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OUTONO DA MODERNIDADE
Sonia Siqueira1
A partir dos pressupostos conceituais da História, o Tempo a Mudança e o
Homem o cerne desta exposição reside no inserir uma instituição portuguesa – o
Santo Ofício – em um contexto cultural, o Iluminismo ou Ilustração. A realidade é
o século XVIII trazendo no seu bojo diferenças em relação aos séculos anteriores.
Não é o escopo realizar comparações nem acentuar contrastes entre o Tradicional
e o que se construía como Novo. Busca-se apenas mostrar como uma instituição
longeva como o Tribunal da Fé não pode ser historicamente visto como um todo
homogêneo nem como se teria tornado injustificável e injustificado por terem mudado
os valores. Como eles o Santo Ofício foi-se alterando gradativamente até ser negado
com a supressão de 1821 por não ser mais útil à sociedade que o criara. Cada época
tem a instituição que merece na medida em que consente na sua existência.
No século XVIII a Inquisição percorre um caminho de revisões críticas
desaguando nas mudanças possíveis. Incentivos houve, provindos de dimensões
maiores político-religiosas e econômico-sociais. Recriada foi a problemática do
isolacionismo geográfico e da especificidade da Reconquista. Como pano de fundo
uma atitude ibérica de desconforto com a perda da supremacia europeia de que
gozara Portugal durante a longa gesta dos Descobrimentos e de que desfrutara
a Espanha no seu Século de Ouro da cultura e civilização. Problemas residuais
aflorando na persistência da mística do Sebastianismo na história lusa e que
chegaram à Espanha ao fim do século XIX com as inquietações da Geração do 98.
Acentuara-se a necessidade de caminhar em consonância com outras áreas
europeias, principalmente em se alinhar aos rumos abertos pela cultura francesa.
Apareciam mudanças. Na Inglaterra os wihgs tinham já sido anulados em favor
da gentry e aconteciam reformas políticas significativas como a de Cromwel. Já
no início do século XVIII o barroco nas cortes dos príncipes alemães cedera lugar
a uma imitação do gosto francês com o rococó. Leibniz surgira como doutrinário
escrevendo alternativamente em latim e em francês. Na corte prussiana Frederico
II protegia filósofos franceses incluído Voltaire entre eles.
O Novo sim, se imiscuíra na vida ibérica, coado através de traços identitários
que lhe são próprios, levando a Península a integrar-se na rotulada Ilustração
Católica, também vigente na Áustria e na Itália. Configurada sobre as bases
espirituais e religiosas ali existentes não há fuga dos pontos básicos da racionalidade
antropocêntrica, com seus corolários de justiça, liberdade, felicidade e a crença
obsessiva no sapere aude através da educação.
Tão pouco se foge dos novos contornos do poder exacerbados pelo regalismo
a desaguar nas restrições ao poder da Santa Sé, mas essa Ilustração é moderada,
eivada de respeito pela Tradição, disposta a ajustar-se às solicitações novas. Sua
tônica são as acomodações, sua expressão as reformas, não a revolução. Avaliar
1
Livre-Docente em História Ibérica pela Universidade de São Paulo. Professora colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba.
2
As categorias modernas de expansão e desenvolvimento se inscrevem, para esses autores no
longínquo prolongamento desta transfiguração de imagem do mundo e do homem, obra decisiva
do século mecanicista.
3
CHAUNU, Pierre. La civilization de l’Europe des Lumières. Paris: Arthaud, 1971, passim.
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A partir da Crítica da Razão Pura define-se a impossibilidade da razão apreender tudo. Ciências,
Letras, História, passaram a constituir setores autônomos do conhecimento. KANT, Immanuel.
Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1994.
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Simplistas algumas posições explicativas do século XVIII que se atem exclusivamente à permanência
das estruturas dos modos de produção, da solidariedade aos gêneros de vida do passado, como a de
Pierre Goubert em seus textos da História econômica e social da França publicada em três volumes
por Ernest Labrousse e Fernand Braudel. Ou, no outro extremo, a de Lucien Goldmann, que em
seu Ilustración y sociedad actual, numa perspectiva sociológica, descobre as correspondências
entre as categorias essenciais da Ilustração e as estruturas características da economia de mercado.
