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ESTUDOS

ASIOINDIANOS
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima

Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos Asioindianos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2023. 90 p.
ISBN: 978-65-00-77511-2
História da Ásia; Orientalismo; Índia; Diálogos Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário

Estudos Asianos
O PAN-ASIANISMO, A ÁSIA FRENTE A SI: UM BREVE COMPARATISMO por Breno P. Andrade ... 7
A FORTALEZA DE RAMA – HISTÓRIA TAILANDESA DO SÉCULO 13 AO 19, por Emiliano Unzer .. 15
DEPENDÊNCIA E DESENVOLVIMENTISMO: DISCUSSÕES TEÓRICAS A PARTIR DA ANÁLISE DAS
ECONOMIAS ASIÁTICAS NO SÉCULO XX por Érico Azera ............................................................ 24
“IRMÃOS QUE DIVIDEM UMA VIDA”: DISPUTAS ENTRE MASCULINIDADES HEGEMÔNICAS NA
GUERRA MONGOL (1204-1206) A PARTIR DA HISTÓRIA SECRETA DOS MONGÓIS, porJosé Ivson
Marques Ferreira de Lima ........................................................................................................... 32

Estudos Indianos

BRÂMANE OU PANDAR: JOÃO DE BRITO E A QUERELA DOS RITOS MALABARES (ÍNDIA, SÉC
XVII), por Alexandre Cabús. ......................................................................................................... 39
OS KUSHANS E A CONFEDERAÇÃO DOS GRANDE YUEZHI: DIVERGÊNCIAS EM PERSPECTIVAS
HISTORIOGRÁFICAS SOBRE MIGRAÇÕES NOMÁDICAS NA ÁSIA CENTRAL, E A FUNDAÇÃO DO
IMPÉRIO KUSHAN (SÉC. II A.E.C - SÉC. I E.C.), por Cristian de Silveira ........................................ 46
A TAPEÇARIA DE SAMPUL: UMA ANÁLISE ICONOLÓGICA DE UM ARTEFATO DAS ROTAS DA
SEDA, por Cristian de Silveira ...................................................................................................... 55
A VOZ DO EMPODERAMENTO: CINEMATOGRAFIA BOLIWOODIANA, REPRESENTAÇÕES DO
FEMININO EM SALA DE AULA, por Lidiane A. Mendes ............................................................... 67
ASPECTOS CULTURAIS DOS DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS DAS VERSÕES DO RĀMĀYAṆA, por
Matheus Landau de Carvalho ..................................................................................................... 73
108 KARAṇAS: MATERIALIDADE, CORPO E A DANÇA NA ÍNDIA, por Thaisa Martins Coelho dos
Santos .......................................................................................................................................... 81

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O PAN-ASIANISMO, A ÁSIA FRENTE A SI: UM BREVE
COMPARATISMO por Breno P. Andrade

O pan-asianismo nos remete a um ideal de união e solidariedade entre os


povos asiáticos, fundamentada em traços compartilhados de identidade,
história e cultura, mediante o resgate dos valores asiáticos. Entrou em voga
pela necessidade de fortalecimento regional e reação defensiva ao
imperialismo europeu quando as relações Ásia-Europa enfraqueceram ainda
mais com o estopim das Guerras do Ópio em 1839. O protagonismo do Japão
como líder regional revelou o uso da retórica pan-asiática para exploração
colonial da Ásia Oriental aos moldes ocidentais enquanto tinha as justificativas
para negar tal afirmação. Este artigo traz breves considerações sobre a
historicização e conceitualização do pan-asianismo de acordo com os estudos
organizados por Sven Saaler e Christopher Szpilman frente às controversas
ideias de Ásia de Amitav Acharya. Propondo um olhar aliado ao procedimento
da história comparada, complementando o debate atual da ascensão da Ásia.
Oferecendo-a como método e objeto de análise das relações internacionais
para ir além da binarização com o Ocidente. Contribuir, por fim, com o
preenchimento de lacunas bibliográficas existentes na literatura em língua
portuguesa.

Pensando a Ásia
Acharya (2010) expõe que é consensual na literatura o termo Ásia como uma
construção do colonialismo europeu. Sua cunhagem remonta à Grécia Antiga
das Guerras Médicas (séc. V e IV AEC) referindo-se aos territórios para além
da Anatólia. Tornou-se subsequentemente uma denominação geral europeia
para designar as terras à leste. Contudo, mesmo atualmente, não é consensual
onde a Europa “termina” e a Ásia “começa”. Os componentes culturais,
religiosos, linguísticos, sociais, geográficos e políticos, as rivalidades internas e
a escassez de uma integração “ao estilo ocidental” tornam diversas as
interpretações sobre fronteiras. Nomenclaturas não eram consensuais. Os
hegemônicos nomeavam embasados em seus interesses e esferas de
influência, na evidente diferenciação “nós e eles”, fruto de tradição
historiográfica sistematizada por Hegel, Marx, Adam Smith, Montesquieu, entre
outros. Pela força decorrente das interações entre Europa e o sistema tributário
de estados centrado na China, Ásia Oriental e Extremo Oriente aparecem com
frequência.

Os asiáticos apreenderam Ásia relativamente tarde, suas primeiras aparições


remontam mapas jesuíticos na China, por volta de 1600. Seu uso recorrente e
assimilação na língua falada e escrita, porém, ainda levariam mais de dois
séculos. A contínua expansão territorial, militar, econômica e diplomática do

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Ocidente e a ofensiva britânica que rendeu a China em 1860 evidenciaram
pretensões imperialistas; a Europa e o Ocidente tornaram-se ameaças por todo
o continente. A reação asiática foi o esvaziamento de Ásia do tecniquês dos
cartógrafos para significação de um espaço geopolítico interligado por traços
compartilhados de história conjunta, ligações culturais, comerciais e
diplomáticas próximas e a noção de destino comum. Ensaios, discursos
políticos, slogans populares, canções, poemas e uma agenda de uma Ásia
unida refletiam sentimentos de solidariedade e cooperação partilhando um
objetivo: resistir ao avanço da influência e dominação ocidentais.

A nomenclatura da região pode ter sido importada, não podendo dizer-se o


mesmo da realidade de seus povos. Logo, Ásia não poderia ser reduzida à
uma simples construção externa nem como apenas reação defensiva à
dominação ocidental, posto que foi e é continuamente imaginada de dentro, em
um complexo justaposto de desdobramentos históricos. A Ásia como antítese
do Ocidente marca o princípio e o caminhar do pensamento pan-asiático.
Contudo, as cosmovisões japonesa, chinesa, coreana e indiana
frequentemente divergiam sobre os valores asiáticos regentes de uma Pan-
Ásia.

O Pan-Asianismo
Saaler e Szpilman (2011) trazem alguns dos princípios norteadores da
solidariedade asiática. O princípio étnico foi um deles, em uma concepção
ocidental de unidade étnica dos amarelos. Outros tendiam a enfatizar
similitudes em história compartilhada, cultura e língua - principalmente a escrita
-, especialmente no extremo oriente pela influência do sistema tributário
sinocêntrico. Os movimentos pan emergentes simultaneamente na Europa e na
América eram vistos como possíveis modelos a seguir. Independente da
abordagem, evidencia-se a ênfase comum em transnacionalismo com forte viés
anti-ocidental. O transnacionalismo coloca o conceito de nação à prova na
Ásia. A construção epistemológica ocidental do termo alicerçada em liberalismo
e individualidade era vista com ressalvas. Experimentações anteriores às
relações com a Europa, embasadas nos valores confucianos de coletividade,
previsibilidade e prosperidade compreendiam o indivíduo como dotado de
sentido pois existe e age a partir do seio da família. A família parental sendo
parte de uma família estendida - trabalho e círculo social - e finalmente a
sociedade como a mais abrangente. O pan-asianismo seria o estágio final da
extensão da família.

Instrumentalmente a cooperação pan-asiática se moldou em associações


fundadas por todo o Leste, principalmente no Japão, onde exilados e
estudantes de diversas partes interagiam. Buscando apoio para seus
movimentos de independência nacional enquanto nutriam uma consciência
comum sobre a Ásia. Socialistas e anarquistas chineses, japoneses e indianos
fundaram a Asiatic Humanitarian Brotherhood em Tóquio em 1907; japoneses e
muçulmanos instituíram o Asian Congress em 1909; e a Pan-Turanian
Association de 1921 clamava o apoio japonês pela unificação dos turcos da
Ásia central e libertação do domínio russo. Nas Filipinas, pan-asianistas

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japoneses que defendiam o movimento de independência de Emilio Aguinaldo
desde 1898 formaram em Manila a Pan-Oriental Society em 1915.
Conferências pan-asiáticas realizadas na China, no Japão e no Afeganistão a
partir de 1920 foram palco de encontros internacionais. Publicações e
periódicos em larga escala por Japão, China, Índia e Sudeste Asiático mas
também na Alemanha, Itália e EUA ilustram a interconexão dos movimentos
antiocidentais.

O Japão como epicentro das manifestações pan-asiáticas ocorreu tanto por


motivos internos quanto pela situação das relações internacionais. Elites
japonesas e ativistas pan-asianistas concordavam sobre a modernidade e os
avanços tecnológicos atingidos pelo Japão, não verificados em outras partes
da Ásia. A dinastia Meiji, “divina [e] ininterrupta por eras imemoriais" [SAALER;
SZPILMAN, 2011, p. 9] o tornava moralmente superior à China, tornando-o o
escolhido para liderar a Ásia contra o imperialismo ocidental. Externamente,
com a China enfraquecida pela derrota para os britânicos, a vitória japonesa
contra a incursão militar do Império Russo na Manchúria e na Coreia em 1905
poderia representar o início da preponderância do Japão na conjuntura
internacional. Um desafio regional adicional seria estabelecer um novo regime
promovendo a "descentralização da China", apoiando-se na ideologia
aparentemente mais moderna do pan-asianismo enquanto aglutinador. Embora
as primeiras formas de pan-asianismo evocassem solidariedade e cooperação
em termos iguais, o Japão optou por expandir seu poder militar e territorial sob
a égide de uma orientação aparentemente paternalista. O Kingly Way e o
slogan To make the world one household exalavam confucionismo. O
imperador do Japão, como pai ou irmão mais velho, norteador de um governo
regional benevolente e conselheiro dos povos sob seu domínio - Coreia,
Taiwan e Manchúria, os irmãos mais novos. A anexação e assimilação da
Coreia em 1910 sob laços ancestrais de cultura e sangue decorreu da tentativa
de reversão dos dois povos ao status antigo de “um ser homogêneo”. O Japão
defendia certa independência dos novos territórios e, portanto, suas práticas
não poderiam ser comparadas àquelas ocidentais.

A Realpolitik e a teoria geopolítica do alemão Karl Haushofer impulsionou a


ideia de que o Império do Japão era a personificação do pan-asianismo. Se
vendo como melhor reflexo da consciência asiática, a ideia japonesa de Ásia
era, intrinsecamente, a ideia da ascensão do Japão sobre seus entornos.
Verificamos, assim, o entrelaçamento entre pan-asianismo e a representação
relativa de Ásia apontada por Acharya. Com a Doutrina Amau, o pan-asianismo
japonês ergueu uma Doutrina Monroe Asiática para reivindicar sua própria
centralidade através de práticas imperialistas, mobilizando recursos humanos,
materiais e tecnológicos de suas colônias para seus esforços de guerra. A
exploração econômica sob o manto da benevolência paternalista contribuiu
significativamente para o descrédito do pan-asianismo. Para os povos
subjugados o domínio japonês não era substancialmente diferente do ocidental.
A Coreia se viu em enormes suspeições do pan-asianismo enquanto máscara
para pretensões imperialistas japonesas. Ahn Choong Kun, condenado à pena
de morte pelo assassinato do príncipe japonês Ito Hirobumi, escreveu um dos

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primeiros ensaios sobre pan-asianismo ainda em 1910. Sugere uma Ásia unida
através de aliança transnacional militar e uma moeda única como preparação
para uma guerra entre as etnias branca e amarela. Sob o domínio japonês, o
apelo do pan-asianismo para os coreanos foi bastante limitado, mas não
completamente exíguo. Intelectuais coreanos seguiram defendendo uma
comunidade pan-asiática mais ampla e coexistência entre as culturas coreana
e japonesa.

Na China, o nacionalista Sun Yat-sen discursava abertavamente sobre valores


asiáticos em justaposição ao imperialismo europeu e japonês, clamando o
Japão a não desenvolver o pan-asianismo mediante imperialismo e
materialismo, mas via valores asiáticos como ética, benevolência e retidão.
Isso pois, quanto mais envolvido na Segunda Guerra Mundial o Japão estava,
mais tendia a reforçar o pan-asianismo de suas ações. O acadêmico e
revolucionário Zhang Taiyan descreveu o Japão como o "inimigo público" da
Ásia, rejeitando o esquema simplista de “asiáticos amarelos oprimidos contra
opressores brancos" e enfatizando a "dupla escravidão dos chineses"
[SAALER; SZPILMAN, 2011, p. 22]. A Grande Guerra do Leste Asiático, assim
denominada pelo Japão como forma de libertar a Ásia, foi ressignificada pelos
chineses como Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa. O jornal
New Asia de 1930 alegava que a “recuperação da China é o ponto de partida
para a regeneração dos povos asiáticos” [ACHARYA, 2010 p. 36]. No caso da
China, a recuperação e ascensão da Ásia estavam exclusivamente ligadas à
reformulação do estado chinês.

A Índia não era alvo colonial do Japão, logo, o pan-asianismo deixou um


legado menos negativo. Tentativas de assegurar a independência da Índia com
endosso japonês resultaram em ligações próximas com o Japão. Quando das
manifestações contra a Lei de Exclusão Asiática dos Estados Unidos, o
nacionalista Rabindranath Tagore falou abertamente a favor da unidade pan-
asiática para públicos de milhares, convocando-os a “despertarem [...] contra
esse insulto monstruoso e desumano” e a erguer um "Império da Ásia [...] que
entraria com força na arena da política mundial" [SAALER; SZPILMAN, 2011,
p. 24]. O imperialismo japonês, entretanto, foi duramente criticado por Tagore
como imitação das práticas ocidentais. No Pós-Guerra, o discurso de Mahatma
Gandhi quando da Conferência das Relações Asiáticas em 1947 reitera que “a
mensagem da Ásia […] não deverá ser aprendida pelos espetáculos do
Ocidente, nem imitando seus vícios, seu uso da pólvora e da bomba atômica”
[ACHARYA, 2010 p. 35].

O Ocidente e o Pós-Segunda Guerra


Quaisquer movimentações para uma união asiática representariam um perigo
para expansão europeia pelo continente. Na virada do século, escritores
ocidentais já mencionavam uma possível Liga Pan-Asiática, chegando a alertar
para o perigo amarelo vindo do Oriente. Em documentos oficiais e declarações
na imprensa, o Japão tendia a ser extremamente crítico a tentativas de uma
integração asiática sob o perigo de minar suas relações com as potências
ocidentais. Alianças econômicas com a Inglaterra eram o núcleo das políticas

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externas do Japão e poderiam entrar em águas frias caso transparecesse
atividade japonesa em um pan-asianismo. Assim, materiais publicitários oficiais
eram publicados em segredo na China e na Coreia enquanto jornais japoneses
para o exterior classificavam possíveis uniões asiáticas como “inúteis e
imprudentes” [SAALER; SZPILMAN, 2011, p. 16] Diplomatas enviados para o
oeste frequentemente dissuadiram o Ocidente declarando seus entornos como
fracos e ridicularizando possibilidades de liderança japonesa na Ásia.

Por outro lado, uma possível aliança asiática era vista com bons olhos pelos
entusiastas ocidentais da teoria geopolítica de Karl Haushofer. O conceito de
autarquia - núcleo da teoria -, aliado ao espaço vital de Friedrich Ratzel,
pressupunha a extensão da esfera de influência para além das fronteiras
geográficas, garantindo a autossuficiência na aquisição de produtos e matérias-
primas para alcançar modernização industrial rumo à prosperidade. Em 1924,
como editor da Zeitschrift für Geopolitik, e após contato direto com Sun Yat-sen
e Tagore em missões diplomáticas, homenageou o movimento pan-Asiático,
vendo-o como mais uma prova de sua teoria, já em curso na Alemanha. Uma
tendência em direção a uma futura ordem mundial dominada por Pan-Regiões,
substituindo a ordem estabelecida pelo Estado-nação soberano. Mais além,
Haushofer propunha uma coalizão continental-oceânica entre os poderes
terrestres da Alemanha e URSS e o poder naval japonês “capaz de arrebatar
das potências insulares [a Inglaterra] a preponderância mundial” [MELLO apud
BRIGOLA, 2023. p. 54].

As Pan-Regiões de Haushofer
Fonte: Brigola (2023)

A bipolaridade capitalismo contra comunismo do pós-guerra não deixava


espaço para debates sobre integração regional. Os EUA impuseram tratados
de não-agressão com o Leste Asiático, provocando a demissão dos pan-
asianistas das instâncias governamentais japonesas e o esfacelamento de
instituições. Intelectuais como Shimizu Ikutaro argumentam que a ofensiva
nuclear estadunidense retrocedeu o Japão à mera economia agrária e que “os

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japoneses são, efetivamente, asiáticos” [SAALER; SZPILMAN, 2011, p. 28]. O
ideário pan-asiático foi preservado no Japão nas críticas da esquerda política e
também entre nacionalistas que abandonaram suas expectativas nas
possibilidades do socialismo.

O Japão fora do jogo abria brechas para que outras nações asiáticas
protagonizassem o debate de acordo com suas ideias de Ásia. O Movimento
dos Não-Alinhados e a Conferência de Bandung de 1955 retomaram ideias de
uma Pan-Ásia com lideranças asiáticas e africanas como Jawaharlal Nehru
(Índia), Gamal Abdul Nasser (Egito) e Joseph Tito (Iugoslávia). Também para
evitar uma supremacia desse movimento na região, o Sudeste Asiático
imaginou uma associação regional sem a participação dos hegemônicos China
e Índia. Foi o primeiro passo na criação da ASEAN, com histórico mais coeso
de longevidade que a breve Organização das Relações Asiáticas, nascida no
berço da Conferência de Nova Delhi de 1947. Fica evidente que aqueles que
celebraram seus movimentos de independência e tentativas de unidade,
nacional ou transnacional, imaginavam sua dominação sobre o resto da Ásia.
Contudo, a experiência japonesa descredibilizou a retórica da cooperação:
legando-a a sinônimo de imperialismo. Logo poucos esforços de pesquisa e
reestruturação do pan-asianismo foram realizados após 1945.

Reflexões para a contemporaneidade


O desenvolvimento econômico dos Tigres Asiáticos e a influência da China
reacenderam o discurso asiático. A trajetória do pan-asianismo nos ensina,
entretanto, que confundir Ásia com o seu discurso de ascensão pode
obscurecer diferenças nacionais e subnacionais e obstruir a construção de uma
episteme factual e compreensiva das dinâmicas regionais. Em uma série de
entrevistas com especialistas japoneses, vietnamitas e indonésios para o Asan
Institute for Policy Studies, Choi Kang e Lee Jaehyon (2018) apontam que
demandas sub regionais têm tido maior relevância ao comparar a política
externa de Barack Obama com a da China. Nações asiáticas queriam uma
colaboração forte com os EUA em termos de segurança, enquanto resistiam ao
engajamento militar contínuo ocidental. Similarmente, desejavam participação
norte-americana em fóruns multilaterais com protagonismo reduzido. Os EUA
deveriam reconhecer as entrelinhas da diversidade asiática e ter mais
especialistas e interessados na região em posições de poder na Casa Branca
como foi no primeiro governo Obama; no segundo, a Ásia disputou atenção
com outros interesses globais como Oriente Médio, Crimeia e Iraque. Com
baixa assiduidade em encontros asiáticos e maior ingerência em assuntos
domésticos, é comum as nações do Sudeste Asiático se sentirem
desconfortáveis e recorrerem à China, menos crítica à questões internas, mais
assídua em fóruns e propensa a entender seus entornos para propor
iniciativas. Possivelmente o legado do pan-asianismo tenha lecionado à China
sobre interação com os vizinhos sem transparecer ameaça.

Para o taiwanês Kuan-Hsing Chen, a falta de estabilidade ontológica acarreta


políticas de representação do continente que divergem em relação ao
significado de Ásia. Rosana P. de Freitas aponta que “no Japão e na Coreia do

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Sul, Ásia quer dizer China, às vezes Índia. Já a China considera-se ainda o
centro, [...], pois termina impondo certa geografia imaginária.” [FREITAS, 2016,
p. 45] A problemática se encontra em estabelecer a narrativa ocidental de
poder político - ascensão e queda das nações como tradição epistemológica
universalista - e uma ideia civilizacional e emancipatória na Ásia pois não é
possível tratar da dicotomia Ocidente x Oriente em termos binários. Ou tratar
da Ásia como mera soma das partes. É necessário inter-referenciá-la a partir
de dentro, tendo-a como meio de pesquisa - não somente como objeto de
análise - multiplicando os pontos de referência, comparando historicamente o
colonizado fora do espectro hegemônico. Transitando na ponte entre o poder
político cautiliano, comunitarismo confuciano, idealismo nehruviano e
pluralismo kantiano, a Ásia será continuamente construída tanto de dentro
quanto de fora. Acharya argumenta que uma narrativa mais abrangente e
realista deveria ser centrada nas pessoas e suas relações com os entornos de
maneira a refletir um senso genuíno de regionalidade asiática. Estados
pequenos e populações vulneráveis têm muito a temer em um discurso de
ascensão da Ásia e em um pan-asianismo comandado por vizinhos ricos,
poderosos e autoritários. É importante abandonar o vício de emular sempre o
norte pois nem a geografia ou geopolítica, nem poder e prosperidade, são
bases suficientes para clamar a relevância da região.

As relações entre Saaler e Szpilman frente à Acharya colocam à prova a visão


tradicionalista ocidental de toda uma região e seus conflitos particulares. Os
primeiros ocupam-se de uma revisão construtiva histórica do pan-asianismo
enquanto o segundo revisita o pensamento pan-asiático em um olhar interno. A
história comparada serve como ferramenta metodológica de análise das
diferentes formas de abordagem. Patrick Boucheron (2015) propõe examinar
os discursos hegemônicos contidos em uma escrita da história mundializada,
postura muito recorrente na narrativa euro-atlântica. A opção ideológica aponta
para um “mundo conectado” no qual todos os atores recebem tratamento
desigual alicerçados em critérios pretensamente igualitários. Evidentemente, as
experiências asiáticas não correspondem àquelas vistas no Ocidente. Jacques
Revel (2015, pp. 21-29) propõe uma crítica à ideia de história do mundo
observando valores e critérios instituídos pela Europa, na intenção de encontrar
modernidade em outros territórios e culturas, transformando-os em
instrumentos objetivos de avaliação de supostos êxitos ou atrasos. O método
apresentado por Rosana P. de Freitas, ao lado das abordagens de história
comparada, nos ajuda a resgatar o pan-asianismo do ostracismo histórico para
a contemporaneidade através da auto referenciação. Abrindo caminhos para
estudarmos a história da Ásia e suas demandas particulares para além das
limitações estruturais da tradição epistemológica ocidental. Nossa proposta é
observá-las numa postura não centralizada para uma compreensão ampla das
diferentes visões de estar no mundo. Renovando as abordagens tomadas até
então pelas Relações Internacionais e compatibilizando a produção de
conhecimento às preocupações humanísticas da disciplina.

Referências

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Breno P. Andrade é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) com especialização em Direitos Humanos e
Questões Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

ACHARYA, Amitav. The Idea of Asia. Asia Policy, no. 9, 2010, pp. 32–39.
JSTOR. Disponível em http://www.jstor.org/stable/24904969. Acesso em 13 jul
2023.

BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas (orgs.) Por uma História-Mundo.


Ed. Autêntica. Belo Horizonte, 2015.

BRIGOLA, Higor Ferreira. O Pensamento Geopolítico de Karl Haushofer.


GEOGRAFIA (Londrina), [S. l.], v. 32, n. 1, pp. 49–60, 2023. DOI:
10.5433/2447-1747.2023v32n1p49. Disponível em:
https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/article/view/46351. Acesso em
17 jul 2023.

CUNHA, Ester Almeida Carneiro da. Uma análise do pensamento autoritário-


militar japonês a partir da perspectiva de Tojo Hideki. 2021. Dissertação
(Mestrado em Relações Internacionais) - Instituto de Relações Internacionais,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. DOI:10.11606/D.101.2021.tde-
28042022-144953. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/101/101131/tde-28042022-
144953/pt-br.php. Acesso em 13 jul 2023.

FREITAS, Rosana Pereira de. Rumo a um Novo Ancoradouro: Ásia como


método. Revista Arte & Ensaios nº31. PPGAV/EBA/UFRJ. 2016, pp. 41-49.
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/5286/3887.
Acesso em 13 jul 2023.

HUI, Wang. A Reinvenção da Ásia. Le Monde Diplomatique, 2005. Disponível


em: https://diplomatique.org.br/a-reinvencao-da-asia/. Acesso em 13 jul 2023.

KANG, Choi; JAEHYON, Lee (orgs.) Understanding Asia. What Asia Wants
from the US: voices from the region. Asan Institute for Policy Studies, 2018, pp.
61–67. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/resrep20691.13. Acesso em
13 jul 2023.

SAALER, Sven; SZPILMAN, Christopher W. A. Pan Asianism: a documentary


history. Volume 2: 1920-Present. Rowman & Littlefield Publishers, Inc. United
Kingdom, 2011.

