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Globalizando religiões indianas e localismos do Sudeste Asiático:

Incentivos para a adoção do Budismo e do Bramanismo no Sudeste da Ásia


do primeiro milênio d.C.1
Stephen A. Murphy 2 e H. Leedom Lefferts3

Introdução

Os sistemas religiosos e econômicos originários da Índia e da China foram fundamentais na


formação e definição das culturas locais do Sudeste Asiático. Isso foi reconhecido pelos
primeiros exploradores europeus e resultou na designação inicial da região como "Indochina" -
meio caminho entre e culturalmente parte de ambas as metrópoles maiores e mais populares
ao norte e ao oeste. No entanto, implantar 'Indo-China' impõe uma narrativa sobre a
compreensão da região: que o Sudeste Asiático não está apenas a meio caminho
geograficamente entre estes dois importantes locais, mas que também pode ser entendido
culturalmente através da compreensão da Índia ou China e, portanto, foi e é em grande parte
refletido por essas entidades maiores.

Somado ao impacto da designação ‘Indochina’, as nações do Sudeste Asiático, desde a época de


sua colonização - em parte como uma resposta aos colonizadores - enfatizaram suas origens
religiosas como essenciais para suas identidades. Na verdade, a religião não é tanto o pano de
fundo, mas o primeiro plano nas declarações dessas nações sobre si mesmas no cenário
mundial. Esse recurso à religião para fundamentar a nacionalidade coloca restrições
injustificadas às complexidades por trás da compreensão de sua evolução.

O recurso à religião como uma declaração central de identidade, bem como nossa compreensão
do registro arqueológico "objetivo", colocam problemas na identificação e descrição da
narrativa mais razoável para dar sentido às aparências, especialmente de religiões indianas ao
longo do tempo nas vidas dos asiáticos do Sudeste. Em contraste, a aparente 'colonização' e
ocupação milenar do que hoje é o norte do Vietnã pelos chineses parecem nos permitir entender
mais facilmente a natureza da evolução da cultura vietnamita contemporânea e da religião que
vemos hoje.

'Orientações' teóricas

A introdução acima levanta a questão de qual é a narrativa mais persuasiva e razoável para a
expansão das religiões indianas no Sudeste da Ásia. Como convincentemente foi apontado por
Knappett (neste volume), é necessária uma teoria que incorpore dinamicamente espaço e
tempo, geografia e história. A seu ver, a globalização é um fenômeno em macro escala com
fatores como frequência, força e conteúdo das conectividades atuando como algumas das suas
características mais acentuadas. Esses fatores fornecem indicadores úteis em nossa exploração
da natureza das interações entre o Sul e o Sudeste Asiático. O registro arqueológico datado do

1
Tradução para usos didáticos feita pelo LEHAs/UFSC do texto original: MURPHY, S. A.; LEFFERTS, H. L.
Globalizing Indian religions and Southeast Asian localism. In: HODOS, Tamar (ed.). The Routledge
Handbook of Archaeology and Globalization. New York: Routledge, 2017.
2
Curador do Southeast Asia Asian Civilisations Museum, Singapora.
3
Pesquisador visitante no Carolina Asia Center University of North Carolina Chapel Hill, NC USA.

1
início até meados do primeiro milênio d.C. fornece um inventário complexo de contatos e a troca
de bens e ideias no que O.W. Wolters chamou de "oceano único", isto é, o oceano "Índico"
(Wolters, 1999: 38). Monica Smith (1999) mostrou que nem os governos nativos nem os chefes
do Sudeste Asiático precisavam de bens materiais nem de ideias uns dos outros no início da Era
Comum. Materiais das florestas e do interior do Sudeste Asiático, que mais tarde se tornariam
importantes para o comércio indiano, podiam ser obtidos no Subcontinente; além disso, a
política indiana ainda não tinha acumulado a coerência econômica, administrativa e religiosa
para se envolver em relações com um mundo maior a leste.

Em outras palavras, as diferenças entre o Sudeste Asiático e o Subcontinente Indiano não tinham
se tornado tão grandes a ponto de transformarem os contatos - que devem ter ocorrido, embora
por barcos na costa – de forma aparente no registro arqueológico. Pode ter existido um "oceano
único", mas unidades essencialmente indiferenciadas se comunicavam localmente em torno
dele.

Assim, é necessária uma teoria que explique o surgimento da diferenciação ao mesmo tempo
em que traz questões específicas sobre a direção, frequência, força e conteúdo das interações
(Knappett, neste volume). Empregar esses conceitos permite uma sensibilidade para lacunas no
registro arqueológico, pois ajuda a explicar os tipos peculiares de interações - incentivos - que
teriam ocorrido que poderiam não estar refletidos no registro, mas eram partes essenciais dessa
comunicação transoceânica. Destes incentivos, religião e comércio desempenharam papéis
formadores.

A teoria da globalização encoraja esse questionamento, pois coloca as questões de contato e


troca dentro de uma estrutura mais ampla. Globalização não significa necessariamente 'todo o
planeta'; ela ‘Descreve os resultados globais da conectividade humana que [...] marcou as
sociedades humanas por milênios' (Robertson, neste volume). O Sudeste da Ásia, em sua
localização geográfica crucial no sistema continental euro-africano-asiático e no "oceano único"
englobado, tem sido formador na canalização, bem como proporcionando oportunidades para
o comércio global. Embora a península e as ilhas do Sudeste Asiático possam parecer barreiras
ao comércio, ao contrário, sua localização, recursos e pessoas proporcionam destinos e postos
intermediários atraentes. O Sudeste Asiático foi denominado como "encruzilhada"; por isso,
significa não apenas um lugar "para cruzar ou ao redor", mas também um provedor de
"resultados de conectividade humana" significativos - localismos - em seus próprios termos.
Enquanto isso, as políticas urbanas emergentes do Sudeste Asiático tornaram-se maduras para
os desenvolvimentos ideológicos e administrativos proporcionados pelo contato crescente com
as tradições complexas e multivocais do Subcontinente. Portanto, o uso do termo "glocalização"
- significando o emprego criativo pelos habitantes locais de ideias e aspectos da cultura material
que chegam "globalmente" - pode ser apropriado.

Contatos cada vez mais "densos" entre a Índia e o Sudeste Asiático também trouxeram um fluxo
bidirecional cada vez mais forte de bens materiais e ideias religiosas entre as duas regiões, por
meio da gênese de "relações de causalidade mútua com amplificação de desvio" (Maruyama,
1963). As importações de uma ampla variedade de sistemas religiosos do Sul da Ásia tornaram-
se extremamente importantes para a posterior exploração dos bens necessários para perpetuar
e expandir esse comércio; quanto mais o comércio se expande, mais intensas são as conexões
religiosas entre o Subcontinente e o Sudeste Asiático. Por exemplo, Ray (2014) aponta a
natureza multívoca das conexões Sul-Sudeste Asiático, enfatizando o comércio, bem como a
religião, porque o primeiro é mais visível na paisagem arqueológica.

