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CONQUISTAR E PROFETIZAR EM PORTUGAL

IXB FINS ID SÉOJI.D XLV ACT, MEAlX\S ID SÉOJI.D XVI.


INTRODUÇÃO A UM PROJECTO

Por José Adriano de Freitas Carvalho

Devemos declarar imediata e francamente que não se pretende aqui


apresentar qualquer esquema de um projecto de investigação sobre a
relação (mais ou menos hipotética) entre o acto ou a marcha da conquista
- das diversas conquistas que se iniciam com Ceuta em 1415 e
prosseguem com a tentativa de tomar Tânger (1437) ... com a conquista
de Alcácer Ceguer (1458) e depois, Arzila (1471)- e o acto ou divul­
gação de um discurso profético como incitamento..., justificação ideológica
ou simples propaganda política nos finais da Idade Média em Portugal,
alvos e modos que, entre outros, determinaram muita da literatura pro­
fética desses dias. Por outro lado, muito menos desejaríamos discutir, de
qualquer modo que fosse, se, como consequência, a «ideia« de Conquista
que alguma atenção tem merecido como programa para um novo espaço
português 1, conleva, em algum momento, de um certo modo e numa certa

1 SALDANHA. A. Vasconcelos, Conceitos de «Espaço); e «Poden> e seus


Reflexos na Titulação Régia Portuguesa da Época da Expansão in AA. VV., la
Découverte, le Portugal et l'Europe, Paris, Centre Culturel Portugais, 1990, pág. 105�
-129.

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medida, com base em qualquer messianismo ou escatologia, uma «ideia»
de profetizar. Com efeito, à força de querer verificar, se não mesmo
aplicar, resultados palpáveis para outras zonas culturais onde a tensão
profética foi uma componente cultural e é facilmente documentável, uti­
lizam-se, com mais ou menos acerto-perdoar-se-á se, assim, queremos
dizer, quase sempre com desacerto-conceitos como profecia..., mile­
narismo..., messianismo ..., escatologia..., providencialismo... , e apela­
-se à tradição de Joaquim de Flora..., do franciscanismo «espiritual» ...,
etc., de um modo tão impreciso, tão pouco documentado, que dificilmente
se compreendem não já os resultados, mas nem sequer os projectos2• Em
muitos casos trata-se de uma pura teleologia poética em que o verosímil,
por real, ganha a categoria de histórico'.
Aqui gostaríamos, por isso mesmo e porque o mundo dos profetas
e das correntes proféticas em Portugal, nas suas múltiplas variantes e
variedades, é algo a descobrir, a estudar e, em algum caso, mesmo a rever,
de fazer algumas reflexões a partir de alguns momentos em que a tensão
profética existiu, parece ter existido e, ainda, poderia ter existido dado o
contexto social e cultural, mas que não podemos documentar. E, já que
em documentos falamos, será de boa crítica, se não for de pura honestidade,
chamar a atenção para o facto, tão simples como esquecido, que no estudo
das correntes proféticas o antes, o durante e o depois têm, naturalmente,
uma relevância decisiva tal como o considerar o género «literário» em
que foram ou se viram vasadas..., pois é impossível tratar e aproveitar do
mesmo modo um texto profético que poderemos encontrar ante evento
registado numa crónica ou guardado numa colecção de profecias, e uma
profecia «de cumprimentos» - em verso ou não - celebrativa, por
exemplo ainda, de um rei, de um príncipe ou de um grande conquistador
a quem se vaticinam maravilhas ou de quem se diz,post eventum, que lhe
estavam vaticinadas... Os Reis Católicos, por exemplo, têm todo um can-

2
Por se tratar de cousas taõ miúdas em bibliografia bem conhecida, julgamos
não ser necessário precisar estas e outras alusões. H. Desroche, Dieux d'Hommes.
Dictionnaire des Messianismes et Millénarismes de t'Ere Chrétienne, Paris, La Haye,
Mouton, 1969 (muito especialmente na sua vasta introd.) e Bemhard Tõpfer, li Regno
Futuro defla Lihertà. Lo Sviluppo delle Speranze Millenaristiche nel Medioevo
Centra/e, Génova, Marietti, 1.a. (1992) (A edição original alemã é de Berlim, 1964),
pág. 19-20 et passim, oferecem os elementos suficientes para a definição e/ou utilização
destes conceitos.
3
Os momentos fortes desta teleologia poderão ser, antes de maís: CORTESÃO,
Jaime, Os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1960; SILVA, A. da, Considerações
e Outros Textos, Lisboa, 1988; QUADROS, A., Portugal.Razão e Mistério, O Projecto
Aureo ou o Império do Espírito Santo, Lisboa, 1987.

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cioneiro deste último tipo ... Refirirno-nos aqui ao de Pedro Marcuello4,
mas Gil Vicente também soube, corno sempre, prolongar para a corte
portuguesa esse tipo de profecia que, orquestrando motivações várias,
augurava a príncipe recém-nascido ou a novo rei destinos brilhantes que,
muitas vezes, passavam por Jerusalérn5• Para a reconquistar, naturalmente...
No entanto, algum texto da Demanda do Santo Graal, sem cuidar de
traduções ou reescrita, algum poema do Cancioneiro Geral ou passagem
de Gil Vicente têm sido aproveitados corno se de crónica ou informe jurí­
dico ou carta de notícias se tratasse... Por esta mesma perda de perspectiva,
também algum capítulo de crónica ou ce1tos modos de superlativar já
puderam, alguma vez, ser lidos sem terem sido tornados em conta os
cânones das modas literárias do século XV6. Necessariamente, a falta de
documentação específica e, logo, o aproveitamento a-crítico de todos os
indícios fazem com que muitos dos resultados propostos não possam ser
tidos em linha de conta7 • Embora não seja esta a nossa finalidade ime­
diata, em algum momento, teremos ocasião de precisar estas nossas
alusões.

4
MARCUELLO, Pedro, Cancionero, ed. de J.M. Blecua, Zaragoza, Instituto
Fernando, Católico, 1987; para este texto e para outros em que e! punto de partida
mesiánico y profético es una monotonia deve consultar-se, CÁTEDRA, Pedro, La
Historiografia en Verso en la Época de los Reyes Católicos, Salamanca, Universidade
de Salamanca, 1989, (pág. 25).
5 Realisticamente, se não for melhor dizer irónicamente, Gutierre Díez de
Gamés en E/ Victoria/. Crónica de Don Pedro Niíio, Conde de Buefna resume muito
bem o género e o seu natural contexto:... E siparas mientes, como hiene rey 11uevo, luego
Jazen Mer/in nuevo. Dizen que el rey à de pasar la mar, e destruir toda la morisma, e
ganar la casa santa, e de ser emperador; e despues vemos que seJaze como a Dios plaze.
Ansi dixeron de los pasados, e dirán de los por venir. Lo que Dias no quisa mostrar a
los sus escogidos, enfingen de saver los pecadores... (ob. cit., cap. XX, Ed. y Estudio
de J. de Mata Carriazo, Madrid, Espasa Calpe, 1940, pág. 68); Giorgio Galli na
<(Prefazione» à ed. de la Profezia di Merlino (de G. de Monmouth) por G. la Placa,
Génova, ECIG, s.a. ( 1990), pág. 7-15 ponderou muito bem, em síntese, os problemas
e significados deste tipo de «profecia política».
6 Tanto Maria Rosa Lida, La Hipérbole Sagrada en la Poesia Castellana dei
Siglo de Oro. in R.F.H., 8 ( 1946) pág. 121-130 como K. Whinnom, E! Orfgen de las
Comparaciones Religiosas dei Siglo de Oro: Mendoza, Montesino, Román, in R.F.E.,
46 ( 1963), pág. 263-285 chamaram a atenção para esta questão fundamental que muita
bibliografia portuguesa costuma esquecer.
7 E isto sem referir, obviamente, algum caso de leitura menos atenta de alguma
bibliografia, pois já se tem citado a erudita nota de Joaquim O. Bragança, Vestígios de
Mi!enarismo em Alcobaça? in Didaska/ia, 1 (1971), pág. 173-175 como traduzindo a
ocorrência da expressão apoca!fptico-joaquimita... A erudita nota interroga-se sobre
a expressão mors secunda, de consabidas ressonâncias milenarísticas em alguns
Padres, em uma prosa de Alcobaça e, naturalmente, e nem o seu autor tal pretende, não
tem qualquer relação com o joaquimismo. (Aliás, o abade calabrês na sua Expositio in

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E nesta ordem de questões prévias, assinalemos os limites cronológicos
que nos propusemos - dos fins do século XIV até cerca de 1560 ... ,
embora com referências, quase sempre como interrogação, a alguns
momentos posteriores. Voluntariamente, em nome da precisão cronológica
e da clareza da exposição, renunciámos a analisar algum texto fundamental,
como, por exemplo, o prólogo das Crónicas dos Frades Menores de Fr.
Marcos de Lisboa de 1556, texto que depende, em larga medida, daArbor
Vitae Crucifixae, na parte em que Ubertino da Casale adapta, com alguma
originalidade, os esquemas que P. de J. Olivi, por sua vez, adaptara de
Joaquim de Flora8• Ter-se-á, certamente, compreendido que neste aro
cronológico os anos áureos (1492-1498) são apenas um ponto de
chegada, mas que são, obviamente, muito mais importantes também
como ponto de partida. E se o conquistar passa, então, a ter sentidos que
resultam, em grande parte, do descobrir, também o descobrir, em muitos
casos, implicará, pelo menos num segundo tempo, quase sempre de
desilusão, o conquistar ou, um pouco mais eufemisticamente, o sujeitar. ..
A Ocidente e a Oriente... É, então, o momento de apelar a tradições... , de
retomar antigas justificações... , de promover, com mais ou menos fé ou
habilidade, velhos textos e de os actualizar... Até à sua realização toda a
profecia é sempre actualizável e, logo, pode ser actuante... O jogo político
ou o político-religioso nos séculos XIV, XV, XVI e XVII percebeu-o per­
feitamente e transformou-a, tantas vezes, num instrumento seu9• Neste
sentido, é exemplarmente, sintomático que à volta de Carlos V se tenha

Apocalypsim, Veneza, 1527 [Frankffurt a.M., 1964], pág. 214v, dedica escassa atenção
a essa expressão e as suas consequências na sua elaboração da «7.ª idade/3.º estado» são,
ao parecer, irrevelantes). Talvez este tipo de desatenção apenas revele quanto tudo o que
diz respeito a milenarisrno(s) ou escatologia(s) se quer, redutoramente, ver em relação
com o abade florense.
8
Para estas adaptações de adaptações e seu alcance, pode consultar-se:
POTESTÀ, G.L., Storia ed Escatologia in Uhertino da Casale, Milano, Vita e Pensiero,
1980 e DAMIATA, Marino, Pietà e Storia nell'Arbor Vitae de Ubertino da Casale,
Firenze, Edz. Studi Francescani, 1988.
9
RUSCONI, R.,L'Attesa delia Fine. Crisi delia Società, Profezia e Apocalipsse
º
in !ta/ia ai Tempo dei Grande Scisma d Decidente (1378-1415), Roma. I.S.M.E., 1979;
NICCOLI, O., Profeti e Popolo nell'!talia dei Rinascimento, Bari, Laterza, 1987 (Conf.
Res. de CARVALHO, J.A. de Freitas, in R.F.L.U.P., Línguas e Literaturas, IP Série,
5 (1988), pág. 573-580); AA. VV., l'Attesa dei/a Fine dei Tempi nel Medievo (a cura
di O. Capitani e J. Miethke) Bologna, II Mulino, s.a. (1990); AA. Y_V., les Textes
Prohétiques et la Prophétie en Occident (Xllª-XVIº Siêcles), Rome, Ecole Française
de Rome, 1990 (ed. de A. VAUCHEZ); AA. VV.• 1/ Profetismo Gioachimita tra
Quattrocento e Cinquecento, Génova, Marietti, 1991; para uma visão sobre o «tormentato
nesso» tra coscienza escatologia de una parte e i vari regimi di cristianità della' altra
v. AA. VV. La Cattura de/la Fine. Variazioni della'Escatologia in Regime di Cris­
tianità, Genova, Marietti, 1992.