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A FORTALEZA DE RAMA – HISTÓRIA TAILANDESA DO
SÉCULO 13 AO 19, por Emiliano Unzer

O cenário no Sudeste Asiático em fins do século 13 propiciou o surgimento de


novos centros de poder. Em 1287, Pagan e outros reinos birmaneses haviam
entrado em colapso repentino com a chegada dos mongóis. Mais ao leste, a
autoridade dos khmers demonstrava uma decadência difícil de disfarçar. E foi
ainda mais trágico para esses a gradual ascensão na sua vizinhança dos povos
tais durante o século 14.

As lendas dos povos tais remetem as suas origens ao deus Khun Borom,
inventor da agricultura, artesanato, aprendizado, rituais e costumes. Essa figura
heroica reinou na região do norte vietnamita próximo a Dien Bien Phu e, de lá,
mandou seus sete filhos para governar sobre todos os povos tais no Sudeste
Asiático. Esses povos incluiriam além da grande nação dos tais propriamente
ditos, shans, khuns, lus, laos e yuans. E o destino desses dependeria de
habilidades agrícolas e bélicas.

Etnicamente, os tais parecem ter migrado da região meridional chinesa, em


Yunnan. Com os conflitos e perseguições feitas em meados do século 13
contra os mongóis, houve massivo deslocamento para outras regiões mais ao
sul, em direção ao Sudeste Asiático. Assim, foram estabelecendo inúmeras
entidades políticas que ia desde o Vietnã, através do rio Mekong e Chao
Phraya até o Golfo de Martaban na costa birmanesa. Nenhuma dessas
unidades teve proeminência a dominar seus vizinhos até a fundação de
Ayutthaya em 1351.

Mas antes de Ayutthaya (Aiutaia), o reino de Lanna foi fundada em 1296 por
um líder dos tais chamado de Mangrai (r. 1292 - 1311), descendente de mons e
khmers. Foi um rei astuto e inteligente, com rara sensibilidade e senso
diplomático que soube aproveitar a ocasião histórica na decadência do reino
khmer de Angkor depois do reinado de seu último efetivo líder, Jayavarman VII
em 1218. Às custas dos khmers, Lanna expandiu e cresceu em seus domínios.
Mangrai revelou-se um estadista ao resolver as disputas entre dois reis, os de
Phayao e de Sukhotai ao sul de Lanna. Ademais, Mangrai conseguiu
conquistar reinos antes dominados pelos birmaneses, quando invadiu o reino
mon de Haripunjaya em 1281. Oito anos depois, esse rei expandiu sua
influência para a cidade de Pegu, a maior cidade mon na Baixa Birmânia.
Como consequência, o rei de Pegu ofereceu como sinal de aliança sua filha em
casamento ao rei de Lanna.

Das regiões setentrionais birmanesas, ou a Alta Birmânia, Mangrai mandou vir


contingentes de artesãos especializados para embelezar sua capital em Chiang
Mai, atualmente uma das mais belas cidades no norte da Tailândia. Com os

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chineses, Mangrai enfrentou uma invasão em 1301 de cerca de 20 mil homens.
Ao final, essa expedição chinesa produziu pouco efeito prático, a não ser
normalizar as relações entre Lanna e Pequim, com o envio periódico de tributos
a partir de 1315 a manter as ligações comerciais e políticas entre os dois
reinos. Em 1311, Mangrai chegou a falecer, acarretando um período confuso e
incerto de crises de sucessão que perdurou até 1324. Lanna, ao final dessas
instabilidades, sobreviveu, mas viu-se diante dos crescentes conflitos entre
birmaneses e Ayutthaya, um poderoso reino tai que tinha se estabelecido no
vale do rio Chao Phraya.

Ao sul de Lanna, o reino de Sukhothai (Sucotai) também passou por processo


similar de construir uma rede de alianças como a que foi feito por Mangrai. Em
1295, um enviado chinês reportou que Sukhothai tinha incorporado vastos
domínios antes pertencentes ao império de Angkor. E tal como o reino khmer,
Sukhothai tinha abraçado o hinduísmo e cultuavam as figuras de Vixnu e Xiva,
além dos cultos budistas.

A fortuna de Sukhothai parece ter mudado na década de 1320, um prelúdio


para a ascensão de Ayutthaya. A história começa nas províncias ocidentais do
que era parte do império Angkor, centradas em Lopburi, que o regente local
buscou novas alianças longe do alcance de Angkor. Desde fins do século 13,
líderes de Lopburi mandaram missões de tributo para a China, almejando
futuras alianças e possibilidades comerciais.

Lopburi foi liderada por um notável estrategista e aventureiro, chamado de U


Thong (1314 - 1369). Nascido numa próspera família de mercadores chineses,
casou-se depois com uma princesa tai que lhe permitiu acesso às cortes dos
reinos locais e contato com as autoridades chinesas ao norte. Eventualmente,
U Thong ascendeu ao trono de Lopburi como rei Ramathibodi (r. 1350 - 1369),
e após um surto de varíola, decidiu mudar sua corte para o vale do rio Chao
Phraya, em Ayutthaya. O nome da nova cidade soava propícia, pois advinha da
fortaleza do herói Rama do épico indiano, Ramaiana. Os chineses, por sua vez,
passaram a chamá-la de Xian, ao que os portugueses depois adaptaram o
termo para Sião.

O reino estabelecido de Ayutthaya consolidou sua posição com alianças táticas


com Sukhothai, que tinha permanecido independente até 1438 quando foi
declarada como província de Ayutthaya. Tal aliança foi necessária para
combater os khmers de Angkor que tinham dado combate com os tais entre
1351 e 1431. Apesar dos prolongados conflitos, a corte de Ayutthaya não
escondia a admiração pela cultura de Angkor, adotando seus ritos, protocolos e
tradições que irão marcar a cultura de Ayutthaya.

A sociedade de Ayutthaya era hierarquizada, presidida por membros de


famílias nobres e oficiais nomeados pelo governo. Os chineses, como
comunidade estrangeira, sempre tiveram forte influência em Ayutthaya,
principalmente pela sua próspera classe comercial e contatos diplomáticos. No
topo de toda a sociedade, consolidou-se a figura quase divina do rei, como

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portador de certa essência do Buda, benevolente e impassível diante das
mundanidades. As obrigações dos altos oficiais foram definidas pelo rei
Borommatrailokanat (r. 1448 - 1488), ou Trailok. Foi este que adquiriu novos
territórios para Ayutthaya e reorganizou toda a estrutura política e
administrativa do reino. As províncias passaram a responder diretamente a
capital, centralizando todas as decisões e recursos do Estado. Para as
lideranças locais, foram nomeados governantes da casa real, e não mais a
depender de famílias nobres locais. No campo jurídico, as penalidades foram
agravadas se fosse feito algum delito contra um funcionário do Estado, visto
como uma ofensa ao próprio rei. Como resultado, Trailok cimentou a base de
um sistema que iria perdurar por séculos na sociedade tailandesa até as
reformas ocidentalizadas no século 19 e da revolução de 1932 que aboliu a
monarquia absoluta.

No aspecto externo, Trailok foi desafiado por dois reinos tais rivais, Lanna e
Lan Xang. Angkor já não apresentava nenhuma séria ameaça na segunda
metade do século 15. Os birmaneses sob a dinastia Toungou ainda não tinham
se consolidado como potência ao oeste. Em Lanna, contudo, a ascensão do rei
Tilokaracha (r. 1441 - 1487) em 1441 resultou na expansão rumo ao reino de
Lan Xang, cuja capital localizava-se no curso médio do rio Mekong, em Luang
Prabang.

De acordo com as lendas laosianas, o filho do primeiro rei de Luang Prabang


tinha fugido para Angkor para se casar com uma princesa Khmer, Keo
Kaengkana. Ele era Fa Ngum (r. 1353 - 1372), um príncipe que reivindicava ser
descendente do deus dos tais, Khum Borom. Com a ajuda de soldados khmers,
Fa Ngum conquistou amplas áreas do vale do Mekong e, em 1355, instalou-se
em Luang Prabang como rei de Lan Xang. Depois da morte da rainha, Keo
Kaengkana, Fa Ngum degenerou-se numa vida dissoluta, passando seu trono
para seu filho, Samsenethai, em 1372 que passou a governar de maneira
exemplar pelos próximos 43 anos.

O reino de Lan Xang sobreviveu livre de grandes conflitos do Sudeste Asiático


muito por causa de sua localização geográfica remota. Perigosamente próximo
da China, alimentou-se de seu comércio e possíveis alianças a quem sempre
mandou missões de tributo. No entanto, não foram os chineses que
provocaram mudanças no reino de Lan Xang, mas os de Ayutthaya e
birmaneses que resultou na mundança da capital do reino laosiano em 1563 de
Luang Prabang para um local mais seguro e distante, Vientiane.

Sukhothai, nesse meio tempo, tinha se rebelado contra Ayutthaya em 1462,


justamente durante os conflitos deste contra Lanna. Percebendo a importância
de ser manter uma presença militar no norte de seu reino, Trailok de Ayutthaya
transferiu seu centro de decisões políticas para Phitsanulok, perto de
Sukhothai, e nomeou seu filho, Borommaracha Thirat III (r. 1488 - 1491), como
regente em Ayutthaya e futuro rei até 1491. Trailok, em seus anos finais,
desiludido com as guerras contra Lanna, abdicou e retirou-se para uma vida
monástica budista em perto de Phitsanulok.

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Em 1488, Trailok morreu e Ayutthaya já se encontrava proeminente no
continente asiático e tinha estendido seu poder na esfera marítima, tornando
Ayutthaya no principal fornecedor de arroz para Malaca, sobre o qual tinha
conseguido acordos de soberania. A tal ponto que os portugueses, quando
chegaram em Malaca em 1511, consideraram a cidade como vassala de
Ayutthaya. A expansão de Ayutthaya também tinha expandido para as regiões
de Tavoy e Tenasseriam, motivados para maior controle do comércio
internacional da Baía de Bengala ao oeste. Naturalmente essa expansão fez
com que entrassem em conflito com os birmaneses, uma vez que a dinastia
Toungou tinha conseguido reunificar o país. E foram contra esses que as
guerras do século 16 resultaram no sítio e destruição das proximidades de
Ayutthaya em 1546 e 1569 pelo rei birmanês Bayinnaung. Foi somente sob
Naresuan em 1590, que os tais de Ayutthaya conseguiram autonomia maior
frente aos birmaneses.

O maior conflito entre os tais e birmaneses se deu entre os anos de 1592 e


1593. Quando o rei de Toungou, Nandabayin desceu e conquistou a cidade de
Kanchaburi, uns 120 km ao oeste de Ayutthaya. Naresuan decidiu arriscar e
mobilizou suas forças para o campo de batalha. Uma das testemunhas da
batalha foi um português, Mendes Pinto, que afirmou a convocação dos
europeus em Ayutthaya para os conflitos pelo seu precioso conhecimento de
artilharia, ao que boa parte atendeu ao pedido visando os privilégios
prometidos de generosa aposentadoria e direito a terem um igreja católica
construída na capital.

Tendo isso, Naresuan avançou com suas tropas para Kanchaburi no início de
1593. Apesar de estar em número inferior aos de Toungou, Naresuan parece
ter tido sucesso nas táticas em campo, numa formação de tropas conhecida
como a "matriz de lótus", a explorar e usar os flancos abertos a encuralar o
inimigo em tempo oportuno. Isso ocorreu em Nong Sarai, quando os tais
conseguiram confundir os birmaneses e cercar os birmaneses após duras
batalhas.

Tirando lições da batalha, Naresuan buscou empregar oficiais e mercenários


europeus para usar as mais modernas e eficazes armamentos, superiores aos
fornecidos aos birmaneses pelos chineses e turcos. Com isso, Ayutthaya
importou significativo número de canhões e armas de fogo dos portugueses e
europeus. Quando a capital tai chegou a cair para os birmaneses em 1767, seu
estoque de armamento continha mais de 22 mil mosquetes.

De todos os reis de Ayutthaya, foi Narai (r. 1656 - 1688) que mais dedicou sua
política a manter as forças bélicas tailandesas em par com o que havia de mais
moderno. Apesar de Naresuan ter revitalizado Ayutthaya ao derrotar os
birmaneses em 1593, isso não significou plena independência nas décadas
seguintes. Narai subiu ao trono em 1656 com o apoio de ricos mercadores
muçulmanos, esse rei buscou sempre se informar e se inserir no tabuleiro
internacional da época. Buscou a ajuda de holandeses, mas também não

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descartou o interesse da Coroa Francesa no Sudeste Asiático. Esses últimos
europeus foram representados por um grego, Constatine Phaulkon (referido
pelos portugueses como Constantino Falcão) (1647 - 1688), que tinha chegado
à capital tailandesa com a CIOB e passou a servir de tradutor na corte de
Narai. Foi útil ao fazer a ponte de contato entre os europeus residentes em
Ayutthaya e o governo, e serviu de conselheiro para a construção de pontes,
fortificações e outras obras públicas. Pela sua contribuição, não foi de se
estranhar que o rei Narai passou a se interessar em contatar Paris para
maiores assistências. Phaulkon, de sua parte, alimentava a esperança de que
o rei e sua corte converteriam-se ao cristianismo, algo que se revelou
equivocado pela profunda assimilação e popularidade do budismo entre a
população tailandesa. Não era, portanto, de interesse de um soberano se
converter a uma crença estrangeira de pouca compreensão popular.

Os contatos com os franceses, contudo, apresentaram também problemas para


Narai. Pois esses começaram a ser vistos com desconfiança pela população e
comunidade budista. Isso ficou evidente quando houve uma fracassada defesa
do porto de Mergui contra os britânicos em 1686. A temperatura subiu ao ponto
de ebulição na corte em 1688, quando houve um golpe pouco antes da morte
de Narai. Um dos líderes mais proeminentes nesse movimento político foi
Phetracha (r. 1688 - 1703), que passou a perseguir os seus rivais, os franceses
e Phaulkon.

Phetracha contraiu matrimônio com uma filha de Narai, a princesa Sudawadi ou


Yothathep (1656 - 1735), que viveu longamente por cinco reinados. O casal
real atuou como defensor e restaurador da cultura tradicional e budismo
tailandês. Isso foi reflexo de seu desgosto com os franceses e ingleses, que
deixou apenas os holandeses como potenciais parceiros comerciais. Todavia,
mesmo entre esses começaram a ser por vezes, problemáticos as relações,
uma vez que Batávia, atual Jacarta, na ilha de Java, tornou-se centro das
atenções das companhias de comércio de Amsterdã e Roterdã. Poderia,
portanto, naturalmente surgir desavenças com relação a interesses entre os
dois países no plano de comércio asiático.

Apesar de ter sido um usurpador ao trono, Phetracha conseguiu se assegurar


no trono até 1703, quando foi sucedido por seu filho, Suriyenthrathibodi (r. 1703
- 1709). Mas a ordem e a paz somente retornariam para o reino de Ayutthaya
com a coroação do rei Thai Sa (r. 1709 - 1733). Foi durante esse último reinado
que houve crescimento e prosperidade comercial com a China que tinha aberto
seus portos para o comércio de arroz em 1727. Isso foi alavancado com os
privilégios concedidos aos mercadores chineses em Ayutthaya que
desbancaram os holandeses mais interessados em defender o comércio
javanês. Ademais, Thai Sa decretou éditos proibindo a proselitização de padres
católicos no seu reino, mas seu sucessor, Borommakot (r. 1733 - 1758) relaxou
essas restrições religiosas, permitindo até mesmo a visitar templos e estupas
sagradas budistas, irritando alguns mais intransigentes da comunidade budista
e de sua corte.

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Na época de sua sucessão, em 1758, houve novos conflitos políticos em
Ayutthaya, que provou ser fatal para o reino. Pois foi nessa época que os
birmaneses de uma renovada dinastia de Konbaung começou a ter interesses
expansionistas. As lutas e desavenças chegaram a paralisar o comando
centralizado do reino de Ayutthaya, que se tornou fragilizada a invasões
estrangeiras. A capital tailandesa quase foi capturada em 1760, se não fosse
por um mero golpe de sorte ao explodir os armamentos de fogo usados no sítio
pelas tropas birmanesas, ferindo gravemente o rei Alaungpaya e provocando
sua morte no caminho de volta para as terras birmanesas. A tarefa da
conquista definitiva de Ayutthaya coube ao segundo filho de Alaungpaya,
Hsinbyushin (r. 1763 - 1776), que tinha ganhado experiência nos combates
contra Lanna e Lan Xang nos anos anteriores. Logo antes da queda de suas
muralhas aos birmaneses, em 1767, Ayutthaya tinha sofrido anos de
bombardeio e um incêndio que atingiu cerca de 10 mil casas. Sem
misericóridia, o exército birmanês, uma vez rompida as muralhas, estupraram,
pilharam e saquearam seus valores e tesouros culturais e religiosos. Milhares
de tailandeses foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos.

Ironicamente, a destruição e saque de Ayutthaya em 1767 resultou numa maior


unificação dos tailandeses no longo prazo, abarcando os reinos de Lanna e
Lan Xang sob uma nova dinastia, a de Chakri, a partir de 1787, uma das mais
longevas do mundo atual. O fundador dessa nova ordem foi um líder, Sin, que
tinha sido adotado por uma família nobre tai. À época da invasão birmanesa,
Sin estava servindo como governante da província Tak. Daí seu nome para a
posteridade, Tak Sin, ou Taksin. Depois da catástrofe de 1767, Taksin (r. 1767
- 1782) decidiu fundar uma nova capital dos tais, Thonburi, às margens do rio
Chao Phraya na sua margem ocidental. Na outra margem do rio surgiria depois
Bangkok.

Taksin assim proclamou um novo reino, chamado de Sião (Siam) a restaurar a


glória de Ayutthaya, com a presença cosmopolita de estrangeiros em sua corte,
indianos, persas, chams, malaios e chineses. Seu empenho e sucesso em
batalhas contra os birmaneses asseguraram a vida inicial de sua capital, mas
em 1779, estava claro que o regente tai tinha se cansado da vida política e
buscou se dedicar de corpo e alma à vida monástica budista. De tal maneira
que, ao final de sua vida, insistia em ser chamado por um nome santificado e
aqueles que o recusassem foram açoitados ou banidos ao trabalho forçado.
Em 1782, Taksin encontrou uma morte violenta quando alguns monges,
membros de famílias tradicionais e mercadores chineses, todos descontentes
com sua obsessão espiritual, o colocaram num saco de veludo e espancado
até a morte, a obedecer a tradição de que nenhum súdito podia tocar
diretamente e causar dano ao corpo de um rei tailandês.

Um dos generais de Taksin, Phra Phutthayotfa Chulalok, então ascendeu ao


trono em 1782 como Rama I (r. 1782 - 1809). E um de seus primeiros atos
como rei foi mudar a capital para Bangkok atual, do outro lado do rio Chao
Phraya, a ficar mais distante dos possíveis ataques dos birmaneses ao oeste.
Rama I, convencido de que a decadência de Ayutthaya foi causado por

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negligência dos ensinamentos e estudos budistas, buscou patrocinar templos e
traduções para o tailandês de clássicos, como o Milida Panha, "As Questões do
rei Milinda", corpo de texto escrito em páli nos primeiros séculos de nossa era
que deu início à tradição teravada do budismo. Além disso, o rei buscou
reformar todas as ordens monásticas, perseguindo práticas corruptas e
exigindo a identificação de todos os monges pelo reino. Ao fim de seu reinado,
em 1809, o budismo tai havia assegurado uma coesão e unidade forte o
suficiente para conferir a Tailândia sua própria identidade nos séculos
seguintes.

O reino de Sião conheceria um período de consolidação além de suas


fronteiras, pois, com seu ativo envolvimento no comércio asiático, colecionou
diversos tratados de vassalagem com reinos menores. Um deles, o do
sultanato de Kedah ao sul, na península malaia, concedeu uma ilha, a de
Penang, em 1786 a um britânico, Francis Light, por ter protegido a região
contra o ataque de piratas indonésios. Foi um gesto de gratidão e
reconhecimento do sultão, porém acendeu o sinal de alerta em Bangkok, pois
Kedah tinha assim desrespeitado a suserania acordada com o reino siamês.
Aos olhos britânicos, Penang surgiu como uma base de ancoragem na região
dos Estreitos, passagem estratégica entre o Oceano Índico e o Mar da China
Meridional. Os franceses, alguns anos antes, tinham firmado acordos com o
sultão de Aceh, para basear e ancorar seus navios no norte da ilha de
Sumatra. Em 1794, pouco antes da morte de Light, Penang já contava com
milhares de residentes, muitos deles mercadores chineses e muçulmanos que
tinham fugido da dura política comercial implantada pelos holandeses a partir
de Java. E foram os holandeses que tinham dominado também toda a rota do
Estreito de Malaca, pois tinham desde 1641 tomado o controle de Malaca dos
portugueses e, pouco antes dos britânicos em Penang, avançado seu controle
sobre a região central de Sumatra, em Riau.

A presença britânica e europeia começou a ser considerada como ameaçadora


pela corte em Bangkok. Especialmente depois da aquisição de Tenasserim
depois da guerra Anglo-Birmanesa de 1824-1826. Uma ampla fronteira foi
formada com isso, entre os siameses e britânicos, mas o rei de Bangkok ficou
aliviado ao tomar conhecimento de que foi respeitada sua suserania sobre os
estados malaios de Patani, Kedah, Kelantan e Trengganu em momento
posterior à morte de Francis Light. Em último momento, no início do século 20,
somente seria preservado a região de Patani aos siameses.

Apesar dos acordos Anglo-Siameses feitos em 1826 terem estabelecidas as


relações com os países ocidentais, a desconfiança com os europeus em
Bangkok fora sempre presente. Isso foi expresso por um dos sucessores no
trono em Bangkok, Nangklao ou Rama III (r. 1824 - 1851), que foi realista ao
considerar o prospecto de evitar quaisquer conflitos com os birmaneses e
vietnamitas e a privilegiar as atenções com os países ocidentais, ainda mais
depois da esmagadora vitória desses na Primeira Guerra do Ópio (1839 - 1842)
contra o império chinês.

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Seu irmão, Mongkut, Rama IV (r. 1851 - 1868), conseguiu a façanha de
preservar a soberania siamesa no duro jogo imperialista europeu em meados
do século 19 no Sudeste Asiático. A situação de seu reino estava longe de
estar tranquila, pois as regiões birmanesas e malaias foram gradativamente
sendo incorporadas pelos britânicos e pelos franceses vindos do Vietnã. Para
regularizar as relações, foram assinados cruciais tratados em 1855 com os
britânicos e, um após, com os franceses, nunca a perder de vista as
oportunidades comerciais, inclusive com relação ao infame comércio de ópio
levado a cabo pelos britânicos nas próximas regiões indianas, em Bengala, e
birmanesas.

Chulalongkorn, ou Rama V (r. 1868 - 1910), sucessor de Rama IV, foi hábil em
buscar explorar os temores expansionistas de britânicos e franceses no
Sudeste Asiático. E nesse sentido, o reino siamês passou a ser considerado
como um Estado tampão entre as duas potências europeias, os britânicos ao
oeste e sul, os franceses ao leste. Chulalongkorn continuou a política de
modernização ocidental implantada pelo seu pai e cultivou as boas relações
com os governos europeus, com particular cuidado com a presença de
comunidades estrangeiras e missionários em seu reino. Ademais, o rei adquiriu
gosto por aprender as línguas europeias e importou livros e obras para se
manter a par das artes e ciências de fins do século 19. Seu interesse foi em
grande parte despertado na sua criação por uma governanta e tutora indo-
britânica, Anna Loenowens (1831 - 1915). No restante de seu governo,
Chulalongkorn reformou amplamente a estrutura política e administrativa do
reino siamês. Decretou o fim da servidão em 1905, renovou a estrutura jurídica,
militar e burocrática para mais próxima aos modelos europeus, e buscou coibir
as práticas clientelista e corruptas de seu governo. Em suma, foi durante os
governos de Rama IV e Rama V que o Sião conheceu, de 1851 a 1910, uma
revitalização reformadora que preservou sua autonomia frente ao imperialismo
ocidental no Sudeste Asiático.

Essa relativa independência, contudo, veio com um custo pesado a negociar os


seus territórios antes dominados pelos siameses com os britânicos e franceses.
No Laos e Camboja, os franceses estabeleceram protetorados a partir das
decisões do monarca cambojano em 1863 em abdicar da suserania siamesa
para favorecer os franceses. O rei siamês foi obrigado a aceitar tal acordo,
depois da demonstração de força de um navio canhoneira francês ter ancorado
na cidade cambojana de Phnom Penh. Em 1893, outra vez, canhoneiras
francesas navegaram ostensivamente pelo rio Chao Phraya a persuadir o
governo em Bangkok a aliviar a suserania sobre o Laos.

Referências
Dr. Emiliano Unzer é professor e pesquisador de História da Ásia na UFES,
autor de artigos e livros na área da história asiática, e criador do canal no
YouTube (www.youtube.com/emilunzer).

COOKE, Nola & LI, Tana (Orgs.). Water Frontier: Commerce and the Chinese
in the Lower Mekong Region, 1750-1880. Rowman & Littlefield, 2004.

22
HALL, Kenneth R. A History of Early Southeast Asia: Maritime Trade and
Societal Development, 100–1500. Lanham, Maryland, EUA: Bowman &
Littlefiled, 2011.

ONGSAKUN, Saratsawadi. History of Lan Na. Chiang Mai, Tailândia: Silkworm


Books, 2005.

