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RESENHAS

UMA NOVA HISTÓRIA DOS IORUBÁS

OGUNDIRAN, Akinwumi. The Yorùbá: A New History. Bloomington, Indiana:


Indiana University Press, 2020. 532 p.

O autor deste erudito e estimulante temporal, um corpo crescente de


livro sobre os iorubás declarou, literatura histórica, na sua opinião,
durante uma recente discussão promo- “achata […] a história iorubá”
vida pela ASWAD – Association e “trata a cultura [iorubá] como
for the Study of the Worldwide fossilizada num passado atemporal”
African Diaspora (Associação para (p. 3). De fato, tem havido uma
o Estudo da Diáspora Africana tendência nos últimos setenta e cinco
Mundial), que seu projeto nasceu anos de representar o século XIX,
de sua crescente percepção de que o período do encontro missionário
os dados históricos, arqueológicos, cristão e colonial europeu, como o
antropológicos e culturais relativos “lócus e centro gravitacional da
ao tema não se alinhavam com as mudança cultural [iorubá]” (p.3).
representações do passado desse O desejo de Ogundiran de corrigir
povo em grande parte da literatura esse legado colonial e descolonizar
acadêmica.1 Enquanto suas próprias a historiografia africana inspirou-o
pesquisas apontam para origens a escrever um grande e importante
antigas e complexos processos de livro, pelo qual os leitores podem
mudança através de longo horizonte ficar agradecidos.
Arqueólogo, antropólogo e
1 The Association for the Study of the historiador cultural por formação,
Worldwide African Diaspora (ASWAD),
os objetivos do autor eram escrever,
“ASWAD Book Series: The Yoruba:
A New History”, Facebook . em um volume, um livro que

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fornecesse um “tempo profundo”, o conhecimento dos iorubás, da
um “domínio do gênero” e uma história africana e da história do
história multidisciplinar dos iorubás, Atlântico. Tampouco os leitores
que integrasse, desde sua origem até deixarão de apreciar o texto, prevê
meados do século XIX, a análise dos essa resenhista, graças à prosa lúcida
processos de mudança econômica, e à narrativa convincente do autor.
ambiental, social, política, religiosa A história de tempo profundo
e cultural na região da África de Ogundiran começa no passado
Ocidental onde habitaram. O projeto Pré-Arcaico (2500-2300 a.C.) –
exigiu que o autor investigasse na confluência dos rios Níger e Benué,
e interpretasse a interação dos na África Ocidental – do que o autor
iorubás com outros povos: vizinhos chama o grupo linguístico e cultural
próximos, como Benin, Ìbàrìbá e “proto-ioruboide [proto-Yoruboid]”.
Nupe; impérios sudaneses ao norte; Em seguida, descreve, analisa e
e atores atlânticos que vieram do interpreta a expansão e transformação
outro lado do mar no século XVI. dessa população durante os quatro mil
O escopo e a abrangência do livro anos seguintes. Para dominar esse
são impressionantes, bem como a longo passado, colocá-lo sob o seu
profundidade da análise dos períodos controle e torná-lo compreensível
críticos de mudança. Tabelas úteis, para seus leitores, o autor periodiza-o.
mapas excelentes e gráficos claros Ele divide os quatro milênios em
ajudam o autor a compilar a riqueza oito períodos de diferentes durações,
de informações e a apresentá-las de que são definidos por características
forma compreensível. Poucos serão que lhes dão coerência interna e os
os leitores que vão se debruçar distinguem uns dos outros. Embora
sobre o livro sem aprender com ele, a metodologia seja central para as
sejam estudantes à procura de uma disciplinas de arqueologia e história,
introdução ao conhecimento do povo a busca de Ogundiran por uma periodi-
iorubá e seu passado, ou especia- zação nativa, não eurocêntrica, de um
listas interessados em um ou outro passado tão longo, é nova e  define o
período ou assunto. O texto traz seu projeto. O autor introduz e resume
muitas contribuições novas para de forma útil o seu esquema temporal