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desenvolvido, em formas intensas e diversificadas, toda uma literatura
profética propondo textos, sinais, visões que explorava os anseios fortes
da Europa, e ainda mais fortes se olhados desde Itália, dos fins do século
XV e 1do primeiro quartel do século XVI: a chegada de um imperador. .. ,
a destruição do turco, a conversão dos judeus e gentios e, naturalmente,
a colaboração do Papa Angélico10• Curiosamente toda esta literatura
estanca, melhor, é obrigada a estancar e perseguida depois de 1530 ..., isto
é, no momento em que o rei de Espanha é coroado imperador11•
As reflexões que propomos para esse longo período de mais de um
século deveriam começar por fazer constatar, antes de mais, a exiguidade
da documentação portuguesa contemporânea conhecida e que, portanto,
na sua globalidade, teremos de recorrer a documentos posteriores que,
obviamente, já nos surgem aproveitados de acordo com soluções e, logo,
interpretações derivadas da sequência dos acontecimentos a que se
referem ... E, neste caso, -estamos longe de possuir as séries impressas
de folhetos e panfletos italianos que guarda a British Library -aumentam
as dificuldades de saber como a cultura erudita aproveitou e transformou
elementos de cultura «popular» pro causa sua 12• E mesmo que admitamos,
como admitimos, que certas ideias..., certas esperanças..., certas figuras...,
certos símbolos percorrem, então, como uma onda, toda a Europa, será
sempre difícil, se não mesmo impossível, datar o seu aparecimento..., isto
é, os canais veiculadores e a sua função iniciais. E há factos, mesmo
datados ou datáveis, que neste plasma complexo de interferências cultu­
rais não têm a função, logo, o significado que, aparentemente, se lhes
poderia atribuir... A fundação de uma confraria do Espírito Santo, por
exemplo, não é um elemento suficiente para atestar, através de um nome
e, no melhor dos casos, de um culto, a difusão de um conhecimento,
mesmo esbatido, da célebre divisão tripartida da História em função do
dogma trinitário por Joaquim de Flora e dos anseios de renovação que
costuma conlevar. Embora saibamos que por toda a Europa se fundam

'° NICCOLI, O., Profeti e Popo/o... , ed. cit., pág. 55, 10, 34, 35, 36, 38, 44.
" NICCOLI, 0., Profeti e Popolo... , ed. cit., pág. 154, 158, 241, 244, 246, 249.
12 Sobre as relações da literatura profética «popular» com a literatura profética
«erudita», v. as págs. de N!CCOLI, O., Profeti e Popo/o..., ed. cit., pág. 5, 6, 7, 36, 161;
e da mesma autora, «Profetie di Musaico)). Figure e Scritture Gioachimite nella
Venezia dei Cinquecento in Forme e Destinazione dei Messaggio Religioso. Aspetti
della Propaganda Religiosa nel Cinquecento (a cura di A. Rotondõ), Firenze, Leo. O.
Olschki, 1991, pág. 197-227; VASOLI, C., Profezia e Ragione, Napoli, Morano Ed.,
1877 e/ Miti e gli Astri, Napoli, Guida Ed., 1974 dedico�, ainda que sublinhando a
vertente «erudita», larga atenção à questão.
13 ESPERANÇA, Fr. Manuel da, História Seraphica dos Frades Menores da
Província de Portugal, Lisboa, Off. Craesbeckiana, 1956, !, 2, 21 (T. !, pág. 237-241).

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confrarias do Espírito Santo que, com tal invocação, sublinham o espírito
de caridade que presidia a essas fundações assistenciais e sem qualquer
relação com movimentos joaquimitas ou pseudo-joaquimitas, à falta de
outra documentação preferimos, sem negar que algum dia deixemos de
ter razão, acentuar a sua integração nesse vasto movimento assistencial
a aproveitá-la sob sugestão mal lida de algum cronista franciscano do
século XVII", como prova da difusão entre nós, sem outras consequências,
aliás, de teorias do abade calabrês14. A falta de documentação actual pode,
com efeito, ser não apenas o resultado de uma falta de investigação neste
campo, mas, talvez, mais provavelmente, da sua não existência. Parece
ser de boa crítica que os indícios que dizem respeito ao verosímil não
devem conduzir ao fantástico...
Por outro lado, devemos advertir que, aqui, apenas nos ocuparemos
do profetizar, isto é, de elementos que nos remetem para um discurso,
alegórico ou não, em que se predizem ventura ou se revelam occulta, mas
sempre actualizável, prescindindo, apesar de sabermos quanto se tocam,
de tudo quanto é sinal..., estrelas..., monstros..., aparições que são aconte­
cimentos a interpretar (prognostica... , vaticinia... ) e que, pela maior parte
das vezes, se encontram já interpretados, quer dizer, que os conhecemos
por um discurso sobre eles já feito que deu um sentido positivo ou nega­
tivo a essas alterações do curso normal da Natureza. Todas as crónicas
oferecem alguns elementos do género, com destaque, evidentemente,
para as de Fernão Lopes" ou de Gomes Eanes de Zurara 16 e de Rui de
Pina 17• Não é, naturalmente, o que interessa aqui ponderar, ainda que
algum dia tenha de utilizar-se todo esse material para o estudo da astro­
logia, de astrólogos, de horoscópios no Portugal dos séculos XV e XVI

14
MEERSSMAN, G.G., Ordo Fraternitatis. Confraternite e Pietà dei laici nel
Medioevo, Roma, Herder Ed., 1977; COULET, N., Les Confréries du Saint Esprit en
Provence: Pour une Enquête inHistoh·e Sacia/e, Sensihi/ités Co!lectives et Mentalités.
Mé/anges Robert Mandrou, Paris, 1985, pág. l05-207; TAVARES, M. J. Ferro,
Pohreza e Morte em Portugal na Idade.t'fédia, Lisboa, Presença, 1990 onde se registam_
inúmeras confrarias colocadas sob a invocação do Espírito Santo; LUBAC. H. de, La
Postérité Spirituelle de Joachim de Flore, Paris, Lethielleux, 1979-198 l (2. vais.), I,
pág. 120.
15
Naturalmente é a Crónica de D. João I que oferece um maior número
de exemplos. Conf. l."P. caps. 111, 152; 2."P. caps. 5, 32, 45,46, 47, 53 e t passim.
16
ZURARA, Gomes E. de, Crónica da Conquista de Ceuta, Lisboa, Academia
das Ciências, 1915, caps. 35, 44, 47, 58, 62, 63, et passim ... ; de lembrar aindas as
páginas que na Crónica da Guiné (Cap. 7) se serve de alguns elementos do horoscópio
do infante Henrique para sublinhar, um pouco mais retoricamente ainda, as glórias
desse príncipe.
17
Fazemos alusão a alguns caps. (1, 52, 71, 153) da sua Crónica de
D. Afonso V.

70
que revelam a outra face, a mais oculta, das eruditíssimas páginas que
Joaquim de Carvalho, há muitos anos, dedicou ao assunto 18. Curiosamente,
sabemos da acção de um Mestre Guedelha junto de D. Duarte ... , de
D. Afonso V 19 , talvez junto do infante D. Pedro'º, tal como conhecemos
a presença de um Diogo Mendes, o Coxo, e de um Tomás Torres junto
do Venturoso21 , quem, como traz ainda Damião de Gois, fazia tirar o
horoscópio das suas armadas22 • E para além destas notícias? E entre
D. Afonso V e D. Manuel?23
Para as nossas interrogações à volta do profetizar em Portugal ao
longo dos séculos XIV a XVI não organizaremos qualquer esquema tipo­
lógico, mas, mais simplesmente, em tomo de alguns momentos, procura­
remos insinuar quanto importante seria pensar ou repensar o seu alcance...
Deixemos, porque muito longínquos, os tempos de Dinis e Isabel,
isto é, os parentes chegados de uma série de personagens reais que de
Nápoles, Sicília, Aragão até Maiorca estavam ligados, com forte prota­
gonismo alguma vez, a ambientes em que a profecia era, para além de
qualquer política, um elemento da espera de uma renovação de Igreja,

18
CARVALHO, Joaquim de, Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século
XV, Coimbra. Por Ordem da Universidade, 1949, pág. 283-361; Estudos sobre a
Cultura Portuguesa do Século XVI, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1947,
pág. 95-212.
19
PINA, Rui de, Crónica de D. Duarte, cap. 2; Crónica de D. Afonso V,
cap. 2. Junto a estes casos, lembremos a existência de um D. Luís, abade do mosteiro
de Cerzedas, homem estrangeiro, e de juizos d' astrólogos mui certo... que prediz a
D. Duarte de Meneses que havia de morrer sob alheia capitania ... (PINA, R., Crónica
de D. Afonso V, cap. 155, ed.. cit., II, pág. 45).
20 Sugerimo-lo assim em virtude de ter sido o infante D. Pedro a ordenar
a intervenção de Mestre Guedelha na cerimónia de levantamento de Afonso V
(... E enquanto hum mestre Guedelha, singular físico e astrólogo, por mandado do
infante regulava, segundo as influências e cursos dos planetas, a melhor hora e ponto
em que se podia dar aque!/a obediência... , PINA, R. de, Crónica de D. Afonso V,
cap. 12 que citamos pela ed. da Biblioteca de Clássicos Por tugueses, Lisboa, 1901,
pág. 14-15). Por outro lado, poderá lembrar-se o conhecido aceno que o infante traz no
Livro da Virtuosa Benfeitoria, II, 28 (Porto, Real Biblioteca Pública, 1910, pág. 133)
ao proprio vigor e conservaçom per virtude das costelações per que as iffluências som
em a terra spargidas...
21
GOIS, Damião de, Crónica de Felicissimo Rei D. Manuel, IV, 84 (Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1926, pág. 201-202).
22
GOIS, D. de, Crónica de Felicissimo Rei D. Manuel... , IV, 2 (ed. cit.
pág. 201).
23
Uma excelente orientação de resposta pode ser encontrada no trabalho de
Francisco Bettencourt, Astrologia e Sociedade no Século XVI: uma Primeira Abordagem
in Revista de História Económica e Social, 8 (1981), pág. 43-76.

71
logo, do mundo24• Mas em geral, são tão ténues os indícios que, por agora,
possuímos sobre a repercussão, em Portugal, dessas controvérsias político­
-religiosas donde brotavam profetas e profecias que, até à sua consoli­
dação e desenvolvimento por outra documentação, será melhor não os
interpretar...
No entanto, devemos recordar que será de algumas franjas que
continuam e, em certos casos, desenvolvem essas esperanças de renovação
da Igreja por meio dos fiéis ao que consideravam, e quase sempre com
razão, o espírito primigénio - a intentio - de Francisco de Assis, que
deverão ter chegado até nós os primeiros elementos de um núcleo
profético perfeitamente identificável, se bem que não datável de um
modo rigorosamente preciso. Este primeiro momento que raramente tem
sido tomado em linha de conta, poderá situar-se entre 1350 e 1380 e os
seus protagonistas são um grupo de portugueses, espanhóis e italianos
que partem de Itália, talvez melhor, da Umbria e das Marcas, para
aguardar em Espanha, como tinha profetizado o seu mestre Tomasuccio
da Foligno, a descida do Espírito Santo para aí fundar uma nova ordem25 •
Tomasuccio da Foligno26, um leigo e figura estreitamente relacionada
com os grupos que nessas regiões continuavam, com mais ou menos
radicalismo, o combate quer por que a ordem franciscana se tomasse,
efectivamente, o ardo novus que o «Anjo do 6.0• selo», Francisco de
Assis, fundara, quer, como parecia ser a orientação predominante em face
da não reforma dos franciscanos por essas pautas e ideais, por que

24
POU Y MARTI, José M., Visionarias, Beguinos y Fratice!os Catalanes
(Siglas XIII-XV), Vich, Ed. Seráfica, 1930 (agora acessível na reimpressão anastática
com Presentación de A. Abad Pérez; Bibliografia de J. Martí Mayor; e notável Estudio
Introductorio de Juana M. Arcelus Ulibarrena, Madrid. Ed. Colegio Cardenal Cisneros,
1991) continua sendo a obra fundamental para estas referências. Conf. ainda, AURELL,
Martin, Prophétie et Messianisme Politique. La Péninsule Ibérique au Miroirdu Liber
Ostensor de Jean de Roquetaillade e BATLLORI I MUNNÉ, Miquel, La Sicile et la
Couronne d'Aragon dans les Prophéties d'Arnauld de Villeneuve et de Jean de
Roquetaillade in AA. VV., les Textes Prophétiques et la Prophétie en Occident (Xlll°­
-XVI"), ed. cit. pág. 27-71 e 73-90) respectiv.; VASCONCELOS, Joaquim de,
A Evolução do Culto de D. Isabel de Aragão, Coimbra, Imprensa da Universidade,
1894; RODRIGUES, S. Antunes, Rainha Santa. Cartas Inéditas e Outros Documentos,
Coimbra, Coimbra Edit., 1958.
25
CARVALHO, José A. de Freitas, Nas Origens dos Jerónimos na Península
Ibérica: Do Franciscanismo à Ordem de S. Jerónimo. O Itinerário de Fr. Vasco de
Portugal [R.F.L.U.P., Línguas e Literaturas, li" Série, 1984, pág. 11-131), Porto, 1984.
26
AA. VV., ![ Beato Tomasuccio da Foligno, Terziario Franciscano ed I
Movimenti Religiosi Popolari Umhri nel Trecento, Roma, Comissione Storica Intem.
T.0.R., 1979; SENSI, Mario, le Osservanze Francescane nell'!talia Centra/e (Sec.
XIV-XV), Roma, I. S. Capuccini, 1985, Cap. III (pág. 17-135).

