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ASIOINDIANOS
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Bruno Redondo
Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].
Rede
www.orientalismo.net
Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos Asioindianos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2023. 90 p.
ISBN: 978-65-00-77511-2
História da Ásia; Orientalismo; Índia; Diálogos Interculturais.
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Apresentação
Orientalismos e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Visões do Orientalismo
Estudos sobre Oriente Médio
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
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Sumário
Estudos Asianos
O PAN-ASIANISMO, A ÁSIA FRENTE A SI: UM BREVE COMPARATISMO por Breno P. Andrade ... 7
A FORTALEZA DE RAMA – HISTÓRIA TAILANDESA DO SÉCULO 13 AO 19, por Emiliano Unzer .. 15
DEPENDÊNCIA E DESENVOLVIMENTISMO: DISCUSSÕES TEÓRICAS A PARTIR DA ANÁLISE DAS
ECONOMIAS ASIÁTICAS NO SÉCULO XX por Érico Azera ............................................................ 24
“IRMÃOS QUE DIVIDEM UMA VIDA”: DISPUTAS ENTRE MASCULINIDADES HEGEMÔNICAS NA
GUERRA MONGOL (1204-1206) A PARTIR DA HISTÓRIA SECRETA DOS MONGÓIS, porJosé Ivson
Marques Ferreira de Lima ........................................................................................................... 32
Estudos Indianos
BRÂMANE OU PANDAR: JOÃO DE BRITO E A QUERELA DOS RITOS MALABARES (ÍNDIA, SÉC
XVII), por Alexandre Cabús. ......................................................................................................... 39
OS KUSHANS E A CONFEDERAÇÃO DOS GRANDE YUEZHI: DIVERGÊNCIAS EM PERSPECTIVAS
HISTORIOGRÁFICAS SOBRE MIGRAÇÕES NOMÁDICAS NA ÁSIA CENTRAL, E A FUNDAÇÃO DO
IMPÉRIO KUSHAN (SÉC. II A.E.C - SÉC. I E.C.), por Cristian de Silveira ........................................ 46
A TAPEÇARIA DE SAMPUL: UMA ANÁLISE ICONOLÓGICA DE UM ARTEFATO DAS ROTAS DA
SEDA, por Cristian de Silveira ...................................................................................................... 55
A VOZ DO EMPODERAMENTO: CINEMATOGRAFIA BOLIWOODIANA, REPRESENTAÇÕES DO
FEMININO EM SALA DE AULA, por Lidiane A. Mendes ............................................................... 67
ASPECTOS CULTURAIS DOS DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS DAS VERSÕES DO RĀMĀYAṆA, por
Matheus Landau de Carvalho ..................................................................................................... 73
108 KARAṇAS: MATERIALIDADE, CORPO E A DANÇA NA ÍNDIA, por Thaisa Martins Coelho dos
Santos .......................................................................................................................................... 81
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O PAN-ASIANISMO, A ÁSIA FRENTE A SI: UM BREVE
COMPARATISMO por Breno P. Andrade
Pensando a Ásia
Acharya (2010) expõe que é consensual na literatura o termo Ásia como uma
construção do colonialismo europeu. Sua cunhagem remonta à Grécia Antiga
das Guerras Médicas (séc. V e IV AEC) referindo-se aos territórios para além
da Anatólia. Tornou-se subsequentemente uma denominação geral europeia
para designar as terras à leste. Contudo, mesmo atualmente, não é consensual
onde a Europa “termina” e a Ásia “começa”. Os componentes culturais,
religiosos, linguísticos, sociais, geográficos e políticos, as rivalidades internas e
a escassez de uma integração “ao estilo ocidental” tornam diversas as
interpretações sobre fronteiras. Nomenclaturas não eram consensuais. Os
hegemônicos nomeavam embasados em seus interesses e esferas de
influência, na evidente diferenciação “nós e eles”, fruto de tradição
historiográfica sistematizada por Hegel, Marx, Adam Smith, Montesquieu, entre
outros. Pela força decorrente das interações entre Europa e o sistema tributário
de estados centrado na China, Ásia Oriental e Extremo Oriente aparecem com
frequência.
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Ocidente e a ofensiva britânica que rendeu a China em 1860 evidenciaram
pretensões imperialistas; a Europa e o Ocidente tornaram-se ameaças por todo
o continente. A reação asiática foi o esvaziamento de Ásia do tecniquês dos
cartógrafos para significação de um espaço geopolítico interligado por traços
compartilhados de história conjunta, ligações culturais, comerciais e
diplomáticas próximas e a noção de destino comum. Ensaios, discursos
políticos, slogans populares, canções, poemas e uma agenda de uma Ásia
unida refletiam sentimentos de solidariedade e cooperação partilhando um
objetivo: resistir ao avanço da influência e dominação ocidentais.
O Pan-Asianismo
Saaler e Szpilman (2011) trazem alguns dos princípios norteadores da
solidariedade asiática. O princípio étnico foi um deles, em uma concepção
ocidental de unidade étnica dos amarelos. Outros tendiam a enfatizar
similitudes em história compartilhada, cultura e língua - principalmente a escrita
-, especialmente no extremo oriente pela influência do sistema tributário
sinocêntrico. Os movimentos pan emergentes simultaneamente na Europa e na
América eram vistos como possíveis modelos a seguir. Independente da
abordagem, evidencia-se a ênfase comum em transnacionalismo com forte viés
anti-ocidental. O transnacionalismo coloca o conceito de nação à prova na
Ásia. A construção epistemológica ocidental do termo alicerçada em liberalismo
e individualidade era vista com ressalvas. Experimentações anteriores às
relações com a Europa, embasadas nos valores confucianos de coletividade,
previsibilidade e prosperidade compreendiam o indivíduo como dotado de
sentido pois existe e age a partir do seio da família. A família parental sendo
parte de uma família estendida - trabalho e círculo social - e finalmente a
sociedade como a mais abrangente. O pan-asianismo seria o estágio final da
extensão da família.
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japoneses que defendiam o movimento de independência de Emilio Aguinaldo
desde 1898 formaram em Manila a Pan-Oriental Society em 1915.
Conferências pan-asiáticas realizadas na China, no Japão e no Afeganistão a
partir de 1920 foram palco de encontros internacionais. Publicações e
periódicos em larga escala por Japão, China, Índia e Sudeste Asiático mas
também na Alemanha, Itália e EUA ilustram a interconexão dos movimentos
antiocidentais.
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primeiros ensaios sobre pan-asianismo ainda em 1910. Sugere uma Ásia unida
através de aliança transnacional militar e uma moeda única como preparação
para uma guerra entre as etnias branca e amarela. Sob o domínio japonês, o
apelo do pan-asianismo para os coreanos foi bastante limitado, mas não
completamente exíguo. Intelectuais coreanos seguiram defendendo uma
comunidade pan-asiática mais ampla e coexistência entre as culturas coreana
e japonesa.
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externas do Japão e poderiam entrar em águas frias caso transparecesse
atividade japonesa em um pan-asianismo. Assim, materiais publicitários oficiais
eram publicados em segredo na China e na Coreia enquanto jornais japoneses
para o exterior classificavam possíveis uniões asiáticas como “inúteis e
imprudentes” [SAALER; SZPILMAN, 2011, p. 16] Diplomatas enviados para o
oeste frequentemente dissuadiram o Ocidente declarando seus entornos como
fracos e ridicularizando possibilidades de liderança japonesa na Ásia.
Por outro lado, uma possível aliança asiática era vista com bons olhos pelos
entusiastas ocidentais da teoria geopolítica de Karl Haushofer. O conceito de
autarquia - núcleo da teoria -, aliado ao espaço vital de Friedrich Ratzel,
pressupunha a extensão da esfera de influência para além das fronteiras
geográficas, garantindo a autossuficiência na aquisição de produtos e matérias-
primas para alcançar modernização industrial rumo à prosperidade. Em 1924,
como editor da Zeitschrift für Geopolitik, e após contato direto com Sun Yat-sen
e Tagore em missões diplomáticas, homenageou o movimento pan-Asiático,
vendo-o como mais uma prova de sua teoria, já em curso na Alemanha. Uma
tendência em direção a uma futura ordem mundial dominada por Pan-Regiões,
substituindo a ordem estabelecida pelo Estado-nação soberano. Mais além,
Haushofer propunha uma coalizão continental-oceânica entre os poderes
terrestres da Alemanha e URSS e o poder naval japonês “capaz de arrebatar
das potências insulares [a Inglaterra] a preponderância mundial” [MELLO apud
BRIGOLA, 2023. p. 54].
As Pan-Regiões de Haushofer
Fonte: Brigola (2023)
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japoneses são, efetivamente, asiáticos” [SAALER; SZPILMAN, 2011, p. 28]. O
ideário pan-asiático foi preservado no Japão nas críticas da esquerda política e
também entre nacionalistas que abandonaram suas expectativas nas
possibilidades do socialismo.
O Japão fora do jogo abria brechas para que outras nações asiáticas
protagonizassem o debate de acordo com suas ideias de Ásia. O Movimento
dos Não-Alinhados e a Conferência de Bandung de 1955 retomaram ideias de
uma Pan-Ásia com lideranças asiáticas e africanas como Jawaharlal Nehru
(Índia), Gamal Abdul Nasser (Egito) e Joseph Tito (Iugoslávia). Também para
evitar uma supremacia desse movimento na região, o Sudeste Asiático
imaginou uma associação regional sem a participação dos hegemônicos China
e Índia. Foi o primeiro passo na criação da ASEAN, com histórico mais coeso
de longevidade que a breve Organização das Relações Asiáticas, nascida no
berço da Conferência de Nova Delhi de 1947. Fica evidente que aqueles que
celebraram seus movimentos de independência e tentativas de unidade,
nacional ou transnacional, imaginavam sua dominação sobre o resto da Ásia.
Contudo, a experiência japonesa descredibilizou a retórica da cooperação:
legando-a a sinônimo de imperialismo. Logo poucos esforços de pesquisa e
reestruturação do pan-asianismo foram realizados após 1945.
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Sul, Ásia quer dizer China, às vezes Índia. Já a China considera-se ainda o
centro, [...], pois termina impondo certa geografia imaginária.” [FREITAS, 2016,
p. 45] A problemática se encontra em estabelecer a narrativa ocidental de
poder político - ascensão e queda das nações como tradição epistemológica
universalista - e uma ideia civilizacional e emancipatória na Ásia pois não é
possível tratar da dicotomia Ocidente x Oriente em termos binários. Ou tratar
da Ásia como mera soma das partes. É necessário inter-referenciá-la a partir
de dentro, tendo-a como meio de pesquisa - não somente como objeto de
análise - multiplicando os pontos de referência, comparando historicamente o
colonizado fora do espectro hegemônico. Transitando na ponte entre o poder
político cautiliano, comunitarismo confuciano, idealismo nehruviano e
pluralismo kantiano, a Ásia será continuamente construída tanto de dentro
quanto de fora. Acharya argumenta que uma narrativa mais abrangente e
realista deveria ser centrada nas pessoas e suas relações com os entornos de
maneira a refletir um senso genuíno de regionalidade asiática. Estados
pequenos e populações vulneráveis têm muito a temer em um discurso de
ascensão da Ásia e em um pan-asianismo comandado por vizinhos ricos,
poderosos e autoritários. É importante abandonar o vício de emular sempre o
norte pois nem a geografia ou geopolítica, nem poder e prosperidade, são
bases suficientes para clamar a relevância da região.