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numa tabela na página 7. A análise das profundo. A tarefa exige que o autor
características-chave e dos principais avalie e sintetize muitos e complexos
desenvolvimentos em cada um desses conjuntos de literatura secundária e que
períodos estrutura o livro. apresente a investigação primária de
O texto é multidisciplinar e repre- uma vasta gama de fontes muito
senta, em vários sentidos, uma virada diferentes. O conjunto de ferramentas
no gênero narrativo. O autor do autor é vasto e finamente aperfei-
empenha-se numa análise integral e çoado. Poucos estudiosos poderiam ter
integrada dos muitos diferentes tipos de realizado a tarefa a que ele se propôs.
comportamento humano – econômico, Como seria de esperar de um
social, político, linguístico, religioso, arqueólogo, Ogundiran vê as práticas
intelectual, artístico e outros – materiais como fundamentais em
que constituíram a cultura iorubá. muitos dos seus oito períodos.
Procura a compreensão de como e por Ele enfatiza não só a produção e
que eles se moldaram mutuamente em o comércio agrícolas e de artigos
diferentes períodos da história iorubá. artesanais, mas também o consumo
Ogundiran não faz uma análise abstrata, de bens do cotidiano e de luxo.
mas investiga práticas específicas – No que diz respeito ao consumo,
tecnológicas, agrícolas, artesanais, o autor tem muito interesse em falar
comerciais, domésticas, espirituais, sobre a estética, bem como sobre o
governamentais, mitológicas, militares, valor de uso dos objetos materiais.
estéticas – e suas transformações. O seu enfoque no consumo enriquece
Tradicionalmente, esses vários tipos de a literatura sobre a história econômica
atividade humana têm sido estudados da África Ocidental.
por diferentes disciplinas acadêmicas, Num Período Formativo
com abordagens empíricas e teóricas (250-750 d.C.), porém, foram os
próprias. O autor recorre ao melhor avanços na organização sociopolítica,
dessas abordagens e se baseia na e não as práticas materiais, que na
pesquisa interdisciplinar existente, e as opinião de Ogundiran impulsio-
combina para compreender a comple- naram o desenvolvimento iorubá.
xidade e a interconectividade da história Durante os seiscentos anos anteriores,
cultural iorubá ao longo de um tempo uma seca severa havia ameaçado os

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proto-iorubóides em sua terra natal, doméstica e a hierarquia dentro dela
forçando a migração para sul. Depois reconhecerão muitas heranças da ilé
de 250 d.C., as chuvas voltaram à mais antiga de Ogundiran.
estabilidade e a população cresceu. O autor a considera o “sistema do
Nessa altura, grupos de famílias ilé” como um dos quatro pilares que
multigeracionais adotaram um tipo vieram definir uma “comunidade de
de ilé que provia eficazmente seus prática” iorubá. Ele tomou este conceito
membros, e elegeram lideranças para emprestado da antropologia do apren-
gerir a administração dos recursos dizado e o usa para evitar a sugestão
e dos conflitos sociais. O  ingresso de ser um grupo biológico, linguístico
no ilé era aberto a forasteiros – ou político delimitado.2 Ao contrário,
clientes, cativos, migrantes e outros. o autor vê uma população fluida,
Havia esferas complementares e permeável, enredada e multilíngue
equilibradas de atividade e autoridade que veio a comungar saberes, mitos,
masculina e feminina. Os líderes eram símbolos, crenças e ideias através
escolhidos com base em capacidade da interação e do aprendizado num
e senioridade. Histórias de origem e tempo profundo. Uma elaboração
práticas rituais partilhadas surgiram mais completa do conceito teria dado
e proporcionaram novas formas de mais força ao livro. A dualidade de
conceber o que significava ser uma gênero se tornaria um segundo pilar
pessoa e membro de uma comunidade. da “comunidade de prática”.
A reverência aos antepassados, alguns O ilé foi tão bem-sucedida que,
dos quais se tornaram divindades durante o Período Formativo Final
(orixás), ligava os vivos aos mortos (650-1050 d.C.), cidades incipientes
e aos nascituros. O ilé tem sido, povoadas por grupos de parentesco
na opinião de Ogundiran, a unidade corporativos de diversas origens
primária da organização social iorubá
ao longo da maior parte da sua história. 2 Jean Lave e Etienne Wenger, Situated
Quem está familiarizado com a biblio- Learning: Legitimate Peripheral
Participation, Cambridge: Cambridge
grafia sobre a formação posterior das University Press, 1991; Etienne Wenger,
Communities of Practice: Learning,
cidades, reinos e impérios iorubás,
Meaning, and Identity, Cambridge:
ou sobre a relação entre a organização Cambridge University Press, 1998.