SHAFFER, Lynda Norene. Maritime Southeast to 1500. Armonk, Nova York,


EUA: M. E. Sharpe, 1996.

SIMMS, Peter & SIMMS, Sanda. The Kingdoms of Laos: Six Hundred Years of
History. Richmond, Surrey, Reino Unido: Curzon Press, 1999.

SWEE-HOCK, Saw & WONG, John (Orgs.). Southeast Asian Studies in China.
Cingapura: Institute of Southeast Asian Stuides, 2007.

WENK, Klaus. The Restoration of Thailand under Rama I (1782 - 1809).


Tucson, Arizona, EUA: University of Arizona Press, 1968.

23
DEPENDÊNCIA E DESENVOLVIMENTISMO: DISCUSSÕES
TEÓRICAS A PARTIR DA ANÁLISE DAS ECONOMIAS
ASIÁTICAS NO SÉCULO XX por Érico Azera

O presente trabalho tem como objetivo mobilizar as contribuições de teorias do


desenvolvimento para a análise das economias asiáticas. Para isso, trazemos
o enfoque para os quatro NICs [Newly Industrialized Countries] do leste da
Ásia, também chamados de Tigres Asiáticos “originais”, formados por Coreia
do Sul, Hong Kong, Cingapura e Taiwan e para os quatro países fundadores da
Associação de Nações do Sudeste Asiático [ASEAN-4], Indonésia, Filipinas,
Malásia e Tailândia. Serão destacados, ao longo do breve trabalho, casos de
políticas desenvolvimentistas e centradas no protagonismo estatal próprio do
contexto asiático, bem como as razões para o surgimento de ideais
protecionistas nas economias da região. O amparo teórico da dependência por
autores latino-americanos mostrou-se uma eficiente ferramenta de análise do
desenvolvimento para além do ocidente, e por isso referências dependentistas
são abordadas [BAMBIRRA, 2013; FONTES, 2010; GUNDER FRANK, 2005;
PREBISCH, 1949]. Por fim, observa-se a intervenção estatal operada na
prática pelo Estado desenvolvimentista, com políticas de estímulo, alívios e
estratégias de crescimento econômico contracionistas do ponto de vista do
comércio internacional, que foram revertidas a partir de meados da década de
1980.

Ao olharmos para o panorama geopolítico da região a partir dos anos 1950,


nota-se que a polarização do período da Guerra Fria já dividia o continente
asiático e trazia ideais antagônicos de desenvolvimento. As duas frentes
ideológicas antagônicas [na esteira das rivalidades entre os EUA e a URSS]
foram responsáveis por, de certa forma, fornecer contribuições ao projeto
desenvolvimentista asiático que, ao mesmo tempo em que se enquadrava nos
moldes capitalistas de crescimento econômico, admitia a necessidade do
protagonismo estatal no processo do crescimento. É por esse motivo que o
modelo aplicado nos países estudados se afasta da “ortodoxia” marxista-
leninista e, por isso, funciona dentro dos marcos institucionais do mercado
[FONSECA, 2015]. O modelo capitalista ideologicamente alinhado ao ocidente,
liderado pelos EUA, não foi desafiado pelos Estados do leste e sudeste
asiático, sem interesse nenhum em superá-lo. O modelo adotado por
Cingapura é emblemático nesse sentido, pois havia um interesse simultâneo do
governo em neutralizar os ideais comunistas que se reverberavam nos
movimentos de guerrilha malaios. As propostas de desenvolvimento da ilha se
aliaram à orientação “mercadológica” com o passar dos anos pois, sem a
inserção no mercado internacional, a pequena cidade-Estado não alcançaria a
viabilidade econômica, muito menos uma inserção efetiva no comércio exterior
[RIEGER; VEIT, 1990].

24
Passando para uma abordagem propriamente teórica, Amsden [1989, 1991,
2001] e Doner [1991] classificam que dentre os objetivos do modelo de Estado
desenvolvimentista estão a eliminação das relações de dependência e subjugo
e a busca por um crescimento autônomo e nacional. Ressalta-se, assim, que
apesar do protagonismo acadêmico concentrado na América Latina, os
enfoques dependentistas descreveram objetivos de desenvolvimento pautados
pela soberania nacional que se podem ser utilizados como lente para a análise
das regiões asiáticas já mencionadas. A partir dos anos 1940, com seu auge
na década de 1960, a proposta de um modelo autônomo de crescimento
econômico era manifestada entre teóricos na periferia do sistema internacional
[WALLERSTEIN, 2006]. O desenvolvimento almejado seria alcançado a partir
das seguintes ações macroeconômicas por parte dos governos: [a] o controle
das taxas de câmbio e o protagonismo do Estado na execução de políticas
fiscais; [b] a promoção dos investimentos priorizando o capital nacional; [c] o
fomento à industrialização tendo como base os mercados internos; [d] o
impulsionamento da produção nacional e garantias aos setores produtivos
considerados estratégicos [DONER, 1991; DONER; RITCHIE; SLATER, 2005;
HILLEBRAND, 1990].

Portanto, coube ao Estado a liderança na marcha para a correção das


imperfeições geradas pela abertura de mercado. O objetivo do
intervencionismo era o de garantir o aumento das capacidades produtivas com
um enfoque na produção industrial, visando a superação do modelo
agroexportador e dos enclaves mineiros acelerando, assim, a produtividade e a
difusão do progresso técnico [FONSECA, 2015; LÓPEZ, 2010]. Os ajustes
deveriam ser operados pelos governos a fim de garantir uma industrialização
eficiente, racional e planejada. A espontaneidade de mercado, classificada na
concepção liberal como “a mão invisível do mercado”, acabaria prejudicando as
economias da periferia e, por isso, seria a figura estatal a responsável por
mediar a inserção dessas economias no mercado internacional. Injetar
recursos financeiros domesticamente e alocá-los de maneira racional é uma
das diretrizes do Estado desenvolvimentista, especialmente em setores onde a
iniciativa privada é insuficiente na garantia de seu crescimento.

Ainda sob o ponto de vista teórico, López [2010] infere que foi durante o auge
da teoria econômica do desenvolvimento [anos 1950 e 1960] que passou a se
considerar a eliminação dos geradores de subdesenvolvimento e,
consequentemente, as implicações que o subdesenvolvimento econômico
geraria do ponto de vista social. Com base no enfoque estruturalista [o
chamado estruturalismo cepalino], a marginalização dos países periféricos é
imposta pelos aspectos sistêmicos que impõem, de cima para baixo [do centro
para a periferia do sistema internacional], as condições de subdesenvolvimento
vividas pelos países marginalizados. É evidente que as conceituações
desenvolvimentistas, dependentistas e estruturalistas contribuíram para a
promoção de processos de desenvolvimento endógeno e com a proposta
industrializadora como primordial para a eliminação da dependência comercial.
Da mesma forma, entendia-se essencial a modernização das economias no sul

25
global e a quebra da dependência, enxergando o alastramento do modo de
produção capitalista de modo crítico [PIETERSE, 2010].

Os estudos desenvolvimentistas demonstram que a relação Estado-setor


privado se dá a partir da existência de uma burocracia estatal voltada a alguns
setores em específico. A existência de programas de estímulo assegurados por
bancos de desenvolvimento e por instituições financeiras voltadas a viabilizar
os incentivos fiscais são essenciais para a atividade econômica em uma
indústria ainda em construção. A hiperburocratização se traduz, a título de
exemplo, na criação de ministérios e agências governamentais que amparam
as esferas produtivas. A título de exemplo, Johnson [1999 apud. DONER,
1991], afirma que a criação do Ministério do Comércio Internacional e da
Indústria [MITI] pelo governo do Japão foi um dos impulsionadores de uma
corajosa política industrial no país, que se internacionalizou estabelecendo
filiais de empresas japonesas no exterior. O componente da institucionalização
e do diálogo entre o Estado formulador e planejador e o empresariado se
mostrou importante ao passo que os canais estabelecidos conferiram aos
governos uma maior inserção nas sociedades asiáticas. É a chamada
“autonomia inserida” do setor público que trata da racionalização burocrática e
do diálogo entre uma elite estatal e uma elite empresarial-industrial, permitindo
a formulação de políticas que beneficiem ambos os grupos [WRIGHT, 1996].

Outro aspecto do desenvolvimentismo asiático de industrialização rápida é a


“exclusão seletiva” operada pelos governos e pelas instituições de fomento, isto
é, abrir mercados para alguns setores produtivos restringindo a liberalização de
outros. A “escolha de vencedores” [AMSDEN, 2009; FONSECA, 2015] se
relaciona ao modelo de Estado desenvolvimentista pois os bancos de
desenvolvimento têm um papel crucial como pilar da mediação entre o Estado
e a indústria. A concessão de crédito e os investimentos se aplicariam àquelas
empresas com necessidade de subsídio para garantirem a sobrevivência, não
só internacionalmente, como no cenário doméstico. O conceito de proteção
governamental dialoga com o ideário da política de substituição de importações
[PSI], que não foi uma especificidade das economias do leste e sudeste
asiático, mas encontrou espaço em grande parte dos países do sul global. A
PSI ecoava os ideais propagados pelas correntes teóricas dependentistas
latino-americanas e serviu como “escudo” para os segmentos industriais mais
“frágeis” e “nascentes”, que se sustentariam com a ajuda governamental. Com
a PSI no leste e sudeste asiático, aumentou-se o nível de investimento em
setores específicos, em especial naqueles que ainda não haviam estruturado
eficientemente sua produção. Na prática, os esforços se concentraram na
indústria pesada, em especial na indústria metalúrgica, química, de maquinário,
de transportes, etc. A partir da década de 1970, por exemplo, o Banco da
Indonésia passou a aumentar a oferta de crédito aos setores químico e têxtil e
o Banco Negara da Malásia no setor alimentício e de metais básicos
[AMSDEN, 2009].

Concomitantemente ao diálogo com oligopólios empresariais, o Estado


desenvolvimentista garantia seu poder sob as forças produtivas a partir de

26
empresas estatais. Cingapura, por exemplo, manteve 490 empresas estatais
nos setores de manufatura, petroquímica, engenharia naval, construção civil,
entre outros [RIEGER; VEIT, 1990]. Apesar dos objetivos de geração de um
maior nível de empregabilidade no campo doméstico, o Estado
desenvolvimentista deveria orientar suas firmas à busca da eficiência e da
competição internacional para que fosse garantida a sustentabilidade e
continuidade das políticas de proteção. Para alcançar o patamar de eficiência
das empresas estrangeiras, políticas macroeconômicas eram realizadas
através de mecanismos de preços, da manipulação das tarifas de importação e
exportação e das taxas de câmbio e de juros.

Em função disso, apesar das premissas de desenvolvimento endógeno e


nacional, o modelo de crescimento autônomo das economias analisadas aqui
não se propõe a negar a participação no mercado capitalista
internacionalizado. Observa-se, portanto, que as políticas econômicas
operadas pelos governos asiáticos eram intervencionistas mas visavam ganhos
comerciais. A liberalização que passou a ser promovida a partir da década de
1980 é vista até hoje de maneira crítica pelas correntes teóricas da
dependência, pois mina as oportunidades de desenvolvimento auto-sustentado
das economias periféricas que vinham sendo construídas [HAGGARD, 1990, p.
16 apud. DONER, 1991, p. 824]. A abertura econômica também escancara o
papel hegemônico que norte desenvolvido exerce sobre os Estados nas franjas
do sistema internacional, forçando-as à adequação ao padrão capitalista de
acumulação [WALLERSTEIN, 2006]. As alterações nas taxas de juros e de
câmbio, nesse sentido, servem ao propósito de inserção na dinâmica financeira
global. O Estado desenvolvimentista, portanto, deveria operar juros baixos para
estimular investimentos e juros altos para estimular a poupança. Além disso,
deveria desvalorizar o câmbio para incentivar as exportações e valorizá-lo para
minimizar o custo do pagamento de dívidas [AMSDEN, 1989].

As políticas de substituição de importações foram gradualmente repostas por


políticas de fomento à exportação, processo este que é tratado por diversos
trabalhos que examinam o desenvolvimentismo asiático [AMSDEN, 1989,
1991, 2001; BANCO MUNDIAL, 1993; DONER, 1991; DONER; RITCHIE;
SLATER, 1995; LEUENBERGER, 1990; WOO-CUMINGS, 1999]. A transição
da PSI para a promoção das exportações nos países asiáticos se relaciona à
perda do papel, antes exclusivo do Estado, na disciplinarização dos setores
produtivos. A partir da metade da década de 1970, os governos passaram a
submeter as políticas econômicas domésticas às pressões mercadológicas
externas [principalmente do norte global], porém, o papel da burocracia estatal
na coordenação das políticas de subsídios e de atração do investimento
interno não foi perdido. A partir desse período, as indústrias de trabalho-
intensivas foram pressionadas a direcionar seus produtos ao mercado externo,
consoante às demandas domésticas de criação de postos de trabalho no setor
manufatureiro. O movimento que passou a exigir do Estado mais subsídios à
indústria exportadora, processo esse que teve início nos NICs [principalmente
no Japão e na Coreia do Sul], e se alastrou para as economias da ASEAN-4,
que diversificaram a cesta exportadora com bens de indústria leve como os

27
têxteis, alimentos processados e eletrônicos simples. A região superou a
agroexportação e passou a incrementar a produção manufatureira [DONER,
1991, p. 826].

No que diz respeito aos níveis de investimento e poupança internos, o Estado


desenvolvimentista asiático procurou mantê-los elevados para que fosse
possível a obtenção de tecnologia de ponta e o resguardo das políticas de
exportação. Contudo, o posicionamento dos governos em relação ao
investimento estrangeiro mudou drasticamente a partir dos anos 1980, década
marcante para entender a crise financeira do final dos anos 1990 [RICZ, 2020].
O “paradigma dos gansos voadores” [“flying geese paradigm”] nos ajuda a
entender o processo de abertura ao investimento externo por parte dos
Estados asiáticos, primeiramente observado na Coreia do Sul, Japão e Taiwan
e, posteriormente, nas economias do sudeste asiático [KASAHARA, 2013, p.
17]. A liberalização de capitais, reflexo dos estímulos à indústria exportadora,
passou a ser uma estratégia das agências promotoras da exportação a fim de
possibilitar maiores fluxos de investimento externo, garantir a transferência
tecnológica e firmar acordos de joint ventures, permitindo mecanismos de
catch-up. Os Estados do grupo ASEAN-4 flexibilizaram as políticas de controle
de capitais e passaram a ser mais dependentes dos fluxos externos de capital.
Com isso, mesmo que houvesse a manutenção do intervencionismo estatal no
campo produtivo, os países se viram envolvidos nas redes regionais e globais
de dependência [AMSDEN, 2001; FONTES, 2010; KASAHARA, 2013],
passando a acumular problemas de disputa de propriedade intelectual,
descontrole de preços internos e imbróglios de endividamento com instituições
internacionais [DONER, 1991, p. 828-830]. Alguns exemplos que explicitam
esses imbróglios incluem: disputas de propriedade intelectual entre EUA e os
NICs, altas no preço de commodities que beneficiaram as exportações em
Cingapura e pressões externas sobre a dívida nos países da ASEAN-4,
levando Filipinas e Tailândia a encontros com lideranças do Banco Mundial
[DONER, 1991, p. 830].

A fim de conferir uma síntese para os pontos até abordados neste trabalho,
conclui-se que diferentes abordagens teóricas desenvolvimentistas se
comprovaram na experiência prática nos NICs e nos Estados do sudeste
asiático. A intervenção pública no campo empresarial privado se deu a partir de
um diálogo entre a elite política e as forças oligopolísticas, garantindo uma
racionalidade de crescimento endógeno às firmas na esfera doméstica. O
desenvolvimento produtivo nos países de industrialização tardia, dentre os
quais estão incluídos diversos países asiáticos, concretizou-se, em um primeiro
momento, por meio da política de substituição de importações, evitando as
pressões mercadológicas na produção doméstica. Posteriormente, a
necessidade de operação dentro dos marcos institucionais capitalistas foi
reforçada pelos governos, que passaram a promover políticas de fomento à
exportação e a desregulamentação [liberalização] dos fluxos de capital
estrangeiro. Os estudos da teoria da dependência revelam que tais
flexibilizações financeiras e comerciais se configuraram no “desenvolvimento
ilusório”, quando a eficiência produtiva e os lucros colhidos pelos atores

28
privados não se comprometem com o ideal de desenvolvimento endógeno e
planejado [KASAHARA, 2013].

A abertura descontrolada e a desregulamentação dos mercados asiáticos


foram condições necessárias para o surgimento de crises financeiras a partir
da metade dos anos 1980. Provou-se, portanto, que o crescimento significativo
no período aqui estudado foi conquistado em um cenário de condição sistêmica
desfavorável por parte das economias asiáticas, sujeitas às hegemonias do
capitalismo global e ao capital-imperialismo [FONTES, 2010]. Dessa forma, o
abandono dos ideais de protagonismo dos governos na condução
macroeconômica traça uma relação explícita com as vulnerabilidades
adquiridas por esses países frente à globalização neoliberal e, por isso, o
resgate teórico dependentista e desenvolvimentista demonstra-se pertinente e
essencial para pensarmos alternativas de desenvolvimento sustentáveis e
comprometidas com a redução das assimetrias domésticas e internacionais na
Ásia.

Referências
Érico Azera é graduando em relações internacionais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-Rio], bolsista do programa de
iniciação científica PET/TEPP do Instituto de Relações Internacionais [IRI PUC-
Rio] e membro da Liga de Estudos Ásia-Pacífico [IRI PUC-Rio]. Lattes:
https://lattes.cnpq.br/8765850430954208. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7689-2250.

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29
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30
WOO-CUMINGS, M. The Developmental State. Nova York: Cornell University
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31
“IRMÃOS QUE DIVIDEM UMA VIDA”: DISPUTAS ENTRE
MASCULINIDADES HEGEMÔNICAS NA GUERRA MONGOL
(1204-1206) A PARTIR DA HISTÓRIA SECRETA DOS
MONGÓIS, porJosé Ivson Marques Ferreira de Lima

Escrita por volta do século XIII, a História Secreta dos Mongóis [元朝祕史
Yuanchao bi shi]é uma das únicas fontes literárias que narram sobre a vida de
Temüjin e sua trajetória para se tornar Chinggis Qan [Líder Oceânico] a partir
de um olhar mais interno, isto é, de uma perspectiva mongol [Allsen, 1987, p.
17].

O livro, organizado em 12 capítulos e 286 parágrafos, é uma das poucas fontes


que temos sobre o passado mongol que foram escritos numa época muito
próxima dos acontecimentos que são narrados ou imaginados. Pois muitos
historiadores debatem a respeito da factualidade de alguns eventos
apresentados pelo documento.

A obra possui esse nome por ser dirigida aos membros da “Linhagem Dourada”
[Altan Ordos], isto é, a aristocracia mongol, que eram descendentes do
Chinggis Qan. O original foi perdido durante a transição Yuan-Ming [1368], com
isso, a conservação do livro se deu graças a letrados chineses Ming que
transcreveram a obra em caracteres chineses [empregados apenas de forma
fonética] [Cf.: HUNG, 1951].

O documento possibilita o estudo de uma miríade de temas como os já


clássicos guerras, política e economia no Império Mongol; mas também outros
temas pouco discutidos ou ignorados como história das mulheres, relações de
gênero e masculinidades.

A masculinidade é um objeto de análise pouco discutido entre historiadores,


que tendem a naturalizar de forma estruturalista um tipo de ideal de ser
homem. No caso de sociedades asiáticas, como afirma Said “O Oriente é
feminilizado” [Cf.: SAID, 2007, p. 280], neste caso, até mesmo os homens
considerados orientais são representados de forma emasculada e inferiores
aos ocidentais.

O imaginário acerca da masculinidade mongol surge – de forma direta ou


indireta – na História e em outras artes, como no cinema. A imagem
eurocêntrica do mongol “bárbaro, invasor e estuprador” [ver o Temujin de John
Wayne no filme Sangue de Bárbaros, de 1956] que essencializa o mesmo
como um selvagem é algo que deve ser questionada por historiadores.

Dito isto, este texto pretende analisar as relações de masculinidades entre os


personagens históricos Temüjin, Jamuqa e Ong Qan assim como apresentadas

32
na História Secreta dos Mongóis visando discutir sobre como a relação de
irmandade jurada entre homens – anda – foram importantes para construção e
consolidação do Império Mongol, a Yeke Mongol Ulus.

Para tanto, a fim de discutir sobre a dinâmica desses relacionamentos


masculinos e da crise gerada pelas disputas por poder pelos três personagens,
será feito uso do conceito de masculinidade a partir de Gilmore [1990], também
a de masculinidades hegemônicas, a partir de Connell e Messerschmidt [2013].

Os laços de relacionamentos na sociedade mongol


Para o historiador mongol Urgunge Onon [1990, p.7], o que possibilitou a
unificação dos demais povos das estepes sob a bandeira de Chinggis Qan e,
portanto, a criação do Império Mongol foi o que ele chama de “laços vitais”. São
eles: quda, o casamento, que unia tanto os homens com as mulheres quanto
suas famílias; nokor, o elo da amizade, que unia um soldado ao seu qan e
anda, o laço da irmandade juramentada, que uniam dois homens. Sendo este
último o que iremos analisar com mais detalhe neste texto.

Porém, esses três laços que uniam as famílias mongóis não foram criação do
Chinggis Qan, elas já eram praticadas pelos mongóis anteriormente. Na
verdade, elas foram utilizadas por ele de maneira que, ao formar alianças
afetivas – e também políticas -, ele garantia a estabilidade de seu povo.

Há sobre os povos da Ásia Interior, de uma forma geral, a noção de que eles
eram “bárbaros”, “aculturados” que “sempre representam uma ameaça” às
sociedades sedentárias, consideradas “civilizadas” [um binarismo do qual
sinólogos, como Niccola Di Cosmo, Timothy Brook e Herbert Franke, se
mostram críticos, demonstrando que a relação entre China e os povos da Ásia
Interior era bem diferente].

Discutir acerca dessas formas de relacionamento na sociedade mongol,


consequentemente, é recusar e se afastar de explicações simplistas e até
mesmo orientalistas de um povo e demonstrar a complexidade da qual é
própria dessa sociedade. Rompendo com aquilo que David Sneath denunciou
como a noção de que os mongóis é um povo “atemporal, tradicional, nômade,
sociedade tribal organizada pelo parentesco” [Sneath, 2000, p. 3] que, como
ele explica, não se adéquam para explicar acerca desse povo, sua sociedade e
cultura.

Desse modo, discutir gênero no mundo mongol, é partir de uma nova


perspectiva e demonstrar as particularidades dessa sociedade. É ir além de
uma perspectiva centrada em militarismo, guerras e economia, dando espaço
para debates igualmente importantes que ampliam o nosso olhar sobre os
mongóis. Assim como vem sendo feito por mongolistas nos últimos 10 anos
[Cf.: Birge, 2002; Di Nicola, 2016; Espada, 2017; Broadbridge, 2018; Favereau,
2021].

33
Portanto, o caso dos anda, que será analisado a seguir, nos possibilita tanto
pensar a sociedade mongol a partir de um novo conceito quanto trazer para o
conceito de masculinidade uma nova experiência, a partir de um povo que não
se inclui nas costumeiras esferas ocidentais [aos estudiosos de
masculinidades, isso constitui um desafio, e tem na obra de David Gilmore um
primeiro esforço de estudar outras masculinidades].

A irmandade jurada (anda) e as disputas que antecedem a formação do


Império Mongol
Em seu livro Manhood in the Making, o antropólogo David Gilmore [1990]
reconhece que o conceito de masculinidade, o ideal de ser homem, não basta
para se discutir acerca do mesmo em outras sociedades, sobretudo as não-
europeias. O autor busca então pensar sobre como a cultura marca as
expressões de masculinidade [GILMORE, 1990, p. 9-10].

Logo, a masculinidade não é determinada de forma biológica, a cultura também


atua na ideia do que é ser homem, na forma como eles se relacionam entre si e
na imagem idealizada da qual esses homens devem aspirar se tornar. Assim,
cada sociedade terá seus próprios papéis de gênero, cabe aos historiadores
compreender a historicidade desses papéis e compreender como eles não
estáticos e mudam a cada cultura e época.

Na sociedade mongol, há um título que exemplifica bem o que seria esse ideial:
a palavra ba’atur, que significa “herói”. No História Secreta dos Mongóis essa
palavra dá ênfase ao valor moral e militar que aquele homem possui, sendo um
deles Yisugei Batur, pai de Temüjin, um exímio caçador que derrotou um líder
tátaro numa guerra e retomou os kereítas à liderança de Ong Qan, seu anda
[Cf.: História Secreta dos Mongóis, §:177].

Porém, apesar da fonte mencionar apenas homens como ba’atur, há diversas


mulheres e qatuns [rainhas] que foram contempladas com o título, quatro delas
pelo próprio Chinggis Qan [ver Weatherford, 2010]. Portanto, na sociedade
mongol, as mulheres também eram consideradas capazes de portar essa
masculinidade.

Ademais, outro marcador de masculinidade era o laço vital chamado anda, que
unia homens de diferentes famílias que “partilhavam uma vida” e se auxiliavam
de forma militar e política. Segundo o historiador Christopher Atwood:

“A relação de anda era uma irmandade juramentada formada por homens que
não possuíam uma relação direta; […] Encontradas em muitas sociedades
nômades turco-mongol, o ritual da irmandade de sangue envolvia beber de
uma taça onde o sangue de ambas as partes foi derramado. Os ‘irmãos’ então
iriam trocar presentes e habitualmente passar um tempo vivendo na mesma
tenda, ou ger.” [Atwood, 2004, p. 13. Tradução nossa].

