços» (como sucede na notável honra de Barbosa, e outras) (1).
O caso das encensorias e o das beetrias, no entanto, carece de alguns
comentários que caibam neste estudo.

Nas inquirições de 1258, encontra-se que certos indivíduos de condição


comum «pobrárom» uma «villa» (Revordeiro, f. Souto Maior, c. Sabrosa) e, «quando
foi a guerra (1244-1245), tornarom-se hómeens de don Sueiro Pérez» com a finalidade
«que os enparasse»: isto é, «aveénrom-se com don Sueiro Pérez, que lhi dessem de
cada casal II. quarteiros de pã, por tal que os defendesse». Enfim, «pobrárom essa
vila por de el rey», ou foreira.

__________
(1 ) A honra de Barbosa-a-Nova (f. Pinheiro, c. Penafiel) era constituída pela «quintã»,
pertencente à estirpe da de Barbosa-a-Velha, vizinha, e por seis casais, tudo isto no lugar da Várzea; mas
o senhor em 1288 honrava neste mesmo lugar da Várzea; mas o senhor em 1288 honrava neste mesmo
lugar três casais de um mosteiro e levava «o serviço» deles. Ora em 1258, de facto, referem-se estes
mesmos três casais e diz-se que em nenhum dos de toda a paróquia entrava o mordomo da coroa
(portanto, honrados), sem se distinguir entre todos o caso particular dos três: só em 1288 ele se define
como «serviço» a um senhor laico, sendo eles de mosteiro (Inq. 5832). Os senhores que honravam todos
os casais eram vários (não só o que honrava os três), cada qual trazendo «o seu vigário» no «seu
herdamento»; e da combinação dos dois informes se deverá deduzir que o «serviço» feito pelos três
casais ao senhor da «quintã» (inclusos, pois, por tal processo, no dominium – mas não no dominicum –
desta) não era coisa diferente do que lhe faziam os casais propriamente dela – e, como não reconhecida,
foi ordenada pela coroa a devassa neles, pelo que temos, pois, de considerá-los encensoriados, sendo o
censo esse «serviço.

__365__

pois, à coroa; mas, daquele modo, «recebêrom hi dõ Sueiro Pérez por senhor», com
essa «raçõ» anual de cereal (1).
Este caso português, que exprimimos com as palavras documentais, parece-se
em tudo com um caso castelhano que já noutra parte exprimimos deste modo: em
1162, «certo indivíduo escolhe protetor, senhor, estando com sua mulher «en jur
nuestro de heredamiento nuestro de bienfetria», e compromete-se à prestação ao
senhor de «un par de lombos e uma ymina de cebada… e seis panes e uma canadiela
de sidra», coisa módica mas que se transmite a todos os descendentes daquele
proprietário que morarem no prédio a que o contrato se refere. Sánchez-Albornoz,
comentando este ato de encomendação, diz que nele se prova a origem de beetria no
lat. benefactoria» (2).
No exemplo português, temos pessoas que «oferecem um certo «serviço» a
um nobre para que os defendesse (sobretudo das consequências da guerra civil, que
então ardia). Na própria ocasião era considerado isso tomar um senhor – e tão senhor
que os bens dos encensoriados foram por ele utilizados como seus próprios, no que
não interessa o caráter abusivo (3): era precisamente assim, sem dúvida, que
situações análogas se tornavam definitivas. Isto, claro está, sucedia

__________
(1 ) Inq. 12541, 12552 e 12561.
2
() Nosso art. GE XXXVIII 886-889 (sem isto querer dizer concordemos hoje com tudo o
que aí dissemos). Realmente, a forma antiga nossa,«beetria», confirma essa origem – o que tem singular
importância na investigação da origem desta instituição. Não deixa também de ser curiosa a
multiplicidade de étimos outrora buscados para a palavra «beetria» (J. A. Figueiredo, in Mem. de Lit. Port.,
I, pp 103-105): o grego betaeria «sociedade», o árave beret iriac «povo livre», o hebreu atar «fala
demasiado, o castelhano betria «enredo», o latim benefactoria. Como a verdade é só uma, só um seria
verdadeiro, forçosamente.
(3 ) De facto, D. Soeiro Peres tomou «essa herdade, por sua» com toda «essa villa», onde
fez cinco casais; herdou-lhe tudo isto a viúva, e esta doou tudo a um mosteiro – o que frustrou a
persistência do uso de benefactoria local. Caso análogo se encontra em Armil (c. Fafe), em que os
primitivos herdadores, patronos da igreja local, «receperunt unam domnam pro domino», certamente com
encensoria e cessão de parte do padroado (se ela dele se não apoderou),pois tudo isso veia ela a doar a
um mosteiro: Inq. 6171.
__366__

Apenas em casos raros. Cremos, porém, que são mesmo os das nossas beetrias –
como adiante poderemos julgar.
O mesmo caso português nem é de benefactoria de pessoa (um «homo de
benefactoria», como se refere nas leis leonesas de 1020 e, por elas, no nosso
segundo capítulo) nem de benefactoria de herdade. Quer dizer, nem o indivíduo tinha
o privilégio pessoal de escolher senhor (essência da beetria), nem esse privilégio era
inerente aos prédios: foram aproveitadas circunstâncias excepcionais para tal
benefactoria – mas, temos de reconhecer que o direito (na pessoa) ou o privilégio (na
herdade) assim será começado, e em épocas diferentes. O caso castelhano resulta
expressamente de um privilégio já reconhecido ou estabelecido na pessoa, ou
reconhecido ou estabelecido no prédio: na verdade, a expressão «jur nuestro de
heredamiento nuestro de bienfretria» é bastante ambígua, parecendo, porém, que se
refere ao herdamento e que deste reflectia na pessoa.
O que interessa, pois, é que havia beetrias de simples prédio ou de todo um
lugar, reflectidas no proprietário ou nos moradores; que havia beetrias de uma pessoa
ou de toda uma população, reflectidas no prédio ou no lugar, respectivamente; e que a
origem está na encomendação chamada benefactoria –, um uso que se consideraria
legítimo dentro de uma antiguidade suficiente. Um facto análogo, pois, ao que se dava
com as honras e coutos entre nós, no sé. XIII-XIV, como já vimos. Aliás vimos também
que a beetria era uma honra proveniente de ação popular e nobre, combinadas.
Temos, pois, que «receber por senhor» (como em Souto Maior) ou «recipere
pro domina (caso de Armil) (1) era o efeito de uma encensoria destinada à
benefactoria «beetria». Para maior clareza do facto, bastar-nos-á atender aos casos
das «villa» Cabanelas e Vilar do Senhor (f. Lavra e f. Vila Nova, «terra» da Maia,
limítrofes) (2).
__________
(1 ) Inq. 12561 e 6171.
(2 ) Deveríamos escrever Vilar de Senhor, que era a designação. E, de facto, o
determinativo «de Senhor» nada tem com o de «senhor» (eleito pelo lugar como adiante se mostra): trata-
se de possuidor na origem do «villar» em época ignorada (pré-nacional), pois Senior foi n. pessoal,
sobretudo de mulher 965 DC 91 (diminutivo 1107 Seniorina DC 260, ainda hoje usado, Senhorinha).
__367__

Cabanelas:a «villa»são vinte e um casais em 1258, todos de herdadores


(proprietários vilãos), mas sem foro algum à coroa porque «facerunt et sempre
fecerunt servicium uno diviti homini per quem defendantur ab omni foro regali» (1).
Vilar do Senhor: eram quatro os casais «de veteri», isto é, os do início, e são
em 1258 dezassete, todos de herdadores vilãos também, e também sem foro algum à
coroa porque «nunquam fecerunt fórum alicui domino nec alicui regi nisi quali domino
ipsi herdadores voluerunt illud facere» (2).
Este caso é tão notável, pela evidência da expressão (jamais fizeram foro a
qualquer senhor nem a qualquer rei, a não ser àquele senhor a quem esses
herdadores o quiseram fazer), o que G. Barros o considerou pura beetria;mas já assim
não viu em Cabanelas, alegando que, enquanto em Vilar havia a liberdade lata de
escolher senhor, em Cabanelas a circunstância era outra: «mas a razão, dizem os
jurados, era para que os defendesse (GB VII 229). Não reparou nos textos nem os
comparou, por isso, devidamente, num caso e no outro.
A razão é contudo a mesma em ambos, simplesmente mais explicitada ou mais
bem definida em Vilar: uma escolha feito em ambos os lugares «similiter» – similiter
este tão completo que até se estende à partição dos terrenos de ambas as «villas»
pelos moradores delas promiscuamente (3). Isto parece mesmo garantir uma igualdade
do «serviço» nelas feito ao senhor eleito, do qual se consideram expressamente
«homnes» ou «vassalos» (expressões que temos encontrado sinónimas desde o grau
social mais elevado a este, o da condição comum):
__________
(1 ) Inq. 4761: asso, por eles tinham sido escolhidos e deles fuerunt homines D. João Peres
«da Maia» e, então (depois deste), D. Gil Martins de Riba de Vizela» - dois ricos-homens, de facto. É
natural que tudo tivesse principiado com o prócer da Maia referido.
(2 ) Inq. 4961:os mesmos senhores referidos para Cabanelas na nota anterior, sendo-o em
1290 D. Fernão Peres «de Barbosa» (Corp. Cod. I 380).
(3 ) 1258 «homines de Villar de Senor et de Cabanellis partiuntur porcionem se equaliter de
omnibus terrenis ipsarum predictarum villarum»: Inq. 4961.
__368__

textualmente aí «sunt homines» de cada um dos senhores, escolhidos aí livremente


(1).
A villa de Cousso funcionava em 1290 tal como aquelas duas, suas vizinhas
(Vilar e Cabanelas): os seus herdadores «fazem-se homẽes de quem querem e
honram-se per hi» – diz-se nas inquirições dessa data. Isto acrescenta à terminologia
desta espécie de imunidadees uma outra expressão, que, aliás, se implicitava: a
equiparação a honras. Todavia, em 1258,squando daquelas duas se esclarece o
exposto,nada de semelhante se encontra em Cousso, a não ser que de um casal
nunca se «divit facere forum», e isso porque havia sido de nobres («fuit militum»). Ora,
havia aí muitos outros casais de nobres – um deles, um rico-homem, com oito –,
semdp de herdadores vilãos apenas três; e, como só de um de nobres se diz que
nunca fizera foro, temos de concluir que o deviam fazer os outros. Isto, sendo eles
aparentemente de filhos-de-algo e tendo em vista a prática que veio a definir-se em
1290, leva a considerar não serem de facto, propriamente de tais nobres, mas estarem
em regime de encensoria ou de receção de senhor, qual aí quiseram ( 2), certamente
por «contaminação» (é forçoso encará-la como fator) () do que se passava nas duas
«beetrias» ao lado.
Estes procedimentos não foram reconhecidos pela coroa – e daí, em 1290,
uma sentença que eliminou estas verdadeiras beetrias de Vilar, Cabanelas e Cousso;
e, como estas, todas as congéneres.
Perante estes factos, parece de concluir que as beetrias que depois
funcionaram entre nós nada têm com as do país vizinho (estas largamente pré-
nacionais) nem com as origens que lhes aventa Sánchez-Albornoz
__________
(1 ) 1258 «tota Villar de Senor est similiter (isto é, semelhantemente a Cabanelas)
herdatorum et sunt homines domni Egidii Martini»: Inq. 4961.
(2 ) Corp. Cod., I, 350. Isto uma vez mais evidencia que o que podemos conhecer ou
desconhecer da orgânica de uma instituição depende da expressão. Assim, se não se esclarecesse a
situação de Cousso em 1290, nada poderíamos saber claramente deste lugar em 1258.
(3 ) Este caso deve explicar suficientemente as associações de beetrias a que adiantenos
referimos.
__369__

(origens essas muito discutíveis, pelo menos) (1), e – o que é deveras notável – são
singularmente tardias no seu funcionamento documentado. Quer isto significar que, na
documentação local anterior à do seu funcionamento, não se encontra qualquer
vislumbre deste – a não ser, de algum modo, na beetria de Britiande. Trata-se de
dezasseis povoações apenas, as quais, nos séc. XV-XVI, aparecem já agrupadas ou
encabeçadas por uma, à exceção de duas únicas (2). Tirando três, que nem mesmo
eram honras antes dos meados do século XIII (Mesão Frio, um burgo municipal, com
duas que, como beetrias, lhe andavam anexas),todas as outras se documentam como
honras ou coutos desde pelo menos o séc. XII, e ainda sem beetria. Não podemos, em
nosso ver, explicar esta sua tardia orgânica senhorial electiva senão, no caso das
honras, por uma das vias de se protegerem como núcleos populares, tal como outros
lugares se protegiam somente pelo regime municipal. Isto não impedia que,
considerado isso insuficiente, por ser organicamente popular e sempre por isso ferido
de certo grau de debilidade, alguns municípios pudessem vir a adotar também esse
meio. Casos estes, porém, raros, o que está de acordo com a interpretação que
damos do facto, pois que a municipaliza-

__________
(1 ) A conservação dos patrocínios vicorum romanos, ou a multiplicação de uma família de
patrocinadores com as gerações, ou, enfim, até a imitação de uma beetria individual. Em contrário da
primeira explicação, bastaria pensar tão improvável o facto como veio a sê-lo (e hoje está posta de lado) a
conservação do município romano. E dizemos isto pelas relações que no texto se farão entre a
instauração das nossas beetrias e a dos nossos municípios. A espontaneidade destes procedimentos
deixa-os compreender em todos os tempos, sem ser obrigatório pensar numa sequência originada, para
eles.
(2 ) A vila e honra de Amarante, e a honra de Ovelha (vizinha). A honra e vila de Canaveses
encabeçava um grupo formado por ela e por mais cinco honras (Gontigem, Galegos, Louredo, Paços de
Gaiolo e Santo Isidro) e um couto (Tuias). A vila de Mesão Frio, outro com duas localidades (Cidadelhe e
Vila Marim). A honra e vila de Britiande, um outro, com mais três honras. Escusado dizer que nada
aproveitamos aqui do estudo de J. A. De Figueiredo nas Mem. de Lit. Port., t. I, e, menos ainda, dos seus
equívocos na N. Malta. É natural ver nas «sufragâneas» uma «contaminação» das únicas autênticas,
ficando cada uma destas por «cabeça» do grupo.
__370__

ção relativamente à coroa era já uma certa garantia de proteção.


Dado que não pretendemos fazer aqui um estudo das nossas beetrias, basta
apresentar um exemplo da evolução com uma das mais típicas – a honra de Britiande
(c. Lamego).
Muito sucintamente, através de profusa documentação do lugar (mas ainda
assim não tanta que nos desvende a situação com clareza, se com mais fosse
possível chegar a esta – do que duvidamos, por se tratar mais de um processo
evolutivo do que de uma instituição estabelecida) basta referir estas circunstâncias:
- Durante o séc. XII, com o senhorio sucessivo de Egas Moniz (falecido em
1146) e de sua filha D. Elvira Viegas (falecida em 1218) (1), não há aqui a mínima
indicação sequer de uma simples encensoria para benefactoria, ou, portanto, de
beetria (no seu caráter electivo).
- Nota-se a divisão da honra entre alguns filhos daquele barão e, sobretudo,
entre os da sua filha sucessora no senhorio (único) ( 2), durante todo o séc. XIII e,
certamente, ainda nos inícios do XIV – agora sem um senhor único, antes
declaradamente múltiplo, ou seja, cada senhor em sua parte (3). Diremos desde já que
este facto tormaria cada um deles potencialmente opressor no lugar. Isto significa uma
situação propícia à procura de uma benefactoria para este.
- Pertence ao séc. XIII, sem dúvida (ou, portanto, a esse período obscuro) o
documento em que se continha que «parte do senhoryo de Breteandy foy dada aa
ordeb do Spital» (o Hospital) ( 4). Isto, com o mais, constitui um índice nada equívoco
de que os moradores dispunham já dessa faculdade, ou, portanto, uma primeira
indicação de prática electiva local em busca de benefactoria «beetria»,talvez ainda só
em parte do lugar ou da população.

