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ESTUDOS SOBRE

ORIENTE MÉDIO
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos em Oriente Médio. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/ UERJ, 2023. 97 p.
ISBN: 978-65-00-77512-9
História da Ásia; Oriente Médio; Orientalismo; Diálogos Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário

Antiguidade
O EGITO ASIÁTICO DE POMPÔNIO MELA, por Alaide Matias Ribeiro ....................... 7
CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO, por Felipe Daniel
Ruzene ....................................................................................................................... 14
UMA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO DE ISRAEL, por Marlon Barcelos
Ferreira ....................................................................................................................... 21
A ARQUITETURA DA ÁGUA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A PESCA
NO EGITO ANTIGO, por Maura Regina Petruski........................................................ 27
A ASCENSÃO DA GRANDE PÉRSIA DE CIRO, O GRANDE, por Willian Spengler... 33

Medievo

OS VENTOS SOPRAM DO ORIENTE: OS CONHECIMENTOS ORIENTAIS


ADENTRAM NA EUROPA, por Gabrielle Legnaghi de Almeida e Anelisa Mota
Gregoleti ..................................................................................................................... 41
A 'AṣABĪYAH COMO PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA A PARTIR DE IBN KHALDŪN,
por Luiza Santana Locatel Araujo ............................................................................... 47
O EGITO COMO COSMÓPOLIS DO MUNDO ISLÂMICO A PARTIR DO RELATO DE
IBN BAṬṬŪṬAH [1304-1377], por Pietro Enrico Menegatti de Chiara ......................... 54
O MUNDO DE AL-MA’ARRI: A VISÃO ANTES DO ORIENTE, por Rafael R. M. Ramos
e Rosana Pereira de Freitas ....................................................................................... 62
A LÍNGUA E A RELIGIÃO COMO FATORES DE COESÃO NA IBÉRIA MUÇULMANA
DURANTE A DINASTIA OMÍADA, por Renata Ary ..................................................... 70
ROXELANA, DA SERVIDÃO AO SULTANATO, por Talita Seniuk ............................. 76

Contemporâneo

O IMPÉRIO OTOMANO E OS NACIONALISTAS SÉRVIOS (1804-1878), por Felipe


Alexandre Silva de Souza ........................................................................................... 83
OS CONFLITOS ISRAELO-PALESTINOS NA RELAÇÃO ENTRE O SIONISMO E O
CAPITALISMO, por Christian Souza Pioner ............................................................... 89

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O EGITO ASIÁTICO DE POMPÔNIO MELA, por
Alaide Matias Ribeiro

Introdução
Pompônio Mela, no capítulo dedicado à descrição da Ásia, em sua Corografia,
afirma que: “Asiae prima pars Aegyptus inter Catabathmon et Arabas” [livro I,
cap. 9, 49]. O geógrafo romano do século I EC, além de indicar que o Egito é a
primeira parte da Ásia, também o localiza geograficamente entre o vale que é
considerado o limite da África, o Catabathmon, e o espaço ocupado pelos
povos árabes. Esse posicionamento não é aleatório. A questão do localização
geográfica e da construção discursiva de espaços e de lugares a partir de uma
determinada experiência do autor é o que propomos discutir neste capítulo.
Nesse sentido, esboçamos uma reflexão sobre a Ásia e, particularmente, o
Egito asiático de Mela.

Pompônio Mela e o De situ orbis


Ao considerar outros geógrafos da Antiguidade como Eratóstenes [II AEC] e
Estrabão [I AEC-I EC], cujas obras ou fragmentos sobreviveram à passagem
do tempo, podemos estabelecer uma relação com Pompônio Mela no que
concerne à produção de um esboço biográfico. Tal ensaio não é possível de
reconstrução em razão da escassez de dados referentes ao sujeito e obra. As
informações são poucas e derivam, principalmente, do próprio discurso
geográfico.

Assim, tomando como referência a Corografia e, portanto, considerando os


dados apresentados por Mela, sabe-se que ele era originário de uma cidade
localizada na Hispânia Baética, nomeada Tingentera [livro I, cap. 6, 96],
também identificada como Iulia Traducta, atualmente, Algeciras, no sul da
Espanha [Romer, 1998, p. 1]. O mesmo quadro sumário se repete quando se
propõe datar sua obra. De acordo com Silberman [1988, p. VII-IX] é possível
definir uma data de produção da Corografia a partir dos dados informados no
próprio texto, estes, mais extensos do que em relação ao próprio autor. Os
principais vestígios são, primeiramente, a informação de que Iol, residência real
de Juba II, foi renomeada como Caesarea [livro I, cap. 6, 30], fato que ocorreu
pouco depois de 25 AEC. O segundo dado é o anúncio de um retorno triunfal
do princeps Claudius [10 AEC-54 EC] em 44 EC, depois de uma campanha
vitoriosa na Britannia [livro III, cap. 6, 49]. Nesse sentido, pode-se afirmar que a
Corografia foi redigida entre o final de 43 e no início de 44 EC [Romer, 1998, p.
3; Silberman, 1988, p. XIII].

A Corografia é uma descrição geográfica pouco extensa, escrita em latim,


organizada em três livros e, considerada pelos especialistas como um esboço
de uma obra maior que seria produzida pelo geógrafo hispânico. Mela utiliza-se
de uma experiência indireta do espaço, mediada por uma tradição de escrita

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historiográfica, geográfica e etnográfica, para construir o espaço do mundo
habitado. Cabe ressaltar que, apesar de ser intitulada como uma khôrographia,
uma descrição escrita sobre determinada região ou território, o discurso contém
elementos característicos de uma topografia, de uma geografia [Romer, 1998,
p. 4], preocupada em expor a terra habitada [Silberman, 1988, p. XIX] e,
particularmente, de uma mitografia grega [Smith, 2016, p. 111].

De forma geral, Mela inicia sua obra tecendo considerações sobre a tarefa a
que se propõe, a produção de uma geografia, bem como sobre a estrutura da
obra. Em seguida, expõe as questões próprias à geografia, como a discussão
sobre o universo, a terra, sua divisão em dois hemisférios, norte e sul, e em
cinco zonas, suas proporções, o Oceano exterior, os mares e os três
continentes [livro I, cap. 1, 3-8]. Feita essa introdução à obra e às questões
gerais, Mela inicia a descrição geral de cada um dos três continentes, a Ásia, a
Europa e a África, enfatizando a delimitação do contorno e enumeração dos
lugares e povos que ocupam o interior, a costa mediterrânica e oceânica.
Nesse sentido, essa descrição inicial ainda se atém às questões da geografia
matemática. A corografia, por sua vez, inicia-se posteriormente, com a
apresentação de informações mais detalhadas sobre esses espaços.

Em resumo, Mela inicia a partir do cabo Spartel e, tomando como fio condutor
as costas do Mediterrâneo e depois o Oceano Exterior, percorre os espaços a
partir da África [I, 25-48] e da Ásia [I, 49-117]. No livro II, descreve a Europa [II,
1-96], as ilhas do Mar Interior e do Euxino [II, 97-99], as margens asiáticas [II,
100-104], africanas [II, 105] e europeias [II, 106-126]. O livro III conserva a
descrição das costas atlânticas da península ibérica, Gália, as costas
oceânicas da Europa [III, 1-45], as ilhas ao longo dessas costas [III, 46-58], as
costas asiáticas [III, 59-84] e depois, as da África [III, 85-107].

Exposição geográfica
Nas geografias e corografias de autores gregos e romanos, ou mesmo nas
digressões relacionadas ao espaço presentes em histórias, a disposição ou
ordenamento dos espaços e lugares toma como referência uma divisão maior
do orbe habitado, a dos continentes. Para Pompônio Mela, o Mar Mediterrâneo
e os rios Nilo e Tanais dividiriam a terra em três partes. Assim: “a extensão de
terra que vai do estreito de Gades até esses rios, nós chamamos, por um de
seus lados África, do outro Europa - até o Nilo é África, até o Tanais, Europa.
Tudo o que se encontra além é Ásia.” [livro I, cap. 1, 8]. De acordo com
Silberman [1988, p. 101-102] essa divisão em três continentes, apropriada por
Mela, resulta de observações empíricas de navegadores, comerciantes e
viajantes.

Mas, comum na tradição de escrita geográfica grega, Mela, tal como


Eratóstenes e Estrabão, recorre às formas geométricas para dizer a que se
parece o espaço antes de iniciar a descrição corográfica. E, é a partir dessa
exposição inicial que o público é informado sobre a problemática da localização
desse espaço, Ásia [livro I, cap. 2, 9-14], e desse lugar em particular, o Egito,

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lugar discutido em doze seções [livro I, cap. 9, 49-60], das quais cinco [49-54]
compreendem a discussão sobre o Nilo.

O geógrafo romano afirma que: “A Ásia possui uma frente extensa e contínua
voltada ao oriente e aí se estende de modo que é igual em largura à Europa e
à África e ao mar entre as duas. Daí procedendo, alonga sua forma massiva
sobre alguma distância, encontrando-se com os mares arábico e pérsico, vindo
do oceano que chamamos Índico, e vindo do oceano Escítico ao Cáspio.
Depois, volta-se a dilatar e alargar. Daí, quando chega ao seu fim e aos confins
das outras partes da terra, Nosso Mar a recebe pela parte do meio; o restante,
como uma ponta, dirige-se até o Nilo, e a outra, até o Tanais.” [livro I, cap. 2, 9].

O espaço é delimitado a partir de pontos de referência como os mares


Mediterrâneo, Índico, Escítico e o rios Nilo e Tanais. A descrição não é
detalhada pois o objetivo, nesta primeira parte é, justamente dar a conhecer a
forma, extensão e fronteiras da Ásia. Na seção seguinte, Mela continua a
delimitação das extremidades da Ásia, particularmente, as voltadas para a
parte septentrional do orbe. Ele diz:

“Sua orla desce junto com o leito do Nilo, de ponta a ponta, até o mar, do qual
desenha toda a projeção pela extensão de sua costa; depois corrente com o
avanço deste último, primeiro arredonda em uma vasta curva, depois se alonga
formando uma ampla fachada até o estreito do Helesponto; daí, ainda em
diagonal ao Bósforo e curvando-se várias vezes ao longo do Ponto, atinge,
depois de fazer uma curva, a entrada do Meótide que abraça na reentrância
que forma até ao Tanais, com cuja margem se identifica.” [livro I, cap. 2, 10]

Em resumo, a descrição se utiliza de termos que exigem do leitor uma


elaboração mental do espaço, já que os principais dados informados, para
serem compreendidos, estão relacionados não só aos pontos de referências,
mas a trajetórias e percursos que se conectam. O Egito não é explicitado, mas
o rio Nilo, um dos principais topos de discussão geográfica, aparece
recorrentemente.

Um detalhamento inicial da Ásia e dos povos asiáticos


O esquema de apresentação do espaço geográfico empreendido se preocupa
em expor, antes do detalhamento dos lugares nos continentes, um inventário
dos povos que ocupam esses espaço. Essa listagem, no entanto, não resulta
do contato direto do geógrafo romano com tais povos, mas sim de uma
experiência indireta. Nesse sentido, cabe ressaltar o uso de expressões que
identificam, e ao mesmo tempo isentam o autor de sua responsabilidade para
com os dados informados, como, por exemplo: “como ouvimos” [livro I, cap. 2,
11], “conta-se” [livro I, cap. 2, 12].

No caso da Ásia, a citação aos povos que ocupam esse espaço é feita nas
últimas quatro seções do capítulo 2 do livro I. A menção aos grupos humanos
seguem uma ordenação explícita. Inicialmente, Mela menciona os habitantes
da extremidade oriental: indianos, seres e citas [livro I, cap. 2, 11]; depois

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prossegue para os locais que estão situados ao redor daqueles: Ariane, Aria,
Cedrósia, Pérsia, os cáspios, as amazonas e os hiperbóreos [livro I, cap. 2, 12];
em seguida, os povos que ocupam o interior do continente e, mais
particularmente, acima da região do golfo Cáspio: candaros, paricanos,
bactros, sogdianos, farmacotrofos, chomares, coamanos, propanisades, dahas,
comaros, masagetas, cadúsios, hyrcanos, iberos, cimérios, cissiantiens,
aqueus, georgios, moscos, corsitas, foristas, rifaces, mardos, antibaranos,
medos, armênios, comagenos, murranos, enetas, capadócios, galogriegos,
liacaones, frígios, pisidas, isauros, lidos e sirocilices [livro I, cap. 2, 13]. Por fim,
na última seção, Mela arrola os povos situados no e em torno do golfo pérsico,
em particular, os partas, assírios, bitínios, babilônios, egípcios, meóticos e
saurómatas, bem como lugares específicos: Síria, Cilícia, Lícia, Panfília, Cária,
Jônia, Eólide, Tróade, Helesponto, o Bósforo Trácio e o Ponto Euxino [livro I,
cap. 2, 14].