Essa relação é observada ao longo do capítulo 3 do História Secreta dos


Mongóis, que detalha mais a relação entre Temüjin e Jamuqa antes da

34
posterior ruptura entre os dois. Segundo a documentação, a partir de um
discurso do Jamuqa, a relação de anda consiste em homens dividirem uma
vida:

“Em dias anteriores, velhos homens costumavam dizer: ‘Homens que são
irmãos jurados [dividem] uma vida. Eles não abandonam um ao outro, mas
tornam-se protetores de ambas as vidas’” [História Secreta dos Mongóis, §: 117
apud ONON, 2001, p. 97. Tradução nossa].

Em tese, a relação de anda é um dos elementos fundamentais para a


ascensão política de Temüijn. Afinal, após o seu pai ter sido morto na infância,
sua família, os borjínguidas, perderam o apelo que possuíam e ele lidou com
experiências de marginalização. Nesse período, a família tem sua
sobrevivência garantida pela Senhora Ho’elun [Ho’elun Üjin], sua mãe.

Foi graças a relação de anda que seu pai tinha com o Ong Qan, e de sua
própria com Jamuqa, que Temüjin conseguiu apelo suficiente para se
estabelecer como qan dos mongóis, e posteriormente, reunir povos sob esse
mesmo gentílico.

No entanto, como explica a fonte, essas relações foram rompidas graças às


pretensões políticas de cada um dos integrantes dessa aliança. Na
documentação, Temüjin é descrito como o único que não havia grandes
pretensões de se tornar um grande líder, enquanto Jamuqa possuía esse
ímpeto. Foi a esposa de Chinggis Qan, Borte que o aconselhou a se separar de
Jamuqa e liderar seu próprio povo. Segundo o historiador Bruno De Nicola em
um estudo a partir do documento, esse espaço de dar conselhos ao Qan foi
ocupado por sua mãe e esposa [De Nicola, 2008]. No caso do Ong Qan,
temendo perder seu espaço como futuro qan dos kereítas, Seggum convence
Ong Qan a trair Chinggis Qan, e posteriormente, declarar guerra.

Esses conflitos que ocorreram de forma mais direta entre cerca de 1204 a 1206
é conhecido como “guerra mongol”, e tem seu fim após a morte de Ong Qan e
rendição de Jamuqa, que é posteriormente executado, a seu próprio pedido.
Com isso, Temüjin é nomeado Chinggis Qan numa assembleia [quriltai], o
grande líder de todos os povos das estepes.

No discurso presente na História Secreta dos Mongóis, a relação de anda é


uma das formas de relacionamento que os homens mongóis utilizam para
cuidar um do outro e lutarem juntos em caso de uma eventual guerra. A
documentação busca sempre classificar ambos Jamuqa e Ong Qan como
traidores que romperam com um vínculo importante ao se negarem a aceitar o
protagonismo que Temüjin vinha recebendo.

Essas disputas entre masculinidades, que envolvem hegemonia e


subordinação, por parte de agentes políticos podem ser melhor entendidas
através do conceito de masculinidades hegemônicas [Connel; Messerschimdt,
2013] no qual é definido como algo que “exige que todos os outros homens se

35
posicionem” onde a hegemonia “significava ascendência alcançada através da
cultura, das instituições e da persuasão” [Ibidem, p. 245].

Logo, as formas como os líderes se relacionam impactam a influência política


que eles recebem. O ideal de masculinidade mongol que pode ser definido
como “um homem com altas capacidades de caça e militares” também se
relacionam com ele respeitar os seus vínculos. A hegemonia nestas relações
se percebe na forma com que Chinggis Qan ascende de forma uma que ele
deixa de ser um irmão ou um filho para ser visto enquanto um concorrente.

Portanto, segundo a documentação, a relação de anda foi uma das principais


formas que Chinggis Qan garantiu sua estabilidade política e, dado os
contextos em que precisou romper com suas alianças e/ou foi traído, unificou
os demais povos sobre sua bandeira.

É evidente que outras formas também foram importantes, afinal, o casamento


com princesas tátaras após as guerras contra esse povo garantiram que esse
povo o seguisse; e a noção de amizade era a principal maneira que ele
garantia a lealdade de seu povo. Afinal, o qan não dependia apenas de seu
carisma, e sim de sua habilidade de garantir a prosperidade de todos.

Dessa forma, a relação de anda se mostra necessária para a sobrevivência


estabilidade política dos líderes mongóis. Essa relação entre homens ligava
ambos e também sua família e seu povo [Ulus, que indica tanto um povo
quanto o território]. Sem ela, dificilmente Temüjin teria garantido sua ascensão
política nem teria tido o apoio necessário para fundar o seu império.

Considerações finais
A História Secreta dos Mongóis é uma fonte que possibilita o estudo da
sociedade mongol a partir de diversos olhares. Afinal, diferentemente do que
acontece com outras fontes chinesas, persas e europeias do século XIII e XIV,
os mongóis não são o outro dessa documentação.

Desse modo, é a partir da documentação que podemos ter contato com temas
que vão de organização social, militarismo, religião, política, geografia a temas
menos explorados como gênero e masculinidades. O que torna a fonte
necessária para discutir acerca da história mongol.

Do século XII ao início do século XIII, as sociedades das estepes se


encontravam fragmentadas e em confronto entre elas, sem uma liderança geral
que os reunisse em uma confederação. Logo, as alianças eram imprescindíveis
para garantir a estabilidade de um povo.

Portanto, analisar o caso dos anda possibilita pensar nas continuidades e


rupturas da sociedade mongol das quais Temüjin está inserido. Pois, foi com a
aliança com Jamuqa e Ong Qan que ele conseguiu adquirir um maior
protagonismo de modo a reunir os demais povos para que lutassem sob sua
bandeira. Analisar o vínculo desses homens a partir dessa documentação é

36
pensar acerca das complexidades que estão envoltas nas mesmas e de como
foi através dela que um império foi construído.

Diante do exposto, a masculinidade é um conceito que possui potencial de


fazer diversas contribuições aos estudos de diversas sociedades –
principalmente as consideradas “orientais”, que costumam ser ignoradas
nesses estudos. Assim, discutir masculinidade mongol é observar essa
sociedade a partir de um olhar renovado e oferecer outro significado para o
conceito de masculinidade.

Referências
José Ivson Marques Ferreira de Lima é graduando do curso de bacharelado em
História da Universidade Federal de Pernambuco [UFPE] e membro do
Laboratório de Estudos de Outros Medievos [LEOM]. Orientado pelo prof. Dr.
Bruno Uchoa Borgongino, produz pesquisas sobre História da China, História
dos mongóis, gênero e cinema. [ivson.marques@ufpe.br]

Fonte
ONON, Urgunge. The Secret History of the Mongols. The Life and Times of
Chinggis Khan. London; New York: RoutledgeCurzon Press, 2001.

Filme
SANGUE de bárbaros. Direção: Dick Powell. Produção: RKO Radio Pictures.
1956, 1 DVD. 111 min.

Bibiliografia
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38
BRÂMANE OU PANDAR: JOÃO DE BRITO E A QUERELA DOS
RITOS MALABARES (ÍNDIA, SÉC XVII), por Alexandre Cabús

A atividade missionária de João de Brito está circunscrita aos anos de 1673,


quando parte para Goa pela primeira vez, até 1693, quando é morto na região
de Oryur, na província jesuítica do Malabar. Embora sua atuação esteja dentro
deste contexto de vinte anos já tardios do século XVII, acreditamos que seja
importante recuarmos nosso olhar para o segundo quartel do mesmo século.
Isso se faz necessário pois a Querela dos Ritos Malabares foi um amplo e
complexo debate que, dependendo do estado de seus agentes, se configurava
de maneira distinta. Tendo em vista que na realidade de Brito o método de
accomodatio (difundido pelo italiano Roberto de Nobili) era amplamente
reconhecido e aceito em Portugal, até mesmo pela corte, buscaremos
evidenciar como o andamento dos diversos processos levou Brito a poder
regressar à Lisboa em 1687 e se colocar na presença de D. Pedro II ainda
como um “brâmane”.

Sendo assim, podemos partir do ano de 1615, onde é nítida uma mudança no
âmbito das missões jesuíticas na Ásia. Isso ocorre devido a morte do Geral da
Companhia, Claudio Aquaviva, estando afrente da instituição desde 1581. O
jesuíta Muzio Vitelleschi, antigo mestre de Roberto de Nobili, sucede Aquaviva
no posto de Geral da Companhia de Jesus, significando um quase imediato
melhoramento da condição de Nobili e seu método, o que pode ser evidenciado
com a aprovação de sua obra em 1616, evidenciada pelo breve papal de Paulo
V, Cum sicut Fraternitatis. Tal aprovação abre espaço para a volta missionária
de Nobili devido a retirada das acusações contra o missionário em 1617.
(AGNOLIN, 2021, p. 229-232)

Embora bastante favorável, tais movimentações não significavam uma


resolução por completa do conflito. Podemos observar isso através da figura do
Primaz de Goa, cuja nomeação data de 1615, Cristóvão de Sá e Lisboa.
Cristóvão era um dos maiores algozes de Nobili e protagonizou ações que
repercutiam na Companhia como um todo, recebendo apoio dos franciscanos e
dominicanos. Nesse sentido, ao acionar o Inquisidor de Lisboa, Fernão Martins
de Mascarenhas, contra Nobili, Cristóvão reaviva a polêmica. Embora o
inquisidor tenha tido papel mediador ao informar Cristóvão de Sá sobre a
necessidade de respeitar as deliberações vindas de Roma, ele recomenda que
sejam feitas averiguações mais detalhadas sobre as ações do método de
Nobili. Nesse viés, como afirma Adone Agnolin, a Querela toma contornos em
torno de uma disputa por interpretações, tangendo especificamente ao nível do
discurso, sem valor objetivo. (AGNOLIN, 2021, p. 229-232)

39
O novo concílio de Goa, marcado em 1619 por seu Primaz, teve como objetivo
principal questionar a validade do método de accomodatio. Desta maneira,
Roberto de Nobili é convocado a se fazer presente na conferência e o resultado
é a confecção de sua primeira Narratio, tendo como ponto principal os
fundamentos da metodologia de accomodatio. Entretanto, a delegação do
documento teve seu direcionamento ao arcebispo de Cranganor, Monsenhor
Ros. Nesse sentido, o concílio fecha em empasse entre os dois inquisidores
presentes, sendo necessária a remição dos documentos à Inquisição de
Lisboa, para que posteriormente fossem encaminhados à Roma. (AGNOLIN,
2021, p. 189)

Recebidos os documentos pela Propaganda Fide, Francesco Ingoli, seu


secretário, tinha como posicionamento o encerramento do caso do Madurai,
decretando a conclusão favorável à Nobili. Contudo, permaneceria em aberto o
debate sobre a validade dos usos de sinais por partes dos convertidos, sendo
ainda objetos de contestações. Nesse sentido, as especificidades da polêmica
circunscritas ao Madurai se confundiram com aquelas dos ritos malabáricos,
tendo como foco não somente a aceitação das castas altas, mas também a
adaptação das liturgias, ainda que em partes. É nesse sentido que há uma
transformação da polêmica do Madurai na polêmica do Malabar, constituindo
numa unanimidade do termo “polêmica dos ritos”. A questão dos ritos indianos
acabou por se inserir no interior de uma mais ampla confrontação entre a Igreja
indiana e a europeia/romana, que acabava por antecipar parte da polêmica do
Malabar, equacionando assim a do Madurai. (AGNOLIN, 2021, p. 195)

O ano de 1621 é um ponto importante no interior da Querela. Ele é marcado


pelo falecimento de três de seus protagonistas: O Primaz de Goa, o rival de
Nobili, Gonçalo Fernandes Trancoso e o Papa Paulo V. O pontífice que o
sucede, Gregório XV, ao criar a Comissão Romana, buscou de maneira incisiva
encerrar a Querela. Tendo uma composição bastante heterogênea, marcada
por um carmelitano, um beneditino e pelo Primaz da Irlanda, a Comissão
Romana teve o objetivo de julgar de maneira definitiva a controvérsia. Ainda
em 1621, o Inquisidor de Lisboa encaminhou um parecer favorável a Nobili,
resultando em um pronunciamento por parte da Comissão a favor do italiano.
Nesse sentido, a constituição da bula Romanae Sedis Antistes, datada de
1623, coloca um ponto final na primeira grande fase do confronto. (AGNOLIN,
2021, p. 231)

Nesse sentido, fica evidente que Nobili sai como vencedor, pois com o apoio
recebido por parte de Roma, o italiano pode se consolidar dentro do contexto
missionário indiano, exercendo sua autoridade com base em seu método.
Nesse viés, Roberto de Nobili exerceu sua missão se dirigindo aos territórios
do Mysore e Ceylon, desta forma, rompendo as fronteiras do Malabar. De certa
maneira, consolida de forma evidente a metodologia de accomodatio ao tornar-
se superior da missão do Madurai entre os intervalos de 1624-1632 e 1638-
1643, encerrando suas atividades com sua morte em 1656 no território de
Myliapor. (AGNOLIN, 2021, p. 231)

40
A mudança de postura do clero foi grande a respeito do uso da metodologia de
accomodatio. Dentro do contexto de Brito, as fontes nos apresentam indícios
de que a figura de Roberto de Nobili era amplamente utilizada como inspiração
para o futuro das missões portuguesas. Podemos observar, a partir de um
tópico presente na biografia de João de Brito, retirado de um documento
datado de 1691, onde o missionário aborda sobre a grande aceitação do uso
do accomodatio. Intitulado como: “De como os Padres da Companhia de Jesus
seguiram o exemplo do P. Roberto Nobili, e o modo que observam na
conversão d’aquella gentilidade”. O Tópico inicia com: “Como a experiencia que
o estylo que seguira o P. Roberto Nobili, era o mais conveniente, e eficaz para
insistir na conversão da gentilidade de Madurei, resolveram-se muitos dos
padres da Companhia de Jesus da província do Malabar a seguir o mesmo
estylo”. (BRITTO, 1852, fls. 40)

Pela citação podemos observar claramente que o método de Nobili não


somente era utilizado amplamente, como era tido como exemplo de
metodologia conversiva altamente eficaz. Além desta referência, podemos
encontrar menção ao método de accomodatio na carta ânua de 1683, quando é
abordado sobre os tratos dos gentios que se recusavam a estar na presença
de um europeu (parangui): “Tendo noticia clara de todos estes abusos o grande
servo de Deos, é exemplo de Missionario o Pe. Roberto Nobili de Santa
memoria; ” O documento prossegue afirmando que conforme “os costumes
políticos da terra”, Nobili evitava quaisquer contatos com europeus, mas que
isso valia a pena tendo em vista o grande número de conversões que este
“disfarce” o possibilitou. Ainda segundo a ânua, o italiano teria aberto um
espaço para a conversão no reino do Malabar que estaria fechado a muitos
séculos.

Nobili falece em 1656 em Melyapor e ainda assim, é surpreendente


encontrarmos documentos que remontem a sua importância na região da
província jesuítica do Malabar trinta e cinco anos após a sua morte. Mais
surpreendente ainda é pensarmos que em um relatório sobre a Missão do
Reino do Maduré, datado também de 1691, são listados seis missionários que
atuavam sobre esta jurisdição e com base nos métodos de Nobili, mas apenas
um deles, P. Xavier Burgesi, era italiano.

Esta afirmativa muda o jogo analítico sobre a primeira fase em que o conflito,
para diversas análises, se debruçava em um campo nacional. Se antes
poderíamos resumir toda a complexa disputa entre uma identidade portuguesa
circunscrita no modo de missionação identificado com o termo parangui e uma
leitura complexificada que permitia um grande mergulho cultural que
proporcionava a estratégia adaptativa, desta vez enxergamos a disputa em um
campo mais amplo. Campo este que não limita a identidade portuguesa
somente no âmbito do método de conversão, mas a liga, de maneira direta,
com a expansão do catolicismo. Nesse sentido, em um contexto pós Nobili e
Fernandes, a Querela dos Ritos deve ser abordada sobre uma dimensão
dentro do caráter ritualístico da própria atuação do missionário enquanto
“brâmane europeu/romano”.

41
Sustentamos tais afirmativas ao observamos o caso de Brito. Além de ter
missionado à moda de Nobili, João de Brito, diferentemente do italiano, a partir
do momento que atravessou o limiar de missionário parangui para “missionário
brâmane”, nunca mais retornou. Ao contrário do agente pioneiro, o missionário
português não deixava de se comportar, se alimentar e se vestir como um
brâmane em momentos de encontro com autoridades régias ou com castas
mais baixas. Isto fica evidente quando, após o grande episódio de tortura que
posteriormente ficou conhecido como “primeiro martírio, Brito regressou a
Lisboa em 1688 e foi de encontro com o rei de Portugal e a corte. O fato de o
jesuíta não deixar de se comportar como um brâmane, ao invés de causar
repulsa, como era natural de se esperar na época de Nobili, causou admiração

A metodologia de accomodatio variava de acordo com o contexto político


internacional, relações Lisboa-Roma-autoridades locais e, principalmente, de
acordo com as especificidades regionais. Isto pode ser evidenciado ao
olharmos para os diferentes exemplos da utilização da metodologia em
contextos orientais, como os casos de Alessandro Valignano no Japão, Matteo
Ricci na China e Roberto de Nobili na Índia. Embora estes exemplos se
baseassem na mesma perspectiva geral, adaptar costumes locais
considerados como políticos para inserir com maior facilidade os dogmas
católicos, principalmente junto às elites locais, os respectivos agentes se
adaptavam cada um à sua maneira, de acordo com a necessidade. Nesse
sentido, partindo do ponto de vista que o contexto internacional se encontrava
bastante atribulado, ao que tange às relações Lisboa-Roma, não seria coerente
de nossa parte analisar a metodologia de Brito como idêntica à de Nobili.

As fontes nos apresentaram um profundo desconforto em um debate a respeito


de qual subcasta Brito teria escolhido como ponto de partida para a
metodologia de accomodatio. A princípio, não havia dúvidas que Brito teria
seguido pelo caminho dos sanyasi, aquele escolhido por Nobili, uma vez que
as fontes ora apontavam que o inaciano teria seguido os passos de Nobili, ora
mencionavam diretamente a figura dos sanyasi. Contudo, ao decorrer da leitura
de sua biografia, aquela escrita por seu irmão e editada no século XIX, ficou
evidente que Brito teria se relacionado diretamente com castas mais baixas e
até mesmo com portugueses que não estariam aos moldes do accomodatio.
Tendo em vista que Brito se adaptou como penitente e sábio, mas pode ter o
acesso a outras castas e aos portugueses sem perder seu status, como o
jesuíta teria conseguido exercer o accomodatio de Nobili?

O indício inicial para resposta desta pergunta pode ser encontrado em O


Illustre Certame, obra de autoria do padre Jean Baptiste Maldonado, anexa a
biografia de Brito, em que é citado que o jesuíta teria montado sua persona de
brâmane europeu a partir da figura dos pandares, uma subcasta brâmane de
ascetas que se diferenciava dos sanyasi, sendo um asceta penitente de nível
inferior:

42
“Chegando alli o P. João de Britto, foi pelo P. Braz de Azevedo provincial do
Malabar destinado á missão de Maduré; e depois de breve descanço, logo se
preparou para a jornada. Vestiu-se de pandar, que entre os indios, pela
austeridade de vida, são muitos estimados e chamados penitentes. Ensinados
por larga experiencia os missionarios, tiveram este traje por muito commodo
para tratar com todas as seitas da India, e mais ainda que o saniás por
professarem estes uma vida separada do trato comum. Assim em quanto
alguns para converterem os brahmenes, seguindo o exemplo do P. Roberto,
trajam de saniás, outros para mais facilmente tratarem com todos, imitam os
pandares, e com feliz sucesso. ” (BRITTO, 1852, fls. 294)

Como podemos observar, os pandares poderiam circular livremente entre as


castas, o que significa que o trato com os paranguis, ou seja, com os
portugueses, também seria possível. Acerca das representações tanto de
Nobili quanto de Brito, o primeiro era descrito como entregue a uma vida de
austeridades e privações, marcada por sua dieta altamente restritiva. Além
disso, utilizava no topo da cabeça o tufo de cabelo conhecido como kudumi e a
cobria com um turbante cilíndrico de seda alaranjada. Sua testa era revestida
com uma camada de sândalo amarela e vestia uma túnica da mesma cor de
seu turbante. Portava também a linha bramânica a tiracolo.

Embora as estratégias missionárias de Brito e Nobili não fossem as mesmas,


ao que tange às vestimentas, são basicamente similares. Podemos realizar tal
afirmação tendo em vista a pouca diferença dada pelos missionários às
estratégias sanyasi e pandar. Nesse sentido, o editor da biografia demonstra
uma possível divergência entre o Certame do Padre Maldonado e a biografia
de autoria de Fernão Pereira de Brito, já que este último referencia durante
toda a obra que João de Brito teria se vestido como sanyasi. O editor aponta
para uma maior segurança na fala do autor da biografia, pois este “[...] devia
sabelo com certesa, e tel-o ouvido da boca do seu próprio Bemaventurado
irmão” (BRITTO, 1852, fls. 294). Entretanto, na mesma nota o editor nos
aponta que era de conhecimento comum que os inacianos escolhiam ir para os
caminhos de pandar ou sanyasi, de acordo com as especificidades de cada
contexto. Além disso, não parecia ser um ponto de grande distinção entre os
jesuítas, pois nos hábitos não haviam diferenças, somente nos modos de vida.
Nesse viés, é válido acreditar que a opção entre caracterizar os missionários
como sanyasi ou pandar não fosse uma grande questão, podendo ser
negligenciada pelos autores, uma vez que a diferença entre os métodos era
vista como pequena.

É bastante relevante pensarmos as consequências do uso da metodologia de


accomodatio em relação à escolha por se tornar um pandar. Para nós, fica
evidente que Brito não tomou o caminho dos sanyasi, pois se assim tivesse,
teria se desvencilhado de seu personagem em alguns momentos específicos.
Nobili, por exemplo, ao se apresentar à Inquisição de Goa ou até mesmo
quando se encontrava com seu companheiro de missão, Gonçalo Fernandes
Trancoso, deixava de ser um “brâmane europeu” para regressar a sua

43
identidade de missionário italiano. Já João de Brito, quando retorna a Portugal
em 1686:

“Aqui (em Lisboa) continuou a viver com toda a simplicidade e muitas vezes
vestia o hábito cor de açafrão, próprio dos saniássis indianos. [...] No seu modo
de viver, enquanto estava em Portugal, mantinha muitas das práticas que
seguia na Índia. [..] A sua alimentação normal era constituída por vegetais,
mesmo à mesa do Núncio Papal, ou do Secretário de Estado.” (NEVETT,
1986, p 226).

Nos é apresentada ainda outra passagem, presente na biografia intitulada


como São João de Brito de 1948, onde o autor menciona que o padre:
“Vestiu-se no seu traje de Iogue, conta o Padre Franco e fez as mais
cerimónias diante do Bispo na varanda do Colégio do Porto; que ele viu com
grandes mostras de consolação, de ver que se sujeitara a tal vida e traje por
amor de Deus. E lhe deu muito boas esmolas para a sua missão. Também em
outros dias por dar gosto ao Cabido e aos Senhores da Câmara e aos
Desembargadores da Relação, que todos lho mereciam, fez as mesmas
cerimónias diante deles que fizera diante do Senhor Bispo.” (DOERING, 1948,
p. 155).

Tendo em vista o contexto anterior da Querela, aquele protagonizado por Nobili


e Trancoso, pensar em um “brâmane europeu” junto à mesa do Núncio Papal
ou do Secretário de Estado português é surpreendente. Podemos afirmar que
este é o ponto de virada da metodologia de accomodatio entre Nobili e Brito.
Brito fora capaz de reinterpretar os caminhos metodológicos traçados pelo
italiano para ampliar seu alcance missionário e evitar disputas internas junto
aos portugueses. Todavia, vale ressaltar que esse caminho só fora possível de
ser traçado pois fora aberto anteriormente por Nobili. Com base nesta
substancial diferença entre Nobili e Brito, nos é importante buscar traçar a
maneira pela qual Brito constrói e mantém seu personagem de brâmane
pandar. Tal busca se justifica no sentido de abrirmos a discussão sobre a
Querela dos Ritos para além das disputas entre o que seria considerado civil e
o que poderia ser considerado religioso.

Referências
Alexandre Cabús Moreth Silva é estudante no curso de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (PPHR-UFRRJ).

Archivo Romanum Societatis Iesu (ARSI), Goa 54, fl. 433-456v. Carta Annua
da Missão de Madurey do anno de 1683.

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Índia: A acomodação de Roberto de’ Nobili em Madurai e a polêmica do
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44
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Beato Joâo De Britto: Da Companhia De Jesus, Martyr Da Asia, E Protomartyr
Da Missâo do Maduré. Lisboa. Nabu Press, 2010 (1ªa edição de 1722).
DOERING. Henrique S. J. S. João de Brito – De pajem a mártir -. V2. Livraria
apostolada da Impresa. Porto. 1948. P. 155.

