Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ORIENTE MÉDIO
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Bruno Redondo
Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].
Rede
www.orientalismo.net
Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos em Oriente Médio. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/ UERJ, 2023. 97 p.
ISBN: 978-65-00-77512-9
História da Ásia; Oriente Médio; Orientalismo; Diálogos Interculturais.
2
Apresentação
Orientalismos e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Visões do Orientalismo
Estudos sobre Oriente Médio
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
3
4
Sumário
Antiguidade
O EGITO ASIÁTICO DE POMPÔNIO MELA, por Alaide Matias Ribeiro ....................... 7
CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO, por Felipe Daniel
Ruzene ....................................................................................................................... 14
UMA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO DE ISRAEL, por Marlon Barcelos
Ferreira ....................................................................................................................... 21
A ARQUITETURA DA ÁGUA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A PESCA
NO EGITO ANTIGO, por Maura Regina Petruski........................................................ 27
A ASCENSÃO DA GRANDE PÉRSIA DE CIRO, O GRANDE, por Willian Spengler... 33
Medievo
Contemporâneo
5
6
O EGITO ASIÁTICO DE POMPÔNIO MELA, por
Alaide Matias Ribeiro
Introdução
Pompônio Mela, no capítulo dedicado à descrição da Ásia, em sua Corografia,
afirma que: “Asiae prima pars Aegyptus inter Catabathmon et Arabas” [livro I,
cap. 9, 49]. O geógrafo romano do século I EC, além de indicar que o Egito é a
primeira parte da Ásia, também o localiza geograficamente entre o vale que é
considerado o limite da África, o Catabathmon, e o espaço ocupado pelos
povos árabes. Esse posicionamento não é aleatório. A questão do localização
geográfica e da construção discursiva de espaços e de lugares a partir de uma
determinada experiência do autor é o que propomos discutir neste capítulo.
Nesse sentido, esboçamos uma reflexão sobre a Ásia e, particularmente, o
Egito asiático de Mela.
7
historiográfica, geográfica e etnográfica, para construir o espaço do mundo
habitado. Cabe ressaltar que, apesar de ser intitulada como uma khôrographia,
uma descrição escrita sobre determinada região ou território, o discurso contém
elementos característicos de uma topografia, de uma geografia [Romer, 1998,
p. 4], preocupada em expor a terra habitada [Silberman, 1988, p. XIX] e,
particularmente, de uma mitografia grega [Smith, 2016, p. 111].
De forma geral, Mela inicia sua obra tecendo considerações sobre a tarefa a
que se propõe, a produção de uma geografia, bem como sobre a estrutura da
obra. Em seguida, expõe as questões próprias à geografia, como a discussão
sobre o universo, a terra, sua divisão em dois hemisférios, norte e sul, e em
cinco zonas, suas proporções, o Oceano exterior, os mares e os três
continentes [livro I, cap. 1, 3-8]. Feita essa introdução à obra e às questões
gerais, Mela inicia a descrição geral de cada um dos três continentes, a Ásia, a
Europa e a África, enfatizando a delimitação do contorno e enumeração dos
lugares e povos que ocupam o interior, a costa mediterrânica e oceânica.
Nesse sentido, essa descrição inicial ainda se atém às questões da geografia
matemática. A corografia, por sua vez, inicia-se posteriormente, com a
apresentação de informações mais detalhadas sobre esses espaços.
Em resumo, Mela inicia a partir do cabo Spartel e, tomando como fio condutor
as costas do Mediterrâneo e depois o Oceano Exterior, percorre os espaços a
partir da África [I, 25-48] e da Ásia [I, 49-117]. No livro II, descreve a Europa [II,
1-96], as ilhas do Mar Interior e do Euxino [II, 97-99], as margens asiáticas [II,
100-104], africanas [II, 105] e europeias [II, 106-126]. O livro III conserva a
descrição das costas atlânticas da península ibérica, Gália, as costas
oceânicas da Europa [III, 1-45], as ilhas ao longo dessas costas [III, 46-58], as
costas asiáticas [III, 59-84] e depois, as da África [III, 85-107].
Exposição geográfica
Nas geografias e corografias de autores gregos e romanos, ou mesmo nas
digressões relacionadas ao espaço presentes em histórias, a disposição ou
ordenamento dos espaços e lugares toma como referência uma divisão maior
do orbe habitado, a dos continentes. Para Pompônio Mela, o Mar Mediterrâneo
e os rios Nilo e Tanais dividiriam a terra em três partes. Assim: “a extensão de
terra que vai do estreito de Gades até esses rios, nós chamamos, por um de
seus lados África, do outro Europa - até o Nilo é África, até o Tanais, Europa.
Tudo o que se encontra além é Ásia.” [livro I, cap. 1, 8]. De acordo com
Silberman [1988, p. 101-102] essa divisão em três continentes, apropriada por
Mela, resulta de observações empíricas de navegadores, comerciantes e
viajantes.
8
lugar discutido em doze seções [livro I, cap. 9, 49-60], das quais cinco [49-54]
compreendem a discussão sobre o Nilo.
O geógrafo romano afirma que: “A Ásia possui uma frente extensa e contínua
voltada ao oriente e aí se estende de modo que é igual em largura à Europa e
à África e ao mar entre as duas. Daí procedendo, alonga sua forma massiva
sobre alguma distância, encontrando-se com os mares arábico e pérsico, vindo
do oceano que chamamos Índico, e vindo do oceano Escítico ao Cáspio.
Depois, volta-se a dilatar e alargar. Daí, quando chega ao seu fim e aos confins
das outras partes da terra, Nosso Mar a recebe pela parte do meio; o restante,
como uma ponta, dirige-se até o Nilo, e a outra, até o Tanais.” [livro I, cap. 2, 9].
“Sua orla desce junto com o leito do Nilo, de ponta a ponta, até o mar, do qual
desenha toda a projeção pela extensão de sua costa; depois corrente com o
avanço deste último, primeiro arredonda em uma vasta curva, depois se alonga
formando uma ampla fachada até o estreito do Helesponto; daí, ainda em
diagonal ao Bósforo e curvando-se várias vezes ao longo do Ponto, atinge,
depois de fazer uma curva, a entrada do Meótide que abraça na reentrância
que forma até ao Tanais, com cuja margem se identifica.” [livro I, cap. 2, 10]
No caso da Ásia, a citação aos povos que ocupam esse espaço é feita nas
últimas quatro seções do capítulo 2 do livro I. A menção aos grupos humanos
seguem uma ordenação explícita. Inicialmente, Mela menciona os habitantes
da extremidade oriental: indianos, seres e citas [livro I, cap. 2, 11]; depois
9
prossegue para os locais que estão situados ao redor daqueles: Ariane, Aria,
Cedrósia, Pérsia, os cáspios, as amazonas e os hiperbóreos [livro I, cap. 2, 12];
em seguida, os povos que ocupam o interior do continente e, mais
particularmente, acima da região do golfo Cáspio: candaros, paricanos,
bactros, sogdianos, farmacotrofos, chomares, coamanos, propanisades, dahas,
comaros, masagetas, cadúsios, hyrcanos, iberos, cimérios, cissiantiens,
aqueus, georgios, moscos, corsitas, foristas, rifaces, mardos, antibaranos,
medos, armênios, comagenos, murranos, enetas, capadócios, galogriegos,
liacaones, frígios, pisidas, isauros, lidos e sirocilices [livro I, cap. 2, 13]. Por fim,
na última seção, Mela arrola os povos situados no e em torno do golfo pérsico,
em particular, os partas, assírios, bitínios, babilônios, egípcios, meóticos e
saurómatas, bem como lugares específicos: Síria, Cilícia, Lícia, Panfília, Cária,
Jônia, Eólide, Tróade, Helesponto, o Bósforo Trácio e o Ponto Euxino [livro I,
cap. 2, 14].
Egito
Considerando o inventário de povos citados acima, percebe-se que os
egípcios, o povo que ocupa o Egito, encontra-se situado entre os grupos
humanos que habitam na região próxima ao golfo pérsico, na extremidade
ocidental da Ásia. Apesar de situá-lo como o primeiro território da Ásia,
colocando sua fronteira africana no Catabathmon, Mela também indica outros
limites que tornam problemáticas as delimitações. Ele enuncia que: “A África,
na parte do oriente, é limitada pelo Nilo, e pelas outras com o mar. [...] A África
é mais comprida que larga e a parte mais larga fica onde ela toca no rio Nilo.”
[livro I, cap. 4, 20]. De acordo com Silberman [1988, p. 114], inicialmente, ao
dar a forma geométrica de um triângulo à África, Mela considera que o menor
lado que estaria articulado ao maior e formaria o ângulo reto, a margem
mediterrânica, seria aquele que segue o curso do Nilo.
Um dos sentidos que podem ser interpretados a partir do excerto é que, nessa
enunciação em particular, o limite do Egito é a própria margem ocidental do
Nilo. Assim, o rio aparece ora no sentido de uma fronteira natural entre a África
e a Ásia, quando Mela segue uma tradição jônica, cujo representante é
Hecateu de Mileto [Silberman, 1988, p. 114], ora não como o divisor, pois todo
o território, margem ocidental e oriental, são percebidos como Ásia. Assim, o
Egito é distinguido da Líbia [livro I, cap. 9, 49], como enunciado por Heródoto
[Silberman, 1988, p. 128], sendo limitada em Alexandria [livro I, cap. 9, 60].
Concordamos com Romer [1998, p. 11] quando ele considera que a ordo da
narrativa de Pompônio Mela incorpora e se torna a própria ordo do mundo. No
entanto, tendo em vista a utilização de diferentes fontes, tradições geográficas
e formas de descrição, especialmente, a ênfase no périplo [Dueck, 2012, p. 6-
7; Silberman, 1988, p. XVI], compreende-se que o mundo ordenado por Mela,
os espaços e lugares criados a partir do discurso, não está isento de
incoerências.
10
Exposição corográfica
Ciente dessa problemática, cabe voltarmos a atenção para a descrição
corográfica do Egito, apresentando os elementos destacados por Mela para
compor esse espaço. O primeiro tópico é a caracterização do espaço como
uma terra que é privada de chuva, mas prodigiosamente fértil em razão do rio
Nilo. Este rio, considerado como o maior a desaguar no “Nosso Mar”, isto é, no
Mar Mediterrâneo, é percebido como a causa de toda a fecundidade e
superabundância do Egito, tanto no que concerne aos homens, aos egípcios,
como aos outros seres animados. É o rio que ocupa a maior parte dos
parágrafos do capítulo dedicado ao Egito.
Após essa breve exposição do curso do rio, Mela retoma a ideia da natureza
geradora e nutritiva das águas nilóticas, enunciando que ela é responsável pela
abundância de peixes, hipopótamos, crocodilos e outros organismos vivos que
pululam no solo e não são propriamente identificados. Apesar de mencionar
exemplos da fauna nilótica, Mela não se detém na descrição dos animais nem
da flora egípcia.
Por fim, o tópico final de discussão em torno do Nilo é a questão das cheias,
assunto diretamente relacionado ao campo da geografia física [Silberman,
1988, p. XXI]. No entanto, Mela não apresenta uma hipótese definitiva sobre o
fenômeno e nem toma partido de uma específica. Ele apresenta 4 razões para
a cheia: (1) as neves derretidas dos cumes das montanhas da Etiópia, (2) o
transbordamento por falta dos efeitos do sol nas regiões onde nasce, (3) os
ventos etésios que fazem com que ocorra precipitação na sua origem e, por
fim, (4) a possibilidade de o rio ter origem em uma antípoda e transbordar
quando, na sua fonte, se desse o inverno.
11
Discutidas as questões próprias à geografia, Mela inicia o comentário acerca
dos elementos que considera pertinentes. De acordo com Silberman [1988, p.
XX], o geógrafo cita topônimos de cidades, rios, montanhas ou ilhas em razão
de critérios como sua antiguidade, grandeza, celebridade, importância, seu
papel histórico ou mitológico. Mas, em algumas passagens, que não são
específicas à descrição da Ásia ou do Egito, a exposição é de curiosidades,
particularidades ou mirabilia [Romer, 1998, p. 12; Silberman, 1988, p. XXII]. No
caso do Egito, o geógrafo romano aponta algumas coisas admiráveis que não
são, explicitamente, localizadas espacialmente. Em primeiro lugar, relata a
existência de uma ilha que se movimentaria de acordo com o impulso dos
ventos chamada Chemmis. A mesma teria bosques sagrados e um templo
dedicado ao deus Apolo. Outros pontos de destaque são as três pirâmides de
Gizé, e o lago Moéris, o qual seria profundo e permitiria a navegação de
embarcações de transporte [livro I, cap. 9, 55]. O Labirinto, provavelmente o
complexo funerário de Amenemhat III [Silberman, 1988, p. 132], é mencionado
como uma obra de Psamético e tratado como uma espécie de complexo
habitacional e palaciano [livro I, cap. 9, 56].
Por fim, Pompônio faz um comentário que dialoga com o tempo passado e o
presente: “Sob o reinado de Amásis eles habitaram vinte mil cidades, ainda
hoje possuem muitas. As mais famosas, longe do mar, são: Sais, Mênfis,
Siene, Bubástis, Elefantina e, especialmente, Tebas, que, como diz Homero,
tem cem portões, ou, segundo outros, cem palácios, [...]; à beira do mar estão
Alexandria, na fronteira da África, e Pelúsio, na fronteira da Arábia. A própria
costa é cortada pelas bocas do Nilo” [livro I, cap. 9, 60]. É possível perceber
que, ao final, o geógrafo, depois da incursão no interior, retoma o esquema do
périplo, voltando-se para o litoral e enunciando, novamente, os limites do
território. Além disso, é notável a inserção explícita de uma das fontes,
Homero, considerado por muitos geógrafos gregos como o pai da geografia
[Dueck, 2012, p. 20-21].