__________
(1 ) TT Inq. de D. Din., L., 4,,fl.34 v.
2
() Nos numerosos docs, BR2 83-86.
(3 ) De acordo com os documentos alegados na nota anterior: cit, Inq. L. 4, fl. 34, v.; Inq.
1063-1064; etc.
(4 ) Doc. de Leça, N. Malta, Ip. 361. Dizemos que é deste período tal documento ou,
portanto, o facto (não se sabe a sua data), dado que o senhorio é depois único e perfeitamente
conhecido, em senhores sucessivos, como se prova na pá., seguinte
__372__

- Concordantemente, desde um dos primeiros decénios do séc. XIV, aparece


no senhorio (agora de novo único) o conde D. Pedro, que nada tem com a linhagem
da honra, nem pelo sangue nem por casamento ( 1). Mesmo sem o exposto, seria já
motivo isto para pensar em escolha da sua pessoa como senhor, e, portanto, pensar
aqui numa beetria, até porque não há indício algum de doação régia do lugar a ele.
- Falecido em 1354, o seu sucessor é protegido em 1359 por uma carta régia
contra o lugar, que, provavelmente, desagradando-se dele, o pretendia substituir
(«nom queríades com elle husar», diz o monarca aos moradores), «en razon da justiça
de algumas cousas que pertencem de buzar convosco qualquer que as ditas honras
houver como elle há». Estas expressões indicam uma particularidade no regime da
honra, particularidade que não pode ser, pois, senão a beetria, pelas condições
estipuladas entre eleitores e eleito. E, com efeito, é o que se nota nos instrumentos de
tomada de senhor, conhecidos nesta e outras beetrias.
Essa carta régia, em que a coroa se sobrepõe à liberdade de eleição, é dirigida
«a vós juízes e concelhos de Britiande». Ora estes concelhos são, sem qualquer
dúvida, as honras anexas como beetrias a esta. É o que se exprime aqui em 1482:
«cabeça sempre foy e he a dita honra de Britiande das ditas honras de Várzea da
Serra e Omezio e Campo Benfeito» – motivo porque só a Britiande, nomeadamente, é
dirigida essa carta (2). Esta circunstância não consente dúvidas.
Do que se expões, temos de concluir que até 1218, data da morte de D. Elvira,
não havia beetria aqui. É que a não houvera, de facto, com seu pai, e ela teve a honra
por herança deste, pois que, quando ele morreu, era ela uma criança de certamente
muito menos de dez anos.
Um século depois, começa a série de senhores, bem conhecidos e sucessivos,
em beetria nunca inter-
__________
(1 ) Como se sabe, era filho de D. Dinis e sua mãe era de Torres Vedras; e foi casado na
estirpe de Sousa, que nada teve em Britiande, e com uma alta senhora de Aragão; cf. o nosso art. GE,
XX, pp. 802-811.
(2 ) TT Ch. de D. Pedro I, L. 1, fl. 36; TT Beira, L. 1, fl. 126, etc.
__373__

rompida ou nunca desmentida (mau grado uma ou outra intervenção da coroa sem
afetar a liberdade de escolha de senhor). Várias circunstâncias se juntam a esta, a
marcar-nos o período da constituição da beetria (século que se segue a 1218), para
reforçar a dedução de que assim foi: uma, a multidão de senhores na honra, levando à
necessidade de, sem prejuízo da existência destes, se escolher um sobre todos (entre
eles, ou mesmo um estranho), escolha essa que parece não ter sido logo geral no
lugar («parte do senhoryo», diz o referido documento hospitalário, sendo menos de
crer que a outra parte correspondesse a uma outra eleição, pelo menos ( 1); outra, o
período de perturbação cívica e administrativa aberto mesmo por ocasião da morte de
D. Elvira (perturbação essa que desfechou na guerra civil de 1145-1146) e durante o
qual se estabeleceram, na quase totalidade, as «encensorias» benefactorias com que
exemplificámos na multidão delas; uma terceira, o facto de algumas, pelo menos, se
terem constituído «quando foy a guerra» referida, sendo certo que o nome de Britiande
aparece diretamente relacionado com esta mesma guerra ( 2); finalmente, o caráter
fundamental de «serviço» nas benefactorias «beetrias» ainda patente nesta em seu
pleno período funcional. Assim se lê no instrumento de eleição da infanta D. Joana:
neste, de facto, os moradores se comprometem «a servirem em todo o que a

__________
(1 ) Este caso hospitalário lembra o de Quintela (f. Taíde c. Póvoa de Lanhoso):em
1258,doze famílias andavam encensoriadas com a Ordem do Hospital – ou seja,,«sunt XII, moratores
(fogos) et encensoria: venerunt se cum Hospitali et posueruntin ipsa villa signum crucis ut defenderent se
ab omni jure regalis», o que parece se não dava com «patres sui eta vi»: Inq. 14891. De facto, em 1220,
havia em Taíde quatro casais daquela Ordem, e salienta-se em reguengos e foros nada andava negado
(«absconsum») à coroa: Inq. 552, 1432 e 2461. Mas vê-se que, praticamente, o lugar se transformara em
honra, com um sinal que substituía os limites: a Cruz da própria Ordem protetora (certamente nos locais
definidores dos limites); e que esta prática era recente, o que nos leva a iniciá-la, ainda aqui, no tempo de
D. Sancho II (talvez como em Revordeiro, durante a guerra civil).
(2 ) Proibição a moradores de Leiria (odiados pelo rei, pelo seu partidarismona usurpação
do conde Bolonha) de passarem ou virem aq «Britiandi prope Lamecum»:cfr. os nossos Esparsos de
História, p. 106.
__374__

dita senhora mandar, segundo a forma de seus privilégios, e lhe pagarem todos seus
foros, e outros que teúdos som de pagar como sempre pagárom» (1).
Não precisamos de alegar mais, com este paradigma (2).
Quanto a nós, como resultado do estudo acabado de fazer, temos que as
nossas beetrias se devem a um conjunto de circunstâncias condicionais que são as
seguintes, num nexo unitário:
1ª Por origem, umas encensoria, que se estabelecia, naturalmente, por
iniciativa dos moradores, numa terra não imune, mas podendo haver casos de o
mesmo se dar em lugares já imunes, e casos de a iniciativa partir de nobres
(desejosos de aumentar a sua influência social e económica); e disto não precisamos
de apresentar exemplos, depois dos vários casos já referidos.
2ª Preservação local da liberdade de mudar de protector ou, portanto, de
escolher senhor. Assim, no séc. XIII, em Cabanelas, falecido D. João Peres «da
Maia», escolhera-se D. Gil Martins «de Riba de Vizela» ( 3), e aparece depois, D.
Fernão Peres «de Barbosa» (4). Esta preservação podia não se conseguir, quer por
contrária ação da coroa, esta opondo-se a um tal procedimento, quer por ação abusiva
do próprio nobre, que passasse a dispor do lugar como propriedade sua. Este o caso
de Revordeiro, em que o senhor escolhido, D. Soeiro Peres «de Penela», legou à
viúva o lugar, vindo ela a doá-lo a um mosteiro – ao que a desvalidez

__________
(1 ) TT Beira L. 1, fl. 126. Desde o final do séc. XIV, vinha a beetria a escolher o senhor na
casa de Bragança e na família real (depois da queda dos Braganças), para melhor preservação do
privilégio conquistado.
(2 ) A escolha era vitalícia, em geral, salvo desrespeito do elelito pelos privilégios do lugar;
TT Mist. L. 2, fl.207 (beetria da Ovelha).
(3 ) Inq. 4761.
(4 ) Inq. de D. Dinis, in Corp. Cod. I 380. De facto, Vilar do Senhor, Cabanelas e Couço,
locais limítrofes, parecem ter atuado em associação quanto à benefactoria «beetria». Mas estas beetrias
não puderam resistir à coroa: ordem de devassa consequente daquelas inquirições, à qual o senhor eleito
não pudera opor-se: enquanto que os primeiros eram da mais alta categoria (ricos-homens), o último era
já um miles de influência secundária.
__375__

dos moradores se não pôde opor, quando a verdade é que eles procuravam, com
encensoria-«beetria», preservar-se precisamente de tais situações (no que logo
vieram a ser iludidos) (1).
3ª Consolidação desse direito, por «uso» suficiente, isto é, de tempo
bastante, perante a coroa, por dois meios principais:
- Escolha de senhores poderosos, ou seja, garantes respeitados pela coroa: o
caso de Britiande, a partir do conde D. Pedro e, em geral, com todos os senhores até
final (2);
- Estrutura local municipalizada, com influência popular, já suficiente perante a
coroa, mas sobretudo, reforçada pela do nobre escolhido: o caso de Mesão Frio,
depois da doação régia (não perpétua) a D. Afonso Ermiges (3).
Mais não interessa acrescentar a este respeito, num estudo resumido como é
este (por muito prolífico ou difuso que aqui possa parecer).
No ponto de vista das subordinações ou herarquias «vassaláticas», façamos
ainda a nota de que o senhor eleito não subordinava os senhores nobres em suas
heranças na honra, as quais, para melhor, eram aqui, de início, pode dizer-se, de uma
mesma estirpe. Sendo assim, como era, eis a razão daquelas situações; os
herdadores dos seus casais é que se «avassalavam» ou subordinavam ao senhor
eleito. Esta circunstância mostra a realidade orgânica em casos comuns que não eram
beetrias: como temos visto, proprietários nobres ou instituições privi-

__________
(1 ) Inq. 12541, 12552 e 12561. Em Armil, Inq. 6171, sucedeu exatamente o mesmo. Em
pleno fim do séc. IXV, a beetria de Ovelha queixava-se do seu senhor Martim Afonso de Sousa, que,
«havendo-os ele de defender» (aos moradores), «lhes fizera muitos agravos» e «os fora vender a Martim
Lourenço Corvo»: pelo que eles escolhem D, Afonso, filho bastardo do rei, (note-se o ardil dos eleitores),
e na pessoa dele pedem a este a usada confirmação: TT Chanc. de D. João I, L. 2, fl 177.
(2 ) Mesmo assim, querendo Britiande substituir o conde D. João Afonso de Meneses (eleito
após a morte do conde D. Pedro), a coroa não consentiu na substituição: TT Chanc. de D. Pedro I, L. 1, fl.
36. Mas a beetria persistiu.
(3 ) Inq. 1170; Leg. 381.

__376__

legiadas (sobretudo eclesiásticas) existentes em honra ou couto, de que não eram os


senhores eminentes, os «superiores».

Nas circunstâncias que neste e nos capítulos anteriores temos observado


(confirmando-se com as sucessões senhoriais de indivíduo único nas imunidades até
pleno séc. XIII), o herdeiro da «quintã», paço residencial da honra ou do couto, seria o
que neste ou naquele ficava por senhor. É que a «quintã» era a cabeça e a
materialização, ou mesmo personificação do próprio senhorio na sua correspondência
a esse senhor: preciso é que o relembremos, apesar de um repetitivo a que
buscaremos fugir.
Assim, aos outros herdeiros nobres, mesmo que irmãos do principal, não era aí
consentida eminência senhorial. No ponto de vista possessório, eles representariam
tanto em relação ao senhor quanto um herdeiro não nobre. Há, como vimos, uma
escala: não o fazendo, é certo, os próprios herdeiros nobres, pelo menos os seus
caseiros ou homines (que podiam ser possessores ou proprietários no prédio do
nobre) prestavam ou satisfaziam ao senhor da imunidade os serviços e os foros do
seu direito, sem embargo de também com serviços e o grosso das foragens da terra
serem por eles manifestados ao proprietário do prédio. A diferença entre o senhor da
imunidade e os outros senhores, entre estes a coroa (quando ela aí tinha prédios,
como tantas vezes sucedia),era que ele os havia de todos (fossem eles mesmo da
coroa), enquanto os outros os tinham apenas dos seus, residissem ou não eles neles
(mas, note-se sempre, que não na «quintã», salvo disposições especiais sobre a
herança senhorial). A escala realizava-se mesmo por vezes dentro de um município –
que representava para o povo, no seu termo, o papel do nobre na sua imunidade (1).
__________
(1 ) Em Covelinhas (c. Peso da Régua), com foral de 1195 (Leg. 493-494), para não se
referir outro exemplo, acusam as inquirições de 1258 vendas e doações de bens pelos munícipes
proprietários (o lugar era da coroa) a privilegiados, os quais não faziam foro, «mais (mas) o fazem
aqueles que son herees (herdeiros) que a tẽe», isto é, «aqueles que ficárom na erança» – «há erança
daqueles que as mandaram (dos que fizeram as doações) ou as vende-
__377__

Pelo menos até cerca do séc. XIV, a «quintã», paço senhorial, não era dividida,
o que garantia na imunidade a unicidade senhorial (preocupação análoga à que, mais
tarde, transcende da instituição dos vínculos e morgadios); mas não era certamente
impedido a um herdeiro, nobre ou não nobre, erigir morada nos prédios da «quintã»: o
dominicum não se alterava, não se reduzia com isso o domnicum, e o dominium e
correspondente hominium eram preservados sempre.
Daremos o exemplo como o mais antigo caso de partição entre herdeiros que
conhecemos – o dos filhos do rico-homem Mem Moniz (irmão de Egas Moniz), em
número de seis e cerca de 1155 (1):
- «Domnus Ermigius Menendi» (D. Ermígio) e sua irmã D. Maior, cum qua fuit
implazatus (isto é, com a qual respetivou um lote): ele «habuit in partitione suas
quintanas» (Oldrões e Santa Eulália), e ela «hereditates diversas» com ele – que com
ela, portanto, não partilhou essas «quintãs» (2);
- «Domna Auroana Menendi» (D. Ouroana) e sua irmã D. Dordia: aquela
«habouit in sua partitione suas quintanas (Poiares e Torrados) e «alias hereditates
diver-

__________
ram. Um destes casos tem a sua comprovação em vários docs. LDT fl. 1 e v, publi. na nossa Acç. dos
Cist., pp. 216-219. Assim, se o prédio, além do proprietário, tinha um dominus, ele ficava sujeito também
a este, cujo consentimento parece necessário para a alienação.
Temos disso mesmo um exemplo nessa localidade de Covelinhas: 1240 «nos… una cum uxores
nestras… simul cum domino nostro domno Suerio Jordan… vendimus… quantam hereditatem habemus
ruptam et inruptam» no dito lugar e seu termo, LDT fl. 1 v (publ. Acç dos Cist., pp. 219-220). As mesmas
inquirições parecem dar a entender uma divisão da «villa» entre a coroa e nobres: «com os cavaleiros».
(Inq. 1244-1247). No entanto, esta situação poderia realizar-se com sujeição municipal, isto é, sem
dispensa do foro à coroas (por mei do município), a despeito dessa espécie de dominium – que, naquele
exemplo, pela data, pode muito bem ser um caso de benefactoria.
() Não conhecemos a data da partilha, mas Mem Moniz desaparece em 1154 (sua última
notícia neste ano DR 246).
() Oldrões (c. Penafiel), de facto, na descendência de Mem Moniz 1258 Inq. 5801; Santa
Eulália (c. Cinfães) notável honra que «fuit honor de domno Menendo Moniz». Inq. 9732.
__378__

sas», e ainda outras que tive «in partione» com essas suas irmã (1);
- «DomnaThatasia Menendi»(D. Teresa): constituindo ela uma parte, «habuit in
partitione suas quintanas Barbosa, Louredo e Paredes, «et alias diversas hereditates»
(2);
- «Domna Elvira Menendi»: «habituit ion partione sua… Hereditates in diversis
partibus» (3).
Ser-nos ia fácil demonstrar a inteira realidade deste «in diversis partibus» para cada
herdeiro (4), o que não interessa aqui.
No caso de D. Maior e de D. Elvira, não se referem na partilha «quintãs»; mas,
além de naturalmente os seus dotes, mesmo sem elas, deverem ser equivalentes aos
outros em valor acordado, há que, não menos naturalmente, elas poderiam
estabelecê-las nos seus herdamentos (5).

__________
(1 ) Em Poiares (f. Penhalonga, c. Marco de Canaveses), uma doação régia a Mem Moniz
1130 DR 108. Em Torrados (c. Felgueiras), bens e essas mesmas «due quintane» dos netos de D.
Ouroana, 1258 Inq. 5541 (cfr. ainda o nosso art. GE XXXII, 146-149).
(2 ) A «quintã» de Barbosa (f. Rãs, c. Penafiel), foi fundada de facto por Mem Moniz, Inq.
5841 (e daí que a estirpe «de Barbosa» foi sua descendente, Scr. 321).
Louredo (f. Sub Arrifana, c. Penafiel) não nos oferece elucidações, e até se relaciona mais com
seu irmão Egas Moniz, Inq. 591-592.
Paredes (a atual vila) aparece em 1290 na posse da referida estirpe de Barbosa, e a honra de
Paredes é citada nas Inq. 5801.
(3 ) Não temos qualquer notícia de uma «quintã» aqui nesta partição; mas cita-se em 1288
a de Vila Cova (que caiu no lote desta herdeira, «Vila Cova in Penafideli»), de facto na posse de
descendentes de D. Elvira: inquirições de D. Dinis, Corp. Cod. I 186 (a relacionar com as Inq. 6562 e
6581). Portanto, esta «quintã» foi fundada depois, visto que, de acordo com a falta na partilha, se não cita
em 1258 Inq. 5861.
(4 ) De facto, o documento não refere (embora na partição forçosamente constasse, pois
foram de Mem Moniz) os bens de D. Ouroana e de D. Dordia em Santa Eulália (docs. Ldt fl. 3); os de D.
Teresa em Oldrões e Lagares, Inq. 5781 e 5802; os de Ermígio Mendes e de suas irmãs D. Ouroana e
D.Teresa em Sever e Paçô (c. Moimenta da Beira), docs. LDT fls. 30 v, 31, 32 e 32 v, TT Sé de Lam.
Doações L. 2, n 9; os de D. Teresa aí mesmo (em seu trineto, por antepassados,TT Ch. de D. Din. L. 5, fl.
74 v); etc.
(5 ) Devemos notar que os nomes destas filhas de Mem Moniz estão por vezes errados nos
livros de linhagens, Scr. 148, 307, etc.: estes documentos corrigem-nos (cfr. a nossa Acç. dos Cist., pp.
108-111, e seu mapa genealógico).
__379__