LABROUSSE, Ernest & BRAUDEL, Fernand (dir.). Histoire économique et sociale de la France.
3 tomes. Paris: PUF, 1970-1979. GOLDMAN, Lucien. La ilustración y sociedad actual. Caracas:
Monte Ávila Editores, 1968.
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TORRE Y ROJO, José Francisco de Isla de la. Historia del famoso predicador Gerundio de
Campazas, alias Zotes. Primera parte. Madri: Imprenta de Gabriel Ramírez, 1758. __________.
Historia del famoso predicador Gerundio de Campazas, alias Zotes. segunda parte. Madri: s.r.,
1768.
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MONCADA, Luís Cabral de. Um iluminista português do século XVIII: Luís Antônio Verney.
Coimbra: s.r., 1941.
Em primeiro plano a rejeição que em vários graus o Santo Ofício foi alvo no
plano das críticas dos estrangeirados. Diogo de Mendonça, já em 1671, pensou na
sua reforma pelas mais rigorosas leis do Estado. Em 1745 o Núncio teria escrito ao
papa dando conta dos procedimentos inquisitoriais rotulando-os de “bárbaros pelo
escândalo que recebiam os estrangeiros todos e por lhe constar, sem dúvidas, que
padecia muita gente sem culpa capaz de morte sem outra qualquer representação”.
O Santo Ofício foi alvo de críticas acerbas.
Alinharam-se proposições dos escritores do tempo tendo em comum a
preocupação com a terra natal. As comparações com outros países, o desalento com
a realidade portuguesa duramente tratada têm origem na necessidade de reavivar
o orgulho pátrio. Muitos haviam sido os anos de isolamento de Portugal primeiro
por vontade própria seguindo a politica do Cardeal Infante, depois pelo domínio
filipino que privara o reino de corte própria e da circulação de embaixadores pela
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SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Porto: Domingos
Barreira, s.d. [1760].
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VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar: para ser util à Republica, e à Igreja:
proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal. 2 t. Valensa: na oficina de Antonio Balle, 1746.
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OLIVEIRA, Francisco Xavier de [Cavaleiro de Oliveira]. Cartas familiares, históricas, políticas e
críticas: discursos sérios e jocosos. 3 vols. Lisboa: Typ. de Silva, 1855 [reimp. da edição de 1741].
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OLIVEIRA, Francisco Xavier de [Cavaleiro de Oliveira]. Oeuvres mêlées ou discours historiques,
politiques, moraux, littéraires, & critiques: publiés dans les mois de Janvier, Fevrier, Mars & Avril
[Mai, Juin, Juillet & Aout; Septembre, Octobre, Novembre & Décembre] MDCCLI, sous le titre
d’Amusement periodique. 3 vols. Londres: s.r., 1751.
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Luís Antônio Verney nasceu em Lisboa em 1718 e morreu em Roma em 1792. Sua formação foi
jesuítica no Colégio de Santo Antão, completada pelos oratorianos com quem estudou Filosofia nos
Estudos Menores. Arcediago de Évora. Publicou longa série de materiais didáticos para o ensino
médio e superior. Cavaleiro da Ordem de Cristo. Secretario do embaixador português em Roma
que depois o mandou prender, tirou-lhe os bens e o exilou para Pisa entre 1765-66. Seus irmãos
Diogo e Henriques foram Familiares do Santo Ofício. Cursou a Universidade de Évora por 7 anos
onde obteve o grau de Mestre em Artes. Em 1736 foi para Roma de onde nunca mais voltou.
Depois da morte de D. João V, Verney apresentou uma Relação das perseguições e ingratidões
que sofrera por parte dos ex-dirigentes do reino. Recebeu uma pensão anual e foi elevado a sócio
correspondente da Academia Real das Ciências e a Deputado honorário da Mesa da Consciência e
Ordens.