Consideração final
De situ orbis é a descrição geográfica mais antiga escrita em latim que chegou
até nós. No entanto, é uma descrição breve, majoritariamente mediada por
uma experiência indireta de Mela, que apenas compila fontes. O mundo
descrito não corresponde ao seu mundo mais atual, romano. A Ásia é
construída como um continente do mundo habitado, um aglomerado de lugares
e povos, e o Egito como um território asiático, atravessado pelo rio Nilo,
habitado por egípcios e não identificado com a África.
Referências
12
Alaide M. Ribeiro é doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação
em História da UFRN/Campus Natal, Área de Concentração História e
Espaços. Bolsista Capes. Membro do Grupo de Estudos de História Antiga
(MAAT-UFRN).
13
CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO,
por Felipe Daniel Ruzene
Considerações Iniciais
A dietética suscita nas sociedades humanas uma série de hábitos à mesa que,
enquanto relevantes fragmentos das práticas culturais, expressam os variados
desejos humanos, seus rituais, etiquetas, filosofias e religiosidades. Para além
do mero comer ou beber, as práticas alimentares evidenciam um complexo
sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos,
estéticos e econômicos. Dentre os muitos alimentos que consumimos hoje, as
carnes circulam entre os mais protuberantes em nosso imaginário social – são
insumos custosos e parcos que suscitam status sociais, suntuosidade,
realidades de classe e consciências filosófico-religiosas. Todavia, o avanço nas
investigações relativas à História da Alimentação tem demonstrado que, desde
a Antiguidade, as carnes já possuíam lugar destacado na dieta e eram
comumente associadas a mitos, ritos e liturgias sacrificiais, além de veicularem
entre as iguarias mais desejadas no mundo antigo [cf. RUZENE, 2022]. Os
estudos recentes relativos às práticas alimentares, há um crescente interesse
nas investigações em torno da evolução das práticas alimentares ao longo do
período faraónico [TALLET, 2015, p. 319].
14
Embora o recorte se dê nas carnes convêm ressaltar que a maior parte dos
alimentos consumidos pelo povo egípcio na antiguidade era constituída por
verduras, legumes, frutas e, sobretudo, grãos, uma vez que a maior parte da
população não possuía acesso diário às proteínas animais. De fato, papiros de
sábios do período faraônico instruem ao povo que: “não se pode encontrar
melhor alimento que os legumes com sal” [BRESCIANE, 2020, p. 68]. A dieta
básica era formada por uma grande variedade de pães, comumente feitos de
cevada ou trigo, além de cerveja – alimentos tão significativos que podem ter
servido como moeda de troca ou forma de pagamento entre os egípcios
[GAMA-ROLLAND, 2019, p. 79]. As abordagens de diversos pesquisadores –
historiadores, arqueólogos e egiptólogos – não visam uma reconstrução
detalhada do cardápio dos egípcios, mas permitem refletir a relevância das
culturas alimentares e expõem uma razoável ideia do que poderia ter aparecido
em suas mesas, levando em consideração a extrema disparidade social
presente. Apesar das diferenças à mesa de ricos e pobres, assegurar uma
quantidade digna de alimentos para todos os cidadãos representava uma
“garantia de ordem social” para o Estado egípcio [BRESCIANE, 2020, p. 69].
Justamente por isso um dos objetivos mais importantes para a administração
faraônica era o armazenamento a longo prazo dos mais variados produtos
alimentícios [TALLET, 2015, p. 323]. A importância das diversas formas de
alimentação no Antigo Egito ainda pode ser observada na existência de
diversas profissões relativas à culinária, tais como: cozinheiros, açougueiros,
cervejeiros, pasteleiros, padeiros, confeiteiros, degustadores de vinho [cf.
RUZENE, 2021] e, inclusive, um curioso cargo de diretor na “casa da gordura
de boi” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 77-78].
As carnes aparecem nas dietéticas egípcias desde a mais tenra idade, estando
presente, inclusive, na mesa das crianças, por vezes dividindo espaço com a
amamentação. Nas XVIII e XIX dinastias (entre 1550 e 1189 AEC) o leite
materno era armazenado em vasos com formas femininas que ninavam bebês
em seus colos, o intuito era preservar o alimento por um determinado período,
evitando desperdícios que poderiam ocorrer a partir da introdução alimentar
dos pequenos [COELHO, 2012, p. 44]. Possivelmente, pelo que apontam
fontes escritas e iconográficas, outros alimentos eram gradualmente
acrescentados à dieta das crianças, somados ao leite materno a partir dos seis
meses aproximadamente [COELHO, 2012, p. 44]. Primeiramente, frutas,
vegetais e cereais, em formas pastosas, como purês e carnes brancas. As
carnes vermelhas aparecem à mesa das crianças um pouco maiores, além de
pães de diversos formatos, bolos e diferentes legumes. É provável que as
carnes não estivessem sempre no cardápio dos mais pequeninos (talvez com
exceção dos pescados) tanto por ser um dos insumos mais escassos na mesa
da maioria, quanto por sua digestão mais lenta e complexa. Observa-se, ainda,
que alguns egípcios possuíam um modelo específico de recipiente para
alimentação das crianças, geralmente confeccionado com argila do Nilo,
adornado com figuras protetoras, tinha as laterais com um estreitamento e um
bico, por onde o líquido poderia ser ingerido [COELHO, 2012, p. 44-45].
15
Evidências osteológicas apresentam que os egípcios antigos parecem ter tido
uma grande variedade de espécies de animais disponíveis à sua alimentação,
tanto aqueles provenientes da domesticação, quanto obtidos por meio da caça
[WILKINSON, 1847, p. 188]. Ainda assim, as carnes eram iguarias luxuosas no
Antigo Egito, o que pode ser exemplificado nas inúmeras cenas de abate,
cocção e consumo de animais representadas nas paredes dos túmulos de altos
funcionários, clérigos e nobres [TALLET, 2015, p. 321]. Carnes diversas, bem
como frutas, leite, pão e cerveja, além de flores e perfumes, eram devotados
aos deuses em festivais e festins, principalmente aqueles realizados às custas
do faraó [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 13]. As oferendas dadas
regularmente aos deuses ou aos falecidos eram uma parte importante da vida
dos antigos egípcios e os pães, carnes e frutas colocadas em frente à estátua
do deus e nas mesas de oferendas eram o principal meio de sustento dos
sacerdotes e trabalhadores dos templos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 19].
Para além das carnes, os leites também eram vastamente apreciados,
sobretudo de vacas, cabras e asnas que serviam à alimentação de adultos e
crianças, a bebida ainda era elemento ritualístico em diversas oferendas.
Queijos, manteiga, ovos e gorduras também aparentam ter sido amplamente
consumidos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 83]. Compreendendo a necessidade
de que qualquer tentativa de discutir a dieta egípcia deve ser baseada em um
conjunto heterogêneo de fontes – artísticas, textuais, arqueológicas e
epigráficas – apresento a seguir uma breve análise das investigações acerca
do consumo de carnes vermelhas, brancas e suínas na cozinha egípcia e na
ritualística antiga.
16
especialmente baços e fígados, bem como o uso de sangue bovino para
produção de enchidos similares ao chouriço ou morcilha que conhecemos hoje
[BRESCIANI, 2020, p. 70 e 74].
17
preparo, auxiliando a formação de gordura e permitindo, ao contrário da
secagem ou salga, o armazenamento da carne com um valor nutricional mais
alto [TALLET, 2015, p. 323]. Na religião faraônica havia jejuns específicos de
interrupção ao consumo de carne, determinadas classes de pães e vinhos
durante o período de exéquias pela morte do faraó – abstinência que poderia
durar até setenta e dois dias, conforme apontado por Wilkinson [1847, p. 68-69]
em referência à obra de Diodoro Sículo (século I AEC). No interior do contexto
hierático, as carnes vermelhas também eram elementos fundamentais na
oblação aos mortos. Por exemplo, uma refeição completa encontrada em um
túmulo mastaba de Saqqara (datado da II Dinastia) continha pães, mingau de
cevada, peixe cozido, caldo de pombo, codorna cozida, rins, coxas e costelas
de boi, frutas cozidas, possivelmente figos, frutas frescas, tortas com mel,
queijo e uma vasilha de vinho, cuidadosamente depositados ao lado da mulher
ali enterrada [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 23].
Peixes e Aves
O rio Nilo era uma fonte de vida para os antigos habitantes do Egito. Dele
advinha água, animais, rotas comerciais, trabalhos e, toda primavera com as
cheias, permitia um solo rico e fértil para o cultivo de inúmeros gêneros
alimentícios. A diferença nos alimentos consumidos, além de demarcar
condições sociais de ricos e pobres, também se devia às cheias ou secas do
Nilo que podiam representar períodos de abundância ou penúria para a
população [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Não obstante, havia grande
variedade de peixes prosperando em suas águas, dentre os quais conhecemos
barbus, bagres, enguias, siluros, carpas, percas, tilápias e tainhas, cujas ovas
eram usadas no preparo de butarga (espécie de maturação de ovas de peixe
secas e salgadas) [TALLET, 2015, p. 324]. Durante o período romano foram
identificados mais de vinte e cinco tipos de pescados na dieta egípcia. Algumas
dessas espécies – como peixes-elefante (medjed), lepidotes e pargos-
vermelhos (fagri) – eram associados ao mito osiríaco e, por isso, respeitados,
assim havia peixes considerados sagrados e que não podiam ser pescados ou
consumidos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73]. Possivelmente a crença era
de que uma dessas espécies teria engolido o pênis de Osíris quando o deus foi
esquartejado pelo irmão, Seth. Ainda, há variados exemplos de pescados
mumificados em diversos templos egípcios. No papiro Harris constam, dentre
as entregas aos templos efetuadas para as festas de Ramsés III, um total de
441 mil peixes dados aos sacerdotes [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Isso
evidencia que mesmo o tabu relativo aos peixes tinha seus limites e era
heterogêneo no Antigo Egito. Supostamente os peixes constituíam a base
proteica da população egípcia antiga, fossem frescos, secos ou salgados,
alimentavam pobres e ricos, estando tanto na mesa real, quanto na ração dos
soldados [BRESCIANI, 2020, p. 75].
18
tabus olfativos (e não religiosos), como aponta Bresciani [2020, p. 75]. Assim
como no caso da caça, a pesca também era tanto uma profissão, quanto um
hobby no Antigo Egito [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Visando a prática
desportiva os egípcios utilizavam lanças, anzóis e arpões para apanhar os
peixes, enquanto na pesca em grande escala eram utilizadas armadilhas e
gaiolas, em águas rasas, e redes em maiores profundidades [MEHDAWV;
HUSSEIN, 2010, p. 76].
As aves, por sua vez, eram, junto aos peixes, uma das principais fontes de
alimentação dos antigos egípcios, variando desde aves domesticadas até
selvagens [TALLET, 2015, p. 323]. São mencionados e retratados gansos,
grous, pombos, codornas, avestruzes, patos, frangos e galinhas só
ingressaram no cardápio egípcio a partir do período ptolomaico (c. 305 AEC)
[MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 61]. Muitas eram as maneiras de cozinhar os
peixes e aves, sendo a mais comum grelhar em espetos colocados sobre o
lume. Ainda, era possível salgar, defumar, fritar em gordura ou cozer em água
com sal e temperos [TALLET, 2015, p. 323]. A salga era uma maneira
particularmente conveniente de cozinhar o peixe para evitar sua rápida
deterioração, especialmente nos períodos mais quentes, uma vez que
mantinha o peixe comestível por um tempo maior [MEHDAWV; HUSSEIN,
2010, p. 76]. As representações nas paredes das tumbas mostram os métodos
de preparação dos gansos desde o abate, degola, depenagem, corte das asas
e pés até que estejam prontos para a grelha. Em outras ocasiões os gansos
eram salgados e depois armazenados em grandes potes de cerâmica. As aves
também poderiam ser fervidas em caldos ou confitadas, e os pombos eram
amplamente mencionados como parte do banquete funerário, cozidos em um
caldo ou em gordura de ganso [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64-65].
Controvérsia Suína
Fontes tardias apontam para um tabu relacionado ao consumo de porco – os
próprios hebreus, que tiveram contato próximo com o Egito, podem ter criado
diálogos culturais referentes à abstenção de produtos suínos [WILKINSON,
1847, p. 369-373]. Autores gregos como Heródoto (c. séc. V AEC) e Plutarco
(c. séc. II EC), assinalaram a rejeição ao porco. As artes funerárias auxiliam
nessa interpretação dada a ausência de porcos nas representações das
tumbas e sepulturas, os animais eram raramente representados na iconografia
egípcia – menos de uma dezena de cenas os mostram em contexto agrícola
em mais de dois milênios de história [TALLET, 2015, p. 322]. Todavia, como
bem assinalaram Gama-Rolland [2019, p. 85] e Tallet [2015, p. 321-322],
escavações arqueológicas e osteológicas mostram que eram regularmente
consumidos por grupos sociais menos privilegiados, levando a crer que eram
vastamente presentes nos cardápios egípcios. Exemplo disso é um sítio
arqueológico em Amarna, antiga Aquetáton, datado da XVIII Dinastia (1543-
1292 AEC), onde grandes quantidades de ossos de porcos foram encontradas.
Há, portanto, um contraste entre a zooarqueologia que aponta para os porcos,
cabras e carneiros e as representações tumulares, onde predominam os
bovinos. Também há indícios de consumo de carne suína nas festividades que
comemoravam a vitória de Hórus contra Seth ao longo de todo o período
19
faraônico [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 85-86]. É possível que a associação de
Seth, deus do caos, com porcos e javalis tenha sido um dos responsáveis pela
aversão aos suínos em determinadas regiões do Egito, levando ao contexto
assinalado pelos gregos que se contrapõem aos vestígios faraônicos. Não
obstante, porém, como já vimos, são textos tardios e abordam um Egito já
sobre influência greco-romana. Isso explica a afirmação de que os porcos
possuíam lugar de destaque na alimentação egípcia, com a possibilidade de
serem vetados em algumas libações religiosas [BRESCIANI, 2020, p. 74].