A disposição de preservar a unidade senhorial da «quintã» neste meados do


séc. XII é evidente nesta partilha (1). Nos finais do mesmo século, o mesmo ainda de
encontra, por exemplo, na conhecida «notícia de partiçon e de devison que fazemos
antre nós dos erdamentos e dos coutos e das onras e dos padroádigos das eigrejas
que fôrom de nosso padre e de nossa madre», datada de 1190. São três irmãos e uma
irmã, que dispões ou acordam desta maneira:
- Rodrigo Sanches «ficar por sa partiçon na quinta parte do couto de Viiturio»,
com padroado e «tôdolos erdamentos do couto e foea da couto» (2).
- Vasco Sanches «ficar por sa partiçon na onra de Olveira» e outros bens (3);
- Mem Sanches «ficar por sa partiçon na onra de Carapeços» e outros
herdamentos (4);
- Elvira Sanches «ficar por sa partiçon» com haveres em Centegãos e
Creixomil, pelo menos (5).
Não se fala de «quintãs», mas certamente ao menos uma havia no referido
couto de Vitorino sem aqui se dizer que ela tivesse ficado a Rodrigo Sanches) (6), na

__________
(1 ) Trata-se de uma «memória» redigida no séc. XIII sobre o auto de partilha: doc. Meireles
Mem. do Most. de Paço de Sousa, Pr. pp. 112-113. Não creio, de facto, numa origem genealógica: os
organizadores dosnobiliários medievos é que poderiam utilizá-la como fonte, mas não o fizeram, apesar
de já existir.
(2 ) Vitorino dos Piães (c. Ponte de Lima), de que de facto se diz em 258 «Voytorino est
couto per padroes», sem se dizer de quem, Inq. 3201; ver uma das notas seguintes.
(3 ) Não identificamos esta honra: a Oliveira que nos parece com alguma probabilidade, a
de cerca de Braga, não oferece conformidade com isto em 1220 Inq. 151 e 1741.
(4 ) Carapeços (c. Barcelos) 1258 «est couto» Inq. 307; e, de facto, cita-se em 1220 «de
cauto et de quintana de Menendo Sanchiz Inq. 1052, que é Mem Sanches da partição.
(5 ) \Centegãos é, hoje, Santagões (c. Vila do Conde), e diz-se em 1258 «est (há) ibi honor
vetus domni Petri Escachia», Inq. 14211. Quer dizer, foi honra de D. Pedro Pais «Escacha», que deve ser
avô (paterno ou materno – não podemos de momento decidir) dos quatro irmãos partilhantes. Creixomil
(c. Barcelos), em 1220, não tem reguengo algum, nem faz foro à coroa, sendo, pois honra ou couto, Inq.
271 e 3091.
(6 ) De facto, em 1258 cita-se aqui este nobre: «in ista villa comparavit Rodericus Sancii I.
casale» Inq. 128-129, para juntar aos seus bens herdados.
__380__

honra de Oliveira (que ficou a Vasco Sanches) e na honra de Carapeços (que ficou a
Mem Sanches): a integridade da referência a estas duas honras garante a integridade
de herança da respetiva «quintã» (1).
O mesmo encontramos ainda em 1334 na partição dos bens que haviam sido
de D. Urraca Afonso (irmã bastarda de D. Dinis), entre as suas três filhas, merecendo
a pena que transcrevamos do documento o seguinte:
«Item fezérom hũa partiçom com Louredo do julgado de Santa Cruz de Riba de
Tâmega (2), com Beeva (3), com a aldeya da Pedrada ( 4) e com a herdade que
chamam da Jurada em termo de Pinhel: que fossem ambas as quintãas (Louredo e
Beva) hũa cabeça com todas sas perteenças e onrras e serviços e geiras, e tôdalas
outras cousas que aas ditas quintãas pertencem e de dereito devem a pertencer, em
monte, fonte, roto e por romper. E outra cabeça de partiçom da quintãa de Soutello de
a par de Canaveses (5) com tôdalas cousas que aa dita quintãa pertencem e devem a
pertencer de dereito, com tôdalas cousas que aa dita quintãa pertencem e devem
pertencer de dereito, com todas sas rendas e onras e serviços e comtodo outro jur e
jurdiçom que a dita quintãa sempre ouve e deve aver, e assy como foy usado e
costumado. E outra partiçom e cabeça della fezérom da quintã de Barvosa de terra de
Sousa, com todas sas perteenças,assi como as sempre costumou e usou de aver».
Como se nota, foi em absoluto respeitado o papel unificador de uma «quintã» e
não só a para isso necessária unicidade dominical dela, tal como a vimos nos
exemplos anteriores. Os bens partilhados (vê-se nos três

__________
(1 ) Doc. in J.J. Nunes Crestomatia Arcaica (cit. GE XXII 846). Muito depois de redigido este
texto, e já fora das nossas mãos havia muito, conhecemos o trabalho do prof. A. de J. da Costa Os mais
antigos documentos escritos em Portugal, onde («Rev. Port. de Hist..» XVII 272-277) tem o primeiro lugar
um excelente estudo sobre este documento, com referências documentais às pessoas que são
concordantes com as nossas, embora sem qualquer encaro dos nossos pontos de vista no presente
trabalho (por não serem da finalidade daquele).
(2 ) Atual f. Louredo (c. Amarante), que demos por exemplo de dominicum predial.
(3 ) Lugar da f. Cárquere (c. Resende).
4
() Lugar da f. Freixedas (c. Pinhel).
5
() Lugar da f. Constance (c. Marco de Canaveses).
__381__

exemplos), sempre que ela existia, eram de facto agregados a uma «quintã» e dela se
tornavam próprios (durante o domínio do senhor a quem cabiam e enquanto a ele
conviesse). E isso ainda mesmo que eles estivessem muito afastados dela,
considerada, como se vê, sua «cabeça». às vezes, por conveniência de partilham esta
era, pois, constituída por duas ou até três «quintãs», que ainda quando muito
afastados entre si,se formalizavam em unidade, talvez sedeada numa delas.
Para isto concluir, pois que está patente, nem precisaríamos da síntese que, no
próprio documento, se segue àquelas disposições: «E assi fezérom três terças: hûa
Louredo e Beeva, e outra Soutello, e a outra Barvosa». Por estas designações,
também sintéticas,de cada parte, se vê absolutamente claro quanto a «quintã» era o
fulcro de cada domínio, pois que naquela suma as três partes são designadas pelas
«quintãs» respetivas.
«E logo (as três herdeiras) ouvérom por feitas as ditas partilhas , e, sortes
deitadas» – diz-se no auto –, ficou o conjunto Louredo-Beba a D.Maria, Soutelo a D.
Guiomar, e Barbosa a D. Leonor (1).
Confirmando a própria intenção ou preocupação de preservar a unicidade
dominial ou a unidade da «quintã» com os bens adstritos, estão as disposições
firmadas antes do loteamento e das sortes;
«E ficárom que nenhum deles (herdeiros) nom pudesse nunca comprar nem
ganhar nem aver nenhumas rendas nem serviços nem onras nem maladias nos ditos
__________
(1 ) Duas das três irmãs eram casadas, e figuram por isso com os maridos: «D. Martim Anes
de Sousa e sa mulher D. Leonor» e «D. Álvaro Gonçalves de Sousa e sa mulher D. Maria». Na
descendência de D. Urraca Afonso Scr. 292, não se cita esta sua filha, o que é estranho, porque o livro de
linhagens é do seu tempo: teria sido ele o «assassino» (aliás o patriótico conselheiro régio) de D. Inês de
Castro, e daí o silêncio,por execração do seu conselho na execução da dama? (Contra uma outra
identificação que aventamos noutro estudo, na estirpe dos Velhos, parece-nos esta hoje muito mais de
crer). A outra herdeira, D. Guiomar de Berredo, morreu solteira e sepultou-se no claustro da Sé de
Lamego, de que foi grande benfeitora.
__382__

lugares (1), senom hu a cada hum ficar sa partiçom», isto é, apenas dentro do seu
conjunto e não no(s) do(s) outro(s) – a não ser por contrato de herdeiro com herdeiro e
no conjunto: «salvo quando a ouvesse (a partição) por escambo ou por venda de huns
fezessem aos outros, ou por doaçom, e doutra guisa nom» (no que ainda se procurava
preservar a unidade dominial além da plenitude de domínio nos limites de direito que a
definiam).
Já num dos capítulos anteriores vimos que as mesmas três herdeiras
partilharam à parte neste ato a «quintã de Lumiares», de que, naturalmente, também
«fezérom três partes» – ficando a cada uma das herdeiras a sua, tal como nesse
capítulo se informou. Se fazemos aqui esta referência é porque, aparentemente e ao
contrário do que sucede com as «quintãs» do loteamento, não se respeitou a unidade
desta de Lumiares. Deve, porém, notar-se que ela não era do tipo unitário, mas do
dissociado, com diversos paços e suas torres, etc., separadas as partes por caminhos
que são hoje (e já então o seriam) ruelas da povoação de São Martinho das Chãs, à
roda da igreja deste lugar (já então paroquial). Enfim, uma igreja deste lugar (já então
paroquial). Enfim, uma dissociação que significa que a «quintã», por estrutura e
organização (por fases), era propícia a ser dividida (2).
Cremos que não havia disposição legal alguma que impedisse a partilha na
própria «quintã» de tipo unitário: a sua preservação era mais uma norma espiritual

__________
(1 ) A maladia, cujo tratado alongaria demasiado este trabalho, era uma relação de
dependência pessoal que não diferia substancialmente da encensoria em atos pessoais e serviços de
produtos agrícolas, mas implicava um maior grau de dependência da pessoa e dos bens: «ad
commendam et maladiam de ipsis militibus cum suo corpore et habere», Inq. 9302 (sujeição de vilãos a
milites nobres). Por vezes, de facto, era ela imposta pelos nobres: «devem e ham de ser seus (certos
possessores vilãos) per erdade et per cabeza», Inq. 2961 – o que repete aquela expressão, quanto ao
grau de dependência. Para nos capacitarmos da sua identidade prática com a simples encensoria, basta
que notemos que a 5ª alçada das inquirições de 1258 tem por expressa incumbência ou preocupação
averiguar em cada lugar da existência de imunidades (honras e coutos) que se considerassem «novas»,
de foreiros sonegadores, de amos de nobres (amádigos), e de maladias: Inq. 4711, etc. (não havendo
nunca referência a outra espécie de encomendação, tão vulgares sendo então as encensorias).
(2 ) Doc. TT Sé de Lam. Testam. nº 30, fls. 42 v-43.
__383__

(pelo significado da «honra» concretizado na residência, como vimos já). Deste modo,
não seria de surpreender que alguma vez a partilha do paço único ocorresse.
Temos disso um exemplo de 1290, em que devem notar-se estas
circunstâncias: ser já tardio (o que não significa impossível antes); que a partilha se
realizou entre dois herdeiros, um dos quais vivia na Galiza (e que jamais viveria nesse
paço); e que tudo indica que eles o eram já havia muito antes da partilha. Isto dá a
entender que alguma situação especial se criara entre eles e que levaria, de um certo
modo forçosamente, a tal partilha.
Trata-se do paço da «quintã» de Resende, dividido, naquela data, entre o
senhor de uma honra de Resende e seus sobrinhos (Martim Afonso «de Resende»),
por uma parte, e D. Maria Pais «de Ambia». Esta era neta de uma tia paterna desse
senhor (1), e foi representada no ato por procuradores. Por essa partição, ficou com
uma das duas partes «o meyo (metade) do paaço contra fundo como leva toda a porta
com ser alpênder e cõ as cortes (além de vários prédios rústicos); e ficou «donna
Maria Páez ena meyadade», isto é, «no meyo do paaço de la porta acima e com o
alpêncer de cima e abrem lhi a porta a este paço en esse» (alpendre), isto é, teria de
abrir-se, na parte de cima do alpendre uma outra porta (ao lado, pois, da única que
existia), esta parte também com prédios rústicos (2).
Em favor da preservação da unidade «quintã», vem mesmo o fator de poder
dividir-se uma imunidade – uma honra ou um couto – mas não a sua residência. Isso,
porém, fazia-se de tal modo que, se na parte separada viesse a erigir-se e organizar-
se «quintã», também a unicidade desta ficaria garantida. Os exemplos não faltam – e,
por vezes, impressionantes em certas particularidades.
A honra de Lalim fora de Egas Moniz e compreendia as duas «villas» de Lalim
e Ribadelas (hoje, Ribelas) (3).
__________
(1 ) Inq. 9902; Scr. 322-323; etc.
(2 ) Doc. Arq. Hist. Port., IV. p. 40.
3
() Inq. 10841 ; TT Inq. de D.Dinis. L. 4, fl. 35. Ver o capítulo quarto, com Lalim como
exemplo do tipo geográfico do dominicum.
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Dele a herdou uma das filhas, D. Dordia, por cuja morte ficou ao seu viúvo, o prócer D.
Gonçalo de Sousa; mas, na sucessão deste, foi dividida, com Lalim e seus paços (ou
«quintã») para o filho, conde D. Mendo de Sousa ( 1), e Ribelas para a filha, D. Teresa
Gonçalves: e assim apareceu aqui a chamada «quintã» de Ribadelas, que foi herdade
pelo rico-homem D. Gil Vasques, filho desta senhora (e ele próprio a não fez) (2).
A grande honra de Resende foi também de Egas Moniz ( 3), de quem a herdou
seu filho Moço Viegas; mas, por morte deste, a «quintã» ficou a sua filha D. Urraca
Afonso (da qual descenderam os imediatos senhores da honra de Resende). Dela se
separou Beba, para outro filho (D. Pedro Afonso), bisavô do marido de D. Urraca
Afonso – esta a filha de D. Dinis e cujos herdeiros, como vimos, incluíram a «quintã»
de Beba na partilha de 1334 (sendo, pois, desta ascendência que tal «quintã» lhes
procedia).
Enfim, o couto de Leomil, a mais extensa imunidade nossa (dado que se
estendia nos cumes da Nave até ao Douro – território de vinte e três freguesias atuais)
(4), foi feito pelo conde D. Henrique a D. Garcia Rodrigues; mas logo à morte deste se
dividiu, e a subdivisão chegou tão longe, posteriormente, pelas heranças na estirpe,
que nele se erigiram em vila treze povoações (sem contar a de Leomil, a cabeça), por
motivos de correspondentes honras ou coutos. Assim se explica que em 1240 «tragem
hy aquelles cujo hé seus juízes e seus chegadores» (5).
Não se precisa de mais exemplos, nem de outras considerações.
A menção que acabamos de fazer de juízes é que traz à discussão, agora, uma
das facetas mais notáveis

__________
(1 ) Doc. Meireles Mem. do Most. de Paço de Sousa, Pr. nº 44, e doc. citados na nota
anterior.
(2 ) Src. 293; doc. N. Malta, I. § 183 e pp. 252, 326, etc. (Cfr. ainda o nosso art. GE XXV,
631-633)
(3 ) Inq. 9902; TT Inq. de D. Dinis. L. 4, fl. 28 v.
(4 ) Nota-se a extensão, perfeitamente, na carta régia de confirmação do couto em 1141 DR
231: «dividit cum Pera» (exptremo sul) e «cum Panonias» (no Douro, extremo norte), etc. – o que se
encontra ainda em pleno séc. XVI, 1527 Arq. Hist. Port., VII, p. 252.
(5 ) TT. Inq. de D. Din. L. 4, fl 36.

__385__

do regime senhorial – a administração da justiça. Esta, de acordo com o nosso estudo


sobre os caracteres das imunidades, diz respeito, no ponto de vista deste regime, aos
coutos (seja o simples, sejam os inter-correspondentes cautum-honor e honor
cautum).
Na partição de 1334 do couto de Lumiares, atrás referida, estabeleceu-se entre
as três partes herdeiras o seguinte:
«E quanto hé sobre o fecto de jurisdiçom de justiça do couto e das perteenças
da justiça, ficou en esta quisa: A rectoria e a renda della seer de todos. E quando
alguns (moradores) do dicto couto quiserem apellar dos juízes, que apellem para qual
deles se pagarem» (isto é, para o senhor da «quintã» conforme aquela de que se
tratar,, ou seja, a cujo dominium pertencer o apelante) (1), «e que aquel a que for a
apellaçom a possa deferir e terminhar e que nom seja depois por nenhum dos outros
embargado. E quantohé sobre o fecto de confirmaçom do juíz do couto, a qual delles
que for (isto é, conforme o senhor de que se tratar) «a possa confirmar, em cada hum
anno. E se algũus quiserem ganhar cartas de sempre-justiça ou outra qualquer carta
directa ou justificada para a justiça do dicto couto e honras, que o possam fazer».
Como se vê, os senhores do couto de Lumiares (honor cautum) não
nomeavam juiz; fazia-o a população anualmente, o mesmo que um direito da coroa
neste caso – mas sujeitando-se à confirmação senhorial (2).
As honras anexas ao dito couto, isto é, «que som da jurisdiçom de Lumiares»,
são as vizinhas Figueira, Queimadela e Queimada (3), que sofreram igual parti-

__________
(1 ) É o que se exprime logo a seguir. Cfr., quqnto a expressão 1258 «dam suas lutuosas a
quem se pagarem quando morrerem», Inq. 3362.
(2 ) Assim se explica que D. Afonso IV tivesse mandado conduzir sob prisão à sua presença
este juiz (de Lumiares), pois que, tendo o rei ordenado que o tabelião de Armamar prestasse serviço no
couto, ele «fizera correr com o dito tabaliom, com homens e com armas, e o posera fora do couto»: doc.
Viterbo, Eluc. s. v. Correr.
(3 ) De facto, estas três honras «todo tragia por ora don Pedro Eanes, e assy o trouxe seu
padre» (D. João Martins de Riba de Vizela, que casara com a filha herdeira do senhor deste couto, o
famoso D. Abril Peres «de Lumiares»; TT Inq. de D. Din. L. 4, fl. 30 v; Scr. 297.