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Apud MONCADA, Um iluminista português...
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“Em primeiro ponto é preciso conservar aquele Tribunal. Não porque eu o creia necessário ou útil,
que pelo contrário o vejo como coisa mais inútil e prejudicial mas porque supostos os prejuízos da
Nação que quer aquele espantalho”.
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Educado pelos jesuítas. Feito Cavaleiro da Ordem de Cristo. Renunciou a sua origem social e seu
título desejando ser apenas um burguês europeu. Foi ocupar o posto de secretário da embaixada
portuguesa em Viena no lugar deixado pela morte de seu pai. Viena era no tempo a capital da
frivolidade e da galanteria. Entregou-se a uma vida de aventuras e intrigas burocráticas o que
causou demissão do cargo.. Através de leituras francesas e inglesas encheu-se de dúvidas sobre
casos milagrosos, os frades mundanizados, as superstições portuguesas. Reflexo disto estão nas
Cartas familiares escritas em italiano e francês, editadas na Holanda entre 1741 e 1742 com temas
variados tratados com fina ironia. Em 1751 converteu-se ao anglicanismo e passou a viver da
publicação mensal em Londres do Amusement Périodique.
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OLIVEIRA, Francisco Xavier de [Cavaleiro de Oliveira]. Discours pathétique au sujet des calamités
présentes, arrivées en Portugal. Adressé a mes compatriotes et en particulier a Sa Majesté très-fidéle
Joseph I. Roi de Portugal. Porto: Typographia Occidental, 1893 [1756].
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OLIVEIRA, Francisco Xavier de [Cavaleiro de Oliveira]. Le Chevalier d’Oliveyra brulé en effigie
comme hérétique: Comment et Pourquoi? Anecdotes et Réflexions sur ce Sujet, données au Public
par lui-même. A Londres: s.r., 1762.
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OLIVEIRA, Le Chevalier d’Oliveyra brulé...
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OLIVEIRA, Le Chevalier d’Oliveyra brulé...
Defende o fim dos Autos de Fé, mas preocupa-se com a utilidade da Inquisição:
[...] não convem que por esse modo ficasse a Inquisição
sem exercício e o povo sem esse divertimento a que
chamam triunfo da fé. Respondo que nunca faltaria aos
Inquisidores o que fazer mais em que se ocupar porque
ainda que se lhe tirasse esse ramo que é o mais pingue
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Nasceu em Lisboa aos 23 de janeiro de 1662 e morreu em Paris aos 9 de outubro de 1749. Filho de
D. Antônio Álvaro da Cunha e de D. Maria Manuel de Vilhena. Bacharel em Cânones por Coimbra
em 1684 licenciado em 1685. Começou na magistratura como Desembargador da Relação do Porto
(1685) e da Casa da Suplicação (1688). Em 1695 abraçou a carreira diplomática como enviado
extraordinário para Londres onde exerceu a função de 1697 a 1712. Em 1728 foi enviado por
D. João V como plenipotenciário aos Estados Gerais. Entre suas obras mais importantes constam
Memória da paz de Utrecht, Tradução e Paráfrases dos Tratados de Paz e Comércio celebrados em
Utrecht Badar e Anvers, Instruções para Marco Antonio de Azevedo Coutinho.
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CUNHA, D. Luís da. Testamento político ou carta escrita ao Senhor D. José I antes do seu governo,
Lisboa, 1820. Republicado com introdução e notas de M. Mendes. Lisboa: Seara Nova, 1943.
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CUNHA, Testamento político...
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CUNHA, Testamento político...
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CUNHA, Testamento político...
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Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. Maço 160, D. 3077, 1785.
Importa saber quanto e como Azeredo Coutinho se deixou penetrar pelas ideias
e doutrinas do Iluminismo, bem como seu posicionamento mental diante de traços
característicos da Ilustração como o naturalismo, o jusnaturalismo, o cientismo, o
liberalismo econômico fisiocrático, o humanitarismo, um certo intelectualismo ético
e principalmente o pedagogismo. Exemplificações são possíveis ao detectar sua
posição mental diante da escravidão dos negros e sua ação reformista da instrução
ao criar o Seminário de Olinda. Exemplos significativos por dizerem respeito ao
Brasil.