Referências
Felipe Daniel Ruzene é mestrando no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando
em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br.
20
UMA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO DE
ISRAEL, por Marlon Barcelos Ferreira
21
importantes, a região era fonte de peregrinação principalmente de Cristãos,
mais também com locais considerados sagrados para o Islã e Judaísmo:
22
objetivo do passado, a Arqueologia Bíblica era desde seu princípio um modo de
utilizar a Bíblia como um guia para encontrar evidências da realidade por detrás
dos episódios bíblicos. Melhor dizendo, como ilustração. A cultura material do
passado antigo contribuiu para transformar a Arqueologia em uma atividade
tanto de fé, como de razão. Tal ciência trata-se de uma disciplina iluminadora,
e o motivo está em suas raízes. Medidas, datação, classificação, são todos
procedimentos acadêmicos, difíceis de aprender e colocar em prática. É,
portanto, incontestável que a Arqueologia depende da razão, e não da fé. De
qualquer maneira, também havia interesses e imperativos nacionalistas,
imperialistas e religiosos.” [Funari, 2018, p.593]
A arqueologia no século XX
Após a Primeira Guerra e o fim do Império Otomano. A arqueologia
desenvolvida na região passou a ser fortemente influenciada, pelo modelo
Histórico-Cultural em expansão na Europa e trazida por arqueólogos e
pesquisadores estrangeiros que vieram pesquisar e realizar escavações no
território do antigo Império Otomano, e que passou para o controle das
potencias europeias no final da Primeira Guerra. A arqueologia histórico-
cultural influenciou a arqueologia de várias regiões do mundo e:
23
“Qual a relação entre a arqueologia, em geral percebida como uma ciência
neutra, e a política, ou seja, a esfera das relações de poder? A arqueologia é
sempre política, responde a necessidades político-ideológicas dos grupos em
conflito nas sociedades contemporâneas”. [Funari, 2003, p.100]
24
“No moderno Estado de Israel a arqueologia tem um papel bem diferente:
confirmar os laços entre uma população recém-chegada e seu passado antigo.
Conferindo um teor de realidade concreta às tradições bíblicas, ela exalta a
consciência nacional e fortalece as reivindicações de colonos israelitas de
direitos sobre as terras que estão ocupando. Em particular, Massada, lugar da
última resistência dos zelotes frente aos romanos, em 73 d.C., tornou-se um
monumento de grande valor emocional e cerimonial, como símbolo do desejo
de sobreviver do novo Estado israelita. Massada foi um dos mais grandiosos
projetos arqueológicos empreendidos por arqueólogos israelitas e desfrutou de
vasta publicidad” [Trigger, 2004, p.227]
Nos últimos anos, a ciência arqueológica ligada à região de Israel tem sido
palco de inúmeros debates e mudanças teóricas e metodológicas. Nesse
sentido, se acirrou um grande debate nos meios arqueológicos. De um lado,
autores que enxergam o papel da arqueologia enquanto meio de provar os
eventos bíblicos e do outro lado, autores que enxergam a arqueologia apenas
como um dos meios disponíveis para se estudar os diversos os aspectos
ligados ao referido período histórico:
“A Arqueologia tem sido relevante tanto para os fieis como para os estudiosos
religiosos, e mais ainda para aqueles que se preocupam com reivindicações
territoriais e culturais. Esse fator continua a ser o mais expressivo e não há
sinais de que tal movimento se reduzirá. Pelo contrário: os conflitos no Oriente
Médio - incluso aqueles que foram baseados ou agravados por conhecimentos
e princípios religiosos - têm se expandido no início do século 21.” [Funari, 2018,
p.596]
Considerações Finais
Ao longo deste breve trabalho procuramos realizar um pequeno levantamento e
algumas considerações acerca de alguns pontos importantes sobre o
desenvolvimento da ciência arqueológica na região do Estado de Israel e
Palestina. Uma arqueologia que surgiu e se desenvolveu em um contexto
25
marcado pela visão religiosa e que logo depois se aproximou e também ajudou
a alimentar um movimento nacionalista que levou a independência e a
afirmação do Estado de Israel no século XX. Destacando assim, a forma como
a ciência arqueológica se relaciona diretamente com as condições políticas e
sociais na qual ela esta inserida na região do Estado de Israel.
Referências
Marlon Barcelos Ferreira é especialista em arqueologia (IAB-UNIREDENTOR),
Mestre em História Social pela PPGHS/UERJ e aluno de Doutorado do
PPGHS/FFP/UERJ - Email: marlonbf@hotmail.com
26
A ARQUITETURA DA ÁGUA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE
A PESCA NO EGITO ANTIGO, por Maura Regina Petruski
27
trabalhos inseridos nesse contexto que enfoquem às atividades pesqueiras no
Egito antigo.
Desse modo, com o objetivo de suprir, mesmo que minimamente essa lacuna,
é que esse texto foi pensado e produzido, buscando trazer algumas referências
sobre a atividade pesqueira desenvolvida em solo egípcio.
Para tanto, não sendo possível abordar sobre esse assunto inserindo-o ao
longo de todo o período em que essa sociedade se edificou, nem tampouco
abarcando todo seu espaço territorial, recortou-se para esse trabalho a região
do Fayum, de onde são provenientes a maior quantidade de vestígios materiais
que possibilitam realizar estudos a esse respeito, bem como o recorte temporal
o Reino Médio.
Essa localidade é uma depressão que está a 44 metros abaixo do nível do mar,
formada por uma área de aproximadamente 12.000 km2. Na atualidade, esse
território consiste em dois complexos de caráter lacustre: o lago Qarun, de
águas salinas, que não se encontra conectado com o rio Nilo, e os lagos
artificiais de Wadi el-Rayan.
28
Com o avanço da arqueologia e uma exploração mais sistêmica e cautelosa no
interior do rio, vários objetos foram e estão sendo encontrados, possibilitando
que se conheça com mais profundidade elementos relacionados a atividade
pesqueira dos egípcios.
Não podemos nos esquecer, como alude Norberto Luiz Guarinello, que os
objetos que a arqueologia estuda são documentos importantes porque “são
uma dimensão essencial das sociedades humanas. São resultado da
intervenção humana sobre a natureza, são a forma humana no mundo, são
elemento fundamental das relações sociais e das atividades humanas (não há
atividades sem objetos, e as atividades mais importantes são as produtoras de
objetos)” (GUARINELLO, 2011, p.167).
Assim, nessa linha apontada pelo autor da importância dos artefatos como
indicadores de acesso a informações de uma dada atividade inserida num
contexto cultural, apontamos para os que fizeram parte do conjunto de
equipamento utilizado pelos egípcios para desenvolverem a captura de peixes,
e que estão possibilitando para que conheçamos na atualidade referenciais
dessa prática, são eles: as estacas de madeira, lançadeiras, anzóis, cabeças
de arpões, fragmentos de redes, flotadores e bolas de fios.
Dessa forma, gostaria de salientar que para a produção dos ‘panos de rede’,
que nada mais é do que o corpo da rede, exige-se do executor da tarefa
técnica e habilidade, principalmente no que se refere ao manuseio das bolas de
fios para se fazer o processo de amarração que tem como objetivo impedir a
29
passagem da presa, uma vez que o espaçamento da malha deve estar
adequada às espécies que serão capturadas, nesse sentido, não se deve
perder de vista a interrelação que deve-se existir entre a fauna aquática e a
fabricação desses artefatos, para que o resultado final seja o melhor esperado.
Para fazer com que as redes afundassem no interior do rio, eram colocadas
pesos nas suas laterais, confeccionados em formas aproximadas a bolas que
ficavam amarradas por alguns centímetros de cordas, ficando soltas abaixo do
pano de rede, funcionando como uma espécie de pêndulo, para puxá-la cada
vez mais para baixo buscando sua permanência no interior do rio.
Dario Bernal Casasola, faz referência a essa técnica utilizada pelos egípcios
mencionando a representação da atividade pesqueira a partir da imagem
encontrada na tumba de Meketre, integrante da XI dinastia e reinante em 2.000
a.C, proveniente da cidade de Deir al-Baheri, que assim fez o relato “a imagem
nos permite confirmar a presença de redes em cuja parte inferior ficavam os
pesos pendurados, fixadas na parte baixa da arte mediante cordas como ilustra
magistralmente o modelo de uma cena pesqueira em madeira policromada”
(CASASOLA, 2008, p.188).
A autora apresenta uma tabela que se reporta aos utensílios que foram
encontrados nas cidades mencionadas, a qual está fixada abaixo como forma
de visualização de maneira conjunta dos locais que compuseram a região do
Fayum em que a pesca se fez presente.
30
Na grande maioria dos registros iconográficos as embarcações que seriam
utilizadas para levar os indivíduos para o interior do rio não foram
caracterizadas na representação, mesmo sendo os barcos elemento de grande
significância no imaginário dos egípcios, uma vez que esse veículo fez parte de
elementos ligados a construção da cosmogonia, religiosidade e questões
relacionadas a morte.
Algo que não se deve perder de vista, é que a atividade pesqueira encaminha
para a existência de um saber fazer, a um acúmulo de reserva de
conhecimento que vão sendo apropriados pelos pescadores a partir de uma
prática concebida ao longo do tempo.
Considerações Finais
A despeito da temática ora em questão apresentada, a pesca em território do
Egito antigo no vale do rio Nilo, é importante salientar que esse trabalho é o
primeiro a ser elaborado inserido nesse recorte por parte da presente
pesquisadora.
Por ser uma aproximação ainda embrionária, adverte-se que essa linha de
investigação na área de História é um campo que ainda precisa ser
desbravado, visto que a quantidade de publicações a esse respeito é reduzida
e poucos são os historiadores que se lançaram a conhecer com mais
profundidade esse aspecto da história dos antigos egípcios.
31
Dessa forma, acredita-se que com os avanços das explorações arqueológicas
na região, novas fontes possam ser descobertas e possibilitem trazer
elementos que auxiliem na ampliação das informações a esse respeito,
preenchendo hiatos que estão abertas até então.
Finalizo, esperando que com esse trabalho possa abrir novos caminhos de
pesquisa para se refletir mais sobre o assunto, e que tenhamos em vista que
pescar não é um ato tão simples como parece.
Referências Bibliográficas
Maura Regina Petruski. Doutora em História pela Universidade Federal do
Paraná. Professora do departamento de História da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG). Integrante do corpo docente da pós-graduação
Mestrado de Ensino de História (PROFHIST) da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG)
32
A ASCENSÃO DA GRANDE PÉRSIA DE CIRO, O GRANDE,
por Willian Spengler
33
um império tão extenso – embora o medo não seja um fator desprezível, ele
em geral leva rapidamente ao ressentimento e à rebelião.
“Não era fácil administrar o vasto império cujas fronteiras atingiam o Mar
Cáspio, o Cáucaso, o Mar Negro, o Mediterrâneo, os desertos da África e a
inóspita Arábia, o Golfo Pérsico e a Índia. Dentro dessa moldura natural e
colossal habitavam povos os mais diversos pela língua, religião e costumes,
povos esses que suscitavam sérios problemas de ordem política,
administrativa, militar e financeira”. [Giordani, 1972, p. 276]
Matt Waters traça, de forma concisa, como esse colosso territorial se constituiu.
Os ancestrais dos persas haviam migrado para o planalto iraniano por volta de
2000 a.C., com as tribos indo-europeias que viviam nas estepes da Rússia
meridional. Entre elas estavam os árias, que chegaram ao planalto por volta de
1000 a.C. Supõe-se que tenham atravessado os desertos do Turquestão e, em
seguida, se dirigido para oeste, junto à extremidade sul do mar Cáspio,
seguindo até as vertentes dos montes Zagros. Um grupo iraniano aparentado,
os medos, estabeleceu-se na região noroeste do planalto iraniano. Os árias
prosseguiram rumo ao sul e, após muitas gerações, “se estabeleceram numa
região que chamaram de Parsa, na orla sudoeste do planalto”. [Waters, 2014,
p. 6]
34
reduzida a ruínas. Em seguida, a própria Assíria, que dominava o Oriente
Médio havia vários séculos, defrontou-se com uma séria ameaça: os medos.
Em seu território nos montes Zagros, eles haviam transformado uma sociedade
tribal e nômade em uma monarquia poderosa e estável. O rei medo governava
a partir de uma fortaleza no topo de uma colina em Ecbátana. Nos últimos anos
do século VII a.C., o rei medo era Ciaxares. Ele reorganizou o exército, criando
formações disciplinadas de cavaleiros, arqueiros e lanceiros.
Matt Waters relata que “os medos eram os líderes de uma grande coalizão de
povos de todo o norte do Irã, uma coalizão unida por uma personalidade forte
como Ciaxares e apenas com o propósito de derrotar a Assíria”. [Waters, 2014,
p. 34]
35
“Na área montanhosa irânica [...] a monarquia meda apoiava-se em um vasto
agregado de reinos vassalos e tributários. Em um destes, que os textos
assírios do século VII conheciam como Párshua, reinava então um certo
Kurash (Ciro), possível antepassado do fundador homônimo do império persa:
este último, com efeito, fez-se chamar, em seu ‘Cilindro’, ‘filho do Grande Rei
Cambises, rei da cidade de Ashan, neto do Grande Rei Ciro, rei da cidade de
Ashan’”. [Asheri, 2006, p. 20]
Astíages decidiu cortar a ameaça pela raiz. Ele ordenou a seu mordomo-mor,
Harpago, que levasse o recém-nascido Ciro para as montanhas e o matasse.
Mas, ao contemplar a beleza e a nobreza do bebê, Harpago não teve coragem
de cumprir a ordem, reza a lenda. Em vez de matar a criança, ele a entregou a
um pastor, para que este a criasse.