Referências
13
Breno P. Andrade é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) com especialização em Direitos Humanos e
Questões Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
ACHARYA, Amitav. The Idea of Asia. Asia Policy, no. 9, 2010, pp. 32–39.
JSTOR. Disponível em http://www.jstor.org/stable/24904969. Acesso em 13 jul
2023.
KANG, Choi; JAEHYON, Lee (orgs.) Understanding Asia. What Asia Wants
from the US: voices from the region. Asan Institute for Policy Studies, 2018, pp.
61–67. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/resrep20691.13. Acesso em
13 jul 2023.
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A FORTALEZA DE RAMA – HISTÓRIA TAILANDESA DO
SÉCULO 13 AO 19, por Emiliano Unzer
As lendas dos povos tais remetem as suas origens ao deus Khun Borom,
inventor da agricultura, artesanato, aprendizado, rituais e costumes. Essa figura
heroica reinou na região do norte vietnamita próximo a Dien Bien Phu e, de lá,
mandou seus sete filhos para governar sobre todos os povos tais no Sudeste
Asiático. Esses povos incluiriam além da grande nação dos tais propriamente
ditos, shans, khuns, lus, laos e yuans. E o destino desses dependeria de
habilidades agrícolas e bélicas.
Mas antes de Ayutthaya (Aiutaia), o reino de Lanna foi fundada em 1296 por
um líder dos tais chamado de Mangrai (r. 1292 - 1311), descendente de mons e
khmers. Foi um rei astuto e inteligente, com rara sensibilidade e senso
diplomático que soube aproveitar a ocasião histórica na decadência do reino
khmer de Angkor depois do reinado de seu último efetivo líder, Jayavarman VII
em 1218. Às custas dos khmers, Lanna expandiu e cresceu em seus domínios.
Mangrai revelou-se um estadista ao resolver as disputas entre dois reis, os de
Phayao e de Sukhotai ao sul de Lanna. Ademais, Mangrai conseguiu
conquistar reinos antes dominados pelos birmaneses, quando invadiu o reino
mon de Haripunjaya em 1281. Oito anos depois, esse rei expandiu sua
influência para a cidade de Pegu, a maior cidade mon na Baixa Birmânia.
Como consequência, o rei de Pegu ofereceu como sinal de aliança sua filha em
casamento ao rei de Lanna.
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chineses, Mangrai enfrentou uma invasão em 1301 de cerca de 20 mil homens.
Ao final, essa expedição chinesa produziu pouco efeito prático, a não ser
normalizar as relações entre Lanna e Pequim, com o envio periódico de tributos
a partir de 1315 a manter as ligações comerciais e políticas entre os dois
reinos. Em 1311, Mangrai chegou a falecer, acarretando um período confuso e
incerto de crises de sucessão que perdurou até 1324. Lanna, ao final dessas
instabilidades, sobreviveu, mas viu-se diante dos crescentes conflitos entre
birmaneses e Ayutthaya, um poderoso reino tai que tinha se estabelecido no
vale do rio Chao Phraya.
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portador de certa essência do Buda, benevolente e impassível diante das
mundanidades. As obrigações dos altos oficiais foram definidas pelo rei
Borommatrailokanat (r. 1448 - 1488), ou Trailok. Foi este que adquiriu novos
territórios para Ayutthaya e reorganizou toda a estrutura política e
administrativa do reino. As províncias passaram a responder diretamente a
capital, centralizando todas as decisões e recursos do Estado. Para as
lideranças locais, foram nomeados governantes da casa real, e não mais a
depender de famílias nobres locais. No campo jurídico, as penalidades foram
agravadas se fosse feito algum delito contra um funcionário do Estado, visto
como uma ofensa ao próprio rei. Como resultado, Trailok cimentou a base de
um sistema que iria perdurar por séculos na sociedade tailandesa até as
reformas ocidentalizadas no século 19 e da revolução de 1932 que aboliu a
monarquia absoluta.
No aspecto externo, Trailok foi desafiado por dois reinos tais rivais, Lanna e
Lan Xang. Angkor já não apresentava nenhuma séria ameaça na segunda
metade do século 15. Os birmaneses sob a dinastia Toungou ainda não tinham
se consolidado como potência ao oeste. Em Lanna, contudo, a ascensão do rei
Tilokaracha (r. 1441 - 1487) em 1441 resultou na expansão rumo ao reino de
Lan Xang, cuja capital localizava-se no curso médio do rio Mekong, em Luang
Prabang.
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Em 1488, Trailok morreu e Ayutthaya já se encontrava proeminente no
continente asiático e tinha estendido seu poder na esfera marítima, tornando
Ayutthaya no principal fornecedor de arroz para Malaca, sobre o qual tinha
conseguido acordos de soberania. A tal ponto que os portugueses, quando
chegaram em Malaca em 1511, consideraram a cidade como vassala de
Ayutthaya. A expansão de Ayutthaya também tinha expandido para as regiões
de Tavoy e Tenasseriam, motivados para maior controle do comércio
internacional da Baía de Bengala ao oeste. Naturalmente essa expansão fez
com que entrassem em conflito com os birmaneses, uma vez que a dinastia
Toungou tinha conseguido reunificar o país. E foram contra esses que as
guerras do século 16 resultaram no sítio e destruição das proximidades de
Ayutthaya em 1546 e 1569 pelo rei birmanês Bayinnaung. Foi somente sob
Naresuan em 1590, que os tais de Ayutthaya conseguiram autonomia maior
frente aos birmaneses.
Tendo isso, Naresuan avançou com suas tropas para Kanchaburi no início de
1593. Apesar de estar em número inferior aos de Toungou, Naresuan parece
ter tido sucesso nas táticas em campo, numa formação de tropas conhecida
como a "matriz de lótus", a explorar e usar os flancos abertos a encuralar o
inimigo em tempo oportuno. Isso ocorreu em Nong Sarai, quando os tais
conseguiram confundir os birmaneses e cercar os birmaneses após duras
batalhas.
De todos os reis de Ayutthaya, foi Narai (r. 1656 - 1688) que mais dedicou sua
política a manter as forças bélicas tailandesas em par com o que havia de mais
moderno. Apesar de Naresuan ter revitalizado Ayutthaya ao derrotar os
birmaneses em 1593, isso não significou plena independência nas décadas
seguintes. Narai subiu ao trono em 1656 com o apoio de ricos mercadores
muçulmanos, esse rei buscou sempre se informar e se inserir no tabuleiro
internacional da época. Buscou a ajuda de holandeses, mas também não
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descartou o interesse da Coroa Francesa no Sudeste Asiático. Esses últimos
europeus foram representados por um grego, Constatine Phaulkon (referido
pelos portugueses como Constantino Falcão) (1647 - 1688), que tinha chegado
à capital tailandesa com a CIOB e passou a servir de tradutor na corte de
Narai. Foi útil ao fazer a ponte de contato entre os europeus residentes em
Ayutthaya e o governo, e serviu de conselheiro para a construção de pontes,
fortificações e outras obras públicas. Pela sua contribuição, não foi de se
estranhar que o rei Narai passou a se interessar em contatar Paris para
maiores assistências. Phaulkon, de sua parte, alimentava a esperança de que
o rei e sua corte converteriam-se ao cristianismo, algo que se revelou
equivocado pela profunda assimilação e popularidade do budismo entre a
população tailandesa. Não era, portanto, de interesse de um soberano se
converter a uma crença estrangeira de pouca compreensão popular.
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Na época de sua sucessão, em 1758, houve novos conflitos políticos em
Ayutthaya, que provou ser fatal para o reino. Pois foi nessa época que os
birmaneses de uma renovada dinastia de Konbaung começou a ter interesses
expansionistas. As lutas e desavenças chegaram a paralisar o comando
centralizado do reino de Ayutthaya, que se tornou fragilizada a invasões
estrangeiras. A capital tailandesa quase foi capturada em 1760, se não fosse
por um mero golpe de sorte ao explodir os armamentos de fogo usados no sítio
pelas tropas birmanesas, ferindo gravemente o rei Alaungpaya e provocando
sua morte no caminho de volta para as terras birmanesas. A tarefa da
conquista definitiva de Ayutthaya coube ao segundo filho de Alaungpaya,
Hsinbyushin (r. 1763 - 1776), que tinha ganhado experiência nos combates
contra Lanna e Lan Xang nos anos anteriores. Logo antes da queda de suas
muralhas aos birmaneses, em 1767, Ayutthaya tinha sofrido anos de
bombardeio e um incêndio que atingiu cerca de 10 mil casas. Sem
misericóridia, o exército birmanês, uma vez rompida as muralhas, estupraram,
pilharam e saquearam seus valores e tesouros culturais e religiosos. Milhares
de tailandeses foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos.
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negligência dos ensinamentos e estudos budistas, buscou patrocinar templos e
traduções para o tailandês de clássicos, como o Milida Panha, "As Questões do
rei Milinda", corpo de texto escrito em páli nos primeiros séculos de nossa era
que deu início à tradição teravada do budismo. Além disso, o rei buscou
reformar todas as ordens monásticas, perseguindo práticas corruptas e
exigindo a identificação de todos os monges pelo reino. Ao fim de seu reinado,
em 1809, o budismo tai havia assegurado uma coesão e unidade forte o
suficiente para conferir a Tailândia sua própria identidade nos séculos
seguintes.
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Seu irmão, Mongkut, Rama IV (r. 1851 - 1868), conseguiu a façanha de
preservar a soberania siamesa no duro jogo imperialista europeu em meados
do século 19 no Sudeste Asiático. A situação de seu reino estava longe de
estar tranquila, pois as regiões birmanesas e malaias foram gradativamente
sendo incorporadas pelos britânicos e pelos franceses vindos do Vietnã. Para
regularizar as relações, foram assinados cruciais tratados em 1855 com os
britânicos e, um após, com os franceses, nunca a perder de vista as
oportunidades comerciais, inclusive com relação ao infame comércio de ópio
levado a cabo pelos britânicos nas próximas regiões indianas, em Bengala, e
birmanesas.