Egito
Considerando o inventário de povos citados acima, percebe-se que os
egípcios, o povo que ocupa o Egito, encontra-se situado entre os grupos
humanos que habitam na região próxima ao golfo pérsico, na extremidade
ocidental da Ásia. Apesar de situá-lo como o primeiro território da Ásia,
colocando sua fronteira africana no Catabathmon, Mela também indica outros
limites que tornam problemáticas as delimitações. Ele enuncia que: “A África,
na parte do oriente, é limitada pelo Nilo, e pelas outras com o mar. [...] A África
é mais comprida que larga e a parte mais larga fica onde ela toca no rio Nilo.”
[livro I, cap. 4, 20]. De acordo com Silberman [1988, p. 114], inicialmente, ao
dar a forma geométrica de um triângulo à África, Mela considera que o menor
lado que estaria articulado ao maior e formaria o ângulo reto, a margem
mediterrânica, seria aquele que segue o curso do Nilo.

Um dos sentidos que podem ser interpretados a partir do excerto é que, nessa
enunciação em particular, o limite do Egito é a própria margem ocidental do
Nilo. Assim, o rio aparece ora no sentido de uma fronteira natural entre a África
e a Ásia, quando Mela segue uma tradição jônica, cujo representante é
Hecateu de Mileto [Silberman, 1988, p. 114], ora não como o divisor, pois todo
o território, margem ocidental e oriental, são percebidos como Ásia. Assim, o
Egito é distinguido da Líbia [livro I, cap. 9, 49], como enunciado por Heródoto
[Silberman, 1988, p. 128], sendo limitada em Alexandria [livro I, cap. 9, 60].

Concordamos com Romer [1998, p. 11] quando ele considera que a ordo da
narrativa de Pompônio Mela incorpora e se torna a própria ordo do mundo. No
entanto, tendo em vista a utilização de diferentes fontes, tradições geográficas
e formas de descrição, especialmente, a ênfase no périplo [Dueck, 2012, p. 6-
7; Silberman, 1988, p. XVI], compreende-se que o mundo ordenado por Mela,
os espaços e lugares criados a partir do discurso, não está isento de
incoerências.

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Exposição corográfica
Ciente dessa problemática, cabe voltarmos a atenção para a descrição
corográfica do Egito, apresentando os elementos destacados por Mela para
compor esse espaço. O primeiro tópico é a caracterização do espaço como
uma terra que é privada de chuva, mas prodigiosamente fértil em razão do rio
Nilo. Este rio, considerado como o maior a desaguar no “Nosso Mar”, isto é, no
Mar Mediterrâneo, é percebido como a causa de toda a fecundidade e
superabundância do Egito, tanto no que concerne aos homens, aos egípcios,
como aos outros seres animados. É o rio que ocupa a maior parte dos
parágrafos do capítulo dedicado ao Egito.

Mela expõe sobre as origens do rio, sua navegabilidade e nomenclatura. Ele


enuncia que: “Vindo dos desertos da África, não é imediatamente navegável
nem chamado de Nilo, e por muito tempo desce de um curso único e
impetuoso, depois, cercando Meroé, uma ilha muito extensa, estende-se na
Etiópia, chamado de um lado Astabores, do outro, Astape. É de onde refaz sua
junção que leva seu nome.” [livro I, cap. 9, 50]. O sentido da narrativa, a partir
da origem, passando pela Etiópia, é de uma descrição que segue em direção
ao Mar Mediterrâneo. Esse curso, inicialmente apresentado no que pode ser
identificada como região etíope, é apresentado, em seguida, no próprio
território egípcio. Assim, seguindo o percurso do rio, Mela expõe que o Nilo,
depois de desembocar em um lago imenso, não nomeado, forma poderosas
cataratas, cerca uma outra ilha chamada Tachempso e segue até a cidade de
Elefantina. A partir deste lugar, Mela indica que o rio se torna mais calmo e
navegável. Ele não deixa de passar por outros lugares do Egito enquanto
segue até a foz, onde se divide em sete bocas: Canópica, Bolbitina, Sebenítica,
Pathmítica, Mendésia, Tanítica e Pelusíaca. Estas, apesar de terem sido
mencionadas no início da descrição, só serão nomeadas na última seção do
capítulo.

Após essa breve exposição do curso do rio, Mela retoma a ideia da natureza
geradora e nutritiva das águas nilóticas, enunciando que ela é responsável pela
abundância de peixes, hipopótamos, crocodilos e outros organismos vivos que
pululam no solo e não são propriamente identificados. Apesar de mencionar
exemplos da fauna nilótica, Mela não se detém na descrição dos animais nem
da flora egípcia.

Por fim, o tópico final de discussão em torno do Nilo é a questão das cheias,
assunto diretamente relacionado ao campo da geografia física [Silberman,
1988, p. XXI]. No entanto, Mela não apresenta uma hipótese definitiva sobre o
fenômeno e nem toma partido de uma específica. Ele apresenta 4 razões para
a cheia: (1) as neves derretidas dos cumes das montanhas da Etiópia, (2) o
transbordamento por falta dos efeitos do sol nas regiões onde nasce, (3) os
ventos etésios que fazem com que ocorra precipitação na sua origem e, por
fim, (4) a possibilidade de o rio ter origem em uma antípoda e transbordar
quando, na sua fonte, se desse o inverno.

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Discutidas as questões próprias à geografia, Mela inicia o comentário acerca
dos elementos que considera pertinentes. De acordo com Silberman [1988, p.
XX], o geógrafo cita topônimos de cidades, rios, montanhas ou ilhas em razão
de critérios como sua antiguidade, grandeza, celebridade, importância, seu
papel histórico ou mitológico. Mas, em algumas passagens, que não são
específicas à descrição da Ásia ou do Egito, a exposição é de curiosidades,
particularidades ou mirabilia [Romer, 1998, p. 12; Silberman, 1988, p. XXII]. No
caso do Egito, o geógrafo romano aponta algumas coisas admiráveis que não
são, explicitamente, localizadas espacialmente. Em primeiro lugar, relata a
existência de uma ilha que se movimentaria de acordo com o impulso dos
ventos chamada Chemmis. A mesma teria bosques sagrados e um templo
dedicado ao deus Apolo. Outros pontos de destaque são as três pirâmides de
Gizé, e o lago Moéris, o qual seria profundo e permitiria a navegação de
embarcações de transporte [livro I, cap. 9, 55]. O Labirinto, provavelmente o
complexo funerário de Amenemhat III [Silberman, 1988, p. 132], é mencionado
como uma obra de Psamético e tratado como uma espécie de complexo
habitacional e palaciano [livro I, cap. 9, 56].

Indicados tais lugares, Mela inicia uma exposição etnográfica, considerando,


especialmente, os costumes dos egípcios: funerários, religiosos e relativo aos
gêneros [livro I, cap. 9, 57-59]. O que predomina é uma referência implícita ao
discurso de Heródoto e à retórica da alteridade, marcada pela diferença e
inversão [Hartog, 2014, p. 243].

Por fim, Pompônio faz um comentário que dialoga com o tempo passado e o
presente: “Sob o reinado de Amásis eles habitaram vinte mil cidades, ainda
hoje possuem muitas. As mais famosas, longe do mar, são: Sais, Mênfis,
Siene, Bubástis, Elefantina e, especialmente, Tebas, que, como diz Homero,
tem cem portões, ou, segundo outros, cem palácios, [...]; à beira do mar estão
Alexandria, na fronteira da África, e Pelúsio, na fronteira da Arábia. A própria
costa é cortada pelas bocas do Nilo” [livro I, cap. 9, 60]. É possível perceber
que, ao final, o geógrafo, depois da incursão no interior, retoma o esquema do
périplo, voltando-se para o litoral e enunciando, novamente, os limites do
território. Além disso, é notável a inserção explícita de uma das fontes,
Homero, considerado por muitos geógrafos gregos como o pai da geografia
[Dueck, 2012, p. 20-21].

Consideração final
De situ orbis é a descrição geográfica mais antiga escrita em latim que chegou
até nós. No entanto, é uma descrição breve, majoritariamente mediada por
uma experiência indireta de Mela, que apenas compila fontes. O mundo
descrito não corresponde ao seu mundo mais atual, romano. A Ásia é
construída como um continente do mundo habitado, um aglomerado de lugares
e povos, e o Egito como um território asiático, atravessado pelo rio Nilo,
habitado por egípcios e não identificado com a África.

Referências

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Alaide M. Ribeiro é doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação
em História da UFRN/Campus Natal, Área de Concentração História e
Espaços. Bolsista Capes. Membro do Grupo de Estudos de História Antiga
(MAAT-UFRN).

DUECK, D. Geography in Classical Antiquity. Cambridge: Cambridge University


Press, 2012.

HARTOG, F. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

POMPONIUS Mela. Chorographie. Tradução Alain Silberman. Paris: Les Belles


Lettres, 1988.

ROMER, F. E. Pomponius Mela’s Description of the World. Ann Arbor: The


University of Michigan Press, 1998.

SMITH, R. S. Between Narrative and Allusion: Mythography in Pomponius


Mela’s Chorography. Polymnia, n. 2, 2016.

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CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO,
por Felipe Daniel Ruzene

Considerações Iniciais
A dietética suscita nas sociedades humanas uma série de hábitos à mesa que,
enquanto relevantes fragmentos das práticas culturais, expressam os variados
desejos humanos, seus rituais, etiquetas, filosofias e religiosidades. Para além
do mero comer ou beber, as práticas alimentares evidenciam um complexo
sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos,
estéticos e econômicos. Dentre os muitos alimentos que consumimos hoje, as
carnes circulam entre os mais protuberantes em nosso imaginário social – são
insumos custosos e parcos que suscitam status sociais, suntuosidade,
realidades de classe e consciências filosófico-religiosas. Todavia, o avanço nas
investigações relativas à História da Alimentação tem demonstrado que, desde
a Antiguidade, as carnes já possuíam lugar destacado na dieta e eram
comumente associadas a mitos, ritos e liturgias sacrificiais, além de veicularem
entre as iguarias mais desejadas no mundo antigo [cf. RUZENE, 2022]. Os
estudos recentes relativos às práticas alimentares, há um crescente interesse
nas investigações em torno da evolução das práticas alimentares ao longo do
período faraónico [TALLET, 2015, p. 319].

De modo semelhante, no Egito faraônico as proteínas de origem animal


(carnes, ovos, leites e seus derivados) eram amplamente valorizadas, desde as
refeições cotidianas até festins e cerimoniais excepcionais, servidas com
pompa às mesas dos egípcios, sobretudo nobres e aristocratas [WILKSON,
1847, p. 19-21]. Segundo Edda Bresciani, egiptóloga italiana [2020, p. 70]: “em
todas as épocas, os habitantes do vale do Nilo tiveram uma alimentação
variada e suficientemente equilibrada em proteínas e vegetais”, pelo menos
dentre as elites locais. Olhar para as dietéticas carnívoras da Antiguidade nos
permite observar diversos modelos de contato entre animais humanos e não-
humanos, de modo que podemos reavaliar e refletir eticamente os contatos e
tratamentos que mantemos com as demais “espécies companheiras”
(emprestando a terminologia de Donna Haraway). Em tempos de indústria da
carne e de novas práticas, por vezes questionáveis, da moderna pecuária
industrializada, buscamos edificar novas formas de relacionamento com o
consumo de produtos de origem animal. Tampouco intento contribuir com
interpretações que refletem o vegetarianismo ou veganismo no mundo antigo,
afinal: “o conceito de vegetariano parece ser ausente da sociedade egípcia, o
que faz com que falar do vegetarianismo nessa sociedade antiga seja algo
anacrônico” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Assim, apresento neste texto uma
breve análise a respeito do consumo animal na sociedade faraônica, visando
compreender melhor a relação dos egípcios com a carne e seus papéis na
sociedade, cultura e religiosidade faraônicas.