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No entanto, nem todas as culturas do Sudeste Asiático estavam igualmente ansiosas pelo avanço
dessas novas ideias. Ocorreram respostas variadas aos estímulos econômicos e religiosos. Esse
fenômeno reflete a irregularidade inerente ao processo de globalização, conforme destacado
por Jennings (neste volume). Smith (1999: 19), por exemplo, postula uma configuração baseada
na distância da Índia: os sistemas mais próximos ao coração do norte da Índia podem ter sido
expostos a laços mais fortes levando a uma afiliação mais próxima, enquanto aqueles mais
distantes podem ter empregado símbolos indianos para fortalecer a soberania local, e os mais
distantes ainda podem ter usado esses símbolos para equilibrar a pressão crescente da China
por uma afiliação mais estreita.

As hipóteses levantadas na formulação de Smith e as oito tendências de globalização


identificadas por Jennings (neste volume) levam às explorações necessárias na dinâmica das
relações entre as culturas doadora e receptora que se tornam evidentes nos "glocalismos".
Wolters (1999) e Ray (2014) mostram que as influências da Índia não foram hegemônicas. Ray
observa que a Índia possuía uma "tradição escrita compartilhada [...] que se estendeu não
apenas pelo Sul da Ásia, mas também pelo Oceano Índico [...] que incluiu brâmanes [...], ascetas
budistas e jainistas, bem como navegadores e grupos de mercadores e artesãos "(2014: 148).
Wolters aponta para o oportunismo dos que deixaram o Subcontinente e as doutrinas e rituais
que propunham. Essas influências encontraram oportunidades e restrições em ambientes
emergentes locais (neste contexto, o Camboja) de "lideranças políticas" combinada com uma
consciência local de capacidades diferenciais de realização, organizada sob a alcunha de
"homens de aventuras". A presença de inscrições Khmer do século VII d.C. com uma linguagem
"refletindo a doutrina Pāśupata" permite que Wolters proponha a presença desses ascetas
"admiráveis [Śaivite], cobertos de cinzas", em comitivas reais Khmer. Sua relativa indiferença às
injunções brahmânicas indianas com relação aos sacrifícios védicos e viagens através dos
oceanos, juntamente com as crenças de que 'a graça de Śiva prevaleceu sobre a lei do karma',
Wolters propõe, teria feito de um soberano Khmer 'o principal adorador de Śiva' (Wolters 1999:
429 –33). Exploraremos mais adiante esse exemplo e suas implicações no final deste capítulo.

A arqueologia está exclusivamente disposta a explorar a dinâmica da "glocalização", os caprichos


da globalização em um ambiente de múltiplas direcionalidades e forças de contatos com
frequência variável e conteúdo multivocal. A arqueologia do Sudeste Asiático oferece um
excelente panorama para mapear a glocalização em seus meandros e implicações.

Urbanismo como ferramenta de diagnóstico

A urbanização emergente fornece indicadores arqueológicos sutis do contato cada vez mais
intenso entre a Índia e o Sudeste Asiático em meados do primeiro milênio d.C. Entidades
políticas surgiram em torno de assentamentos com fossos e/ou cidades muradas. As elites do
Sudeste Asiático buscaram formas novas e sofisticadas de legitimar seu governo, abordadas pela
chegada de adeptos religiosos budistas e brâmanes impulsionados pela busca por recursos e
pela coerência administrativa da política indiana. Essa troca deu a esses recém-chegados
oportunidades de receber patrocínio das elites locais em correspondência com seu apoio.
Estruturas rituais budistas e brâmanes forneceram apoio mutuamente reforçado para elevar os
governantes locais a um status semidivino. O Bramanismo forneceu crenças Śivaitas e a
construção de complexos de templos para apresentar e reapresentar microcosmos dos reinos
celestiais, permitindo que os governantes alegassem que governavam por decreto divino.
Conceitos budistas como o bodhisattva (Buda do devir), o cakravartin (monarca budista

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universal) e o dhammaraja (o rei que governa de acordo com os princípios budistas) forneceram
veículos para o acúmulo real de mérito e poder.

Os portadores dessas religiões trouxeram as línguas escritas em Pali e Sânscrito e códigos éticos
e morais mais centralizados. Sheldon Pollock (2006) demonstrou que, no primeiro milênio d.C.,
o Sânscrito foi transformado de uma linguagem puramente sagrada para uma linguagem mais
ampla, particularmente no que diz respeito a questões reais e políticas. Fornecia expressão não
apenas para o ritual e a religião, mas também para o louvor da realeza e da autoridade política.
Os asiáticos do Sudeste rapidamente adotaram essa cultura cosmopolita letrada e as novas
visões políticas que ela encorajou.

Simultaneamente, novos programas de arquitetura, planejamento urbano e escultura religiosa


monumental em pedra e bronze chegaram. Um novo vocabulário de simbolismo religioso e
arquitetura sobrepõe-se a mais símbolos locais, permitindo que as elites promovam seu domínio
por meio da criação de méritos e patrocínio de programas de construção religiosa em grande
escala, incluindo estupas, complexos de mosteiros e imagens religiosas.

Eticamente, essas religiões forneceram aos governantes um senso de supremacia moral e


teológica sobre as políticas vizinhas - como elaborou Wolters (1999), criando mundos hindus na
paisagem do Sudeste Asiático - ao mesmo tempo em que proporcionavam às massas novos
mecanismos para se alinhar com a realeza e a salvação. Juntos, esses elementos levaram a uma
mudança cultural significativa. De muitas maneiras, essas novas religiões agiram como
catalisadores para o surgimento dos primeiros estados da região.

‘Indianização’ e ‘indigenização’

Nas últimas quatro a cinco décadas, as opiniões de estudiosos como Georges Coedès (1968) e
Ramesh Majumdar (1955) sobre ondas sucessivas de colonização indiana e a "civilização" dos
habitantes locais tornaram-se desacreditadas; interpretações arqueológicas recentes apontam
para a exportação seletiva de conceitos indianos e adaptações diferenciadas pelos asiáticos do
Sudeste. Bentley (2005: 4-5) fala da globalização em termos de processos históricos de grande
escala, afirmando que deve ser dada atenção especial a como os atores humanos locais
buscaram formas de aproveitar as oportunidades apresentadas por tal fenômeno.