Seja qual for a história de seus primeiros anos, Ciro certamente foi educado
como os meninos persas, os quais por tradição aprendiam a “cavalgar um
cavalo, atirar com um arco e falar a verdade” [Heródoto, 2017, p. 97]. Na
realidade, a educação era mais abrangente, incluindo o uso de outras armas, o
combate a pé e o treinamento para sobrevivência em regiões desérticas. Ao se
tornar adulto, Ciro era hábil com o arco, bastante sábio para sua idade e
extremamente ambicioso. Quando tomou o lugar de seu pai em 559 a.C., ele
unificou as tribos persas e transferiu a corte para Elam, onde reconstruiu a
antiga capital, Susa, que se tornou o centro administrativo e logo ele revelou
sua independência: iniciou conversações diplomáticas com a Babilônia –
confirmando os piores temores de Astíages.
Este, por sua vez, havia se tornado cada vez mais tirânico e uma oposição
silenciosa começou a se organizar entre os medos. Em 550 a.C., Astíages
enviou um exército para humilhar seu ambicioso neto. As duas forças
encontraram-se na árida planície próxima a Pasárgada e, logo no início do
confronto, a maior parte do exército medo desertou para o lado inimigo.
Astíages foi preso por seus próprios generais e conduzido até Ciro. Em vez de
degolar seu prisioneiro, Ciro demonstrou a generosidade que caracterizaria
todo seu reinado: embora destituísse o avô de sua posição e seus títulos,
poupou sua vida. Em seguida, marchou em triunfo para Ecbátana e assumiu o
controle do império medo.
Além dos territórios, Ciro herdou as instituições dos medos: uma eficiente
burocracia, um exército poderoso e cerimoniais majestosos. Os funcionários
36
mantiveram seus cargos e trabalharam em aparente harmonia com os recém-
nomeados “colegas” persas.
Acerca das tropas persas, Nick Sekunda registra que Heródoto cunhou a
alcunha de “Os Imortais”, para a infantaria pesada de elite, pois “suas divisões
eram dotadas de força infalível, cada morto era imediatamente substituído, de
forma que o ímpeto ofensivo era sempre mantido”. [Sekunda, 1992, p. 6]
O passo seguinte de Ciro foi ampliar seu território. Seu alvo inicial foi a Lídia,
antiga inimiga dos medos. Desde a época da batalha do eclipse, a Lídia
prosperara sem cessar. Os cofres reais estavam tão repletos que seu
soberano, Creso, era considerado a personificação da riqueza extravagante.
37
Nos anos seguintes, Ciro consolidou seus domínios no planalto iraniano e
ampliou seus territórios a leste. Ao alcançar as margens do atual Syr Daria,
finalmente interrompeu seu avanço. Ciro fez daquela desolada região a
fronteira setentrional do império e mandou construir uma série de fortificações.
Entretanto, não se contentaria com as vitórias já alcançadas. A Babilônia – o
mais importante centro cultural do Oriente Médio – ainda se conservava
independente, embora estivesse quase inteiramente circundada por territórios
persas. Aquela região tornar-se-ia o objetivo seguinte de Ciro.
Nabucodonosor, que subira ao trono em 604 a.C., circundara a cidade da
Babilônia com espessas muralhas, em cujo topo construíram-se duas fileiras de
casas separadas por uma rua que permitia a passagem de uma carruagem
puxada por quatro cavalos. Entretanto, sua morte, em 562 a.C., desencadeara
um período de descontentamento. Seu sucessor, Nabonido, negligenciou os
negócios do Estado e desperdiçou tempo e riqueza em um culto ao deus lunar
Sin, afastando-se do poderoso clero do principal deus babilônico, Marduk.
Ademais, Nabonido permaneceu onze anos longe da capital, empenhado numa
campanha militar na Arábia. “O desgoverno e o suborno eram desenfreados, os
camponeses foram oprimidos e seus campos ficaram sem cultivo”. [Olmstead,
1999, p. 45]
Dentre os beneficiados por esse regime estava o povo de Judá – grande parte
do qual vivia em exílio forçado na Babilônia. Os desterrados não se esqueciam
da época não muito distante, em que possuíam seu próprio reino independente
nas colinas da Judéia. Isso proporcionou a Ciro uma oportunidade na distante
Palestina. Assim, em 537 a.C., ele autorizou os exilados a retornarem à Judéia.
As gerações seguintes considerariam Ciro como “o messias persa”.
38
Com um aliado agradecido na Palestina e sua fama consolidada, Ciro passou a
controlar o corredor até os tentadores campos de cereais do vale do Nilo.
Estava aberto, portanto, o caminho para a conquista do Egito. Mas, enquanto
Ciro se preparava, sua atenção foi desviada para a fronteira nordeste do Irã.
Uma tribo de nômades das estepes, os masságetas, estava saqueando a
região da fronteira entre os mares Cáspio e Aral.
Em 530 a.C., Ciro dirigiu-se para o norte, a fim de repelir os invasores. Essa foi
a única batalha que perdeu, morrendo junto com a maior parte de seus
homens. Heródoto relata que seu corpo foi levado de volta a Pasárgada e
sepultado num modesto mausoléu de pedra, que ele próprio projetara. Durante
muitas gerações, todos os meses os sacerdotes persas ali sacrificaram um
cavalo em homenagem ao grande conquistador.
“No espaço de cerca de vinte anos, Ciro II liderou uma série de campanhas
militares em que submeteu os reinos do mundo conhecido, Média, Lídia e
Babilônia, bem como territórios a leste de Parsa, controlando uma área
aproximadamente equivalente ao Oriente Médio moderno, estendendo-se
desde Turquia e a costa do Levante até as fronteiras da Índia, e das estepes
russas ao Oceano Índico. Isso foi fenomenal e uma realização notável para um
único governante, cujo carisma e a habilidade militar permitiu-lhe comandar um
vasto exército multiétnico, e que impôs uma organização política que
permaneceu uma ferramenta eficaz por mais de 200 anos”. [Brosius, 2006, p.
8]
Referências
39
ASHERI, David. O Estado Persa: ideologias e instituições no império
aquemênida. São Paulo: Perspectiva, 2006.
SEKUNDA, Nick. The Persian Army 560-330 BC. Osprey Publishing, 1992.
40
OS VENTOS SOPRAM DO ORIENTE: OS CONHECIMENTOS ORIENTAIS
ADENTRAM NA EUROPA, por Gabrielle Legnaghi de Almeida e
Anelisa Mota Gregoleti
Introdução
Com o decreto de Justiniano em 529 d.C., que determinava o fechamento da
escola de Platão, a preservação e propagação das obras e pensamentos dos
grandes filósofos gregos, que outrora atingira o ápice e regera os
conhecimentos da sociedade em seus mais variados âmbitos como na política,
astronomia, ciência, e ainda, na medicina, teria como destino a sua decadência
e desaparecimento (BITTAR, 2009). Apesar do momentâneo esquecimento
acerca dessas teorias no mundo ocidental, pelo menos até as trocas e legados
culturais encontrados na Península Ibérica durante todo o processo de
reconquista de terras arabizadas ou no sul da Itália, foi através dos povos
orientais que essas postulações foram preservadas através do tempo. Com os
árabes, elas voltaram a resplandecer.
41
período do reinado de Harun-al-Rashid (786-809), quando jovens cientistas da
região da Pérsia foram levados à Bagdá para essa função, como pontua Gies
(1995). As evidencias da aparição de Hunayn Ibn-Ishaq (809-873) que, devido
a seus conhecimentos, logo alçou posição de destaque na sociedade árabe,
tornando-se inicialmente, o médico do filho do monarca. E ainda, em 830, é
nomeado ao cargo de diretor da Casa da Sabedoria, local cuja atribuição era
exatamente o armazenamento e tradução destas obras. Para além, outros
polímatas também foram fundamentais para a conservação, disseminação e
transmissão das teses gregas, tais como: Avicena (980-1037) e Averróis (1126-
1198) (BITTAR, 2009).
Desenvolvimento
O que pode ser considerado como sendo a “idade de ouro” da medicina
islâmica é comumente datada entre os séculos VIII e XIII. Os primeiros séculos
do período cristão, as invasões repetidamente denominadas como “invasões
bárbaras”, as grandes epidemias, e o anti helenismo da Igreja Católica,
contribuíram para a destruição de inúmeros textos antigos de autoria grega e
romana, que constituem as bases da civilização do Ocidente. Porém, desde o
século V, a nova religião islâmica fomenta a preservação do conhecimento
clássico, que ainda resistia, e que mais tarde facilitaria sua recuperação na
Europa. “É o respeito dos conquistadores árabes pela sabedoria que faz com
que se convertam na pedra fundamental do conhecimento greco-romano,
durante vários séculos, enquanto a Europa medieval mantém escassos
contatos com os textos clássicos” (COSTA; MENESES, 2018, p. 22)
42
A medicina presente no oriente em meados do século IX pode ser interpretada
como resultado de uma mescla entre a cultura árabe, de influência oriental,
com os saberes clássicos de Platão e Aristóteles. No século XI fora traduzido
obras médicas árabes, visando mapear por seu intermédio a herança da
medicina greco-romana. Essas traduções constituíram-se quando as práticas
de cura europeias passaram a ser consideradas oriundas de um saber
específico na Europa, sendo um dos pilares para desenvolver a escolástica
médica do século XIII (SANTOS, 2014, p. 123).
Do final do século XI, até o início do século XIV, a maciça tradução dos textos
orientais e a dominação dos ensinamentos neles contidos formaram um corpo
de obras que desenvolveram o cenário e a arte de curar na Europa. O conjunto
dessas obras fez com que os conhecimentos anatômicos ganhassem clareza e
precisão. Os grandes manuais de medicina de origem árabe, como o “Cânon”
de Avicena ou o Colliget de Averróis, possibilitaram um olhar mais atento
direcionado às questões anatômicas, atribuindo-lhe um papel mais definido.
(MANDRESSIM, 2005, p. 416). Com esta percepção sobre anatomia, e a
importância das dissecações para o conhecimento das funções internas, pode-
se perceber a tendência de conhecer as partes do corpo. Além de uma
observação de seu interior pautadas na experiencia, não restringindo apenas
aos limites dos manuais e registros escritos.
Abu Ali Huceine ibne Abdala ibne Sina, latinizado como Avicena, ou,
perpetuado como al Sheikh al-Rais, nasceu em Afsana por volta do ano de
980, sendo, possivelmente, de origem persa, foi um dos mais importantes
filósofos e médicos do Islam e do período medieval, produzindo cerca de 250
obras de temas diversos. (DE MACEDO; CINTRA, 2009, p. 1). Dentre seus
escritos, 16 deles destacam-se como sendo de caráter médico, corroborando
para sua ampla utilização nas disciplinas de Medicina teórica e Medicina
43
prática das Universidades de medicina da Europa, no século XVI, juntamente
com os manuais de clássicos como Hipócrates e Galeno (REBOLLO, 2010).
44
o mais importante, Kitabal-Kulliyyat al-tibbiyya conhecido no mundo latino como
Colliget (BÁRCENA; NOGUERA, 1996-97, p. 7).
Conclusão
No decorrer desse trabalho procurou-se, ainda que brevemente, demonstrar o
caminho da informação e conhecimento de origem grega, e postulações dos
grandes filósofos que, após sua crise, foi reencontrado e transformado em uma
febre no mundo árabe. Além de atuar como ator fundamental na filosofia da
região que estava surgindo. Entende-se a importância dos grandes sábios
muçulmanos e tamanha sua contribuição, dada às mais diversas áreas do
saber como astronomia, aritmética e, principalmente, na filosofia, ciências
naturais e medicina. Dentre numerosos eruditos, o legado de Avicena e
Averróis é notável. Através de seus conhecimentos somados as postulações de
Hipócrates e Galeno, a medicina encontrou uma possibilidade de reflorescer na
sociedade árabe, além da possibilidade de perpetuar-se através do tempo,
chegando ao ocidente pelas heranças e trocas culturais, principalmente na
região da Península Ibérica.
Referências
Gabrielle Legnaghi de Almeida – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Anelisa Mota Gregoleti – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
45
GAUZ, V.; PINHEIRO, L. V. R. Fluxo da informação entre colecionadores,
escribas e cientistas árabes na pré-institucionalização da ciência, séculos IV ao
XV. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA
INFORMAÇÃO, 2012, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: [s. n.], 2010
GIES, F.; GIES, J. Cathedral, forge, and waterwheel: technology and invention
in the Middle Ages. New York: Harper Perennial Ed., 1995.
46
A 'AṣABĪYAH COMO PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA A PARTIR DE IBN
KHALDŪN, por Luiza Santana Locatel Araujo
Introdução
Ibn Khaldūn, muçulmano do século 14, da cidade de Túnis, dedicou sua vida
ao conhecimento. O polímata é autor da Muqaddimah, livro no qual objetivou
estudar, através de uma metodologia própria, sua sociedade a partir de
condições materiais e os fatores que orientariam os modos de vida dos povos.
Nascido em Túnis, em 372 AH, no primeiro dia do mês de Ramadan [Ibn
Khaldun, 1958], foi educado por diversos mestres ao longo de sua vida e
recebeu uma educação típica de um integrante da elite, desenvolvendo
atividades políticas no norte da África e na Península Ibérica [Bissio, 2012].
47
baseando-se em fatos comprovados, para fazer jus ao título de ciência. Para
isso, o historiador não só precisou reorganizar os saberes disponíveis até
então, mas selecionar aqueles que poderiam ser provados.