14
Embora o recorte se dê nas carnes convêm ressaltar que a maior parte dos
alimentos consumidos pelo povo egípcio na antiguidade era constituída por
verduras, legumes, frutas e, sobretudo, grãos, uma vez que a maior parte da
população não possuía acesso diário às proteínas animais. De fato, papiros de
sábios do período faraônico instruem ao povo que: “não se pode encontrar
melhor alimento que os legumes com sal” [BRESCIANE, 2020, p. 68]. A dieta
básica era formada por uma grande variedade de pães, comumente feitos de
cevada ou trigo, além de cerveja – alimentos tão significativos que podem ter
servido como moeda de troca ou forma de pagamento entre os egípcios
[GAMA-ROLLAND, 2019, p. 79]. As abordagens de diversos pesquisadores –
historiadores, arqueólogos e egiptólogos – não visam uma reconstrução
detalhada do cardápio dos egípcios, mas permitem refletir a relevância das
culturas alimentares e expõem uma razoável ideia do que poderia ter aparecido
em suas mesas, levando em consideração a extrema disparidade social
presente. Apesar das diferenças à mesa de ricos e pobres, assegurar uma
quantidade digna de alimentos para todos os cidadãos representava uma
“garantia de ordem social” para o Estado egípcio [BRESCIANE, 2020, p. 69].
Justamente por isso um dos objetivos mais importantes para a administração
faraônica era o armazenamento a longo prazo dos mais variados produtos
alimentícios [TALLET, 2015, p. 323]. A importância das diversas formas de
alimentação no Antigo Egito ainda pode ser observada na existência de
diversas profissões relativas à culinária, tais como: cozinheiros, açougueiros,
cervejeiros, pasteleiros, padeiros, confeiteiros, degustadores de vinho [cf.
RUZENE, 2021] e, inclusive, um curioso cargo de diretor na “casa da gordura
de boi” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 77-78].

As carnes aparecem nas dietéticas egípcias desde a mais tenra idade, estando
presente, inclusive, na mesa das crianças, por vezes dividindo espaço com a
amamentação. Nas XVIII e XIX dinastias (entre 1550 e 1189 AEC) o leite
materno era armazenado em vasos com formas femininas que ninavam bebês
em seus colos, o intuito era preservar o alimento por um determinado período,
evitando desperdícios que poderiam ocorrer a partir da introdução alimentar
dos pequenos [COELHO, 2012, p. 44]. Possivelmente, pelo que apontam
fontes escritas e iconográficas, outros alimentos eram gradualmente
acrescentados à dieta das crianças, somados ao leite materno a partir dos seis
meses aproximadamente [COELHO, 2012, p. 44]. Primeiramente, frutas,
vegetais e cereais, em formas pastosas, como purês e carnes brancas. As
carnes vermelhas aparecem à mesa das crianças um pouco maiores, além de
pães de diversos formatos, bolos e diferentes legumes. É provável que as
carnes não estivessem sempre no cardápio dos mais pequeninos (talvez com
exceção dos pescados) tanto por ser um dos insumos mais escassos na mesa
da maioria, quanto por sua digestão mais lenta e complexa. Observa-se, ainda,
que alguns egípcios possuíam um modelo específico de recipiente para
alimentação das crianças, geralmente confeccionado com argila do Nilo,
adornado com figuras protetoras, tinha as laterais com um estreitamento e um
bico, por onde o líquido poderia ser ingerido [COELHO, 2012, p. 44-45].

15
Evidências osteológicas apresentam que os egípcios antigos parecem ter tido
uma grande variedade de espécies de animais disponíveis à sua alimentação,
tanto aqueles provenientes da domesticação, quanto obtidos por meio da caça
[WILKINSON, 1847, p. 188]. Ainda assim, as carnes eram iguarias luxuosas no
Antigo Egito, o que pode ser exemplificado nas inúmeras cenas de abate,
cocção e consumo de animais representadas nas paredes dos túmulos de altos
funcionários, clérigos e nobres [TALLET, 2015, p. 321]. Carnes diversas, bem
como frutas, leite, pão e cerveja, além de flores e perfumes, eram devotados
aos deuses em festivais e festins, principalmente aqueles realizados às custas
do faraó [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 13]. As oferendas dadas
regularmente aos deuses ou aos falecidos eram uma parte importante da vida
dos antigos egípcios e os pães, carnes e frutas colocadas em frente à estátua
do deus e nas mesas de oferendas eram o principal meio de sustento dos
sacerdotes e trabalhadores dos templos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 19].
Para além das carnes, os leites também eram vastamente apreciados,
sobretudo de vacas, cabras e asnas que serviam à alimentação de adultos e
crianças, a bebida ainda era elemento ritualístico em diversas oferendas.
Queijos, manteiga, ovos e gorduras também aparentam ter sido amplamente
consumidos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 83]. Compreendendo a necessidade
de que qualquer tentativa de discutir a dieta egípcia deve ser baseada em um
conjunto heterogêneo de fontes – artísticas, textuais, arqueológicas e
epigráficas – apresento a seguir uma breve análise das investigações acerca
do consumo de carnes vermelhas, brancas e suínas na cozinha egípcia e na
ritualística antiga.

Carnes Vermelhas e Caça


Os egípcios parecem ter nutrido bastante apetite pelas carnes vermelhas que
são, de longe, as mais retratadas pela epigrafia, especialmente a carne de
bovinos [TALLET, 2015, p. 321-322]. Tais proteínas poderiam advir de animais
domésticos ou por meio da caça, sendo que eram utilizados bumerangues para
caça desportiva [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 81-82], enquanto redes e
armadilhas (normalmente feitas de madeira, junco ou palmeira) para caça com
finalidade alimentar [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64]. Dentre as espécies
domesticadas, além do gado bovino, criavam cabras, ovelhas, porcos e uma
ampla variedade de aves [TALLET, 2015, p. 322]. A criação doméstica de
animais para consumo foi bastante apontada na obra de Sir John Gardner
Wilkinson [1847, p. 188], contudo, os vestígios materiais nos permitem supor
que criadouros, estábulos e chiqueiros, bem como vinhedos, pomares,
cozinhas complexas e hortas eram mais comuns entre as elites egípcias. Os
mais abastados ocupavam bastante de seu tempo livre na caça, domesticação,
preparo e consumo de carnes, como observado nas motivações artístico-
funerárias do período faraônico [WILKINSON, 1847, p. 187-189]. Por sua vez,
os animais de caça frequentemente retratados nas paredes dos templos eram
touros, veados, vacas, gazelas, carneiros, cabras e coelhos selvagens
[MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 51]. Além desses, estudos arqueológicos
apresentam o consumo de oryx, adax, cabras-selvagens, gazelas, antílopes,
hienas, ouriços, lebres e ratos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 81]. Ainda, há
vestígios do consumo de vísceras desde a II dinastia (c. 3700 AEC),

16
especialmente baços e fígados, bem como o uso de sangue bovino para
produção de enchidos similares ao chouriço ou morcilha que conhecemos hoje
[BRESCIANI, 2020, p. 70 e 74].

Segundo John Wilkinson [1847, p. 380], em referência aos textos de Heródoto


(c. século V AEC, portanto tardios e que refletem um Egito sob influência
greco-romana), as carnes preferidas dos egípcios eram de vaca e ganso. O
egiptólogo britânico ainda se mostra surpreso com a ausência do carneiro nas
fontes helênicas, afirmando que inexistiam na alimentação egípcia. Todavia,
desviando o olhar para a osteologia zooarqueológica, vemos que uma série de
suínos, caprinos e ovinos eram consumidos (inclusive em maiores
quantidades) do que bovinos e aves [BRESCIANE, 2020, p. 74-75]. Logo, as
teses suscitadas pelas fontes de Sir Wilkinson mostram um recorte bastante
específico do período clássico e não se ratificam ante aos amplos vestígios das
dinastias faraônicas. É possível, ainda, que as carnes de bovinos e gansos
estivessem entre os itens mais desejados, mas a maioria não possuía
condições de pagar uma refeição tão generosa, então, alimentavam-se de
animais menores e mais acessíveis, como caprinos, suínos, aves e pescados –
visto que os animais maiores eram utilizados na lavoura [MEHDAWV;
HUSSEIN, 2010, p. 14 e 51]. Os membros das classes que poderíamos
denominar médias ou trabalhadoras, como profissionais da construção civil,
construtores navais e operários, possuíam maior diversidade à mesa, seus
ofícios lhes davam direito a rações diárias, porções mais recorrentes de carnes
e peixes, maior variedade de verduras, legumes e frutas, além de pães e
cervejas [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 10]. A carne bovina era
profundamente evocada nas representações nas paredes de mastabas, mas a
arqueologia nos leva a crer que figuraram com raridade nos cardápios,
especialmente das populações mais pobres ou mesmo camponeses, que
compunham juntos 90% da população egípcia no período faraônico [GAMA-
ROLLAND, 2019, p. 78].

Segundo as representações artísticas e tumulares, supõem-se que as carnes


vermelhas eram comumente preparadas grelhadas sobre as brasas ou
assadas em fornos, embora haja, em menores quantidades, cenas de
cozimento em caldeirões ou panelas [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 82]. De
acordo com Bresciani [2020, p. 74], é possível que as partes consideradas
mais nobres ou apreciadas, como o lombo, por exemplo, fossem as partes
assadas em fornos ou grelhadas, enquanto partes menos valorizadas eram
cozidas ou fervidas, em ambos os casos as gorduras (especialmente de boi e
ganso) serviam como tempero, para tanto eram armazenadas em contêineres,
às vezes rotulados com precisão. Dada a necessidade de conservar a carne
abatida os egípcios desenvolveram algumas formas bastante eficazes de
conservação. A mais comum para os bovinos era a salga com natrão, também
utilizada nos peixes, secagem ao sol para quaisquer carnes vermelhas,
conservação em jarros de mel ou em gordura animal, normalmente de ganso,
boi ou pato, como uma espécie de confit à egípcia [GAMA-ROLLAND, 2019, p.
82]. As muitas cenas de alimentação compelida de animais que aparecem nas
mastabas do Império Antigo poderiam ter a intenção de facilitar esse tipo de

17
preparo, auxiliando a formação de gordura e permitindo, ao contrário da
secagem ou salga, o armazenamento da carne com um valor nutricional mais
alto [TALLET, 2015, p. 323]. Na religião faraônica havia jejuns específicos de
interrupção ao consumo de carne, determinadas classes de pães e vinhos
durante o período de exéquias pela morte do faraó – abstinência que poderia
durar até setenta e dois dias, conforme apontado por Wilkinson [1847, p. 68-69]
em referência à obra de Diodoro Sículo (século I AEC). No interior do contexto
hierático, as carnes vermelhas também eram elementos fundamentais na
oblação aos mortos. Por exemplo, uma refeição completa encontrada em um
túmulo mastaba de Saqqara (datado da II Dinastia) continha pães, mingau de
cevada, peixe cozido, caldo de pombo, codorna cozida, rins, coxas e costelas
de boi, frutas cozidas, possivelmente figos, frutas frescas, tortas com mel,
queijo e uma vasilha de vinho, cuidadosamente depositados ao lado da mulher
ali enterrada [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 23].

Peixes e Aves
O rio Nilo era uma fonte de vida para os antigos habitantes do Egito. Dele
advinha água, animais, rotas comerciais, trabalhos e, toda primavera com as
cheias, permitia um solo rico e fértil para o cultivo de inúmeros gêneros
alimentícios. A diferença nos alimentos consumidos, além de demarcar
condições sociais de ricos e pobres, também se devia às cheias ou secas do
Nilo que podiam representar períodos de abundância ou penúria para a
população [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Não obstante, havia grande
variedade de peixes prosperando em suas águas, dentre os quais conhecemos
barbus, bagres, enguias, siluros, carpas, percas, tilápias e tainhas, cujas ovas
eram usadas no preparo de butarga (espécie de maturação de ovas de peixe
secas e salgadas) [TALLET, 2015, p. 324]. Durante o período romano foram
identificados mais de vinte e cinco tipos de pescados na dieta egípcia. Algumas
dessas espécies – como peixes-elefante (medjed), lepidotes e pargos-
vermelhos (fagri) – eram associados ao mito osiríaco e, por isso, respeitados,
assim havia peixes considerados sagrados e que não podiam ser pescados ou
consumidos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73]. Possivelmente a crença era
de que uma dessas espécies teria engolido o pênis de Osíris quando o deus foi
esquartejado pelo irmão, Seth. Ainda, há variados exemplos de pescados
mumificados em diversos templos egípcios. No papiro Harris constam, dentre
as entregas aos templos efetuadas para as festas de Ramsés III, um total de
441 mil peixes dados aos sacerdotes [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Isso
evidencia que mesmo o tabu relativo aos peixes tinha seus limites e era
heterogêneo no Antigo Egito. Supostamente os peixes constituíam a base
proteica da população egípcia antiga, fossem frescos, secos ou salgados,
alimentavam pobres e ricos, estando tanto na mesa real, quanto na ração dos
soldados [BRESCIANI, 2020, p. 75].