O último Inquisidor nasceu no Brasil onde viveu parte de sua vida. Aqui esteve
ligado à elite cujo poder se assentava na posse da terra, no cultivo da cana com
base no trabalho escravo. A Colônia tinha ao tempo papel importante na produção
e comercio do açúcar na região de Campos que sucedera ao Nordeste. Suas obras
mais expressivas são justamente aquelas que refletem sua condição de filho da
Colônia, sua preocupação com sua economia. São elas: Memória sobre o preço
do açúcar (Lisboa 1791), Ensaio econômico sobre o comercio de Portugal e suas
colônias (Lisboa, 1794), Discurso sobre o estado atual das minas no Brasil26 (Lisboa,
1804), Análise sobre a justiça do comercio do resgate dos escravos da costa d’África
(Lisboa 1808), Concordância das leis de Portugal e das Bulas Pontifícias das quais
umas permitem a escravidão dos pretos d’África e outras proíbem a escravidão dos
índios do Brasil (Lisboa, 1808), Epítome das vantagens que Portugal pode tirar
das suas colônias do Brasil para liberdade do comercio do sal naquele continente.
Sua produção literária concentra-se n o econômico, deixando grandes vazios em
possíveis escritos sobre a Igreja ou a espiritualidade cristã ou mesmo o Santo Ofício,
temas que não repercutiam na sua sensibilidade.
26
COUTINHO, José Joaquim da Cunha de Azeredo. Discurso sobre o estado actual das minas do
Brasil, dividido em quatro capitulos. Lisboa: Impresam Regia, 1804.
27
COUTINHO, Discurso sobre o estado actual..., p. 04.
28
COUTINHO, Discurso sobre o estado actual..., p. 19.
29
COUTINHO, Discurso sobre o estado actual..., p. 09.
30
“ANALISE sobre a justiça do comercio do resgate dos escravos da costa d’Africa”. Lisboa: na
Oficina de João Rodrigues Neves, 1808. Apud AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São
Paulo: IBGE, 1943, Prefácio, p. VIII.
31
AZEVEDO, A cultura brasileira, p. 325.
32
Cf. DIAS, Maria Odila da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 278, jan./mar. 1978, p. 105-170.
33
SILVA, J. M. Pereira da. História do Império Brasileiro. Rio de Janeiro: s.r., 1890, p. III.
34
SILVA, História do Império Brasileiro, p. 256.
RESUMO ABSTRACT
A partir dos pressupostos conceituais da From History’s conceptual assumptions – Time,
História, o Tempo, a Mudança e o Homem o Change and Man, the core of this exposition lays
cerne desta exposição reside no inserir uma on inserting a Portuguese institution – the Holy
instituição portuguesa – o Santo Ofício – em um Office – in a cultural context, the Illuminism or
contexto cultural, o Iluminismo ou Ilustração. No Ilustration. On XVIII century, Inquisition goes
século XVIII a Inquisição percorre um caminho through a critical review path, draining on feasible
de revisões críticas desaguando nas mudanças changes. Incentives did existed coming from
possíveis. Incentivos houve, provindos de higher political-religious and social-economical
dimensões maiores político-religiosas e dimensions. Geographical isolationism and
econômico-sociais. Recriada foi a problemática Reconquer problematics so were recreated. This
do isolacionismo geográfico e da especificidade article contextualize the inquisitor’s historical
da Reconquista. Este artigo contextualiza a figura figure, and the same inquisition on the mentioned
histórica do inquisidor e a própria inquisição no scenario.
cenário citado.
Keywords: Inquisition; Reconquest; Modernity.
Palavras Chave: Inquisição; Reconquista;
Modernidade.
Artigo recebido em 25 abr. 2014.
Aprovado em 12 mai. 2014.