A partir do início dos anos 1950, o debate acadêmico mudou no sentido de ver os membros das
sociedades do Sudeste Asiático como agentes ativos; as elites locais buscaram conscientemente
os conceitos indianos para seus próprios fins ideológicos e políticos. Paul Mus (1975), Jacob van
Leur (1955) e outros foram vozes proeminentes nesta mudança. Essa mudança estava ligada à
evolução do cenário político pós-colonial do Sudeste Asiático, coincidindo aproximadamente
com a independência das colônias francesa, britânica e holandesa. Victor Lieberman (2003: 1–
20) observou tendências correspondentes em relação aos estudos na história do Sudeste
Asiático, sugerindo que um processo semelhante ocorreu em todas as ciências sociais.

Desde essa reconceituação, os estudiosos argumentaram que o processo pelo qual os conceitos,
crenças e ideias indianas foram amalgamados no Sudeste Asiático estava inextricavelmente
ligado à urbanização, ao comércio marítimo e ao desenvolvimento de uma sociedade complexa.
À medida que as sociedades evoluíram ao longo da pré-história da região, os assentamentos se
tornaram maiores, a administração mais coerente e as redes de comércio mais extensas,
resultando em um contato e conexões significativamente maiores com a Índia e a China.

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Consequentemente, resultou a exposição à novas ideias, conceitos, tecnologias e artes. A
globalização e a dinâmica das culturas locais, não a colonização, foram os fatores determinantes.

Para fundamentar este modelo, os arqueólogos tiveram que encontrar evidências de sociedades
suficientemente avançadas (ou seja, culturas da era dos metais, de preferência uma Idade do
Ferro bem desenvolvida) na região. Essa necessidade, bem como as tentativas de ilustrar redes
de comércio em larga escala com a Índia e a China, impulsionou muitas pesquisas arqueológicas
na região a partir da década de 1960.

A mudança em ver a Indianização ocorrendo devido ao ímpeto dos indianos em direção a colocar
a iniciativa nas mãos dos asiáticos do Sudeste foi referida como ‘indigenização’ ou ‘localização’
e foi resumida por David Chandler e Ian Mabbett da seguinte forma:
É fácil encontrar evidências de que as práticas nativas em todas as esferas da vida persistiram sem
influência, e que as formas aparentemente indianas eram na verdade ações locais disfarçadas - deuses
locais com nomes indígenas, motivos arquitetônicos locais ou lendas locais com roupagens indianas
superiores (1975: VIII).

Gosline (2006) definiu o processo de indigenização como um aspecto da socialização. Um


processo semelhante ocorreu dentro da própria Índia. Com o tempo, cultos e divindades locais
foram apropriados tanto pelo Bramanismo quanto pelo Budismo. Pollock (2006: 530–32)
observou que o processo de sanscritização na Índia foi contemporâneo ao que ocorria no
Sudeste da Ásia. A capacidade dessas religiões de se fundir com as divindades e práticas locais
explica de certa forma como elas poderiam replicar com sucesso esse processo em um contexto
do Sudeste Asiático.

Ao mesmo tempo, a indianização não era um fenômeno uniforme (Smith, 1999). As influências
globalizantes foram sentidas em diferentes graus em diferentes locais ao longo da longue durée
(Braudel 1976). Além disso, nunca existiu uma cultura indiana homogênea abrangente. As
sociedades indianas tinham, e ainda têm, extensas variações regionais em termos de línguas,
culturas, histórias, religiões e tradições. Influências chegaram ao Sudeste da Ásia de vários
braseiros indianos ao longo do primeiro milênio. Embora possamos propor alguns pontos fixos
de referência, como os Guptas no norte da Índia, os Pallavas no sul da Índia e, a partir do século
VIII em diante, os Pala no norte da Índia com, em particular, o sítio de Nalanda, tentar explicar
as mudanças no Sudeste Asiático sob um único conceito abrangente de indianização, desmente
sua complexidade.

A discussão a seguir destaca quatro regiões em momentos específicos para salientar os


processos de adoção seletiva, socialização e o impacto geral da globalização nas culturas do
Sudeste Asiático. Os Pyu em Mianmar, Dvaravati na Tailândia, a península tailandesa-malaia e o
Camboja pré-angkoriano fornecem exemplos claros da adoção do Budismo e/ou Bramanismo
de meados do primeiro milênio em diante. O Budismo e o Bramanismo, nunca mutuamente
exclusivos, colocam essas sociedades em novas trajetórias, cujos efeitos permanecem em
movimento até hoje.

Budismo patrocinado pelo Estado

Quer seja a doação do rei Bimbisara do primeiro mosteiro em Veluvana durante a vida de Buda
ou a transformação do imperador Asoka dois séculos depois, a conversão dos governantes e seu
subsequente patrocínio ao Budismo tem uma história destacada. Por meio dessas conversões,

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os governantes passaram a incorporar conceitos como o dharmaraja (o rei que governa de
acordo com os ensinamentos do Buda), o cakravartin (monarca budista universal) e o
bodhisattva (o Buda do devir). Quando o Budismo chegou ao Sudeste da Ásia, os governantes
locais encontraram uma religião que não só serviria às suas necessidades espirituais, mas
também, e mais importante, facilitaria muito as suas aspirações políticas. Ao longo de
aproximadamente dois séculos, formas de Budismo patrocinado pelo estado surgiram com
governantes e elites locais monopolizando seu patrocínio e apoio à religião, expresso por meio
da produção de arte e arquitetura religiosas. Algumas das primeiras evidências para a adoção
do Budismo patrocinado pelo estado no Sudeste da Ásia vêm da cultura Pyu na atual Mianmar
e da cultura Dvaravati no centro da Tailândia. Ambas desenvolveram formas de Budismo estatal
que indicam como a religião foi moldada e, por sua vez, remodelada pelas culturas que
encontrou.

Mapa do Sudeste Asiático mostrando os principais locais discutidos no texto.

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Os Pyu são a cultura histórica mais antiga identificada no centro de Mianmar. Os textos chineses
que datam do século IV d.C. os nomeiam; no entanto, o historiador britânico Gordon Luce
preferiu chamá-los de "Tircul", o termo pelo qual eles se referiam (1985: 47). Os Pyu foram os
precursores dos birmaneses contemporâneos e do reino de Bagan. Eles eram o grupo étnico
dominante no centro de Mianmar, enquanto o sul de Mianmar, bem como Dvaravati no centro
da Tailândia, eram os domínios do Mon. A evidência arqueológica dos Pyu vem de três locais
principais: Halin, Srikestra e Beikthano. Uma das características distintivas da cultura Pyu foi a
adoção do Budismo e o desenvolvimento de arquitetura de tijolos em grande escala e escultura
religiosa baseada em centros urbanos com sistemas de irrigação sofisticados.