Muitas representações tumulares retratam cenas de pesca, bem como


diferentes métodos de preparação dos pescados, incluindo salga e secagem.
Outras mostram o consumo de variados tipos de peixe, indicando sua
popularidade nos tempos faraônicos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73].
Todavia, a oferta de peixes era rara nas mesas dos mortos, possivelmente por

18
tabus olfativos (e não religiosos), como aponta Bresciani [2020, p. 75]. Assim
como no caso da caça, a pesca também era tanto uma profissão, quanto um
hobby no Antigo Egito [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Visando a prática
desportiva os egípcios utilizavam lanças, anzóis e arpões para apanhar os
peixes, enquanto na pesca em grande escala eram utilizadas armadilhas e
gaiolas, em águas rasas, e redes em maiores profundidades [MEHDAWV;
HUSSEIN, 2010, p. 76].

As aves, por sua vez, eram, junto aos peixes, uma das principais fontes de
alimentação dos antigos egípcios, variando desde aves domesticadas até
selvagens [TALLET, 2015, p. 323]. São mencionados e retratados gansos,
grous, pombos, codornas, avestruzes, patos, frangos e galinhas só
ingressaram no cardápio egípcio a partir do período ptolomaico (c. 305 AEC)
[MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 61]. Muitas eram as maneiras de cozinhar os
peixes e aves, sendo a mais comum grelhar em espetos colocados sobre o
lume. Ainda, era possível salgar, defumar, fritar em gordura ou cozer em água
com sal e temperos [TALLET, 2015, p. 323]. A salga era uma maneira
particularmente conveniente de cozinhar o peixe para evitar sua rápida
deterioração, especialmente nos períodos mais quentes, uma vez que
mantinha o peixe comestível por um tempo maior [MEHDAWV; HUSSEIN,
2010, p. 76]. As representações nas paredes das tumbas mostram os métodos
de preparação dos gansos desde o abate, degola, depenagem, corte das asas
e pés até que estejam prontos para a grelha. Em outras ocasiões os gansos
eram salgados e depois armazenados em grandes potes de cerâmica. As aves
também poderiam ser fervidas em caldos ou confitadas, e os pombos eram
amplamente mencionados como parte do banquete funerário, cozidos em um
caldo ou em gordura de ganso [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64-65].

Controvérsia Suína
Fontes tardias apontam para um tabu relacionado ao consumo de porco – os
próprios hebreus, que tiveram contato próximo com o Egito, podem ter criado
diálogos culturais referentes à abstenção de produtos suínos [WILKINSON,
1847, p. 369-373]. Autores gregos como Heródoto (c. séc. V AEC) e Plutarco
(c. séc. II EC), assinalaram a rejeição ao porco. As artes funerárias auxiliam
nessa interpretação dada a ausência de porcos nas representações das
tumbas e sepulturas, os animais eram raramente representados na iconografia
egípcia – menos de uma dezena de cenas os mostram em contexto agrícola
em mais de dois milênios de história [TALLET, 2015, p. 322]. Todavia, como
bem assinalaram Gama-Rolland [2019, p. 85] e Tallet [2015, p. 321-322],
escavações arqueológicas e osteológicas mostram que eram regularmente
consumidos por grupos sociais menos privilegiados, levando a crer que eram
vastamente presentes nos cardápios egípcios. Exemplo disso é um sítio
arqueológico em Amarna, antiga Aquetáton, datado da XVIII Dinastia (1543-
1292 AEC), onde grandes quantidades de ossos de porcos foram encontradas.
Há, portanto, um contraste entre a zooarqueologia que aponta para os porcos,
cabras e carneiros e as representações tumulares, onde predominam os
bovinos. Também há indícios de consumo de carne suína nas festividades que
comemoravam a vitória de Hórus contra Seth ao longo de todo o período

19
faraônico [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 85-86]. É possível que a associação de
Seth, deus do caos, com porcos e javalis tenha sido um dos responsáveis pela
aversão aos suínos em determinadas regiões do Egito, levando ao contexto
assinalado pelos gregos que se contrapõem aos vestígios faraônicos. Não
obstante, porém, como já vimos, são textos tardios e abordam um Egito já
sobre influência greco-romana. Isso explica a afirmação de que os porcos
possuíam lugar de destaque na alimentação egípcia, com a possibilidade de
serem vetados em algumas libações religiosas [BRESCIANI, 2020, p. 74].

Referências
Felipe Daniel Ruzene é mestrando no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando
em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br.

BRESCIANE, E. “Alimentos e bebidas no antigo Egito” in FLANDRIN, J-L.;


MONTANARI, M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade,
2020.

COELHO, L. C. “Do nascimento aos primeiros anos de vida: um olhar sobre a


infância no Egito do Reino Médio (c. 2040-1640 a. C.)” in Plêthos: Revista
discente de estudos sobre a Antiguidade e o Medievo, Rio de Janeiro, n. 2, v.
2, p. 30-50, 2012.

GAMA-ROLLAND, C. A. “Alimentação e tabus alimentares no Egito Antigo:


pode-se tratar de vegetarianismo?” in Mare Nostrum: estudos sobre o
Mediterrâneo Antigo, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 77-91, 2019.

MEHDAWY, M.; HUSSEIN, A. The pharaoh's kitchen: recipes from Ancient


Egypts enduring food traditions. Cairo: The American University in Cairo Press,
2010.

RUZENE, F. D. “Vinho e vinicultura no Antigo Egito” in BUENO, A. (Org.).


Mundos em Movimento: Próximo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto
Orientalismo/UERJ, 2021. p. 24-30.

RUZENE, F. D. “O mito de Prometeu, os ritos sacrificiais e o consumo de carne


na Antiguidade grega” in Temporalidades: Revista de História, Belo Horizonte,
n. 1, v. 14, p. 324-348, 2022.

TALLET, P. “Food in Ancient Egypt” in WILKINS, J.; NADEAU, R. (Org.). A


companion to food in Ancient World. Oxford: Wiley-Blackwell, 2015. p. 319-325.

WILKINSON, J. G. The manners and customs of the Ancient Egypt. Londres:


John Murray, 1847.

20
UMA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO DE
ISRAEL, por Marlon Barcelos Ferreira

Nesta pesquisa busca-se analisar de forma resumida sobre o início e o


desenvolvimento da ciência arqueológica na região do atual Estado de Israel,
no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, procura-se inferir como o
desenvolvimento da ciência arqueológica se relaciona diretamente com as
condições políticas, econômicas e sociais na qual ela esta inserida e se
desenvolve.

A região do atual Estado de Israel corresponde a um território que ao longo dos


últimos milênios foi ocupada por inúmeros reinos e povos e que deixaram uma
profunda contribuição cultural e religiosa à história daquela região e do mundo.
Ao mesmo tempo, é uma região marcada por inúmeros conflitos que impactam
o cenário político internacional e geopolítico atual. Portanto, torna-se cada vez
mais necessário, estudos direcionados a região do Oriente Médio e sua
divulgação no Brasil, para melhor compreensão daquela região e de suas
influências em nossa história, cultura e religião.

A Região de Israel e o início da Ciência Arqueológica


A região geográfica do atual Estado Israelense se constitui atualmente em uma
região de importância geopolítica e consequentemente palco de inúmeros
conflitos e disputas. A região conheceu diferentes culturas paleolíticas e
neolíticas e foi palco do surgimento dos primeiros assentamentos urbanos do
mundo antigo [Giordani, 1963]. Uma região que também foi palco do
surgimento de importantes religiões e que continua atualmente sendo reduto de
peregrinações e cenário de lugares sagrados para as três maiores religiões
monoteísta do mundo [Giordani, 1963].

Durante muito tempo, as principais fontes de estudo sobre essa região


disponíveis para os estudiosos europeus, eram os antigos autores gregos e
principalmente os livros sagrados. Afinal, “A Bíblia é a fonte por excelência para
o conhecimento da História do Povo Hebreu. A historiografia hebraica ocupa o
primeiro lugar entre a literatura congênere dos povos orientais.” [Giordani,
1963, p. 229]

Nos séculos XV ao XVIII, enquanto a Europa vivenciou o desenvolvimento do


antiquarismo e consequente apelo aos elementos da cultura material, em
especial do mundo Greco-romano, na região de Israel, que era parte do antigo
Império Otomano, o antiquarismo não se propagou em relação aos elementos
da cultura material dos povos que ali habitaram na antiguidade [Trigger, 2004].
Afinal, os elementos da cultura material naquela região, tinham valor
principalmente pelo lado religioso. Sendo palco de acontecimentos religiosos

21
importantes, a região era fonte de peregrinação principalmente de Cristãos,
mais também com locais considerados sagrados para o Islã e Judaísmo:

“A partir do século IV a fé cristã passou a basear-se em relíquias,


particularmente aquelas que estavam relacionadas com a Cruz de Cristo, mas
incluso também todos os outros objetos relacionados a ele. Tal movimento se
intensificou com as Cruzadas, que foi estabelecida por meio de conflitos
religiosos, não apenas entre católicos romanos contra muçulmanos, mas
também contra judeus e qualquer irmandade cristã que divergisse em questão
de tanto de denominação quanto de lealdade.” [Funari, 2018, p.595]

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o contato e a presença europeia se


intensificaram como consequência do imperialismo europeu e a expansão do
poder econômico dos países europeus ao redor do mundo. Mesmo em uma
região dominada pelos mulçumanos, a presença ostensiva dos europeus e ao
interesse crescente sobre o Egito e os povos e eventos bíblicos, levou ao
desenvolvimento e a ampliação dos estudos relacionados à história e cultura
relacionadas à região da Palestina e de grande parte do Oriente Médio:

“Enquanto o Egito e a Mesopotâmia produziam descobertas arqueológicas


espetaculares, que por si só provocavam grande interesse público, as
descobertas relacionadas com a Bíblia, que pareciam confirmar os relatos das
escrituras, garantiam um vasto apoio à pesquisa arqueológica realizada nesses
países, assim como na Palestina.” [Trigger, 2004, p.130]

Temos que ao longo do século XIX, inúmeros arqueólogos e diversos


pesquisadores começaram a se debruçar sobre os diversos sítios
arqueológicos e construções antigas espalhadas pelas regiões
correspondentes à região de Israel, em um período marcado pelo declínio
político do antigo Império Otomano. Ao mesmo tempo, esses estudiosos e
arqueólogos estrangeiros, ajudaram a estruturar do ponto de vista teórico,
metodológico e institucional, a arqueologia na região do Oriente Médio:

“A arqueologia também foi apresentada ao Oriente Próximo pelos europeus


que criaram instituições de pesquisa e ensino em regimes coloniais (se não de
direito, de fato). Em particular, eruditos ocidentais sentiram-se atraídos para o
Egito, Iraque e Palestina pelos vestígios remanescentes de antigas civilizações
que tinham especial interesse para os europeus por serem mencionadas na
Bíblia.” [Trigger, 2004, p.176]

Assim, foi se desenvolvendo uma arqueologia centrada nos escritos bíblicos e


principalmente conduzida por arqueólogos europeus, em um período em que a
arqueologia na Europa se institucionalizava e ganhava métodos e conceitos
dentro de uma perspectiva científica:

“Pode-se ver que a Arqueologia Bíblia começou tardiamente e, com o passar


do tempo, se tornaria mais controversa. Enquanto outros ramos da ciência
estavam a serviço dos Estados-Nação, do imperialismo e do conhecimento

22
objetivo do passado, a Arqueologia Bíblica era desde seu princípio um modo de
utilizar a Bíblia como um guia para encontrar evidências da realidade por detrás
dos episódios bíblicos. Melhor dizendo, como ilustração. A cultura material do
passado antigo contribuiu para transformar a Arqueologia em uma atividade
tanto de fé, como de razão. Tal ciência trata-se de uma disciplina iluminadora,
e o motivo está em suas raízes. Medidas, datação, classificação, são todos
procedimentos acadêmicos, difíceis de aprender e colocar em prática. É,
portanto, incontestável que a Arqueologia depende da razão, e não da fé. De
qualquer maneira, também havia interesses e imperativos nacionalistas,
imperialistas e religiosos.” [Funari, 2018, p.593]

A arqueologia no século XX
Após a Primeira Guerra e o fim do Império Otomano. A arqueologia
desenvolvida na região passou a ser fortemente influenciada, pelo modelo
Histórico-Cultural em expansão na Europa e trazida por arqueólogos e
pesquisadores estrangeiros que vieram pesquisar e realizar escavações no
território do antigo Império Otomano, e que passou para o controle das
potencias europeias no final da Primeira Guerra. A arqueologia histórico-
cultural influenciou a arqueologia de várias regiões do mundo e:

“O modelo teórico - metodológico que embasava a arqueologia era o histórico-


cultural e que entendia que cada nação seria composta de um povo (grupo
étnico, definido biologicamente), um território delimitado e uma cultura
(entendida como língua e tradições sociais)”. [Funari, 2013, p.48].