Chulalongkorn, ou Rama V (r. 1868 - 1910), sucessor de Rama IV, foi hábil em
buscar explorar os temores expansionistas de britânicos e franceses no
Sudeste Asiático. E nesse sentido, o reino siamês passou a ser considerado
como um Estado tampão entre as duas potências europeias, os britânicos ao
oeste e sul, os franceses ao leste. Chulalongkorn continuou a política de
modernização ocidental implantada pelo seu pai e cultivou as boas relações
com os governos europeus, com particular cuidado com a presença de
comunidades estrangeiras e missionários em seu reino. Ademais, o rei adquiriu
gosto por aprender as línguas europeias e importou livros e obras para se
manter a par das artes e ciências de fins do século 19. Seu interesse foi em
grande parte despertado na sua criação por uma governanta e tutora indo-
britânica, Anna Loenowens (1831 - 1915). No restante de seu governo,
Chulalongkorn reformou amplamente a estrutura política e administrativa do
reino siamês. Decretou o fim da servidão em 1905, renovou a estrutura jurídica,
militar e burocrática para mais próxima aos modelos europeus, e buscou coibir
as práticas clientelista e corruptas de seu governo. Em suma, foi durante os
governos de Rama IV e Rama V que o Sião conheceu, de 1851 a 1910, uma
revitalização reformadora que preservou sua autonomia frente ao imperialismo
ocidental no Sudeste Asiático.
Referências
Dr. Emiliano Unzer é professor e pesquisador de História da Ásia na UFES,
autor de artigos e livros na área da história asiática, e criador do canal no
YouTube (www.youtube.com/emilunzer).
COOKE, Nola & LI, Tana (Orgs.). Water Frontier: Commerce and the Chinese
in the Lower Mekong Region, 1750-1880. Rowman & Littlefield, 2004.
22
HALL, Kenneth R. A History of Early Southeast Asia: Maritime Trade and
Societal Development, 100–1500. Lanham, Maryland, EUA: Bowman &
Littlefiled, 2011.
SIMMS, Peter & SIMMS, Sanda. The Kingdoms of Laos: Six Hundred Years of
History. Richmond, Surrey, Reino Unido: Curzon Press, 1999.
SWEE-HOCK, Saw & WONG, John (Orgs.). Southeast Asian Studies in China.
Cingapura: Institute of Southeast Asian Stuides, 2007.
23
DEPENDÊNCIA E DESENVOLVIMENTISMO: DISCUSSÕES
TEÓRICAS A PARTIR DA ANÁLISE DAS ECONOMIAS
ASIÁTICAS NO SÉCULO XX por Érico Azera
24
Passando para uma abordagem propriamente teórica, Amsden [1989, 1991,
2001] e Doner [1991] classificam que dentre os objetivos do modelo de Estado
desenvolvimentista estão a eliminação das relações de dependência e subjugo
e a busca por um crescimento autônomo e nacional. Ressalta-se, assim, que
apesar do protagonismo acadêmico concentrado na América Latina, os
enfoques dependentistas descreveram objetivos de desenvolvimento pautados
pela soberania nacional que se podem ser utilizados como lente para a análise
das regiões asiáticas já mencionadas. A partir dos anos 1940, com seu auge
na década de 1960, a proposta de um modelo autônomo de crescimento
econômico era manifestada entre teóricos na periferia do sistema internacional
[WALLERSTEIN, 2006]. O desenvolvimento almejado seria alcançado a partir
das seguintes ações macroeconômicas por parte dos governos: [a] o controle
das taxas de câmbio e o protagonismo do Estado na execução de políticas
fiscais; [b] a promoção dos investimentos priorizando o capital nacional; [c] o
fomento à industrialização tendo como base os mercados internos; [d] o
impulsionamento da produção nacional e garantias aos setores produtivos
considerados estratégicos [DONER, 1991; DONER; RITCHIE; SLATER, 2005;
HILLEBRAND, 1990].
Ainda sob o ponto de vista teórico, López [2010] infere que foi durante o auge
da teoria econômica do desenvolvimento [anos 1950 e 1960] que passou a se
considerar a eliminação dos geradores de subdesenvolvimento e,
consequentemente, as implicações que o subdesenvolvimento econômico
geraria do ponto de vista social. Com base no enfoque estruturalista [o
chamado estruturalismo cepalino], a marginalização dos países periféricos é
imposta pelos aspectos sistêmicos que impõem, de cima para baixo [do centro
para a periferia do sistema internacional], as condições de subdesenvolvimento
vividas pelos países marginalizados. É evidente que as conceituações
desenvolvimentistas, dependentistas e estruturalistas contribuíram para a
promoção de processos de desenvolvimento endógeno e com a proposta
industrializadora como primordial para a eliminação da dependência comercial.
Da mesma forma, entendia-se essencial a modernização das economias no sul
25
global e a quebra da dependência, enxergando o alastramento do modo de
produção capitalista de modo crítico [PIETERSE, 2010].
26
empresas estatais. Cingapura, por exemplo, manteve 490 empresas estatais
nos setores de manufatura, petroquímica, engenharia naval, construção civil,
entre outros [RIEGER; VEIT, 1990]. Apesar dos objetivos de geração de um
maior nível de empregabilidade no campo doméstico, o Estado
desenvolvimentista deveria orientar suas firmas à busca da eficiência e da
competição internacional para que fosse garantida a sustentabilidade e
continuidade das políticas de proteção. Para alcançar o patamar de eficiência
das empresas estrangeiras, políticas macroeconômicas eram realizadas
através de mecanismos de preços, da manipulação das tarifas de importação e
exportação e das taxas de câmbio e de juros.
27
têxteis, alimentos processados e eletrônicos simples. A região superou a
agroexportação e passou a incrementar a produção manufatureira [DONER,
1991, p. 826].
A fim de conferir uma síntese para os pontos até abordados neste trabalho,
conclui-se que diferentes abordagens teóricas desenvolvimentistas se
comprovaram na experiência prática nos NICs e nos Estados do sudeste
asiático. A intervenção pública no campo empresarial privado se deu a partir de
um diálogo entre a elite política e as forças oligopolísticas, garantindo uma
racionalidade de crescimento endógeno às firmas na esfera doméstica. O
desenvolvimento produtivo nos países de industrialização tardia, dentre os
quais estão incluídos diversos países asiáticos, concretizou-se, em um primeiro
momento, por meio da política de substituição de importações, evitando as
pressões mercadológicas na produção doméstica. Posteriormente, a
necessidade de operação dentro dos marcos institucionais capitalistas foi
reforçada pelos governos, que passaram a promover políticas de fomento à
exportação e a desregulamentação [liberalização] dos fluxos de capital
estrangeiro. Os estudos da teoria da dependência revelam que tais
flexibilizações financeiras e comerciais se configuraram no “desenvolvimento
ilusório”, quando a eficiência produtiva e os lucros colhidos pelos atores
28
privados não se comprometem com o ideal de desenvolvimento endógeno e
planejado [KASAHARA, 2013].
Referências
Érico Azera é graduando em relações internacionais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-Rio], bolsista do programa de
iniciação científica PET/TEPP do Instituto de Relações Internacionais [IRI PUC-
Rio] e membro da Liga de Estudos Ásia-Pacífico [IRI PUC-Rio]. Lattes:
https://lattes.cnpq.br/8765850430954208. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7689-2250.
AMSDEN, A. H. The rise of “the rest”: challenges to the west from late-
industrializing economies. Oxford ; New York: Oxford University Press, 2001.
414p.
BANCO MUNDIAL [ED.]. The East Asian Miracle: Economic Growth and Public
Policy. 1. ed. Washington: Oxford University Press, 1993.
29
DONER, R. F.; RITCHIE, B. K.; SLATER, D. Systemic Vulnerability and the
Origins of Developmental States: Northeast and Southeast Asia in Comparative
Perspective. International Organization, v. 59, n. 02, abr. 2005.
KASAHARA. The Asian Developmental State and the Flying Geese Paradigm.
Genebra: United Nations Conference on Trade and Development, nov. 2013.
Acesso em: 22 abr. 2023.
RIEGER, H. C.; VEIT, W.. State Intervention, State Involvement and Market
Forces - Singapore and South Korea. Em: The Newly Industrializing Economies
of Asia: Prospects of Co-operation. 1. ed. Berlin, Heidelberg: [s.n.].
30
WOO-CUMINGS, M. The Developmental State. Nova York: Cornell University
Press, 1999.
31
“IRMÃOS QUE DIVIDEM UMA VIDA”: DISPUTAS ENTRE
MASCULINIDADES HEGEMÔNICAS NA GUERRA MONGOL
(1204-1206) A PARTIR DA HISTÓRIA SECRETA DOS
MONGÓIS, porJosé Ivson Marques Ferreira de Lima
Escrita por volta do século XIII, a História Secreta dos Mongóis [元朝祕史
Yuanchao bi shi]é uma das únicas fontes literárias que narram sobre a vida de
Temüjin e sua trajetória para se tornar Chinggis Qan [Líder Oceânico] a partir
de um olhar mais interno, isto é, de uma perspectiva mongol [Allsen, 1987, p.
17].
A obra possui esse nome por ser dirigida aos membros da “Linhagem Dourada”
[Altan Ordos], isto é, a aristocracia mongol, que eram descendentes do
Chinggis Qan. O original foi perdido durante a transição Yuan-Ming [1368], com
isso, a conservação do livro se deu graças a letrados chineses Ming que
transcreveram a obra em caracteres chineses [empregados apenas de forma
fonética] [Cf.: HUNG, 1951].
32
na História Secreta dos Mongóis visando discutir sobre como a relação de
irmandade jurada entre homens – anda – foram importantes para construção e
consolidação do Império Mongol, a Yeke Mongol Ulus.
Porém, esses três laços que uniam as famílias mongóis não foram criação do
Chinggis Qan, elas já eram praticadas pelos mongóis anteriormente. Na
verdade, elas foram utilizadas por ele de maneira que, ao formar alianças
afetivas – e também políticas -, ele garantia a estabilidade de seu povo.
Há sobre os povos da Ásia Interior, de uma forma geral, a noção de que eles
eram “bárbaros”, “aculturados” que “sempre representam uma ameaça” às
sociedades sedentárias, consideradas “civilizadas” [um binarismo do qual
sinólogos, como Niccola Di Cosmo, Timothy Brook e Herbert Franke, se
mostram críticos, demonstrando que a relação entre China e os povos da Ásia
Interior era bem diferente].
33
Portanto, o caso dos anda, que será analisado a seguir, nos possibilita tanto
pensar a sociedade mongol a partir de um novo conceito quanto trazer para o
conceito de masculinidade uma nova experiência, a partir de um povo que não
se inclui nas costumeiras esferas ocidentais [aos estudiosos de
masculinidades, isso constitui um desafio, e tem na obra de David Gilmore um
primeiro esforço de estudar outras masculinidades].
Na sociedade mongol, há um título que exemplifica bem o que seria esse ideial:
a palavra ba’atur, que significa “herói”. No História Secreta dos Mongóis essa
palavra dá ênfase ao valor moral e militar que aquele homem possui, sendo um
deles Yisugei Batur, pai de Temüjin, um exímio caçador que derrotou um líder
tátaro numa guerra e retomou os kereítas à liderança de Ong Qan, seu anda
[Cf.: História Secreta dos Mongóis, §:177].