MALDONADO, Jean Baptiste, S.J. Illustre certamen R. P. Ioannis de Britto e


Societatis Iesu Lusitani. Antuerpiae : Petrum Iouret, , 1697, https://purl.pt/13819

NEVETT. Albert S.J. João de Brito e o seu tempo. Braga, Editorial A. O., 1986.
226

45
OS KUSHANS E A CONFEDERAÇÃO DOS GRANDE YUEZHI:
DIVERGÊNCIAS EM PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS
SOBRE MIGRAÇÕES NOMÁDICAS NA ÁSIA CENTRAL, E A
FUNDAÇÃO DO IMPÉRIO KUSHAN (SÉC. II A.E.C - SÉC. I E.C.),
por Cristian de Silveira

O Império Kushan, um dos grandes impérios da Antiguidade, se localizava nas


regiões que centralizavam rotas comerciais transcontinentais que prosperavam
nesse período, as chamadas de “Rotas da Seda”. Inserido onde atualmente se
encontram o Paquistão, Afeganistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão, e
também parte da Índia e da China, esse Império detinha dimensões
gigantescas, com essa grandiosidade territorial refletindo também uma
diversidade cultural imensa. A formação desse império durante o primeiro
século da Era Comum (E.C.) foi, de forma semelhante, feita a partir de um
contexto cultural complexo. As regiões da Ásia Central e das Estepes
Eurasiáticas passavam por fluxos migratórios constantes nos séculos
anteriores à formação do Império Kushan. Esses fluxos migratórios foram feitos
tanto por grupos sedentários, como os gregos, que ali se assentaram após as
conquistas de Alexandre, O Grande na segunda metade do quarto século
A.E.C., quanto por grupos nomádicos que migraram para essas regiões por
motivações culturais e conflitos políticos, como foi o caso dos Grande Yuezhi.
Os Grande Yuezhi eram um grupo nomádico de onde hoje seria a província de
Gansu, na China, que se deslocou, num primeiro momento, até a região do
noroeste da China durante o segundo século A.E.C.. Esse deslocamento foi
devido à conflitos dos Grande Yuezhi com o Império Xiongnu, um dos primeiros
grandes Impérios Nomádicos, reconhecido por seu conflito de longa duração
com o Império Chinês, que resultou na construção da Grande Muralha da
China, e na expansão do território chinês até onde hoje se localizam suas
províncias mais ocidentais.

Durante o percurso de deslocamento dos Grande Yuezhi para a Ásia Central,


onde até então prosperavam os reinos helenísticos sucessores do Império
Macedônico de Alexandre na figura do Reino Greco-Báctrio e do Reino Indo-
Grego, os Grande Yuezhi supostamente causaram o deslocamento de grupos
nomádicos iranianos, denominados de Sakas, para a região da Ásia Central.
Nessa primeira leva de migrações de grupos nomádicos para os reinos
helenísticos na Ásia Central, os Sakas causaram a desestabilização e eventual
fragmentação desses reinos, com os diferentes clãs que formavam os grupos
Sakas mantendo uma presença nesses territórios a partir desse ponto.

Após conflitos entre os Grande Yuezhi agora com os Wusun, outro grupo
nomádico que se localizava onde hoje atualmente seria a região oeste da
China, os Grande Yuezhi continuam o seu deslocamento para oeste, se
dirigindo até os territórios que estavam sob controle dos Sakas na Ásia Central

46
e Meridional, os derrotando e passando a controlar essas regiões. Depois
dessas inúmeras levas de migrações nomádicas para as regiões que
posteriormente formariam o Império Kushan, abre-se uma lacuna onde
perspectivas historiográficas que tomam como base as fontes históricas
orientais e ocidentais sobre a identidade e origem dos Kushans como membros
de uma dessas confederações nomádicas começam a se divergir de forma
significativa.

Especificamente, a questão sobre a origem do povo Kushan tem sido objeto de


intensos debates e perspectivas divergentes na historiografia. Neste artigo,
exploraremos as diferentes visões apresentadas por inúmeros acadêmicos que
lidam com essa área, buscando compreender as nuances e complexidades que
envolvem a identidade e trajetória histórica dos Kushans. Neste estudo,
analisaremos as diversas teorias propostas pelos pesquisadores, buscando
identificar as evidências e lacunas que sustentam cada perspectiva. Ao
aprofundar nosso conhecimento sobre as diferentes visões historiográficas
acerca dos Kushan, almejamos obter uma compreensão mais abrangente e
informada sobre a construção do Império que centralizou as Rotas da Seda, e
também da História da Ásia Central, Meridional e das Estepes Eurasiáticas
como um todo.

Deslocamentos nômades à Ásia central: o império Xiongnu e os Yuezhi


A região das Estepes Eurasiáticas Orientais, abrangendo partes das atuais
regiões da China, Mongólia e Rússia, testemunhou o surgimento de uma nova
e poderosa organização política na segunda metade do terceiro século A.E.C.:
o Império Xiongnu. A formação do Império Xiongnu nas Estepes Orientais
ocorreu em um contexto histórico marcado por interações e conflitos entre
diferentes grupos étnicos e poderes políticos na Ásia Central. Segundo Stark,
este império representou o que ele chama de uma formação verdadeiramente
imperial, a qual controlava e adquiria uma multitude de territórios e uma grande
diversidade de populações a partir de sua esfera territorial original (Stark, 2021,
p. 85).

O Império Xiongnu também acabou desencadeando grandes mudanças


políticas para além de seus limites territoriais. Processos de deslocamentos
populacionais foram iniciados decorrentes dos conflitos entre os Xiongnu com
outros grupos nomádicos. Um grupo de interesse entre esses a ser
mencionado é o dos nômades Yuezhi, que depois de serem derrotados pelos
Xiongnu acabaram saindo de suas terras originais, que incorporavam grande
parte da atual província de Gansu, na China, por volta do ano de 176 A.E.C., e
acabaram se dividindo em dois grupos. Um desses grupos, chamados de
“Grande Yuezhi”, tomaram rumo para oeste, onde tomaram as terras ao longo
da região da Jungharia, no norte da atual província de Xinjiang, na China, de
outro grupo nomádico que ali residia, um dos grupos Saka, que
consequentemente se retiraram para sudoeste, e entraram em conflitos com os
greco-báctrios, saqueando suas cidades. O outro grupo, chamado de “Pequeno
Yuezhi”, se retirou para o sul, para as montanhas de Nan Shan. Os Grande
Yuezhi acabaram sendo expulsos de sua nova localização pouco tempo após

47
sua ocupação na mesma, sendo dessa vez derrotado pelos Wusun, outro
grupo nomádico que vivia próximo aos Yuezhi originalmente. Sendo forçados
novamente a se realocar, os Grande Yuezhi se movimentaram para oeste até
os territórios de Sogdiana, onde entraram em contato com os diferentes povos
presentes na região da Ásia Central e em seus arredores (Stark, 2021, p. 85-
87; Beckwith, 2009, p. 84-85; Barisitz, 2017, p. 36; Cribb; Hermann, 2007, p.
60).

No contexto desse campo histórico, as perspectivas apresentadas pelos


pesquisadores da área sobre os diferentes povos inseridos no contexto da
região da Báctria e seus arredores não possuem um consenso fixo. Autores
como Beckwith não se adentram muito sobre os processos de contatos e
conflitos entre os diversos grupos incluídos nesse contexto geográfico. Ele
salienta, como já foi citado acima, da expulsão inicial de grupos Sakas da
região da Jungharia pelos Grande Yuezhi, e que essa expulsão desencadearia
em um grande processo migratório desses Sakas que os levariam até o norte
da Índia. Os Grande Yuezhi começariam um processo de conquista do território
da Báctria a partir de sua ocupação em Sogdiana, e assim formariam um reino
neste território chamado de Tocaristão, por volta de 130-120 A.E.C., que seria
dividido entre cinco líderes tribais inicialmente, mas que finalmente teria seu
poder centralizado na figura de Kujula Kadphises, chefe da tribo dos Kushan,
que fundaria na metade do primeiro século E.C. o Império Kushan (Beckwith,
2009, p. 84-85).

Outros autores como John Boardman (2015) também mantêm uma


argumentação bem superficial do processo de conquista do território Báctrio
pelos Grande Yuezhi, com um diferencial de apontar um conflito direto entre os
Grande Yuezhi com os greco-báctrios, que não são citados diretamente por
Beckwith (Boardman, 2015, p. 136-137). Barisitz e Cribb (2007), como também
já vimos acima, falam respectivamente de invasões e saques de territórios
greco-báctrios pelos Sakas antes das invasões nesses territórios
protagonizadas pelos Grande Yuezhi. Cribb fala sobre uma possível integração
das populações Sakas com os posteriores invasores Grande Yuezhi, e ressalta
um retrato comparativo das diferentes populações ali inseridas a partir de suas
culturas e de suas relações com a realidade material existentes, como suas
posições sobre a tradição helenística que ainda se mostrava presente ao longo
da Ásia Central. Um fator de interesse citado por Cribb é o de conflitos
evidenciados entre Kujula Kadphises com populações vizinhas Sakas ou Citas
(Cribb; Hermann, 2007, p. 60-63). Barisitz mantém uma perspectiva concisa de
invasões sucessivas ao território greco-báctrio, primeiro por Sakas e
posteriormente pelos Grande Yuezhi, porém não descrevendo as possíveis
relações entre os dois grupos, concluindo somente com a eventual conquista
de todo o território do antigo reino greco-báctrio pelos Grande Yuezhi e a
eventual fundação do Império Kushan (Barisitz, 2017, p. 36).

Yu (2021) acaba elaborando uma perspectiva que contraria muitas das


posições adotadas pelos autores acima. Na perspectiva de Yu, o grupo ou tribo
denominado de Kushan, ou “Guishuang”, como é chamado pelas fontes

48
chinesas, fazia parte de uma das quatro tribos Sakas que foram expulsas da
região da Jungharia, e foram em direção até o reino Greco-Báctrio, onde
derrubaram o reino em por volta de 140 A.E.C, pelo menos uma década antes
da invasão dos Grande Yuezhi a esse território. Os conflitos que os Grande
Yuezhi acabaram tendo nessa região, dessa forma, não poderiam ter sido
contra os greco-báctrios, e sim contra essas tribos Sakas que ali tinham se
instalado. As quatro tribos Sakas que constituíam esse grupo eram os Asii, os
Gasiani, os Tochari e Sacarauri. Essas tribos controlavam o território da Báctria
de forma completamente autônoma, principalmente quando comparado com o
reino Greco-Báctrio, que era estruturado sob a figura de um rei (Yu, 2011, p. 4-
7).

Os chamados de “Gasiani” são apontados por Yu como os próprios Kushan ou


Guishuang, com essa diferença de denominação vindo de uma simples
transcrição do mesmo nome, sendo essa tribo, como já apontado acima, uma
das que seriam conquistadas algumas décadas depois pelos Grande Yuezhi. A
organização desses territórios agora então controlados pelos Grande Yuezhi foi
o de dividir essas áreas de forma que a região central da Báctria e seus
arredores ficassem sob seu controle direto, enquanto que as regiões orientais
ficassem sob controle das chamadas cinco tribos, ou os cinco “Xihou 翖侯”,
como as fontes chinesas as nomeiam. Xihou 翖侯 seria um título conferido a
esses grupos subordinados dos Grande Yuezhi, como um costume originado,
ou pelos Grande Yuezhi, ou pelos grupos anteriormente inseridos no território
da Báctria, ou até mesmo como um título conhecido e usado por todos eles.
Esses cinco Xihou 翖侯 provavelmente foram organizados a partir de grupos já
existentes dentro do território da Báctria antes de sua conquista pelos Grande
Yuezhi, como as quatro tribos Sakas que dominavam o território logo antes
dessa conquista. Uma dessas tribos ou Xihou 翖侯 teve o nome de Guishuang,
e foi dessa tribo que surgiu a figura de Kujula Kadphises (Yu, 2011, p. 2-9;
2021, p. 1-2).

“Qiujiuque 丘就卻 (Kujula Kadphises), o fundador da dinastia Guishuang 貴霜,


tinha sido o Xihou 翖侯 dos Guishuang 貴霜 no estado de Daxia大夏. [...] Ele
se estabeleceu como rei; seu estado foi nomeado de Guishuang 貴霜 depois
dos outros quatro Xihou 翖侯 terem sido destruídos. Depois de 50 E.C., ele
capturou Paropamisadae de Gondophares ou seu sucessor que veio de
Sakastão (regiões superiores ou médias do atual Rio Kabul). Depois disso,
Qiujiuque 丘就卻 depôs o rei dos Grande Yuezhi 大月氏, seu antigo suserano,
que estava entrincheirado na Báctria e nas áreas arredores, e completou a
unificação do Tocaristão. Por volta de 60 E.C., Qiujiuque 丘就卻 se
movimentou para o sul e ocupou Gandhara e Taxila, onde ele aniquilou o
restante das forças da família de Gondophares. A dinastia de Kushan assim se
estabelecia.” (Yu, 2021, p. 2, tradução nossa)

Cribb, em contrapartida, expõe uma perspectiva sobre o título de Xihou 翖侯


como um título dos povos Yuezhi e Wusun sob uma transcrição chinesa, ou
possivelmente como um título chinês dado a líderes aliados. Cribb também

49
discorda de outras perspectivas de Yu, e interpreta o título de Xihou 翖侯 como
algo que era reservado às elites dentro da esfera social dos Grande Yuezhi, e
portanto considera que somente membros da corte ou membros vinculados
familiarmente com o próprio rei poderiam ser conferidos tais títulos. Na sua
visão, portanto, os cinco Xihou 翖侯 não poderiam ser de grupos locais que
foram conquistados pelos Grande Yuezhi, o que não se adequaria com a
importância que esse título carregava (Cribb, 2018, p. 1 e 4-5). A localização
dos Xihou 翖侯 também acaba sendo outro ponto de oposição entre a visão
abordada acima de Yu com a de Cribb. Segundo o último:

“A localização dos xihou como expostos por Grenet deixam claro que eles
ocupam o mesmo território que o Han Shu indica para a localização da corte do
rei dos Grande Yuezhi, a norte do Rio Oxus/Amu Darya (媯水 guishui). Isso
oferece mais evidências de que os cinco xihou, incluindo o xihou de Kushan,
eram parte da elite dos Grande Yuezhi ao invés de princípes locais. De acordo
com o Hou Han Shu (Hill 2009, p. 28–29), mais de cem anos depois que os
cinco xihou tinham sido encarregados de Tocaristão, Kujula Kadphises (丘就卻
qiujiuque), o xihou de Guishuang, depôs os outros quatro xihou e se
estabeleceu como o único governante em Tocaristão. Essa ação o tornou o
líder do antigo estado dos Grande Yuezhi, mas parece provável que o título de
rei dos Grande Yuezhi já havia se tornado obsoleto, já que não existe menção
desse título desde o Han Shu. O Hou Han Shu torna claro que Kujula
Kadphises e seu filho não foram identificados por seus vizinhos como os
Grande Yuezhi, mas como reis Kushan, mesmo que os Chineses continuassem
a se referir a eles como reis dos Grande Yuezhi. A ascensão de Kujula
Kadphises parece ter ocorrido por volta de 50 d.C (Cribb 2018) [...]” (Cribb,
2018, p. 5-6, tradução nossa)

Cribb também vê a origem do nome Kushan como o nome familiar do primeiro


Xihou 翖侯 de Kushan, que também contraria a perspectiva de Yu de se referir
a uma das tribos Saka que invadiram a Báctria antes dos Grande Yuezhi, como
visto anteriormente (Cribb, 2018, p. 17).

Dessa forma, a diversidade das perspectivas sobre esse campo ainda


demonstram um certo nível de incongruências sobre esse período e região. O
contraste entre a visão de autores como Yu e Cribb por si só já encapsulam
esse argumento. As diferentes origens propostas tanto para o nome dos
Kushan, quanto para a sua relação com os chamados de Grande Yuezhi e as
tribos Sakas, o contexto e prestígio por trás do título de Xihou 翖侯, e a
identidade por trás dos grupos que adquiriram esse título realçam muito bem
como os estudos sobre esse período de constantes conflitos e deslocamentos
populacionais ainda é um espaço para amplos debates, mesmo que as
abordagens adotadas por Cribb tenham um maior apoio por estudiosos da área
(Cribb, 2018, p. 16-17).

Stark reforça o argumento de que esses deslocamentos populacionais dos


grupos como os Grande Yuezhi para a Ásia Central, apesar de serem descritos

50
pelas fontes historiográficas chinesas como grandes processos migratórios
desses povos, provavelmente descreviam por maior parte o deslocamento das
elites que pertenciam a esses grupos, com essa narrativa chinesa de
migrações de grande escala tendo de ser analisadas “[...] como um reflexo de
processos políticos e etno-genéticos muito mais complicados (mas sem dúvida
incluindo o deslocamento das elites nômades e grupos dependentes)” (Stark,
2021, p. 86). Além disso, ele também elabora sobre como esses processos de
mudanças territoriais e políticas não devem ser vistas como resultantes
exclusivamente dos conflitos iniciados ou causados pelo Império Xiongnu:

“Apesar disso, outro fator importante pode também ter sido o caos no qual o
controle grego na Báctria foi posto depois do assassinato de Eukratides I em
algum momento por volta de 145 A.E.C. (e não o contrário, como é
normalmente visto). Não é improvável que facções competindo entre si dentro
da Báctria deliberadamente chamaram contingentes tribais e bandos de guerra
pessoais de seus vizinhos do norte como suporte. Tal cenário não é só
amplamente atestado para períodos posteriores, mas explicitamente
mencionado também para o caso aproximadamente contemporâneo dos
Arsácidas chamando contingentes Sakas contra seus rivais Selêucidas no
início da década de 120 A.E.C.. Então talvez a chegada de novos grupos
nomádicos em Báctria e o estabelecimento de regimes políticos por elites de
origem nomádica, mesmo se originalmente engatilhadas pela expansão dos
Xiongnu e as subsequentes mudanças nas estepes orientais (ocupação do
Vale de Ili pelos Wusun 烏孫), não foi o resultado de “invasões nomádicas”,
mas de processos complexos que aconteceram muito mais gradualmente do
que é normalmente assumido.” (Stark, 2021, p. 86, tradução nossa)

De qualquer forma, o Império Kushan, fundado por Kujula Kadphises no


primeiro século E.C., acabou eventualmente incorporando todos os territórios
que tinham pertencido ao reino Greco-Báctrio, e assim iniciou um processo de
expansão que englobou grandes partes do território da Ásia Central,
adentrando até o subcontinente indiano (Barisitz, 2017, p. 36 e 41).

“No decorrer do primeiro século E.C, os Kushans expandiram seu domínio para
Khorezm/o Mar de Aral, Ferghana, Margiana, Sul do Afeganistão, Gandhara (a
área envolta de Taxila), e o Punjab e incorporou todo o vale do Indo, a parte
superior do vale do Ganges (Norte da Índia), e Gujarat (na costa do Mar
Arábico); durante um período de fraqueza interna da dinastia Han na primeira
metade deste século (como pode-se ver acima), o Império Kushan até mesmo
temporariamente estendeu sua autoridade para a metade ocidental da Bacia de
Tarim, incluindo Kashgar, Yarkand, e Khotan.” (Barisitz, 2017, p. 41, tradução
nossa)

Cribb ressalta o período das migrações dos grupos nomádicos na Ásia Central,
que resultaram na dissolução do reino Greco-Báctrio, como um processo de
reestruturação das culturas e redes de contato que ali tinham se desenvolvido.
Essas novas instituições são vistas pelo autor como um fator a ser considerado
no contexto da posterior formação das Rotas de Seda, e mesmo que as rotas

51
tenham se desenvolvido propriamente muito depois desses processos
econômicos e culturais já terem ocorrido, ainda assim podem ter sido, em
parte, possibilitadas pelos mesmos. Apesar da visão de Cribb de que o reino
Greco-Báctrio poderia ter limitações no meio econômico referindo-se às
atividades comerciais com os povos ocidentais à Ásia Central, devido ao
território do Império Parta bloquear esses contatos, ele não procura propor que
o fim do reino Greco-Báctrio necessariamente tenha resultado no início desse
processo de redes comerciais de grande escala, mesmo que temporalmente
exista uma interpolação entre o fim do reino Greco-Báctrio com os processos
que iniciaram as Rotas da seda, mas somente procura salientar essa
consideração. A ascensão do Império Kushan beneficiou as redes que se
desenvolveram a partir das migrações nomádicas à Ásia Central, onde a
estabilidade de seu território, que também incorporava parte da Ásia
Meridional, proveu uma infraestrutura que possibilitou um comércio
internacional de larga escala através de sua região, que se iniciou durante o
primeiro século E.C. (Cribb; Hermann, 2007, p. 63-64).

A extensão territorial do Império Kushan tinha dimensões estrondosas, e dessa


forma, mantinha uma grande diversidade cultural dentro de sua sociedade. As
culturas dos diferentes grupos aos quais seu território já tinha pertencido, como
os aquemênidas, gregos, partas e indianos, foram assimiladas dentro dessa
realidade. O Império Kushan teve seu apogeu por volta da segunda metade do
primeiro século E.C. até a primeira metade do terceiro século E.C., transferindo
durante o primeiro e segundo séculos E.C. o seu centro político de seus
territórios ao longo da Ásia Central para o norte do subcontinente indiano, onde
a maior parte das novas cidades fundadas pelo império se localizavam. Esse
foi um momento de prosperidade para o império, que, ao mesmo tempo que
possibilitou o desenvolvimento das Rotas da Seda logo no início desse período,
também foi beneficiado por sua posição central nas Rotas da Seda. Isso fez
com que, tanto as Rotas da Seda, quanto o próprio Império Kushan
participassem ativamente nos processos de trocas comerciais e contatos
culturais que ajudaram na disseminação dessas produções culturais diversas,
com o império agindo como um mecanismo para exponencializar esses
processos promovidos pelas rotas (Behrendt, 2007, p. 4 e 39; Decaroli, 2015,
p. 13-14; Barisitz, 2017, p. 42; Cribb; Hermann, 2007, p. 62-64; Liu, 2010, p.
43).

Considerações finais
O Império Kushan, com sua localização estratégica nas regiões centrais das
Rotas da Seda, prosperou como uma das grandes potências da Antiguidade. A
formação desse império durante o primeiro século E.C. foi resultado de um
contexto cultural complexo, caracterizado por fluxos migratórios constantes na
Ásia Central e nas Estepes Eurasiáticas. Diferentes grupos étnicos e povos
nômades, como os Grande Yuezhi e os Sakas, desempenharam papéis
significativos nesse cenário, culminando no surgimento do Império Kushan.

A historiografia tem apresentado perspectivas divergentes sobre as origens dos


Kushans, demonstrando a complexidade e a falta de consenso sobre essa

52
questão. Alguns estudiosos, como Yu, defendem que os Kushan faziam parte
de uma das tribos Sakas que invadiram a Báctria antes dos Grande Yuezhi,
enquanto outros, como Cribb, acreditam que os Kushan eram parte da elite dos
Grande Yuezhi. Outra perspectiva, trazida por Stark, enfatiza a importância do
contexto político e étnico da Ásia Central na época e a gradual assimilação de
diferentes culturas pelos Kushan.

As diferentes narrativas históricas refletem a riqueza cultural e a diversidade


étnica da região da Báctria e seus arredores, onde o Império Kushan surgiu. A
análise dessas perspectivas historiográficas e o estudo das evidências e
lacunas que as sustentam contribuem para uma compreensão mais
aprofundada sobre as dinâmicas entre povos sedentários e nomádicos durante
a Antiguidade, bem como as fontes primárias da época que comentaram sobre
esses contatos. Além disso, o Império Kushan desempenhou um papel
fundamental na promoção do comércio e dos contatos culturais ao longo das
Rotas da Seda, o que ampliou sua influência e importância na história da Ásia
Central, Meridional e das Estepes Eurasiáticas como um todo. Assim, o estudo
dos Kushans continua a desafiar pesquisadores a explorar a complexidade e a
diversidade das interações culturais e políticas na região.

Referências
Cristian de Silveira é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é mestrando em História pela Pós-
graduação da mesma instituição. Contato: cristiandesilveira@hotmail.com

BARISITZ, Stephan. Central Asia and the Silk Road: Economic Rise and
Decline over Several Millennia. Springer International Publishing AG, Cham,
Switzerland. 2017.

BECKWITH, Christopher I. Empires of The Silk Road: A History of Central


Eurasia from the Bronze Age to the Present. Princeton University Press. 2009.

BEHRENDT, Kurt. The Art of Gandhara in The Metropolitan Museum of Art.


The Metropolitan Museum of Art. New York. 2007.

BOARDMAN, John. The Greeks in Asia. Thames & Hudson Ltd, London. 2015.

CRIBB, Joe; HERRMANN, Georgina. After Alexander: Central Asia Before


Islam. Oxford University Press Inc., New York. 2007.

CRIBB, Joe. Kujula Kadphises and His Title Kushan Yavuga. Sino-Platonic
Papers, 280, Philadelphia. 2018.

DECAROLI, Robert. Image Problems: The Origin and Development of the


Buddha’s Image in Early South Asia. University of Washington Press, Seattle
and London. 2015.

53
LIU, Xinru. The Silk Road in World History. Oxford University Press, Inc., New
York. 2010.

STARK, Sören. Central Asia and the Steppe. In MAIRS, Rachel. The Graeco-
Bactrian and Indo-Greek world. Routledge, New York. 2021, p. 78-105.

YU, Taishan. Studies on the History of the Western Regions (From the Seventh
Century BCE to the Sixth Century CE): A Study of The Kushan History. The
Commercial Press, Beijing. 2021.

YU, Taishan. The Origin of the Kushans. Sino-Platonic Papers, 212.


Philadelphia. 2011.