Assim, esse modelo teórico e metodológico adotado pelos arqueólogos se


alinhou com as pesquisas históricas que também estavam se desenvolvendo
no Oriente médio e ajudou a alimentar o nacionalismo ao longo do século XX
na região. Assim, entendemos que na Palestina e em Israel, a arqueologia
desempenhou também um papel político ao incentivar e a de promover a
identidade e unidade nacional. Ressaltamos que o patrimônio arqueológico é
entendido como um bem material concreto e assim um objeto de valor não
apenas material, mas principalmente simbólico para o grupo social na qual está
inserido, caso não seja, o material é descartado como lixo. Ao realizar o seu
trabalho, o arqueólogo assume a responsabilidade de produzir conhecimento
sobre os vestígios materiais ou artefatos escavados e que a partir daí
assumem um papel importante na formação identitária e memorial dos grupos
ou indivíduos envolvidos, pois como salienta Pedro Paulo Funari:

“A criação e a valorização de uma identidade nacional ou cultural relacionam-


se, muitas das vezes com a arqueologia. Nesse caso, predominam com
frequência os interesses dos grupos dominantes mediados pela ação do
Estado”. [Funari, 2003, p.101]

Dentro desta perspectiva, ressaltamos assim, que arqueologia (objeto, teoria e


metodologia) enquanto ciência está submetida ao contexto social na qual ela
está inserida, pois:

23
“Qual a relação entre a arqueologia, em geral percebida como uma ciência
neutra, e a política, ou seja, a esfera das relações de poder? A arqueologia é
sempre política, responde a necessidades político-ideológicas dos grupos em
conflito nas sociedades contemporâneas”. [Funari, 2003, p.100]

Neste sentido, também o arqueólogo Bruce Trigger ressalta a relação entre a


ciência arqueológica e o sistema político e social na qual ela esta inserida:

“Arqueólogos acreditam que, porquanto os achados de suas disciplinas são


consciente e inconscientemente, vistos como tendo implicações quer para o
presente, quer para a natureza em geral, as condições sociais variáveis
influenciam não apenas as questões abordadas como também as respostas
que os arqueólogos se predispõem a considerar aceitáveis”. [Trigger, 2004,
p.12].

Portanto, não devemos pensar a ação dos arqueólogos de forma autônoma.


Eles estão inseridos dentro de redes de sociabilidade e de uma estrutura que
em suas mais diversas instâncias estava ligada ao poder dominante da época.
Produzindo um discurso cientifico e que lhes davam uma legitimidade perante a
sociedade, respaldando assim, muitas das vezes a visão de mundo da classe
dominante.

O desenvolvimento das pesquisas arqueológicas ganharam impulso na região


com o fim do Império Otomano, e principalmente com a formação do Estado de
Israel. Assim, a arqueologia se diversificou com o incremento de estudos
também voltados ao passado hebraico e realizados por arqueólogos e institutos
de pesquisas israelenses. Sendo assim, no Estado de Israel, a pesquisas
arqueológicas se consolidaram e foram guiadas pela perspectiva de uma
arqueologia histórico-cultural:

“A forte ênfase bíblica na arqueologia israelita e na ainda mais antiga


arqueologia palestina "ajudou a criar uma disciplina individual sensivelmente
não afetada por concepções metodológicas externas" (Hanbury-Tenison
1986:108). Na sua maioria, os arqueólogos israelenses são treinados em
pesquisa bíblica e histórica e devotam muito tempo ao estudo da história, da
filologia e história da arte. A arqueologia paleolítica é bem menos importante e
a influência da arqueologia antropológica limita-se, geralmente, ao incentivo ao
uso de apoios técnicos na análise de dados. Relativamente pouca atenção é
dada à arqueologia dos períodos cristão e islâmico (Bar-Yosef & Mazar, 1982).
Embora a maioria dos israelenses veja de modo positivo a pesquisa
arqueológica, alguns grupos religiosos ultraconservadores se opõem a ela,
alegando que perturba antigos sepultamentos hebreus (Paine, 1983).”[Trigger,
2004, p.227]

Nesse sentido, se desenvolveu em Israel uma arqueologia nacionalista e muito


interligada com os projetos políticos israelenses:

24
“No moderno Estado de Israel a arqueologia tem um papel bem diferente:
confirmar os laços entre uma população recém-chegada e seu passado antigo.
Conferindo um teor de realidade concreta às tradições bíblicas, ela exalta a
consciência nacional e fortalece as reivindicações de colonos israelitas de
direitos sobre as terras que estão ocupando. Em particular, Massada, lugar da
última resistência dos zelotes frente aos romanos, em 73 d.C., tornou-se um
monumento de grande valor emocional e cerimonial, como símbolo do desejo
de sobreviver do novo Estado israelita. Massada foi um dos mais grandiosos
projetos arqueológicos empreendidos por arqueólogos israelitas e desfrutou de
vasta publicidad” [Trigger, 2004, p.227]

Nos últimos anos, a ciência arqueológica ligada à região de Israel tem sido
palco de inúmeros debates e mudanças teóricas e metodológicas. Nesse
sentido, se acirrou um grande debate nos meios arqueológicos. De um lado,
autores que enxergam o papel da arqueologia enquanto meio de provar os
eventos bíblicos e do outro lado, autores que enxergam a arqueologia apenas
como um dos meios disponíveis para se estudar os diversos os aspectos
ligados ao referido período histórico:

“A arqueologia direcionada aos estudos em Israel-Palestina, nos últimos anos,


passou por uma revisão do nome, pretendendo certa autonomia frente às
correntes acima citadas, deixou-se de falar arqueologia bíblica para se
falar arqueologia da Palestina ou arqueologia do médio-oriente. Essa mudança
de “nome” visa deslocar o exercício da ciência arqueológica, em Israel-
Palestina, das convicções sejam religiosas (maximalistas) ou não-
religiosas (geralmente minimalistas), tendo como proveito uma autonomia
para a pesquisa. Desde uma perspectiva autônoma, a arqueologia passa
a se situar num lugar bastante relevante nas pesquisas sobre a história
de Israel.” [Nascimento, 2021, p.139]

Apesar de esses debates terem provocados novas reflexões sobre o papel da


arqueologia e trazidos novas leituras arqueológicas sobre o passado da região,
a ciência arqueológica na região segundo Pedro Paulo Funari, ainda continua
muito marcado pelas questões políticas e religiosas:

“A Arqueologia tem sido relevante tanto para os fieis como para os estudiosos
religiosos, e mais ainda para aqueles que se preocupam com reivindicações
territoriais e culturais. Esse fator continua a ser o mais expressivo e não há
sinais de que tal movimento se reduzirá. Pelo contrário: os conflitos no Oriente
Médio - incluso aqueles que foram baseados ou agravados por conhecimentos
e princípios religiosos - têm se expandido no início do século 21.” [Funari, 2018,
p.596]

Considerações Finais
Ao longo deste breve trabalho procuramos realizar um pequeno levantamento e
algumas considerações acerca de alguns pontos importantes sobre o
desenvolvimento da ciência arqueológica na região do Estado de Israel e
Palestina. Uma arqueologia que surgiu e se desenvolveu em um contexto

25
marcado pela visão religiosa e que logo depois se aproximou e também ajudou
a alimentar um movimento nacionalista que levou a independência e a
afirmação do Estado de Israel no século XX. Destacando assim, a forma como
a ciência arqueológica se relaciona diretamente com as condições políticas e
sociais na qual ela esta inserida na região do Estado de Israel.

Referências
Marlon Barcelos Ferreira é especialista em arqueologia (IAB-UNIREDENTOR),
Mestre em História Social pela PPGHS/UERJ e aluno de Doutorado do
PPGHS/FFP/UERJ - Email: marlonbf@hotmail.com

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.

GIORDANI, Mario Curtis. História da Antiguidade Oriental. Petrópolis: Editora


Vozes, 1963.

FUNARI, Pedro Paulo. “A arqueologia a serviço da fé e da ciência.” In


HERÓDOTO, v. 3, n. 1, Março, 2018. p.588

NASCIMENTO, Abimael Francisco do. “História de Israel: desafios do ensino a


partir da arqueologia. In KAIRÓS: REVISTA ACADÊMICA DA PRAINHA, v.17,
n.1, 2021, p.129

TRIGGER, Bruce. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo:


ODYSSEUS, 2004.

26
A ARQUITETURA DA ÁGUA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE
A PESCA NO EGITO ANTIGO, por Maura Regina Petruski

Ao longo dos séculos, muitas foram as interpretações realizadas a respeito da


história do Egito antigo que procuraram mostrar o desenvolvimento dessa
civilização em seus mais diferentes aspectos.

Podendo ser classificada como um dos berços da humanidade, visto que é


uma das sociedades mais antigas que temos notícias, juntamente com as que
se desenvolveram na Mesopotâmia, é comumente abordada como campo
investigativo respondendo questões que tiveram como ponto de partida sua
configuração geográfica, principalmente no que se refere ao processo das
enchentes periódicas nesse território, que avançavam em direção ao vale do
Nilo e potencializava uma vida fértil, garantidora de prosperidade e abundância,
perspectiva essa que foi largamente explorada pela literatura tanto de autores
antigos como contemporâneos (HERÓDOTO, l989; CARDOSO, 2012; BAKOS,
1994).

Contudo, o olhar direcionado por essa literatura a paisagem retratada, quer


dizer, a inundação nilótica, a idealizou como exuberante e a pautou um ritmo
de vida que num primeiro momento ofuscaria, ou talvez impediria, que outros
aspectos relacionados a água do rio fossem percebidos para além da vazão do
leito, e que visivelmente estivessem perceptíveis aos indivíduos, isso significa,
àquilo que existiriam abaixo da superfície.

Dentre os elementos que encaixaria na colocação mencionada acima, de não


contemplação inicial do que está abaixo do campo de visão no interior da água
do Nilo, estão os peixes que nele viviam, que, estudos mais recentes, apontam
para uma variedade de espécies, dentre as quais María Teresa SORIA-
TRASTOY cita os,

“Oreochromis niloticus, Labeo niloticus, Barbus bynni y Alestes nurse e em


menor número Tilapia zillii, Bagrus bayad, Bagrus docmak, Hydrocyonus
forskalii, Lates niloticus, Schilbe mystus y Clarias gariepinus. Contudo, a
Tilapias, Lates y Bagrus foram as espécies que melhor se adaptaram naquelas
águas. Posteriormente, foram introduzidas a eurihalinas. A Oreochromis
niloticus y Sarotherodon galilaeus foram transplantadas e crescem melhor nos
lagos superior, Tilapia zillii no inferior e Oreochromis aureus em ambos por
igual” (2020, p.359).

Tais animais que faziam parte da fauna aquática egípcia e também


compuseram a alimentação dos nilóticos, ainda que a base tivesse sido
cerealífera, pouco foram explorados no que se refere a inclusão na produção
acadêmica na área de História, visto que temos uma pequena quantidade de

27
trabalhos inseridos nesse contexto que enfoquem às atividades pesqueiras no
Egito antigo.
Desse modo, com o objetivo de suprir, mesmo que minimamente essa lacuna,
é que esse texto foi pensado e produzido, buscando trazer algumas referências
sobre a atividade pesqueira desenvolvida em solo egípcio.

Para tanto, não sendo possível abordar sobre esse assunto inserindo-o ao
longo de todo o período em que essa sociedade se edificou, nem tampouco
abarcando todo seu espaço territorial, recortou-se para esse trabalho a região
do Fayum, de onde são provenientes a maior quantidade de vestígios materiais
que possibilitam realizar estudos a esse respeito, bem como o recorte temporal
o Reino Médio.

De acordo com Soria-Trastoy, “o Fayum é uma área privilegiada para o estudo


histórico-arqueológico em forma diacrônica da pesca, e que proporciona uma
grande quantidade de informação a nível socioeconômico e tecnológico desde
o Epipaleolítico até a atualidade” (2020, p. 331).

Assim, dada a relevância dessa extensão de terra em solo egípcio relacionado


ao campo pesqueiro, a utilizaremos como referência nesse estudo, sendo
sobre ela que iniciaremos a explanação a seguir.

Um dentre outros locais de pesca: Fayum


O Fayum, situado ao sul da região do Delta e a oeste do vale do rio Nilo, está
separado fisicamente do restante do território egípcio por uma faixa de deserto
e uma cadeia de colinas que chegam desde a planície de Gizá até o sul
próximo da Núbia. A nominação ‘Fayum’ dada a essa extensão de terra vem do
árabe e significa ‘terras pantanosas’, cujo nome é proveniente do copta Phiom
lago.