Ademais, outro marcador de masculinidade era o laço vital chamado anda, que
unia homens de diferentes famílias que “partilhavam uma vida” e se auxiliavam
de forma militar e política. Segundo o historiador Christopher Atwood:
“A relação de anda era uma irmandade juramentada formada por homens que
não possuíam uma relação direta; […] Encontradas em muitas sociedades
nômades turco-mongol, o ritual da irmandade de sangue envolvia beber de
uma taça onde o sangue de ambas as partes foi derramado. Os ‘irmãos’ então
iriam trocar presentes e habitualmente passar um tempo vivendo na mesma
tenda, ou ger.” [Atwood, 2004, p. 13. Tradução nossa].
34
posterior ruptura entre os dois. Segundo a documentação, a partir de um
discurso do Jamuqa, a relação de anda consiste em homens dividirem uma
vida:
“Em dias anteriores, velhos homens costumavam dizer: ‘Homens que são
irmãos jurados [dividem] uma vida. Eles não abandonam um ao outro, mas
tornam-se protetores de ambas as vidas’” [História Secreta dos Mongóis, §: 117
apud ONON, 2001, p. 97. Tradução nossa].
Foi graças a relação de anda que seu pai tinha com o Ong Qan, e de sua
própria com Jamuqa, que Temüjin conseguiu apelo suficiente para se
estabelecer como qan dos mongóis, e posteriormente, reunir povos sob esse
mesmo gentílico.
Esses conflitos que ocorreram de forma mais direta entre cerca de 1204 a 1206
é conhecido como “guerra mongol”, e tem seu fim após a morte de Ong Qan e
rendição de Jamuqa, que é posteriormente executado, a seu próprio pedido.
Com isso, Temüjin é nomeado Chinggis Qan numa assembleia [quriltai], o
grande líder de todos os povos das estepes.
35
posicionem” onde a hegemonia “significava ascendência alcançada através da
cultura, das instituições e da persuasão” [Ibidem, p. 245].
Considerações finais
A História Secreta dos Mongóis é uma fonte que possibilita o estudo da
sociedade mongol a partir de diversos olhares. Afinal, diferentemente do que
acontece com outras fontes chinesas, persas e europeias do século XIII e XIV,
os mongóis não são o outro dessa documentação.
Desse modo, é a partir da documentação que podemos ter contato com temas
que vão de organização social, militarismo, religião, política, geografia a temas
menos explorados como gênero e masculinidades. O que torna a fonte
necessária para discutir acerca da história mongol.
36
pensar acerca das complexidades que estão envoltas nas mesmas e de como
foi através dela que um império foi construído.
Referências
José Ivson Marques Ferreira de Lima é graduando do curso de bacharelado em
História da Universidade Federal de Pernambuco [UFPE] e membro do
Laboratório de Estudos de Outros Medievos [LEOM]. Orientado pelo prof. Dr.
Bruno Uchoa Borgongino, produz pesquisas sobre História da China, História
dos mongóis, gênero e cinema. [ivson.marques@ufpe.br]
Fonte
ONON, Urgunge. The Secret History of the Mongols. The Life and Times of
Chinggis Khan. London; New York: RoutledgeCurzon Press, 2001.
Filme
SANGUE de bárbaros. Direção: Dick Powell. Produção: RKO Radio Pictures.
1956, 1 DVD. 111 min.
Bibiliografia
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in China, Russia, and the islamic lands, 1251-1259. Los Angeles; London:
University of California Press, 1987.
BIRGE, Bettine. Women, property, and Confucian reaction in Sung and Yüan
China (960–1368). Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
BROOK, Timothy et al. The troubled empire: China in the Yuan and Ming
dynasties. Harvard University Press, 2010.
DE NICOLA, Bruno. Las mujeres mongolas en los siglos XII y XIII.: Un análisis
sobre el rol de la madre y la esposa de Ghinggis Khan. Acta historica et
archaeologica mediaevalia, v. 27-28, p. 37-63, 2008. Disponível em:
37
https://research-repository.st-andrews.ac.uk/handle/10023/5536. Acesso em:
28 de jul. de 2022.
DI COSMO, Nicola. Ancient China and its enemies: the rise of nomadic power
in East Asian history. Cambridge University Press, 2002.
FAVEREAU, Marie. The Horde: how the mongols changed the world.
Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University, 2021.
HUNG, William. The transmission of the book known as The Secret History of
the Mongols. Harvard Journal of Asiatic Studies, v. 14, n. 3/4, p. 433-492, 1951.
Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2718184. Acesso em: 29 de jul. de
2023.
MAY, Timothy; HOPE, Michael (ed.). The Mongol World. Londres; Nova Iorque:
Routledge, 2022.
SNEATH, David. The headless state: aristocratic orders, kinship society, &
misrepresentations of nomadic inner Asia. New York: Columbia University
Press, 2007.
WEATHERFORD, Jack. The secret history of the Mongol queens: How the
daughters of Genghis Khan rescued his empire. New York: Crown, 2010.
38
BRÂMANE OU PANDAR: JOÃO DE BRITO E A QUERELA DOS
RITOS MALABARES (ÍNDIA, SÉC XVII), por Alexandre Cabús
Sendo assim, podemos partir do ano de 1615, onde é nítida uma mudança no
âmbito das missões jesuíticas na Ásia. Isso ocorre devido a morte do Geral da
Companhia, Claudio Aquaviva, estando afrente da instituição desde 1581. O
jesuíta Muzio Vitelleschi, antigo mestre de Roberto de Nobili, sucede Aquaviva
no posto de Geral da Companhia de Jesus, significando um quase imediato
melhoramento da condição de Nobili e seu método, o que pode ser evidenciado
com a aprovação de sua obra em 1616, evidenciada pelo breve papal de Paulo
V, Cum sicut Fraternitatis. Tal aprovação abre espaço para a volta missionária
de Nobili devido a retirada das acusações contra o missionário em 1617.
(AGNOLIN, 2021, p. 229-232)
39
O novo concílio de Goa, marcado em 1619 por seu Primaz, teve como objetivo
principal questionar a validade do método de accomodatio. Desta maneira,
Roberto de Nobili é convocado a se fazer presente na conferência e o resultado
é a confecção de sua primeira Narratio, tendo como ponto principal os
fundamentos da metodologia de accomodatio. Entretanto, a delegação do
documento teve seu direcionamento ao arcebispo de Cranganor, Monsenhor
Ros. Nesse sentido, o concílio fecha em empasse entre os dois inquisidores
presentes, sendo necessária a remição dos documentos à Inquisição de
Lisboa, para que posteriormente fossem encaminhados à Roma. (AGNOLIN,
2021, p. 189)
Nesse sentido, fica evidente que Nobili sai como vencedor, pois com o apoio
recebido por parte de Roma, o italiano pode se consolidar dentro do contexto
missionário indiano, exercendo sua autoridade com base em seu método.
Nesse viés, Roberto de Nobili exerceu sua missão se dirigindo aos territórios
do Mysore e Ceylon, desta forma, rompendo as fronteiras do Malabar. De certa
maneira, consolida de forma evidente a metodologia de accomodatio ao tornar-
se superior da missão do Madurai entre os intervalos de 1624-1632 e 1638-
1643, encerrando suas atividades com sua morte em 1656 no território de
Myliapor. (AGNOLIN, 2021, p. 231)
40
A mudança de postura do clero foi grande a respeito do uso da metodologia de
accomodatio. Dentro do contexto de Brito, as fontes nos apresentam indícios
de que a figura de Roberto de Nobili era amplamente utilizada como inspiração
para o futuro das missões portuguesas. Podemos observar, a partir de um
tópico presente na biografia de João de Brito, retirado de um documento
datado de 1691, onde o missionário aborda sobre a grande aceitação do uso
do accomodatio. Intitulado como: “De como os Padres da Companhia de Jesus
seguiram o exemplo do P. Roberto Nobili, e o modo que observam na
conversão d’aquella gentilidade”. O Tópico inicia com: “Como a experiencia que
o estylo que seguira o P. Roberto Nobili, era o mais conveniente, e eficaz para
insistir na conversão da gentilidade de Madurei, resolveram-se muitos dos
padres da Companhia de Jesus da província do Malabar a seguir o mesmo
estylo”. (BRITTO, 1852, fls. 40)
Esta afirmativa muda o jogo analítico sobre a primeira fase em que o conflito,
para diversas análises, se debruçava em um campo nacional. Se antes
poderíamos resumir toda a complexa disputa entre uma identidade portuguesa
circunscrita no modo de missionação identificado com o termo parangui e uma
leitura complexificada que permitia um grande mergulho cultural que
proporcionava a estratégia adaptativa, desta vez enxergamos a disputa em um
campo mais amplo. Campo este que não limita a identidade portuguesa
somente no âmbito do método de conversão, mas a liga, de maneira direta,
com a expansão do catolicismo. Nesse sentido, em um contexto pós Nobili e
Fernandes, a Querela dos Ritos deve ser abordada sobre uma dimensão
dentro do caráter ritualístico da própria atuação do missionário enquanto
“brâmane europeu/romano”.
41
Sustentamos tais afirmativas ao observamos o caso de Brito. Além de ter
missionado à moda de Nobili, João de Brito, diferentemente do italiano, a partir
do momento que atravessou o limiar de missionário parangui para “missionário
brâmane”, nunca mais retornou. Ao contrário do agente pioneiro, o missionário
português não deixava de se comportar, se alimentar e se vestir como um
brâmane em momentos de encontro com autoridades régias ou com castas
mais baixas. Isto fica evidente quando, após o grande episódio de tortura que
posteriormente ficou conhecido como “primeiro martírio, Brito regressou a
Lisboa em 1688 e foi de encontro com o rei de Portugal e a corte. O fato de o
jesuíta não deixar de se comportar como um brâmane, ao invés de causar
repulsa, como era natural de se esperar na época de Nobili, causou admiração
42
“Chegando alli o P. João de Britto, foi pelo P. Braz de Azevedo provincial do
Malabar destinado á missão de Maduré; e depois de breve descanço, logo se
preparou para a jornada. Vestiu-se de pandar, que entre os indios, pela
austeridade de vida, são muitos estimados e chamados penitentes. Ensinados
por larga experiencia os missionarios, tiveram este traje por muito commodo
para tratar com todas as seitas da India, e mais ainda que o saniás por
professarem estes uma vida separada do trato comum. Assim em quanto
alguns para converterem os brahmenes, seguindo o exemplo do P. Roberto,
trajam de saniás, outros para mais facilmente tratarem com todos, imitam os
pandares, e com feliz sucesso. ” (BRITTO, 1852, fls. 294)
43
identidade de missionário italiano. Já João de Brito, quando retorna a Portugal
em 1686:
“Aqui (em Lisboa) continuou a viver com toda a simplicidade e muitas vezes
vestia o hábito cor de açafrão, próprio dos saniássis indianos. [...] No seu modo
de viver, enquanto estava em Portugal, mantinha muitas das práticas que
seguia na Índia. [..] A sua alimentação normal era constituída por vegetais,
mesmo à mesa do Núncio Papal, ou do Secretário de Estado.” (NEVETT,
1986, p 226).
Referências
Alexandre Cabús Moreth Silva é estudante no curso de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (PPHR-UFRRJ).