54
A TAPEÇARIA DE SAMPUL: UMA ANÁLISE ICONOLÓGICA DE
UM ARTEFATO DAS ROTAS DA SEDA, por Cristian de Silveira

A Tapeçaria de Sampul é um dos inúmeros artefatos têxteis encontrados ao


longo do território de Xinjiang, no noroeste da China, que mantém um estado
de conservação incrível, apesar de sua produção remontar cerca de dois
milênios. Xinjiang é um território conhecido por seu clima árido, que permite a
conservação prolongada de materiais orgânicos como têxteis, e que nesse
sentido nos conferem com um vislumbre de como esse tipo de produção se
dava até mesmo em períodos muito longínquos, como a Antiguidade. A
Tapeçaria de Sampul é um desses exemplos, sendo um têxtil datado por volta
de dois milênios atrás, durante o período do desenvolvimento das Antigas
Rotas da Seda, que ligavam as civilizações orientais e ocidentais desse tempo.
A Tapeçaria de Sampul se apresenta como um exemplo dos contatos culturais
constantes entre diferentes grupos e culturas, tais como os gregos, romanos,
indianos, e os diversos grupos nomádicos iranianos presentes na Ásia Central.
O presente trabalho busca, a partir da análise iconográfica e interpretação
iconológica do presente artefato, discutir questões de sincretismos culturais, de
transformações e ressignificações de símbolos em produções imagéticas, e,
num aspecto mais geral, dos contatos entre as diferentes culturas que
possuem características evidenciadas nesse artefato.

Este estudo, portanto, visa lançar luz sobre a Tapeçaria de Sampul como um
artefato cultural único, capaz de revelar aspectos significativos sobre as
interações culturais na Ásia Central e Meridional durante o período abordado,
expandindo o entendimento das trocas e ressignificações culturais ocorridas
nesse contexto. Essa investigação contribui para uma perspectiva abrangente
e valoriza o protagonismo das populações locais, ressaltando a importância de
considerar as produções artísticas dentro do contexto cultural diversificado da
região histórica da Ásia Central.

Datação, análise iconográfica e interpretação iconológica


A tapeçaria de Sampul é datada de 206 A.E.C. até 220 E.C.. Ela foi encontrada
em uma escavação em 1984, na denominada Tumba 1, em Sampul, Lop. Essa
tapeçaria pertence ao Museu da Região Autônoma Uigur de Xinjiang
(NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY, 2002, p. 130).

55
56
Figuras 1 e 2: Tapeçaria de Sampul completa. Fonte: YATSENKO,
Sergey. Yuezhi on Bactrian Embroidery from Textiles Found at Noyon Uul,
Mongolia. The Silk Road 10. 2012. p. 46.
Tapeçaria de Sampul. Fonte: National Museum of Chinese History -
Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region -
Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The
Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 130.

57
Um centauro tocando um trompete, cercado por doze flores que se alinham em
um formato losangular ao seu redor. Abaixo, é representada a figura de um
guerreiro, afirmação evidenciada pela lança em sua posse. As suas
vestimentas, bem como seu estilo de cabelo, são semelhantes às dos Grande
Yuezhi em seu período de controle da Báctria, que antecedeu a formação do
Império Kushan. A sua condição imberbe pode ser uma forma de transparecer
o guerreiro como um jovem, porém vale ressaltar que em figuras similares o
uso de barbas é quase inexistente, com a maioria das figuras portando bigodes
em seu lugar. A composição artística do guerreiro lembra vagamente
exemplares romanos em mosaicos dos últimos séculos A.E.C., considerando,
por exemplo, o uso do sombreamento do rosto para trazer uma noção de
profundidade para a sua figura, bem como a expressão que o guerreiro
carrega, como apontado por autores como Robert A. Jones (figs. 14-15;
JONES, 2009, p. 27; HURWIT, 2007, p. 48; YATSENKO, 2012, p. 41 e 45-46;
WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195)
Na perspectiva de Jäger, a representação do centauro na Tapeçaria de
Sampul, devido ao seu uso de um trompete, o liga com uma tradição mais
vinculada ao culto dionisíaco, onde representações de centauros tomam uma
forma que se desloca mais de suas imagens que reforçam um aspecto bélico
ou agressivo, porém mesmo assim mantendo claro o seu “apreço por vinho,
embriaguez e mulheres [...]” (JÄGER, 2017, p. 109), que são características
inatas dessas figuras (JÄGER, 2017, p. 108-109).

Representações semelhantes a do centauro na Tapeçaria de Sampul nas


regiões de tradição helenística ao longo dos territórios da Ásia Central e
Meridional também teriam fornecido as bases para o uso dessas
representações nas artes budistas de Gandhara, que adaptaram o uso dessas
produções imagéticas dos centauros ao contexto cultural ao qual o budismo
fazia parte, o da cultura indiana (JÄGER, 2017, p. 111-112).

“Essa conexão nos ajuda a entender o interesse que os Indianos mostraram no


centauro Grego, já que eles podiam o conectar ao seu próprio conceito de
seres divinos chamados gandharvas. Esses gandharvas têm o papel de
músicos celestiais no Hinduísmo e no Budismo e, da mesma forma que os
centauros, também compartilham um certo interesse em vinho, mulheres e em
festividades. Mesmo que na maioria das vezes os gandharvas Indianos sejam
vistos como sendo metade pássaro e metade humanos, alguns também são
vistos como metade humanos e metade cavalos [...] De fato, nenhuma das
imagens de Gandhara de centauros as quais nós pudemos localizar são
bélicas e bestiais, sugerindo que sob os Kushans e a influência do Budismo,
eles uniformemente adquiriram um novo papel. A transição dessa percepção
começou sob os Gregos, quando os centauros começaram a ser associados
com o culto de Dionísio. A partir daí foi somente um pequeno passo para
encontrá-los pacificados pelo Buda em Gandhara, onde se tornaram
seguidores piedosos do Abençoado.” (JÄGER, 2017, p. 112-113, tradução
nossa)

58
Dessa forma, a arte do centauro na Tapeçaria de Sampul, possivelmente ligada
às representações de centauros no contexto do culto dionisíaco, pode ser vista
como uma peça que evidencia essa construção da imagem dos centauros ao
longo das regiões da Ásia Central e Meridional, que eventualmente resultou em
sua incorporação e transformação dentro da arte budista de Gandhara, que se
desenvolveu durante o primeiro século E.C..

Jones argumenta a favor da identificação da Tapeçaria de Sampul como um


exemplo de uma produção oriental, e consequentemente mais desconexa às
produções helenísticas e romanas do mundo mediterrânico, pelo uso do
trompete pela figura do centauro, o que em sua visão seria muito raro em
representações vindas da região do Mediterrâneo, onde seria reforçada uma
caracterização mais “bárbara” dos centauros. Como já observado, porém, as
representações de centauros, mesmo nas produções ocidentais, se
diversificam muito além da simples visão dos centauros agressivos e violentos,
com eles também possivelmente estando vinculados a produções artísticas
referentes ao culto dionisíaco, ou também em representações que refletem
uma percepção mais pacífica e sábia vinda dessas figuras mitológicas, como é
o caso de Quíron, centauro que “se tornou o mentor de heróis como Héracles,
Aquiles, Esculápio e Jasão” (JÄGER, 2017, p. 109, tradução nossa). A
argumentação formada por Jones, dessa forma, não necessariamente confere
um grau de certeza definitivo sobre a origem geográfica da produção dessa
tapeçaria. Jones, porém, salienta a similaridade entre a forma como o centauro
na Tapeçaria de Sampul se posiciona com as representações de centauros
feitas na região da Grécia durante o período helenístico (JONES, 2009, p. 25;
JÄGER, 2017, p. 108-110).

Como já ressaltado durante a análise iconográfica, a representação do


guerreiro, principalmente por suas vestimentas e estilo de cabelo,
provavelmente procura retratar um guerreiro dos Grande Yuezhi, entre o
período de dominação sobre o território da Báctria pelos Grande Yuezhi, até a
formação do Império Kushan, que compreenderia o período de
aproximadamente 130 A.E.C. até 50 E.C.. A representação do guerreiro
também se assemelha às representações feitas em mosaicos romanos (fig.3)
próximos temporalmente a esse período dos Grande Yuezhi, em questão do
posicionamento e expressão tomadas pelas figuras. Outras produções que
valem ser ressaltadas são os retratos nas chamadas de Múmias de Fayum
(fig.4), que possuem um estilo que se assemelha tanto com os mosaicos
romanos quanto com o próprio guerreiro presente na tapeçaria, quando
tratamos especificamente do uso do sombreamento na representação da
figura, e novamente também do posicionamento em que todas são postas, com
o guerreiro na Tapeçaria de Sampul sendo diferenciado das outras duas
produções pelo seu olhar voltado para a posição direita, enquanto as outras
duas olham diretamente para a frente, como se olhassem diretamente a quem
observa suas figuras. A razão do guerreiro na Tapeçaria de Sampul deslocar
seu olhar para o lado direito pode ser pela configuração da tapeçaria por
inteiro, devido as figuras do centauro e do guerreiro formarem somente um
recorte do que seria a produção completa da tapeçaria, que poderia

59
possivelmente se estender e compor um nível mais diverso de figuras, o qual a
figura do guerreiro poderia interagir de alguma forma, sendo esse recorte que
conservou essas duas figuras o lado esquerdo da tapeçaria. Watt até mesmo
propõe que a parte direita desta tapeçaria, da qual não existem resquícios
descobertos, poderia formar a porção principal do que seria a Tapeçaria de
Sampul (JONES, 2009, p. 27; WEITZMANN, 1979, p. 288; WATT, James C.Y.;
JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195).

Figuras 3 e 4: Mosaico de uma mulher. Pompéia. Final do primeiro século


A.E.C.. Fonte: LING, Roger. Ancient Mosaics. Princeton: Princeton University
Press. 1998. p. 124.
Retrato de uma mulher. Fayyum, Egito. Quarto século E.C.. Fonte:
WEITZMANN, Kurt. Age of Spirituality: Late Antique and Early Christian
Art, Third to Seventh Century. The Metropolitan Museum of Art. New York.
1979. p. 288

A falta de um bigode no guerreiro, porém, sendo esse um elemento quase


sempre presente nas figuras que representam os Grande Yuezhi nas análises
de Yatsenko, pode ser visto como um elemento de diferenciação do guerreiro
com as demais figuras dentro da arte produzida por ou para os Grande Yuezhi.
Essa caracterização pode significar a juventude do guerreiro, como visto nas
artes gregas, ou possivelmente para diferenciar o guerreiro de um dos
membros dos Grande Yuezhi. Hansen e Sheng elaboram sobre uma possível
identificação Parta da figura, devido a caracterização de uma adaga em sua
cintura, que infelizmente não é discernível entre as imagens encontradas da
Tapeçaria de Sampul para o presente trabalho, e que se alinharia ao estilo de
adagas produzido dentro da região da Partia. No mesmo sentido, também
existem abordagens diferenciadas sobre as origens das decorações florais
vistas ao longo da túnica usada pelo guerreiro. Hansen, Yatsenko e Watt detêm
uma visão parecida, das decorações serem derivadas de produções da Ásia
Central, ou também similares com artefatos arqueológicos encontrados pela

60
região de Xinjiang, o que de qualquer forma marcaria uma distinção clara das
decorações helenísticas e romanas. Jones possui a visão de que a decoração
tem uma origem persa, mas que foi se proliferando tanto para regiões mais
orientais, como a Ásia Central, quanto ocidentais, como a região Mediterrânica,
através de contatos formados entre essas regiões no período helenístico
(HANSEN, 2012, p. 202 e PL.13; JONES, 2009, p. 26-27; SHENG, 2010, p. 38;
WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195;
YATSENKO, 2012, p. 41-46).

Dessa forma, os aspectos mais variados dentro da Tapeçaria de Sampul ainda


possuem perspectivas bem diferenciadas a respeito de onde e como elas
foram produzidas. Alguns fatores, ainda assim, podem ser ressaltados sobre a
tapeçaria. Mesmo considerando fatores como que exista uma sutil diferença
entre o uso de pêlos faciais entre o guerreiro da tapeçaria com outro exemplos
dos Grande Yuezhi na região, e que a representação do centauro tocando
trompete não fosse tão deslocada estilisticamente das representações
mediterrânicas, ainda sim podemos dizer que provavelmente a Tapeçaria de
Sampul se trata de uma produção local da região da Báctria ou arredores,
nessa temporalidade que antecedeu o período imperial dos Kushan. Isso
principalmente se dá pelas considerações formadas sobre o vestuário do
guerreiro feitas por Yatsenko. A similaridade entre os vestuários e estilos de
cabelo evidenciados como pertencentes aos Grande Yuezhi no período pré-
imperial, mesmo com as pequenas diferenciações abordadas, como a questão
dos pêlos faciais quando comparamos o guerreiro da tapeçaria com outras
representações desse grupo, forma um argumento muito forte que
descredibiliza a perspectiva dessa tapeçaria como uma produção helenística
ou romana vinda do mediterrâneo até a região de Xinjiang, e ao mesmo tempo
reforça o argumento de que se trata de uma produção originada na Ásia
Central, e que provavelmente representa um guerreiro dos Grande Yuezhi.
Outro fator a se ressaltar é a semelhança existente entre a Tapeçaria de
Sampul com outros artefatos encontrados ao longo do território de Xinjiang, tais
como a Tapeçaria do Hermes com Caduceu e o Afresco de Figuras Aladas,
ambos encontrados pelo explorador Aurel Stein nas primeiras décadas do
século XX. Para situar esses objetos, faremos uma breve análise de ambos,
considerando a sua descoberta e contexto cultural de produção.

61
Figura 5: Hermes com caduceu. Fonte: National and Art Museum in New Delhi,
India. (Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Male_face_with_a_caduceus_-
_Google_Art_Project.jpg>. Acessado em: 20/04/2022)

A tapeçaria de Hermes é datada de por volta do terceiro século E.C.. A


tapeçaria foi descoberta por Aurel Stein durante suas expedições ao longo da
província de Xinjiang, nas primeiras décadas do século XX, em Lou-lan, em
Xinjiang. Ela pertence ao Museu Nacional em New Delhi, na Índia (ROWLAND,
1974, p. 44).

Considerando a limitação do material analisado, que forma apenas um


fragmento do artefato original, pode-se perceber o objeto ao lado da figura
como um caduceu, um bastão vinculado ao deus Hermes, por sua “forma de
vara terminando em um círculo e uma crescente” (HALL, 1995, p. 60). Dessa
mesma forma, representações de Hermes o representam, pelo menos
ocasionalmente, como imberbe. Assim sendo, a figura representada nessa
tapeçaria pode ser possivelmente Hermes, o mensageiro dos deuses
olimpianos (HALL, 1995, p. 60; MARCH, 2014, 243-245).

Aurel Stein (1928) propôs uma produção local desse têxtil, devido a sua
similaridade com outras produções encontradas no mesmo local, como o
afresco budista também citado (fig.6). Uma produção local realmente é uma
possibilidade, ainda mais se também considerarmos o argumento do uso de
representações de divindades gregas para o culto de divindades locais nas
regiões de influências helenísticas na Ásia Central. Tal ponto daria um grau de
veracidade mais alto para uma produção local do que a de um culto à Hermes

62
dentro da região de Xinjiang durante o período de produção estipulado ao
artefato. Morris, porém, salienta que apesar das representações de deuses
gregos para o culto de outras divindades fosse muito utilizada para o culto de
outros deuses, como membros do panteão dos Kushans, dentro do Império
Kushan ainda existia uma consciência sobre essas divindades gregas
“originais”, o que significa que existe uma chance do artefato ser uma produção
local em Xinjiang ou em um território próximo, como ao longo do Império
Kushan, e mesmo assim realmente representar um culto ao deus Hermes
(STEIN, 1928, p. 241; JONES, 2009, p. 27 e 30; MORRIS, 2021, p. 587).

Figura 6: Figuras aladas. Fonte: STEIN, Aurel. Ruins of Desert Cathay:


Personal Narrative of Explorations in Central Asia and Westernmost China.
Vol.1. London: Macmillan. 1912. p. 461.

Se desconsiderarmos as possibilidades já analisadas, podemos pensar no


artefato como uma tapeçaria importada do Império Romano, que se deslocou
através das Rotas da Seda até a região onde ela foi encontrada em Xinjiang,
que também forma um argumento interessante a ser abordado na medida que
o objeto por si só não possui características que o liguem ao contexto cultural
da região da Ásia Central ou de Xinjiang da mesma forma que a Tapeçaria de
Sampul possuía, e que o desloquem de qualquer forma de uma produção vinda
dos territórios do Império Romano.

Assim sendo, as perspectivas tomadas a respeito desse artefato mantêm


considerações muito abrangentes, devido ao fragmento remanescente do que
seria o artefato completo não conseguir nos fornecer dados que nos ajudariam
a adentrar mais no que as suas imagens procuravam transmitir e por quem
elas foram produzidas. A única consideração de nosso interesse que podemos
tomar tranquilamente é a de que a divindade representada com certeza foi
baseada em moldes helenísticos ou romanos para o deus Hermes.

63
Voltando ao argumento central, as similaridades estilísticas dos mosaicos ou
pinturas romanas expostas com o guerreiro na Tapeçaria de Sampul podem
ser abordadas segundo as perspectivas conjuntas de Morris e Cribb. Assim
sendo, podemos considerar um contato de grupos locais da Ásia Central com
as produções artísticas romanas, sob o contexto de uma tradição helenística
nessa região, que via nas produções romanas temporalmente concomitantes a
sua realidade um estilo compatível ao seu legado helenístico local, que poderia
dessa forma ser adaptado a sua realidade cultural, mesmo que esta já fosse
extremamente diversa depois da fragmentação dos reinos gregos na Ásia
Central e Meridional. Essa diversidade cultural também pode se vincular ao
conceito formado por Mairs, de uma identidade grega na Ásia Central que
afirmava a sua identidade étnica mesmo com um grau de flexibilização dessa
identidade com as práticas locais existentes, devido a essa realidade
multicultural na qual a identidade grega tentava se inserir. A afirmação da
identidade grega pelas populações locais não era vista como uma contradição,
mesmo considerando essa diferenciação crescente que se estabelecia com o
passar dos séculos entre os requisitos de manutenção para a identidade grega
dentro da região da Ásia Central, com os requisitos mantidos dentro do próprio
mundo grego. A flexibilização que se tornou quase inerente à realidade cultural
grega na Ásia Central pode ter possibilitado as práticas de produções artísticas
nessa região, que uniam essas tradições diversas que podem ser observadas
na Tapeçaria de Sampul, em especial entre elas as tradições helenísticas e
romanas.

Considerações finais
A análise iconográfica e a interpretação iconológica nos conduzem a uma
compreensão mais profunda dos elementos representados na Tapeçaria de
Sampul. O centauro tocando um trompete pode estar vinculado ao culto
dionisíaco, sugerindo uma tradição mais relacionada ao vinho e às festividades.
Essa figura também desempenhou um papel importante nas artes budistas na
Ásia Central e Meridional, onde se adaptou ao contexto cultural da cultura
indiana.

Por sua vez, a representação do guerreiro na tapeçaria, com vestimentas e


estilo de cabelo similares aos dos Grande Yuezhi, sugere que a produção é
local, possivelmente relacionada à região da Báctria ou seus arredores, antes
da formação do Império Kushan, na metade do primeiro século E.C.. As
similaridades estilísticas com mosaicos e pinturas romanas podem indicar
contato entre grupos locais da Ásia Central e as produções artísticas romanas
sob o contexto helenístico regional.

Embora existam diversas perspectivas sobre a origem e significado dos


elementos da tapeçaria, alguns fatores apontam para sua provável produção
na Ásia Central, associada aos Grande Yuezhi, em vez de uma origem
helenística ou romana. Essa diversidade cultural na região, marcada por uma
identidade grega flexível e uma tradição cultural de produções imagéticas
locais também muito forte, pode ter permitido a adaptação de influências
externas à sua realidade local.

64
Apesar das variadas interpretações, a Tapeçaria de Sampul permanece como
uma importante peça arqueológica e artística que nos conecta ao passado e à
rica história das civilizações da Ásia Central. Sua complexidade iconográfica e
seus elementos distintos proporcionam uma visão fascinante das conexões
culturais existentes no seu tempo, ainda suscitando debates e estudos sobre a
identidade e as influências artísticas na região.

Referências
Cristian de Silveira é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é mestrando em História pela Pós-
graduação da mesma instituição. Contato: cristiandesilveira@hotmail.com

HALL, James. Illustrated Dictionary Of Symbols In Eastern And Western Art. 1st
ed. Westview Press, A Member of the Perseus Books Group. Colorado. 1995.

HANSEN, Valerie. The Silk Road: A New History. Oxford University Press.
2012.

HURWIT, Jeffrey M. The Problem with Dexileos: Heroic and Other Nudities in
Greek Art. American Journal of Archaeology, Vol. 111, No. 1, p. 35-60. 2007.

JÄGER, Ulf. Tamed by Religion: Centaurs in Gandhara A unique sculpted


necklace of a Gandharan schist Bodhisattva Maitreya in the Asian Art Museum,
San Francisco. The Silk Road 15. The Silkroad Foundation. 2017. p. 107–115.

JONES, Robert A. Centaurs on the Silk Road: Recent Discoveries of Hellenistic


Textiles in Western China. The Silk Road 6/2. The Silk Road Foundation. 2009.
p. 23-32.

LING, Roger. Ancient Mosaics. Princeton: Princeton University Press. 1998.

MARCH, Jennifer R. Dictionary of Classical Mythology. 2nd ed. Oxbow Books,


Oxford. 2014.

MORRIS, Lauren. Roman Objects in the Begram Hoard and the Memory of
Greek Rule in Kushan Central Asia. In MAIRS, Rachel. The Graeco-Bactrian
and Indo-Greek world. Routledge, New York. 2021, p. 580-594.

NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY - Ancient Relics Administration


Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient
Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from
the Silk Road in Xinjiang. 2002.

ROWLAND, Benjamin. The Art of Central Asia. Art of the World. Crown
Publishers, Inc. New York. 1974.

SHENG, Angela. Textiles from the Silk Road. Expedition Magazine 52.3.
Expedition Magazine. Penn Museum, 2010. p. 33-43. (Disponível em:

65
<http://www.penn.museum/sites/expedition/?p=12972>. Acesso em: 10 de Abril
de 2022).

STEIN, Aurel. Innermost Asia: Detailed Report of Explorations in Central Asia,


Kan-su and Eastern Iran, Carried out and Described under the Orders of H.M.
Indian Government. Vol.1&3. Clarendon Press. Oxford. 1928.

STEIN, Aurel. Ruins of Desert Cathay: Personal Narrative of Explorations in


Central Asia and Westernmost China. Vol.1. Macmillan. London. 1912.

WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al. China: Dawn of a
Golden Age, 200-750 AD. Yale University Press. Catalog of an exhibition held
at the Metropolitan Museum of Art, New York, Oct.12, 2004 – Jan.23, 2005.
2004.

WEITZMANN, Kurt. Age of Spirituality: Late Antique and Early Christian Art,
Third to Seventh Century. The Metropolitan Museum of Art. New York. 1979.

YATSENKO, Sergey. Yuezhi on Bactrian Embroidery from Textiles Found at


Noyon Uul, Mongolia. The Silk Road 10. The Silk Road House. 2012. p. 39-48

66
A VOZ DO EMPODERAMENTO: CINEMATOGRAFIA
BOLIWOODIANA, REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM
SALA DE AULA, por Lidiane A. Mendes

Considerações Iniciais
O cinema como mecanismo cultural tem alto poder de construir uma noção do
outro a partir do que se assiste. Durante muito tempo o consumo
cinematográfico no Brasil, esteve ligado as obras produzidas em Hollywood, ou
seja, os olhos dos estadunidenses sobre os outros e o enaltecimento de sua
identidade nacional. Contudo, o acesso as plataformas de streaming trouxeram
consigo a perspectiva de assistirmos produções de outros países, como a
coreana, argentina, inglesa, francesa, turca e indiana. O cinema como
representação da realidade em imagens nos confere como observação didática
um campo de diálogo do ensino-aprendizagem. Classificado como a sétima
arte, as películas reproduzem uma gama de observações para debates de
assuntos que nos cercam, principalmente ao problematizarmos outras
realidades culturais.

Utilizar filmes em sala de aula é trazer o interdiscurso que estabelece a


imagem no cinema como material-didático,

“[...] o cinema constitui-se em uma matriz social singular de percepção,


elaboração e transmissão de saberes e fazeres, possibilitando distintas formas
de apreensão, compreensão e representação do mundo. Nesses termos,
enquanto uma modalidade integrante do conhecimento humano, o cinema
orienta e explica percursos individuais e grupais formados em ambiências em
que a imagem em movimento constitui e possibilita aprendizados que passam
a compor o estoque de experiências da sociedade.” (SILVA, 2010, p. 161-162).

É sobre este equilíbrio entre imagens, palavras e experiências sociais que o


cinema se enquadra como ferramenta que permite ao professor mediar o
conteúdo com a visualização verdadeira ou fictícia. Daí nossa escolha em
refletir o filme “A Voz do Empoderamento” que dá título a este artigo. Para
tanto, é necessário situar que a produção do filme em questão é da indústria
cultural indiana. Estamos falando de Bollywood. Bollywood, é a junção do
antigo nome da atual cidade de Mumbai, que se chamava Bombaim, e uma
analogia a Hollywood, essa junção de nomes se consolidou e atualmente
produz filmes e documentários de todos os gêneros, caindo na graça da
população local e ocidental com uma narrativa interessante sobretudo da Índia
pós-colonial.