Essa localidade é uma depressão que está a 44 metros abaixo do nível do mar,
formada por uma área de aproximadamente 12.000 km2. Na atualidade, esse
território consiste em dois complexos de caráter lacustre: o lago Qarun, de
águas salinas, que não se encontra conectado com o rio Nilo, e os lagos
artificiais de Wadi el-Rayan.

Esse recorte de terra egípcia esteve ocupado desde o período pré-dinástico,


mas foi durante o Reino Médio que ganhou mais atenção por parte dos
governantes egípcios, principalmente dos que integraram a XII dinastia (1991
a.C – 1782 a.C) , que transferiram a administração pública e a residência real
para esse local, fazendo com que o mesmo ganhasse visibilidade e
infraestrutura. Dessa forma, o Fayum “se converteu em uma das regiões mais
férteis, com grandes áreas cultiváveis nos arredores dos lagos e vastas áreas
de pântanos muito apropriadas para a pesca e captura de aves” (Soria-Trastoy,
2020, p. 332), sendo desse período que são originários o maior volume de
resquícios da cultura material pesqueira egípcia.

28
Com o avanço da arqueologia e uma exploração mais sistêmica e cautelosa no
interior do rio, vários objetos foram e estão sendo encontrados, possibilitando
que se conheça com mais profundidade elementos relacionados a atividade
pesqueira dos egípcios.

Não podemos nos esquecer, como alude Norberto Luiz Guarinello, que os
objetos que a arqueologia estuda são documentos importantes porque “são
uma dimensão essencial das sociedades humanas. São resultado da
intervenção humana sobre a natureza, são a forma humana no mundo, são
elemento fundamental das relações sociais e das atividades humanas (não há
atividades sem objetos, e as atividades mais importantes são as produtoras de
objetos)” (GUARINELLO, 2011, p.167).

Assim, nessa linha apontada pelo autor da importância dos artefatos como
indicadores de acesso a informações de uma dada atividade inserida num
contexto cultural, apontamos para os que fizeram parte do conjunto de
equipamento utilizado pelos egípcios para desenvolverem a captura de peixes,
e que estão possibilitando para que conheçamos na atualidade referenciais
dessa prática, são eles: as estacas de madeira, lançadeiras, anzóis, cabeças
de arpões, fragmentos de redes, flotadores e bolas de fios.

Dentre os utensílios apresentados acima, acredita-se que a rede pode ser


sinalizada como o principal instrumento de uso, isso porque ela é a que
aparece com maior frequência nos registros iconográficos deixados nas
pinturas representativas em paredes de âmbito funerário no interior das
tumbas, local de onde são originárias a grande maioria das imagens desse
contexto, como a que pode ser visualizada na figura 1 apresentada a seguir.

Figura 1 Fonte: disponível em: lifepersona.com

Dessa forma, gostaria de salientar que para a produção dos ‘panos de rede’,
que nada mais é do que o corpo da rede, exige-se do executor da tarefa
técnica e habilidade, principalmente no que se refere ao manuseio das bolas de
fios para se fazer o processo de amarração que tem como objetivo impedir a

29
passagem da presa, uma vez que o espaçamento da malha deve estar
adequada às espécies que serão capturadas, nesse sentido, não se deve
perder de vista a interrelação que deve-se existir entre a fauna aquática e a
fabricação desses artefatos, para que o resultado final seja o melhor esperado.

De acordo com Soria-Trastoy, a dimensão da largura dos fios utilizados para


confeccionar as malhas, em sua grande maioria, mediam entre 1,0 a 1,5 cm,
podendo chegar até a 3,0 cm, já as bolas de fios enrolados alcançavam entre 5
a 7 cm de diâmetro (2020, p. 332).

Para fazer com que as redes afundassem no interior do rio, eram colocadas
pesos nas suas laterais, confeccionados em formas aproximadas a bolas que
ficavam amarradas por alguns centímetros de cordas, ficando soltas abaixo do
pano de rede, funcionando como uma espécie de pêndulo, para puxá-la cada
vez mais para baixo buscando sua permanência no interior do rio.

Dario Bernal Casasola, faz referência a essa técnica utilizada pelos egípcios
mencionando a representação da atividade pesqueira a partir da imagem
encontrada na tumba de Meketre, integrante da XI dinastia e reinante em 2.000
a.C, proveniente da cidade de Deir al-Baheri, que assim fez o relato “a imagem
nos permite confirmar a presença de redes em cuja parte inferior ficavam os
pesos pendurados, fixadas na parte baixa da arte mediante cordas como ilustra
magistralmente o modelo de uma cena pesqueira em madeira policromada”
(CASASOLA, 2008, p.188).

Além da cena apontada pelo autor, também encontramos representações


iconográficas dessa natureza em outras áreas geográficas do território egípcio,
sendo que, as que foram achadas especificamente na região do Fayum, são
essencialmente de caráter funerário, e segundo Soria-Trastoy, as mais
detalhistas e prolíficas estão localizadas nas cidades de Haraga, Lahun, Gurob
e Lisht (2020, p.359).

A autora apresenta uma tabela que se reporta aos utensílios que foram
encontrados nas cidades mencionadas, a qual está fixada abaixo como forma
de visualização de maneira conjunta dos locais que compuseram a região do
Fayum em que a pesca se fez presente.

Fonte: María Teresa Soria-Trastoy (2020, p. 361).

30
Na grande maioria dos registros iconográficos as embarcações que seriam
utilizadas para levar os indivíduos para o interior do rio não foram
caracterizadas na representação, mesmo sendo os barcos elemento de grande
significância no imaginário dos egípcios, uma vez que esse veículo fez parte de
elementos ligados a construção da cosmogonia, religiosidade e questões
relacionadas a morte.

Algo que não se deve perder de vista, é que a atividade pesqueira encaminha
para a existência de um saber fazer, a um acúmulo de reserva de
conhecimento que vão sendo apropriados pelos pescadores a partir de uma
prática concebida ao longo do tempo.

Desenvolvê-la, pressupõe-se conhecimento de meios mais técnicos por


àqueles que a fazem, dentre os quais está o domínio do território aquático e
referenciais de localização, quesitos que ocasionam, mesmo que
inconscientemente, a um processo de mediação com a própria natureza.

Dentre os itens que se integram com o exposto acima, podemos citar os


pressupostos de identificação da fluência dos ventos, pois ele interfere no
deslocamento da embarcação estimando a velocidade que ela possa atingir.

Ademais, também temos como outro aspecto de parâmetro, o acesso a


informações do relevo fluvial, haja vista que se faz necessário demarcar os
espaços no interior do próprio rio, para que se consiga identificar os locais que
uma ou outra armadilha sejam instaladas ou onde a rede deva ser lançada.

Requer inclusive a observação da fauna aquática, para se constatar quais as


espécies de cardumes que vivem no rio, e o estabelecimento da forma mais
adequada para que cada uma delas possa ser capturada, acrescido ao fato de
se detectar a diferenciação a profundidade em que cada espécie utiliza e se
conduzem na água.

Por fim, para ultrapassar a miragem da água, que à primeira vista é


aparentemente visível, exige-se muito mais do que um mero olhar, uma vez
que o que abaixo da superfície poucos conhecem.

Considerações Finais
A despeito da temática ora em questão apresentada, a pesca em território do
Egito antigo no vale do rio Nilo, é importante salientar que esse trabalho é o
primeiro a ser elaborado inserido nesse recorte por parte da presente
pesquisadora.

Por ser uma aproximação ainda embrionária, adverte-se que essa linha de
investigação na área de História é um campo que ainda precisa ser
desbravado, visto que a quantidade de publicações a esse respeito é reduzida
e poucos são os historiadores que se lançaram a conhecer com mais
profundidade esse aspecto da história dos antigos egípcios.

31
Dessa forma, acredita-se que com os avanços das explorações arqueológicas
na região, novas fontes possam ser descobertas e possibilitem trazer
elementos que auxiliem na ampliação das informações a esse respeito,
preenchendo hiatos que estão abertas até então.

Finalizo, esperando que com esse trabalho possa abrir novos caminhos de
pesquisa para se refletir mais sobre o assunto, e que tenhamos em vista que
pescar não é um ato tão simples como parece.

Referências Bibliográficas
Maura Regina Petruski. Doutora em História pela Universidade Federal do
Paraná. Professora do departamento de História da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG). Integrante do corpo docente da pós-graduação
Mestrado de Ensino de História (PROFHIST) da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG)

BAKOS, Margareth Marchiori. Fatos e mitos do Egito Antigo. EDIPUCRS:


Porto Alegre, 1994.

CARDOSO, Ciro Flamariom. Os festivais divinos no antigo Egito. Revista


Phôinix. V.18, N.1, 2012.

CASASOLA, Dario Bernal. Arqueologia de las redes de pesca: um tema crucial


de la economia marítima hispanoromana. Mainake XXX. Cadiz, Espanha, 2008,
p. 181 – 215).

GUARINELLO, Norberto Luiz. Arqueologia e cultura material: um pequeno


ensaio. In: Arqueologia do Mediterrâneo Antigo: estudos em homenagem a
Haiganuch Sarian. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo. FAPESP: SBEC, 2011, p.161 – 169.

HERÓDOTO. História. Trad de Mário da Gama Kury. Editora Universidade de


Brasília: Brasília, 1988.

SORIA-TRASTOY, María Teresa. Las estacas de madera de Haraga y la pesca


en el-Fayum durante el Reino Medio. Trabajos de Egiptología. Laguna:
Espanha, N.11, 2020.

32
A ASCENSÃO DA GRANDE PÉRSIA DE CIRO, O GRANDE,
por Willian Spengler

Todos os anos, na época em que os dias se tornavam mais longos e a


primavera despertava os campos, das regiões mais distantes do mundo
conhecido partiam caravanas – burros de carga da Anatólia e da Trácia,
comboios de camelos da Bactriana e da Arábia, exércitos de carregadores do
grande oásis formado pelo vale do Nilo, carruagens da Assíria, carros de boi
dos afluentes do rio Indo. Todos tinham o mesmo destino e transportavam
tributos, sob a forma de pedras e metais preciosos, ébano, marfim, peles de
animais e tecidos valiosos. Alguns grupos conduziam animais: antílopes da
Líbia ou garanhões da Armênia. Os babilônios levavam um carregamento
exótico – quinhentos jovens eunucos.

Vindos de todas as partes do império, esses cortejos avançavam com rapidez


por uma excelente rede de estradas a fim de, pouco antes do equinócio da
primavera, chegar a Persépolis – um monumental complexo de palácios e
fortalezas que se erguia em esplêndido isolamento no elevado planalto
iraniano. Em Persépolis, emissários de todos os estados e satrapias
pertencentes ao império persa entregariam seus “presentes” de ano novo – a
quantidade e a natureza dos tributos anuais havia sido estipulada pelo governo
imperial. O rei da Pérsia, o grande Rei, o Rei dos Reis, o soberano mais
poderoso na face da Terra.

Manel García Sanchez, citado por Matheus de Araújo, menciona que:

“[...] ao se falar da realeza iraniana, tenhamos em mente que os persas


pensaram em seu território em termos de império [...] e não de reino, feito que
explicaria a denominação de seu rei não como monarca em paridade a outros,
mas como rei dos reis ou Grande Rei”. [Araújo, 2018, p. 47]

Ninguém jamais controlara um território tão vasto ou tanta riqueza. Os nobres


do Egito, os sátrapas da Mesopotâmia e da Ásia Menor, os chefes nômades
dos desertos orientais e os rajás da Índia, todos pagavam tributos ao soberano
da Pérsia. No apogeu do império, por volta do início do século V a.C., o
domínio persa abrangia cinco milhões de km² de montanhas e estepes,
imensos desertos e férteis planícies fluviais, habitados por cerca de 10 milhões
de súditos.

Para preservar um domínio tão vasto, os persas foram obrigados a desenvolver


novas técnicas de governo, que fossem eficazes em enormes áreas onde
viviam povos extremamente diversos. O uso da força e do terror, comum no
auge do domínio assírio, provavelmente não seria eficaz na consolidação de

33
um império tão extenso – embora o medo não seja um fator desprezível, ele
em geral leva rapidamente ao ressentimento e à rebelião.