Archivo Romanum Societatis Iesu (ARSI), Goa 54, fl. 433-456v. Carta Annua
da Missão de Madurey do anno de 1683.
44
BRITTO. Fernando Pereira de: Historia Do Nascimento, Vida E Martyrio De
Beato Joâo De Britto: Da Companhia De Jesus, Martyr Da Asia, E Protomartyr
Da Missâo do Maduré. Lisboa. Nabu Press, 2010 (1ªa edição de 1722).
DOERING. Henrique S. J. S. João de Brito – De pajem a mártir -. V2. Livraria
apostolada da Impresa. Porto. 1948. P. 155.
NEVETT. Albert S.J. João de Brito e o seu tempo. Braga, Editorial A. O., 1986.
226
45
OS KUSHANS E A CONFEDERAÇÃO DOS GRANDE YUEZHI:
DIVERGÊNCIAS EM PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS
SOBRE MIGRAÇÕES NOMÁDICAS NA ÁSIA CENTRAL, E A
FUNDAÇÃO DO IMPÉRIO KUSHAN (SÉC. II A.E.C - SÉC. I E.C.),
por Cristian de Silveira
Após conflitos entre os Grande Yuezhi agora com os Wusun, outro grupo
nomádico que se localizava onde hoje atualmente seria a região oeste da
China, os Grande Yuezhi continuam o seu deslocamento para oeste, se
dirigindo até os territórios que estavam sob controle dos Sakas na Ásia Central
46
e Meridional, os derrotando e passando a controlar essas regiões. Depois
dessas inúmeras levas de migrações nomádicas para as regiões que
posteriormente formariam o Império Kushan, abre-se uma lacuna onde
perspectivas historiográficas que tomam como base as fontes históricas
orientais e ocidentais sobre a identidade e origem dos Kushans como membros
de uma dessas confederações nomádicas começam a se divergir de forma
significativa.
47
sua ocupação na mesma, sendo dessa vez derrotado pelos Wusun, outro
grupo nomádico que vivia próximo aos Yuezhi originalmente. Sendo forçados
novamente a se realocar, os Grande Yuezhi se movimentaram para oeste até
os territórios de Sogdiana, onde entraram em contato com os diferentes povos
presentes na região da Ásia Central e em seus arredores (Stark, 2021, p. 85-
87; Beckwith, 2009, p. 84-85; Barisitz, 2017, p. 36; Cribb; Hermann, 2007, p.
60).
48
chinesas, fazia parte de uma das quatro tribos Sakas que foram expulsas da
região da Jungharia, e foram em direção até o reino Greco-Báctrio, onde
derrubaram o reino em por volta de 140 A.E.C, pelo menos uma década antes
da invasão dos Grande Yuezhi a esse território. Os conflitos que os Grande
Yuezhi acabaram tendo nessa região, dessa forma, não poderiam ter sido
contra os greco-báctrios, e sim contra essas tribos Sakas que ali tinham se
instalado. As quatro tribos Sakas que constituíam esse grupo eram os Asii, os
Gasiani, os Tochari e Sacarauri. Essas tribos controlavam o território da Báctria
de forma completamente autônoma, principalmente quando comparado com o
reino Greco-Báctrio, que era estruturado sob a figura de um rei (Yu, 2011, p. 4-
7).
49
discorda de outras perspectivas de Yu, e interpreta o título de Xihou 翖侯 como
algo que era reservado às elites dentro da esfera social dos Grande Yuezhi, e
portanto considera que somente membros da corte ou membros vinculados
familiarmente com o próprio rei poderiam ser conferidos tais títulos. Na sua
visão, portanto, os cinco Xihou 翖侯 não poderiam ser de grupos locais que
foram conquistados pelos Grande Yuezhi, o que não se adequaria com a
importância que esse título carregava (Cribb, 2018, p. 1 e 4-5). A localização
dos Xihou 翖侯 também acaba sendo outro ponto de oposição entre a visão
abordada acima de Yu com a de Cribb. Segundo o último:
“A localização dos xihou como expostos por Grenet deixam claro que eles
ocupam o mesmo território que o Han Shu indica para a localização da corte do
rei dos Grande Yuezhi, a norte do Rio Oxus/Amu Darya (媯水 guishui). Isso
oferece mais evidências de que os cinco xihou, incluindo o xihou de Kushan,
eram parte da elite dos Grande Yuezhi ao invés de princípes locais. De acordo
com o Hou Han Shu (Hill 2009, p. 28–29), mais de cem anos depois que os
cinco xihou tinham sido encarregados de Tocaristão, Kujula Kadphises (丘就卻
qiujiuque), o xihou de Guishuang, depôs os outros quatro xihou e se
estabeleceu como o único governante em Tocaristão. Essa ação o tornou o
líder do antigo estado dos Grande Yuezhi, mas parece provável que o título de
rei dos Grande Yuezhi já havia se tornado obsoleto, já que não existe menção
desse título desde o Han Shu. O Hou Han Shu torna claro que Kujula
Kadphises e seu filho não foram identificados por seus vizinhos como os
Grande Yuezhi, mas como reis Kushan, mesmo que os Chineses continuassem
a se referir a eles como reis dos Grande Yuezhi. A ascensão de Kujula
Kadphises parece ter ocorrido por volta de 50 d.C (Cribb 2018) [...]” (Cribb,
2018, p. 5-6, tradução nossa)
50
pelas fontes historiográficas chinesas como grandes processos migratórios
desses povos, provavelmente descreviam por maior parte o deslocamento das
elites que pertenciam a esses grupos, com essa narrativa chinesa de
migrações de grande escala tendo de ser analisadas “[...] como um reflexo de
processos políticos e etno-genéticos muito mais complicados (mas sem dúvida
incluindo o deslocamento das elites nômades e grupos dependentes)” (Stark,
2021, p. 86). Além disso, ele também elabora sobre como esses processos de
mudanças territoriais e políticas não devem ser vistas como resultantes
exclusivamente dos conflitos iniciados ou causados pelo Império Xiongnu:
“Apesar disso, outro fator importante pode também ter sido o caos no qual o
controle grego na Báctria foi posto depois do assassinato de Eukratides I em
algum momento por volta de 145 A.E.C. (e não o contrário, como é
normalmente visto). Não é improvável que facções competindo entre si dentro
da Báctria deliberadamente chamaram contingentes tribais e bandos de guerra
pessoais de seus vizinhos do norte como suporte. Tal cenário não é só
amplamente atestado para períodos posteriores, mas explicitamente
mencionado também para o caso aproximadamente contemporâneo dos
Arsácidas chamando contingentes Sakas contra seus rivais Selêucidas no
início da década de 120 A.E.C.. Então talvez a chegada de novos grupos
nomádicos em Báctria e o estabelecimento de regimes políticos por elites de
origem nomádica, mesmo se originalmente engatilhadas pela expansão dos
Xiongnu e as subsequentes mudanças nas estepes orientais (ocupação do
Vale de Ili pelos Wusun 烏孫), não foi o resultado de “invasões nomádicas”,
mas de processos complexos que aconteceram muito mais gradualmente do
que é normalmente assumido.” (Stark, 2021, p. 86, tradução nossa)
“No decorrer do primeiro século E.C, os Kushans expandiram seu domínio para
Khorezm/o Mar de Aral, Ferghana, Margiana, Sul do Afeganistão, Gandhara (a
área envolta de Taxila), e o Punjab e incorporou todo o vale do Indo, a parte
superior do vale do Ganges (Norte da Índia), e Gujarat (na costa do Mar
Arábico); durante um período de fraqueza interna da dinastia Han na primeira
metade deste século (como pode-se ver acima), o Império Kushan até mesmo
temporariamente estendeu sua autoridade para a metade ocidental da Bacia de
Tarim, incluindo Kashgar, Yarkand, e Khotan.” (Barisitz, 2017, p. 41, tradução
nossa)
Cribb ressalta o período das migrações dos grupos nomádicos na Ásia Central,
que resultaram na dissolução do reino Greco-Báctrio, como um processo de
reestruturação das culturas e redes de contato que ali tinham se desenvolvido.
Essas novas instituições são vistas pelo autor como um fator a ser considerado
no contexto da posterior formação das Rotas de Seda, e mesmo que as rotas
51
tenham se desenvolvido propriamente muito depois desses processos
econômicos e culturais já terem ocorrido, ainda assim podem ter sido, em
parte, possibilitadas pelos mesmos. Apesar da visão de Cribb de que o reino
Greco-Báctrio poderia ter limitações no meio econômico referindo-se às
atividades comerciais com os povos ocidentais à Ásia Central, devido ao
território do Império Parta bloquear esses contatos, ele não procura propor que
o fim do reino Greco-Báctrio necessariamente tenha resultado no início desse
processo de redes comerciais de grande escala, mesmo que temporalmente
exista uma interpolação entre o fim do reino Greco-Báctrio com os processos
que iniciaram as Rotas da seda, mas somente procura salientar essa
consideração. A ascensão do Império Kushan beneficiou as redes que se
desenvolveram a partir das migrações nomádicas à Ásia Central, onde a
estabilidade de seu território, que também incorporava parte da Ásia
Meridional, proveu uma infraestrutura que possibilitou um comércio
internacional de larga escala através de sua região, que se iniciou durante o
primeiro século E.C. (Cribb; Hermann, 2007, p. 63-64).
Considerações finais
O Império Kushan, com sua localização estratégica nas regiões centrais das
Rotas da Seda, prosperou como uma das grandes potências da Antiguidade. A
formação desse império durante o primeiro século E.C. foi resultado de um
contexto cultural complexo, caracterizado por fluxos migratórios constantes na
Ásia Central e nas Estepes Eurasiáticas. Diferentes grupos étnicos e povos
nômades, como os Grande Yuezhi e os Sakas, desempenharam papéis
significativos nesse cenário, culminando no surgimento do Império Kushan.
52
questão. Alguns estudiosos, como Yu, defendem que os Kushan faziam parte
de uma das tribos Sakas que invadiram a Báctria antes dos Grande Yuezhi,
enquanto outros, como Cribb, acreditam que os Kushan eram parte da elite dos
Grande Yuezhi. Outra perspectiva, trazida por Stark, enfatiza a importância do
contexto político e étnico da Ásia Central na época e a gradual assimilação de
diferentes culturas pelos Kushan.
Referências
Cristian de Silveira é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é mestrando em História pela Pós-
graduação da mesma instituição. Contato: cristiandesilveira@hotmail.com
BARISITZ, Stephan. Central Asia and the Silk Road: Economic Rise and
Decline over Several Millennia. Springer International Publishing AG, Cham,
Switzerland. 2017.
BOARDMAN, John. The Greeks in Asia. Thames & Hudson Ltd, London. 2015.
CRIBB, Joe. Kujula Kadphises and His Title Kushan Yavuga. Sino-Platonic
Papers, 280, Philadelphia. 2018.
53
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York. 2010.
STARK, Sören. Central Asia and the Steppe. In MAIRS, Rachel. The Graeco-
Bactrian and Indo-Greek world. Routledge, New York. 2021, p. 78-105.