__386__

lha em 1334: «as partam todas antre si como partem de Lumiares». (1). Não eram
residenciais ou de «quintã».
Na honra de Lalim (o tipo da honor simples), não funcionava qualquer juiz –
nem senhorial, nem real ou popular: 1290 «non soya hy a aver juiz, mays louvavam-se
(os moradores) em dous homẽes bõos quaes que julgassem». (Isto é, que os
moradores escolhessem ad hoc): «e nom avia ay juiz; e ora tragen hy seu juiz» ou
senhores (quer dizer, metiam-no aí os sucessivos senhores da honra, desde D. João
Mendes «de Sousa», o primeiro a nomear juiz). À honor simples, transitara assim, por
ação senhorial, a honor-cautum. As apelações, porém, ao que cremos, não deviam ir
aqui para o senhor, visto que a localidade obedecia, judicialmente, ao «fórum de
Tarauca». De outro modo, nem se compreenderia que o lugar fosse, como era,
expressamente, do julgado de Castro Rei (a designação «julgado» com um sentido
que se distingue, neste ponto, da designação administrativa «terra de Tarouca») (2).
Tendo em vista o esquema das imunidades exposto e explicado no capítulo
anterior, e dentro de uma fraca margem, sempre natural, de exceções (de que, de
momento, nem nos ocorre exemplo), poderemos admitir o seguinte em administração
de justiça:
- Na honor simples, ou não há juiz ou ele é de nomeação popular, com os
recursos para o tribunal da coroa ou justiça régia. Se, havendo juiz, este fosse de
nomeação senhorial, não se trataria de honra, mas de couto.Sendo popular ou real,
esta honra poderá dizer-se couto,mas do rei (cautum domni regis).
- No cautum simples, há sempre juiz de nomeação senhorial, sujeito, porém, ao
juiz régio (o da respetiva circunscrição administrativa, ou julgado);
__________
Acerca de Figueira, encontrasse: 1258 «interrogatus cui judicatui respondente (os moradores),
dixit qud nulli nisi tantum ad mandatum dominorum suorum», Inq. 10681 – isto é, não era de julgado
nenhum, obedecendo apenas «a mandado dos seus senhores» (mas o rei D. Fernando veio a entregar o
«julgado de Figueira» à cidade de Lamego,TT Ch. de D. Fern. L. 1, fl. 110 v.
() A respeito desta, que era do tipo dissociado ou complexo, foi dito o bastante, quanto às
características, etc., no quarto capítulo deste trabalho.
() TT Inq. de D. Din., L. 4, fl 35.
__387__

- Na honor-cautum ou cautum-honor, há sempre juiz: no primeiro processo,que


é o da evolução da honor em cautum (por ação nobre, como do capítulo anterior
sabemos), é ele de nomeação senhorial, ou então de nomeação popular, mas, neste
caso, com confirmação senhorial (sendo as apelações também senhoriais); no
segundo processo (já cautum de origem), a sua nomeação e as apelações são
senhoriais também).
Esta existência de juiz nas imunidades, enquanto se conservaram e, nas
respeitadas, mesmo depois de desaparecido o seu regime senhorial, teve como
consequência orgânica administrativa a existência de um município que poderemos
qualificar de município senhorial.
Toda esta orgânica já foi observada; mas os casos de imunidades com juiz de
nomeação popular merecem mais algumas considerações, principiando com dois
exemplos que oferecem entre si certas diferenças, o de Lumiares e o de Britiande.
Em Lumiares, local tantas vezes aqui citado, a honor assumiu o aspeto de
couto não precisamente por ação nobre, mas por meio dos nobres senhores dela, (isto
é, pela existência destes); era a existência de juiz que lhe dava o aspeto cautal; mas
não era o senhor que promovia diretamente este, pois que ele apenas confirmava um
tal ato popular.
Em Britiande, a honor assumiu também o aspeto cautal pelo juiz, e também
aqui o senhor o não nomeava: «toda a vila» e a freguesia «tragen por onrra» ainda em
fins do séc. XIII, e «en esta onrra tragẽ hi seu juiz o concelho» – o que significa que o
concelho do lugar (representando os moradores) é que nomeava o juiz (ora os dois
juízes, anuais, de que aí também há notícia), devendo não se esquecer que o local foi
povoado com carta de foro (entre 1128 e 1146): a terra «foy dada a foro aos homens»
(1). É, pois, de crer que o privilégio popular se tivesse instituído nesta carta (hoje
desconhecida), e que nem mesmo tivesse havido uma confirmação senhorial de juiz
senão cedida pelo concelho, pois que o lugar (beetria) aparece a dispor da jurisdição

__________
(1 ) TT Inq. de D. Din., L. 4,fl 35 v. que cito em diversos escritos meus, como GE XXX IX
131-132, etc.

__388__

e a cedê-la aos senhores eleitos ( 1). Decerto por isso mesmo nunca se disse couto,
nem, como seria de esperar, «couto de el-rei» (efeito eliminador exercido sem dúvida
funcionalmente pela beetria).
Nestes dois casos, não se observa a partilha da imunidade em parcelas
imunidades, constituindo a honra ou estruturando o couto. Ou, melhor, em parcelas
imunidades que, com esse caráter de honras ou de coutos, devem esta orgânica e
suas funções à honra única e ao couto único primitivos, como em Caria e em Leomil.
Em Caria, que fora honra única (dos irmãos Egas Moniz e Mem Moniz),
«aqueles que ham parte en a onrra» (isto é, os partilhantes dela por heranças), mete
cada um deles na sua parte o seu juiz (a honra abrangia oito freguesias da
actualidade), além do seu chegador – este para as rendas (honor), aquele para a
justiça (honor-cautum por ação senhorial) (2). O conjunto de senhores constitui o corpo
dos chamados «quinhoeiros» da honra.
EmLeomil,ocouto (correspondente, como dissemos, a vinte e três freguesias da
actualidade), anda, igualmente, muito dividido, em razão de heranças, no sé. XIII:
«tragẽ hy aquelles cujo hé seus juízes e seus chegadores», mas subordinando-se
todos a Leomil. Ou seja, subordinados ao couto propriamente deste lugar, como
cabeça e porque, primitivamente, não havendo outro, estava este estendido a todos.
Daí que ao senhor deste couto «menor» de Leomil (dentro do primitivo couto «maior»,
subdividido), se desse mesmo, em nosso entender, a designação de «couteiro» (3).
Num ponto de vista de municipalização senhorial (devida à existência de
juízes), as consequências foram
__________
(1 ) Quanto à cessão jurisdicional pela beetria, ver TT Místicos, L., 4, fl.20 e v. Se, havendo
juiz, este fosse de nomeação senhorial, não se trataria de honra mas de couto. Sendo popular ou régia,
esta poderia dizer-se couto, mas do rei (cautum domini regis).
(2 ) TT Inq. de D. Din., L. 4, fl.36 ; Inq. 11032. Daí que, embora a designação mais frequente
tenha sido «honra» em Caria, também se lhe dê a de couto.
(3 ) TT Inq. de D. Din., L. 4, fl.36 ; Inq. 1103 1 «Vicente Veegas que foy couteiro de Loymir»,
Scr. 377. A subordinação a Leomil manifestava-se, certamente, na confirmação em Leomil dos juízes de
cada lugar, em o selo municipal sern o de Leomil, etc.
__389__

diferentes: talvez pelo duplo senhorio inicial, na honra de Caria apenas se constituíram
e vigoraram dois concelhos depois da Idade Média; mas, em Leomil, eram eles
dezasseis, com todas as povoações suas sedes categorizadas de vilas) (1).
Estas circunstâncias mostram que o povo alcançaria regalias municipalistas
mesmo onde e quando os juízes fossem de iniciativa senhorial, bastando o facto para
mostrar que o regime senhorial não constituiu para os povos, geralmente, o gravame
ou o odioso que se é tentado a admitir, ou que se tem admitido mesmo.
Provam-no ainda factos frequentíssimos e variados, como as saídas das terras
da coroa para ao imunes (as de nobres) ( 2), sujeitando-se, por vezes, os emigrados a
im imposto especial (a goiosa) (3). Prova-o número impressionante (sem embargo de
alguns casos de forçamento) dos amádigos, adoções e colacias (4). Provam-no

__________
O senhor de Leomil tinha mesmo a jurisdição da totalidade dos «coutos» ou vilas existentes no âmbito do
primitivo couto único (DR 231): doc. GB II, 466-467, que refere cerca de 1335 vinte juízes neste couto
único antigo.
(Esta partição ou, melhor, um couto «menor» de Leomil teve mesmo a curiosa consequência de
se lhe chamar o «Coutinho», embora ele não fosse «menor» que os outros – daí tendo começado a
aplicar-se Coutinho, como apelido, aos seussenhores).
(1 ) Barcos, Tabuaço, Pinheiros, Goujoim, Chavães, Távora, Sendim, Arcos, Longa, Granja
do Tedo, São Cosmado, Nagosa, Castelo, Paradela, Moimenta e Leomil.
(2 ) Carta propriamente dita (Caria de Susã) e Vila da Rua (antiga Caria de Jusã),
abrangendo as atuais freguesias de Caria, Rua, Aldeia de Nacomba, Arcozelos, Faia, Penso, Carregal,
Lamosa, Quintela e Segões.
(3 ) Os exemplos são inúmeros: «vendeu erdade a domna Gontina Novaes» e o vendedor
foi estabelecer a morada nessa que fora seu prédio e onde, agora, era «protegido» por aquela dona, a
sua compradora: «e foy morar in essa davandita erdade e excudar-se per y, que non faz foro al rei», Inq.
3522.
(4 ) Apenas este exemplo: 1258 «dam goyosa se se vay morar para o couto, scilicet I.
reixelo ou II. soldos leoneses», Inq. 3341.
(5 ) Certo herdador «recebeu Pelagio Novaes por filio in sua herdade e dam-li dela
encensoria::: et excusan-se per y», Inq.3501. Além do censo em vida do adoptante, para o adotado, viria a
passar pelo menos parte dos bens. As «crianças» de filhos de nobres tinham o mesmo efeito: 1258
«excusan-se per istos davanditos amádigos, que non fazem estes davanditos foros al rey», Inq. 3631. (No
entanto, até nisto poderia haver forçamento pelo nobre: Inq. 425).
__390__

as vulgares encensorias, por vezes transformadas, como vimos, em beetrias. Isto para
mais não citar, nem se olhar à oposição dos poderes públicos a tais comportamentos
populares. Estes até recorriam frequentemente à nobreza contra a coroa, de cujos
oficiais não havia a recear menos exacções e violências que da parte dos nobres
poderosos (1).
Como todas as circunstâncias de origem humana e, por isso, como todos os
factores espontâneos ou naturais,o regime senhorial, correspondendo às
necessidades de uma determinada época, porque não eram predominantemente
daquela origem os seus condicionalismos, foi, sem qualquer dúvida, um dos maiores
motores de progresso medieval, um fator cujos benefícios podiam ser, neste ponto de
vista, perfeitamente equiparados aos do municipalismo em terras da coroa.
A leitura total desses grandes cadastros da propriedade do séc. XIII que são as
inquirições não nos deixa uma impressão diferente. E mais: nessa época, a condição
das classes populares apresenta amiudadas vezes uma feição muito mais favorável às
mesmas do que depois, – ou, pelo menos, feição que lhes era muito mais propícia do
que se julga. Quando o próprio povo considera «ingénua» a terra que verdadeiramente
é uma imunidade nobre, ou, afinal, uma terra «própria» de nobres, parece nisso bem
expressivo o seu sentido favorável à condição desse mesmo povo. Tanto pelo menos
como quando alguém deste se acolhe à proteção daqueles, ou quando vai buscar
nisso (de outro modo não se entenderia a voluntária mutação) uma suavização da
carga tributária pública, mediante os processos que ficam apontados e que pagavam
ao nobre esse efeito com a sua proteção em outros pontos de vista. Os casos de vilão
que «mora in erdade» de nobre e assim «se escusa», de tal modo «que non pecta voz
nen caómia nen vai in anúduva» (2).
__________
(1 ) A prova do benefício colhido exprime-se mesmo na palavra «benfeitados», Inq. 3851 (o
que não esclarece pouco o que era a benefactoria como efeito). Até os protegidos por simples maladia se
faziam eles mesmos, por vezes, violentadores dos seus vizinhos, a coberto da proteção que tinham, Inq.
9302.
(2 ) Inq. 3382.
__391__

são de cada passo. Eles exprimem uma situação assim obtida de pleno coutamento
(pelo já discutido trinómio do foro-peita-milícia), contra a qual bem natural seria uma
enérgica reação da coroa. E o mesmo quando em casais desta sucedia que o seu
detentor mudava as casas (sede de casal) para as terras senhoriais, consideradas,
para o efeito do benefício, ingénuas (1).Significado, pois, de uma isenção em relação à
coroa não a de direitos senhoriais. Estes, pelo contrário, surgiam como uma
consequência de tal comportamento. Os movimentos em sentido inverso, por
circunstâncias não propícias, parece que eram mesmo em bem menor número; e isto
não sucederia porque se temessem mais consequências com os nobres, que assim se
considerassem prejudicados, do que com a coroa (ou o Estado).
__________
(1 ) «in ereditate ingenia», Inq. 7191; «capita corum (casalium) in ingenio», Inq. 7182.
__392__

Exemplificação no território «vimaranense»

Aquilo que temos chamado exemplificação no território vimaranense (histórico)


será, sobretudo, uma aplicação, neste último capítulo da primeira parte do nosso
trabalho. É que não temos ali propriamente o exemplo da respetiva matéria; mas
temos o seu inverso.Ou, melhor, temos uma circunstância contrária – o que
chamamos um «antifeidalismo», que vale para as nossas deduções tal como
depoimento positivo. Uma sorte de demonstração matemática por absurdo.
A mais saliente circunstância que aí de facto se nos antolha não é a nobre mas
a popular. Não, porém, uma influência de todas as camadas do chamado povo, mas
daquele que atingira o tal nível melhorado – a burguesia. Nível aliás não vedado a
nenhuma: facilitado, pelo contrário, em diploma aos que capazmente o desejassem
em Guimarães. – o ingresso no seio dessa burguesia, tal como a esta nem por isso se
dificultava o ingresso na nobreza. A nobilitação burguesa, de facto, também aqui se
observa; mas, como particularidade já neste estudo versada, e sobretudo porque,
agora, nos preocupa o ponto de vista burguês para se atingir, pela antítese, o ponto de
vista nobre, é a burguesia que aqui importa.
Antes da sua explanação antitética, vejamos ainda: por um lado, na época que
podemos reputar crucial para o caso (séc. XI-XII), as sujeições servis não são já uma
inibição irremovível; e em muitos casos, nem sequer difícil de anular (o que nos
limitamos aqui a referir, pois que a este estudo não interessa o povo como povo). Por
outro lado, o próprio poder real ia transferindo a autoridade para cada vez mais
abundantes grémios populares.
Pusemos já em relevo o facto de, precisamente a partir de então, começar a
nobreza a multiplicar as suas imunidades. São estas as honores e cauta simples, em
geral, mas que ela ia procurando completar, respetivamente pelo cautum e pela honor,
atingindo, também respetivamente, a honor-cautum e o cautum-honor (em evidente
competência com os diversos níveis de municipalismo,

__393__

desde o rudimental ao perfeito) (1). Começaria ela, pois, a assumir nas suas terras
poderes soberanos cada vez mais latos – a natural defesa dos que se consideram
privilegiados contra a ascenção daqueles que o não são. Isto tanto mais que se
auscultava nos soberanos as cada vez mais evidentes disposições de a estes
proteger, e até de servir-se deles contra aqueles. E essa luta há-de desenvolver-se,
mais ou menos declaradamente, entre os concelhos e a nobreza. Esta
responsabilizará um dia tácita e expressamente a desordem à ação régia desde
Afonso II, numa evidente hostilização à casa real, que à alta nobreza, desde 1127-
1128, devia o trono. Aquele mesmo soberano o pressentiu perfeitamente e o procurou
jugular. A morte impediu-o de o fazer, se é que ela o não salvou de perder o trono –
destino de que o filho, como final da guerra civil, por fim ateada, veio a ser vítima.
Estabelecida, pois, essa espécie de privilégio popular num território, por efeito
sobretudo das cartas municipais (que salvariam Afonso III do destino do irmão) – um
caso raro e assim explicável de frustração de uma justiça imanente), nem por isso as
consequências funcionais foram as mesmas por toda a parte, mesmo no caso dos
mais eminentes municípios. Uma tal circunstância verifica-se logo nos mais remotos.
Entre estes, está Guimarães, que já antes do seu diploma (fins do séc. XI) possuía
uma burguesia municipalizada que vinha da época condal (AF3 187-197). E aqui, de
facto, se nos desenham nitidamente as duas circunstâncias negativas que, como
dissemos, apoiam positivamente os pontos de vista do presente capítulo. Delas
passamos a tratar rapidamente (2).
__________
(1 ) Como se vê, referimo-nos à classificação municipal de Herculano, a mais válida das que
têm surgido – sem embargo da que distingue rurais e urbanos e que, evidentemente, é de interesse
também para o ponto de vista que estou contemplando. Não é, porém, possível, levar as coisas a mais do
que menções, dada a asfixia de espaço que em todos os trabalhos nos inibe.
(2 ) Convém prevenir que este assunto foi objecto da nossa participação (representada) no
Congresso de Guimarães de 1979, sob o título «A Burguesia Vimaranense nos séculos XII e XIII».
Repetimo-lo aqui (com outra redação e novas explicitações) por necessidade deste estudo.
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1. O «antifeudalismo» vimaranense na administração