Mario Giordani registra que:

“Não era fácil administrar o vasto império cujas fronteiras atingiam o Mar
Cáspio, o Cáucaso, o Mar Negro, o Mediterrâneo, os desertos da África e a
inóspita Arábia, o Golfo Pérsico e a Índia. Dentro dessa moldura natural e
colossal habitavam povos os mais diversos pela língua, religião e costumes,
povos esses que suscitavam sérios problemas de ordem política,
administrativa, militar e financeira”. [Giordani, 1972, p. 276]

Por sua vez, Matheus de Araújo menciona:

“O notável sucesso do Império Aquemênida ao longo de tanto tempo não pode


ser entendido apenas a partir da estratégia militar ou da conquista. Logo no
início, soberanos como Ciro e Cambises obtiveram êxito em seu governo
imperial graças a uma política de concessões e alianças na periferia do
império. Na Babilônia e no Egito, os reis se aliavam às elites locais e
recompensavam seus apoiadores com posições de poder. Ao mesmo tempo,
os monarcas se apresentavam a partir de fórmulas locais, respeitando as
tradições dos povos submetidos e evitando, assim, promover rebeliões”.
[Araújo, 2018, p. 188]

Matt Waters traça, de forma concisa, como esse colosso territorial se constituiu.
Os ancestrais dos persas haviam migrado para o planalto iraniano por volta de
2000 a.C., com as tribos indo-europeias que viviam nas estepes da Rússia
meridional. Entre elas estavam os árias, que chegaram ao planalto por volta de
1000 a.C. Supõe-se que tenham atravessado os desertos do Turquestão e, em
seguida, se dirigido para oeste, junto à extremidade sul do mar Cáspio,
seguindo até as vertentes dos montes Zagros. Um grupo iraniano aparentado,
os medos, estabeleceu-se na região noroeste do planalto iraniano. Os árias
prosseguiram rumo ao sul e, após muitas gerações, “se estabeleceram numa
região que chamaram de Parsa, na orla sudoeste do planalto”. [Waters, 2014,
p. 6]

Apesar de deserto, aridez e cascalho, ao norte, leste e ao sul, a região


noroeste constituía-se em fértil planície, irrigada por um dos afluentes inferiores
do Tigre. Mas aquela área havia muito estava ocupada pelos elamitas, cujo
pequeno mas poderoso reino se mantivera independente durante dois mil anos.

Em meados do século VII a.C., uma série de convulsões políticas começou a


redefinir as estruturas de poder em toda região. “Uma rápida sucessão de reis
refletiu a instabilidade resultante em Elam, entre o final dos anos 650 e início
dos anos 640, [...] resultando em caos político e atritos com a Assíria” [Waters,
2014, p. 24]. Os elamitas sucumbiram perante às formações de cavalaria e
pelas elevadas torres de assédio dos assírios. A capital elamita, Susa, foi

34
reduzida a ruínas. Em seguida, a própria Assíria, que dominava o Oriente
Médio havia vários séculos, defrontou-se com uma séria ameaça: os medos.

Em seu território nos montes Zagros, eles haviam transformado uma sociedade
tribal e nômade em uma monarquia poderosa e estável. O rei medo governava
a partir de uma fortaleza no topo de uma colina em Ecbátana. Nos últimos anos
do século VII a.C., o rei medo era Ciaxares. Ele reorganizou o exército, criando
formações disciplinadas de cavaleiros, arqueiros e lanceiros.

Matt Waters relata que “os medos eram os líderes de uma grande coalizão de
povos de todo o norte do Irã, uma coalizão unida por uma personalidade forte
como Ciaxares e apenas com o propósito de derrotar a Assíria”. [Waters, 2014,
p. 34]

Em 615 a.C., Ciaxares atacou Assur, o principal centro religioso da Assíria. Em


seguida, os medos aliaram-se aos babilônios e destruíram Nínive, a capital
assíria; depois, perseguiram e dizimaram o exército assírio. “Os aliados
dividiram o ímpeto vencido: os babilônios ficaram com o sul da Mesopotâmia, a
Síria e a Palestina; os medos com o restante. O Egito, que os havia apoiado,
obteve sua própria independência”. [Waters, 2014, p. 34]

Ciaxares passou a controlar um território que ia da Anatólia oriental ao mar


Cáspio e, ao sul, abrangia o antigo Elam e as terras persas. Na Anatólia, as
terras de Ciaxares limitavam-se com o rico e agressivo reino da Lídia. As
hostilidades entre lídios e medos eclodiram em 591 a.C. e se arrastaram por
cinco anos. Exatamente quando se tornava evidente que nenhum dos lados
alcançaria uma vitória conclusiva, Heródoto registra que ocorreu um aparente
“milagre”: enquanto os exércitos se digladiavam – posteriormente os
astrônomos fixariam a data em 28 de maio de 585 a.C. – o céu escureceu ao
meio-dia e parecia que a noite havia caído. Era um eclipse solar, que os
soldados interpretaram como um sinal de descontentamento dos deuses.
Atemorizados, baixaram as armas e abandonaram o campo. Sobre este
episódio, Matt Waters registra que “é difícil separar o que é fato e o que é
ficção, nos relatos gregos”. [Waters, 2014, p. 35]

De qualquer modo, todos estavam fartos da guerra, inclusive a Babilônia, cujo


lucrativo comércio com a Lídia declinara. Por insistência desta, firmou-se um
tratado que estabelecia a fronteira entre as duas nações no rio Hális. O filho e
herdeiro de Ciaxares, Astíages, selou o acordo casando-se com a filha do
monarca lídio. Após anos de conflitos, a paz retornou ao Oriente Médio. Logo
após assumir o trono medo em 585 a.C., Astíages deu a mão de sua filha
Mandane ao soberano aquemênida Cambises. No ano seguinte, Mandane deu
à luz um filho, Kurush – cujo nome entraria para a história sob sua forma grega,
Ciro.

David Asheri relata que:

35
“Na área montanhosa irânica [...] a monarquia meda apoiava-se em um vasto
agregado de reinos vassalos e tributários. Em um destes, que os textos
assírios do século VII conheciam como Párshua, reinava então um certo
Kurash (Ciro), possível antepassado do fundador homônimo do império persa:
este último, com efeito, fez-se chamar, em seu ‘Cilindro’, ‘filho do Grande Rei
Cambises, rei da cidade de Ashan, neto do Grande Rei Ciro, rei da cidade de
Ashan’”. [Asheri, 2006, p. 20]

Existem várias histórias sobre o nascimento e a infância de Ciro II. Heródoto,


mencionado por Matt Waters, menciona uma versão segundo a qual, pouco
antes de Ciro nascer, seu avô Astíages teve um sonho no qual “uma videira
brotava das costas de Mandane, lançando gavinhas que envolviam toda a Ásia.
Os sacerdotes interpretaram o sonho, dizendo ser a videira o futuro filho de
Mandane que, ao crescer, conquistaria não apenas a Média, mas o mundo
inteiro”. [Waters, 2014, p. 48]

Astíages decidiu cortar a ameaça pela raiz. Ele ordenou a seu mordomo-mor,
Harpago, que levasse o recém-nascido Ciro para as montanhas e o matasse.
Mas, ao contemplar a beleza e a nobreza do bebê, Harpago não teve coragem
de cumprir a ordem, reza a lenda. Em vez de matar a criança, ele a entregou a
um pastor, para que este a criasse.

Seja qual for a história de seus primeiros anos, Ciro certamente foi educado
como os meninos persas, os quais por tradição aprendiam a “cavalgar um
cavalo, atirar com um arco e falar a verdade” [Heródoto, 2017, p. 97]. Na
realidade, a educação era mais abrangente, incluindo o uso de outras armas, o
combate a pé e o treinamento para sobrevivência em regiões desérticas. Ao se
tornar adulto, Ciro era hábil com o arco, bastante sábio para sua idade e
extremamente ambicioso. Quando tomou o lugar de seu pai em 559 a.C., ele
unificou as tribos persas e transferiu a corte para Elam, onde reconstruiu a
antiga capital, Susa, que se tornou o centro administrativo e logo ele revelou
sua independência: iniciou conversações diplomáticas com a Babilônia –
confirmando os piores temores de Astíages.

Este, por sua vez, havia se tornado cada vez mais tirânico e uma oposição
silenciosa começou a se organizar entre os medos. Em 550 a.C., Astíages
enviou um exército para humilhar seu ambicioso neto. As duas forças
encontraram-se na árida planície próxima a Pasárgada e, logo no início do
confronto, a maior parte do exército medo desertou para o lado inimigo.
Astíages foi preso por seus próprios generais e conduzido até Ciro. Em vez de
degolar seu prisioneiro, Ciro demonstrou a generosidade que caracterizaria
todo seu reinado: embora destituísse o avô de sua posição e seus títulos,
poupou sua vida. Em seguida, marchou em triunfo para Ecbátana e assumiu o
controle do império medo.

Além dos territórios, Ciro herdou as instituições dos medos: uma eficiente
burocracia, um exército poderoso e cerimoniais majestosos. Os funcionários

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mantiveram seus cargos e trabalharam em aparente harmonia com os recém-
nomeados “colegas” persas.

Acerca das tropas persas, Nick Sekunda registra que Heródoto cunhou a
alcunha de “Os Imortais”, para a infantaria pesada de elite, pois “suas divisões
eram dotadas de força infalível, cada morto era imediatamente substituído, de
forma que o ímpeto ofensivo era sempre mantido”. [Sekunda, 1992, p. 6]

O passo seguinte de Ciro foi ampliar seu território. Seu alvo inicial foi a Lídia,
antiga inimiga dos medos. Desde a época da batalha do eclipse, a Lídia
prosperara sem cessar. Os cofres reais estavam tão repletos que seu
soberano, Creso, era considerado a personificação da riqueza extravagante.

Creso também tinha ambições imperiais e cobiçava as terras a leste do rio


Hális, que lhe haviam sido negadas pelo antigo tratado com a Média. Ao
planejar a campanha, ele – como vários monarcas prudentes da época – relata
Mario Giordani, não deixou de consultar um adivinho. Não um adivinho
qualquer, mas o melhor que o dinheiro podia comprar: o Oráculo de Delfos, na
Grécia. Perguntado se Creso iria “destruir grande império”, Sibila Délfica, a
sacerdotisa por meio da qual falava o deus Apolo, acenou positivamente – “se
Creso atravessasse o Hális, um grande império seria destruído”. [Giordani,
1972, p. 259]. Nem passou pela cabeça do soberano lídio indagar qual império
seria destruído. Confiante na vitória, em 547 a.C. ele invadiu a Média.

Enquanto isso, Ciro conduzira seu exército através da orla setentrional da


Mesopotâmia. Ele encontrou o inimigo em Ptéria, uma aldeia fortificada nas
proximidades do rio Hális, e lá os dois exércitos enfrentaram-se do amanhecer
ao pôr do sol. Na manhã seguinte, em desvantagem numérica, Creso ordenou
que suas tropas retraíssem a Sardes, capital lídia.

Na Antiguidade, a guerra era uma atividade sazonal. Os exércitos eram


mobilizados na primavera e desmantelados no outono, de modo que os
homens pudessem cuidar dos rebanhos ou plantar as safras de inverno. Os
lídios abandonaram o campo de batalha na época em que as hostilidades
normalmente cessariam. Creso começou a dispensar seus soldados e a fazer
os preparativos para a estação seguinte.

Ciro, no entanto, não pretendia esperar. Detendo-se apenas o tempo suficiente


para que os lídios se dispersassem, ele marchou em direção a Sardes. Creso
reconvocou apressadamente o que restara de seu exército para enfrentar os
atacantes. A cavalaria lídia arremeteu contra os persas. No entanto, não tardou
a desorganizar-se devido a uma perspicaz tática de Ciro: “seus cavaleiros
montavam camelos e o cheiro desses animais estranhos aterrorizou de tal
forma os cavalos lídios que estes debandaram” [Sekunda, 1992, p. 46]. Após o
desastre, Creso refugiou-se em Sardes, mas a cidade, uma fortaleza
supostamente inexpugnável no alto de uma colina, caiu em duas semanas. Por
fim, Creso compreendeu o verdadeiro significado da mensagem da Sibila de
Delfos: ele realmente havia destruído um império, o seu próprio.