As produções cinematográficas de Bollywood tomam força a partir da década


de 1930, quando seu primeiro filme falado é espelhado, sete anos mais tarde, o
primeiro longa-metragem foi produzido na Índia, a indústria cultural indiana

67
produziu naquela época cerca de 200 filmes. A cinematografia evoluiu, e
atualmente as produções indianas passam de 1000 filmes por ano, ainda não
detém os 60% de audiência dos filmes de Hollywood, mas ganharam mercado,
com produções que misturam ficção e realidade, músicas, danças folclóricas, e
abrange vinte das vinte e duas línguas faladas naquele território.

A maioria das produções indianas trazem como pano de fundo, a afirmação da


identidade nacional, lidando ainda com a pobreza e a corrupção além das
questões sociopolíticas que cerceiam a vida dos indianos. Diante das
produções indianas vinculadas nas plataformas de streaming e da
representação feminina em uma sociedade ainda conservadora em relação ao
papel da mulher escolhemos refletir nesta análise, o filme “A Voz do
Empoderamento,” que retrata a biografia de uma jovem de casta que se tornou
prostituta contra sua vontade e diante das mazelas de sua nova profissão deu
voz dos excluídos.

A mulher indiana: expropriação do ser


A sociedade indiana do século XXI, vive intrinsicamente sob a batuta da divisão
de castas, sob a égide do manuscrito Manusmriti ou Código de Manu, escrito
entre 200 a.C – 200 d.C, este texto muito utilizado pela direita conservadora
hinduísta, traz em suas alíneas a subjeção das mulheres como segunda
classe, explicita que as mulheres devem estar sobre a “proteção” de seu pai na
infância, de seus esposos na vida adulta e de seus filhos na velhice. Tais
normas culturais são bem aceitas inclusive por não-hindus, que compartilham
destas ideias e, sobretudo, da objeção comportamental o que afeta quase
todas as mulheres indianas. Baseados neste manuscrito e apoiados na religião
hindu, as mulheres perpassam décadas de silêncio, sofrem violência
doméstica, estupros e abusos morais embutidos no discurso de superioridade
masculina. As atrocidades contra as mulheres indianas passam a ser pauta dos
movimentos feministas no país, que buscam ocupar seus lugares de fala
através do reconhecimento de igualdade e direitos semelhantes ou
semelhantes aos dos homens.

Houve, mesmo que a passos lentos, avanços significativos ao que tange por
exemplo a alfabetização das mulheres que no início do século XX era de
apenas 1% e atualmente passa dos 70%. Mas, saber ler e escrever não as
condicionam a serem independentes de seus maridos. Tão pouco a sofrer
violência domésticas e outras atrocidades dentro de suas casas quem em
grande parte é aceito por elas sem contestar. Apesar das restrições, as
mulheres indianas encontram em movimentos feministas uma voz coletiva que
busca por seus direitos e reconhecimento. De forma geral, são essas mulheres
que durante a luta anticolonial boicotaram produtos ingleses, e defenderam
suas vilas, e como moeda de troca, os partidos políticos a contra gosto tiveram
que aceitare o pleito feminino aos cargos públicos. Segundo a organização não
governamental Thetri Continental,

“[...] Embora esses direitos fossem um anátema para grandes setores da


população indiana, os líderes do movimento de libertação que eventualmente

68
se tornaram líderes da Índia independente tiveram que aceitar as
reivindicações de igualdade daquelas que lutaram lado a lado com eles,
resultando na incorporação de direitos iguais para as mulheres na Constituição
da Índia independente em 1950.”

A partir daí a esquerda feminista passa a operar em várias frentes de luta por
melhores condições de vida. É um caminho longo e árduo, mesmo com essas
iniciativas, ainda é comum o casamento por arranjo, o pagamento do dote, o
estupro coletivo, a virgindade como honra, que perpassam a miséria
econômica, a situação infame das castas, o assédio, a submissão do corpo aos
desejos masculinos, as leis existentes não alcançam todas as mulheres, muitas
não tem noção que a expropriação de seus corpos ao deleite masculino devem
ser contestados, porém, o amálgama religioso e cultural as impedem de ir
contra as tradições culturais.

Este breve panorama da situação das mulheres indianas nos remete a Índia
dos anos 1950, período pós-colonial, em que o cenário da condição feminina
hindu era bem parecido com o que lemos nos dias atuais, é sobre este cenário
que a personagem desta reflexão faz de sua situação haste para defender os
direitos de mulheres e crianças no subúrbio indiano.

A Voz do Empoderamento
Baseado na vida de Gangubai Kothewali (1939-2008), filha de advogado e de
uma dona de casa, noiva aos 16 anos de idade, fora lançada a própria sorte,
quando seu noivo Ramnik Lal, com promessas de que ela poderia ser atriz de
cinema a convenceu a fugir com ele para a cidade de Mumbai. Dias após o
casamento, fora vendida para um prostíbulo localizado em um bairro de
extrema pobreza - Kamathipura. Teve seu corpo expropriado por um cafetão.
Diante dos fatos, foi até ao chefe daquela área. Sua atitude lhe rendeu
visibilidade e daí em diante ela deu início a sua luta. Dentre seus principais
prélios estava a retirada de órfãos da prostituição, o envio de mulheres de volta
a suas famílias, a alfabetização, luta que ela travou com a Igreja Católica
presente nos arredores da zona de prostituição e que tinha iniciado uma
campanha para retirada daquelas mulheres e homens do perímetro, além de
negar matrículas aos filhos das prostitutas.

O filme tem como pano de fundo, a história de Gangubai, porém, suas minúcias
nos apresentam uma sociedade machista e conservadora. Uma vez que ela
fugiu com o noivo, envergonhou e manchou o nome de sua família, se viu em
um mundo ao qual ela nunca pertencera. O retorno para casa de seus pais era
impensável, não seria aceita de forma alguma, assim, traçou seu caminho
lutando pelos direitos daqueles que passaram a lhe chamar de Ganga, uma
analogia a mãe, protetora.

A narrativa do filme é justamente o da luta travada por Ganga em relação aos


direitos das prostitutas e de seus filhos, representada pela atriz, empresária e
cineasta de origem indiana Alia Bhatt que de maneira as vezes delicada,
mediadora e por vez afrontosa ela conseguiu passar a mensagem principal do

69
roteiro. O longa-metragem é composto por tramas de ficção, músicas e dança
folclóricas, pitadas de humor e um amor não correspondido.

Fonte: https://portalpepper.com.br/a-voz-do-empoderamento-a-extraordinaria-
historia-de-gangubai-kothewali-da-prostituicao-ao-ativismo/

Acima, a imagem nos traz a esquerda Alia Bhatt e a direita Gangubai


Kothewali, fisicamente a atriz e a verdadeira Ganga não têm nenhuma
semelhança, mas provavelmente a fonte em que Alia bebeu, retratou com
relativa veracidade a postura desta mulher em permear a luta das mulheres de
classes marginalizada.

As importâncias deste filme como material didático para o ensino-aprendizado


em sala de aula, sobretudo nas disciplinas de História e Sociologia, encontram-
se na discussão cultural dos caminhos que os movimentos feministas de
pequeno a grande porte podem tomar a favor das mulheres e a representação
das mesmas em espaço antes ocupados por homens. Mesmo que estes
espaços sejam em locais insalubres, violentos de dominação do corpo
feminino, a narrativa dos fatos, o ativismo da personagem como ponto central e
a abertura do cinema indiano em retratar de forma biográfica a vida e a luta
desta mulher.

O filme não nos mostra somente o ativismo feminino, ele retrata que mesmo
em sociedades conservadoras e fechadas como a indiana, os problemas
sociais como a prostituição está presente, assim como os bairros periféricos,
que dividem espaços com a imposição religiosas que tenta ordenar sobre seus
preceitos corpos e mentes. Neste sentido, a abordagem do professor perpassa
as discussões culturais cinematográficas em comparativos entre a qualidade do
roteiro, iluminação e interpretação dos autores, ele adentra o viés que
condicionam essas mulheres que são enganadas por falsas promessas e
acabam na promiscuidade,

Mergulhar no universo da produção de significações implica mergulhar também


no estudo e compreensão de lutas sociais e políticas muito específicas,
relacionadas à afirmação de identidades e diferença, bem como ao complexo

70
cruzamento entre o político e o psicólogo, entre o social e o individual
(FISCHER, 2003, p. 24).

O olhar o outro, fazendo relação com a sociedade ocidental, das semelhanças


e diferenças sociais e culturais dão a tônica e importância em mediar
discussões de filmes como “A Voz do Empoderamento” para a construção do
saber nos espaços escolares. Espaços pouco explorados em sala de aula,
como a prostituição, que muitas vezes é tabu no ensino-aprendizagem, abordá-
lo como perspectiva de analisar as entranhas e a composição social,
considerando que os sujeitos que vivem as margens, também são sujeitos
históricos, que a seu modo constrói seus vestígios. Trazer as produções
cinematográficas para dentro da sala de aula é proporcionar ao aluno,

“[...] uma abertura para o universal que revela a particularidade de cada um. O
meu próprio mundo é percebido como um outro mundo, e um outro mundo
também é percebido como sendo o meu. Nos dois casos o cinema me revela
que pertenço a um mundo comum, à comunidade humana, portanto. É nesse
sentido que se pode falar de experiência humana. [...]. É preciso partir da ideia
de que um filme nos desvenda condutas humanas.” (MORIN, 2002, p. 328).

Essa universalidade de diferenças e semelhanças culturais, dentro do teatro de


operações do Estado, da religião, das tradições que moldam os
comportamentos e, neste caso, que submetem as mulheres ao aprisionamento
dos discursos, nos permite construir diálogos que consintam aos alunos
compreenderem o eu e o outro, as práticas de silenciamentos e representações
que abarcam as sociedades.

Considerações Finais
O cinema em sala de aula como material didático possibilita a discussão da
diversidade cultural, das condições de vida em outros lugares e dos
movimentos que visam estabelecer ou fazer valer os direitos estabelecidos em
cada sociedade. Filmes, fazem refletir sobre nós e sobre os outros, sobre as
dinâmicas que estruturam o organismo social e o caminhar de diferentes
camadas sociais. As lutas e movimentos em busca de igualdade e
representatividade são semelhantes tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Cabe ao professor-mediador em sala de aula, proporcionar através de filmes,
documentários, ou qualquer ferramenta audiovisual, abordar temas
transversais que contribuam na formação acadêmica crítica dos espaços de
sociabilidade e da luta de classes e gênero, e neste sentido, o filme aqui
apresentado revela-nos uma outra Índia, com pormenores que nos são tão
próximo e tão ignorado.

Referências
Lidiane Álvares Mendes, licenciada em História, mestra em História/UFAM,
doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea/UFMT. Bolsista CAPES.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão e educação: fruir e pensar a TV. 2 ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

71
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o
pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.

SILVA, Veruska Anacirema Santos da. (2010). Memória e cultura: cinema e


aprendizado de cineclubistas baianos dos anos 1950. Dissertação de
mestrado. Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade.
Univ. Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. 2010.

Tricontinental: Institute for Social Research. Mulheres indianas e o árduo


caminho para a igualdade. https://thetricontinental.org/studies-feminisms-2-
kanak-mukherjee/ acesso em 20/05/2023, às 21:50.

72
ASPECTOS CULTURAIS DOS DESDOBRAMENTOS
HISTÓRICOS DAS VERSÕES DO RĀMĀYAṆA, por
Matheus Landau de Carvalho

As tradições culturais hindus se destacam no cenário mundial por constituírem


um dos mais antigos e prolíficos conjuntos de dinâmicas ainda existentes da
humanidade de articulação de sentidos conjugados com a vicissitude dos fatos
históricos. Rāma, um dos avatāras de Viṣṇu, é uma das figuras mais centrais
para se compreender tanto as dimensões religiosas quanto os desdobramentos
políticos indianos que, há milênios, caracterizam as tradições hindus.

Várias versões literárias da narrativa sobre Rāma, com algumas diferenças


entre si, já foram compostas, seja no subcontinente indiano, seja nas extensas
regiões que lhe são circunvizinhas no continente asiático, como a Indochina, o
sudeste asiático e o Extremo Oriente. Destacam-se no subcontinente indiano o
Adhyātma Rāmāyaṇa; o Ranghanat Rāmāyaṇa escrito no idioma telugu, do sul
da Índia; Irāmāvatāram de Maharṣi Kamban em tâmil; a versão de Elutachhan
em malyalam; a de Nagchandra em kannada; o Krittiwasu Rāmāyaṇa de
Kṛttibās Oza em bengali; o de Eknath, composto na região de Mahārāṣṭra; e o
Rāmacaritamānas de Tulsīdās, composto em hindi antigo no século XVI E.C.

Para além dessas versões indianas, é possível encontrar outras do Rāmāyaṇa


no Japão, onde foi composto o Ramaenna [ou Ramaensho], no Tibete, onde
existe a estória tibetana do Rāmāyaṇa encontrada em vários manuscritos de
Dūnhuáng [敦煌], e na província de Yunnan, no sul da China, onde há o
Langka Sip Hor, na língua dǎilèyǔ [傣仂语]. Na Indonésia – onde a estória de
Rāma costuma a ser assimilada pela tradição islâmica [cf. Bose, 2004, p. 7] –,
há quatro versões do Rāmāyaṇa, espalhadas em três locais diferentes, i.e. o
Ramakavaca da província de Bali, o Kakawin Rāmāyaṇa e o Yogeśvara
Rāmāyaṇa da ilha de Java, e o Rāmāyaṇa Svarnadvipa da ilha de Sumatra.
Enquanto que na Malásia há duas versões, ou seja, o Hikayat Seri Rama e o
Hikayat Maharaja Wana, em Myanmar há o Yama Zatdaw [Yamayana]. Na ilha
de Mindanao, nas Filipinas, encontramos o Maharadia Lawana, e na Tailândia
o Rammakian, o épico nacional do país, além do Phommachak.

Segundo estudiosos, a versão considerada mais antiga e paradigmática, o


Rāmāyaṇa de Vālmīki, foi composta em sânscrito, aproximadamente entre o
sexto século A.E.C e meados do século XII E.C. Vālmīki é o erudito védico
[brāhmaṇa] e eremita [tapasvī] hindu a quem o próprio texto atribui a autoria de
si mesmo, ao contrário do que dizem revisões estruturais contemporâneas
sobre a composição do próprio texto. O Rāmāyaṇa de Vālmīki seria uma das
versões textuais ampliadas da narrativa básica, nuclear, original da estória de
Rāma, a Rāma-kathā – do sânscrito kathā, um conto, uma estória, um relato

73
[Apte, 1970, p. 131a; Monier-Williams, 1899, p. 247; Wilson, 1819, p. 151a] –,
ou seja, o enredo que conta o casamento de Rāma com Sītā, o exílio
subsequentemente enfrentado pelos dois na mata indiana, o rapto de Sītā pelo
líder das criaturas demoníacas [rākṣasas], Rāvaṇa, e a batalha contra este
mesmo Rāvaṇa, com a consequente vitória de Rāma, que reconquista sua
amada de volta e retorna para sua terra natal, a cidade de Ayodhyā, para
governar o reino de Kosala. Quando esta Rāma-kathā é desenvolvida e
ampliada a ponto de se constituir numa versão da estória de Rāma, a
respectiva versão, em geral, recebe o nome do autor ao qual se atribui a sua
autoria – como no caso de Vālmīki, daí o épico sânscrito, cuja autoria as
expectativas confessionais da cultura hindu lhe atribuem, ser identificado como
o “Rāmāyaṇa de Vālmīki” –, de modo que todas as versões desenvolvidas em
diferentes idiomas, estilos, e meios de expressão estética a partir da Rāma-
kathā constituem o que recorrentemente é denominada de “tradição textual do
Rāmāyaṇa”. Com efeito, Rāmāyaṇa não é apenas uma estória, mas uma
verdadeira tradição plural de contar e recontar, de maneiras diversas, as
vicissitudes pelas quais passou Rāma em sua trajetória neste mundo.

Curiosamente, William Buck [1976, p. xvi] demonstra uma noção de que os


épicos eram originalmente cantados, reconhecendo a existência de
interpolações no texto do Rāmāyaṇa e, na consciência de suas várias versões
asiáticas, afirma em uma carta, a despeito dos críticos das mudanças e
combinações de sua adaptação para a prosa em língua inglesa, que o
Rāmāyaṇa “é uma das estórias mais populares do mundo, e faz parte de sua
própria tradição ser recontado em diferentes épocas e lugares, tal como eu fiz.”

É possível classificar as narrativas desenvolvidas a partir da Rāma-kathā em


cinco categorias:

[i] narrativas no idioma sânscrito;


[ii] textos devocionais em línguas regionais;
[iii] contos populares;
[iv] narrativas modernas, compostas em prosa ou verso nos últimos cem anos,
em idiomas regionais indianos;
[v] e formas mais breves de expressão cultural, como canções populares,
crenças, provérbios ou expressões estereotípicas, mantras sagrados,
analogias e charadas [enigmas].

Nos últimos trinta anos, houve um enorme interesse na diversidade


representacional, textual e narrativa da Rāma-kathā, não apenas como reflexo
de sua hegemonia textual, mas também da propensão em transformá-la numa
plataforma de resistência à hegemonia do Rāmāyaṇa de Vālmīki. Até a
presente data, uma das manifestações anti-Rāmāyaṇas mais impactantes é o
Meghanādavadha kāvya [1861], de Michael Madhusudan Datta, uma obra
autoconscientemente letrada no estilo épico virgiliano de meados do século XIX
E.C., em sonoros versos brancos no idioma bengali, uma obra que lamenta a
derrota de Rāvaṇa e a morte de seu filho Meghanāda nas mãos do traiçoeiro
“Rāma e sua turba” [Bose, 2004, p. 5].

74
Desde que os brāhmaṇas começaram a recitar, memorizar e preservar textos
em sânscrito, em maior ou menor grau ao longo do tempo, narrativas
sânscritas da Rāma-kathā já circularam por várias áreas diferentes do
subcontinente indiano. Existem mais de vinte e cinco versões em sânscrito da
Rāma-kathā, pertencentes a diversos gêneros narrativos, i.e. kāvyas
[composições poéticas], purāṇas [“estórias antigas”], sem mencionar peças de
teatro, performances de dança, entre outros, seja do ponto de vista clássico,
seja do ponto de vista popular. Além dessas manifestações culturais, ainda é
possível encontrar esculturas, baixos-relevos, teatro de máscaras, de fantoches
ou de sombras, em várias localidades do sul e do sudeste asiático. A. K.
Ramanujan [1991, p. 24] afirma que, ao relatar a um pesquisador canarês que
Camille Bulcke, uma estudante do Rāmāyaṇa, havia contado trezentas
narrativas da Rāma-kathā no total, ele mesmo contara mais de mil apenas no
idioma canarês, sendo que outro erudito, da língua telugo, mencionou mil em
seu idioma, ambos os cálculos incluindo diversos gêneros de estórias sobre
Rāma. Segundo Sharma [1971, p. 1, itálico do autor], “Não há forma de poesia
sânscrita na qual a Rāma-Kathā não tenha sido recontada, e não há língua
indiana – viva oumorta – que não possua seu próprio Rāmāyaṇa.”

O Rāmāyaṇa de Vālmīki, especificamente, é o desdobramento da narrativa da


Rāma-kathā mais influente na língua sânscrita. Tanto textos em sânscrito
quanto textos devocionais em línguas regionais compartilham, senão de todas,
pelo menos da maioria das características que possuem em comum, pois são
geralmente atribuídos a poetas particulares, compostos em gêneros literários
estilisticamente elaborados, inicialmente recitados em contextos reduzidos, tais
como ambientes palacianos ou religiosos. A principal diferença entre as
narrativas em idiomas regionais e as narrativas em sânscrito da Rāma-kathā é
que as versões regionais circularam, num primeiro momento, especificamente
dentro de uma área geográfica, além destas mesmas versões terem
incorporado práticas locais em suas estórias: “As tradições narrativas
transmitidas por bardos errantes são caracteristicamente maleáveis e, muitas
vezes, se adaptam à situação de cada narrativa” [Rodrigues, 2006, p. 137].

Coincidentemente, é sobre esta dinâmica cultural específica que Aristóteles


[1979, p. 264] discorre quando afirma que, do ponto de vista técnico da
composição literária, “na epopéia, porque narrativa, muitas ações
contemporâneas podem ser apresentadas, ações que, sendo conexas com a
principal, virão acrescentar a majestade da poesia. Tal é a vantagem do poema
épico, que o engrandece e permite variar o interesse do ouvinte, enriquecendo
a matéria com episódios diversos.” [Poética, XXIV.153].

A diversidade supracitada de narrativas sugere que a tradição textual do


Rāmāyaṇa comporte significados diferentes para públicos diferentes, de modo
que, se alguém quiser investigar quais são esses significados variados e como
eles surgem, será necessário realizar uma abordagem não apenas do texto
literário, mas também de formas não literárias, como performances de dança,
narrativas orais, peças de teatro, canções, filmes, artes visuais e artes

75
plásticas. Neste sentido, muitas narrativas em línguas regionais da Rāma-
kathā, compostas antes do século XX E.C., são textos devocionais ligados à
religiosidade bhakti, reverenciando Rāma como uma divindade na terra, ao
invés de um rei excelente e um guerreiro valente apenas.

Os contos populares da Rāma-kathā, por sua vez, são mais fluidos do que as
narrativas no idioma sânscrito e os textos devocionais em línguas regionais.
Em geral são anônimos ou atribuídos a autores sobre os quais quase nada se
sabe, compostos em gêneros folclóricos e freqüentemente em dialetos locais, e
recorrentemente produzidos para ocasiões religiosas por pessoas não
profissionalizadas no ofício [aqueles que ganham a vida principalmente através
de outras ocupações]. Romila Thapar [2000, p. 1059, itálicos da autora] chama
a atenção para aspectos dos ritmos cotidianos dos hindus do subcontinente
indiano conjugados com certas expectativas religiosas por eles alimentadas
para explicar a ampla difusão que o Rāmāyaṇa de Vālmīki adquiriu:

“A popularidade da história foi atribuída a vários fatores, como o fato de ser um


compêndio de mitos da natureza, com Sītā sendo uma deusa da fertilidade, e
Rāma como a divindade solar, dada sua descendência da linhagem solar.
Talvez tenha sido por causa dessa popularidade crescente que o Rāmāyaṇa de
Vālmīki foi agora convertido em um texto religioso por meio de uma nova
edição que foi reformulada por autores brāhmaṇas.”

Os contos populares oferecem mais possibilidades de improvisação do que os


textos fixos, permitindo que, assim como nos textos devocionais em línguas
regionais, a narrativa seja customizada de acordo com as predileções dos
contadores de histórias e as preferências dos ouvintes. Duas características
destes contos populares são especialmente relevantes para as narrativas
modernas da Rāma-kathā, quais sejam, que, às vezes, apresentam episódios
de perspectivas não autorizadas, e que inserem personagens ausentes em
versões mais conhecidas:

“Mesmo que um conto popular inclua um texto fixo, elementos fluidos podem
moldar a recepção da Rāma-kathā, como mostra uma peça bilíngue [da cidade
indiana] de Palghat, [na região de] Kerala. Neste drama de fantoches de
sombras, os artistas recitam versos tâmeis selecionados do Irāmāvatāram de
Kamban, mas os complementam com histórias improvisadas e comentários em
malaiala coloquial.” [Richman, 2008, p. 11, itálicos da autora].

As narrativas modernas, compostas em idiomas indianos regionais, por sua


vez, foram precedidas por três grandes transformações, i.e. o crescimento das
instituições educacionais, a disponibilidade de tecnologia de impressão
relativamente acessível para os scripts regionais da Índia, e o aumento do
número de leitores regulares de seriados impressos e monografias em idiomas
regionais. Estudos sobre a escolha de estruturas narrativas e estratégias de
representação revelaram uma relação dinâmica de adesão e resistência às
fórmulas éticas e políticas autorizadas pelas versões estabelecidas como
padrão. Essas mudanças históricas permitiram que escritores de literatura em

76
línguas regionais contassem a estória de Rāma em sua própria maneira, para
seu próprio tempo. No entanto, as modernas narrativas impressas não têm sido
virtualmente estudadas como uma categoria de Rāma-kathā porque são
percebidas por devotos ou estudiosos eruditos como carentes de alguma
característica essencial, seja de autenticidade, de certa rusticidade, de
devocionalismo, de determinado respeito ou até modernidade.

Por fim, a última categoria de narrativas desenvolvidas a partir da Rāma-kathā


engloba uma série de formas mais breves de expressão cultural, como canções
populares, crenças, provérbios ou expressões estereotípicas, mantras
sagrados, analogias e charadas [enigmas], resultado da interação entre a
tradição escrita, textual da Rāma-kathā, e das aspirações e saberes da
chamada cultura popular, seja ela qual for ou onde estiver. Brockington [1985,
p. 232] salienta que estas expressões culturais podem ser divididas em três
grupos, i.e. [a] aquelas encontradas tanto na tradição do Mahābhārata quanto
na tradição do Rāmāyaṇa, [b] aquelas encontradas apenas na primeira, e [c]
aquelas encontradas apenas na segunda. Brockington [1985, p. 231] refere-se
a um verdadeiro “estoque tradicional de narrativas” da cultura hindu
incorporadas independentemente e, com frequência, secundariamente, tanto à
tradição textual do Mahābhārata quanto à tradição textual do Rāmāyaṇa.
Dessa maneira, as estórias de Nala e Damayantī estão presentes tanto no
Āraṇyakaparvan, do Mahābhārata [III,50-78] como no Sundarakāṇḍa [V,548*
7], do Rāmāyaṇa, acontecendo o mesmo com os episódios de Ilvala e Vātāpi
[Mahābhārata III,94-97; Rāmāyaṇa III,10,54-57], de Sagar e Asamañjas
[Mahābhārata III,104-105; Rāmāyaṇa II,32,15-20], de Ṛśyaśṛṅga [Mahābhārata
III,110-113; Rāmāyaṇa I,8-9], de Cyavana e Sukanyā [Mahābhārata III,122-124;
Rāmāyaṇa II,102.16; V,548* 7; VII,1.1 etc], de Māndhātṛ [Mahābhārata III,126;
Rāmāyaṇa I,69,22-23 etc], de Aṣṭāvakra [Mahābhārata III,132-134; Rāmāyaṇa
VI,107,6], de Sāvitrī [Mahābhārata III,277-283; Rāmāyaṇa II,27,6;V,548* 5] e do
rei Nṛga [Mahābhārata XIII,6,38c.69.72,2; XIV,93,74; Rāmāyaṇa VII, App.
I,8,13-82, cf. Brockington, 1985, pp. 231-232, n. 9].