72
surgisse esse ordo futuras que, constituída por viri spirituales, teria de
aparecer para reformar sub signo contemplationis o mundo antes dos fins
dos tempos27• Instalados no centro de Castela, à volta de Toledo,
circulando por Espanha e Portugal, o seu chefe era um Vasco [Martins?],
português. Outro nome, talvez castelhano, era o de Fr. Rodrigo, dito o
Lógico por recordação de ter sido vagamente mestre de um vago príncipe
hispânico... Outro ainda, o de Pedro Romano, este, talvez, italiano... A
estes que mais não são do que representantes do� grupos que partiram de
Itália, juntaram-se, quase imediatamente, alguns outros hispânicos e
todos, durante uns vinte anos, esperaram espalhados pelos ermos de
Portugal e Espanha essa descida do Espírito Santo materializada nesse
ordo novus ... Quando um dia, no começo do Grande Cisma, solicitam
alguns que lhes seja concedido fundar uma nova ordem sob a invocação
de S. Jerónimo, nem todos os da primeira hora os seguiram... Curiosamente,
Vasco de Portugal, Rodrigo, o Lógico, preferem ( ou, pelo menos, assim
parece) continuar a esperar nas suas ermidas ... Um dia, Fr. Vasco,
deixando Portugal, vai fundar um mosteiro Jerónimo com características
especiais à beira de Córdova onde morre à volta de 1415... Rodrigo, o
Lógico, também em Córdova, mas junto dos muros do convento franciscano
de Arazafa, continuará fiel à vocação eremítica dos que em Itália tinham
vivido no círculo desse ermitão, emparedado, pregador popular e profeta
de larga fama que foi Tomasuccio da Foligno. As crónicas guardam, com
mais ou menos precisão, a recordação desses tempos e das suas profecias
que manuscritas e impressas, com actualizações várias, como sempre,
conheceram uma larga divulgação28• Tudo nele -vida e profecias -o

27
Sobre a concepção, tradições, alcance e pertinência dí par/are di un <<ardo
novus» ideato da que! Gioacchino che neí suai scritti autentici non alude mai ad un vera
e proprio ordine della Terza Età... , v. PASZTOR, E., ldeale dei Monachesimo ed Età
de/lo Spirito come Realtà Spirituale e Forma d' Utopia in AA. VV., La Fine di Tempi
in Gioacchíno da Fiore e nel Gioachinismo Medíevale, S. Giovanni in Piore, Centro
Intem. di Studi Gioachimiti, 1986, pág. 55-124 (pág. 122).
28 LISBOA, Marcos de, Crónica da Ordem dos Frades Menores, III, l , 5 (de
acordo com a reedição de Lisboa, 1615, III, pág. 3 r -4v.) em que se revela o conhe­
cimento da importância de Tomasuccio da Foligno no quadro profético dos seus dias;
MESSINI, A., Profetismo e Profezie Ritmiche ltaliane d' Ispirazione Gioachimito­
-Francescana nei Secoli XIII, XIV e XV, Roma, <<Miscelanea Francescana», 1939,
pág. 46-557 refere com alguma dúvida a circulação das profecias de Tomasuccio e/ou
do seu discípulo Fr. Stopa; REEVES, M., The Inffluence ofProfecy in the Later Middle
Ages. A Stuy in Joachimism, Oxford, Claredon Press, 1969, pág. 2 17-219, 4 19-420;
NICCOLI, O., Profezi<: in Piazza. Note sul Profetismo Popolare nelf' Italia dei primo
Cinquecento in Quaderni Storici, 41 (1979), pág. 55-539 (primeira elaboração da sua
obra, Profeti e Papo/o... , já cit.) apresenta, em Apêndice, um elenco das profecias
impressas nos séculos XV e XVI em Itália, em que se registam edições das de
Tomasuccio em 15!0, 1502/1516, 1566.

73
torna um bom representante desses ambientes espirituais sempre na
fonteira da ortodoxia, pregando um violento radicalismo crítico de
costumes e de políticas religiosas e civis em vista dessa renovatio que se
esperava ... conduzida por um reformator mundi, esse quase novus dux
que na Concordia Novi ac Veteri Testamenti (IV, 31) anunciara Joaquim
de Flora, que, como se sabe, tanto poderia ser um papa como um
imperador, ainda que o contexto possa favorecer a identificação com um
pontífice". Então, Le saneti preti de novelio stato/Predicheranno,I Tutti
l' infideli converteranno,!Vestiti totti d' un aspero pannolEt sempre senza
proprio viverannolln povertate. Esta renovatio profetizava-a (se o texto
efectivamente lhe pertence) Tommasuccio para depois do Grande Cisma:
Levarasse lo Scisme!Por un degno Pastore;IA trarre ogni errore!Efará
la Chiesa bella'°. Não sabemos se Vasco de Portugal e os seus companheiros
trouxeram para a Península Ibérica alguma cópia de algumas profecias do
seu mestre e de outros discípulos seus que também profetizavam... De
memória seguramente... De qualquer modo, sabemos que traduziu para
português um corpo de laudes em que muitas pertenceriam a Jacopone
da Todi cujo combate radical a favor dessa renovatio esperada por meio
desse ermitão que, acolhido como o «Pastor Angélico», foi Celestino V31 ,

29 A célebre passagem de Joaquim pode controlar-se pela reimpressão anastática


da edição veneziana de 1519 feita pela Minerva Verlag. G.M.B.H. Frankfurt, 1983, pág.
56r; CROCCO, A., Gioacchino da Fiore e l i Gioachimismo, Napoli, Liguori, s.a. (1976,
2.ª ed.), pág. 102-103 inclina-se para um santo pontífice riformatore, tal como M.
Reeves, ainda que a Mestra dos estudos joaquimitas, não exclua que the term dux could
obsiously refer toa secular leader (Dante' s Debet to Gioacchino da Fiore inl'Età de/lo
Spirito e la Fine dei Tempi... ed cit., pág. 135). Mais recentemente, Alfonso Marini,
Celestino V nell'Attesa Escatologica dei Seco/o XIII in AA. VV., Celestino V Papa
Angelico, L' Aquila, Centro Celestiniano, 1983, pág. 33-94 examinando cuidadosamente
textos e tradições não só sublinha que na obra do abade florencepochi hrani accenanno
a! possihile ruolo escatologico di un papa (pág. 35) e que, consequentemente, lafiggura
de unfuturo papa, che avrehhe poluto guidare il passaggio alia Chiesa spirituafe dei
Terzo Stato, 11011 ha svilluppi significativi (pág. 45; conf. ainda a nota n.º 32 e pág. 59
n.º 74), mas também põe em causa quer as derivações que desses textos se têm feito da
figura do Papa Angélico quer a tradicional primeira atestação dessa mesma figura que,
geralmente, vem atribuida a R. Bacon (pág. 49-55); para A. Marini questo mito non e
Junque «dei» gioachimismo duecentesco, ma viene inserito <mel» gioachimismo dei
Trecento [ .. .] essenzia!mente francescano (pág. 59).
30 MESSINI, A., Profetismo e Profezie Ritmiche... ed. cit. pág. 52-53, REEVES• .
M., The Influence of Prophecy.... ob. cit. pág. 218.
3 1 MANSELLI, R., l i «Pastor Angelico»: una Speranza, una Delusione ed i!
foro Significato in AA. VV., L'Indufgenza nel Medievo e Perdonanza di Papa
Celestino, L'Aquila, Centro Celestino, 1987, pág. 9-16; AA. VV., Celestino V Papa
Ange!ico... , ed. já citada.

74
certamente apreciavam... Ainda hoje conhecemos alguns exemplos dessa
tradução, mas Fr. José de Siguenza ainda viu um caderno com mais de
oitenta32 • Mais do que a história factual, nestas datas que são também as
de um período conturbado na Península Ibérica, interessa valorizar o
apoio que, tal como os reis castelhanos, o rei Fernando de Portugal, nem
sempre consequentemente, concedeu aos eremitas que vieram de Itália.
A cedência do paço de Frielas para aí fundar um mosteiro jerónimo é,
apesar de confusa, significativa, mas muito mais significativa parece ser
essa espera em que em Portugal permanece fr. Vasco sem se dicidir a
integrar a ordem de S. Jerónimo continuando a vida eremítica em função
desse ordo novus que o fizera abandonar Tomasuccio... , da renovatio
ecclesiae et mundi que ele profetizava e pregava... Por outro lado, convirá
pôr tudo isto em relação não tanto com a fundação e desenvolvimento da
ordem de S. Jerónimo que, por então, ainda não é por todos considerada
esse ordo novus que esperavam, mas com o movimento de reforma
franciscana que por esses anos percorria Itália, Espanha, Portugal. Em
Itália desde 1368 e em Portugal desde 1389-9033 • Haverá também que pôr
em relação com estes grupos a formação de algumas compilações de
fontes franciscanas de carácter menos «oficial» que podemos documentar
para a Península Ibérica desde 145134? Haverá que ponderar esta hipótese,
mas devemos fazer notar que nelas continuam a soar, como aludiremos,
algumas propostas e algumas profecias dirigidas a essa renovatio de que
continua a fazer-se garante a ordem franciscana, mas agora, finalmente,
-pensava-se! -observante da letra desse «Evangelho» que era a Regra
de S. Francisco...

32 SIGUENZA, Fr. José de, His10ria de la Orden de S. Jerónimo, Madrid,


N.B.A.E. (v. 8,12), 1902, !, pág. 187; CARVALHO,JoséA. deFreitas,NasOrigensdos
Jerónimos na Península Ibérica ..., ed. cit., pág. 99-104 .
.u Para estas questões e datas, focalizadas através das personalidades de
Paoluccio dei Trineis e seus companheiros, para Itália e por Fr. Gonçalo Marinho e seus
companheiros em Portugal, v. NIMMO, D., Reform and Division in the Franciscan
Order (1226-1538), Rome, Capuchin Historical lnstitut, 1987, pág. 364-372, 394-417
et passirn...; SENSI, M., L'Osservanze Francescane..., ed. cit., pág. 19-73; ESPERANÇA,
Fr. M. da, História Serafica ... , ed. cit. AMOR DE DEOS, Fr. Martinho do, Escola de
Penitência ... Chronica da Santa Provinda de Santo Amónio, Lisboa, Herdeiros de
António Pedroso Galrão, 1740, I, 3,�5, 13 et passim... Haverá sempre que ter presente,
ainda que tal não deva levar a excluir_qualquer contacto, que, como sugerem os autores
da Jntroducción a los Orígenesz de lã Ohservancia en Espafla-Las Reformas en los
Siglas XIV y XV [A.LA, 17-1957], pág. 40, os movimentos observantes peninsulares,
desenvolveram-se, na sua origem, independentemente dos italianos e franceses. Para
algum aspecto mais literário deste movimento, CARVALHO, José A. de Freitas, Livros
e Leituras de Espiritualidade Franciscanos na Segunda Metade do Século XV em
Portugal e em Espanha [Carthaginensia, 7-1991], Murcia, 1991, pág. 127-228.