'Dvaravati' refere-se à mais antiga proto-histórica - cultura histórica que floresceu na Tailândia
central e nordeste entre os séculos V a XI d.C. Seu surgimento estava inextricavelmente ligado
nos debates acadêmicos à chegada e adoção indiscriminada do Budismo pelas elites locais. No
entanto, esse ponto de vista pode precisar ser moderado, pois Revire (2016) mostrou que eles
também patrocinaram o Bramanismo em vários graus. Dito isso, Dvaravati produziu algumas das
melhores esculturas budistas do período, adaptando os modos indianos de representação e
infundindo-os com uma estética local, incorporando a essência do "global" indiano combinado
com o local.

Imagens de Buda. Esquerda: Imagem do Buda sentado em alto relevo, c. V d.C., no estilo Gupta, nas cavernas de Ajanta, Índia.
Direita: estela budista do século VII ao VIII d.C. de Nakhon Pathom mostrando o Buda sentado em vitarka mudrā.

Beikthano e Srikestra

O antigo assentamento de Beikthano está localizado no vale Yin, no centro de Mianmar, ao norte
da moderna vila de Kokkogwa, distrito de Taungdwingyi, na região de Maguai. Ele está situado
entre uma série de riachos, todos os quais fluem do oeste para o Rio Irauádi, tornando a região
circundante ideal para o cultivo de arroz. O local é aproximadamente quadrado e cercado por
paredes de tijolos queimados, circundando uma área de 8,81 km2. Numerosas estruturas de
tijolos estão localizadas aqui, incluindo um complexo de mosteiro (KKG2), uma grande estupa
(KKG3) e um palácio (KKG5). Ao contrário do local de Srikestra, nenhuma tradição escultórica
budista significativa foi identificada em Beikthano, levantando a possibilidade de que o Budismo
praticado aqui se concentrasse mais em rituais anicônicos, como a adoração da estupa. No

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entanto, pode ser que, enquanto a arquitetura budista se desenvolveu cedo, oficinas de
escultura em pedra ou bronze foram estabelecidas mais tarde. Em 2003, as escavações no local
BTO-13 revelaram uma pequena imagem de Buda em bronze (H. 13 cm) datada estilisticamente
do quinto ao sexto séculos. Em comparação, esta descoberta e os numerosos exemplos de
imagens de Buda do local de Sriksetra sugerem que a adoração de imagens de Buda fazia parte
da prática religiosa do local.

Figura 1. Mahācetiya ou ‘Grande Estupa’ na Índia e Mianmar: no sentido horário a partir do canto superior esquerdo: a estupa
Damek, do início do século VI d.C., em Sarnath, Índia; a estupa de Bawbawgyi do século VI d.C., em Sriksetra, Mianmar; restos
remanescentes da estupa KKG3, entre os séculos IV ou V, em Beikthano, Mianmar.

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Algumas das evidências mais substanciais do Budismo favorecido pelo estado em Beikthano
estão presentes na tríade arquitetônica de monumentos KKG2, KKG3 e KKG4. Janice Stargardt
(1990: 190–204) mostra que eles representam um complexo monástico de escala considerável
localizado no coração do assentamento urbano. O KKG2 é um edifício retangular, quase
simétrico, com uma câmara de entrada no meio da fachada nascente. O edifício está dividido
em oito celas separadas com um corredor de acesso ao longo do eixo no lado oriental (ver
desenho isométrico em Stargardt 1990: 194). Aung-Thaw observou que este projeto
arquitetônico, em que um grupo de pequenas celas é colocado fora de um corredor adjacente,
segue de perto aquele dos mosteiros budistas escavados em Nagarjunakonda no sul da Índia,
especificamente no local 20 (Aung-Thaw 1968: 16). Stargardt concorda que o local 20 em
Nagarjunakonda foi o protótipo mais provável para KKG2.

Aproximadamente 40 m a leste de KKG2 fica KKG3 e KKG4. KKG3 representa os restos de uma
estupa, enquanto KKG4 pode ser um santuário associado (Figura 1). KKG3 é uma grande
estrutura cilíndrica que sobrevive hoje a uma altura de cerca de 3 metros e possuindo um
diâmetro de aproximadamente 9 metros. Quatro plataformas salientes quadradas (ayaka) são
adjacentes a KKG3 nos pontos cardeais; Brown observa que essa formação é característica dos
sítios de Andhra no sul da Índia, como Amaravati, Nagarjunakonda ou, talvez, locais no Sri Lanka
(2001: 35). KKG3 e KKG4 são circundados por duas grandes paredes circulares, dando a todo o
monumento um diâmetro de 42 metros. Essas paredes criam um corredor, o que pode ter
facilitado o ritual de circunvolução (pradakshina). Stargardt (1990: 204–05) argumenta que este
monumento foi uma tentativa de criar uma mahācetiya ou ‘Grande Estupa’. A adoração da
estupa era parte integrante da prática religiosa budista desde o início de sua história.

Esta tríade estrutural está localizada no coração do assentamento Beikthano. A escala da


construção das estruturas e sua proximidade com o palácio (KKG5) sugere ligações entre os dois;
é provável que o complexo do mosteiro tenha sido construído sob o patrocínio real. Apenas a
elite governante tinha mão de obra e recursos para empreender um programa de construção
em larga escala. Ao apoiar visivelmente o Budismo, este complexo não apenas anunciava a
generosidade e o poder da elite governante por meio do controle do trabalho e dos recursos,
mas também fornecia um palco no qual a elite poderia promover sua superioridade espiritual
por meio de rituais e oferendas. Colaborativamente, apoiando os escalões superiores da
sociedade, os monges se viram donos de um complexo de mosteiro substancial para promover
suas ambições espirituais e seculares.

Em Sriksetra, processos semelhantes ocorreram. Localizado na moderna cidade de Pyay, região


de Bago, na Birmânia Central e a 6 km a oeste do rio Irauádi, é o maior assentamento Pyu
conhecido em Mianmar. Ao contrário de Beikthano, suas paredes são circulares com uma
circunferência de aproximadamente 14,6 km, abrangendo cerca de 30 km2. Cinco urnas
funerárias de pedra com inscrições fornecem datas entre os séculos VII a VIII; quatro carregam
o nome de um único indivíduo em Pyu em escrita Brahmi interlinear.

Tal como acontece com Beikthano, as evidências de um grande palácio perto do centro do
povoado vieram à luz; a estupa Bawbaygyi, com 46 m de altura, reflete a prática de construção
de arquitetura budista monumental (Figura 1). Paralelos arquitetônicos na Índia podem ser
vistos em monumentos como a estupa de Demek em Sarnath. Tal como acontece com a estupa
KKG3 em Beikthano, a escala do Bawbaygyi apoia o argumento de que funcionou como um
mahācetiya. No entanto, ao contrário de Beikthano, Sriksetra fornece ampla evidência de
sobrevivência da cultura material budista.