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desenvolveram-se, criando a neces- Durante o Período Clássico
sidade de novos tipos de liderança. (1000-1400 d.C.), as inovações
Apareceram figuras centralizadoras no que o autor chama de “capital
(ọba-aládé), a que o autor chama intelectual” em Ilé-Ifẹ̀ deram ao
“divine kings” em inglês, reis divinos. reino uma posição de vantagem e lhe
Eles e os seus associados criaram permitiram estabelecer uma primazia
novas instituições políticas e promo- comercial, militar e política entre os
veram novas crenças religiosas, rios Níger e Mono. Naquela altura,
práticas cerimoniais, ideias filosó- Ilé-Ifẹ̀ chegou a ser vista como o
ficas e valores estéticos que se local de origem e ponto de referência
amalgamaram e integraram ao ilé para a realeza divina. Algumas das
e ao ìlú, unidade de maior escala de inovações importantes eram tecno-
organização social e política. O uso lógicas. Mais importante, na opinião
de contas vermelhas importadas do do autor, a gente de Ilé-Ifẹ̀ descobriu
Sudão Central tornou-se um símbolo como fabricar contas – símbolo de
fundamental da autoridade política poder e autoridade em toda a região e
e do poder espiritual. Nesta parte que eram anteriormente importadas –
do livro, o foco desloca-se para a partir do vidro, utilizando materiais
política, governo e as crenças, rituais locais. A popularidade dessas contas
e ideias que os sustentam. Ogundiran espalhou-se rapidamente entre as
explica claramente as ligações entre elites regionais, e os comerciantes
autoridade política e crenças cosmo- de Ifẹ̀ começaram a vendê-las em
lógicas, complexos rituais e princípios toda parte. Esse comércio ajudou
filosóficos. Ilé-Ifẹ̀ é o melhor exemplo a expandir o comércio de Ifẹ̀ de
conhecido de surgimento da díade forma global, enriquecendo a cidade,
ìlú-ọba-aládé, que o autor vê como reforçando o seu exército e aumen-
um terceiro pilar da comunidade de tando o prestígio dos seus governantes.
prática iorubá. Ele salienta, no entanto, As inovações tecnológicas na
que havia muitos desses lugares entre manufatura em terracota e bronze
800-1000 d.C. e que um grupo deles contribuíram para transformar a
em Èkìtì-Ìgbómìnà influenciou muito representação escultórica de gover-
o que aconteceu em Ilé-Ifẹ̀. nantes e antepassados, pela qual o

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reino de Ifẹ̀ é hoje mundialmente comunidades menores a Ilé-Ifẹ̀,
famoso. Ogundiran analisa essas como  suas filiais (ẹbí). O desenvol-
mudanças para iluminar o seu quarto vimento dessa nova consciência,
pilar da comunidade de prática argumenta Ogundiran, mascarou a
iorubá: a crença na imortalidade da hierarquia dentro da fraternidade ẹbí e
alma e na reencarnação dos antepas- facilitou a integração política regional.
sados falecidos. Ele explora como Houve ainda inovações religiosas
esculturas de distintos antepassados e intelectuais. Por exemplo, os líderes
instaladas nos locais de sepultamento de Ifẹ̀ inseriram as crenças locais
das casas governantes veneraram os numa ampla cosmologia regional,
antepassados em busca de felicidade mas ligeiramente diferente, e reemba-
e paz e para assegurar o bem-estar laram a combinação como universal.
dos seus descendentes. Cerimônias O autor ilustra esse fenômeno por
menos elaboradas, material e ritual- meio de uma discussão sobre os orixás
mente, em casas mais humildes de Orumilá (Ifá) e Obatalá para mostrar
toda a comunidade de prática promo- como as origens e genealogias das
veram o bem-estar de muitos outros divindades de Ifẹ̀ se tornaram um
ilé e ìlú. No geral, o artesanato e as modelo para a comunidade iorubá.
artes floresceram em Ilé-Ifẹ̀ durante Os orixás relacionados a Ifẹ̀ e as
o Período Clássico. Migrantes em tradições orais a eles associadas
busca de oportunidade, segurança e espalharam-se por meio de redes
um ambiente cosmopolita afluíram econômicas, políticas e sociais.
à cidade. Os valores e as práticas Surgiu uma nova visão de mundo
associados ao ilé ajudaram a que reforçou a visão de Ifẹ̀ sobre
incorporá-los. a integração econômica e política
Outras inovações foram ideoló- regional e ajudou a transformar a
gicas. Os governantes, sacerdotes e primazia do reino em hegemonia.
artistas de Ilé-Ifẹ̀ criaram e difun- Ogundiran argumenta, entusiastica-
diram tradições orais que legitimaram mente, que a epistemologia iorubá
a primazia do reino por meio da deve ser tratada como uma fonte
alegação de que este era a fonte da vital para o estudo do passado desses
realeza divina. As tradições ligam povos. Ele emprega as evidências