'AṢabīyah e temporalidade
A 'aṣabīyah, pois, é posta como um fator determinante para o poder político de
um povo, visto que, conforme a tribo ou clã atinge certo ponto de estabilidade,
adquirindo poder e recursos, a busca dos governantes pelo luxo e seu
descuido para com a população declara a ruína de seu poder. “Tudo isso
demonstra que o luxo, desde que introduzido numa tribo, [aniquila-lhe as
forças] e a impede de fundar qualquer império” [Ibn Khaldun, 1958, 246.]. No
mesmo sentido, afirma que, da mesma forma que gregos e persas haviam sido
48
grandes potências, haviam sido substituídos pelos árabes, que, por sua vez,
haviam sido substituídos pelos berberes na Espanha e pelos turcos ao leste.
No que tange à análise de tal concepção, é possível observar a perspectiva de
história cíclica presente em algumas análises:
“Sua noção de declínio fundava-se no tempo cíclico, cuja base supunha que o
futuro distante era igual ao passado também distante, constituindo assim uma
repetição. Cada ciclo comporta uma fase ascendente e uma descendente e, no
caso de Ibn-Ḫaldūn, quando o passado representava o modelo a seguir
passava a ser considerado superior a um presente tido como decadente.” [De
Araujo, 2018, p. 202]
Por outro lado, Senko, prefere tratar a concepção da 'aṣabīyah como uma
espiral progressiva:
49
reconhecido por seu prestígio e possibilitando acesso a diversas informações
importantes para seu ofício de escritor. Diante disso, é necessário
compreender a Muqaddimah como uma resposta fornecida por Ibn Khaldūn
aos acontecimentos vivenciados e estudados por ele [Senko, 2013]. Consoante
a isso, é importante ressaltar o cenário no qual se encontrava o autor da
Muqaddimah: Um mundo assolado pela peste e outras diversas epidemias que
provocaram instabilidade nas produções e, consequentemente, ondas de fome
e miséria, além de constantes declínios e ascensões políticas. A gravidade do
problema foi tanta que em muitos lugares a própria lei islâmica teve de ser
alterada: o crescente número de mortos forçou os juristas a alterarem o
sistema de divisão de heranças para evitar um colapso. [Cristi, 2017].
Outrossim, Ibn Khaldūn presenciou o islã perdendo terreno na Península
Ibérica e o declínio do Império Mameluco e outras dinastias, como a dos
Almorávidas e dos Almôadas, duas dinastias que se formaram no interior,
governaram Túnis e declinaram rápido., Ibn Khaldūn olhava ao redor e via
declínios e ascensões.
Visando exemplificar tal separação, Renato Cristi expõe que Ibn Khaldūn faz
críticas aos erros de cálculos e exageros presentes na bíblia e também em
outros livros. Trata-se, de forma alguma, uma negação da religião, muito
menos de uma separação entre a ciência e o divino, mas de aceitar que há
fenômenos causados por Deus e fenômenos causados pelo próprio homem:
“Evitando una frontal oposición entre la ciencia y la religión, Ibn Jaldún acaba
por definir dos modos de reflexión, complementarios, si bien distintos: el
discurso racional para las ciencias humanas, pues, al fin y al cabo, el hombre
está dotado de pensamiento, y el discurso de la fe para las ciencias religiosas,
basado el mismo en los textos revelados.” [Martos Quesada, 2008, p. 11)
50
Nesse sentido, Ibn Khaldūn mantém-se firme ao realizar críticas à um fazer da
História ausente de rigor, fabuloso ou fantasioso. Em sua concepção, a História
seria o tesouro de ensinamentos, o objeto de estudo dos sábios, que
transmitiria o conhecimento dos humanos entre gerações. Nesse sentido, a
História, posta como mestra, revelaria os segredos do passado para os
homens do futuro. E, por isso, constituiria um importante ramo da filosofia,
posta junto às ciências. [Ibn Khaldūn, 1958, p. 3]
Conclusão
O polímata, portanto, usa da 'aṣabīyah como um instrumento metodológico
para entender a ciência da sociedade, sobretudo baseando-se em fatos
comprovados, para fazer jus ao título de ciência. Observa-se, portanto, que Ibn
Khaldūn apresenta a História a partir dos feitos do passado organizados por um
método. Ademais, o filósofo discorre em seu livro acerca das civilizações
nômades e sedentárias, assim como suas organizações políticas e instituições,
seus feitos econômicos e suas ciências, relatando fatores culturais e materiais
da sociedade. Outrossim, ao falar de 'aṣabīyah como necessária para a
estabilização de um império, também fala da falta de 'aṣabīyah ligada a
degradação da sociedade sedentária que, ao se esbaldaram de luxos e
ignorarem a diminuição da 'aṣabīyah, estariam assinando sua queda. Portanto,
caso não houvesse uma mudança de comportamento, todas as sociedades
estariam destinadas ao declínio com comportamentos individualistas e sem
nenhuma coesão social. Isso se faz relevante pois, para o autor, a 'aṣabīyah
estaria postulada como a negação do individualismo, visto que, agindo sozinho,
ou seja, sem o sentimento de grupo, os objetivos dificilmente iriam coincidir, o
que abriria caminho para ambição, caracterizando a antítese da civilização. É
importante ressaltar que Ibn Khaldūn não utiliza da noção de coletivo para
legitimar qualquer tipo de etnocentrismo, mas busca valorizar o indivíduo como
elemento não isolado do mundo, inserido em seu contexto. Enquanto nega o
individualismo, exalta a individualidade, visto que tal fator seria um reflexo
cultural do local no qual o homem vive [Katsiaficas, 1999].
Referências
Luiza Santana Locatel Araujo é graduanda de História na Universidade Federal
do Espírito Santo [UFES] e foi aluna de mobilidade internacional na
Universidade de Évora. Pesquisou o materialismo e a dialética na filosofia
social de Ibn Khaldūn em Iniciação Científica sob orientação do professor Dr.
Júlio Bentivoglio. Contato: Luizalocatel.hist@gmail.com
51
BISSIO, Beatriz. Unidade e continuidade no pensamento político árabe-
islâmico: Ibn Khaldūn e a ciência da civilização. Comunicação & Política, [S.l.],
v. 30, n. 3, p. 25-53, 2012.
52
SENKO, Elaine Cristina. Sobre a proposta historiográfica de Ibn Khaldūn: a
responsabilidade do historiador no tratamento de dados numéricos. NEARCO-
Revista Eletrônica de Antiguidade e Medievo, v. 4, n. 2, p. 138-146, 2011.
53
O EGITO COMO COSMÓPOLIS DO MUNDO
ISLÂMICO A PARTIR DO RELATO DE IBN BAṬṬŪṬAH
[1304-1377], por Pietro Enrico Menegatti de Chiara
Introdução
O século XIV é imerso em inúmeras complexidades e deslocamentos, tanto de
pessoas quanto de culturas. Os oceanos, desertos, florestas não eram
barreiras, uma vez que eram cruzados por várias ocasiões. Uma figura que
representa isso é Ibn Baṭṭūṭah [1304-1377], famoso viajante que dedicou quase
toda a sua vida a deslocar-se. Quanto à distância percorrida, ele foi um dos
maiores viajantes do período medieval. Muçulmano, nasceu em Tânger, em
1304, e dali partiria em viagem em 1325, com apenas 21 anos. Sua intenção
era peregrinar a Meca, um dos pilares do Islã, entretanto ele foi além e
percorreu grande parte do mundo conhecido na época. Ele passou pelo norte
da África até Cairo, chegou a Meca, Pérsia, Palestina, Iraque, Iêmen. Daí
cruzou para a África pela região litorânea índica: esteve em Mogadíscio, Kilwa.
Então retornou para a Península Arábica, visitando a Anatólia nesse momento.
Depois parte para a Europa: leste europeu, sul da Rússia, Constantinopla.
Depois vai de encontro rumo ao extremo oriente: Delhi, Malabar, as ilhas
Maldivas, o atual Sri Lanka, o sudeste asiático e a China. Ele retorna para sua
terra natal apenas em 1349, vinte e quatro anos depois de partir. Porém, logo
viajaria para al-Andalus [Península Ibérica] e atravessaria o Sahara rumo ao
Império do Mali [Mànden Kúurufáaba].
54
Ao todo ele percorreu mais de 100 mil quilômetros em mais de 30 anos de sua
vida em viagem, não é à toa que ele era chamado de “príncipe dos viajantes”.
Para efeito de comparação com Marco Polo, famoso viajante veneziano, o
marroquino deslocou-se uma distância cerca de três vezes maior. Ibn Baṭṭūṭah,
ao retornar narraria sobre sua viagem para um poeta Ibn Juzayy[1321-1357]
com o intuito de registrar a viagem, além de adicionar uma beleza literária e
contribuir também com poemas e figuras de linguagem de modo a enriquecer a
obra. A escrita foi possível também graças ao financiamento do sultão marínida
Abū ᶜInān Fāris [1329-1358]. Contido no gênero riḥlah, o relato de viagens de
Ibn Baṭṭūṭah também se preocupa em ser uma jóia literária [FANJUL; ARBÓS,
2017, p. 26] Entretanto, para a existência, o sucesso e o relato de uma viagem
tão ambiciosa e bem sucedida foi imprescindível um contexto bem estabelecido
para as viagens que foi construído pelo Islã.
55
O mundo islâmico possui diversos marcos em sua cronologia e o ano de 1258
é um deles, isto é, a invasão mongol de Bagdá. De maneira clássica, essa data
é tida como o fim da era de ouro islâmica. A queda de Bagdá em 1258 criou um
vazio ideológico no mundo sunita [Demant, 2004]. Com as ruínas do antigo
centro, inclusive descritas tanto por Ibn Baṭṭūṭah, o Egito assumiu uma posição
central islâmica em diversos aspectos. Um dos pontos mais simbólicos é
quando, no século XII, tal local recebe o califado abássida restaurado. Como
um fantoche, de fato, mas a figura do califa sempre foi dotada de grande poder
simbólico, ainda mais em uma posição que marcaria um novo centro. Ademais,
as rotas comerciais confluíram para o Egito de modo a colaborar com a
circulação de riquezas e reunir pessoas de todos os lados da ummah [a
comunidade muçulmana]. Não é à toa que Jean Claude Garcin [2010, p. 429]
afirma que Cairo tornou-se a nova Bagdá, sendo capital de todos os países do
Islã. O objetivo desse texto é justamente situar Ibn Baṭṭūṭah em meio desse
centro de poder e perceber como tais aspectos descritos se fizeram presente
na riḥlah
O itinerário dele já revela Miṣr [Egito em árabe] como uma parada lógica e
crucial entreposto para a circulação nas terras na qual o Islã tinha controle
político [dār al-islām], acordos [dār al-ṣulḥ] ou até para o dār al ḥarb [lugares no
qual o Islã não tem controle político]. Pessoas de todos os locais circulavam em
Cairo, a transformando em uma cosmópolis que reunia uma grande
diversidade. Vale ressaltar que o mansa Musa, liderança malinesa que
popularizou-se no mundo islâmico, antes de peregrinar à Meca, esteve no
56
Egito. Ou então, os relatos da Geniza do Cairo que indicam presença de judeus
das mais diversas origens e atuações. Ou seja, de judeus comerciantes da
costa índica [Fauvelle, 2018] a lideranças islâmicas que tinham que cruzar uma
enorme distância; Cairo reunia pessoas de todos os locais, tanto imersas ao
Islã quanto fora.
57
ponto de ligação entre os vários continentes. O local tinha a oferecer os
produtos do extremo oriente, tanto da rota da seda, das especiarias, do ouro
que envolvia a África Subsaariana. O mapa a seguir retrata bem isso, mesmo
fazendo um recorte no século XIV no contexto otomano.
58
incessante. Leonardo de Pisa , mais conhecido como Fibonacci, por exemplo,
teve contato com os números indo-arábicos no Norte da África em meio a
viagens comerciais com seu pai. Há, inclusive, tratados dos almôadas com
cidades comerciantes italianas [De Mas Latrie, 1865]. Há conflitos, mas reduzir
o medievo a tais relações é criar uma imagem completamente inverossímil e
sem embasamento. Sem tal filtro é possível compreender melhor a amplitude
comercial do Egito, além do relato de Benjamin de Tudela que descreve à
exaustão as regiões europeias que ele percebeu que tinham tal contato. Aliás,
tal centralidade egípcia era reconhecida e não é toa a sucessão de conflitos
como a Batalha de Diu realizada por Portugal visando o controle comercial. O
avanço colonial europeu foi feito à sombra das antigas rotas muçulmanas com
a suplantação dos muçulmanos [Rodney, 2010].
Outro ponto que marca o que foi levantado é que no Cairo do século XIV havia
um qāḍī, um juiz islâmico, de cada escola de interpretação jurídica sunita
[madhhab] assessorando o sultão. São 4 escolas mais populares e
consolidadas no modo de lidar com a sociedade e cada uma costuma ter um
território majoritário no mundo islamico. São elas a Ḥanafī; Shāfiᶜī; Ḥanbalī e
Mālikī. Al-andalus e o maghreb, por exemplo, seguiam a tradição mālikī. Nesse
sentido, apesar de o Egito ter suas escolas consolidadas e uma hierarquia,
inclusive levantada por Ibn Baṭṭūṭah, a presença de um qāḍī para representar
cada escola diz muito sobre o cosmopolitismo do lugar. O viajante, inclusive,
gasta alguns parágrafos para expor em sua narrativa essa característica que
era diferente da qual a maghrebina estava acostumada. Ele aponta que o
sultão mameluco an-Nāṣir examinava ações judiciais com a presença dos
quatro juízes à sua esquerda. O tangerino conta um caso de uma intriga na
qual um dos juízes se ausenta da reunião, o que faz o sultão desaprovar. Neste
relato, pode-se ver que o poder mameluco prezava ter em suas decisões a
presença dos 4 juízes:
“[...] Al-Malik an-Nāṣir ordenou que fosse feito dessa forma, mas quando o juiz
hanafi soube disso ficou descontente com a medida e deixou de assistir às
reuniões. Al-Malik an-Nāṣir desaprovou a ausência e, uma vez conhecida a
causa, ordenou que ele permanecesse, após que o camareiro o agarrou e o fez
sentar onde o sultão decidiu, ao lado do juiz mālikī.” [Ibn Battuta, 2017, p. 168-
169]
Conclusão
Os relatos de viagem como a riḥlah, além de informar sobre as terras distantes,
serviam para promover a unidade da ummah em meio a diversidade composta
do Islã. Dessa forma, o apontamento das rotas egípcias como caminhos
plausíveis até Meca promove que o peregrino norte-africano teria que passar
pelo local para chegar até a Kaᶜbah. Não se pode perder de vista as intenções
discursivas ao abordar tais terras e as escolhas empregadas na representação.