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Algumas das evidências mais claras do apoio real direto ao Budismo em Sriksetra vem de uma
imagem de Buda sem cabeça e um relicário. A imagem de Buda está sentada com as pernas
cruzadas em um trono, as mãos em dhyāni mudrā, indicando meditação. Estilisticamente datado
do século VII, uma inscrição em Pyu e Sânscrito está diretamente abaixo das pernas do Buda.
Este afirma que a imagem foi doada pelo Príncipe Jayacandravarman, expressando seu desejo
de que a adesão aos ensinamentos de Buda continue até o fim do mundo.

Outra associação de nomes reais e iconografia budista vem de um relicário de prata dourada
encontrado em 1926 no monte Khin Ba. Quando Charles Duroiselle (1930: 171-81) inspecionou
o monte, ele descobriu os restos de uma estupa de tijolos com uma câmara de relíquia intacta
coberta por uma grande laje de pedra com uma estupa esculpida em relevo. A caixa do relicário
de prata foi colada em uma câmara de aproximadamente 1 m3. A caixa, de 66 cm de altura e
aproximadamente 37 cm de diâmetro, tem imagens de Buda em alto relevo representadas em
seus quatro lados, cada imagem ladeada por imagens menores de discípulos. Os nomes dos
quatro Budas estão inscritos em Pyu e Pali na borda superior do artefato, enquanto os nomes
dos discípulos e doadores estão localizados na parte inferior. Os nomes dos doadores, Śrī
Prabhuvarman e Śrī Prabhudevi, estão em sânscrito. O sufixo ‘-varman’, adotado em todo o
Sudeste Asiático, denota realeza de origem no sul da Índia. Śrī Prabhudevi provavelmente se
refere à Rainha de Śrī Prabhuvarman; ‘-Devi’ é a raiz sânscrita para o aspecto feminino divino.
Guy levanta a possibilidade de que o uso de ‘-varman’ tanto na caixa do relicário quanto na
imagem do Buda sem cabeça pode refletir a continuidade dinástica entre os respectivos
doadores (1999: 21).

Dvaravati

Tal como acontece com os primeiros locais Pyu, a cultura Dvaravati adaptou e adotou o Budismo
desde o início. Ela emergiu como a principal força política e cultural na Tailândia central a partir
do século VI; ao longo de três a quatro séculos, produziu algumas das esculturas mais sublimes
do Sudeste Asiático. Locais importantes como Nakhon Pathom, U Thong, Si Thep e Khu Bua
desenvolveram-se em centros urbanos, legando vestígios arquitetônicos e escultóricos
significativos.

O denominado sítio de Nakhom Pathom fornece um excelente exemplo do impacto do Budismo


na cultura Dvaravati. A presença de arquitetura e escultura budistas monumentais, bem como
evidências de inscrições de moedas, fornecem algumas das evidências mais claras do Budismo
apadrinhado pelo Estado no período Dvaravati. Nakhon Pathom é um dos maiores e mais
desenvolvidos centros urbanos do período, com uma elite que abraçou e incorporou a religião
em seu tecido social e urbano.

O antigo assentamento cobria uma área de 3.700 por 2.000 m (740 ha). Ele está situado na
margem oeste do rio Ta Chin, cerca de 60 km diretamente à oeste da atual Bangkok. Duas
grandes estupas estão no centro do assentamento. A primeira, Chula Pathon Chedi, foi escavada
em 1939 pelo Departamento de Belas Artes da Tailândia e Pierre Dupont, enquanto a segunda,
Phra Pathon Chedi, 400 m a oeste, foi recentemente escavada pelo Departamento de Belas
Artes. A expedição de Dupont em 1939 também descobriu uma estupa adicional, Wat Phra Men,
localizada a aproximadamente 1 km do fosso a sudoeste.

Todas as três estupas eram de tijolos cozidos com fachadas decoradas com ornamentos e
motivos de estuque. Chula Pathon Chedi foi decorada com placas de terracota retratando
narrativas budistas. Relata-se que quatro ou cinco imagens colossais de Buda em pedra vieram

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de Wat Phra Men; nenhum foi encontrado in situ. Essas estátuas, com mais de 3,5 m de altura,
estão sentadas com as pernas pendentes e a mão direita no gesto de ensino (vitarka mudrā).

Nakhon Pathom evidencia muitas semelhanças com Beikthano e Sriksetra: arquitetura e


escultura budista monumental produzida pelo patrocínio real em um assentamento urbano.
Chula Pathon Chedi e Phra Pathon Chedi faziam parte de um assentamento monástico de grande
escala localizado no coração da cidade. A última estupa provavelmente funcionou como uma
mahācetiya. Seus tamanhos e localização central apontam para a possibilidade de fazerem parte
de um mosteiro real. Wat Phra Men, localizado fora do assentamento, pode ter feito parte de
um mosteiro menor. Apesar disso, continuou a receber uma ajuda considerável. A estupa Wat
Phra Men constitui uma prova de patrocínio. As quatro grandes estátuas de Buda, que
supostamente ficavam em seus pontos cardeais, talvez formando uma mandala (Revire 2010:
115), constituem outra.

Evidências suplementares para a adoção de formas indianas de realeza em Nakhon Pathom vêm
de moedas de prata com inscrições, tabuleiros de pedra e dharmacakra (rodas da lei). Moedas,
geralmente com imagens de concha ou śrīvatsa (morada da deusa Sri) em seu anverso, são
símbolos da realeza indiana. Uma moeda está inscrita com o epitáfio śrīdvāravatīśvarapuṇya,
traduzido como "ações meritórias do Rei de Dvaravati". Os tabuleiros de pedra identificados
como bandejas rituais podem ter sido usados na cerimônia de consagração real abhiṣeka,
delineada no texto védico Śatapatha Brāhmaṇa. Este ritual de realeza está representado em um
lintel encontrado em Wat Eng Khna, no Camboja, em um contexto Śivaita (discutido abaixo),
ilustrando que a região central da Tailândia e do Camboja, seja professando o Budismo ou
Śivaismo, adaptou conceitos e rituais da mesma fonte.

O dharmacakra, "Roda da Lei", fornece mais evidências sobre os conceitos da realeza Dvaravati.
Essas grandes rodas de pedra, tendo suas origens na Índia, são alguns dos símbolos artísticos e
religiosos mais distintos da cultura Dvaravati. Cada um consiste em três partes de pedra, o cakra,
'roda', montado em um stambha, 'suporte', com uma base quadrada unindo-os (Figura 2). Um
cakra mede aproximadamente entre 60 cm a 2 m de diâmetro, enquanto as stambhas podem
ter 2 m de altura; uma vez montado, um dharmacakra é um monumento imponente.