YU, Taishan. Studies on the History of the Western Regions (From the Seventh
Century BCE to the Sixth Century CE): A Study of The Kushan History. The
Commercial Press, Beijing. 2021.
54
A TAPEÇARIA DE SAMPUL: UMA ANÁLISE ICONOLÓGICA DE
UM ARTEFATO DAS ROTAS DA SEDA, por Cristian de Silveira
Este estudo, portanto, visa lançar luz sobre a Tapeçaria de Sampul como um
artefato cultural único, capaz de revelar aspectos significativos sobre as
interações culturais na Ásia Central e Meridional durante o período abordado,
expandindo o entendimento das trocas e ressignificações culturais ocorridas
nesse contexto. Essa investigação contribui para uma perspectiva abrangente
e valoriza o protagonismo das populações locais, ressaltando a importância de
considerar as produções artísticas dentro do contexto cultural diversificado da
região histórica da Ásia Central.
55
56
Figuras 1 e 2: Tapeçaria de Sampul completa. Fonte: YATSENKO,
Sergey. Yuezhi on Bactrian Embroidery from Textiles Found at Noyon Uul,
Mongolia. The Silk Road 10. 2012. p. 46.
Tapeçaria de Sampul. Fonte: National Museum of Chinese History -
Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region -
Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The
Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 130.
57
Um centauro tocando um trompete, cercado por doze flores que se alinham em
um formato losangular ao seu redor. Abaixo, é representada a figura de um
guerreiro, afirmação evidenciada pela lança em sua posse. As suas
vestimentas, bem como seu estilo de cabelo, são semelhantes às dos Grande
Yuezhi em seu período de controle da Báctria, que antecedeu a formação do
Império Kushan. A sua condição imberbe pode ser uma forma de transparecer
o guerreiro como um jovem, porém vale ressaltar que em figuras similares o
uso de barbas é quase inexistente, com a maioria das figuras portando bigodes
em seu lugar. A composição artística do guerreiro lembra vagamente
exemplares romanos em mosaicos dos últimos séculos A.E.C., considerando,
por exemplo, o uso do sombreamento do rosto para trazer uma noção de
profundidade para a sua figura, bem como a expressão que o guerreiro
carrega, como apontado por autores como Robert A. Jones (figs. 14-15;
JONES, 2009, p. 27; HURWIT, 2007, p. 48; YATSENKO, 2012, p. 41 e 45-46;
WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195)
Na perspectiva de Jäger, a representação do centauro na Tapeçaria de
Sampul, devido ao seu uso de um trompete, o liga com uma tradição mais
vinculada ao culto dionisíaco, onde representações de centauros tomam uma
forma que se desloca mais de suas imagens que reforçam um aspecto bélico
ou agressivo, porém mesmo assim mantendo claro o seu “apreço por vinho,
embriaguez e mulheres [...]” (JÄGER, 2017, p. 109), que são características
inatas dessas figuras (JÄGER, 2017, p. 108-109).
58
Dessa forma, a arte do centauro na Tapeçaria de Sampul, possivelmente ligada
às representações de centauros no contexto do culto dionisíaco, pode ser vista
como uma peça que evidencia essa construção da imagem dos centauros ao
longo das regiões da Ásia Central e Meridional, que eventualmente resultou em
sua incorporação e transformação dentro da arte budista de Gandhara, que se
desenvolveu durante o primeiro século E.C..
59
possivelmente se estender e compor um nível mais diverso de figuras, o qual a
figura do guerreiro poderia interagir de alguma forma, sendo esse recorte que
conservou essas duas figuras o lado esquerdo da tapeçaria. Watt até mesmo
propõe que a parte direita desta tapeçaria, da qual não existem resquícios
descobertos, poderia formar a porção principal do que seria a Tapeçaria de
Sampul (JONES, 2009, p. 27; WEITZMANN, 1979, p. 288; WATT, James C.Y.;
JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195).
60
região de Xinjiang, o que de qualquer forma marcaria uma distinção clara das
decorações helenísticas e romanas. Jones possui a visão de que a decoração
tem uma origem persa, mas que foi se proliferando tanto para regiões mais
orientais, como a Ásia Central, quanto ocidentais, como a região Mediterrânica,
através de contatos formados entre essas regiões no período helenístico
(HANSEN, 2012, p. 202 e PL.13; JONES, 2009, p. 26-27; SHENG, 2010, p. 38;
WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195;
YATSENKO, 2012, p. 41-46).
61
Figura 5: Hermes com caduceu. Fonte: National and Art Museum in New Delhi,
India. (Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Male_face_with_a_caduceus_-
_Google_Art_Project.jpg>. Acessado em: 20/04/2022)
Aurel Stein (1928) propôs uma produção local desse têxtil, devido a sua
similaridade com outras produções encontradas no mesmo local, como o
afresco budista também citado (fig.6). Uma produção local realmente é uma
possibilidade, ainda mais se também considerarmos o argumento do uso de
representações de divindades gregas para o culto de divindades locais nas
regiões de influências helenísticas na Ásia Central. Tal ponto daria um grau de
veracidade mais alto para uma produção local do que a de um culto à Hermes
62
dentro da região de Xinjiang durante o período de produção estipulado ao
artefato. Morris, porém, salienta que apesar das representações de deuses
gregos para o culto de outras divindades fosse muito utilizada para o culto de
outros deuses, como membros do panteão dos Kushans, dentro do Império
Kushan ainda existia uma consciência sobre essas divindades gregas
“originais”, o que significa que existe uma chance do artefato ser uma produção
local em Xinjiang ou em um território próximo, como ao longo do Império
Kushan, e mesmo assim realmente representar um culto ao deus Hermes
(STEIN, 1928, p. 241; JONES, 2009, p. 27 e 30; MORRIS, 2021, p. 587).
63
Voltando ao argumento central, as similaridades estilísticas dos mosaicos ou
pinturas romanas expostas com o guerreiro na Tapeçaria de Sampul podem
ser abordadas segundo as perspectivas conjuntas de Morris e Cribb. Assim
sendo, podemos considerar um contato de grupos locais da Ásia Central com
as produções artísticas romanas, sob o contexto de uma tradição helenística
nessa região, que via nas produções romanas temporalmente concomitantes a
sua realidade um estilo compatível ao seu legado helenístico local, que poderia
dessa forma ser adaptado a sua realidade cultural, mesmo que esta já fosse
extremamente diversa depois da fragmentação dos reinos gregos na Ásia
Central e Meridional. Essa diversidade cultural também pode se vincular ao
conceito formado por Mairs, de uma identidade grega na Ásia Central que
afirmava a sua identidade étnica mesmo com um grau de flexibilização dessa
identidade com as práticas locais existentes, devido a essa realidade
multicultural na qual a identidade grega tentava se inserir. A afirmação da
identidade grega pelas populações locais não era vista como uma contradição,
mesmo considerando essa diferenciação crescente que se estabelecia com o
passar dos séculos entre os requisitos de manutenção para a identidade grega
dentro da região da Ásia Central, com os requisitos mantidos dentro do próprio
mundo grego. A flexibilização que se tornou quase inerente à realidade cultural
grega na Ásia Central pode ter possibilitado as práticas de produções artísticas
nessa região, que uniam essas tradições diversas que podem ser observadas
na Tapeçaria de Sampul, em especial entre elas as tradições helenísticas e
romanas.
Considerações finais
A análise iconográfica e a interpretação iconológica nos conduzem a uma
compreensão mais profunda dos elementos representados na Tapeçaria de
Sampul. O centauro tocando um trompete pode estar vinculado ao culto
dionisíaco, sugerindo uma tradição mais relacionada ao vinho e às festividades.
Essa figura também desempenhou um papel importante nas artes budistas na
Ásia Central e Meridional, onde se adaptou ao contexto cultural da cultura
indiana.
64
Apesar das variadas interpretações, a Tapeçaria de Sampul permanece como
uma importante peça arqueológica e artística que nos conecta ao passado e à
rica história das civilizações da Ásia Central. Sua complexidade iconográfica e
seus elementos distintos proporcionam uma visão fascinante das conexões
culturais existentes no seu tempo, ainda suscitando debates e estudos sobre a
identidade e as influências artísticas na região.
Referências
Cristian de Silveira é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é mestrando em História pela Pós-
graduação da mesma instituição. Contato: cristiandesilveira@hotmail.com
HALL, James. Illustrated Dictionary Of Symbols In Eastern And Western Art. 1st
ed. Westview Press, A Member of the Perseus Books Group. Colorado. 1995.
HANSEN, Valerie. The Silk Road: A New History. Oxford University Press.
2012.
HURWIT, Jeffrey M. The Problem with Dexileos: Heroic and Other Nudities in
Greek Art. American Journal of Archaeology, Vol. 111, No. 1, p. 35-60. 2007.
MORRIS, Lauren. Roman Objects in the Begram Hoard and the Memory of
Greek Rule in Kushan Central Asia. In MAIRS, Rachel. The Graeco-Bactrian
and Indo-Greek world. Routledge, New York. 2021, p. 580-594.
ROWLAND, Benjamin. The Art of Central Asia. Art of the World. Crown
Publishers, Inc. New York. 1974.
SHENG, Angela. Textiles from the Silk Road. Expedition Magazine 52.3.
Expedition Magazine. Penn Museum, 2010. p. 33-43. (Disponível em:
65
<http://www.penn.museum/sites/expedition/?p=12972>. Acesso em: 10 de Abril
de 2022).
WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al. China: Dawn of a
Golden Age, 200-750 AD. Yale University Press. Catalog of an exhibition held
at the Metropolitan Museum of Art, New York, Oct.12, 2004 – Jan.23, 2005.
2004.
WEITZMANN, Kurt. Age of Spirituality: Late Antique and Early Christian Art,
Third to Seventh Century. The Metropolitan Museum of Art. New York. 1979.
66
A VOZ DO EMPODERAMENTO: CINEMATOGRAFIA
BOLIWOODIANA, REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM
SALA DE AULA, por Lidiane A. Mendes
Considerações Iniciais
O cinema como mecanismo cultural tem alto poder de construir uma noção do
outro a partir do que se assiste. Durante muito tempo o consumo
cinematográfico no Brasil, esteve ligado as obras produzidas em Hollywood, ou
seja, os olhos dos estadunidenses sobre os outros e o enaltecimento de sua
identidade nacional. Contudo, o acesso as plataformas de streaming trouxeram
consigo a perspectiva de assistirmos produções de outros países, como a
coreana, argentina, inglesa, francesa, turca e indiana. O cinema como
representação da realidade em imagens nos confere como observação didática
um campo de diálogo do ensino-aprendizagem. Classificado como a sétima
arte, as películas reproduzem uma gama de observações para debates de
assuntos que nos cercam, principalmente ao problematizarmos outras
realidades culturais.
67
produziu naquela época cerca de 200 filmes. A cinematografia evoluiu, e
atualmente as produções indianas passam de 1000 filmes por ano, ainda não
detém os 60% de audiência dos filmes de Hollywood, mas ganharam mercado,
com produções que misturam ficção e realidade, músicas, danças folclóricas, e
abrange vinte das vinte e duas línguas faladas naquele território.