O Egito aparece como caminho para chegar até Meca, mas também como um
local em que abunda a diversidade, tanto no passado como no presente. De
fato, essas terras eram mais conhecidas do público-alvo do que a China, por
exemplo.
59
Ibn Baṭṭūṭah fala a partir da identidade islâmica e para um público muçulmano
sunita maghrebino, o que implica em uma série de definições em seguida. Com
o Egito não é diferente, afinal ele está imerso na lógica narrativa do viajante.
No mais, é possível, a partir do príncipe dos viajantes, extrair muitos
fragmentos que estão inseridos na complexidade do Egito. Uma cidade tão
complexa que expressa diversas possibilidades narrativas. Há pessoas para
todo tipo de situação que for necessária, de acordo com a descrição do
viajante.
Este trabalho utilizou a riḥlah como uma fonte para compreender melhor o
papel da centralidade egípcia no Islã no século XIV e como ela se relacionava
com o itinerário, além da construção de uma imagem particular por Ibn
Baṭṭūṭah. As descrições comerciais com destaque na estrutura portuária
magistral ou o cemitério com sua imensidão de pessoas importantes para o Islã
dizem muito sobre o Egito como entreposto e uma cosmópolis em que
reuniam-se pessoas de diversos locais do mundo. Entretanto, isso não se
revelou uma particularidade islâmica, mas, de fato, foi muito aproveitado pelos
governantes mamelucos que reinavam um local com braços comerciais que
tocavam boa parte do mundo conhecido. Ao mesmo tempo que o filho do Emir
de Nahrāriyya estava a serviço na Índia, como destacou Ibn Baṭṭūṭah, o local
recebeu embaixadas e peregrinos subsaarianos, inclusive a figura de liderança
como pode registrar al-ᶜUmarī [2000], contemporâneo ao tangerino.
Referências
Pietro Enrico Menegatti de Chiara é graduando finalista do curso de História na
Universidade Federal do Espírito Santo [UFES] e foi aluno de mobilidade na
Universidade de Évora. Durante dois anos pesquisou em Iniciação Científica,
orientada pelo Prof. Dr. Sérgio Alberto Feldman, sobre Ibn Baṭṭūṭah e
alteridade. Contato: pietro.mengatti@gmail.com
60
BIANQUIS, Thierry. "O Egito desde a conquista árabe até o final do Imério
Fatímida [1171] In. EL FASI, Mohammed [org.]. História Geral da África, III.
África do século VII ao XI. Brasília: UNESCO, 2010.
GARCIN, Jean-Claude. "O Egito no mundo muçulmano [no século XII ao início
do XVI]" In. NIANE, Djibril Tamsir [org.]. História geral da África, IV: África do
século XII ao XVI. Brasília: UNESCO, 2010.
IBN BATTUTA. A través del Islam. [trad., Introd. e notas: Serafín Fanjul;
Frederico Arbós]. [S.l.]: Titivillus, 2017.
WAINES, David. The odyssey of Ibn Battuta. Londres: I.B. Tauris, 2010.
61
O MUNDO DE AL-MA’ARRI: A VISÃO ANTES DO ORIENTE, por
Rafael R. M. Ramos e Rosana Pereira de Freitas
Said afirma: “[...] o que de fato importa é que o humanismo é nossa única
possibilidade de resistência – e eu chegaria mesmo ao ponto de dizer que ele é
nossa última possibilidade de resistência – contra as práticas desumanas que
desfiguram a história humana.[...]” [Said, 2007, p. 26]. Afinal o desejo de
conhecer para coexistir se distingue do desejo de conhecer para dominar. O
conhecimento colonial triunfa no momento em que torna um indivíduo ocidental
um não-oriental, reflete ao lado deste o indiano Ashis Nandy. Esta operação de
exclusividade acarreta numa visão de mundo fundando uma autoimagem e
criando uma resposta às necessidades da colonialidade, dizendo: “Ele somente
podia ser não oriental; ele somente podia estar continuamente engajado em
estudar, interpretar e entender o Oriente como sua identidade negativa.”
[Nandy, 2015, p. 35].
62
que transcende a história, em vez de vê-la em sua relatividade e em sua
historicidade.” [Al-Jabri,1999, p. 29]. O intuito de Al-Jabri é nos tornar aptos a
elaborar um método e uma visão de mundo modernos de tradição.
Considerando assim como François Jost, o Corpus Literarum não se limita
apenas ao lido nas literaturas europeias, ele diz: “A China, o Japão, o Oriente
Médio, as Índias Ocidentais e a África podem muito bem, como qualquer região
europeia contribuir para uma compreensão da essência literária, para definir
suas características e determinar critérios para julgamentos de valor.” [Jost,
1974, p 343]. Neste sentido, inequivocamente a Filosofia das Letras proposta
se torna uma aliada aos estudos da História da Arte. Como atributo da
aproximação tais objetos vistos lado a lado recuperam suas matizes. Observar
o que diz a literatura de um grupo em sua honestidade contribui de modo ainda
pouco experimentado, por isso é relevante termos cuidado ao examinar os
produtos de uma cultura nos certificando de levar em conta diferentes
meditações.
É sintomático que nosso campo ainda não tenha superado estas lacunas, mas
também nos dá pistas do quanto o orientalismo ainda não é uma língua morta
entre nós. Está presente em Burckhardt, Riegl, Wölfflin, Hauser, Panofsky,
Jansson, Gombrich e muitos outros, aparecendo explicitamente em juízos de
valor, ou se fazendo presente pela omissão. Said reflete sobre as
generalizações inventadas pelo ocidente e comenta seu desempenho na
formatividade do olhar, dizendo: “Num lado, há ocidentais, e no outro, há
árabes-orientais; os primeiros são (em nenhuma ordem particular) racionais,
pacíficos, liberais, lógicos, capazes de manter valores reais, sem suspeita
natural; os últimos não são nada disso.” [Said, 2007, p 85]. Este pensamento
revela as vias pelas quais o ocidente inventou um oriente exótico, caótico,
fundamentalista, preguiçoso, esquecido. Devemos ficar atentos às diferentes
epistemologias em outros modos de formular ideias. Historiadores da arte
como Necipoğlu, Grabar, Rabbat, Bahnassi, entre outros, contribuem para
conhecermos as vias de acesso à uma leitura mais aclimatada àquilo curado
por artes árabe-islâmicas.
63
diz Hourani: ”Um mundo onde uma família se mudava do sul da Arábia para a
Espanha, e seis séculos depois retornava ao lugar de origem e continuava a
ver-se num ambiente familiar, tinha uma unidade que transcendia as divisões
de tempo e espaço [...]” [Hourani, 1994, p. 17]. Uma arte islâmica
invariavelmente trará consigo uma densa carga árabe em sua visão de mundo,
pois é um monoteísmo o qual fala e escreve em árabe, pensa das relações
tribais e seus costumes, olha para as tradições como patrimônio e requer
conhecimento de suas fontes. Ele inclui: ”[...] um conjunto de conhecimentos,
transmitidos através dos séculos por uma sequência conhecida de professores,
preservava uma comunidade moral mesmo quando os governantes mudavam
[...]” [Hourani, 1994, p. 18].
64
O hakim de Ma’arra se tornou conhecido ao produzir um novo estilo de poesia
ao seu tempo, uma modernidade antes das modernidades. Abu L’ala Al-Ma’arri
é lembrado por inaugurar um estilo literário com fortes retomadas da poesia
pré-islâmica ao lado do sufismo, de caráter fatalista, profundamente existencial
e sofisticado. Verificamos que a estrutura da poética de Al-Ma’arri é oral e
escrita, o rigor da palavra entoada também se encontra na grafada, nosso
poeta cria imagéticas profundamente simbólicas, herméticas e extensas.
Lembrado por longas passagens e intermináveis sequências de enigmas para
o ouvinte ou leitor interpretar. As inovações para a produção poética estão em
temas de filosofia, religião e ciências, para que não esqueçamos dos meios nos
quais ocupou-se das artes e humanidades de seu tempo. Diz Ramírez Del Río:
“As ideias místicas e gnósticas encontraram neste período um excelente
terreno fértil, pois as situações em que as instituições religiosas e políticas
pareciam falhar promoveram um regresso à outras formas de espiritualidade,
sentidas como mais autênticas e mais eficazes na resolução dos problemas
humanos básicos.” [Ramirez Del Rio, 2003, p. 38]
65
Analisamos brevemente um pequeno conjunto de obras onde podemos
enxergar os embates presentes em três visões distintas de um mesmo mundo.
As imagens vistas aqui articuladas com um pequeno trecho da poesia de nosso
poeta ganham outras matizes uma vez tocadas pela voz de um pensador que
violenta a crença arraigada numa postura rígida ou numa representação
inventada.
Pote Çanakkale.
Turquia, séc XVIII.
Museu de Arte do Rio - RJ
66
influências iranianas e chinesas. É sabido como a arte do islã conflui
abstrações vegetais com figuração animal, ao lado de traços bastante
característicos de nuvens encadeadas, bem como o tratamento vitrificado,
comum também nas técnicas da extrema Ásia. O pássaro é, no contexto do
misticismo sufi, uma figura que substitui o humano, e conforma uma
mentalidade islâmica em figuração apologética. Diz Necipoğlu sobre a técnica:
“A este respeito, estava a seguir as pisadas de artistas timúridas anteriores que
também tinham feito experiências com cerâmica [...] tinha feito vasos de
porcelana que se aproximavam dos da China.” [Necipoğlu, 1990 p. 148].
67
E Abu L’ala nos diz:
Que outra imagem do Islã nos sobra após ler estas palavras de Al-Ma’arri? O
poeta ao elevar a autoridade da terra põe até mesmo Deus entre as coisas
vivas sobre sua superfície. A imagem basilar de mundo islãmico onde o criador
está acima de tudo rui como argila quando Abu L’ala inverte o poder em
poucas linhas, este mesmo intelectual dizia-se o único muçulmano ortodoxo de
sua época. Al-Ma’arri mostra desse modo sua visão de mundo própria, sua
orientação: ele crê na vida sentindo suas angústias através do tempo até a
hora da morte. Um breve trecho carregado de forma sutil das três ideias tão
presentes em seus trabalhos. E renova aos poetas, eruditos e conhecedores
do texto sagrado: o mundo fala, a terra alerta e censura a arrogância. Desperta
aos indivíduos que tanto proferem em nome de algo maior, mas pouco
conhecem de seus irmãos. Nosso murshid nos ensina a calar ruídos e a versar
o ouvir. Informa Ramírez Del Río: “Na obra deste grande poeta há
composições em que ele apela à limpeza da face da terra da impureza que, na
sua opinião, o ser humano representava. Esta posição é, sem dúvida, próxima
de alguns dos primeiros místicos islâmicos, mas ele levou-a mais longe do que
qualquer outro, pois dispensa a missão que os místicos consideravam que
Deus tinha confiado ao homem na terra.” [Ramírez Del Río, 2003, p. 72].
Assim aprendemos, as dinâmicas de tudo o que conhecemos sobre as artes
árabe-islâmicas podem e devem receber um olhar mais cuidadoso. Ancorados
em ferramentas que sejam bons ambientes de encontros como o é a Literatura
Comparada. Mas sabendo sempre como este é um exercício tal qual uma
viagem sem destino certo. Observando que a História da Arte no ocidente até
então foi escrita sem levar em consideração outros olhares de tamanha
profundidade ou altitude. Visitar Al-Ma’arri é buscar um guia, o sábio apontando
o caminho para uma escrita honesta de uma história das artes árabe-islâmicas
pelo que tem de mais valiosa, a multiplicidade na unidade.
Referências
Rafael R. M. Ramos, bacharel em História da Arte em EBA/UFRJ, membro do
GEAA (Grupo de Estudos de Arte Asiática) em EBA/UFRJ.
Rosana Pereira de Freitas é professora do Departamento de História e Teoria
da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ, com atuação em PPGAV e no
curso de graduação em História da Arte, respondendo, entre outras, pelas
disciplinas de arte asiática e historiografia da arte.
68
COUTINHO, Eduardo F.; CARVALHAL, Tânia F. Literatura Comparada: Textos
Fundadores. 1994.
RIHANI, Ameen. The Luzumiyat of Abul’l’Ala. New York, James T. White & Co.
1920.
69
A LÍNGUA E A RELIGIÃO COMO FATORES DE COESÃO NA
IBÉRIA MUÇULMANA DURANTE A DINASTIA OMÍADA, por
Renata Ary
Nas palavras de Menocal, foi no ano de 750, após o massacre dos Omíadas
pelos Abássidas em Damasco, que o príncipe Abd al-Rahman, sobrevivente
dos Omíadas e de origem Berbere, atravessou o deserto como refugiado
político e chegou no ocidente - onde os romanos denominaram de Hispania ou
Ibéria, futuramente denominada Espanha ou al-Andaluz, em árabe. Nesse
período, “menos de 10% da população do Irã e do Iraque, Síria e Egito, Tunísia
e Espanha era muçulmana”. [Hourani, 2021, p. 76]. No ocidente, o príncipe se
aliou aos seus parentes berberes liderados por árabes sírios recém chegados
[711] e, movidos pelo desejo de uma vida melhor e pelo expansionismo militar,
colonizaram a região e nela estabeleceram o Califado. Nesse contexto, a
sociedade Ibérica assistiu a queda dos visigodos e a anexação ao mundo
mediterrâneo do dar-al-islam [casa do Islã].