75
Como equacionar todos estes movimentos de base franciscana com
tudo o que sabemos -e ainda não é tudo quanto, por vezes, julgamos
- sobre a presença de mendicantes, especialmente franciscanos, nos
acontecimentos de 1383/85? Aqui, ainda que adiantando algumas perguntas
e hipóteses de resposta, gostaríamos de chamar a atenção para quanto é
difícil relacionar essas presenças franciscanas nas movimentações políticas
populares de 1383/138535 com os ideais desses grupos reduzidíssimos,
quase desconhecidos, levando uma vida eremítica austeríssima e retirada
dos centros urbanos onde essa presença parece ter sido mais notória... e,
o que é mais, quase sempre mal vistos se não mesmo perseguidos pelas
autoridades franciscanas imperantes... É uma tentação a que, cremos,
devemos renunciar, mesmo pagando o preço de tirar um certo «picant»
às nossas análises ... Aliás, como acabamos de sugerir, se tal participação
tivesse sido esboçada, o predominante e dominante conventualismo
franciscano talvez não o tolerasse ... Deve, porém, notar-se que o
conventualismo podia igualmente reclamar-se, se bem que não usando
tons que costumam classificar-se de radicais, de toda uma tradição
escatológica franciscana que passa por autores da craveira de um Boaventura
de Bagnoregio (conf., por ex. o prólogo àLegenda Maiorde S. Francisco
ou alguns capítulos de Collationes in Hexameron, nomeadamente
15,1;20;24.22,21-24 et passim). Silencia-se ou, mais geralmente, esquece­
-se este facto, o que, em geral também, origina não pouco discretas
distorsões e não menos eruditos anacronismos. De todos os modos, esses
núcleos eremíticos de origem franciscana ou mesmo franciscanos merecem
toda a atenção ... , pois poderão entrar na confirmação, para não dizermos
(com evidente exagero) na origem, de todo um conjunto de ideias e temas
- renovatfo... , papa ange!icus ... , imperator mundi ... , ressurreição de
S. Francisco antes do fim da «sexta idade» ..., conversio gentilium e
anichilatio turchi... , etc. -cuja história, entre nós, é ainda mal conhecida
para estes anos... Por algo, quando Vasco de Portugal se decide, finalmente,
a ingressar na ordem de S. Jerónimo, o faz num mosteiro de fundação sua
e com características especiais e menos clericalizado, o que a autonomia
dos mosteiros jerónimos, então, tolerava. E onde o faz? -Em Córdova,
isto é, na fronteira com o Islão, desse Islão que, desde sempre, atraíra os
franciscanos. Independentemente do interesse com que Francisco de
Assis sempre olhara o Islão acreditava-se que dele saíria um dos Anti-

34
CARVALHO, José A. de Freitas, livros e leituras de Espiritualidade
Franciscanos ... , ed. cit. pág. 176-186.
35
• REBELO, L. de Sousa, A Concepção do Poder em Fernão Lopes, Lisboa,
1983, acentuou a participação franciscana (sem mais) nos momentos políticos e sociais
de 1383-1385, integrando-a em orientações joaquimitas ou pseudo-joaquimitas.

76
Cristas e que para a sua aniquilação concorreria o sangue do martírio de
muitos filhos do «Anjo do 6.0 selo»... P. deJ. Olividixit. Era o preço dessa
espera da «nova idade»36•
O momento de tensão profética que acabamos de sugerir coincide,
em parte, com os anos do Grande Cisma ... Curiosamente, seria preciso
lembrar quanto essa divisão da Igreja e da Europa com ela desencadeou
toda uma literatura profética de ordem espiritual e política que R. Rusconi
magistralmente estudou no seu já citado L' Attesa dei/a Fine... , a outra
face, a negra, da espera desses dias?
Pelo que a Portugal diz respeito a documentação ou referências a um
clima de tensão político-religioso que se tenha manifestado ao nível ou
por meio da profecia deveria, antes de mais, remeter-nos para os núcleos
religiosos coincidentes ou próximos dos que, vindos de Itália ou de outras
partes, acabámos de evocar... É, pelo menos, possível que certo tipo de
profecias como as de Tomasuccio da Foligno pudessem ter chegado até
nós... , onde, entre 1383 e 1385, a fronteira do cisma (e da heresia)
coincidia com as fronteiras políticas do reino... Não interessa aqui, como
já insinuámos, determo-nos a analisar todos os sinais, maravilhas e visões
e todas as diligências que, com requinte, expõe F. Lopes para situar a luta
pela independência portuguesa num quadro mais vasto do combate pela
verdadeira Igreja de Roma... Tudo nesse vasto quadro de sinais, prodígios,
mortes, embaixadas, vitórias se subordina ao princípio de que é Deus
quem vence... Defender essa terra fiel e eleger um rei fiel que defendendo
a terra defenda a causa nacional e a causa romana parece ser, do nosso
ponto de vista, a linha que com enorme acerto político foi seguida... Não
diz F. Lopes que se o Mestre de Avis recusasse a eleição de rei de Portugal
os ditos reinos estariam em grande perigo de vir em mãos de seus
inimigos, mormente cismáticos e revéis à Igreja?" E neste quadro creio
convirá dimensionar o evangelho português ... que não era outra coisa,
como se sabe, que todos cressem e tevessemfirme ho papa Urbano seer
verdadeiro pastor da igreja, fora de cuja hobediencia nehtt salvarse
poderia e com isto teraaquella crença que seus padres sempre teveram,
a saber: gastar os beens e quanto aviam por dejfender o reino de seus
emmiigos e como por manter esta fee espargerom seu sangue ataa
morte38 .

36
OUVI, P. de J., Expositio super Regulam Fratrum Minorum (in fine);
Lectura super Apocalypsim, V// e X (Conf. Scriti Scelti), a cura de Paolo Vian, Roma,
Cità NuovaEd., s. a [1989], pág. 87, 12 1-122, 136-138; DAMIATA, M., O/ivi inquieto:
La Cristianità Dilacerata da Catari, Ortodossi e Saraceni in Studi Francescani, 88
(1991), pág. 55-27.
37
LOPES, F., Crónica de D. João !..., I." P., l 91.
38
LOPES, F., Crónica de D. João ! ... , r.a P., 159.

77
Curiosamente, num texto tão empapado de um providencialismo
sempre excitado e sublinhado pelo cronista por recurso abundante a toda
uma armação retórica baseada em comparações, metáforas e imagens de
origem bíblica, não há qualquer referência a profecias ... A única que
existe, se mal não lemos, é a que profere o alfageme de Santarém em
relação a Nuno Álvares Pereira39 e, ainda assim, deveria considerar-se,
tendo em consideração , entre outras coisas, a distância a que escreve o
cronista, como uma profecia post eventum destinada ao engrandecimento
do seu herói ... Documentará, quando mais, o gosto de recorrer a tal tipo
de argumentos ... e de tal facto poderia, talvez, tirar-se alguma consequência
concernente à possível (ou provável) difusão de esse tipo de discurso
entre nós por essa época. Por outro lado, não cremos que os conselhos de
Fr. João da Barroca, esse eremita que o século XVII franciscano reclamou
como glória da ordem, deu ao Mestre de Avis possam considerar-se
profecias40•
No entanto, como já lembrámos, neste clima de tensões devemos
recordar a resposta que Fr. Rodrigo de Rubiche, um franciscano de
Guimarães ou de Coimbra, deu, desenganando os castelhanos sobre a
fidelidade a Clemente VII, anunciando aos seus embaixadores a morte da
rainha de Castela ... , que D. João I de Castela seguiria as partes do anti­
-papa de Avignon e que o rei de França, defensor deste, já tinha morrido
no momento em que ele, Fr. Rodrigo, lhes respondia4 1 . Mais do que a
profecia em si mesma, o que interessa reter é tanto a instrumentalização
do profeta nessas dias de divisão como essa referência que indicia,
também entre nós, um clima em que cada parte procura, por todos os
meios, incluindo a profecia, a confirmação da sua escolha política ...
Fr. Rodrigo de Rubiche que, segundo Fr. Manuel da Esperança na
Crónica Seráfica (!, 1,21) que discute e aprova o relato de Bartolomeu

39 LOPES, F., Crónica de D. João !... , II." P., 51.


40 LOPES, F., Crónica de D. João !... , I.:i, 24 (Convirá anotar que se no cap.
anterior [23] o cronista se demora, a propósito da vinda desse ennitão para Lisboa, sobre
os modos da revelação, aqui ao falar do que variamente se discorria à cerca do encontro
de Fr. João da Barroca com o Mestre de A vis, aponta sempre, com exactidão, a
conselhos).
41 LISBOA, Fr. Marcos de, na Segunda Parte da Crónica da Ordem dos Frades
Menores (Lisboa, 1560), Liv. 9, cap. 35 refere, com alguma extensão, a figura e esta
profecia de Rodrigo de Rubiche; igualmente o faz, com maior relevo erudito, Fr.
Manuel da Esperança, História Seráfica ... , ed. c it., I, 1, 121; RUBIO, Genmín, la
Custodia Franciscana de Sevilla. Ensayo Histórico sobre sus Orígenes, Progresos y
Vicisitudes ( 1120-1499), Sevilla, Convento de S. Buenaventura, 1953, refere-se, com
base em L. Wadding, a Fr. Rodrigo no quadro do Cisma do Ocidente.

78
de Pisa no celebérrimo De Conformitate42, terá morrido depois de 1381,
talvez mesmo depois de 1 383, poderia, a seu modo, garantir, «profe­
ticamente», quer a fidelidade do evangelho português quer a sua con­
cretização.
Haverá outras referências ou documentação em torno da tensão
profética à volta de 1 383/1 385? Não sabemos, mas cremos valeria a pena
pesquisar neste sentido em fontes portuguesas ... As referências que
temos vindo a assinalar foram colhidas, em primeiro lugar, em crónicas
ou obras estrangeiras... Depois, talvez, se pudesse ver, com mais justeza,
se o conflito Portugal/Castela, para além do imediatamente político, não
foi sentido como um grande momento em que Roma e Avinhão se
confrontavam ... Exageramos as divisões e o seu alcance?-É possível,
mas devemos confessar que este quadro mais vasto nos pennite compreender
melhor o empenho com que, antes da batalha de Aljubarrota, Bonifácio
VIII mandara publicar uma carta em que declarava as rainhas Beatriz e
Leonor e o rei de Castela como condenados publicamente como filhos de
perdição por cismáticos e herejes43 e que Clemente VII, por meio de dois
bispos e de alguns frades pregadores -qual o sentido deste «pregadores»?
Dominicanos ou, muito simplesmente, encarregados de pregar as indul­
gências? -que acompanharam o, rei de Castela, outorgasse indulgências
a todo/os que contra os portugueses tomassem armas ou dessem ajuda
daquello que tivessem pera lhe fazerem guerra44•
Curiosamente, talvez porque um período de tensão relativamente
curto, os tempos que culminaram em Alfarrobeira (1449) não parecem ter
gerado qualquer tensão profética ..., nem merecido ser marcados por
sinais astrológicos, apesar dos relatos à volta desses dias estarem, como
é bem sabido, precedidos pela notação do discurso profético («revelação»)
do infante D. Pedro sobre a sua própria morte45• Mas, independentemente
desses acontecimentos políticos, seria de abrir uma linha de pesquisa à
volta do círculo, e O. Isabel de Urge!, essa princesa aragonesa com quem
casou o infante D. Pedro em 1428 ... Não temos qualquer pista nesse
sentido, mas recordemos que Isabel de Urge! procedia de um círculo
familiar e político em que as profecias à volta de seu pai, o conde Jaime
de Urge], tomavam um tom exaltante46• As profecias de Jean de Roquetaillade

42
PISA, Bartolomeu de, Conformitatem Vitae Beati ac Seraphici Patris
Francisci ad Vitam lesu Christi, I, 2, 8; I, 2, 11 de acordo com a ed. de Boloniae, apud
Alexandrum Benatim, 1590 ( pág. 92vv., 158r. respct.)
43
LOPES, F., Crónica de D. João /... , II.ª P., 60.
44 LOPES, F., Crónica de D. João / ... , II." P., 41.
45 PINA, R., Crónica de D. Affonso V, cap. 52.
46
POU y MARTl,José M.a, Visonarios, BeguinosyFratice/os Catalanes... , ed.
cit. pág. 32, 291, 437-438, 473-474.