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epistemológicas de forma mais iorubás. Foi nesse período que
completa e convincente na sua análise os iorubás que se aproximavam do
do Período Clássico. litoral encontraram pela primeira vez
O domínio de Ilé-Ifẹ̀ não durou uma Europa em expansão.
muito. Fatores internos e externos Ogundiran marca o seu Período
enfraqueceram-no. A superpro- Final (1630-1840 d.C.) na era
dução de contas de vidro saturou atlântica, assinalando a importância
os mercados e reduziu os preços, que atribui à penetração do capital
de modo que seu valor como bens de mercantil europeu e americano
consumo de elite declinou. A guerra durante esses anos. Essa parte do
civil no interior da capital e a rebelião livro trata de assuntos semelhantes
fora dela drenaram os recursos aos que estão no coração do recente
econômicos e militares do império. livro de Toby Green, A Fistful of
Para agravar a situação, uma terrível Shells, e, enquanto um estudo de
crise ecológica – longa e grave seca, caso detalhado de uma única cultura,
acompanhada de fome, epidemias faz dele um companheiro valioso.
e migrações –, entre cerca de 1400 Ambos os textos enriquecem a
e 1570 d.C., levou ao colapso da história global do capitalismo.3
economia regional e ao declínio de O período começou bem,
Ilé-Ifẹ̀ e de muitos outros reinos com a recuperação e a regeneração
iorubás. O império Ifẹ̀ chegou ao fim. dos reinos iorubás. Velhos reinos
Entretanto, os Nupe e outros grupos foram reconstruídos e novos foram
armados varriam o sul do Níger e fundados. Nos primeiros anos do
pilhavam e saqueavam até altura encontro atlântico, a importação
de Èkìtì. A análise de Ogundiran de búzios, usados como moeda,
sobre o declínio do Ifẹ̀ é a mais monetizou a economia, incrementou a
abrangente e esclarecedora da histo- especialização econômica (particular-
riografia iorubá; sua discussão sobre mente na produção têxtil) e expandiu
o impacto da crise ecológica acres-
centa muita novidade. A narrativa do 3 Toby Green, A Fistful of Shells:
West Africa from the Rise of the Slave
autor mostra os séculos XV e XVI
Trade to the Age of Revolution, Chicago:
como uma época terrível para muitos The University of Chicago Press, 2019.