O simbolismo do dharmacakra é multifuncional. Na Índia, dharmacakra são as primeiras formas


anicônicas de Buda, mostradas em relevos em Amaravati. O Dharmacakra também representa
um episódio específico na vida de Buda, quando ele colocou seus ensinamentos (o Dharma) em
ação pregando no Parque Deer em Sarnath. O significado político mais expressivo está contido
na fusão de dharmacakra com cakravartin (imperador universal). Isso aparece pela primeira vez
na Índia Máurya, quando o dharmacakra aparece como elementos iconográficos nos pilares de
Ashoka. Essa ligação é feita explicitamente no Dīgha Nikāya (3.58 ss.) do Suttapiṭaka, que afirma
que, assim como o Buda conduz todos à iluminação, o imperador universal conquista tudo e
governa com justiça.

O dharmacakra Dvaravati funcionou simultaneamente como representações do Buda e de seus


ensinamentos e do monarca governante que presumivelmente os encomendou. Brown registra
mais de 42 dharmacakra em toda a Tailândia central, com numerosos exemplos vindos de
Nakhon Pathom (Brown 1996: XXVI). Pinna Indorf (2014) sugere que cada roda representava um
rei ou governante e que eram essenciais para a cerimônia de consagração rājasūya. Assim, o
dharmacakra era um símbolo do amálgama do Budismo e da realeza e parte de programas
maiores de representação real. Eles foram encontrados perto de estupas em vários locais (como
a estupa 22 em U Thong). Na verdade, o governante se afirmou como um sinônimo de um

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bodhisattva (Buda do devir). O Dharmacakra fornece exemplos claros de um símbolo indiano
adotado e adaptado à ideologia real local e à prática performática.

Três partes de um dharmacakra Dvaravati: no sentido horário a partir da parte inferior esquerda, a base, o cakra e o
stambha (esses três objetos são de dharmacakra separados e não foram encontrados como um conjunto).

Convertendo-se e apoiando ativamente o Budismo, os governantes de Dvaravati e Pyu possuíam


novos instrumentos simbólicos e religiosos para promoverem e legitimarem seus governos. O
patrocínio de complexos de mosteiros e a produção de imagens de Buda proporcionou amplas
oportunidades para ilustrar a generosidade e o poder. Os monges budistas, em troca do apoio
dos governantes locais, tornaram-se beneficiários diretos desse patrocínio. O Dharmacakra
encapsula essa fusão de religião e política. Esses independentes símbolos monumentais de
pedra, colocados na frente de estupas ou complexos de mosteiros, proclamavam tanto o poder
temporal do governante quanto a supremacia espiritual do Budismo. Além disso, ao facilitar a
construção de estruturas religiosas, as mais proeminentes das quais funcionavam como
mahācetiya (grandes estupas), os escalões superiores das sociedades Pyu e Dvaravati se
autodenominavam benfeitores por excelência desta nova religião. Eles não só obtiveram
considerável mérito espiritual aos olhos dos fiéis, mas também legitimaram e fortaleceram seu
governo e lugar na ordem social.

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A chegada e adoção do Budismo nas culturas Pyu e Dvaravati destaca os processos de
amplificação mútua da globalização. Por um lado, a chegada do Budismo transformou essas
sociedades em outras que possuem arquitetura monumental, uma tradição escultural
desenvolvida com base em modelos indianos, novos códigos éticos e morais e novos modos de
expressão política. Por outro lado, simultaneamente, ao monopolizar essas correntes religiosas
globais emergentes, os governantes dessas sociedades adaptaram essas inspirações e rituais aos
seus próprios modelos de socialização. Os governantes aproveitaram essas oportunidades para
fortalecer suas posições na ordem social existente. Esta interpretação fornece um contraponto
à afirmação de Robertson (neste volume) de que a globalização atua para desestabilizar o status
quo e os interesses adquiridos. No contexto do Sudeste Asiático, teve resultado oposto.

Bramanismo

Enquanto o Budismo se espalhou por grandes partes de Mianmar e Tailândia, no Camboja uma
variante do Bramanismo tornou-se ascendente. Uma forma local de Śivaismo estatal emergiu
no reino de Zhenla, o precursor do Império Angkoriano, localizado no norte do Camboja, sul do
nordeste da Tailândia e sul do Laos. Outra variante do Bramanismo, o Vaiṣṇavismo, se enraizou
na península tailandesa-malaia e no sul do Camboja já no século V e se tornou a religião da
entidade política costeira de Funan, localizada no Delta do Mekong inferior, com base nos locais
de Óc Eo (no Vietnã atual) e Angkor Borei (no Camboja moderno); esta instituição política é
conhecida quase exclusivamente por fontes chinesas. No entanto, as escavações arqueológicas
ao longo do último meio século tentaram combinar as descrições textuais com as evidências
reais. A tradição escultórica que surgiu nesta região fornece um dos melhores exemplos de como
os modos de representação indianos foram regionalizados ao longo de dois a três séculos.
Devemos nos voltar para o material Vaiṣṇavita de Funan, seguido por uma discussão sobre o
Śivaismo estatal em Zhenla, para ilustrar que, como foi o caso do Budismo em Mianmar e na
Tailândia, o Bramanismo se transformou e, por sua vez, foi transformado pelas culturas que
encontrou.

Um conjunto de imagens de Viṣṇu e Harihara (uma divindade composta de uma união entre
Viṣṇu e Śiva) oriundas da península da Tailândia e do Camboja abrangendo três a quatro séculos
fornece uma linha do tempo em evolução de como o global se tornou local. Embora a presença
inicial dessas estátuas possa ser melhor explicada por rotas comerciais, fatores mercantis
dificilmente explicam a longevidade dessa tradição, com a conveniência política se tornando
uma causa mais provável.

A linha do tempo começa com uma estátua de Viṣṇu de Chaiya, na província de Surat Thani, sul
da Tailândia, provavelmente datando do final do século V ao início do sexto (Figura 1); alguns
estudiosos defenderam uma data já no século IV. Três imagens adicionais de Viṣṇu de Nakhon
Si Thammarat têm a mesma data aproximada. Todos exibem características esculturais típicas
do período Gupta, com as imagens em relevo da caverna 6 em Udayagiri em Madhya Pradesh
fornecendo comparações estilísticas claras. Altas mitras florais com padrões de folha e videira
em baixo-relevo, faixas em forma de U e configurações de concha sobre o quadril têm
antecedentes no período Kusana Mathura e Gupta do segundo ao quinto séculos. Essas
primeiras imagens evidenciam a adoção de modelos e normas indianas desde os primeiros
estágios do Vaiṣṇavismo no Sudeste da Ásia.

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Figura 1. Esquerda: imagem em relevo de um Viṣṇu estilo Gupta da caverna 6, Udayagiri, Índia, datado de 401 d.C.;
meio: Viṣṇu encontrado em Ho Phrai Narai, Nakhon Si Thammarat, Tailândia, c. quinto ao início do sexto século d.C.
Hoje está instalado no Museu Nacional Nakhon Si Thammarat; à direita: detalhe da cabeça do Harihara de Prasat
Andet datado do final do século VII d.C. Hoje está instalado no Museu Nacional do Camboja.