79
viram-se aí transfonnadas por muitos intérpretes em esperanças de
melhores dias para o infeliz pretendente à coroa de Aragão, esperanças
que alimentavam também sua mulher, a infanta Isabel, e sua mãe,
Margarida Paleólogo de Monferrato47• Em concorrência com Roquetaillade,
comentavam-se textos atribuídos a Joaquim de Flora... , ao renegado fran­
ciscano Alonso de Turmeda... , a Santo Isidoro, etc. A infanta Isabel, mãe
da mulher de D. Pedro, lia e comentava as profecias de Rocacelsa e,
através do seu esmoleiro, esteve em relação com outros visionários,
alguns também franciscanos48• Teria Isabel de Urgel esquecido todo este
clima durante os anos em que esteve em Castela? Teria dele conservado
a memória e procurado alguns textos? Que sabemos sobre a discreta
existência em Portugal dessa duquesa de Coimbra falecida em 1464 em
Santa Clara de Coimbra como terceira franciscana? Um bom indício de
que se não terá limitado «a fiar a lã, a vigiar a casa e a criar os filhos» e
que nos deve incitar a ir mais longe, é o saber-se que se empenhou em que
fosse traduzido para português o Vita Christi de Ludolfo de Saxónia49•
Intrigantemente, esta obra circula em tradução manuscrita por muitas
casas da pristina observância franciscana50. Esta mesma tradução? Seria,
por isso, importante conhecer gestos, dádivas, protecções da duquesa de
Coimbra... Mesmo discretamente poderão ter um sentido ...
E um sentido que poderá ganhar maior relevância ou, se for o caso,
ajudar a relevar o significado de outros factos, de outros gestos, de outras
orient�ções espirituais se não perdennos de vista que entre 1390 e 1447
as observâncias, monnente a franciscana, na Península Ibérica como um
pouco por toda a Europa, afinnavam ainda e afumá-lo-ão por alguns anos
mais, o seu desejo de restaurar o cumprimento à letra da Regra... , isto é,
sem interpretações, sem privilégios, sem subterfúgios jurídicos conco­
mitantemente com uma desvalorização dos estudos, sobretudo dos estu­
dos universitários". Para este período impõe-se «inventar» a documentação

47
POU y MARTI, José M.a, Visonarios, Beguinos y Fraticelos Catalanes... .,
ed. cit. pág. 437-438, 473-474.
48
POU y MARTI, José M.", Visonarios, Reguinas y Fraticelos Catalanes...,
ed. cit. pág. 427.
49
MAGNE, Augusto, Introd. a Ludolfo de Saxónia, O Livro de Vita Christi
em linguagem Português, Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, s.a. (1956), pág. XI.
5° CARVALHO, José A. de Freitas, Livros e leituras de Espiritualidade
Franciscanos... , ed. cit. pág. 160.
51
FOIS, Mario, II Fenomeno dell'Osservanza negfi Ordini Religiose tra iJ 1300
e il 1400. Alcune Particularità dell l'Osservanza Francescana in Letture delle Fonti
Francescane attraverso i Secoli: il 1400 (acura di G. Cardaropoli e M. Conti), Roma,
Ed. Antonianum, s.a. (1981), pág. 53-96 (esp. 91-96); COSTA, A. de Sousa, le Fonti
Francescane nei Testi Legislativi Francescani dei 1400 in Letture dei/e Fonte

80
começando por reler, com atenção às suas mais miúdas notícias e aos seus
nomes quase aparentemente irrelevantes, as grandes crónicas monásticas
e mendicantes do século XVII e até do século XVIII não só as portuguesas,
mas também as peninsulares e até as italianas ... Algum nome ... , algum
frade que viaja a Itália... , que regressa da Catalunha ... , que vai participar
numa conquista - como esse Fr. Paulo, francês, que da Insua para
Málaga se dirigiu em 1487 e lá morreu no cerco52 - podem contribuir
para abrir pistas insuspeitadas ... , como este último caso que, documentando
a repercussão desse acontecimento em ambientes franciscanos reformados
e observantes, nos poderá insinuar - e apenas insinuar- que o inscre­
viam num clima escatológico que terá o seu acme à volta da conquista de
Granada...
A notação do amor ao ermo ... , do amor à letra da Regra... , a valo­
rização, para os franciscanos, do Testamento do seu Fundador. .. , constam
dessas páginas um tanto grandiloquentes e reivindicativas de glórias, mas
também perpassam pelos documentos régios, pelas entrelinhas das bulas
papais... Lembremos, por exemplo, que algum dos primeiros fundadores
da observância franciscana em Portugal como esse Gonçalo Marinho,
com algum companheiro, em Itália esteve (quase seguramente) em con­
tacto com a reforma observante de Paoluccio de Trineis antes de se
decidir a reformar a Província de Santiago53 e, logo depois, por razões de
política religiosa derivadas das obediências régias a Roma e a Avignon,
a Província de Portugal... Recordaremos que estas zonas de zelantismo
recolhiam muitos dos que discípulos dos primeiros discípulos pugnavam
pela observância espiritual, isto é, à letra da Regra... , e mantiveram, por
cópia e por tradição oral, uma autêntica gnose - os secreta ordinis -
incluindo profecias a respeito do futuro da ordem", conjunto de orientações

Francescane... , ed. cit., pág. 139-262 (esp. 214-262). AA. VV., li Rinovamento dei
Francescanesimo. l'Osservanza, Università di Perugia, Centro di Studi Francescani,
Assis, 1985.
52 Lembremos, na sequência do estudo do benemérito Fr. Fernando Felix
Lopes (O.F.M), Franciscanos em Portugal antes de Formarem Província Independente.
Ministros Provinciais a que Obedeciam in A.1.A. 45 ( 1985), pág. 349-450, Fr. Rodrigo
Martinez de Lara quem terá vivido à volta de 1380 e esse Fr. Paulo, francês, queda Ínsua
se dirigiu a Málaga em 1487 onde morreu durante o cerco, como regista Fr. João da
Póvoa no Inventário dessa casa. Conf. CARVALHO, José A. de Freitas, Livros e
Leituras de Espiritualidade Franciscanos..., ed. cit. pág. 157 n. 126.
53
LOPES, F. Félix, Franciscanos de Portugal antes de Formarem Província
Independente. Ministros Provinciais a que Obedeciam in A.LA., 45 (1985) pág. 436-
-437.
54
CAMPAGNOLA, Stanislao da, !nflusso de! Gioachimismo nella Letteratura
Umbro-Francescana dei Duo-Trecento in AA. VV ., // Beato Tomasuccio da Foligno... ,
ed. cit., pág. 97-129 (esp. 106-113).

81
espirituais que se plasmará em tantos textos que depois o impresso
ajudará a divulgar e a fixar? Que sabemos concretamente desses franciscanos
que se refugiam na Madeira e que tão protegidos foram por Afonso V?
Verdadeiramente, para além dos tópicos, que conhecemos acerca dos
fundadores do Varatojo? Por outro lado, haverá que prestar atenção a
colecções de fontes franciscanas que, por ventura, ainda existam manuscritas.
Manuscrita permaneceu uma «Vida de S. Francisco» em castelhano dos
fins do século XIV que se guarda na Biblioteca da Universidade de Coim­
bra e que, um pouco forçadamente, é certo, já foi posta em relação com
grupos mais ou menos radicais de terceiros franciscanos". Os que vieram
de Itália para Toledo eram-no certamente... Manuscrito correu, já antes
de 1451, em catalão, em castelhano e em português esse notabilíssimo
conjunto de fontes franciscanas conhecido pelo Floreio de S. Francisco
e de seus Companheiros, impresso em Sevilha em 1492 e que nesse
mesmo ano Fr. João da Póvoa, confessor de D. João II e um dos mais
notáveis organizadores da observância regular, mandou comprar e ofereceu
a Santo António da Castanheira ... isto depois de já ter feito copiar e
traduzir a obra. O livro existia nos principais ermitórios da observância
em Portugal e em algumas casas da reforma de Pedro de Villacreces em
Espanha56• E no Floreio andava, entre outras atribuídas a S. Francisco
dizendo respeito ao porvir da sua ordem, uma profecia sempre muito
citada sobre o futuro das ordens mendicantes, especialmente da domini­
cana e franciscana, que nos novíssima lempora se veriam substituídas
por uma outra, esse novus ordus, mais radical e mais pura57 • Fr. Marcos

55 PERARNAU, José, Dos Tratados «Espirituales» de Arnau de Vifanova en


Traducción Castellana Medieval in Amhologica Annua, 22-23 ( 1975-1976) pág. 477-
-630 (esp. 505-506) em que procura pôr esse precioso ms. em relação com grupos de
Terceiros Franciscanos em Castela.
56
Sobre as várias questões levantados pela circulação e tradução deste Floreto
de Sant Francisco (que não há que confundir com as Fioretti) pode ver-se o que
escrevemos em Livros e leituras de Espiritualidade Franciscanos..., ed. cit., pág. 176-
-186.
57 Floreio de Sant Francisco (Sevilla, 1492) que citamos pela reprodução
anastática que publicámos sob os auspícios da Comissão Organizadora do «Congresso
Intem. sobre Bartolomeu Dias e o seu Tempo» (Porto 1988): cap. XIII: Que /ah/a de
una profecia de Joaquin abad de la orden de los predicadores y de los menores (pág.
28-29, cap. LXXVI: Como sant Francisco profetizó que los que en el tiempo de la
tribulación advenidera entraran en la orden seran bienaventurados y seran provados
y que los que perseveran en e/ bien que començaron seran mejores que los antecessores
(pág. 81); cap. LXXXI: De la profecia de sant Francisco que dixo dei mal estado que
avia de venir su orden {pág. 84); cap. LXXXII: De la grand tribulación que hade venir
a la orden segundo que sant Francisco muchas vezes dezia y sus compaiíeros
puhlicaron lo despues. E son escriptas de las siguientes palahras en la exposición de

82
de Lisboa utilizou abundantemente o livro como fonte da sua Crónica dos
Frades Menores que nas suas mais de 80 edições do original e das suas
traduções58 constitui tanto pelo que narra como pelo que antologia a obra
por que a Europa conheceu e amou Francisco de Assis ao longo de
séculos. Até muito recentemente do Floreio apenas se conheciam dois
exemplares - o da Biblioteca Nacional de Lisboa e da Biblioteca
Nacional de Madrid. Hoje conhecem-se outros dois59 • Curiosamente
neste último, o madrileno, foi há muito arrancada a folha onde vinha essa
profecia sobre o futuro das ordens mendicantes atribuída ao abade
Joaquim ... E mais intrigante se pode tornar tudo isto se nos recordarmos
que, a par da enorme divulgação da Arbor Vitae Crucifixae de Ubertino
da Casale, sobretudo depois da edição de Veneza em 1485, se fizeram
também algumas traduções e até sínteses'º· Na Península Ibérica, a mais
conhecida foi a que por ordem de Isabel a Católica, empreendeu um
cónego de Toledo, Alonso Ortiz, o preceptor do príncipe D. Juan61 , e que
se conserva na Biblioteca Universitária de Salamanca62• Será interessante
saber que foi desaconselhado a traduzir o quinto livro ... Ora, se toda a
Arbor Vitae é fundamental para compreender, através de Cristo, Francisco,
esse quinto livro é decisivo para perceber quer como Ubertino e todos os
que com mais ou menos radicalismo queriam, principalmente em questão
de pobreza, observar a regra sem glosas adulterantes quer, ainda, o papel

la regia que hizo Jray Angel [Clareno] (pág. 86) [N.b. A paginação assinalada
corresponde à numeração artificial introduzida na edição, em virtude do incunábulo
carecer de qualquer paginação]. Sobre algumas das questões levantadas por certos
destes textos, nomeadamente os que têm relação com Angelo Clareno, v.G.L. Potestà,
Angelo Cfareno. Dai Poveri Eremiti ai Fraticel!i, Roma. I.S.M.E., 1990, pág. 196-198.
SR FARIA, F. Leite de, Fr. Marcos de Ushoa, ca. 1511-1591 e as Muitas
Traduções das suas «Crónicas da Ordem de S. Francisco» in Rev. B.N.L.S. 2,6 ( 1991 ),
pág. 85-106.
59 Graças à perspicácia e saber de Juana M. Arcelus Ulibarrena conhecem-se
ainda o exemplar da Biblioteca de la Diputación Foral de Viscaya (Bilbao) e o da
Biblioteca de Cataluyna (Barcel0na). Conf. a eruditíssima e importante nota crítica que
J.M. Arcelus Ulibarrena dedicou à nossa edição do Floreto de Sant Francisco in A.LA.,
49, (1989), pág. 652-655.
6° CARVALHO, José A. de Freitas, Livros e Leituras de Espiritualidade

Franciscanos ..., ed. cit. pág. 166-167; R.USCONJ, R., La Tradizione Manoscritta delle
Opere degli Spirituali nelle Biblioteche dei Predicatori e dei Eremiti delf'Osservanza
in Picenum Seraphicum, 12 (1975), pág. 63-137 (esp. pág. 77).
6 1 Algumas notas na lntrod. de G.M. Bertíni ao Diálogo sobre la Educación dei

Príncipe D. luan, Hijo de los Reyes Católicos, «Studia Humanitatis», s.l.s. a (Madrid,
1 983).
62 Deverá notar-se que já desde os começos do século XV Fr. Juan Exirneno se
propôs traduzir a obra de Ubertino, como assinala José M" Pou y Marti, Visionarias,
Beguinos y Fratice/os Catalanes... , ed. cit., oág. 441-445.