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a atividade mercantil, embora a longo guerras de expansão e, no caso de
prazo. Ọ̀yọ́, o reino mais setentrional Ọ̀yọ́, estabelecendo um novo império.
da comunidade iorubá, desenvolveu Como havia acontecido anteriormente
uma cavalaria, expulsou os saltea- em Ilé-Ifẹ̀, introduziram um novo
dores do norte do Níger, que tinham símbolo de autoridade política e poder
aterrorizado a sua população, e se militar, o cavalo, e reformularam o
tornou o poder econômico e político panteão de Orixás, elevando Ogum,
dominante. Contudo, outros reinos deus do ferro e da guerra, à supre-
guerreiros surgiram e também tiveram macia. Essas inovações estéticas,
capitais com populações grandes, religiosas e ideológicas alteraram a
diversas e altamente qualificadas. visão de mundo iorubá e naturalizaram
Cidades mercantis desenvolveram-se as conquistas dos reis guerreiros.
nas suas fronteiras, onde os povos de Logo o encontro atlântico
toda a região, e de além dela, comer- começou a manifestar seus lados mais
cializavam, promovendo aquilo que obscuros. As elites locais encorajaram
o autor chama integração econômica a monetização dos búzios, mas a depen-
subcontinental “em rede”. Ogundiran dência de uma moeda que só podia
mostra como as artes – escultura, ser adquirida por meio do comércio
arquitetura, música e outras tradições transatlântico – as conchas vinham
performáticas – floresceram em Ọ̀yọ́-Ilé das ilhas Maldivas – colocou-as
e outras capitais. Em suma, a expansão numa posição de fraqueza. Ogundiran
do comércio atlântico inicialmente argumenta que nesse período os
aumentou o volume da produção e governantes tinham pouco controle
do comércio interno, embora poucas sobre a política fiscal e recursos
pessoas fora das elites políticas, limitados quando o valor dos búzios
comerciais e militares tivessem os diminuía em relação ao das impor-
recursos para consumir os tecidos, tações. Além disso, como os búzios
o tabaco, a aguardente e outros bens não eram uma moeda internacional-
introduzidos do estrangeiro. mente reconhecida, a única forma de
No mesmo período, reis guerreiros os governantes e comerciantes iorubás
de sucesso em Ọ̀yọ́-Ilé, Iléṣà e Ìjẹ̀bú os converterem em moeda atlântica
redesenhavam o mapa político travando era apreendendo ou comprando

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cativos e comercializando-os. Além disso, a desigualdade
Simultaneamente, a cultura iorubá aprofundou-se e se tornou perene
estava se tornando cada vez mais durante a era atlântica no império de
orientada para mercadorias de Ọ̀yọ́ e em outros estados hegemônicos,
exportação e a valorização de bens tais como Iléṣà e Ìjẹ̀bú. Em Ọ̀yọ́,
materiais. O consumo de bens impor- o processo se deu em múltiplos
tados – têxteis, tabaco, aguardente e contextos: entre o reino e os tribu-
búzios – espalhou-se e adquiriu um tários que conquistara e colonizara,
novo significado nos marcadores onde os agentes imperiais impuseram
de distinção social, bem como na pesados tributos e apresaram homens,
sociabilidade centrada nos objetos. mulheres e crianças para o trabalho,
Ogundiran documenta tais mudanças para o casamento ou concubinato e
no vestuário e no adorno pessoal, para a venda ao comércio atlântico;
práticas cerimoniais e rituais e ideias dentro do próprio reino, entre a capital
sobre pessoa e autorrealização. e as cidades e aldeias provinciais de
Sua discussão sobre a transfor- onde os administradores extraíram
mação dos usos e do significado dos impostos, mão de obra e serviços;
búzios, fundamentada numa análise e, através dos três domínios (reinos
da filosofia iorubá, das tradições tributários, províncias e metrópole),
orais e das artes visuais e verbais, extraíam recursos das elites gover-
é especialmente rica. A comunidade nantes, militares e comerciais e a
iorubá, o autor argumenta, passava a maioria dos outros habitantes.
ser definida pelo consumo de bens Por um lado, houve um grande
que só podiam ser adquiridos por aumento da posse de escravos nos
meio da participação no comércio de estratos superior e médio da sociedade,
escravos do Atlântico. Sua análise e o maior número de escravizados
mostra como um tipo particular de eram mulheres. O emprego genera-
comércio exterior – que constituía lizado de mão de obra escravizada
uma parte muito menor, no conjunto pelos ricos e poderosos aumentou
da economia, do que a produção e suas vantagens na produção,
troca internas – poderia, no entanto, comércio e reprodução e foi essencial
ter efeitos profundamente negativos. para a administração imperial