Houve, mesmo que a passos lentos, avanços significativos ao que tange por
exemplo a alfabetização das mulheres que no início do século XX era de
apenas 1% e atualmente passa dos 70%. Mas, saber ler e escrever não as
condicionam a serem independentes de seus maridos. Tão pouco a sofrer
violência domésticas e outras atrocidades dentro de suas casas quem em
grande parte é aceito por elas sem contestar. Apesar das restrições, as
mulheres indianas encontram em movimentos feministas uma voz coletiva que
busca por seus direitos e reconhecimento. De forma geral, são essas mulheres
que durante a luta anticolonial boicotaram produtos ingleses, e defenderam
suas vilas, e como moeda de troca, os partidos políticos a contra gosto tiveram
que aceitare o pleito feminino aos cargos públicos. Segundo a organização não
governamental Thetri Continental,
68
se tornaram líderes da Índia independente tiveram que aceitar as
reivindicações de igualdade daquelas que lutaram lado a lado com eles,
resultando na incorporação de direitos iguais para as mulheres na Constituição
da Índia independente em 1950.”
A partir daí a esquerda feminista passa a operar em várias frentes de luta por
melhores condições de vida. É um caminho longo e árduo, mesmo com essas
iniciativas, ainda é comum o casamento por arranjo, o pagamento do dote, o
estupro coletivo, a virgindade como honra, que perpassam a miséria
econômica, a situação infame das castas, o assédio, a submissão do corpo aos
desejos masculinos, as leis existentes não alcançam todas as mulheres, muitas
não tem noção que a expropriação de seus corpos ao deleite masculino devem
ser contestados, porém, o amálgama religioso e cultural as impedem de ir
contra as tradições culturais.
Este breve panorama da situação das mulheres indianas nos remete a Índia
dos anos 1950, período pós-colonial, em que o cenário da condição feminina
hindu era bem parecido com o que lemos nos dias atuais, é sobre este cenário
que a personagem desta reflexão faz de sua situação haste para defender os
direitos de mulheres e crianças no subúrbio indiano.
A Voz do Empoderamento
Baseado na vida de Gangubai Kothewali (1939-2008), filha de advogado e de
uma dona de casa, noiva aos 16 anos de idade, fora lançada a própria sorte,
quando seu noivo Ramnik Lal, com promessas de que ela poderia ser atriz de
cinema a convenceu a fugir com ele para a cidade de Mumbai. Dias após o
casamento, fora vendida para um prostíbulo localizado em um bairro de
extrema pobreza - Kamathipura. Teve seu corpo expropriado por um cafetão.
Diante dos fatos, foi até ao chefe daquela área. Sua atitude lhe rendeu
visibilidade e daí em diante ela deu início a sua luta. Dentre seus principais
prélios estava a retirada de órfãos da prostituição, o envio de mulheres de volta
a suas famílias, a alfabetização, luta que ela travou com a Igreja Católica
presente nos arredores da zona de prostituição e que tinha iniciado uma
campanha para retirada daquelas mulheres e homens do perímetro, além de
negar matrículas aos filhos das prostitutas.
O filme tem como pano de fundo, a história de Gangubai, porém, suas minúcias
nos apresentam uma sociedade machista e conservadora. Uma vez que ela
fugiu com o noivo, envergonhou e manchou o nome de sua família, se viu em
um mundo ao qual ela nunca pertencera. O retorno para casa de seus pais era
impensável, não seria aceita de forma alguma, assim, traçou seu caminho
lutando pelos direitos daqueles que passaram a lhe chamar de Ganga, uma
analogia a mãe, protetora.
69
roteiro. O longa-metragem é composto por tramas de ficção, músicas e dança
folclóricas, pitadas de humor e um amor não correspondido.
Fonte: https://portalpepper.com.br/a-voz-do-empoderamento-a-extraordinaria-
historia-de-gangubai-kothewali-da-prostituicao-ao-ativismo/
O filme não nos mostra somente o ativismo feminino, ele retrata que mesmo
em sociedades conservadoras e fechadas como a indiana, os problemas
sociais como a prostituição está presente, assim como os bairros periféricos,
que dividem espaços com a imposição religiosas que tenta ordenar sobre seus
preceitos corpos e mentes. Neste sentido, a abordagem do professor perpassa
as discussões culturais cinematográficas em comparativos entre a qualidade do
roteiro, iluminação e interpretação dos autores, ele adentra o viés que
condicionam essas mulheres que são enganadas por falsas promessas e
acabam na promiscuidade,
70
cruzamento entre o político e o psicólogo, entre o social e o individual
(FISCHER, 2003, p. 24).
“[...] uma abertura para o universal que revela a particularidade de cada um. O
meu próprio mundo é percebido como um outro mundo, e um outro mundo
também é percebido como sendo o meu. Nos dois casos o cinema me revela
que pertenço a um mundo comum, à comunidade humana, portanto. É nesse
sentido que se pode falar de experiência humana. [...]. É preciso partir da ideia
de que um filme nos desvenda condutas humanas.” (MORIN, 2002, p. 328).
Considerações Finais
O cinema em sala de aula como material didático possibilita a discussão da
diversidade cultural, das condições de vida em outros lugares e dos
movimentos que visam estabelecer ou fazer valer os direitos estabelecidos em
cada sociedade. Filmes, fazem refletir sobre nós e sobre os outros, sobre as
dinâmicas que estruturam o organismo social e o caminhar de diferentes
camadas sociais. As lutas e movimentos em busca de igualdade e
representatividade são semelhantes tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Cabe ao professor-mediador em sala de aula, proporcionar através de filmes,
documentários, ou qualquer ferramenta audiovisual, abordar temas
transversais que contribuam na formação acadêmica crítica dos espaços de
sociabilidade e da luta de classes e gênero, e neste sentido, o filme aqui
apresentado revela-nos uma outra Índia, com pormenores que nos são tão
próximo e tão ignorado.
Referências
Lidiane Álvares Mendes, licenciada em História, mestra em História/UFAM,
doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea/UFMT. Bolsista CAPES.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão e educação: fruir e pensar a TV. 2 ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
71
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o
pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.
72
ASPECTOS CULTURAIS DOS DESDOBRAMENTOS
HISTÓRICOS DAS VERSÕES DO RĀMĀYAṆA, por
Matheus Landau de Carvalho
73
[Apte, 1970, p. 131a; Monier-Williams, 1899, p. 247; Wilson, 1819, p. 151a] –,
ou seja, o enredo que conta o casamento de Rāma com Sītā, o exílio
subsequentemente enfrentado pelos dois na mata indiana, o rapto de Sītā pelo
líder das criaturas demoníacas [rākṣasas], Rāvaṇa, e a batalha contra este
mesmo Rāvaṇa, com a consequente vitória de Rāma, que reconquista sua
amada de volta e retorna para sua terra natal, a cidade de Ayodhyā, para
governar o reino de Kosala. Quando esta Rāma-kathā é desenvolvida e
ampliada a ponto de se constituir numa versão da estória de Rāma, a
respectiva versão, em geral, recebe o nome do autor ao qual se atribui a sua
autoria – como no caso de Vālmīki, daí o épico sânscrito, cuja autoria as
expectativas confessionais da cultura hindu lhe atribuem, ser identificado como
o “Rāmāyaṇa de Vālmīki” –, de modo que todas as versões desenvolvidas em
diferentes idiomas, estilos, e meios de expressão estética a partir da Rāma-
kathā constituem o que recorrentemente é denominada de “tradição textual do
Rāmāyaṇa”. Com efeito, Rāmāyaṇa não é apenas uma estória, mas uma
verdadeira tradição plural de contar e recontar, de maneiras diversas, as
vicissitudes pelas quais passou Rāma em sua trajetória neste mundo.
74
Desde que os brāhmaṇas começaram a recitar, memorizar e preservar textos
em sânscrito, em maior ou menor grau ao longo do tempo, narrativas
sânscritas da Rāma-kathā já circularam por várias áreas diferentes do
subcontinente indiano. Existem mais de vinte e cinco versões em sânscrito da
Rāma-kathā, pertencentes a diversos gêneros narrativos, i.e. kāvyas
[composições poéticas], purāṇas [“estórias antigas”], sem mencionar peças de
teatro, performances de dança, entre outros, seja do ponto de vista clássico,
seja do ponto de vista popular. Além dessas manifestações culturais, ainda é
possível encontrar esculturas, baixos-relevos, teatro de máscaras, de fantoches
ou de sombras, em várias localidades do sul e do sudeste asiático. A. K.
Ramanujan [1991, p. 24] afirma que, ao relatar a um pesquisador canarês que
Camille Bulcke, uma estudante do Rāmāyaṇa, havia contado trezentas
narrativas da Rāma-kathā no total, ele mesmo contara mais de mil apenas no
idioma canarês, sendo que outro erudito, da língua telugo, mencionou mil em
seu idioma, ambos os cálculos incluindo diversos gêneros de estórias sobre
Rāma. Segundo Sharma [1971, p. 1, itálico do autor], “Não há forma de poesia
sânscrita na qual a Rāma-Kathā não tenha sido recontada, e não há língua
indiana – viva oumorta – que não possua seu próprio Rāmāyaṇa.”
75
plásticas. Neste sentido, muitas narrativas em línguas regionais da Rāma-
kathā, compostas antes do século XX E.C., são textos devocionais ligados à
religiosidade bhakti, reverenciando Rāma como uma divindade na terra, ao
invés de um rei excelente e um guerreiro valente apenas.
Os contos populares da Rāma-kathā, por sua vez, são mais fluidos do que as
narrativas no idioma sânscrito e os textos devocionais em línguas regionais.
Em geral são anônimos ou atribuídos a autores sobre os quais quase nada se
sabe, compostos em gêneros folclóricos e freqüentemente em dialetos locais, e
recorrentemente produzidos para ocasiões religiosas por pessoas não
profissionalizadas no ofício [aqueles que ganham a vida principalmente através
de outras ocupações]. Romila Thapar [2000, p. 1059, itálicos da autora] chama
a atenção para aspectos dos ritmos cotidianos dos hindus do subcontinente
indiano conjugados com certas expectativas religiosas por eles alimentadas
para explicar a ampla difusão que o Rāmāyaṇa de Vālmīki adquiriu:
“Mesmo que um conto popular inclua um texto fixo, elementos fluidos podem
moldar a recepção da Rāma-kathā, como mostra uma peça bilíngue [da cidade
indiana] de Palghat, [na região de] Kerala. Neste drama de fantoches de
sombras, os artistas recitam versos tâmeis selecionados do Irāmāvatāram de
Kamban, mas os complementam com histórias improvisadas e comentários em
malaiala coloquial.” [Richman, 2008, p. 11, itálicos da autora].
76
línguas regionais contassem a estória de Rāma em sua própria maneira, para
seu próprio tempo. No entanto, as modernas narrativas impressas não têm sido
virtualmente estudadas como uma categoria de Rāma-kathā porque são
percebidas por devotos ou estudiosos eruditos como carentes de alguma
característica essencial, seja de autenticidade, de certa rusticidade, de
devocionalismo, de determinado respeito ou até modernidade.