A primeira dessas circunstâncias é, nitidamente, o caráter muito especial da


«terra» de Guimarães. Vejamos primeiro, em breves traços, a origem e evolução desta
circunscrição.
O «territorium inter ambas Aves» (rios Ave e Avizela) 926 DC 31 e 1008 DC
201, etc., não sabemos ao certo se tinha caráter administrativo por si, ou se se incluía
num territorium que o possuísse (naturalmente desde a época romano-germânica). De
qualquer modo e como bem se vê, ele não tinha o nome de Guimarães nem outro,
usando-se para o definir uma particularidade topográfica – o que dá bem a medida
(com muito mais) de que Guimarães ainda nos meados do séc. X nada representava
aí de especial: não passava de «villa» similar de centenas delas aí existentes
(abundantemente recordadas pela toponímia antroponímica, como vimos no primeiro
capítulo deste trabalho). Fundado nela o mosteiro, que depressa se tornou o mais
influente centro político, religioso e económico do Portugal de então, foi esse território
concedido ao mesmo mosteiro (DC 223) – ou logo, pois, um verdadeiro apanágio da
estirpe condal, desde Mumadona I, a fundadora do mosteiro e do castelo. Esse couto
(facto que importa na determinação do tempo em que surgiu a «terra» de Guimarães)
ainda seria confirmado pelo rei em 1049 DC 372 – já extinta a autoridade dos condes.
É facto que entendemos deve corresponder a uma apropriação régia do mosteiro e
seus bens (como significa, ainda em nosso entender, o inventário de 1059 DC 420).
Ora é deste então que podemos considerar uma «terra» de Guimarães, o entre
Ave e Vizela: 1169 DR 294 (). O nome indicava que a sua sede ou cabeça já estava
aí, ou o mesmo que a sucessão da circunscrição administrativa pública (régia) à
particular, monástica, a imunidade ou couto – ainda que com algumas dife-
__________
(1 ) Assim, Gontim, e Golães (hoje c. Fafe) são ditas «in terra Vimaranis» tanto como
Nespereira e Mascotelos 1169 DR 294, etc.
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renças territoriais de somenos (1). Importa salientá-lo para compreender-se a segunda


circunstância que nos propomos versar.
Esta «terra» de Guimarães não tem nunca um dives-homo, um tenens,
delegado ou comissário régio, para a sua administração: nunca, de facto, um «tenens
Vimaranes», apesart de haver 1169 «terra Vimaranis» DR 294.
Caso é também que, por outro lado, não podemos explicar tal falta pela
existência de município (aliás dois: o da Villa e o do Castello) na atual cidade. Basta
pensar que há municípios cujo vasto termo é uma «terra» e cuja cabeça é, ao mesmo
tempo, a sede desta. Notar também que a municipalização vimaranense não se
estendeu à «terra», ao contrário daqueles casos – o que seria motivo mais que outro
propício à existência do tenens Vimaranes, pois o tenens nada tem com o município
(2).
Alegar-se-á que, tal como nesta, há outras circunstâncias a cujo nome nunca
se liga o do seu tenens? Assim sucede, com efeito, logo em «terras» limítrofes da de
Guimarães: Montelongo, Lousada, Felgueiras (embora não nas suas também
limítrofes Refojos, Vermuim, Penafiel, Lanhoso, com o caso particular de Braga). Mas
há essencial diferença: é que esse tenens existia aí (3), e o não se ligar o seu ao nome
de cada uma deve-se a andarem integradas sempre numa honor múltipla.
O que em Guimarães competia na administração civil e militar, fiscal e judicial
ao tenens encontra-se incumbido, em setores por vezes sobrepostos, ao alcaide
(pretor), ao almoxarife, ao juíz, ao mordomo. Estes,

__________
(1 ) A «terra» de Vermuim compreendia entre Ave e Vizela o ângulo oriental destes dois
rios; formaram-se os «julgados» de Travações e Freitas (que correspondem a um mandamento do séc. X
para o XI: 1014 DC 223 e 420 Inq. 60 e 621); etc.
(2 ) Bastam dois exemplos: o da «terra» na Guarda, no próprio foral 1196 Afonso Álvares
«qui tunc tenebat Aguardam» Leg. 511; e o de Penela (da Beira), castelo já não novo nos meados do séc.
X (960 DC 81) e município com carta de foral de cerca de 1060 (Leg. 344-348) de que se diz «teendo
Afonso López a terra» (D. Afonso Lopoes «de Baião»: TT Inq. da Beira, fl. 2 (Scr. 321, DR 399).
(3 ) 1258 Felgueiras «dives homo tenebat ipsam terram» Inq. 556 2; Lousada «qui tenebat
terram», Inq. 5422; etc.

__397__

sim, há-os aqui, e são ditos «de Guimarães» ( 1). E, para maior realce, faltando um
tenens na «terra», não deixa de existir um prestamarius nela. Não o vulgar
prestameiro de alguns reguengos avulsos, mas de toda ela, e nela sem quaisquer
funções públicas.
Nem devemos deixar de ter em conta que, se alguns nobres de altas linhagens,
pela sua atividade bélica em Guimarães nos acontecimentos nacionais de 1127-1129,
obtiveram, contra o foral vimaranense, o direito de possuir casa privilegiadas na vila de
Guimarães (2), nem por isso alguns deles ou da sua estirpe (de Sousa, da Maia),
apesar de ricos-homens, aparece na tenência desta excecional «terra».
Esses ricos-homens possuíram na própria Guimarães as casas «honradas»,
mas precisamente como também aqui os seus burgueses. Isto mostra que em nada a
alta nobreza se avantajava aí à burguesia.

__________
(1 ) Além dos «alcaldes» eleitos «per concilium ipsius Castelli» e do respetivo «pretor»
(alcaide), ao qual de preferência se dirige o rei, de acordo com a falta de «tenente» (por exemplo,
«Sancius Dei gratia rex Portugalliae pretori Vimaranensi salutem Inq. 692-693), temos, de facto, todos os
referidos – e mais: dispondo de bens dispersos pela «terra» e adstritos aos seus cargos.
Assim, em 1258, vários casais da «terra» são do juiz («judicis Vimaranensis» Inq., 7022, 7041,
etc.), não o juiz de concelho, mas o da «terra» (pela coroa), não só porque há um direito local
consuetudinário («consuetudo Vimaranis» Inq. 7672) que nada tem com os dois núcleos municipais (o
Castello e a Villa), mas porque o juiz de Guimarães exerce funções não só naqueles núcleos mas em
toda a «terra»: Inq. 7052, Vim. 3712, etc. Outros casais na «terra» são do almoxarife (oficial superior do
fisco): «almoxarifi Vimaranis», Inq. 6892, 7002, 7022, 7042, 7061; e outros bens são adstritos ao cargo do
mordomo, maiordomus Vimaranis» Inq. 6942, o qual não devemos confundir com os seus subordinados,
chamados cada um, por foro capital, «maiordomus de terra» Inq. 7022, 7161, etc. O almoxarifado tinha
ainda direito a serviços, como o das jeiras, 7112, 7192.
(2 ) Assim as «domus que fuerunt domni Gunsalvi Sause» e as «case que fuerunt domni
Petri Plagii alferez» eram livres da renda à coroa imposta pelo foral (e neste chamada «fossadeira»), a
«soldada» - pois é o que significa 1258 «fuerunt onrrate» Inq. 7371. Mesmo que estas casas não tivessem
sido erguidas aí por estes próceres, isto é, lhes proviessem de antepassados, muito influentes na «terra»
(sobretudo os Sousãos), nem por isso o sentido se alterava.
__398__

Em suma, podemos dizer que houve uma «terra» de Guimarães em normal


funcionamento, mas não uma tenência de Guimarães; e aquele traço de feudalidade
que poderíamos encontrar numa tenência ou honor administrativa normal de uma alta
estirpe, ficaria aqui praticamente eliminado pela preponderância burguesa, desdfe o
municipalismo à propriedade. Ora, note-se também que, depois da transformação do
comissório monástico de entre o Ave e Vizela em circunscrição pública (a «terra»),
esta ficou mesmo sob administração de próceres da casa de Sousa (como o «conde»
Gomes Eicaz 1052 LF 184, etc, expressamente): mas tal administração desapareceu
até aos finais do séc. XI, em que Guimarães recebeu a carta comunal, que veio
confirmar e reforçar as regalias municipais.
Parece-nos, pois, que não é possível deixar de relacionar os dois factos por
causa e efeito – ou seja, atribuir a este, repetimos, à burguesia, a considerar a maid
operosa, dotada e influente do País.

2. O «antifeudalismo» vimaranense na propriedade.

Paralelamente, em nosso entender e sem qualquer incerteza quanto ao


significado, ou quanto à causa, temos a extensão e o privilegiamento da propriedade
nesta «terra». Acabamos de ver o seu estado na própria Guimarães: a nenhuma
diferença entre as casas dos mais altos nobres e as dos burgueses – tão «onrate»
umas como as outras.
Já num dos capítulos anteriores, com exemplos do estado da propriedade nas
freguesias da «terra», quanto ao que aqui nos interessa, como a de Asorém, tirámos
pelo cotejo das inquirições de 1220 com as de 1258 a conclusão de também nenhuma
diferença entre a propriedade de nobres e a de burgueses (a não ser nos casos de
algumas raras imunidades daquelas): apenas o «chamado» (serviço no castelo) e os
encargos criminais (voz-e-coima), ou só muito excecionalmente outro – que nem nos
ocorre. Encargos aqueles tão precários, que as inquirições de 1220 em geral os não
acusam, reunindo num mesmo silêncio nobres e burgueses.

__399__

Isto no que concerne à essência da propriedade de uns e outros. Olhando ao


número, já vimos quanto as imunidades nobres são poucas e, quando existem, como
são muito inferiores, em extensão de dominicum (e, portanto, em dominium), às que
vigoram noutras regiões – nomeadamente logo para lá dos dois rios, ou sejam nas
«terras» limítrofes desta. Esta não é das circunstâncias menos relevantes ou menos
significativas daquilo que vimos expondo (1).
De facto, poderemos contar nas inquirições de 1258 em «terra» de Guimarães,
entre Ave e Vizela, para cima de quinhentos casais de herdadores (proprietários
vilãos). Mais de metade deles são os que por vezes se chamam «homines de
Vimaranes», genericamente (2), e individualmente Vimaranensis (3) – os burgueses de
Guimarães (o burgo o núcleo da Villa, único concelho de início aquele que recebeu a
carta de foral).
Paralá dos rios, repitamos, não se encontra tal circunstância, nem nas pessoas
nem na propriedade (a não ser num natural caso ou noutros excecionais) – mesmo em
paróquias a que a «terra» de Guimarães se havia depois estendido. Ora Isto, sendo
sensivelmente posterior à carta comunal, leva a concluir não só uma consequência
desta carta, senão também que a instauração de situação tal não tardou pela «terra»
de seguida à concessão. Mas estas consequências derivaram menos da carta
henriquina (fins do séc. XI) do que da sua confirmação e amplificação por D. Afonso
Henriques – pelo

__________
(1) Já este estudo nas oficinas tipográficas, isto é, havia muito redigido, tomámos conhecimento da
dissertação sobre as famílias nobres da região de Guimarães, no séc. XIII pelo prof. J. Matoso, A Nobr. Med. Port., pp.
341-349, que tem toda a importância nesta nossa,masem que cremos um tanto exagerada a proeminência ou
influência nobre na região relativamente ao módico âmbito que aqui julgamos provar-lhe.
(2) Inq. 6942. Como viviam em Guimarães, tinham nos casais os seus caseiros, chamados por sua vez
seus «homens»: 1258 «homines hominum Vimaranis», Inq. 7032. A terminologia vassalática ou «feudal» (pelo menos)
passara dos nobres para os burgueses nesta «terra».
(3) Assim ditos pessoa por pessoa. Do núcleo do Castello, nunca – e só um caso privilegiado nos
moradores deste conhecemos: Inq. 7221.

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que nos parece devido transcrever desta as três principais disposições que a tal efeito
levaram:
- «et cavaleiro aut vassallo de infancion aut nullo homine qui fuerit ingenuo et in
Vimaranes venerit morare et ibi domum suam fecerit, non det fossadeira, et ibi domum
suam fecerit, non det fossadeira, et sua hereditate et suo aver sit liber et salvo»;
- «et iuniore sit liber et salvo cum suo aver si ibi venerit habitare, et si voluerit
suam hereditatem habere serviar pro illa ad dominium in qua terra est» (1) ;
- «et illas hereditates de illos burgeses qui mecum sustinuerunt male et pena in
Vimaranes nunquam dent fossadeiram, et suo aver ubicumque steterit sit salvus (2).
Com estas garantias, não custa compreender (e o contrário é que seria difícil)
que os burgueses, e outros que o vieram a ser em Guimarães, se tivessem lançado à
obtenção de bens e organização de casaispor toda a «terra» vimaranense. E porque
não, como se nota, fora dela? As razões que encontramos, visto que não se podem
procurar num foral estendido a ela (porque este o não foi), são, talvez, as seguintes:
por um lado, que os altos funcionários da coroa, residindo em Guimarães com eles,
lhes garantiriam uma proteção fiscal e judicial que noutras «terras», com que estes
funcionários nada tinham, seria muito mais falível, além de que nessas havia um rico-
homem, que seria mais um encargo a sustentar (e este o do mais elevado
funcionário); e, por outro, o natural inconveniente das distâncias para quem, como
estes proprietários, residia por obrigação de carte em Guimarães ( 3). Embora estas
nos não satisfaçam inteiramente, a verdade é que de momento se nos apre

__________
(1 ) Estas disposições sobre iuniores revogam localmente as leis leonesas de 1020 sobre a
respetiva eximição.
(2 ) DR 1. Seguem-se as pesadas penalidades contra os violadores deste foro.
3
() Para se julgar da pouqueza fora da «terra», basta apontar que são apenas sete casais
em Valvos (S. João), da «terra» de Vermuim, entre Ave e Vizela (hoje na f. Lordelo,c. Guimarães), um
único em Rebordões, de terra «de Refojos,mas perto (atual c. Santo Tirso), e, mais afastado, um em
Nespereira, de «terras» de Lousada; dois em c. Caldelas (atual c. Guimarães) e dois em Freitas (no
antigo comissório vimaranense, hoje no c. Fafe): Inq. 6732.
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sentam melhores explicações. De resto, sejam elas quais forem, a circunstância é


indubitável e é clara.
De notar, porém, que ela falha na parte setentrional de entre os dois rios,
pertencente ao antigo comissório monástico ou couto vimaranense condal; mas ainda
isto vem corroborar a nossa tese. De facto, a «terra» de Guimarães que ao comissório
sucedeu não ficou compreendendo essa zona (1): os antigos «mandamentos» de
Freitas e Travaçós do comissório separam-se em julgados independentes do julgado
vimaranense régio. E, assim, vemos nisso uma concordância com a nossa explicação
de que a circunstância que temos vindo a examinar e definir se instaurou, com maior
ou menor rapidez – não importa –, depois da carta de foral. O mesmo, pois, que em
consequência dela.
Pelo facto de não haver um documento que nos informe da organização da
«terra» de Guimarães no séc. XI, não é que dela se pode duvidar. De resto, não o
temos também para muitos e indubitáveis casos. Incluamos nestes a separação dos
julgados referidos, que são um facto sem documento conservado, se é que o houve –
como também não o há para a instauração do município próprio no núcleo do Castello,
lado a lado com o burgo (o da Villa), em Guimarães.
Onde, pois, tanto preponderava e proliferava a burguesia, não poderia
preponderar a nobreza medieval (posteriormente, a circunstância alterou-se com a
acessão de nobrezas novas, em geral de origem burguesa), e a feudalismo sui
generis das nossas imunidades não poderia proliferar.
Como que revelando a especial atenção do poder régio a essa instauração,
temos, em nosso ver, achar-se precisamente em «terra» de Guimarães a sentença do
tribunal régio contra o que nos aparece um «meão partimento» numa honra (a de
Golães) e num couto (o de

__________
(1 ) Já neste mandamento se observavam alterações do séc. X para o XI, DC 223 e 420. A
perda territorial veio a ser compensada para o poente do Ave, o que, para o caso que se expões, vale
pelo negativo o que vale o do nascente pelo positivo.

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Gondomar) (1), defendendo direitos que o senhor da imunidade talvez nem sentia
postergados, mas que, aí, eram bem um traço da feudalidade nossa (2).