70
para o sucesso da reconquista e início do silenciamento do pensamento árabe-
islâmico na região, foi a dissidência religiosa, os conflitos internos e a
fragilidade dos muçulmanos. [Menocal, 2004, p. 21-30]
Abd al-Rahman, com o apoio dos Sírios, foi proclamado Emir [malik – rei] de
Córdoba. Ele reinou sem impor a religião muçulmana aos habitantes da Ibéria,
sobretudo aos Cristãos que tinham liberdade de crença e culto. Os Cristãos
eram chamados de mustarib [daí a palavra: moçárabe] ou muabidun [os que
firmaram um pacto]. Os convertidos, eram chamados de musalima ou
muwalladun [os adotados]. Os árabes eram divididos em: baladis [emigrantes
de primeira leva] e shmis [sírios]. Os judeus, até então perseguidos pelos
visigodos, recepcionaram os conquistadores. A diversidade da população era
notória, no entanto, a convivência era pacífica, tolerante, fato que facilitou a
islamização e a arabização e, após algumas gerações, devido a miscigenação,
tornou-se imperceptível a distinção entre os descendentes dos conquistadores
e dos muwalladun. [Mantran,1977, p.156]
Foi no governo de Abd al-Rahman III [912-961] que a Espanha viveu o seu
apogeu. Conhecido como um soberano notável em todos os aspectos, fez da
Ibéria o maior centro intelectual e artístico do Ocidente. A atmosfera refletia
uma grandeza política, econômica, intelectual e, como fatimíada, firmou a
presença do sunismo no Ocidente Muçulmano, além de consolidar a
independência da Espanha. [Mantran, 1977, p. 156]
71
autônomos [Taifas]. [Menocal, prefácio, p. 12]. Durante o século XI, a dinastia
dos Almorávidas [de origem Berbere] assumiu o controle do Norte da África e
da Espanha. Enquanto a expansão muçulmana se alastrava pelo ocidente, no
oriente, os Abássidas construíram um Império islâmico do qual Bagdá tornou-
se a sua Capital e cujas conquistas se estenderam para o ultramar.
72
Nesse contexto, adicionado ao fato de que os muçulmanos têm uma visão
totalizadora do sentido de vida – que lhe incute uma visão integral do Universo
no qual o homem está incluído – o mundo muçulmano sofreu uma coesão
interna no vasto território conquistado e dominado pelo Islã, sobretudo na
Península Ibérica. [Bissio, 2013, p. 65]
“Se trata de una cultura árabe porque es la lengua árabe la que ha servido de
vehículo común a los pueblos, hasta entonces separados lingiísticamente, que
contribuyeron a edificarla, incluidos los autores que escribieron en contra de las
pretensiones árabes. Sin duda el árabe se perfeccionó a lo largo del mismo
proceso, pero lo cierto es que pudo hacerlo; en lugar de abandonar su lengua
natal, como hicieron la mayoría de los conquistadores germánicos, por la de las
poblaciones sometidas, los árabes enseñaron a éstas la suya, e hicieron de ella
un instrumento de valor universal. Tanto si el árabe fue la lengua de los
conquistadores, como la de la Revelación, esto no es obstáculo para sospechar
que no hubiese podido realizar tal proeza si no hubiese disfrutado, respecto a
las otras lenguas del Próximo Oriente, de cualidades específicas”. [Cahen,
1898, p. 110 - 112]
73
Os laços religiosos e linguísticos garantiram uma unidade da qual a
Cristandade ocidental pareceria antiquada. Essa aliança do idioma, permitiu
que eruditos, estudiosos, músicos, artistas e até teólogos, se deslocassem de
um extremo ao outro do Islã – desde a península Ibérica, Oriente Médio até a
antiga Pérsia. Em todos os ramos do conhecimento, as produções culturais
eram em língua árabe, ainda que não necessariamente confiada aos árabes.
Sábios como “Avicena (Ibn Sina), Al-Buruni, Alhazen (Al-Haizam, físico), Ibn
Yunus (astrônomo), entre outros, integravam o importante conjunto de eruditos
muçulmanos cuja obra dominou o mundo durante vários séculos e cujo legado
influenciou a escolástica e a ciência ocidental”. [Bissio, 2012, p. 22]
Referências
Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos
e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo [PUC-SP].
74
CAHEN. Claude. El Islam: Desde los orígenes hasta el comienzo del imperio
otomano. História Universal, v. 14. Espanha: Siglo veinteuno editores. 1989.
LEWIS, Bernard. Os árabes na história. 2.ª ed. Lisboa: Editorial Estampa. 1990.
75
ROXELANA, DA SERVIDÃO AO SULTANATO,
por Talita Seniuk
A Ucrânia atual e todo seu entorno possuem suas raízes no Estado Kievano –
também chamado de Rus [formado por tribos eslavas de origem viking] –
existente entre os séculos IX ao XIII, que compreendia diversas cidades-Estado
compostas entre os povos eslavos orientais, os grão-russos [russos], os
pequeno-russos [ucranianos] e os russos brancos [bielo-russos] [SEGRILLO,
2012] que formariam diversos reinos e principados para posteriormente
delinear a Rússia, a Ucrânia e a Bielo-Rússia.
76
“ukraína” para designar tudo aquilo que estava aos arredores da atual Kyiv e
“rutenos” [русини - rusyny - derivado de Rus] para designar esse povo,
vocabulário que valia para os bielo-russos também, enquanto os russos eram
chamados de moscovitas [SUBTELNY, 2009].
A região da Galícia auxiliou durante séculos na proteção contra as invasões
dos nômades asiáticos e era ao mesmo tempo uma passagem comercial entre
o Oriente e o Ocidente, ao ligar trajetos entre os Mares Báltico e Negro com
Bizâncio. E os ucranianos étnicos desse reino, pertenciam, entre outros fatores,
mas até por esse contato direto, ao cristianismo ortodoxo, enquanto os
poloneses, por exemplo, seguiam o cristianismo católico.
Foi no harém que recebeu o nome de Roxelana, uma referência aos seus
cabelos ruivos [PEIRCE, 1993], apesar de existirem várias histórias para esta
origem e até de que seu verdadeiro nome é desconhecido [SHUTKO, 2015].
Embora houvessem inúmeras mulheres disponíveis para o sultão, em pouco
77
tempo sua preferência ficou evidente e o casamento foi arquitetado. A
cerimônia aconteceu no Palácio de Topkapi, de onde provinham todas as
ordens do sultão na época; então, ela passou a se chamar Hurrem Haseki
[Hurrem significando sorridente e Haseki favorita] um título bastante importante
[PEIRCE, 1993] e inaugurar uma nova fase histórica, o Sultanato das Mulheres.
O poder
Solimão, que expandiu e enriqueceu o Império Otomano graças a sua maestria
ao administrar um território tão vasto, articulou a permanência de elementos
herdados do governo de seu pai e sultão, Selim I, mas soube romper com
aquilo que se mostrava ineficiente, reformando questões jurídicas e
administrativas no seu governo, que lhe renderam ser conhecido como O
Legislador.
Para Peirce [1993] se o século XVI foi uma era de destaque para reis e rainhas
europeus, os otomanos na mesma época, também forjaram a sua, tendo como
expoente Roxelana. A ascensão de uma concubina aos grandes espaços de
poder, chancelada pelo sultão, representou uma ruptura no modus operandi da
dinastia do sultanato.
O pouco tempo que separava a situação dela enquanto consorte real até sua
nova posição como esposa legal, bem como as mudanças que aconteciam na
administração do governo, fez com que o povo lhe chamasse de ziadi [que
significa bruxa] e comentasse que ela havia enfeitiçado o sultão [PEIRCE,
1993], embora ninguém ousasse falar isso em público.
Vale ressaltar que segundo a tradição religiosa, Solimão poderia ter quatro
esposas legais e quantas concubinas pudesse sustentar. Depois dela, o harém
foi dissolvido e as mulheres foram doadas para os filhos dele ou tornaram-se
empregadas do palácio [SHUTKO, 2015], além disso, o sultão recusou outras
mulheres como presente a partir desse momento. E ainda, Roxelana, diferente
de todas as outras esposas dos sultões anteriores rompeu com o protocolo de
viver na residência real com seus filhos, mudando-se para o palácio [PEIRCE,
1993].
78
Roxelana, embora fosse cristã de nascimento, converteu-se para o Islamismo,
condição indispensável para conquistar seu espaço. Além da sua língua
materna, o ucraniano, obrigou-se a estudar turco, árabe e persa, idiomas que
usava no palácio; aprendeu a tocar alguns instrumentos e a dançar, pois o
sultão apreciava isso nas mulheres; lia e recitava poesias em voz alta.
“Este sultão tem duas mulheres muito queridas; uma circassiana, mãe de
Mustafa, o primogênito, a outra, com quem, violando o costume de seus
ancestrais, ele se casou e considera como esposa, uma russa, tão amada por
sua majestade que nunca houve na casa otomana uma mulher que gozava de
maior autoridade. Diz-se que ela é agradável e modesta e que conhece muito
bem a natureza do sultão.” [PEIRCE, 1993, p. 59]
Durante toda a vida tiveram seis filhos, além de Mehmed já citado, Selim,
Abdullah, Bayazid, Dzhihangir e a única filha, Mihrimah. Entre os homens
apenas Selim sobreviveu, pois dois morreram jovens e os outros além de
brigarem entre si pelo trono do pai, não concordavam com o poder de sua mãe,
chegando a conspirar contra. A ausência do sultão para as expedições
militares, que ao todo foram treze, alimentavam insurreições que eram
abafadas com muita habilidade por Roxelana.
Sobre sua trajetória, existem diversos fatos que são atribuídos à ela, mas que
pela inexistência de fontes, são considerados apenas boatos, como a história
de que ordenou que todos os filhos de Solimão fossem encontrados – o que
aproximava-se de quarenta – e mortos, para abrir caminho para que seu filho
Selim pudesse acender ao trono. A questão da sucessão do trono era o
principal problema do sultanato de Solimão [PEIRCE, 1993].
Embora cada concubina do sultão pudesse até então ter apenas um filho dele,
devendo se afastar para cria-lo nos subúrbios, e quando o mesmo alcançasse
a maioridade deveria seguir com ele para uma cidade em que fora designado
pelo próprio pai para cuidar; tal regra mais uma vez não se aplicou a Roxelana.
Ainda que ela tenha se tornado sua esposa legal, havia estado no harém na
posição de amante.
79
Percebendo o perigo que isso poderia causar para sua mãe e para sua
ascensão ao trono, o primogênito do sultão, Mustafa, filho de Mahidevran, a
primeira esposa legal, brigaram com Roxelana. Além da troca de ofensas, ela
teve sua roupa rasgada e seu rosto machucado pela rival. Dias depois, quando
Solimão solicitou a presença da sua mais nova favorita que ousou recusar seu
convite, alegando que não estava digna o quanto ele merecia, ao saber os
motivos para isso e ver o seu rosto, acredita-se que nesse momento ele tenha
realmente se apaixonado e ficado bastante zangado com os causadores da
intriga [PERICE, 1993].
Roxelana também influenciou seu marido e por vezes usou seu próprio dinheiro
para construir [o que era permitido apenas aos homens] instituições
filantrópicas, como hospitais, escolas, casas de passagem para peregrinos,
asilos e cozinhas comunitárias, além de mesquitas. Recebeu sozinha diversos
embaixadores, artistas e nobres enquanto seu marido estava ausente do
palácio. Organizou festas familiares, cívicas e religiosas quando haviam datas
que careciam de comemorações.
Não obstante a necessidade do véu pelas mulheres, ela andava com o rosto
descoberto. Quebrando todos os protocolos reais, sentava-se ao lado do
marido nas reuniões e tinha permissão para opinar também, o que era proibido
para todas as outras. Outra regra que não se aplicava a Roxelana era a visita a
biblioteca real e consequente leitura das obras, local que passava horas do dia.
Um elemento que merece destaque, foi o fato de que houve menos ataques
otomanos à Ucrânia enquanto o relacionamento durou. Para alguns
historiadores isso é resultado direto da ação dela sobre o marido,
demonstrando um pouco de estima pelos seus compatriotas. Entretanto, há
autores como Shutko [2015], que afirmam que esse período de relativa paz foi
fruto da aliança entre o sultão e o rei polonês.
80
O casamento durou aproximadamente quarenta anos. Roxelana morreu em 18
de abril de 1558 em Istambul, sendo enterrada na Mesquita de Solimão. Assim
como sua vida, sua morte também é repleta de boatos, se fora envenenada ou
se morreu naturalmente. Ele manteve-se viúvo por oito anos, até falecer em 6
de setembro de 1566 e ser sepultado ao lado da esposa. Selim, o filho de
ambos, tornou-se sultão com a morte do pai, apesar da mãe não ter vivido para
assistir seu desejo.
Considerações
Roxelana teve uma trajetória de vida análoga a um conto de fadas com suas
respectivas especificidades, ao ascender da escravidão para o sultanato. Se
sua beleza pode ter sido um dos motivos de Solimão se encantar por ela,
certamente sua inteligência logo se sobrepôs a qualquer primeira impressão.
Esse casamento por si só já foi algo extraordinário para a época; e ainda, suas
capacidades lhe permitiram manter-se numa posição delicada que exigia
talento e cuidado frente a inúmeros inimigos, entre eles os próprios familiares,
caso contrário não sobreviveria. E tal atitude lhe rende até hoje o
reconhecimento como a Grande Imperatriz Oriental.
Referências
Talita Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa, em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em
Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em
Metodologia do Ensino de História e Geografia pelo Centro Universitário de
Maringá e em Ensino de Sociologia pela Universidade Cândido Mendes.