77
apresentados em feiras de vilas por artistas viajantes que cantam a narrativa
enquanto exibem a pintura quadro a quadro. Além disso, em outras partes do
sudeste asiático, as fronteiras religiosas foram cruzadas para recorrer às
lendas do Rāmāyaṇa para a formação de identidade ou instrução moral [Bose,
2004, pp. 6-7].
Segundo Santosh Desai, a estória de Rāma parece ter percorrido três rotas,
disseminando-se não apenas por todo o subcontinente indiano, mas também
pela Ásia:
“Isso tinha menos a ver com a Rāma-bhakti como tal e mais com o fato de que
em suas formas variantes, as tradições locais se expressavam em uma
linguagem cultural comum que era amplamente dispersa e compreendida. Uma
distinção, portanto, deve ser feita entre a estória como uma metáfora cultural e
como literatura sagrada.”
78
as várias “encarnações” pelas quais a Rāma-kathā já passou, modificando
suas funções sociais através do tempo, Romila Thapar [2000, pp. 1072-1073,
itálicos da autora] destaca que
Referências biográficas
Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com
habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora
em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo
Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma
Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e
Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História e Pesquisa
das Religiões].
Referências bibliográficas
APTE, Vaman Shrivam. The Student’s Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Delhi:
Motilal Barnasidass Publishers, 1970.
BUCK, William [trad.]. Ramayana: King Rama's Way. Berkeley: The Regents of
the University of
California, 1976.
79
RAJKHOWA, Bijoya Baruah. Oral Tradition of the Rāmāyaṇa in North East
India. In: DODIYA, J. K. [ed.]. Critical Perspectives on the Rāmāyaṇa. New
Delhi: Sarup & Sons, 2001, pp. 131-147.
80
108 KARAṇAS: MATERIALIDADE, CORPO E A DANÇA NA
ÍNDIA, por Thaisa Martins Coelho dos Santos
O Nāṭyaśāstra
A dança, o teatro e a música na Índia estão diretamente ligados a sua
construção cultural enquanto povo e podemos localizar registros destas
práticas em textos, estátuas e pinturas ao longo dos séculos. Tais registros
evidenciam a pluralidade da prática artística no subcontinente ao longo do
tempo e espaço. Durante o século XX foi-se construindo, a partir de muitas
disputas, a noção de uma estética clássica indiana e , no que tange à prática
da dança, o Nāṭyaśāstra foi instituído como o codex ou principal manual que
define as bases dessa visão estética clássica. Sua influência vai além da
prática da dança e teatro, sendo ele considerado um dos Śilpa Śastras, um
compêndio de textos relevantes para a arquitetura e escultura.
Numa tradução direta do dicionário, a palavra nāṭya pode ser entendida como
arte dramática, dança e representação mimética¹ mas mais do que isso,
podemos entender nāṭya como a prática integrada de dança, teatro e música.
Numa forma mais geral, devido a impossibilidade de melhor tradução, podemos
compreender como o fazer das artes performáticas. A palavra śāstra pode ser
entendida como manual de instrução, tratado, codex, uma ordem de comando,
direção e etc. Porém, mais do que um compilado de instruções a serem
seguidas, os śāstras são registros da produção de conhecimento humano que
se movem, de forma integrada, em diferentes níveis do saber. Os śastras
documentam a investigação de uma ampla gama de assuntos, desde cozinhar,
economia, conduta social, reprodução de animais, justiça, artes performáticas e
etc. Eles fazem parte da tradição smṛti (lembrada) e seu papel é de um guia da
educação formal e construção social indiana (Vatsyayan 1996; Coomaraswamy
2013). Podemos citar importantes śāstras como Dharmaśāstra de Manu
(moralidade, leis, ordem social) e Arthaśāstra de Chanakya (Política e
Economia).
81
os pesquisadores da obra é a identidade do autor, pois existem poucas
evidências de sua vida. Especula-se que, na realidade, Bharata muni (sábio
Bharata) não seria um único indivíduo mas sim um conjunto de intelectuais que
utilizam o nome Bharata como um acrônimo de Bhāva (sentimentos) , Rāga
(harmonia) e Tāla (ritmo), elementos básicos de nāṭya (Das 2015; Vatsyayan
1996; Rangacharya 1966). Kapila Vatsyayan (1996), discorda de tal posição e
sustenta que a construção da obra é conectada de tal maneira e de forma tão
coerente que seria muito difícil tratar-se de um grupo de pessoas. Na visão da
autora, Bharata foi um professor e mentor de uma linhagem artística, com
muitos filhos ou pupilos, os quais seriam atores, músicos, dançarinos e
teóricos, como nos é apresentado no primeiro capítulo da obra (Vatsyayan
1996). O pesquisador M. Ramakrishna Kavi, na introdução da edição do
Nāṭyaśāstra de 1956, defende que haveria evidências no texto para indicar que
Bharata era um sábio da região dos Himalaias. Independente das discussões
temporais e espaciais que envolvem a obra e sua autoria, a importância do
texto para o estudo da dança e todo o campo das artes performáticas indianas
permanece.
82
Figura 1: Análise de conteúdo Nāṭyaśāstra
83
para o campo da Dança, onde ganhou espaço e evidência nos dias de hoje ao
ser assumido pela Sangeet Natak Akademi (Academia Nacional de Música,
Dança e Drama) como referência para classificação de uma modalidade de
dança como clássica indiana, como também para outros campos do fazer
artísticos. Tendo os capítulos IV e VIII a XIII, onde são apresentados os
elementos fundamentais do que estamos chamando de teoria corporal
proposta no Nāṭyaśāstra, como base para nossa investigação nos debruçamos,
a partir do referencial teórico da Arqueologia Experimental, nas representações
destes 108 Karaṇas presentes nos gopuras (portais) do templo de Thillai
Nataraja em Chidambaram - Tamil Nadu
84
Figura 2: Karaṇa karihasta (87), gopura do leste do templo de Thillai Nataraja
em Chidambaram, 2010. Fonte:
https://www.asianart.com/articles/Karaṇas/index.html acessado em 16/08/21
85
Chidambaram cresceu ao redor do complexo. A decadência assolou o
complexo em vários momentos de sua biografia, sua ultima grande fase de
falta de investimentos foi durante o século XVIII EC, já no período colonial,
quando foi palco de disputas territoriais entre o Reino Unido e a França (Michell
1995). Em 1959, 12 anos após a independência Indiana, através da Lei de
Dotações Religiosas e Caritáveis de Tamil Nadu a gestão dos templos foi
definida como sendo do governo estadual de Tamil Nadu, onde se instituiu uma
estrutura pública para essa administração.
86
datas de construção identificamos que existem divergências pois, como
apresentado anteriormente, o complexo sofreu diversas interjeições ao longo
do tempo. Em relação ao estudo específico destas representações, existem 3
importantes trabalhos já desenvolvidos, O primeiro é o o Relatório Epigráfico de
Madras de 1914, feito pelo Archaeological Survey of India, e que produziu
ilustrações em madeira de 93 das 108 representações dos Karaṇas de
Chidambaram, o segundo é o livro Tāṇ ava Laksanam de 1936 , escrito pelos
pesquisadores da Universidade de Annamalai (Tamil Nadu) Professor B.V.
Narayanaswamy Naidu, P. Srinivasulu Naidu e O.V. Rangayya Pantulu, foi um
dos primeiros trabalhos dedicados ao estudo do capítulo IV do Nāṭyaśāstra
associando as representações dos Karaṇas de Chidambaram e o terceiro, a
tradução do Nāṭyaśāstra do pesquisador M. Ramakrishna Kavi de 1956 que,
assim como no trabalho Tāṇ ava Laksanam associou as representações dos
Karaṇas com os ślokas do Nāṭyaśāstra.
Para a análise dos 108 Karaṇas, organizamos as imagens junto com os ślokas
transliterados do sânscrito, a tradução em inglês de Gosh (1951) e em
português da versão de Rangacharya (1984). Também inserimos uma
categoria proposta por Kapila Vatsyayan (1966) ao analisar as representações
dos Karaṇas em Thillai Nataraja. Por fim, desenvolvemos uma análise da
posição corporal da dançarina através do Parâmetro movimento da Teoria
Fundamentos da Dança de Helenita Sá Earp e buscamos realizar uma
comparação entre o śloka e o que identificamos na análise corporal. A análise
completa é possível ser acessada a partir da dissertação da autora deste artigo
intitulada “Representações dos 108 Karaṇas: Construção de discursos do
passado indiano a partir do corpo, da dança e da materialidade”.
87
A partir de nossa comparação entre os ślokas do capítulo IV do Nāṭyaśāstra e
as representações dos Karaṇas no templo Thillai Nataraja identificamos que
87% das representações são diretamente conectadas com as descrições da
obra, 12% não conseguimos identificar semelhança direta com a descrição e
1% não foi possível de analisar devido ao fato da representação estar
danificada. Acreditamos que essa alta conexão entre as descrições da obra e
as representações nos gopura ratifica a hipótese de que a prática corporal
descrita no Nāṭyaśāstra era amplamente praticada e difundida no período
Chola tardio (1070-1279 EC). Comparando as traduções dos autores
trabalhados, 11% dos ślokas divergiam em conteúdo, sendo as interpretações
de categorias corporais o principal motivo de divergência. Além disso, 57% dos
Karaṇas analisados receberam observações específicas.
Conclusão
Acreditamos que a materialidade influencia diretamente na produção desses
discursos sobre presente, passado e futuro. No que se refere a construção de
uma estética clássica indiana, ela desempenha o papel de legitimação e de
modelo estético a ser seguido. Por fim, apontamos que, ao aproximarmos os
olhares do/no corpo, conectamos camadas de análises corporais a partir de 3
diferentes perspectivas : 1) o corpo como cultura material, onde analisamos as
representações corporais da dança presente nos gopuras (portais) do
complexo templário de Thillai Nataraja em Chidambaram, 2) o corpo como
como produtor de conhecimento, ao nos colocarmos ativamente praticando os
movimentos propostos por essas representações com o intuito de abrir nossas
percepções de análise e 3) o corpo como (re)produtor de discursos, ao
entrarmos no debate de como essa materialidade influência nos discursos dos
corpos de dançarinas nos dias de hoje.
Referência
Thaisa MCS é doutoranda em Arqueologia (PPGArq - Museu Nacional/UFRJ),
mestre em Arqueologia (PPGArq - Museu Nacional/UFRJ), pós-graduada em
Linguagem da Dança (FURB) e bacharel em Teoria da Dança (UFRJ). Contato:
thaisamcs@yahoo.com.br
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Preface and Appendices, 2ª ed. Gaekwad’s Oriental Series. Baroda: Oriental
Institute, 1956
MICHELL, Georg. Architecture and Art of Southern India: Vijayanagara and the
Successor States, 1350-1750, Volume 1, Parte 6, Nova York: Cambridge
University Press, 1995.
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