3 . Conclusões

Cartografando a situação descrita, realçam-se nela melhor as seguintes


circunstâncias:
- Há um nítido contraste de uma para a outra banda do Ave e do Vizela, como
temos salientando: entre os rios, o largo predomínio das «imunidades» burguesas e,
para além deles, o não menos largo das imunidades nobres, as por vezes muito
notáveis honras que no território mesopotâmico se não acham.
Esta circunstância terá a sua explicação no facto de esse território ter sido
domínio da estirpe condal (já antes da condessa Mumadona I), vindo a passar os seus
bens à coroa (com as poucas exceções em possessões de outras famílias nobres,
sobretudo a dos Sousão).
- Entre Ave e Vizela, as imunidades nobres que há afastam-se geralmente de
Guimarães, para ceder aqui o predomínio às burguesas, notando-se um certo
equilíbrio em zonas mais afastadas e dentro de cada localidade (geralmente só uma
imunidade nobre aí, a que se contrapõem várias de burgueses).
Esta circunstância parece-nos explicável pela concessão de imunidades
burguesas em 1128, tempo em que, por seu lado, a nobreza começa a multiplicar e
completar as suas.
- Na região mais vizinha à volta da cidade atual, o número de imunidades
burguesas em cada localidade

__________
(1 ) No couto de Tarouquela (c. Cinfães), «cautum per patronos» por D. Sancho I (Inq. 954)1,
foi investigado em 1290 «se alguém en este couto fez onrra per que o senhor do couto aja meão
partimento» TT Inq. de D. Din., L.4, fl. 22 v. O «meão partimento» de uma honra noutra ou num couto
deve relacionar-se com casos como o do miles nobre que fizera casa e honra «in unum de casalibus
honoratis» de uma «quintã» de outro nobre, Inq. 14591: com este deveria ser repartido o meio do
rendimento da honra feita na honra, em nosso ver.
(2 ) Vim. 3581 e 3522.
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e muito inferior ao que se revela à sua volta, em localidades mais afastadas.


Esta circunstância deve ter resultado do facto de nessa zona cercana e com
núcleo em Guimarães ter-se concentrado o senhorio condal e da respetiva estirpe,
com colonos ingénuos ou que se foram libertando e adquirindo a propriedade, não
deixando apreciável espaço ao estabelecimento de nobres e de burgueses – o que
não significa a total inexistência de casos destes e daqueles. Daí que os casais nesta
zona sejam sobretudo foreiros à coroa, isto é, não «emburguesados» nem
«nobilitados» – evoluídos os senhorios anteriores em alodialidade da coroa.
- No sul, margem do Vizela, revela-se uma situação de equilíbrio entre o
número de imunidades nobres e de imunidades burguesas, enquanto logo na margem
esquerda (já fora do território vimaranense primitivo) faltam as burguesas para
dominarem os nobres (de acordo com a situação descrita na primeira e geral
circunstância).
Esta situação explicar-se-á pelo facto de terem tido nesta zona a sede notáveis
e poderosas estirpes nobres, como a dos Sousãos (com solar de estirpe na margem
sul, em Santo Adrião de Vizela, ou cerca) e aquela que se chamou «de Riba de
Vizela» por isso mesmo – sendo até para notar que esta se chamara primitivamente
«de Guimarães», não por qualquer relação com este lugar, mas «porque riba de
Vizella era perto di», isto é, perto dele (diz um dos livros de linhagens, séc. XIV).

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Notas: 1. «Mandatio» e «homines de mandamento»; «hereditates de foris»; 2.


«juniores» e «collacii»; «casata». 3. «Domnegos» e prédios «domnicos»; 4.
«Filii benenatorum» e «filii honorum»; «infantiones» e «milites»; 5. Tipo predial
e povoamento na «quintana».
1. As leis leonesas de 1017-1020, como vimos, empregam com sentidos
diferentes certas designações: hereditas, villa e mandatio ou mandamento, pelo
menos – o que procurámos distinguir devidamente.
Vimos também que a redação de 1020 deverá considerar-se mais
coerentemente uma precisão à de 1017. Quanto aos compradores a iuniors,
acrescentam-se em 1020 a «aliquis de benefactoria» os «nobiles», e, quanto aos
vendedores, substituem-se os «homines de mandatione» por «iuniores».
Um objetivo desta nota é como compreender que se lhes chame homines de
mandatione, ou, noutros termos, saber qual, aqui, o sentido de mandatio.
Vimos que, em nosso entender, na expressão «usque in tertiam
mandationem», o sentido desta palavra apenas poderá ser o circunscricional; mas,
aplicada aos iuniores (ou pelo menos englobando-os),não o pode ter, porque não
habitavam eles só o território da mandatio, nem eram elas só aí os de condição não
nobre.
Os casos em que mandatio, bem como mandamento, se aplica no sentido
territorial denunciam-se por si próprios, ou no contexto. Assim, nas mesmas leis, nas
expressões «habitans in mandatione» e «homo de mandatione» não se utiliza a
palavra no mesmo sentido (1). No entanto, como de resto teria de ser,não

__________
(1 ) 1139 «sub mandamento de Sancto Felice» DR 170, situação de «villas»ou prédios,o
mesmo que «terra de Sancto Felice» DC 462, «territorio de Sancto Felice» DC 767, «territorio de Sancto
Felice» DC 767, «judicato de Sancto
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pode deixar de entender-se em ambos os casos algo de comum, a autoridade, ou seja


ela a pública (ligada ao território) (1), ou seja ela a particular, digamos senhorial. Esta,
por certo, a que aqui vigora.
No caso de iunior ou homo de mandatione, estamos nitidamente no campo dos
encargos pessoais ou serviços desta natureza, tão próprios dele que as mesmas leis
lhe referem a palavra servire como essência da sua condição pessoal.
Cremos que esse servire, nas suas múltiplas concretizações, apresenta casos
como em 1258 «fuerit ad mandatum de torviscada», embora não se trate de iuniores
(mas talvez um encargo como origem nesta condição de outrora). A expressão define
uma particularidade da natureza de «ire ad mandatum», ou seja, qualquer serviço
executado pela pessoa e devido por ela; ou da de «ire ad castellum»; ou mesmo, entre
outras tão concretas como esta, «ire ad calem» – para não dar mais exemplos (que
abundam nas inquirições do séc. XIII) (2).
Os iuniores, alémda sua condição solarenga que lhes impedia plena liberdade,
estavam, pois, sujeitos a serviços senhoriais (iunior contrapõe-se-lhe por alguma razão
a senior), os quais,mais tarde,libertas as pessoas dessacondição, se transformavam
em obrigações públicas,sob «mandado» dos funcionários da coroa,para a qual os
encargos pessoais tinham passado.
É,pois, de toda a importância separar devidamente a significação de casos
como «mandamento de Arones» ou «mandamento deTavoadello», e até expressões
como «villas sunt debito de mandamento de Sauto» (na administração monástica
circunstancional), da significação de outros, como «villa Lalini integra cum suo
mandamento»

__________
Felice», Inq. de D. Din., L. 4, fl. 22 v.; ou 1059 «mandamento de Candanoso per suos terminus antiquos»
(e muitos outros congéneres) DC 420, casos circunscricionais, que já versámos noutro trabalho (AF 3 53-
59), e até neste, seu primeiro capítulo (na aplicação ao território vimaranense).
(1 ) 1077 «ipse dux tenuit mandamento» DC 549, a palavra no sentido de autoridade
(administração); 1085 «per mandatione de alvazir domno Sisnando» DC 646, aquinomero sentido de
autoridade.
(2 ) Inq. 6282, 6532, 651.
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ou «villa Vilela cum suo mandamento» DC 420: significam estas a condição social, ou
o mesmo, pois, que 1059 «homines de mandamento (expressão que se encontra nas
leis de 1017-1020), análoga a «homines de criatione» (estes, de condição servil) ou
«incommuniatione» – pessoas estas livres e possessoras), DC 420. São,pois, também
paralelas, embora não de um mesmo significado, expressões como «suo
mandamento», «sua criatione» ou «sua incommiatione». É a condição pessoal,
portanto, que interessa ver em «homo de mandatione».

Procurando desvendar a significação de «solummodo mediam hereditatis de


foris, quanto a vendas por iuniores com foris relativamente ao «ortum» e «solare» do
iunior, concluímos que se tratava de prédios próprios deste.
De facto, confirmando pela possibilidade de tais bens a nossa interpretação,
não é difícil encontrar indícios da obtenção de bens próprios do iunior nas terras
senhoriais: por lavranças a placitum e com partição com o senior: 1010 «concedimus
tivi ilo pumar que plantavit Didagu aput nos per mediu… medietate de ilo pumar» DC
214 (esta metade senhorial uma ratio domnica, 1032 DC 234).
O sentido de «de foris» no prédio habitado e servido pelo iunior aos seu senior
revela-se em vários outros casos: 1059 «villa in omnique giro et tota alia villa de fora»,
o que não significa duas unidades, senão uma única «villa» com terras fora dela mas
por ela exploradas; isto é, num outro exemplo, 1059 «ipsa villa deservientes», mas
que «latent foras», ou «fora de terminos» (ville) alios villares que ad ipsa villa debent
ad servire» DC 420; ou 1104 «in villa debent ad servire» DC 420; ou 1104 «in villa
casal cum suo plantato et lareas de foris DP 148.
Parece de notar o caso de 1157 «de hereditate in ipsa villa ipsum kasalem qui
fuit de ospite cum suo formale et cum suis terris de foris» BF 180 (o «formal» a
residência do casal e terras imediatas, 1137 BF 38). De facto, o ospes deve ser aqui
sinónimo de iunior, um iunior que emigrara nas disposições legais de 1020 e que não
fora substituído, deixando o casal – ou seja, o «solare» e «orto», que era o seu formal,
e suas mais terras intus

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e foris – devoluto ao seu senior (que, neste caso concreto, é um alto nobre) (1).
De notar, igualmente, o caso de dois esposes que possuem e doam em 1088
«sua ratione de illas mulieres ad integro» DC 707. Estas «mulheres», certamente são
da condição solarenga, e obtiveram (ou os maridos, de quem as herdaram) as terras
em prédios senhoriais, que aqueles seniores por sua vez alcançaram delas «de
ganata» (além da ratio domnica que nas respetivas arroteias lhes devia ter sido
reservada antes pelos iuniores).

2. Num dos seus rasgos de triunfalismo carateristicamente espanhol,


publicou em 1927 Sánchez-Albornoz um documento em que dizia encontrar-se a
diferença, tanto e tão longa e inutilmente procurada, entre «solariegos y collazos» (SA
451-452). No entanto, ainda que se tratava de uma comunicação propositada em
Congresso, não acrescentou uma palavra só que esclarecesse essa diferença. Dizia
apenas, a respeito dessas «classes inferiores», em aviso, que a sua «identidad o
diversidad constituye todavia un problema», mas isso num tom que criava a expetativa
de que este ia ser aí, finalmente, resolvido.
Não sabemos se entretanto o foi, neste mais de meio século passado. Como
base ou subsídio para os nossos trabalhos, temos sempre ligado muito pouco ao que
outros dizem ou estabeleceram: as conveniências desta atitude pareceram-nos
sempre ultrapassar os inconvenientes. O que desejamos são documentos: o mais,
muitas vezes, é frioleira, sobretudo nos últimos tempos.
Trata-se da confirmação de 1217 de um forum pelo abade de certo mosteiro
«vobis totis collaciis nostris» de certo lugar, sendo as disposições apenas estas:
- O foro a prestar por eles ao mosteiro «sicut hactenus consuevistis»;

__________
(1 ) Acerca de formais, anotem-se ainda estas expressões relativas a casais da coroa em
certa localidade: 1258 «dominus rex habet ibi alios formales in quo potest facere pro uno tres», Inq. 4771,
e «sin casale I. leira cum suo formale de casa et de sua area», Inq. 1468-1469; e 1380 «o formal do dito
casal era uma casa e a cortinha que está trás (residência e um prédio cercados junto) e outro si o dito
casa avia outras herdades», fora do formal e dispensas: TT Sé de Lam. Compras, L. I, nº 47.
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- «Solariegos vero eodem modo»;


- «Cetera autem que ad jus nostrum spectant et dominium in omnibus», sem
coisa exarada que contribua para a distinção.
Aquilo que despreconcebidamente ressalta, quanto a nós, de imediato, é que a
alusão a collacii e a «solarengos» não exprime nem a «identidad» nem a «diversidad»
– os aspetos que Sánchez-Albornoz propõe na questão. Exprime apenas que um dos
grupos é uma parte distinta no outro – tal como um conjunto e um seu subconjunto.
Por isso mesmo, a carta é dirigida aos «colaços»: mas prova isso que os «solarengos»
é que são a parte no todo daqueles? Vejamos se da diferença de obrigações é
possível tirar a solução da inclusão inegável:
- Os collacii são obrigados a um tributo anual de trigo e a uma «opílarinçada»
(1), e cada um deles a vir por semana (um dia?) trabalhar, sem discriminação do
trabalho, para o senhor;
- Os «solariegos» têm aí por único encargo vir trabalhar para o senhor cada
mês (um dia também?), além do tributo do trigo (visto que expressamente são
dispensados da «opílarinçada»).
Inegavelmente, os solarengos são, aqui, ralacionados com os colaços, e de um
modo claramente mais privilegiado. A citação de uns e outros deve-se, já se vê, a
poderem ser confundidos – tanto mais, repetimos, que a carta é dirigida aos colaços.
O propósito parece, pois, ser o de confirmar os solarengos no seu estatuto ao definir-
se (mesmo que fosse confirmar-se) outro, o dos colaços, que poderia aí por confusão
social afetá-los: se assim não fosse, como se justificaria um parágrafo relativo a
solarengos, num diploma dirigido só a colaços?

__________
(1 ) Significará esta palavra (que não ocorre nos nossos documentos), atendendo à raiz op-
que se encontra em opus (e, melhor para o caso, em opiferus), o desempenho do conjunto de serviços de
collacio – «transportes para um mesmo local? (da e para a casa do dominus, neste particular) e que
cremos estar na origem de collacii como veremos adiante? Entre nós, o nome era outro – e qual? Talvez
o mandatum. No caso deste documento, eram dispensados do encargo os «solarengos», e muito
aliviados dele os «collaços) ou «collados»).
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De tudo isto, tendo em vista o privilégio relativo dos propriamente solarengos,


resulta que os colaços são solarengos também, mas um grupo destes, menos
evoluído em condição ou liberdades. Serão juniores, e, para evitar cofusões,
chamaríamos solarengos só aos mais evoluídos e colaços os outros.
Documentos nossosparecem-nos levar precisamente à mesma conclusão:
1125 «ecclesias cum decimis collatiis possessionibus et aliis pertinentiis» (clara e
necessária discriminação que teria de conter um um elemento pessoal ou servil –
portanto, os collacii); 1145 «cum suis solaribus et cum suis collaciis et cum suis
terminis» (exatamente o mesmo, com a bem expressiva referência a solares – não
solarengos, propriamente –, na correspondência do deduzido caráter solarengo
também dos colaços) (1).
Já no segundo capítulo deste estudo identificámos os nossos casati a juniores,
constituindo uma sua casta ou família uma casata. O seu caráter servil exprime-se
perfeitamente em 1014 «tam ingenuos quam de casata» DC 223, ingénuos, pois, ou
livres, e não ingénuos, os casati (2). A designação deve-se, certamente, à obrigação
residencial (na casa), mas, nos casati, com encargos que os restantes juniores não
tinham. Nota-se no aspeto servil uma especialização inegável:
Assim, num documento de 857 temos, «casata de servitio rurale» (rural,
certamente), «casata carpenteros ruales», «casata piscatores», «casata forneros»,
«casata pergaminos facere» (doc. GB IV 436-437); e noutro documento do séc. IX-X,
casata de «tornar porcos, lavares cupas et facere balneos», de ser «pistores» (doc.
GB IV 438-440) – tudo numa relação senior-junior, e, em, cada caso, encargo único.

__________
(1 ) Viterbo, Eluc., s. v. Collacia, reproduz estes textos e maravilhosamente entende que
collacii se refere a tulha, celeiros, armazém: um equívoco dos mais grosseiros.
(2 ) É de casatus que procede sem dúvida, o apelido Casado, muito frequente durante o
séc. XIII (passim nas inquirições) e que em Viana do Castelo se nobilitou: na Meadela, 1258 Paio Casado
IS 331 e 1540 João Casado (doc. no nosso estudo Mead. Hist., p. 210), tendo evoluído de casati a
cavaleiros vilãos até ao séc. XII, e daí a nobres. De facto, com casata o conjunto familiar, temos casatus o
indivíduo: 981 «vobis… homines casatos (doc. Berganza Antig. II ap. 75).
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Muito expressiva nos parece, ainda, a obrigação servil de 840 «portare kanalles
in collo» (doc. GB IV 437). Era o problema da energia de então: 1258 «quantis
carregis… duxerint in collo hominis» IS 1027. Cremos mesmo ser este de início o
fundamental, em situação servil como as enunciadas – e de tal modo que nos
convencemos (sem os triunfalismos – para nada – de Sánchez-Albornoz) de que é daí
que deriva a designação collacii (collacei): do lat. collacio, o ato de transportar, já na
época romana clássica designação mesmo de tributo (1). Depois, com a evolução do
trem de vida das classes favorecidas ou dominiais, esses servos foram-se
especializando (nos serviços ou encargos atrás referidos), sem perderem por isso a
designação originária – mas com tendência para a substituição por casati (ou – como
«família» servil – casata).
Mais tarde – mas isso sempre cedo –, veio a estabelecer-se na escrita a
confusão com «collaços» < lat. collacteu-, o irmão de leite (como já muito antes da
Nacionalidade se dizia, entre nós) (2) – e daí collacei escrito em latim bárbaro collatii,
em vez de collati. Mas creio que também houve mesmo a designação «collados»,
como mostra a toponímia (1258 Colados IS 1511, a par do topónimo Colaço, Colaços)
(3).
Este assunto fornece a passagem natural para o da nota que segue.