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e organização militar de Ọ̀yọ́ . Produziram, enfim, uma subclasse
Por outro lado, as pessoas próximas permanente de súditos e se tornaram
do topo da ordem social também uma fonte de profunda insatisfação.
desfrutaram de vantagens no recru- A história do declínio e queda
tamento de esposas nascidas livres, do império de Ọ̀yọ́ é o episódio
fossem para si mesmos, para seus mais conhecido na história de tempo
filhos ou seus outros dependentes, profundo dos iorubás na versão
o que levaria a uma expansão da de Ogundiran, e isso se deve à
poliginia. Essas duas mudanças monumental History of the Yorubas,
aconteceram numa altura em que de Samuel Johnson e aos muitos
as mulheres, livres e escravizadas, textos subsequentes que lhe serviram
carregavam o fardo do aumento da de inspiração.4 Mesmo nesta parte do
produção de muitos tipos de merca- livro, o autor acrescenta novas contri-
dorias, sendo a mais importante os buições. Às causas geralmente aceitas
têxteis, e também dominavam o para o calamitoso colapso do império
comércio local e de longa distância. de Ọ̀yh, ele acrescenta uma rebelião
A expansão da poliginia, argumenta das classes baixas cujas queixas foram
o autor, prejudicou o estatuto das agravadas por uma nova seca e conse-
esposas nascidas livres e reduziu a quentes fome e doença. Ele vê a revolta
influência das esferas de autoridade de 1817 como uma rebelião de classe
matricêntricas, ao mesmo tempo em e não como uma revolução islâmica.
que aumentou a das esferas patri- A avaliação de Ogundiran sobre as
cêntricas. Em suma, perturbaram a consequências da queda de Ọ̀yọ́ é
dualidade iorubá de gênero e levaram consistente com a literatura anterior.
ao declínio do estatuto da maioria As guerras que a acompanharam e
das mulheres. Essas mudanças inter- seguiram levaram à destruição de
conectadas, defende Ogundiran, milhares de cidades e aldeias e ao
acentuaram a desigualdade entre deslocamento permanente de milhões
os sexos e minaram a mobilidade
social ascendente no seio dos grupos 4 Samuel Johnson, The History of the
Yorubas: From the Earliest Time to the
residenciais, através das gerações
Beginning of the British Protectorate,
e em todo o império de Ọ̀ yọ́ . Londres: Routledge & Kegan Paul, 1921.

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de pessoas. Um grande número Ogundiran concorda com Eltis que o
delas foi vendido para a escravidão impacto dos iorubás nas Américas foi
atlântica. A história dos novos Estados forte e desproporcional em relação ao
e da cultura política que emergiu em seu número, e apresenta uma percepção
meados do século XIX está além provocadora da razão pela qual isso
do âmbito do livro. Ela pertence à pode ter acontecido.5 Ogundiran afirma
história do encontro missionário que a preservação e adaptação de
cristão e imperial europeu, situado valores e comportamentos associados
num horizonte de tempo que requer ao ilé no Novo Mundo – abertura a
um quadro conceitual diferente. estrangeiros, formas de inserção e
The Yorùbá: A New History ênfase na proteção e apoio mútuos –
termina com uma breve, mas sugestiva promoveram a coesão social. Esses
discussão sobre a diáspora iorubá, valores e comportamentos ajudaram
um assunto que pode ser de parti- as pessoas escravizadas de diferentes
cular interesse para os leitores da origens, mas com interesses parti-
Afro-Ásia. O autor, seguindo David lhados, a forjar comunidades fortes
Eltis, estima que cerca de seiscentos enraizadas na família e na religião.
mil iorubás chegaram ao Novo Mundo Assim como o ilé no continente tinha
entre 1790 e 1867 e cerca de quatro- mobilizado diversos povos para se
centos mil antes dessa data, perfazendo desenvolver, também na diáspora os
um total em torno de um milhão de iorubás recorreram a essa instituição
pessoas. Ao longo da história do para forjar grupos familiares, unidades
comércio transatlântico, pequenos domésticas, casas de culto, irmandades
números deles desembarcaram numa católicas, grupos de trabalho e outras
vasta área geográfica, mas cerca de associações para o bem individual
dois terços do total foram levados para e coletivo. Os ilé foram, na opinião
apenas três locais – São Domingo/ de Ogundiran, “os centros nervosos
Haiti, Bahia e Cuba –, a maioria no
século XIX. Apenas na Bahia do 5 David Eltis, “The Diaspora of Yoruba
Speakers, 1650-1865: Dimensions and
século XIX, no entanto, os iorubás se Implications” in Toyin Falola e Matt D.
Childs (orgs.), The Yoruba Diaspora in
constituíram como o maior grupo de
the Atlantic World (Bloomington: Indiana
africanos na população escravizada. University Press, 2004), pp. 30-34.