Como destaca Bijoya Baruah Rajkhowa [2001, p. 133], “É que inúmeras


canções orais, baladas, mitos, lendas, crenças, contos, mantras, provérbios e
enigmas encontrados, baseados na Rāma-kathā, foram compostos oralmente
pelo gênio popular para atender seu desejo criativo em vários aspectos da
vida.” Rajkhowa [2001, pp. 142-143] oferece alguns exemplos de provérbios da
região indiana de Assam acerca da estória de Rāma: “Antes de Rāma nascer,
o Rāmāyaṇa surge” [“ram nau upojotei rāmāyana”], “Se Rāma não existe mais,
Ayodhyā não existe mais” [“sei ramo nāi sei ayodhyāo nāi”], “Quem quer que vá
para Laṅkā, torna-se um Rāvaṇa” [“jeye laṁkālai yay/ seye rāban hay//”].

De um modo geral, as maneiras pelas quais o Rāmāyaṇa é apropriado também


não deixaram a prática social e a política inalteradas. A legitimação das
monarquias tailandesas pela adoção dinástica do nome Rāma e pela
centralização do poder dinástico em uma capital chamada Ayutthya é apenas
uma das muitas indicações da aplicação social do épico. Em muitas partes da
Índia rural, pergaminhos pintados que retratam destaques da estória são

77
apresentados em feiras de vilas por artistas viajantes que cantam a narrativa
enquanto exibem a pintura quadro a quadro. Além disso, em outras partes do
sudeste asiático, as fronteiras religiosas foram cruzadas para recorrer às
lendas do Rāmāyaṇa para a formação de identidade ou instrução moral [Bose,
2004, pp. 6-7].

Segundo Santosh Desai, a estória de Rāma parece ter percorrido três rotas,
disseminando-se não apenas por todo o subcontinente indiano, mas também
pela Ásia:

“Por terra, a rota do norte levou a estória do Punjab e da Caxemira à China, ao


Tibete e ao Turquestão Oriental; por mar, a rota do sul levou a estória do
Gujarat e sul da Índia para Java, Sumatra e Malásia; e novamente por terra, a
rota oriental transmitiu a estória de Bengala à Birmânia, Tailândia e Laos.
Vietnã e Camboja obtiveram suas histórias em parte de Java e em parte da
Índia pela rota oriental” [Richman, 1991, p. 33]

Acerca dessa enorme expansão geográfica da Rāma-kathā por volta do início


do segundo milênio E.C., Romila Thapar [2000, p. 1064, itálicos da autora]
salienta que a versão de Vālmīki permaneceu como literatura sagrada,
religiosa, consideravelmente entre os praticantes do culto devocional [bhakti]
específico a Viṣṇu, i.e. os vaiṣṇavas, mas que em outras variantes textuais ela
era muito mais apropriada, substancialmente, como metáfora cultural:

“Isso tinha menos a ver com a Rāma-bhakti como tal e mais com o fato de que
em suas formas variantes, as tradições locais se expressavam em uma
linguagem cultural comum que era amplamente dispersa e compreendida. Uma
distinção, portanto, deve ser feita entre a estória como uma metáfora cultural e
como literatura sagrada.”

A historiadora indiana aponta para alguns fatores responsáveis pelo sucesso


dessa dispersão da Rāma-kathā como núcleo narrativo e estético dinâmico,
inspiradora de outras versões subsequentes. Do ponto de vista linguístico, a
propagação do sânscrito simples e acessível da versão atribuída a Vālmīki
capitalizou muito a divulgação do idioma – e do conteúdo cultural do épico –
em áreas onde se tornou modelo do gênero literário para outras versões mais
condizentes com as demandas das respectivas culturas populares e tradições
locais. O notável crescimento de inúmeros reinos menores e perecíveis a partir
do século VIII E.C. no leste e sudeste asiáticos gerou a necessidade
reincidente de legitimação do poder régio através de alguma estória que
conferisse determinada autoridade político-cultural a seus governantes perante
seus súditos. A presença de cortes monárquicas pedia a presença de eruditos
védicos [brāhmaṇas] para sancionar sua soberania régia por meio de
genealogias encomendadas e a realização de rituais de consagração do
monarca em questão. O consequente estabelecimento desses brāhmaṇas em
terras desconhecidas proprocionou trocas culturais que pressupuseram a
inserção de padrões sanscríticos inéditos em lugares onde ingredientes da
cultura local eram incorporados a novas versões da Rāma-kathā. Ao salientar

78
as várias “encarnações” pelas quais a Rāma-kathā já passou, modificando
suas funções sociais através do tempo, Romila Thapar [2000, pp. 1072-1073,
itálicos da autora] destaca que

“O que é interessante ao olhar para a perspectiva histórica da Rāma-kathā é o


papel que a estória desempenhou na articulação de uma série de diálogos no
contexto da civilização indiana. Não se sugere que aqueles que desejam tratar
qualquer uma dessas muitas versões da Rāma-kathā como um livro sagrado
não devam fazê-lo: mas insiste-se que aqueles que desejam ver a tradição da
Rāma-kathā em sua totalidade fora de um contexto religioso, também têm o
direito de vê-la dessa forma. A diferenciação entre uma linguagem cultural e
um livro religioso, sectário, sagrado, não deve ser ignorada. O fato dessa
distinção não ter sido ignorada no passado também se torna fundamental para
nossa compreensão do papel da Rāma-kathā hoje.”

Referências biográficas
Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com
habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora
em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo
Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma
Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e
Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História e Pesquisa
das Religiões].

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79
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80
108 KARAṇAS: MATERIALIDADE, CORPO E A DANÇA NA
ÍNDIA, por Thaisa Martins Coelho dos Santos

O Nāṭyaśāstra
A dança, o teatro e a música na Índia estão diretamente ligados a sua
construção cultural enquanto povo e podemos localizar registros destas
práticas em textos, estátuas e pinturas ao longo dos séculos. Tais registros
evidenciam a pluralidade da prática artística no subcontinente ao longo do
tempo e espaço. Durante o século XX foi-se construindo, a partir de muitas
disputas, a noção de uma estética clássica indiana e , no que tange à prática
da dança, o Nāṭyaśāstra foi instituído como o codex ou principal manual que
define as bases dessa visão estética clássica. Sua influência vai além da
prática da dança e teatro, sendo ele considerado um dos Śilpa Śastras, um
compêndio de textos relevantes para a arquitetura e escultura.

Numa tradução direta do dicionário, a palavra nāṭya pode ser entendida como
arte dramática, dança e representação mimética¹ mas mais do que isso,
podemos entender nāṭya como a prática integrada de dança, teatro e música.
Numa forma mais geral, devido a impossibilidade de melhor tradução, podemos
compreender como o fazer das artes performáticas. A palavra śāstra pode ser
entendida como manual de instrução, tratado, codex, uma ordem de comando,
direção e etc. Porém, mais do que um compilado de instruções a serem
seguidas, os śāstras são registros da produção de conhecimento humano que
se movem, de forma integrada, em diferentes níveis do saber. Os śastras
documentam a investigação de uma ampla gama de assuntos, desde cozinhar,
economia, conduta social, reprodução de animais, justiça, artes performáticas e
etc. Eles fazem parte da tradição smṛti (lembrada) e seu papel é de um guia da
educação formal e construção social indiana (Vatsyayan 1996; Coomaraswamy
2013). Podemos citar importantes śāstras como Dharmaśāstra de Manu
(moralidade, leis, ordem social) e Arthaśāstra de Chanakya (Política e
Economia).

Assim, o Nāṭyaśāstra é um tratado que tem como objetivo documentar e guiar a


prática performática. Defendemos que ele documenta uma escola de
pensamento e linhagem artística, através da compilação de práticas e reflexões
que anteriormente foram sistematizadas e passadas de forma oral seguindo o
sistema de sucessão discipular (guruśiṣyaparamparā). Então, mais do que
registrar um tipo de dança, ele compila uma práxis artística que serviu de base
para a construção do fazer estético pan-indiano, como defendido por
Vatsyayan (1996).

Embora não haja unanimidade entre os teóricos, o consenso geral da data de


compilação do Nāṭyaśāstra está entre os séculos II AEC e II EC. Tal datação se
dá a partir de evidências linguísticas de conteúdo. Outro ponto de debate entre

81
os pesquisadores da obra é a identidade do autor, pois existem poucas
evidências de sua vida. Especula-se que, na realidade, Bharata muni (sábio
Bharata) não seria um único indivíduo mas sim um conjunto de intelectuais que
utilizam o nome Bharata como um acrônimo de Bhāva (sentimentos) , Rāga
(harmonia) e Tāla (ritmo), elementos básicos de nāṭya (Das 2015; Vatsyayan
1996; Rangacharya 1966). Kapila Vatsyayan (1996), discorda de tal posição e
sustenta que a construção da obra é conectada de tal maneira e de forma tão
coerente que seria muito difícil tratar-se de um grupo de pessoas. Na visão da
autora, Bharata foi um professor e mentor de uma linhagem artística, com
muitos filhos ou pupilos, os quais seriam atores, músicos, dançarinos e
teóricos, como nos é apresentado no primeiro capítulo da obra (Vatsyayan
1996). O pesquisador M. Ramakrishna Kavi, na introdução da edição do
Nāṭyaśāstra de 1956, defende que haveria evidências no texto para indicar que
Bharata era um sábio da região dos Himalaias. Independente das discussões
temporais e espaciais que envolvem a obra e sua autoria, a importância do
texto para o estudo da dança e todo o campo das artes performáticas indianas
permanece.

Até o século XX acreditava-se que o Nāṭyaśāstra havia se perdido e apenas


alguns capítulos haviam sido recuperados. Em 1827 H.H. Wilson apontou que,
embora o śāstra de Bharata seja citado por dramaturgos e comentaristas
teatrais, a obra estaria perdida. Durante o século XIX poucos manuscritos
foram localizados e alguns capítulos foram trabalhados. A construção e edição
de uma versão completa da obra se deu a partir da localização de manuscritos
completos e em bom estado de conservação do comentarista Abhinavagupta
da região da Kashmira (Séc X-XI EC) porém, é importante destacar que
existem partes do texto que apresentam lacunas, seja por motivos de má
conservação, divergência entre os manuscritos ou confusão entre comentários
e obra original. A primeira tradução comentada para a língua inglesa se deu em
1951 feita pelo pesquisador Manomohan Gosh, o que foi fundamental para
ampliar os estudos no ocidente. Adya Raṅgacharya publicou em 1984 uma
edição comentada, também em inglês, mas estruturada em prosa. Atualmente,
uma tradução para a língua portuguesa do trabalho de Adya Rangacharya foi
publicada, o projeto de tradução é coordenado pela Profa Dra Janine Pimentel
(Letras - UFRJ) e a pesquisadora Thaisa MCS (PPGArq - UFRJ).

Em relação ao seu conteúdo, desenvolvemos uma análise seguindo a


metodologia de Laurence Bardin (2010) e chegamos às seguintes conclusões:
A obra pode ser dividida em 5 principais temas 1) Dança, 2) Drama, 3) Música,
4) Produção e 5) História, sendo que 2 destes temas principais (Drama e
Produção) apresentam subdivisões bem específicas. Em relação ao Drama
observamos temas relacionados à: 1) Atuação (para atores) e outros a 2)
Composição (para autores). Em relação a Produção, identificamos temas
relacionados à: 1) Arquitetura , 2) Direção e 3) Cenário/Figurino. Na figura 1,
apresentamos um esquema que sintetiza esta análise.

82
Figura 1: Análise de conteúdo Nāṭyaśāstra

Observando o percentual de representatividade de cada uma destes temas


abordados na obra (gráfico 1), podemos identificar que há um equilíbrio entre
eles. Apenas tema classificado como História descola significativamente, com
apenas 5,6% de representatividade, isso se dá pois categorizamos apenas o
primeiro e último capítulos, onde são explicados a origem de nāṭya (arte cênica
que compreende a música, dança e drama de forma integral) e a descida do
teatro a terra respectivamente, como sendo focado no contar a história da obra.
Vatsyayan (1996) aponta que suas posições são estratégicas como abertura e
fechamento da obra e que eles têm como objetivo “costurar” e dar coerência à
narrativa. Vale ressaltar que em todos os capítulos há mais de um tema sendo
discutido, justamente pela compreensão holística do fazer artístico, mas para
fins de análise de conteúdo decidimos por alocar de acordo com o tema que
mais se sobressai em cada capítulo.

Gráfico 1: Representatividade dos temas no Nāṭyaśāstra

Assim, ao observarmos os resultados da análise de conteúdo aqui proposta,


defendemos que o Nāṭyaśāstra não se trata de uma obra interessante apenas

83
para o campo da Dança, onde ganhou espaço e evidência nos dias de hoje ao
ser assumido pela Sangeet Natak Akademi (Academia Nacional de Música,
Dança e Drama) como referência para classificação de uma modalidade de
dança como clássica indiana, como também para outros campos do fazer
artísticos. Tendo os capítulos IV e VIII a XIII, onde são apresentados os
elementos fundamentais do que estamos chamando de teoria corporal
proposta no Nāṭyaśāstra, como base para nossa investigação nos debruçamos,
a partir do referencial teórico da Arqueologia Experimental, nas representações
destes 108 Karaṇas presentes nos gopuras (portais) do templo de Thillai
Nataraja em Chidambaram - Tamil Nadu

No capítulo IV, entitulado Tāṇḍa a ṛtya (A dança de Shiva), são descritos os


108 Karaṇas. Eles são definidos como hastapādasamāyogo nṛtyasya Karaṇaṃ
bhavet⁵, numa tradução nossa para o português temos, a combinação dos
movimentos das mãos e dos pés em uma dança é chamado Karaṇa. Então
mais do que poses estáticas, os Karaṇas são movimentos de dança, ou seja
passos completos de dança, como aponta a pesquisadora Bindu S.Shakar
(2004). Esses movimentos se perderam ao longo do tempo e não sabemos
como esses passos eram performados com total exatidão, mas as referências
descritas no Nāṭyaśāstra e as representações nos templos são registros que
nos permitem ter uma idéia de como esses movimentos eram executados. No
ano de 1978, em sua pesquisa de doutorado, a pesquisadora indiana Dra
Padma Subrahmanyam desenvolveu uma extensa busca por (re)construir os
movimentos dos Karaṇas descritos no Nāṭyaśāstra. Na pesquisa, foram
utilizadas as representações dos passos presentes nos templos do sul da Índia,
inclusive as de Chidambaram que analisamos neste trabalho, diversos textos
sobre o assunto e o Nāṭyaśāstra com comentários de Abhinavagupta (Séc X
EC).

Na década de 1990, Nrithyodaya produziu o seriado de TV dividido em 13


episódios chamado "Bharatiya Natya Sastra" baseado na pesquisa da Dra.
Padma Subrahmanyam.⁷ Em 2003, seu doutorado foi publicado em 3 volumes
onde explica detalhadamente os caminhos seguidos para a sua visão de
execução de cada um dos Karaṇas. Em 2009, lançou o DVD Karaṇa
PraKaraṇam⁸, onde apresenta e documenta os detalhes da pesquisa.
Posteriormente, sua pesquisa se tornou uma nova modalidade de dança
indiana chamada Bharatanrityam. Fomos buscar sua discípula Dra Sujatha
Mohan para aprendermos como executar a visão da pesquisadora em nosso
corpo.

84
Figura 2: Karaṇa karihasta (87), gopura do leste do templo de Thillai Nataraja
em Chidambaram, 2010. Fonte:
https://www.asianart.com/articles/Karaṇas/index.html acessado em 16/08/21

Seguindo os ensinamentos do Nāṭyaśāstra, o conhecimento foi estruturado


pela Dra Sujatha Mohan em 4 partes principais: 1) Investigação das
articulações com os A a (membros principais) e Prathya ga (membros
secundários), 2) Referencial estético de mãos e pernas utilizando os Nṛtta
Hāstas (gestos de mão) e Sthānas (posições dos membros inferiores), 3)
Movimento dos membros inferiores a partir das Cārīs e 4) Movimentos de
dança completo dos Karaṇas. Desta forma, passamos da análise teórica desta
escola de pensamento para o treinamento corporal. Com isso, um dos nossos
objetivos é experimentar uma construção corporal e utilizá-la como motor para
análise das representações dos Karaṇas nos gopuras do templo de Thillai
Nataraja em Chidambaram.

108 Karaṇas no Templo Thillai Nataraja em Chidambaram - Tamil Nadu


O complexo templário de Thillai Nataraja está localizado na cidade de
Chidambaram, que faz parte do distrito de Cuddalore no estado de Tamil Nadu
na região sul da Índia. A cidade fica a 245 km de Chennai (capital do estado).
Trata-se de um templo em funcionamento, onde são realizados diversos
festivais ao longo do ano. Embora suas atuais estruturas sejam datadas do
período tardio dos Chola, entre os anos 1070 e 1279 EC (Mevissen 2002),
existem evidências literárias, tanto de origem sânscrita, com o Chidambara
Māhātmya, quanto tamil, com o Kovil Purāņam, que remetem a santidade do
santuário à época de Pata jali, o autor do Yoga Sūtra do século II AEC. O
trabalho poético tamil Tirumandiram, do século II EC, localiza a antiguidade do
santuário no século V AEC (Satyamurti 1978) . Ao longo dos śeculos, o
complexo templário sofreu diversas renovações, sua localização no centro do
território do império Chola o concedeu muito prestígio e a cidade de

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Chidambaram cresceu ao redor do complexo. A decadência assolou o
complexo em vários momentos de sua biografia, sua ultima grande fase de
falta de investimentos foi durante o século XVIII EC, já no período colonial,
quando foi palco de disputas territoriais entre o Reino Unido e a França (Michell
1995). Em 1959, 12 anos após a independência Indiana, através da Lei de
Dotações Religiosas e Caritáveis de Tamil Nadu a gestão dos templos foi
definida como sendo do governo estadual de Tamil Nadu, onde se instituiu uma
estrutura pública para essa administração.

Atualmente, o complexo templário ocupa um espaço de 50 acres (aprox.


202.343 metros quadrados), sendo toda sua extensão cercada por muros,
havendo 4 estruturas de gopuras, cada um construído voltado em um ponto
cardeal, que servem de imensos portões, separando os espaços religiosos do
cotidianos. Um dos principais elementos dos templos do sul indiano, um gopura
é caracterizado por Fergursson (1910) como sendo do estilo arquitetônico
Dravidiano. Trata-se de um portal e seu tamanho pode chegar a proporções
monumentais. Eles costumam ser construídos com uma base de pedra e
estruturas de tijolo com pilastra dando sustentação. Usualmente, seu formato é
piramidal e no seu topo, apresenta uma abóbada. As paredes externas são
revestidas de esculturas que podem ser coloridas ou não.

Figura 3: Parede interna direita do Gopura leste do templo de Thillai Nataraja


em Chidambaram, 2007. Fonte:
https://www.asianart.com/articles/Karaṇas/index.html acessado em 16/08/21

No templo de Thillai Nataraja as representações dos 108 Karaṇas se


encontram nas paredes interiores dos seus 4 gopuras. Ao analisarmos suas

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datas de construção identificamos que existem divergências pois, como
apresentado anteriormente, o complexo sofreu diversas interjeições ao longo
do tempo. Em relação ao estudo específico destas representações, existem 3
importantes trabalhos já desenvolvidos, O primeiro é o o Relatório Epigráfico de
Madras de 1914, feito pelo Archaeological Survey of India, e que produziu
ilustrações em madeira de 93 das 108 representações dos Karaṇas de
Chidambaram, o segundo é o livro Tāṇ ava Laksanam de 1936 , escrito pelos
pesquisadores da Universidade de Annamalai (Tamil Nadu) Professor B.V.
Narayanaswamy Naidu, P. Srinivasulu Naidu e O.V. Rangayya Pantulu, foi um
dos primeiros trabalhos dedicados ao estudo do capítulo IV do Nāṭyaśāstra
associando as representações dos Karaṇas de Chidambaram e o terceiro, a
tradução do Nāṭyaśāstra do pesquisador M. Ramakrishna Kavi de 1956 que,
assim como no trabalho Tāṇ ava Laksanam associou as representações dos
Karaṇas com os ślokas do Nāṭyaśāstra.

Segundo o levantamento realizado pelo pesquisador M. Ramakrishna Kavi


(1956), há um equívoco, amplamente replicado entre pesquisadores, gerado
pelo Relatório Epigráfico de Madras de 1914 em relação às informações das
ordens dos Karaṇas entre 54 a 108 e a ausência de representações dos
Karaṇas nos 4 gopuras de Chidambaram. Segundo o relatório, estariam
faltando em Thillai Nataraja as representações dos Karaṇas 9, 10, 56, 62, 64,
68, 70, 71, 72, 82, 86, 88, 89, 93, 94, 96 e 101. Acreditava-se que essas
representações estavam danificadas no período da produção do relatório. Kavi
(1956) aponta que mesmo no trabalho Naidu (1936), as discrepâncias entre o
que Bharata define no Nāṭyaśāstra e a representações associadas aos
Karaṇas 54 a 108 permanecem pois Naidu (1936) utilizou o relatório de 1914
para embasar sua conexão entre representação e descrição do śloka. Para a
publicação de seu trabalho, Kavi (1956) foi à Chidambaram para averiguar
essas discrepâncias. Após análise no local, o autor chegou à conclusão que
“não havia irregularidade na ordem dos Karaṇas de 54 a 108 como alegado
pelos autores do Relatório Epigráfico e do livro Tāṇ ava Laksanam” (Kavi 1956
: 38-39) O problema não estava nos gopuras de Chidambaram mas sim na
organização das fotografias do templo feita em 1914. Na presente pesquisa,
optamos por nos orientar mediante ao trabalho desenvolvido por Kavi (1956)

Para a análise dos 108 Karaṇas, organizamos as imagens junto com os ślokas
transliterados do sânscrito, a tradução em inglês de Gosh (1951) e em
português da versão de Rangacharya (1984). Também inserimos uma
categoria proposta por Kapila Vatsyayan (1966) ao analisar as representações
dos Karaṇas em Thillai Nataraja. Por fim, desenvolvemos uma análise da
posição corporal da dançarina através do Parâmetro movimento da Teoria
Fundamentos da Dança de Helenita Sá Earp e buscamos realizar uma
comparação entre o śloka e o que identificamos na análise corporal. A análise
completa é possível ser acessada a partir da dissertação da autora deste artigo
intitulada “Representações dos 108 Karaṇas: Construção de discursos do
passado indiano a partir do corpo, da dança e da materialidade”.

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A partir de nossa comparação entre os ślokas do capítulo IV do Nāṭyaśāstra e
as representações dos Karaṇas no templo Thillai Nataraja identificamos que
87% das representações são diretamente conectadas com as descrições da
obra, 12% não conseguimos identificar semelhança direta com a descrição e
1% não foi possível de analisar devido ao fato da representação estar
danificada. Acreditamos que essa alta conexão entre as descrições da obra e
as representações nos gopura ratifica a hipótese de que a prática corporal
descrita no Nāṭyaśāstra era amplamente praticada e difundida no período
Chola tardio (1070-1279 EC). Comparando as traduções dos autores
trabalhados, 11% dos ślokas divergiam em conteúdo, sendo as interpretações
de categorias corporais o principal motivo de divergência. Além disso, 57% dos
Karaṇas analisados receberam observações específicas.

Conclusão
Acreditamos que a materialidade influencia diretamente na produção desses
discursos sobre presente, passado e futuro. No que se refere a construção de
uma estética clássica indiana, ela desempenha o papel de legitimação e de
modelo estético a ser seguido. Por fim, apontamos que, ao aproximarmos os
olhares do/no corpo, conectamos camadas de análises corporais a partir de 3
diferentes perspectivas : 1) o corpo como cultura material, onde analisamos as
representações corporais da dança presente nos gopuras (portais) do
complexo templário de Thillai Nataraja em Chidambaram, 2) o corpo como
como produtor de conhecimento, ao nos colocarmos ativamente praticando os
movimentos propostos por essas representações com o intuito de abrir nossas
percepções de análise e 3) o corpo como (re)produtor de discursos, ao
entrarmos no debate de como essa materialidade influência nos discursos dos
corpos de dançarinas nos dias de hoje.

Referência
Thaisa MCS é doutoranda em Arqueologia (PPGArq - Museu Nacional/UFRJ),
mestre em Arqueologia (PPGArq - Museu Nacional/UFRJ), pós-graduada em
Linguagem da Dança (FURB) e bacharel em Teoria da Dança (UFRJ). Contato:
thaisamcs@yahoo.com.br

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