3. Quando, há quase um século, pelas gerais de D. Afonso II, se começou


a publicação das inquirições, então (como sucede ainda hoje) causaria estranheza o
título de «dom» aplicado a pessoas visivelmente de condição comum; e tanta que o
prefaciador das mesmas (cremos que o próprio Herculano), querendo exemplificar os
«erros» (é a sua palavra) ocorrentes nas cópias a que os ditos monumentos se haviam
reduzido, não encontrou melhor exemplo(e nem mesmo outro apontou) que considerar
esse «Dom» uma «falsa interpre

__________
(1 ) Cícero e Lívio Magn. Lex., p. 132.
2
() 931-950 «tibi conlaza nostra» DC 36.
3
() Ver a nota final, que, em parte, interessa à «mandação».
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tação», por «má leitura» da sigla Do., considerada de Dominicus, nome pessoal (1).
Como o estudo que fizémos do dominicum e dom(i)nicum (domnicum), o
pretenso «erro» ou «falsa interpretação», por «má leitura», nada disto é, mas
exatamente o título honorificador do vilão melhorado, o domneco ou donego, cuja
individualidade até em tal equívoco se reforça.
O desconhecimento que hoje se mantém da circunstância tem levado – agora
sim – a «falsas interpretações» e «erros» (quando não haja «más leituras»): os
desdobramentos possessivos «de Onnego» e «de Onnega». Pior ainda: o organizador
do índice topográfico da 5ª alçada das inquirições de 1258 nem ao menos aqueles
nomes pessoais Onego e Onega entendeu, pois que os incluiu como topónimos – o
que o texto até de modo nenhum insinua. Para cúmulo, nem ao menos desdobrou
«Donego» (como outros, embora equivocadamente, fazem) em «de Onego»,
conservou tal forma em «hereditate de Donego»: não porque ele conhecesse que era
o «donego», mas porque entendeu Donego (agora este) aquilo que não era, isto é, um
n. próprio pessoal. E o mesmo mostra ter pensado também de «Donecos».
São sobretudo estes casos daquela alçada das inquirições que em parte
originam esta nota. Chegámos a dar no texto como encerrada a lista dos exemplos do
vocábulo «domnego», substantivo e adjetivo, depois uma busca que julgámos
exaustiva; ainda a tempo incluímos outros no texto depois disso; e, agora, nos
ocorrem nessa alçada aqueles casos que, além de nos aumentarem tal lista (que
desde agora já nos não atreveremos a dizer encerrada), vêm confirmar plenamente

__________
(1 ) A verdade é que não existe tal «erro», até porque tal «sigla» não havia (pelo menos
naqueles documentos): a abreviatura de Dominicus não era «Do.», mas Dñes (não se entende bem).
Contra o que teria de ser se não fosse como dizemos, não encontrámos um só caso em que ao «Dom»
se siga um patronímico: é sempre aplicado ao nome de uma pessoa e, muitas vezes, ao próprio nome
Dominicus, de que se pretende ser abreviatura: Inq. 2211, 2221, etc..
(Os prefácios da Inquisitiones têm sido o que há de mais mesquinho ou falho de valor em
monumentos de tamanha importância, absolutamente primaciais no estudo da nossa sociedade medieval.
Isto, em altos académicos, é surpreendente).
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(embora o não necessitassem) os nossos acertos acerca desta categoria social.


Passamos, com esta justificação, à menção e breve crítica dos novos casos (as
duas primeiras alíneas) e às da frequência dos casos «domnicos» toponímicos,
pessoais e prediais (as outras duas).
a) Para «domnego» substantivo (as pessoas):
- 1258 «de casali de domno David… est de hereditate de Donego… et in
Palacios» (Paços) (f. Tabuaças, c. Vieira) (1).
Donego não parece ser ainda então aqui um verdadeiro topónimo: será,
portanto, em função tópica, designação de pessoa da categoria do «domno» aí citado
(um domnego). O topónimo Paço estabelece a ligação predial domnica, na estirpe dos
Sousãos (2), que teve latos bens e a mandação em Barroso, a que pertence o caso
seguinte:
- 1258 «dixit de auditu que denecos debent dare annuatim» (determinado foro,
como no caso anterior) (f. Cabril, c. Montalegre) (3).
A forma «denegos» é assimilação de «donegos» (1088 «denega» LF 297, uma
atualização para o séc. XIII). Neste documento, não é um topónimo nem propriamente
um grupo social (embora o signifique): mui clara definição de nível sociológico. Ou,
portanto, designação referente a uma camada de habitantes do lugar e em que
poderia ingressar-se sem condição de nascimento, mas com nível económico. É isto o
que logo de seguida e aí mesmo se encontra e define como desta camada vilã se
podia ascender à nobreza: «et si aliquis de istis populatoribus habuerint equum et
scutum et lanceam defendit suum tributum» (4). Isto é, se tivessem cavalo, escudo e
lança, seriam livres da tributação – uma equiparação a nobres (o honramento do
cavaleiro-vilão). Compare-se, de facto, esta faculdade dada a vilãos com a que se
encontra definida para nobres: certo cavaleiro-fidalgo

__________
(1 ) Inq. 15062.
2
() Scr. 47 e 52, etc.
3
() Inq. 15132.
(4 ) Inq. 1513-1514.
__413__

«ouve (de ambas as esposas) linhagem de cavalleiros e hum escudo e huma lança»
(1), nada tributando por isso.
- 1067 «de uma parte divide per comaro… et sursum incima cum domnica» DC
459 (f. Fornelos, c. Cinfães): um exemplo mais dos casos já apontados 1050 DC 718 e
1112 DP 391 – este agora numa localidade de avultadas possessões de privilégios (a
contrapartida domnica) (2).
- 1196 «in his duobus locis et in Donega» (f. Lamas, c. Miranda do Corvo) ( 3) –
mais um caso toponímico a juntar aos cinco oportunamente apontados: este em
localidade de privilegiado povoamento vilão encartado ( 4) e onde e quando já não era
fácil existir a terra domnica (ou assim designada).
Finalmente, não devemos deixar de notar que naquela mesma localidade de
barrosã que em 1258 nos documenta «donecos» como nível social (popular) vive,
nesse ano, um indivíduo que tem esse n. comum como seu n. próprio. Tal prestígio de
que aí gozava essa categoria invejada um uso que, no fundo, revela uma mal velada
aspiração (5).

b) Para «domnego» adjetivo (os prédios):


-1258 «item Pomar Domnego totum» (f. Cequiade, c. Barcelos) (6); «de Pomar
Donego dant tertiam partem», à coroa (f. S. João de Bastuço), c. Barcelos) (7).
Mais dois casosdo topónimo Pomar Donego, a juntar aos três já referidos e aos
seus quatro em designação tópica (ainda talvez não propriamente toponímica). Para
sua explicação, em contraste com a nobreza, lembrem-se as estirpes «de Cequiade»
e «de Cunha», respetivamente.

__________
(1 ) Scr. 381 e 356.
2
() Inq. 948-949.
(3 ) Docs. de D. Sancho I, nº 93.
4
() 1136 Leg.373.
5
() 1258 «de casali de Doneco Gontaz IIII. varas, de bragal à coroa. Não se trata de «son
Oneco Gontaz»: além de isso não estar escrito, ou coisa que o faça supor, notem-se n. pessoais, como
1220 Lobato Peres, Calvo Dias: Inq. 1371, 1531.
(5 ) Inq. 14421.
6
() Inq. 14451.

__414__

- 1258 «a Devesa Conega que erat domini regis quite» (f. Bagunte, c. Vila do
Conde) (1).
Novo caso a juntar aos doze de «devesa donega» em função tópica,
reforçando a invariabilidade já apontada de concordância sintática, escusada
abonadora da forma; e +e de notar que a muita nobreza pré-nacional (2).
- 1102 «in villa Barvuto… de Villa Donega cum suo quinione» LF 315 (para o
séc. X, f. Parada de Gatém, c. Vila Verde).
Outro caso de Vila Donega, a reforçar os quatro já referidos do mesmo
topónimo e os cinco de «villa donega» tópicos – ao todo, uma dezena. Para a sua
contrapartida nobre, lembramos a estirpe «de Barvudo» (falso Barbudo), e, para antes
dela (e mais alta), a dos condes de Portugal vimaranenses (960 DC 81; 1071 LF 253),
além de que na localidade há também 1088 «lama donega», LF 297 e «cortina
donega» (3).

c) Se cartografarmos a toponímia de domnego, obteremos o resultado


invariável de um tal processo: mais expressiva perspetiva histórica, que condensa o
seu significado e que vem confirmar a nossa doutrina (e não só que a não negue),
porque não se trata de meras coincidências).
1) De facto, observa-se que a palavra em função adjetiva, isto é,
significativa dos prédios domnicos («agro» donego, cortinha» donega, etc.) aparece,
toponimicamente só no norte. Isto não concorda só com uma tal função ou, portanto,
com uma instituição pré-nacional, pois confirma-a; e a própria antiguidade das
documentações toponímicas está de harmonia com ela: uma instituição que convém
às terras dominiais que possam proceder sobretudo de uma relação iunior-senior (pois
ainda não vemos, de momento, que melhor).

__________
(1 ) Inq. 14192.
(2 ) Em Bastuço e em Bagunte, respetivamente, as estirpes (de tronco único) do imperator
portugalense Paio Guterres (segunda metade do séc. XI e a de «el conde dum Pero Paáez de Bagunte»:
Scr. 190 e 356; Inq.14452 e 1419-1420, DC 260, 272, 292, 293,297, 300, 360, 408, etc. (Ver o nosso art.
XXXVIII 763-764, e os nossos AF1 163-172, AF2 59-63 e AF4 213-118, etc).
(3 ) Inq. 4352.
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2) Sempre concordantemente, observar-se-á, depois, que a palavra em


função substantiva, isto é, significativa da qualidade e consequente qualificação
pessoal (o indivíduo designado donego e, por ele, o topónimo pessoal Donego
simples, nas suas flexões genérica e numérica, com preponderância feminina em
razão da grande consideração da mulher medieva – e, uma vez ou outra, num caso
predial, que não qualificativo), se encontra por todo o País: na nossa recolha (e mais
haverá) (1), uns cinco casos no reduzido norte (c. Arcos, Barcelos, Guimarães, Vieira,
Celorico de Basto), cinco no vasto centro (c. Tarouca, Sátão, Sabugal, Miranda do
Corvo e Sardoal) e um no sul (o extremo do c. Mértola). A distribuição está de acordo
com a origem deste nome na circunstância sócio-económica que levou ao tratamento
vilão de «dom», cada vez mais usado entre nós a partir do séc. XI-XII sobretudo no
XII-XIII).
3) Agora comparativamente ou em relativo, depois daquelas observações
absolutas, chegamos a não menos evidentes concordâncias: para a classificação
«domnica» predial, a época em que as classes populares não tinham ainda suficiente
liberdade e auto-suficiência económica assente em bens próprios, os quais, porém,
sobretudo nas ainda servis, se iam adquirindo por lavranças em terras senhoriais
(iuniores, por exemplo, que reservavam ao senior a ratio domnica, que teve os tão
variáveis nomes dos prédios organizados) (2); para a qualificação «domnica»

__________
(1 ) Certamente Ónia (f. Carregal, c. Sernancelhe), com perda do D inicial (cp. Vinha Dónia),
por efeito de preposição, em expressões como «Alto da Dónia» (< Dóniga). O local é, de facto, eminente,
(2 ) Como dissemos – e nisso vimos uma das origens dos prédios «domnicos» –, o iunior
reservaria ao senior (ou dominus seu) uma fração das suas lavranças em terra virgem (ou mato)
senhorial. Se não provém mesmo desse uso, tem com ele inteira analogia a prática de os homines de um
miles reservarem, por exemplo, metade de tais arroteias, mas estas em reguengo, ao respetivo miles ou
cavaleiro-fidalgo: 1258 «rumperunt illas (hereditates) sui homines in suis (militum) hereditatibus» (tal como
o iunior de outrora «sedebat» em prédio do seu senior), e esses nobres «debent habere medietatem de
quanto sui homines rumperunt» – uma prática que vinha, efetivamente de longe («per usum»): Inq. 13671.
Nem é de excluir a hipótese de algumas hereditates domnicas (sobretudo do número das que aparecem
depois em reguengo), terem tido esta mesma origem – «lavradas» não em terra senhorial, mas pública.
__418__

pessoal, as mesmas razões – neste caso, depois do séc. XI-XII, enquanto aquela se
verifica antes).
A documentação do norte-centro não inclui antes do séc. XII o topónimo
simples (Donego, Donega); e a documentação do centro-sul, nunca os qualificativos
prediais «domnicos». Ser tardia a documentação do centro-sul não vai, pois, contra o
que dissemos: confirma-o mesmo, com aquela.
4) Corroborando a nossa tese em sentido e época, é muito notável ainda a
perfeita conformidade entre o número de topónimos prediais «domnicos» e a
importância e frequência dos respetivos prédios.
A instituição agrária que domina toda a nossa documentação medieval é a
«villa» (não a romana, nem mesmo a que resultou da desindividualização ou
fragmentação desta): era esse, de facto e ainda aplicado do séc. XII para o XIII, o
nome de prédios rústicos residenciados novos (). Com tal «villa», quer como seu
apêndice ou elemento, quer dela independente, menciona-se, a cada passo, o
«pomar» (). Não há, de facto, duas designações prediais tão frequentes então como
essas. Ora os casos «domnicos» respetivos, Vila Donega e Pomar Donego, são,
precisamente, também os mais representados nesta toponímia. E, na verdade, que
mais compreensível, ainda, que numa ratio domnica reservada (digamos seniori a
iuniore) um «domnus» ter feito «villa» (villa domnica) ou um pomar (pomare
domnico»? O cultivo e a fruticultura eram, então – quanto o são hoje –, atividades
dominantes. Como se vê, as concordâncias são variadas.
Depois desses, os prédios rústicos mais referidos, ou, portanto, os mais
abundantes, são «casale» e «quintana». Seria de esperar, pois, o mesmo nos seus
topónimos «domnicos», Casal Donego e Quintã Donega. E, de facto, é o que se
verifica, depois daqueles (origem numa quintana domnica, num casale domnicum).
Bem compreensível, com eles, os topónimos Fonte Donega e Eira Donega,
aquele de uma ratio domnica

__________
(1 ) 1213 «hereditas cum omnibus habitatoribus et villulis suis» LDT fl. 28; 1258 «episcopus
fecti ibi de novo villam bonam» Inq. 4621.
(2 ) Até como hereditatelias: 906 «alio pumarelio» DC 13.
__419__

de «água nova» (tal como toda esta toponímian provém de «terras novas»), uma água
de recentes exploração. Com isto também concorda a abundância de casos em que a
palavra «fonte» surge ligada a nomes de pessoa tratada de «dom» (uma revelação da
sua condição «domnica» – mas não forçosamente sempre, de nobilis) (1).

Enfim, depois daqueles prédios, vêm «ager» e «sautus» na frequência


documental – e, em consequência (já agora, pois, indubitavelmente em causa e
efeiro), na ocorrência toponímica dos respetivos casos: Leira Donega, Souto Donego,
Agro Donego: na origem, uma agerdomnicus, etc.

Exceto porventura «area» e «sautus» (e, já se vê, «fons»), trata-se de prédios


frequentemente residenciados (2). e alguns, embora poucos, têm hoje correspondência
em povoações (3).

4) Preocupou-se um dos nossos mais notáveis historiadores em organizar


e publicar uma lista de «textos dos séc. X a XII em que figuram filii benenatorum».
Lista, porém, muito deficiente, não pela data em qe termina (à roda de 1125) mas
também por incluir casos que não são de documentos nossos. São vinte e um casos,
mas deste pertence um a filii bonorum (hominum), 1091 DC 746 (4).

No entanto, o mesmo autor pretendera, claramente, excluir daí os casos de filii


bonorum, não obstante ter notado, judiciosamente, ser «muito verosímil que filii
benenatorum equivalha a boni homines (ou filii bonorum)» (5).

__________
(1 ) 1258 «ad fontem de domna Argio», Inq. 10771; 1095 «fonte de don Flagino» DC 821.
(2 ) 906 «agro ubi havitant» ate mesmo como hereditatelia também: «agrelo ubi habitat» DC
13.
(3 ) Da «vinha», por contraste e até contra o que seria de esperar,temos apenas o já
mencionado topónimo Vinha Dónia (f. Lalim, c. Lamego) e a documentação da designação a que ele se
deve «vinha dóniga» (Vit. Eluc. s. v. Coronio), também já referida. A respeito de «donia» ( < doniga), não
há que confundir-lhe o n. pessoal 1150 Donea BF 235 (Donéa),cujo patronímico se documenta 1132
Donea BF 253 (revelando no -h- o acento em -ea- do antropónimo, pois que, em face de Donea, não
parece ser erro, por Donelliz).
(4 ) Prof. P. Merea, Hist. e Dir., I, p. 74.
(5 ) Aut. e ob cit., p. 68.