A evolução da tradição escultórica ao longo dos dois séculos seguintes exemplifica a localização.
A mitra alta torna-se refinada, perdendo seus motivos florais; a posição da concha muda para a
mão esquerda superior e a mão esquerda inferior agora segura um porrete. O físico das estátuas
se transforma de figuras curtas e carnudas em esculturas altas e maiores do que o tamanho
natural com musculatura peitoral e torácica definidas. Essa tradição evolui até seu ápice nos
séculos sétimo a oitavo e é melhor representada por um grupo de imagens vaiṣṇavitas de Phnom
Da, um santuário na colina ao sul de Angkor Borei, e uma figura Harihara de Prasat Andet. Essas
esculturas incorporam uma estética Khmer totalmente desenvolvida; as características faciais
do Harihara são modeladas nas da população indígena (Figura 1). Essas peças apresentam as
criações de artistas que não mais imitam os modos recebidos da Índia. Esta arte é própria, com
artistas produzindo obras que refletem a estética exclusivamente do Sudeste Asiático.

Quais fatores políticos ou culturais explicam a popularidade de Viṣṇu e Harihara? Lavy mostra
que Viṣṇu, desde sua primeira aparição no Sudeste da Ásia em uma inscrição cortada na rocha
de Ci-aruton, no oeste de Java, foi associado à realeza e à conquista e expansão do território
(2003: 23-25). Jan Gonda (1969: 164-67) observa que um governante indiano é um avatar de
Viṣṇu (o rei da Tailândia, Rama IX, é hoje considerado um avatar de Viṣṇu; o próprio Rama é um
avatar do mesmo deus). Kamaleswar Bhattacharya (1964: 72-78) argumenta que o monumental
Viṣṇu com oito armas de Phnom Da representa um rei local em trajes divinos. Paul Lavy (2003)
argumentou convincentemente que as figuras Harihara parecem incorporar uma tática dos
governantes Śivaitas de Zhenla no norte do Camboja para exercer seu domínio sobre os
Vaiṣṇavitas de Funan ao sul.

Embora esses exemplos ilustrem a presença crescente do Vaiṣṇavismo na península da Tailândia


e no sul do Camboja, o Śivaismo se tornou a religião dominante no Estado de Zhenla, ao norte,
por volta do século sétimo em diante. O Śivaismo há muito era associado à realeza indiana. No
entanto, o Śivaismo também parece ser mais maleável em se enxertar em cultos indígenas do
Sudeste Asiático do que o Vaiṣṇavismo. A Liṅgaparvata, uma montanha com vista para Wat Phu,
no sul do Laos, adorada como um liṅga natural (Figura 2), ilustra melhor essa maleabilidade. O
liṅga é uma representação fálica e anicônica de Śiva; com o tempo, a representação muda de
formas anatomicamente naturalistas para formas estilizadas. Śiva, em suas primeiras

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manifestações no Sudeste da Ásia, frequentemente aparecia como um liṅga. Vários exemplos
erguidos pelo governante Citrasena na cordilheira Dangrek, no nordeste da Tailândia, mostram
que o liṅga estava associado à conquista de território.

Figura 2. Lingaparvata com vista para Wat Phu, Champassak, Laos. O edifício em restauração em primeiro plano data
do período angkoriano.

Com base em fontes chinesas e na epigrafia Khmer do século V ao VI, Bhattacharya argumentou
que, antes da chegada do Śivaismo, uma religião indígena estava presente em Wat Phu com foco
na adoração do espírito da montanha, Podouli (1997: 36-39). Śiva é conhecido como Giriśa ou
Giritra, "Senhor da montanha" ou "Protetor da montanha", respectivamente, enquanto sua
consorte, Parvati, é "Filha da montanha". A estreita associação entre Śiva como um deus da
montanha e o liṅga, um símbolo da energia fertilizante do deus, tornou-o prontamente
adaptável aos cultos locais. Usando o Śivaismo para unificar as divindades locais, os governantes
exerceram controle religioso e político sobre territórios recém-adquiridos, ilustrado pela
construção do liṅga.

Zhenla incluiu o santuário Wat Phu. Essa política inicial se desenvolveu no centro e no norte do
Camboja no século VII. Sua influência provavelmente se espalhou ao norte da cordilheira de
Dangrek até a área do rio Mun, no nordeste da Tailândia. A capital era Īśānapura, a moderna
Sambor Prei Kuk na província de Khampong Thom, Camboja. Finot (1912) sugeriu essa
identificação pela primeira vez e Dupont (1955: 80-81) a confirmou ao encontrar uma inscrição
no local. Īśānapura está localizado na margem oeste do rio Sen; hoje, numerosos santuários de
tijolos sobrevivem em vários estados de preservação. Como em Wat Phu, numerosas inscrições
e liṅga dão evidências para a adoção do Śivaismo por Īśānapura. A inscrição K.612 em um
batente de porta na região sul de Īśānapura registra a fundação em 627 de um liṅga pelo Rei
Īśānavarman I. Mais importante, a inscrição K.80 iguala Īśānavarman I diretamente a Śiva,
indicando que o Khmer abraçou totalmente o conceito de reis investidos de autoridade divina.

Tal como acontece com os Liṅgaparvata em Wat Phu, em Īśānapura vemos a adaptação da
religião nativa ao Śivaismo e o Śivaismo às formas locais. Michael Vickery, analisando as

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inscrições do período Khmer, conclui, assim como Mus (1975), que os Khmer permaneceram
fiéis às suas divindades nativas locais, ao mesmo tempo que incorporaram elementos da religião
indiana. Epítetos sânscritos eram usados com frequência; o mais comum adicionava o sufixo ‘–
īśvara’ ao nome de um deus, associando assim a divindade com Śiva. No entanto, é provável
que esses fossem deuses locais renomeados com títulos em sânscrito, em vez da importação
por atacado do Śivaismo monolítico diretamente da Índia. Por exemplo, a forma de Śiva adorada
no Liṅgaparvata (Wat Phu) era chamada de Bhadresvara. Vickery, revisando as inscrições do
século sétimo ao oitavo, identifica cinco casos em que os deuses são claramente de origem local;
ele argumenta que eles poderiam ser mais bem referidos como Neak Ta, espíritos guardiões
locais, cuja adoração sobrevive até hoje (1998: 144). Da mesma forma, Vickery também propõe
que a popularidade da deusa Durgā Mahiṣasuramardini em Īśānapura e em outros lugares pode
representar um enxerto dessa divindade feminina em um culto local (1998: 154). Apesar da
representação escultórica durante este período, Durgā Mahiṣasuramardini nunca é mencionada
em inscrições. Como a matadora do demônio búfalo, talvez ela tenha sido equiparada ao
sacrifício do búfalo, um ritual bem comprovado em todo o Sudeste da Ásia. De qualquer forma,
nos séculos VI-VII, os governantes locais disfarçaram seus deuses nativos em trajes indianos,
exaltando o antigo e ao mesmo tempo reverenciando o novo.