Coautora do livro As Ucrânias do Brasil: 130 anos de cultura e tradição
ucraniana pela Editora Máquina de Escrever. Atualmente é Professora de
História efetiva na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso,
colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця e colaboradora do Blog Exílio-
migração política.
PEIRCE, Leslie. The Imperial Harrem: Woman and Sovereignty in the Ottoman
Empire. Oxford: Oxford University Press, 1993.
81
QUATAERT, Donald. O Império Otomano das origens ao século XX. São
Paulo: Edições 70, 2008.
82
O IMPÉRIO OTOMANO E OS NACIONALISTAS SÉRVIOS (1804-1878),
por Felipe Alexandre Silva de Souza
Este texto pretende abordar das relações entre o poder central do Império
Otomano e o movimento nacionalista sérvio que nasceu dentro desse Império e
lutou contra ele no início do século XIX. Espera-se que esta breve narrativa
contribua para a compreensão de parte do processo de decadência da Sublime
Porta.
Foi nesse contexto que, mais de meio século antes de derrubarem o Império
Romano Oriental bizantino e conquistarem Constantinopla - convertendo-a
como sua capital -, os otomanos chegaram à regiões que hoje conhecemos
como Balcãs, no sudeste do continente europeu, e colocaram boa parte dos
povos eslavos daquela área sob o jugo do sultanato. Em 1389, as forças
otomanas do sultão Murad derrotaram o exército do Império Sérvio,
comandado pelo príncipe Lázaro. A queda da importante cidade sérvia de
Kosovo colocou as regiões da Sérvia e da Bósnia-Herzegovina sob o sultão,
tornando-as parte dos domínios da Sublime Porta [Benson, 2001].
A partir de então, a maior parte dos sérvios [embora não todos, pois uma
porção considerável deles não estava sob território Otomano, mas sim nas
regiões de domínio dos Habsburgo austríaco, junto com eslovenos e croatas]
passou a ser parte da Rumélia - a região europeia do Império Otomano, a
oeste do Estreito de Bósforo [Glenny, 2012]. Dentro da Rumélia, os sérvios
83
costumavam viver em uma província em torno da cidade de Belgrado, onde
desfrutavam de relativa liberdade religiosa. De modo geral, a província de
Belgrado era escassamente povoada por sérvios que trabalhavam na terra e
criavam porcos - além dos números homens jovens que se dedicavam ao
saque e ao banditismo [Glenny, 2012].
Esse contexto de decadência acabou por fornecer solo fértil para a penetração,
a partir da Europa, dos ideais nacionalistas que pregavam que cada povo,
tomado como uma unidade cultural, étnica e linguística, que formariam a
essência de um povo, imutável e verificável ao longo da história, deveria lutar
para conquistar um estado nacional autônomo que pudesse preservar as
características essenciais desses povos [Hobsbawm, 1991].
84
intelectuais sérvios passaram a ver a crescente dissolução otomana como a
oportunidade de estabelecer um estado independente. A partir daí procuraram
utilizar a profunda religiosidade dos sérvios otomanos - em sua maioria,
cristãos ortodoxos - para criar a ideia dos sérvios como um povo
profundamente unido por símbolos religiosos da Cristandade ortodoxa.
Elegeram Kosovo [o centro da vida sérvia otomana] como uma espécie de
cidade sagrada, estabeleceram o culto a São Sava [considerado o primeiro
arcebispo da Igreja autocéfala sérvia, tendo vivido no início do século XIII] e, de
modo geral, procuraram reforçar a identidade cristã ortodoxa como forma de
fazer contraste e diferenciar os sérvios dos otomanos muçulmanos. Há
gerações acostumados com a liturgia cristã e portadores de várias tradições de
cristianismo popular, aos poucos a população sérvia foi absorvendo a ideia de
que eles faziam parte de um povo unido - um povo cristão que deveria lutar
pela sua liberdade contra os otomanos islâmicos [que eles chamavam, de
maneira bastante genérica, de "turcos"]. Essa crescente diferenciação, no
plano das mentalidades, entre uma identidade sérvia, ainda em formação, em
contraposição ao restante do Império Otomano, também tinha como elemento
essencial o resgate e a criação de histórias populares sérvias, mantidas pela
tradição oral, da ênfase em um suposto passado glorioso - do qual o elemento
principal passou a ser a celebração do antigo império eslavo de Stefan Digam,
que conhecera seu auge antes de os otomanos chegarem aos Balcãs - e a
elaboração e organização, por parte de linguistas e outros intelectuais, de um
idioma sérvio [baseado em um antigo dialeto eslavo], que deveria ser
promovido como princípio diferenciador e fundador da nacionalidade [Benson,
2001].
85
comandantes janíssaros assassinaram o governador Mustafá e, a despeito de
qualquer ordem e orientação do poder central Otomano, passaram a governar
os sérvios com extrema violência, instituindo castigos físicos indiscriminados,
aumentando os impostos [que por eles eram embolsados sem serem
transferidos à capital] e estabelecendo o trabalho forçado entre os sérvios
[Glenny, 2012].
Inicialmente, os rebeldes contaram com o apoio do próprio sultão Selim III, que
via os sérvios como uma maneira de derrotar seus próprios funcionários
otomanos [os janíssaros], sob os quais não tinha mais controle. No entanto, na
medida em que ficava claro que os sérvios não pretendiam depor as armas e
obedecer ao sultão, e quando se tornou evidente que os sérvios almejavam
caminhar rumo à independência total, a aliança instrumental entre rebeldes e
sultanato se desfez. Em 1807 foi formado um Concílio Supremo para governar
o território sérvio - agora sem nenhum controle Otomano - e o líder rebelde
Karadjordje Petrovic foi eleito pelo Concílio como Voivode [governante] do novo
Estado. Essa situação duraria até 1813, quando o Império Russo afrouxou sua
proteção aos sérvios [por estar ocupado com os conflitos contra Napoleão] e
Constantinopla, aproveitando-se da situação, conseguiu recuperar suas terras,
forçando Karadjordje a fugir para a Áustria [Connelly, 2020].
86
de tal pressão internacional a Porta Otomana não teve escolha a não ser
conceder autonomia prática à região, ainda que esta continuasse oficialmente a
ser parte das posses do sultão. Obrenovic foi reconhecido por Constantinopla
como Príncipe da Sérvia [Connelly, 2020].
A luta dos sérvios pela independência foi, ao fim e ao cabo, um dos momentos
da decadência do Império Otomano, que não conseguia lidar de forma
satisfatória com os nacionalismos que surgiram em seu interior, com a falta de
fidelidade de seu próprio exército e com sua falta de dinamismo econômico, na
medida em que as potências europeias cada vez mais se tornavam
interessadas, por diversas razões, no enfraquecimento dos sultões. Essa longa
agonia teria fim apenas após a Grande Guerra [1914-1918], quando o Império
foi efetivamente destruído. De seus escombros surgiria, em 1923, sob a
liderança de Mustafá Kemal Atarurk, a Turquia contemporânea.
Referências
Felipe Alexandre Silva de Souza é Doutor em História pela Universidade
Federal Fluminense, membro do Núcleo de Estudos Contemporâneos
(NEC/UFF), pesquisador de pós doutorado (UFF) e bolsista da FAPERJ.
87
GLENNY, Misha. The Balkans. London: Penguin, 2012.
88
OS CONFLITOS ISRAELO-PALESTINOS NA RELAÇÃO ENTRE O
SIONISMO E O CAPITALISMO, por Christian Souza Pioner
89
Em 1947, a ONU promulga a Resolução 181, que, reconhecendo a falta de
ação inglesa — que já entrava em franca decadência face aos EUA — em
controlar a situação, determina a criação de dois Estados, que repartiriam
equitativamente o território disputado [ONU, 1947]. Tanto o bloco soviético
quanto os países capitalistas, como Grã-Bretanha, França e EUA apoiaram a
Resolução. Para os socialistas, a ideia era garantir um espaço vital e de
autodeterminação judaica logo após o holocausto, enquanto ao restante das
potências supracitadas, pretendia-se construir na região do Oriente Médio um
entreposto militar visando o controle dos maiores países produtores de petróleo
no planeta e também capaz de atingir Moscou com a instalação de ogivas
nucleares [VIDAL, 2019]. Entretanto, a assinatura dos representantes de Israel
não representou respeito à Resolução, pois — mediante o exponencial
financiamento estadunidense, estes passaram a se alinhar cada vez mais
estreitamente com a política de Washington, ultrapassando as fronteiras
definidas, expulsando violentamente a população palestina e criando
assentamentos efetivamente neocoloniais.
90
Resulta da Intifada os Acordos de Oslo, assinada na Casa Branca por Arafat e
Shimon Peres, primeiro-ministro israelense, garantiu um período efêmero de
paz entre as partes e um Nobel da Paz aos envolvidos. Contudo, conforme
aponta Klein [2007, p. 730], o Acordo é duramente criticado pelos árabes por
conter termos muito desproporcionais e garantir um controle ainda maior de
Israel e, consequentemente, dos EUA, sobre a região.
O sionismo é também é marcado por aquilo que Said [1996, p. 54] chama de
orientalismo. Para ele, tal categoria sintetiza a noção de que o mundo é
dividido de forma permanente entre o Ocidente e o Oriente. O primeiro,
autopoiético, advoga para si o pendão civilizacional à medida que lega ao outro
a pecha do exotismo e do barbarismo, e, portanto, da superioridade. Sob tal
manto, justifica toda e qualquer transgressão àqueles cometidas. O
orientalismo é elemento-chave na construção de narrativas que alicerçam a
91
prática imperialista dos países centrais do capitalismo, pois a um só tempo
clamam “levar a civilização aos povos selvagens” e afirmam a si próprios como
os modelos de sociedade, que devem ser indistintamente seguidos, mesmo
que isso seja impossível exatamente pelos motivos acima elencados acerca da
constituição de tal sistema. O orientalismo é chave para a compreensão do
sionismo como um tipo de racismo.
92
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto
é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da
produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo
que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo, os
pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As
ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como
ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a
classe dominante, são as ideias de sua dominação.
O modus operandi da G4S aponta para dois dos mais preocupantes aspectos
do capitalismo neoliberal e do apartheid israelense: a ideologia da ‘segurança’
e a crescente privatização de setores que têm sido tradicionalmente
administrados pelo Estado. Segurança, nesse contexto, não significa
segurança para todas as pessoas; ao contrário, quando se observam os
principais clientes da G4S Security (bancos, governos, corporações, etc.), fica
evidente que [...] ela se refere a um mundo de exploração, repressão,
ocupação e racismo.
93
A acumulação capitalista é a um só tempo elemento sine qua non de
caracterização de uma sociedade sob tais moldes e prática ilógica, pois inverte
os papéis construídos no curso da história. Se, na alvorada da humanidade, os
agrupamentos se formaram sob a necessidade precípua de sobrevivência e, à
medida que criaram novas tecnologias as utilizaram em benefício coletivo,
aumentando a produção e a concorrentemente diminuindo a carga de trabalho
individual, com a fundação do capitalismo tal conformação se inverte. Os seres
humanos, que antes sofriam as duras penas da escassez de insumos básicos
para a vida, agora se veem tanto imersos nas possibilidades de possuírem o
que bem entenderem, como continuam praticamente sem acesso algum, pois
não detém os meios de produção e tem de vender sua força de trabalho
àqueles que exercem o controle desses meios e por meio deles acumulam — a
este processo, Marx e Engels nomeiam exploração da mais-valia [2005, p. 40–
51].
Considerações finais
Os conflitos israelo-palestinos tornam cada vez mais evidente como a
manutenção de tal estado permanente de guerra na região serve aos
interesses tanto do grupo sionista que controla o país, que operam em uma
lógica neocolonial, como dos que financiam tal projeto desde a fundação do
Estado de Israel, a burguesia internacional, e principalmente, os EUA. Os
países centrais do capitalismo reiteradamente põem em xeque a estabilidade
social daqueles que estão às margens do sistema, e não há acaso nisso. A
estrutura do capitalismo monopolista necessita da contínua reprodução da
lógica acumulativa, que em um planeta finito em recursos e espaços, leva a
destruição de sociedades inteiras — para que se possa lucrar tanto na guerra
quanto na reconstrução — como do próprio ecossistema, o que no não tão
longo prazo pode significar o fim da humanidade como um todo. No caso
palestino, há uma efetiva substituição, por meio da violência financiada
internacionalmente, de uma população por outra. A destruição e a reconstrução
convivem diariamente.
94
precisa — em conjunto com o sistema capitalista, que lhe garante o vigor da
existência — ser denunciado e combatido nas diversas searas em que possa
se apresentar. Não basta, portanto, a defesa abstrata dos direitos humanos no
Oriente Médio, correndo inclusive o risco de se auxiliar as narrativas
hegemônicas e contrapostas a tais direitos. Certamente, posicionamento
também não pode se realizar uma metonímia, tomando todos os judeus e
israelenses por sionistas, repetindo a falácia antissemita que levou em 1933 o
nazismo ao poder e, mais tarde, ao Holocausto. É necessário, sim, alinhavar o
estudo da situação concreta da situação na região e a tomada de posição
contra o sionismo, especificamente, e os avanços dos interesses do capital
sobre as vidas árabes e, sobretudo, palestinas.
Referências
Christian Souza Pioner é historiador pela Universidade do Estado de Santa
Catarina e graduando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. 285 p. Tradução de Rosaura Eichenberg.
95
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. 1. ed. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2005. 255 p. Tradução de Álvaro Pina.
VIDAL, Dominique. Por que a URSS apoiou o jovem Estado de Israel? 2019.
Disponível em: https://bit.ly/3MI1P20. Acesso em: 25 abr. 2023.
VIDAL, Dominique. Por que a URSS apoiou o jovem Estado de Israel? 2019.
Disponível em: https://bit.ly/3MI1P20. Acesso em: 25 abr. 2023.
96
97