__420__

Ora foi esta equiparação, ou mesmo sinonímia social, precisamente a noção que
oretebdenis demonstrar – para além de concluirmos serem os «filhos-de-algo» tanto
nobres, de qualquer grau, como não nobres, mas estes inteiramente livres e
proprietários (além de outras condições pessoais).
Esta segunda noção não nos oferece aqui mais a considerar. Todavia, convém
tornar ainda mais nítida do que a deixámos a primeira, tanto por encaro de aspetos
que àquele autor parece terem escapado, como porque, conforme dissemos, os casos
notáveis de filii benenatorum são mais numerosos e oferecem ainda que reparar neles:
a) Vimos que o caso de 1016 DC 228 (a que podemos juntar, no que
vamos dizer, os de 1008DC 598; 1099 DC 918; 1014 DP 325), referindo filii
benenatorum e homines boni, sem diferença de sentido, não inclui nomes de pessoas
nobres – o que nota quem esteja minimamente familiarizado com os da aristocracia da
época (conhecimento certamente melindroso, mas profícuo). A nobreza, portanto, não
era condição para a qualidade de filii benenatorum.
b) Ao contrário, mas com a mesma significação de incidência de tal
qualidade, outros casos incluem nessa designação apenas nobres, como é o caso do
documento de 163:a menção sucessiva do rei, da rainha, dos filhos e, imediatamente,
«alii filii benenatorum» (1) – com um alii cuja função de operador semântico, como
devidamente a evidenciámos, estabelece uma identidade de condição com a família
real que só pode ser a de nobreza (incluída, neste caso particular, a«aula» régia ou
«toga» palatina).
c) Claro está que oscasos mistos deveriam ser – e de facto são – os mais
frequentes: foi deles, por isso, que sobretudo nos servimos. Naquelas condições, seria
inevitável a sua existência.
Um deles, 1011 DC 216, merece que desde já o reponhamos em destaque: ele
inclui sucessivamente, sem outras intromissões, quatro nobres (2), um abade e quatro

__________
(1 ) Doc. Arq. Port., XXVII 152.

(2 ) Froia Osoredes, Rodrigo Guimires, Osoredo Alvites, Ordonho Ruderiz: realmente


documentados como nobres portugueses dos séc. X-XI (cit. JM1 575, 499-500, 531).

__421__

indivíduos nitidamente de condição comum, nomeados entre «ali plures multorum


benenatorum omnio» (hominum). É um caso para filii benenatorum.
Mas temos outro para filii bonorum – ou, melhor, pois assim os designa o
documento, boni homines, desde a mais alta nobreza (condal) até à condição comum,
e entre seculares e eclesiásticos, merecendo, por isso, a transcrição: 1141 «ego
comes Fernandus (1) coram domno Pelagio bracarense archiepiscopo et aliorum
honorum hominum presencia quodum nomina inferius sunt scripta» e que são,
imediatamente: «comes Adefonsus», Paio Vasques, Sarracino Osores, Garcia Soares
(quatro grandes vultos da causa nacional de 1127-1129) ( 2), Gomes Barvudo, Soeiro
Proviço, «Tellus archidiaconus» (3) e mais três arcediagos (4).
d) Cremos que é pelos casos exclusivamente de nobres que se devem
explicar duas designações esporádicas, mas expressivas na sua intencionalidade
objetiva:
- 1028 «filii comitum» num documento do País vizinho (5), lembrando,
imediatamente, a qualificação «filii primatum» (palacii) visigótica, que já conhecemos e
criticámos (6), e numa época em que, como vimos também (e disso se conservavam
vestígios entre nós em pleno séc. XIII, ou até mais tarde), era «conde» uma das
designações populares da nobreza (naturalmente alta) (7);

__________
(1 ) O ilustre e famoso conde de Trava, marido oculto da nossa rainha D. Teresa: ver o
nosso estudo Guimarães, 24 de Junho de 1128, pp. 8-61 e 87-111.
(2 ) Sobre estes quatro próceres, ver o nosso estudo citado na nota anterior, pp. 53-57, 80-
82, 84-85, 113-114, 122 e 123. Gomes Barvudo e Soeiro Proviço, que a seguir a eles se citam, devem ser
de condiçãocomum – ou, pelo menos, de uma nobreza pouco evidente, por circunstâncias que aqui nem
mesmo nos interessa presumir.
(3 ) O famoso arcediago D. Telo que viria a ser de Santa Cruz de Coimbra, Scr. 62-78.
4
() Doc. Liv. Pr., nº 273. (Este documento é notável para o problema que aflorámos na
nossa ob. cit., pp 109-111: não o conhecíamos ao redigi-la e ao estabelecê-lo).
(5 ) Cit pelo prof. P. Merea, ob. cit., p. 67.
(6 ) Cód.Vis. VI, 1, 2, etc. : ver os capítulos 1 e 6 deste nosso trabalho.
7
() São numerosos os casos genéricos do tipo Inq. 5411 ou Vim. 3531 (1258 e 1288
respetivamente), e ainda Scr. 288 (referidos a nobres do séc. XI que não usaram esse título, embora
tivessem as respetivas funções).

__422__

- 1131 «boni milites» num documento nosso (1) e no tempo em que a nobreza
estava já perdendo (pelo menos entre nós) a designação «infantal» sobretudo se
encarada esta num ponto de vista de autoridade (que era, ainda, o dos finais do séc.
XI, como vimos), em favor da de milites, resultante da obrigação que na nobreza se
tornara inerente ou típica (e que fora também a dos comites), a milícia.

Portanto, se estas duas expressões não explicitassem filii benenatorum e filii


bonorum, respetivamente, mas numa convergência de sentido (boni homines em
qualquer caso), que estava a fazer filii numa, e, na outra, que fazia boni?

Em 1079 «filii nobiles et ignobiles» DC 572 exprime mesmo perfeitamente a


natureza dos casos mistos. Refere-se aquela expressão a três indivíduos, únicos de
que se diz «quos viderunt» (2), e aos três confirmantes, indivíduos estes de condição
comum, dois dos quais com «dom» vilão de que já tratámos e que tão bem se
coaduna com a caregorização vilã de boni homines tal como ela se atribuía também
aos mais altos nobres.

Notemos que os casos mistos respeitam, sobretudo, aos concilia judiciais: 1016
DC 228; 1053 DC 386 e 387; 1082 DC 605; 1095 DC 918; 1114 DP 325 BF 138, 1073
LE 621. Assim vemos que as representações populares são mais remotas do que se
julga ou se afirma vulgarmente (senão tendenciosamente).

e) Nocaso de 1016 DC 228, falta alii quanto a filii benenatorum, e no de


1091 DC 746 falta esse mesmo alii para boni homines (ou filii bonorum); essa falta
concorda com o facto de não ter havido anteriormente qualquer citação de pessoa – e
explicita assim a função de «operador» semântico de alii (ou a sinonímia das duas
expressões): a extensão do qualificativo a nobres e não nobres – o que se foi
chamando depois «filho-de-algo», ou os benenati ou, como mais tarde ainda se dizia,
os
__________
(1 ) Doc. Liv. Pr., nº 235.
2
() Garcia Ramires, Fernando Jeremias, Vasco Froilaz: nobres suficientemente
documentados no séc. XI: DC 682, 579, DP 85, etc, (Cfr. AF1 60-61, etc.).

__423__

«bem-dados», que é a designação sinónima de «bem-nascidos» (1).


A realidade desta faceta social e quanto essa qualidade era apreciada, ou,
portanto, ambicionada refletiram-se na antroponímia (desta passando à própria
toponímia, que as prova muitos séculos anteriores à conquista muçulmana) (2).
Referimo-nos há pouco a um dos nossos pontos de vista mais importantes: a
transição da designação geral da nobreza infantiones (como a estabelecemos) à
designação milites, igualmente geral, como a estabelecemos também.
No terceiro capítulo, relacionando a designação «infantiones» com «infantes»,
outro nosso ponto de vista, demos os exemplos do chamamento posterior de infantes
a pessoas quenão eram filhos dos reis. Assim sucedia, de facto; e os casos da sua
aplicação a pessoas que não eram filhos de reis mas relacionadas com eles ou com
estes não vai contra este nosso acerto, porque apenas prova o que estabelecemos:
isto é, que infantes se estendia qualificativamente a pessoas que iam desde a estirpe
qualidicativamente a pessoas que iam desde a estirpe régia a estirpes nobres ( 3).
Vimos que isso mesmo sucedia com filii benenatorum; mas deve notar-se que, no
geral (não nos ocorre exemplo de exceção), esses ou essas «infantes» são comites ou
da estirpe de comites (quando não de reis) – o que logo nos aproxima dos infantiones
no ponto de vista de autoridade que ainda nos fins do séc. XI dava o sentido a este
chamamento (doc. ES XXXVI 37).
E tanto assim, que até nos ocorre (pelo menos em nossa interpretação) o
chamamento de infantes a pessoas monásticas (sob regra monacal) em que ocorriam
duas circunstâncias que são, precisamente, as condições que estabelecemos para o
infantaticum pessoal: a qualidade

__________
(1 ) Viterbo, Eluc., s. v. Bemdado: cortes de Lisboa, de 1434, «salvo fidalgos e bem dados».
(2 ) Nome pessoal Benanatus (1010 Bennato DC 213, já romance); e topónimo genitivo
Venade («Villa» Benenati).
(3 ) 1045 «infans domna Fronildi», doc. G. Alvarez in «Compostellanum» IX, p. 192 (abril-
maio 1964): uma filha do conde Paio Rodrigues; séc. X «infante domna Paterna», doc. G. Álvarez San
Pedro de Mezonzo, p. 296, esposa do conde Ermenegildo, ele e ela ligados por sangue a Ramiro III (ib. p.
299) enquanto que a dita D. Fronilde foi esposa de Ordonho, filho de Vermudo II.
__424__

nobre e a autoridade (esta, em tal caso, sobre uma comunidade religiosa) (1).
Quanto à sucessão (equivalência) da designação milites, genérica, à
designação infantiones também genérica, da nobreza, têmo-la bem manifesta em dois
documentos nossos de 1268 sobre o mesmo objeto – com os milites de um
desdobrado no outro em «miles, scutifer, domna» (2): estes dois como simples casos
particulares daqueles.

5. O caráter urbano da quintana inicial (ou o ainda dominante na nossa


Idade Média, com casos materiais conservados na sua integridade até hoje) mostra-se
de uma forma muito clara na própria cidade de Coimbra: 1143 «una casa cum sua
quintana intus Colimbria» com limites «in oriente via puplica in occidente domus
Sancte Marie (a catedral) in aquilone casa de N. in «affrico casa de N.» (3).
Limitada, pois, de casas de três bandas (e daqui, talvez, sem necessário muro)
e por uma via ou artéria da cidade da outra – e desta, necessariamente, murada.
Certamente o mesmo que curtim, que muitas vezes se encontra em documentos
nossos e do país vizinho na

__________
(1 ) 1162 «iste sunt infantes, in Sancto Petro: doc. in An. de Hist. del Der. Esp. II 466: trata-
se de seis «domnas» (designação da mulher nobre) de um mosteiro, no lugar por isso chamado hoje San
Pedro de las Duenas. Eram as «donas» de cargos dirigentes da comunidade, quanto a nós: o grupo das
«maiores» da mesma comunidade ao qual se refere outro doc. 1191, p. 468 do mesmo mosteiro. Bem
expressivo do que acabo de dizer é ainda o doc. de 1217 «Johannes prior infans» An. cit. IV 452 – este
prior infans citado após outros dignatários monásticos (o sacrista, o ebelemosinarius, o infirmarius), ele no
final em evidente proeminência, duplamente definida – prior e infans: respetivamente o cargo e a
autoridade inerente a este, em meu ver.
Este sentido de autoridade inerente a «infanções» ainda tem vestígios semânticos entre nós no
séc. XII em cartas de foral que equiparam em juízo cavaleiros vilãos a «podestades et infanzones de
Portugal» (Leg. 507, etc.): dupla designação correspondente a uma mesma categoria social – infanzones
pela nobreza e podestades pela autoridade.
(2 ) Docs. in «Compostellanum» XV (out. – dez.1070) publ. por Fernández de Viana y
Cieites (sua separata pp. 18 e 19).
(3 ) Sé de Coimbra, Liv. Preto,nº 245 (com o caso perfeitamente análogo de 1121 Liv. Pr.
244).
__425__

época, não só pelo caráter fechado indubitávelda «corte» como pela descrição de
limites de uma na localidade daquela, os quais mostram uma tal curtim em tudo
análoga àquela quintana: 1127 «curtim de Colimbria» limitada «in parte orientale
curtim de N. et in occidente curtim de N. et in meridie Sancto Christofori» (igreja) (1).
Com a citação nossa mais antiga de quintana 933 DC 37, a qual foi explorada
na devida ocasião, ocorre coeva a de 946 «in villa… mea quintana et terras et vineas
et pomares» DC 55. Ainda que se dissesse «quintan cum terras», etc., ficaria, como já
alegámos, bem distinta destas, etc., a quintana; mas o dizer-se quintana et terra», etc.,
é uma clara expressão discriminatória: as terras, as vinhas, os pomares são apêndices
(não obrigatórios, mas vitais) da quintana, porém não são a quintana.
Eram escusados estes exemplos como comprovativos da nossa opinião sobre
o tipo predial de «quintã» (sobretudo o de 1143 «casa cum sua quintana», que
«explica a aceção ainda atual da palavra como pátio cercado adjacente à casa (esta,
afinal, o principal elemento da quintana, inicialmente), porque de tantos modos o
deixámos evidenciado; mas trata-se de «quintãs» integradas numa Ppovoação – e
cremos que deve estar nesta circunstância a razão da designação curtim «corte» que
veio a qualificar uma sede (real e episcopal), pelo menos, estendida depois tal
designação a toda a povoação que continha essa sede). Não nos surpreende este
outro nome, visto que, como exemplificámos, também o teve de focaria «fogueira» (2):
E, já agora, entre os muitos, escolhemos mais um caso de «quintã» em que o
muro circundante não prendia nos cunhais da casa, ficando portanto esta no interiro
do pátio (exemplo análogo ao de 1057 «de spica de illo celario ad alia spica» LF 91, de
que tratámos): 1075 «ipso kasal super illa quintana et levat se de ganto (canto=apica)
de illo celario… su illo rigu que discurre pro ad illa quin-

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(1 ) Sé de Coimbra, L. Pr., nº 348 (comparável a um projeto de outra «contigua facere» à
catedral conimbricense, 1127, L. Pr. 350). Escusado dizer que os casos rurais, dado que estes pertencem
a um aglomerado urbano, em nada diferem – até mais evidentes no caráter murado.
(2 ) Inq. 10311, 1025, etc.
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tana» DC 707. Se o casal era da «quintã» (fornecida de água por um «rigo» ou


decerto «cale»), a expressão mostra bem que a «quintã» se distinguia dele (embora
no conjunto o compreendesse).

Quanto ao povoamento, não numa «quintã» propriamente, mas junto dela, quer
em apêndices seus quer, simplesmente, fomentado por ela, por qualquer motivo
(senhorial ou outro), seria um tema de todo interesse em trabalho que não tivesse as
limitadas intenções e o caráter deste. No entanto, chamaremos a atenção para o caso
notável de uns catorze locais povoados cerca de Lamego, a maior parte dos quais são
hoje povoações e que em 1527 o censo populacional (1) chama «quintãas» (onze
deles), enquanto que «casal» a um, «aldeia» a outro, e «lugar» ao restante. Não
vemos em que se distingam exteriormente: no montante de fogos, por certo que não:
porque, além de o máximo, naquela data, ser 4 (com uma única exceção,numa
«quintã»), duas dessas «quintãs» apresentam um, quatro delas 2, duas 3, e é também
de 3 fogos cada um dos locais «casal» e «lugar», e de 2 a «aldeia». A origem predial
expressa na «quintã» é também o sentido originário de «aldeia»; esse caráter no
«casal» é ainda hoje o seu; e ainda em várias regiões do Norte (Viana, por exemplo)
se chama «lugar» a um prédio rústico que nem sequer tem casa. O que acontece
neste exemplo junto a Lamego é que, das onze «quintãs» de 1527, duas delas são
três séculos antes chamadas «focarias» (2); uma delas, um couto; e as outras (exceto
uma que não se define), honras, imunidades nobres (3). Ora, como estas imunidades
(honras e coutos) tinham, em geral, a sua «quintã», como residência, parace-nos
devida a isso a designação «quintãa» que ainda se lhes dá no séc. XVI, certamente,

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(1) Ver o «Cadastro da População do Reino», de 1527, para a Beira, publ. por Magalhães
Colaço.

(2 ) Alvorações 1258 «Avorrazaes» Inq. 10372, chamada aqui «focaria» e «quintana»; e Vale
de Oleiros Inq. 10251 (que, depois, é «quinta» nobre).

(3 ) 1258 «villa de Bouzoos» uma «villa honorata» Inq. 10152 Lamelas Inq. 10071; 1258
«villa de Quinteela», honra por avoenga (antiga) Inq. 10562; 1258 Repolos uma «villa» então,
declaradamente «honor» com a «quintãa que chamam Repolos» Inq. 10192, TT Inq. de D. Din., L. 4, fl.
31.
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pois, por tradição. Seja como for, estes casos indicam uma grande fraqueza de
povoamento do séc. XV para o XVI – mas isso não significa que ele existisse
igualmente fraco (na relatividade da época) no sé. XII-XIII: basta atender-se à enorme
quebra da população pelas consabidas causas (epidemias, etc.), nos neados do séc.
XIV. Assim o mostra o caso da Eira Queimada (no termo de Tarouca): uma «villa»,
encartada nos meados do séc. XIII pelo «princeps de Tarauca» (carta de foro), e que
em 1527 apresenta três fogos e se diz «quintã» (certamente dos senhores da honra de
Gouviães( (1).

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(1 ) Inq. 10851; ver o doc. publicado no nosso estudo A Honra de Gouviães, pp. 108-112.

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