Usando essas abordagens aos deuses, os governantes locais se estilizaram usando modelos de
realeza indianos. Eles adicionaram sufixos reais índicos a seus títulos, geralmente o do sul da
Índia "-varman", "escudo", uma tradição que continuou no período angkoriano. Eles convidaram
os brâmanes para suas cortes, não apenas associando-se às novas religiões e seus rituais, mas
também se beneficiando das habilidades e conhecimentos técnicos que esses especialistas
possuíam. A seita Pāśupata do Śaivismo parece prevalecer no Camboja do século VII ao VIII. Essa
seita estava bem estabelecida na Índia; os praticantes eram famosos por sua habilidade na
gramática sânscrita e conhecimento de vários sistemas filosóficos e religiosos, incluindo o
budismo. Pollock afirma que o cosmopolitismo sânscrito era uma "forma de ser [...] político"
(2006: 133); Wolters (1999) aponta as condições em que o cosmopolitismo foi transmitido.

Os complexos de templos em Īśānapura indicam que os reis Khmer não utilizavam apenas
ideologias e rituais indianos; eles também empregaram programas arquitetônicos monumentais
para promover seus reinados. Os templos Īśānapura são agrupados em três complexos: norte,
central e sul. O complexo do templo norte tem uma planta de quincunce que continuou no
período Angkoriano. Os templos octogonais são construídos com tijolos cozidos. No entanto, os
batentes e os lintéis são de arenito, alguns dos quais são elaboradamente esculpidos com
narrativas florais e em baixo-relevo.

A oeste dos três grupos de templos está uma grande cidade com fosso de aproximadamente 4
km2 de área, onde 82 santuários foram registrados. A leste da zona do templo, três calçadas se
estendem em direção ao rio Sen, uma de cada grupo de templos. Ichita Shimoda e Sae
Shimamoto sugerem que a cidade foi acessada através do rio ao longo dessas calçadas (2012:
17-25). Assim, os visitantes seriam primeiro recebidos pelas estruturas arquitetônicas
monumentais dos grupos de templos antes de entrar na zona da cidade com fosso,
impressionando-os com o poder e a munificência dos governantes de Īśānapura.

Ao se igualar aos deuses indianos, especialmente Śiva, os governantes Khmer de Zhenla


adaptaram com sucesso a nova religião para seus próprios fins. Um claro exemplo visual de
adaptação vem de um lintel descoberto no templo contemporâneo de Wat Eng Khna, 20-30 km
ao sul de Sambor Prei Kuk. Ele contém duas cenas, uma dentro da guirlanda foliar arqueada ao

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longo da parte superior do lintel, a outra abaixo dele. A cena superior retrata o
lingodbhavamurti, o mito que explica as origens do liṅga. Neste episódio, Viṣṇu e Brahma
discutem sobre qual deles criou o universo. Um pilar cercado por chamas aparece. Viṣṇu tenta
encontrar o fundo do pilar, Brahma seu topo. Sem sucesso, eles reconhecem o pilar como seu
superior. A cabeça de Śiva então aparece no pilar, revelando que este é seu liṅga; isso resulta
em sua superioridade sobre os dois deuses.

A cena inferior do lintel retrata a cerimônia de coroação de um rei (abhiṣeka), repleta de ascetas
brâmanes e oficiais da corte flanqueando os dois lados. Ao colocar a cena da coroação
diretamente sob o liṅgodbhavamūrti, o rei Khmer se equiparou a Śiva. Presumivelmente, esse
lintel foi colocado na entrada de um templo real, tornando aparente a conexão entre Śiva e o
rei para todos os que entraram.

A chegada da adoração bramânica ao sudeste da Ásia não acabou com as divindades autóctones
locais. Ocorreu um efeito sinérgico no qual os deuses locais adquiriram epítetos indianos,
manifestando-se novamente sob o patrocínio de reis locais. Embora essas esculturas devam suas
origens às suas predecessoras indianas, elas evidenciaram uma estética inteiramente local. Essas
esculturas, por sua vez, estavam alojadas em templos monumentais de tijolos administrados por
uma nova elite brâmane a serviço do rei. Tal como acontece com a política budista de Dvaravati
e Pyu, os governantes de Zhenla e Funan empregaram os adereços cerimoniais e rituais da nova
religião para impressionar a população com seu poder e munificência. O Budismo e o
Bramanismo foram localizados, enquanto mantinham sofisticação e prestígio global suficientes
para garantir seu domínio e apoio estatal contínuo. Nenhum melhor exemplo disso pode ser
apresentado do que a construção de um liṅga em Phnom Kulen, em 802 d.C., como parte da
cerimônia de consagração de Jayavarman II, o ato que marcou o início da história Angkoriana e
mais de 300 anos de Śavismo de estado ininterrupto.

Conclusão

Vistas por lentes contemporâneas, as sociedades do Sudeste Asiático do início a meados do


primeiro milênio parecem particularmente receptivas às correntes globais. Consistindo em
políticas emergentes alimentadas por meio do aumento do comércio através do "oceano único",
elas não tinham um sistema de escrita desenvolvido nem uma base ritual unificadora. Embora
os processos de socialização local tenham ocorrido claramente ao longo da pré-história, essas
sociedades não atingiram níveis de densidade para evitar as correntes globais de Bramanismo,
Budismo e cosmopolitismo sânscrito que chegavam no sul da Ásia.

Os asiáticos do Sudeste administraram com sucesso os processos gêmeos de globalização e


localismo, adaptando a prática budista e bramânica para se adequar às suas situações. Eles
capitalizaram o crescente interesse da Índia no comércio, a coerência de seus sistemas políticos
e religiosos cosmopolitas e a aparição, talvez fortuita, de indianos de muitas convicções em suas
costas para criar políticas autônomas com seus próprios sistemas ideológicos, em outras
palavras, "glocalidades". Da perspectiva da longue durée, o Sudeste Asiático em meados do
primeiro milênio d.C. representa um dos momentos cruciais da globalização. Aberto às
possibilidades apresentadas pelos novos adeptos religiosos do sul da Ásia, estimulados pelas
estruturas econômicas, administrativas e ideológicas da planície do Ganges, as elites do Sudeste
Asiático adaptaram-se e localizaram as correntes globais. Essa fusão facilitou a transformação
de suas sociedades, colocando-as em trajetórias que levaram à formação de estados budistas e
brâmanes do Sudeste Asiático totalmente desenvolvidos e únicos.

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