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de experimentação e adaptação que sua argumentação a discussão sobre
permitiram a reconstituição da cultura o Islã, uma religião poderosa e
iorubá […] no Novo Mundo” (p. 388). unificadora entre os iorubás e outros
Tornaram-se espaços poderosos de africanos no Brasil do século XIX.
ajuda mútua, realização e resistência O livro de Ogundiran é um feito
coletivas. O uso do iorubá como língua notável e uma importante contri-
litúrgica no culto aos orixás teria buição à literatura sobre a história
garantido a preservação da língua e da e a cultura dos iorubás. Ter um
epistemologia iorubás nas Américas. único texto que narre de forma tão
Os pesquisadores vão querer testar abrangente e perspicaz um período
essa hipótese provocadora em outros tão longo da história dos iorubás é
lugares e períodos. As evidências do muito valioso. O trabalho é simulta-
autor vêm principalmente de Cuba neamente um recurso e um guia para
do século XIX, não da Bahia ou de outros pesquisadores. Os especia-
colônias para onde os iorubás escra- listas podem debater interpretações
vizados foram levados anteriormente. de temas ou períodos específicos,
Estudos de caso de uma irmandade e mas no futuro poucos poderão ignorar
de um terreiro na Bahia que, em certos a periodização de Ogundiran do
aspectos, se encaixam no modelo do passado profundo iorubá.
autor, envolveram um número signifi- Uma última palavra sobre a
cativo de falantes de gbe, alguns com linguagem. O autor tempera seu livro
ligações à África Centro-Ocidental.6 com provérbios iorubás e outros
Além disso, Ogundiran omite da aforismos, que ele traduz para o
inglês. Introduz frequente e delicio-
6 Luís Nicolau Parés, “Milicianos,
barbeiros e traficantes numa irmandade samente o ditado iorubá mais preciso
católica de africanos minas e jejes para expor ou sintetizar o cerne do
(Bahia, 1770-1830)”, Tempo, n. 20
(2014), pp. 1-32 ; Lisa Earl Castillo, que está a discutir. Ele também usa
“O terreiro do Gantois: redes sociais
e etnografia histórica no século XIX”,
um vocabulário bastante contem-
Revista de História, n. 176 (2017), porâneo. Termos tão familiares
pp. 1-57 ; e Castillo e Parés,
“Marcelina da Silva: a Nineteenth- como “crise ecológica”, “vantagem
Century Candomblé Priestess in Bahia tecnológica”, “capital intelectual”,
(Brazil), Slavery and Abolition, n. 31
(2010), pp. 1-27 . “sistemas econômicos em rede” e

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“desigualdade perene” são centrais tempo, a utilização de terminologia
para a sua análise em partes essen- contemporânea para interpretar
ciais da obra. Embora o autor não processos antigos levanta questões
utilize a expressão “perda de fé no sobre a língua e a tradução entre
governo”, ele a insinua na discussão culturas e épocas. Se muito se ganha
sobre o império de Ọ̀yọ́. Sua aposta em usar o linguajar contemporâneo
na linguagem contemporânea ajudará no primeiro plano, há também algo
os leitores do século XXI a se identifi- que se pode perder? Poderá a língua
carem com os temas históricos que ele dos falantes de iorubá do passado ser
aborda. Torna o seu texto relevante traduzida de outra forma, e o que a
para o mundo de hoje. Ao mesmo diferença poderia nos ensinar?

Kristin Mann
Emory University

Traduzido por Mariângela Nogueira

doi: 10.9771/aa.v0i65.48541

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