83
que à ordem desse alter Christus estava reservado na economia dos
últimos tempos que serão, como aí se declara expressamente, os dos dois
Anti-Cristos..., da ruina e conversão da sinagoga..., da evangelização e
conversão dos gentios..., da destruição da paganica secta e, como já
referimos alguma vez, da ressurreição de Francisco para confortar e
manter vivo o espírito dos que nesses tempos de provação permanecerão
fiéis63 • Como se orquestram todos estes temas nos finais do século XV
português? Que ressonância tiveram ainda no tempo de Manuel !..., nos
tempos de reforma das reformas em que tanto se empenhou o Piedoso64?
Jorge da Silva que gostava tanto da intriga política como da religiosa será
um atento leitor de Ubertino65 • Apenas do Ubertino que medita doloro­
samente na paixão de Cristo? Como terá reagido este entusiasta de
Alcácer-Quibir ao livro V da Arbor Vitae? Marcos de Lisboa que
conheceu muito bem o Floreio e aArbor Vitae fará, como já lembrámos,
na Introdução à Crónica da Ordem dos FradesMenores (Primeira Parte,
Lisboa, 1556) um preciso resumo do «livro» de Ubertino da Casale.
Tem-se insistido, sob o fascínio de estudos como os de N. Cohan,
The Pursuit of the Millenium (Londres, 1 957) de J. L. Phelan, The
Mil/enial Kingdom ofthr Franciscans in the New World (Berkley, 1 970)
e, mais recentemente, de A. Milhou, Colón y su Mentalidad Mesiánica
en el Ambiente Franciscanista Espaiiol (Valladolid, 1983) esquecendo,
porém, !! Regno Futuro dei/a Libertà de B. Tõpfer, na ressonância de
muitos destes temas na formação de um certo ambiente missionário
peninsular, «americano» e, ao parecer, até indiático tingido, digámo-lo
com impropriedade, de um certo messianismo apocalíptico que se
prestaria muito bem a solidificar ou a promover velhas esperanças e
recentes políticas de combate, destruição e conversão do turco e de outras
gentes66• Em 1573, D. Gaspar de Leão no seu Desengano de Perdidos,

63 Para todas estas questões, DAMIATA, M., Pietà e Storia nell'Arbor Vitae

di Ubertino da Casale, Firenze, Ed, «Studi Francescani», 19 88; POTESTA, G.L.,


Storia ed Escatologia in Ubertino da Casale, Milano Vita e Pensiero, 1980; TÕPFER,
B., /l Regno Futuro della Libertà... , ed. cit., pág. 254-271.
64 CARVALHO, José A. de Freitas, Livros e Leituras de Espiritualidade

Franciscanos... , ed. cit., pág. 194-195.


6
5 MARTINS, M., Da Literatura da Paixão in Brotéria, 64 ( 1957), pág. 399.
(Preparamos um estudo sobre Jorge da Silva em que abordaremos estes aspectos).
66 GUERRA, Ana Morisi, la Conversione degli Ebrei nel Profetismo dei

Primo Cinquecento in li Profetismo Gioachimita tra Quattrocento e Cinquecento, ed.


cit., pág. 117-128 examina o tema desde o Adversus Judeos de Gioacchino da Fiore até
ao Convivia de Secreti de/la Scrittura Santa de Francesco Meleto, chamando a atenção
para o facto que accade cosi a volte che, nella speranza di una età nuova, il profetismo
ebraico e quello cristiano trovino motivi comuni (pág. 118), aspecto este que para o
Portugal da segunda metade de 500 pode documentar-se em TAVARES, Maria José

84
impresso em Goa, retomava e orquestrava a favor de Pio V e de
D. Sebastião os seus anseios, visões e interpretações desses velhos
temas67. E. Asensio na pioneira introdução que apôs à sua edição da obra
do arcebispo de Goa procurou insinuar ainda, com (talvez) alguma razão,
o papeljunto de Afonso de Albuquerque de um certo Fr. João Alemão­
franciscano? - que bem gostaríamos de poder identificar com um
estranho Fr. Juan Alemán (Alamany..., Unay ou Uray Alemani... , Ale­
many?) a que se atribui um não menos estranho Libro que habla de los
grandes hechos que han de ser en el mundo 68 e que estranhamente
também se dizfraile menor de la orden de Sancti Spiritu ... Será legítima
a identificação baseada, ao parecer, na simples homonímia? -Talvez
não, se o autor desse Libro ... for o mesmo (e parece que é) que na primeira
metade do século XV escreveu a Obra [... ] de la Venguda de Antichrist
e de las Cosas que se han de seguir. Ah una Reprobació de la Secta
Mahometica (Valencia, 1520, mas poderá ter havido uma edição anterior
a 1513) que conheceu uma larga difusão peninsular69 nos séculos XV e
XVI. Mas se aceitássemos tal possibilidade, deveríamos também anotar
-e disso tirar igualmente as consequências -que Afonso de Albuquerque
ao recomendar o seu Fr. João Alemão ao Venturoso'º (Goa, 25- 10-1512)
não refere para nada quaisquer pendores visionários e apocaplípticos... e

F., Características do Messianismo Judaico em Portugal in Estudos Orientais, 2,


pág. 245-266; no momento de corrigir as l.ª' provas desta «Introdução» recebemos
Joaquim de Flora y América (Pamplona, Eunate, 1992) em que J. L Saranyana e Ana
de Zaballa ponderam com recurso a textos e vasta bibliografia os programas desse tema
sempre apaixonante.
67
LEÃO, D. Gaspar de, Desengano de Perdidos (Goa, 1573), Reprodução do
único exemplar conhecido com Introd. de Eugenio Asensio, Coimbra, Por Ordem da
Universidade, 1956, Liv. I, caps. 18-25.
68
E. Asensio na Introd. ao Desengano de Perdidos assinala esta obra no ms.
6176 da B.N. Madrid; para outros ms. v. MILHOU, A., Co/ón y su Menta/idad
Mesiánica ... , ed, cit., pág. 238-239 (n" 553).
69
MILHOU, A., Colón y su Mentalidad Mesiánica ... , ed. cit., pág. 239, nª 553.
Ramón Alba publicou em Acerca de Algunas Paricularidades de las Comunidades de
Castilha talvez Relacionadas com e/ Supuesto Acaecer dei Milenio Igualitário, Madrid,
Edit. Nacional, s.a. (1975) uma Relación de Gonzalo de Ayora (?) de Todo lo Sucedido
en las Comunidades de Castilla (Ms. 1779 de la B.N. Madrid) em que se recolhe a
Profecia Sumaria Declarada que Envió Maestro Uray Frayle Menor de la Orden de
Sancti Spiritus... (pág. 180- 187); apenas como nota para sublinhar os consabidos
escolhos da homonimia refira-se que também o B. Amadeu da Silva teria tido por
companheiro um Fr. João Alemão, como indica D. António Caetano de Sousa na
continuação doAgio!ógio Lusitano (IV p. Lisboa, Regia Of. Sylviana e Academia Real,
1744, pág. 497).
70 ALBUQUERQUE, Afonso de, Cartas (ed. de R.A. Bulhão Pato), Lisboa
Academia Real das Sciencias, l 884, II, pág. 93.

85
bem poderia fazê-lo dado o contexto escaldante em que já se tem querido
envolver a sua política oriental". Como se sabe, Albuquerque apenas
louva a sua caridade nos hospitais e no atendimento, como seu confessor,
da sua alma... De recusar liminarmente toda esta rede improvável? -
Não nos atreveríamos a propô-lo sabendo quanto, voluntária ou involun­
tariamente, discretos e delicados são, algumas vezes, os caminhos por
onde fluem tais temas e os sonhos que conlevam, mas não nos atreveríamos
a tecê-la com tão ténues fios ...
Teremos de lembrar na hora de calibrar ambientes e mentalidades
que muitos destes temas, destas figuras, destas profecias, destes sonhos
faziam, desde há muito, parte da «vulgata» ideológica ocidental? Que
enformavam tanto a cultura dita «popular» -pensemos, por exemplo,
nas Trovas do Bandarra de cerca de 153072 - como, nos séculos XV e
XVI a cultura de tantos humanistas e científicos73? Por isso, importará

71 THOMAZ, Luis F. Reis, L'ldée lmpériale Manueline in AA. VV., La


Découverte, !e Portugal et l'Europe ... , ed. cit., pág. 35-103.
72 Apesar de ser defensável considerar que a escrita das Trovas pode referir-se
a uma data à volta de 1530 (um ano deduzível do próprio texto), convirá não esquecer
que esse texto hoje conhecido representa basicamente um ponto de chegada consagrado
em 1644, data da !.ª edição «autónoma» [sobre esta ed. v. a Intrudução de A. Pinto de
Castro à sua bela reprodução anastática, Lisboa, Ed. Inapa, 1989], pois, como cremos
ser pacífico, a primeira edição é a que forneceu D. João de Castro na sua Paraphrase
et Concordancia de Alg1las Prophecias de Bandarra (Paris, 1603). Independentemente
das lições apuradas por João de Castro nos vários ms. que diz ter consultado (e nada
parece haver que o desdiga) e das «correcções» que comentadores (começando pelo
primeiro) e coleccionadores mais ou menos interessadamente introduziram no texto
pro causa sebástica, cremos ser evidente que o texto que hoje conhecemos se apresenta
como um trabalho um tanto inorgânico de aglomeração e adição levado a cabo em
d iferentes datas sobre um texto-base que, como tal, nos é desconhecido. Tal trabalho
tanto poderá ser da autoria de Bandarra (pensamos que algum se lhe poderá atribuir)
como (o que era frequente em textos deste tipo) de outros «profetas» que desse(s)
texto(s) se apropriavam... Apesar de nós mesmo o termos tentado sem grande convicção
e êxito (Joachim de Flore au Portugal: Xtllr-xv1e Siêcles. Un ltinéraire Possih!e in AA.
VV., li Profetismo Gioachimita tra Quattrocento e Cinquecento, Genova, Marieti,
I 991, pág. 415-432) parece-nos hoje ser caminho desviado «aplicar», sem mais, o texto
de 1603 ou o de 1644 (Nantes) a um contexto de cerca de 1530... O que hoje conhecemos
via João de Castro e edição de Nantes são textos para causas precisas que, genericamente,
poderíamos considerar variantes da causa sebástica, ainda que, naturalmente, o
programa que tais textos propõem seja, fundamentalmente, o mesmo e possa derivar,
como seguramente derivará, do texto de Bandarra de cerca de 1530... De todos os
modos, o texto de João de Castro e o da edição de 1644 ultrapassam os limites que aqui
nos impusemos e, por isso, tentando, de alguma maneira, corrigir algo do que na ocasião
já referida propusemos, renunciámos a considerar agora o programa das Trovas. Em
alguma oportunidade tentaremos, contudo, ensaiar uma «décapage» dessas profecias.
" NICCOLI, O., Profeti e Papo/o... , ed. cit., pág. 5, 121.

86
sempre mais do que apelar ao longínquo complexo de origens joaquimitas
- quase sempre, aliás, pseudo-joaquimitas - por via franciscana ou
não, estudar a realidade do funcionamento dos temas ... distinguindo,
com a precisão possível, o que é um projecto actualizador... , o que deriva
de apelos a cánones retóricos para exaltação e propaganda de personagens
e ideais ... , o que decorre da espiritualidade e o que, tantas vezes como
mero envólucro, releva da política... E tudo isto sabendo que, então, os
fios se entrecruzavam poderosamente tanto para exaltação de gestas e de
conquistas como de projectos imperiais e não só portugueses74. O atender
ao género literário, ao alcance espiritual ou às suas contaminações polí­
ticas terão sempre de ser passos a considerar no estudo dessa complexa
re-utilização de temas e sonhos tão tradicionais como, aparentemente,
pelo menos, imorredoiros. Que o diga, com o exagero que julgarmos
pertinente ou com os matizes que queiramos introduzir, La Descendance
Spirituelle de Joachim de Flore de Henri de Lubac75 • Muito de Gil
Vicente, por exemplo, terá, como insinuámos, de ser olhado deste estas
perspectivas ... Apesar de tudo, não cremos que se possa falar de messiarúsmo
à volta da ideia imperial de um Manuel I... O que, talvez, possa vir a
considerar-se num quadro mais amplo a estabelecer, será a integração da
reivindicação portuguesa de tal ideia imperial nas coordenadas escatológicas
do tempo... , o que não é, evidentemente, a mesma coisa... O V «livro» de
Ubertino poderia ajudar a defini-las. Por isso, será importante descobrir,
para a ler, essa célebre «exortação» à Cruzada por Duarte Galvão, texto
de que, tanto quanto sabemos, apenas se conhecem referências indirectas
e, logo, seleccionadas. Da sua falta já se queixava João de Castro, o
comentador de Bandarra, nos fins do século XVP6 e Barbosa Machado,

74
Em relação a Carlos V pode ver-se NICCOLI, O., Profeti e Popolo... , ed. cit.,
passim, e em relação a Maximiliano a segunda parte do Prognosticon (Heidelberg,
1488) de J. Lichtenberger (Conf. KURZE, D., Popular Astrolgy and Prophecy i11 the
Fifteenth and Sixttenth Centuries: Johannes Lichtenherger in AA. VV., «Astro!ogui
Ha!ucinati». Stars and the End ofthe World in Luther's Time, N.-York-Berlim, Walter
de Gruyter, 1986, pág. 177-193.
75 Dentre as inúmeras recensões e notas críticas à obra de Henri de Lubac
destaquemos a de Enrique Rivera, E/ Joaquinismo Historiado por Henri de Luhac
(A propósito de su obra: La Postérité Spirituelle de Joachim de Flore) in Estudios
Fra11cisca11os, 84 ( 1 983), pág. 35 1 -361.
76
D. João de Castro na Paraphrase et Concordancia de Algi"ias Prophecias de
Bandarra, Paris, 1 603, pág. 83v.-84r. refere essa «exortação» de Duarte Galvão e
glosandoa notícia de João de Barros aproveita-a pro causa sua... No entanto não a viu ... ,
pois espera que nem faltará algum curioso de religioso zelo que, com esta lembrança,
faça seu dever por desenterrar a dita exortaçam de Duarte Galvão dos fundos dos
caxões de seus herdeiros, se por ventura o tempo e a traça por quem e de quem era a
respeytram ou de a averem do thesouro dessefamoso historiador Joam de de Barros...

87
na sua Biblioteca Lusitana, se, efectivamente, fornece o incipt, não o
resume nem dá indicações que permitam dizer que realmente ainda o
conheceu77.
E já que tanto temos falado de franciscanismo... Qual a ressonância,
por que quase sempre não perguntamos, da Apocalypsis Nova na Península
Ibérica e, mormente, em Portugal? Há todo um estudo a fazer sobre esse
difundidíssimo texto profético que, tal como o conhecemos, não pertencerá
ao Beato Amadeu da Silva... , mas, sim, em larga medida, a G. B. Salviati,
um franciscano bosno, mas especialmente actuante em Florença78. É um
texto em que, com precisão, se orquestram todos os velhos temas de
velhas profecias para preparar a chegada do Pastor Angélico- figura a
que concede uma obsessiva importância - e, muito secundariamente, do
Imperador dos Últimos Tempos. Interroguem o-nos um pouco mais. Der­
xemos essa Espanha para onde Fr. Francisco de los Ángeles (Quiiíones),
Ministro Geral da Observância e futuro cardeal de Santa Cruz, trouxe um
exemplar do Ps.-Amadeu, isto é, daApocalypsis Nova ... , donde navegou,
como atesta S. Pedro de Alcântara, até ao convento de S. Francisco de
Belvis de la Província dei Santo Evangelio que es en las Indias de
Castilla, onde foi copiado pelo famoso missionário Fr. António Ortiz e
donde regressou para ser louvado e aprovado por D. Alonso Manrique,
arcebispo de Sevilha, e recuperado por Fr. Pedro de Alcântara ... Assim
o testemunha, com algum pormenor mais, Fr. Pedro de Alcântara em

77 MACHADO, Diogo Barbosa, Biblioteca Lusitana (Coimbra Edit., 1965) !,


pág. 732 ao tratar de Duarte Galvão dá, efectivamente, o incipitdessa «exortação», mas;
apesar de informar que tanto esta como outra dirigida ao mesmo rei sobre o que deviam
saber os que bem e serviço de Deos vão fazer os que vão à lndia, se conservaõ ms. na
Livraria do Ex.mo Conde de Vimioso, o modo como a elas se refere (Esta exortação
estava junta com outra que campos na occasiaõ em queJoy por embaxador ao Preste
João, a qual começava...) não garante que tenha realmente visto essas duas obras.
(O sublinhado é nosso).
78
MORISI, Ana,Apocalypsis Nova. Ricerche sul!'Origine e la Formazione dei
Testo dei/o Pseudo-Amadeo , Roma, I.S.M.E., 1970, pág. 45-46; VASOLI, Cesar,
Notizie su Giorgio Benigno Salviati (Juraj Dragis!CJ in Profezia e Ragione, Napoli,
Morano Ed., s.a., pág 15-127; Giorgio Benigno Salviati, Pietro Galatino e l'Edizione
di Ortono ( 1518) dei De Arcanis Catholicae Veritatis e L'Apocalypsis Nova: Giorgio
Benigno Salviati, Pietro Galatino e Guillaume Postei in Filosofia e Religione nella
Cultura dei Rinascimento, Napoli, Guida Edit., s.a. ( 1988), pág. 183-209 e 2 1 1-229
respectv.; RUSCONI, R., Circolazione dei Testi Profeti agli lnizi dei Cinquecento. La
Figura di Pietro Galatino in ll Profetismo Gioachimita tra Quattrocento e Cinquecento... ,
ed. cit., pág. 379-400; COSTA, A.D. de Sousa, Studio Critico e Documenti !nediti sulla
Vita dei Beato Amadeo de Silva nel Quarto Centenario della Morte, Roma, Pontificium
Athenaeum Antonianum, 1985.

88
documento datado - note-se - de Portugal: Azeitão em 2 I -II- 1 543 79•
Que ressonâncias portuguesas (e qual o seu significado contextual?)
existirão destes factos garantidos por um admirado correspondente da
infanta Isabel, duquesa de Bragança, e da infanta D. Maria?'ºE um pouco
depois (ca. 1549) de quem depende «profeticamente» aquele (jesuíta?)
que, segundo o P. Polanco, em carta escrita em nome de Inácio de Loyola
a precaver Francisco de Borja, ainda, então, duque de Gandia, contra
profecias do mesmo género que visavam a sua pessoa como futuro Papa
Agélico8 1 , vino los dias pasados de Portugal que habia de reformar la
Iglesia, y aqui en casa procuró nuestro padre de reducirlo? E aquele
outro (jesuíta?), referido na mesma carta, de la misma nación, para elfin
de agosto que viene, dice que infaliblemente ha de ser elegido papa, yasí
trabajaba de tomarpara su habitación una iglesia harto incómoda en lo
demás, porque de allí !e parecia haría una vistosa salida cuandofuese
elegido por papa82• Dois casos que, tanto quanto sabemos, não têm sido

79 O original do Certificado de Fr. Pedro de Alcântara sobre el «Comentaria al


Apocalipsis» dei B. Amadeo de Silva (t 1482)transcrito porei P. Antonio Ortiz (t 1560)
a partir de uma cópia de Fr. Francisco de los Ángeles foi publicado por Arcangel
Barrado Manzano, O.F.M. in S. Pedro de Alcántara. Estudio Documentado y Crítico
de su Vida, Madrid, Ed. Cisneros. 1965, pág. 185-186; Manuel de Castro, Manuscritos
Franciscanos en la Biblioteca Nacional de Madrid [Madrid, Dirección General de
Archivos y Bibliotecas, s.a.] pág. 333 e 468 dá notícia de ms. com a Apocalypsis Nova
(Ms. 6540- incornpl. e ms. 11248, ambos do séc. XVII; assinala ainda o mesmo autor
um outro na Biblioteca de El Escorial (Ms. 111-1 do séc. XV). Este último será o que
pertenceu à biblioteca de D. Diego Hurtado de Mendoza e que entrou em El Escorial
em 1576? Conf. Documentos para la Historia dei Monasterio de San Lorenzo e! Real
de El Escorial (VII), ed. de Gregorio de Andrés, O.S.A., Madrid, Imprenta Saez, 1964,
pág. 244. Sobre Fr. Antonio Ortiz, v. A. Barrado Manzano, S. Pedro de Alcántara... ,
ed. cit, pág. 36, 40, 51.
80 Algumas cartas de S. Pedro de Alcântara para a infanta Isabel, duquesa
de Bragança, e para a infanta D. Maria foram publicadas por A. Barrado Manzano,
S. Pedro de Alcántara... , ed. cit., pá�. 188, 189, 200, 204, 205, bem com outras, mais
oficiais, de João III e Catarina de Austria. Também já as publicara F. Félix Lopes,
Influência de S. Pedro de Alcântara na Espiritualidade Portuguesa, Coimbra, 1964,
pág. 55-61.
81
A explicita referência à profecia que no colégio da Companhia de Jesus em
Gandia, no círculo dos PP. André de Oviedo e Francisco Onfroy, sob a influência do
franciscano Juan de Texeda, fazia de Francisco de Borja o futuro Papa Angélico, vem,
introduzida da mão de Inácio de Loyola, na carta que o P. Juan Polanco, em Junho de
1549, escreveu, em nome do mesmo Geral, ao, então, duque de Gandia, para ao mesmo
tempo que lhe dava uma «instrucção geral» sobre Profecia, o precavia sobre profecias
e pseudo-profecias... Conf. LOYOLA, lgnacio, Obras Completas, Madrid, B.A.C.,
1963, pág. 734.
82 Estes dois casos são aduzidos, o segundo com algum humor, por Polanco na

carta a Francisco de Borja ref. na nota anterior (LOYOLA, 1., de Obras Completas, ed.
cit., pág. 726). Será, contudo, de não esquecer, sem que daqui se infira qualquer

89
considerados na hora de ponderar que, tal como no Colégio dos jesuítas
de Gandia, também em Portugal havia quem, na Companhia de Jesus ou
com ela estreitamente relacionado, esperasse ou esperasse mesmo vir a
ser o «Papa Angélico» reformador da Igreja... Simples elaboradores de
velhas tradições? Leitores -em equíHbrio instável, claro -da Apocaiypsis
Nova? Poderiam sê-lo, e, talvez, até continuar a sê-lo, pois oRaptus seu
Revelationes que quacumque língua veio a ser proibido no Index
português de 158 1 não deverá ser a obra atribuída ao irmão de santa
Beatriz da Silva83 • Entretanto, Gaspar Barreiros que sob a impressão de
Francisco de Borja entrará na Companhia para, pouco depois, passar aos
franciscanos observantes, exactamente no fim da sua Corografia (publicada
em 1561, mas referida a 1546) divulgava alguma notícia mais sobre a
biografia do beato Amadeu... e, censurando o esquecimento a que os
portugueses votavam esse grande português, referia a protecção que lhe
concedera Sísto IV e, ao mesmo tempo que admirava o seu espírito
profético, anotava, com justeza, que o livro das suas profecias anda
adulterado, com muitas coisasfrívolas que 11' e/leforam interpostas por
pessoas induzidas pelo Demónio e por humanos interesses". G. Barreiros
devia estar a par dos humanos (e «papáveis») interesses de um G. B.
Salviati e de um cardeal Bernardino de Carvajal..., mas parece algo
desviado quando, olvidando os inúmeros manuscritos em que corria..., as
autoridades que ainda recentemente se tinham interessado pela obra,
etc ... , fala da pouca autoridade de que gozava a Apocalypsis Nova...
E, no entanto, é bem possível que, talvez, a razão esteja de seu lado, se
autoridade... for, sobretudo, uma questão de propaganda de humanos
interesses... Que ecos terão tido tão ponderadas notícias? Em 1563,

necessidade lógica, que os casos referidos vêm mencionados na sequência de outros


(Pedro Galatino e G. Postei) que foram leitores atentos e aproveitados da Apocalypsis
Nova (Conf. bibliografia indicada em nota 76).
HJ Catálogo dos Livros que se Prohibem ..., Lisboa, António Ribeiro, 1581 in
!nelices dos livros Proibidos em Portugal no século XVI (Apresentação. Estudo
Introdutório e Reprodução Fac.-similada por Artur Moreira de Sá), Lisboa, I.N.I.C.,
1983, pág. 590. Note-se, se a nossa leitura foi suficientemente atenta, que é a única vez
que tal obra vem proibida. Porém, não deverá tratar-se do texto do Pseudo-Amadeu,
pois este nunca foi impresso, mas, ao parecer e apesar da Apocalypsis Nova correr ms.
sob o título de Rapllls, de umas {extractadas?] Prophetiae ou Raptus Beati Amadei que,
se vendiam em Roma e de que, segundo Manuel de Castro, Manuscritos Franciscanos
en la Biblioteca Nacional de Madrid, ed. cit., pág. 334 n.º 4, existia um exemplar em
la Biblioteca de Silvio Bocca.
84
BARREIROS, Gaspar, Corographia de Alguns Lugares que estam em hum
caminho que fez... o anno de MDXXXXVI começando em a cidade de Badajoz em
Castella té a cidade de Milam em !ta/ia... Coimbra, Joam Alvares, 1561 (aliás,
Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1968), pág. 245v.-247v.

90
Fr. Bartolomeu dos Mártires visita o túmulo do Beato Amadeu85 e, por
esses anos (um pouco depois, talvez), sabia-se bem na corte portuguesa
que Amadeu da Silva compôs hum livro de revelações e profecias sobre
o estado da Igreja romana e do Papa Angélico e mudanças do Reino e
senhorios86 . Algum dia haverá que dar alguma coerência a esta silva de
notícias... Um feixe de acenos a favor de uma «outra» reforma mais
interior. .. , de mais profunda e radical conversfo? E alguma vez temos
mesmo pensado se Gaspar de Leão, que em Évora, tão cerca da Companhia
andou, não terá sido noDesenganode Perdidos (Goa, 1573) um leitortão
aproveitado da Apocalypsis Nova como, em outras matérias de
espiritualidade, o parece ter sido de Ubertino. Com efeito, não repugnaria
colocar sob o signo da Apocalypsis Nova em que cum magno pastore
surget rex magnus87 a actualização definitiva que, sob os auspícios da
Liga, faz dessas duas figuras proféticas em Pio V e D. Sebastião ... Será ,
preciso assinalar as consequências de tal actualização como comentário
ao cap. XVIII do Apocalypsis, esse roteyro pera os que neste mar do
mundo em que navegamos,justos ou nãojustos, soubessemas os perigos? ...
Nos fins do século poderá suspeitar-se que João de Castro que
andou por Itália e escreve desde Paris, lhe deve mais do que confessa nos
seus comentários às Trovas de Bandarra.
Por outro lado, conviria não perder de vista, inclusivamente pelas
atitudes e nexos políticos que, por momentos, as cortes peninsulares,
nomeadamente a de Manuel I de Portugal, mantiveram com ambientes
romanos e florentinos implicados no caso, todo o trabalho profético de
G. Savonarola88 • A sua condenação em 1498, se organizou algum silên-

85 SOUSA, Fr. Luís de, A Vida de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, II, 3 1 (ed.
de A. Pinto de Castro e G. Chaves de Melo, Lisboa, Imprensa Nacional, s.a., pág. 288�
-289.
86 Anedotas Portuguesas e Memórias Biográficas da Corte Quinhentista.
Istôrias e Ditos Galantes que sucederam e se disseram no Paço, ed. de Cristhopher
C. Lund, Coimbra Liv. Almedina, 1980, n.º LXV, pág. !09.
H7 MORISI, Anna, Apocalypsis Nova. Ricerche... , ed. cit., pág. 20, publica um
longo extrato do Raptus em que aparece essa «conclusão» ... que, aliás, tal como esse
longo trecho, parece remeter (e reelaborar) um outro texto profético - Surget Rex
Magnus cum Magno Pastore - originado, ao parecer, nos círculos próximos de
S. Francisco de Paola para, curiosamente, celebrar outra «liga» no tempo em que o rei
de França, o papa, Veneza e Florença retomariam a guerra contra o Turco. (Conf.
VASOLI, C., Notizie su Giorgio Benigno Salviati in Profezia e Ragione... , ed. cit.,
pág. 114).
88 VASOLI, C., L' lnfluenza di Gioachino da Fiore sul Profetismo Italiano
de/la Fine dei Quattrocento e de! Primo Cinquecento in li Profetismo Gioachimita tra
Quattrocento e Cinquecentb ... , ed. cit., pág. 61-85 (esp. 68-73). WEINSTEIN, Donald,
Savonarola and F!orence. Prophecy and Patriotism in the Renaissance, Princeton

91
cio, não fez esquecer nem a obra nem o austeríssimo projecto reformador.
Como foram conhecidas em Portugal as suas profecias, em tantos pontos
elaborando todos os elementos cbnhecidos e abrindo apocalípticamente,
todas as esperanças e temores? Que textos ou simples indícios seus se
conservam? Como chegaram até nós as notícias do seu profetizar, dos
seus avisos sobre o Turco se a cristandade não se convertia?
Até aqui sugerimos algumas questões à volta de um corpo de
elementos e tensões proféticos que, combinados, se actualizaram ou
poderiam ter-se actualizado em certos momentos com finalidades mais
ou menos precisas ou difusas89• Mas interessaria ainda, sobretudo nesses
começos do século XVI, pensar em outro tipo de elaboração divinatória
ou premonitória que, muitas vezes, também entrou a fazer parte dos
discursos proféticos reclamados ou não pelo poder civil ou eclesiástico.
Referimo-nos à astrologia'º e, mais particularmente, ao anúncio do
dilúvio para 1524... , esse dilúvio que não é senão o último dos até então
profetizados". Conhecemos os trabalhos de Joaquim de Carvalho sobre
alguns textos «científicos» astrológicos do século XV português e
motivados pelo Contra o Juízo dos Astrólogos (Lisboa, 1523) de Fr.
António de Beja, um monge Jerónimo que pertencia ao círculo da rainha
Leonor, a Rainha Velha, as eruditíssimas notas do mesmo autor" e, sobre
o significado das fontes deste último texto, os trabalhos fundamentais de
J.V. de Pina Martins93 • Mas deve notar-se que a dedicatória da obra à

(N. J.), 1970; Savonarola, Florence and the Millenarian Tradition in Church History,
27 (1958), pág. 291-305; GÉLINAS, Yvon-Dominique, L' lnff/uence du Prophétisme
Joaquimite dans l'Ordre Dominicain au XV Siecle in /1 Profetismo Gioachimita tra
Quattrocento e Cinquecento..., ed. cit., pág. 183-193.
89
Para uma visão de conjunto, os vários estudos em II Profetismo Gioachimita
tra Quattrocento e Cinquecento já cit.
90 SAXL, F., la Fede negli Astri. Dei'Antichità ai Rinascimento, Torino,

Boringhieri, s.a. (1985); VASOLI, C., l Miti e gli Astri, Napoli, Guida Ed. s.a. (1977);
NICCOLI, O., Proferi e Popolo... , ed. cit.; AA. VV., Divination et Controverse
Réligieuse en France au XVI' Siecle, Paris, (Cahiers V.L. Saulnier, 4), 1987; CARVALHO,
Joaquim de, Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XV, ed. cit., pág. 283-361.
9 1 NICCOLI, O., Profeti e papo/o... , ed. cit., pág.
92 CARVALHO, Joaquim de, O Livro «Contra o Juízo dos Astrólogos» de Fr.
António de Beja e as suas Fontes in Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XVI,
ed. cit., pág. 185-212.
93
MARTINS, José V. de Pina, Pico della Mirando/a e o Humanismo Italiano
nas Origens do Humanismo Português ín Estudos Italianos em Portugal, 23 (1964),
pág. 7-46; BEITENCOURT, Francisco, Astrologia e Sociedade no Século XVI: Uma
Primeira Abordagem in Revista de História Económica e Social, 8 (1981), pág. 43-76
(esp. pág. 51) analisou as diferenças de alcance da interpretação de Joaquim de
Carvalho e de J.V. de Pina Martins sobre o significado das fontes de Contra o Juízo dos
Astrólogos.

92
rainha Leonor com a declaração de que a sua leitura lhe poderia tirar
algum escrúpulo que sobre tal matéria tivesse poderá ajudar a sugerir
quanto o clima de não pequeno alvoroço urgia a sua publicação num
reino onde não havia, como diz o autor, parisina sciencia nem romana
ousadia para resistir aos publicadores de tanto alvoroço94·
Mas haverá que investigar um pouco mais ..., não só procurando
outros textos, outras referências, mesmo poéticas ou catequéticas, mas
ainda na correspondência desses anos indicações à chegada e difusão de
notícias sobre sinais e monstros que percorriam a Europa. O. Niccoli
mostrou, através da correspondência de Pedro Mártir, a velocidade com
que algumas notícias sobre sinais e monstros não só se espalhavam por
Itália, mas também eram conhecidos em Valladolid95 • Como se difundiram
na Península Ibérica? Não teriam chegado a Portugal? O tardio, para nós
aqui, testemunho de Pero Roiz Soares será o primeiro desse tipo de
notícias? -Não o cremos, antes suspeitamos que possa ser um ponto de
chegada amplificado pelas circunstâncias políticas dos fins do século
XVI português.
Gostaríamos de ter ainda sugerido como a investigação de profetas
e de correntes proféticas ao longo do séculos XV e XVI se é urgente,
também exige que nos propunhamos renunciar a tudo explicar por essas
vagas categorias de franciscanos «espirituais» -e cada vez mais vagas
à medida que os séculos avançam -e de espírito e humildade franciscanos,
de um Joaquim de Flora autêntico ou falso sem discutir textos, géneros
literários e processos retóricos e ainda temas precisos e, finalmente, mas
talvez antes de mais, sem ponderar a «funcionalidade» destes num quadro
tanto quanto possível completo da trama cultural desses tempos96 • Fun­
cionalidade, naturalmente, diversa e, mais naturalmente ainda, talvez, em
tantas ocasiões, contraditória...
94
BEJA, Fr. António de, Contra o Juízo dos Astrólogos (Lisboa, 1523), ed. de
Joaquim de Carvalho, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1943, pág. 22, 23; para a
interpretação do «movimento» (bibliográfico, divinatório, sensibilidades colectivas,
etc.) desencadeado pelo anúncio do dilúvio para 1524, v. NICCOLI, O., Profeti e
Popolo ... , ed. cit. pág. 185-216; li Diluvio dei 1524 fra Panico Col!ettivo e Irrisione in
AA. VV., Scienze, Credenze Occulte e Livel!i di Cultura, Firenze, Leo. S. Olschki,
1982, pág. 368-392; ZAMBELLI, Paola, Fine dei Mondo o lnizio dei/a Propaganda?
Astrologia, Filosofia della Storia e Propaganda Politico-Religiosa nel Dihattito sulla
Congiunzionedel 1524 inAA. VV., Scienze, CredenzeOcculte ... , ed. cit., pág. 291-368;
Motivi Pseudo-Gioachimiti nel Dibattito Italiano e Tedesco sulla Fine dei Mondo per
la Grande Congiunzione dei 1524 in AA VV., Il Profetismo Gioachimita tra Quattrocento
e Cinquecendo, ed. cit., pág. 273-285.
95 NICCOLI, O.• Profeti e Popo/o .... ed. cit., pág. 57, 71, 89.
96 Estes basilares princípios orientam, em geral, a bela obra Richard L. Kagan,
los Sueiios de lucrecia. Polítiça y Profecia en la Espaiia dei Siglo XVI, Madrid, Nerea,
1991.

93

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