37
Nos anos seguintes, Ciro consolidou seus domínios no planalto iraniano e
ampliou seus territórios a leste. Ao alcançar as margens do atual Syr Daria,
finalmente interrompeu seu avanço. Ciro fez daquela desolada região a
fronteira setentrional do império e mandou construir uma série de fortificações.
Entretanto, não se contentaria com as vitórias já alcançadas. A Babilônia – o
mais importante centro cultural do Oriente Médio – ainda se conservava
independente, embora estivesse quase inteiramente circundada por territórios
persas. Aquela região tornar-se-ia o objetivo seguinte de Ciro.
Nabucodonosor, que subira ao trono em 604 a.C., circundara a cidade da
Babilônia com espessas muralhas, em cujo topo construíram-se duas fileiras de
casas separadas por uma rua que permitia a passagem de uma carruagem
puxada por quatro cavalos. Entretanto, sua morte, em 562 a.C., desencadeara
um período de descontentamento. Seu sucessor, Nabonido, negligenciou os
negócios do Estado e desperdiçou tempo e riqueza em um culto ao deus lunar
Sin, afastando-se do poderoso clero do principal deus babilônico, Marduk.
Ademais, Nabonido permaneceu onze anos longe da capital, empenhado numa
campanha militar na Arábia. “O desgoverno e o suborno eram desenfreados, os
camponeses foram oprimidos e seus campos ficaram sem cultivo”. [Olmstead,
1999, p. 45]

Nesse momento crítico, os persas invadiram a Babilônia. Houve um sangrento


confronto junto à cidade de Opis, mas em geral Ciro parece ter sido saudado
como um libertador. Um dos governadores provinciais da Babilônia, Gobrias,
passou para o lado dos persas e Ciro enviou-o à capital com “Os Imortais”.
Gobrias tomou a cidade em 13 de outubro de 539 a.C. Ciro lá chegou
dezesseis dias depois, marchando em triunfo sob a grande Entrada de Ishtar.

Ciro apropriou-se do título de rei da Babilônia e apresentou-se como legítimo


herdeiro do reino, escolhido pelo próprio deus Marduk. Diariamente fazia suas
devoções no templo de Marduk, conquistando o apoio dos sacerdotes. Ele
manteve os funcionários da burocracia babilônica em seus cargos, confiando-
lhes a administração do país. Os governantes dos estados dependentes da
Babilônia declararam lealdade a Ciro.

Ciro administrou seus domínios ampliados com o mesmo tato que


caracterizava suas vitórias. Sempre que possível mantinha em suas funções os
governadores locais, exigindo apenas lealdade e tributos. Nas cidades gregas
da Jônia, permaneceram no poder os soberanos que se submeteram, mas ele
respeitou seus costumes e instituições.

Dentre os beneficiados por esse regime estava o povo de Judá – grande parte
do qual vivia em exílio forçado na Babilônia. Os desterrados não se esqueciam
da época não muito distante, em que possuíam seu próprio reino independente
nas colinas da Judéia. Isso proporcionou a Ciro uma oportunidade na distante
Palestina. Assim, em 537 a.C., ele autorizou os exilados a retornarem à Judéia.
As gerações seguintes considerariam Ciro como “o messias persa”.

38
Com um aliado agradecido na Palestina e sua fama consolidada, Ciro passou a
controlar o corredor até os tentadores campos de cereais do vale do Nilo.
Estava aberto, portanto, o caminho para a conquista do Egito. Mas, enquanto
Ciro se preparava, sua atenção foi desviada para a fronteira nordeste do Irã.
Uma tribo de nômades das estepes, os masságetas, estava saqueando a
região da fronteira entre os mares Cáspio e Aral.

Em 530 a.C., Ciro dirigiu-se para o norte, a fim de repelir os invasores. Essa foi
a única batalha que perdeu, morrendo junto com a maior parte de seus
homens. Heródoto relata que seu corpo foi levado de volta a Pasárgada e
sepultado num modesto mausoléu de pedra, que ele próprio projetara. Durante
muitas gerações, todos os meses os sacerdotes persas ali sacrificaram um
cavalo em homenagem ao grande conquistador.

Nos dizeres de Maria Brosius:

“No espaço de cerca de vinte anos, Ciro II liderou uma série de campanhas
militares em que submeteu os reinos do mundo conhecido, Média, Lídia e
Babilônia, bem como territórios a leste de Parsa, controlando uma área
aproximadamente equivalente ao Oriente Médio moderno, estendendo-se
desde Turquia e a costa do Levante até as fronteiras da Índia, e das estepes
russas ao Oceano Índico. Isso foi fenomenal e uma realização notável para um
único governante, cujo carisma e a habilidade militar permitiu-lhe comandar um
vasto exército multiétnico, e que impôs uma organização política que
permaneceu uma ferramenta eficaz por mais de 200 anos”. [Brosius, 2006, p.
8]

Em suma, Ciro, o Grande, foi um líder visionário e habilidoso que conquistou


vastos territórios e estabeleceu o Império Aquemênida. Sua política de
tolerância e respeito pelas culturas locais o distinguia de muitos outros
conquistadores da Antiguidade – cabe ressaltar que apesar destas práxis, Ciro
também foi criticado por seu estilo de governo, especialmente nos territórios
mais distantes do império, onde a repressão era mais comum. Seu legado é
uma mistura de conquistas militares impressionantes e sua reputação como um
governante benevolente e sábio, fatores estes que proporcionaram que seu
nome atravessasse os séculos e permanecesse popular até nossos dias.

Referências

Willian Spengler é historiador militar/professor vinculado à Secretaria de Estado


da Educação de Santa Catarina, pós-graduado pela UFRJ, podcaster do
SciCast [https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast] e do Fronteiras no
Tempo [https://www.deviante.com.br/podcasts/fronteirasnotempo/].

ARAUJO, Matheus Treuk Medeiros de. O Império Aquemênida em Heródoto:


identidade e política nas Histórias. Tese (Doutorado em História Social) – USP.
São Paulo, 2018.

39
ASHERI, David. O Estado Persa: ideologias e instituições no império
aquemênida. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BROSIUS, Maria. The Persians: An Introduction. Routledge Taylor & Francis


Group, 2006.

GIORDANI, Mario Curtis. História da Antiguidade Oriental. Petrópolis: Vozes,


1972.

HERÓDOTO. Histórias. São Paulo: Edipro, 2017.

OLMSTEAD, Albert T. History of the Persian Empire. The Universty of Chicago


Press, 1999.

SEKUNDA, Nick. The Persian Army 560-330 BC. Osprey Publishing, 1992.

WATERS, Matt. Ancient Persia: A Concise History of the Achaemenid Empire,


550–330 BCE. Cambridge University Press, 2014.

40
OS VENTOS SOPRAM DO ORIENTE: OS CONHECIMENTOS ORIENTAIS
ADENTRAM NA EUROPA, por Gabrielle Legnaghi de Almeida e
Anelisa Mota Gregoleti

Introdução
Com o decreto de Justiniano em 529 d.C., que determinava o fechamento da
escola de Platão, a preservação e propagação das obras e pensamentos dos
grandes filósofos gregos, que outrora atingira o ápice e regera os
conhecimentos da sociedade em seus mais variados âmbitos como na política,
astronomia, ciência, e ainda, na medicina, teria como destino a sua decadência
e desaparecimento (BITTAR, 2009). Apesar do momentâneo esquecimento
acerca dessas teorias no mundo ocidental, pelo menos até as trocas e legados
culturais encontrados na Península Ibérica durante todo o processo de
reconquista de terras arabizadas ou no sul da Itália, foi através dos povos
orientais que essas postulações foram preservadas através do tempo. Com os
árabes, elas voltaram a resplandecer.

“Introdutoriamente, o termo “árabe” não é consensual. Os árabes tem a sua


historia enraizada no espaço da Península Arábica ou Arabia, espaço que, com
a com a expansão que se segue à fundação da religião islâmica, é também
aumentado. Integram um povo heterogéneo que povoa não só na Península
Arábica, mas também o Médio Oriente e a África setentrional. Segundo Habib
Hassan Touma, (compositor e etnógrafo palestiniano, autor de diversos livros,
ensaios e artigos, que viveu no século passado) “A essência da cultura árabe
envolve a língua, o Islamismo e a tradição e costumes” (COSTA; MENESES,
2018, p. 18).

Durante o século III e IV na Escola de Edessa, obras de Euclides, Arquimedes,


Aristóteles, Hipócrates e outros filósofos já eram traduzidas do grego para o
siríaco. Neste momento, tais regiões da Mesopotâmia, Iraque e Síria,
consistiam em um território recentemente convertido ao cristianismo. Assim,
esses povos “se viram obrigados a aprender o grego a fim de ler o Antigo
Testamento e os escritos dos Padres da Igreja, uma necessidade que conduziu
às leituras da Ciência e Filosofia gregas” (SILVA, 2012, p. 63). À vista disso,
posteriormente, quando se inicia a expansão e conquistas destes territórios
para o Islão, tais princípios helênicos são adotados como alicerce para toda a
construção da filosofia árabe.

Dessa forma, merece destaque a importante presença de colecionadores e


escribas árabes no registro e transmissão da informação científica e cultural,
principalmente entre os séculos IV e XV (GAUZ, V.; PINHEIRO, L. V. R., 2010).
A partir dessa acumulação de textos em acervos e mesquitas, foi possível
iniciar um massivo processo de tradução de manuscritos que remetem ao

41
período do reinado de Harun-al-Rashid (786-809), quando jovens cientistas da
região da Pérsia foram levados à Bagdá para essa função, como pontua Gies
(1995). As evidencias da aparição de Hunayn Ibn-Ishaq (809-873) que, devido
a seus conhecimentos, logo alçou posição de destaque na sociedade árabe,
tornando-se inicialmente, o médico do filho do monarca. E ainda, em 830, é
nomeado ao cargo de diretor da Casa da Sabedoria, local cuja atribuição era
exatamente o armazenamento e tradução destas obras. Para além, outros
polímatas também foram fundamentais para a conservação, disseminação e
transmissão das teses gregas, tais como: Avicena (980-1037) e Averróis (1126-
1198) (BITTAR, 2009).

Desenvolvimento
O que pode ser considerado como sendo a “idade de ouro” da medicina
islâmica é comumente datada entre os séculos VIII e XIII. Os primeiros séculos
do período cristão, as invasões repetidamente denominadas como “invasões
bárbaras”, as grandes epidemias, e o anti helenismo da Igreja Católica,
contribuíram para a destruição de inúmeros textos antigos de autoria grega e
romana, que constituem as bases da civilização do Ocidente. Porém, desde o
século V, a nova religião islâmica fomenta a preservação do conhecimento
clássico, que ainda resistia, e que mais tarde facilitaria sua recuperação na
Europa. “É o respeito dos conquistadores árabes pela sabedoria que faz com
que se convertam na pedra fundamental do conhecimento greco-romano,
durante vários séculos, enquanto a Europa medieval mantém escassos
contatos com os textos clássicos” (COSTA; MENESES, 2018, p. 22)

Ao questionar sobre a compreensão dos paradigmas de saúde e enfermidade,


dominaram por durante dois mil anos as percepções de imagem e
funcionamento do corpo herdadas pela medicina e filosofia dos antigos gregos,
produzidos em meados do século IV e V a.C. O modelo humoral contido nos
escritos de Hipócrates (século V a.C), e posteriormente Galeno (século II d.C)
sustentaram e influenciaram nas teorias médicas no Ocidente até o século XIX.
(PORTER; VIGARELO, 2008, p. 442). E ainda, até hoje, é possível identificar
relações em algumas crendices populares.

Dentre as produções no cenário europeu, as traduções do árabe tiveram um


papel fundamental para a evolução do saber médico, que se espalhou por toda
a Europa. O que inevitavelmente acabou por contribuiu no fortalecimento da
teoria galênica no contexto da medicina medieval. De início, este processo se
deu por meio de um galenismo arabizado, e em seguida, a teoria galênica de
influência latina começou a tomar espaço no cenário médico (MANDRESSI,
2005, p. 416). Em contrapartida, ao mesmo tempo em que o saber médico
oriental influía no conhecimento galênico na Europa, o contrário também
ocorria. Porém, dada a posição geográfica e intercâmbios, pode-se considerar
que a ciência médica de origem islâmica também era resultado da absorção de
diversas outras culturas da região oriental, como por exemplo, a chinesa, e a
indiana.

42
A medicina presente no oriente em meados do século IX pode ser interpretada
como resultado de uma mescla entre a cultura árabe, de influência oriental,
com os saberes clássicos de Platão e Aristóteles. No século XI fora traduzido
obras médicas árabes, visando mapear por seu intermédio a herança da
medicina greco-romana. Essas traduções constituíram-se quando as práticas
de cura europeias passaram a ser consideradas oriundas de um saber
específico na Europa, sendo um dos pilares para desenvolver a escolástica
médica do século XIII (SANTOS, 2014, p. 123).

A influência árabe conseguiu assimilar e, em contrapartida, deixar sua marca


na cultura, arte, ciência, filosofia, e ainda, na medicina da Europa.
Exemplificando o legado dos povos orientais, a Espanha passou a ser
detentora de um papel importante no cenário europeu. O que serviu como uma
espécie de centro de disseminação do legado grego absorvido pelos árabes, e
por eles disseminados nas discussões sobre as obras de Aristóteles. (BITTAR,
2009).

Pode-se compreender o território espanhol como uma das principais portas de


entrada, não só dos árabes para conquistar terras a noroeste, mas também
como a janela que permitiu com que a cultura, tecnologia e desenvolvimento de
origem oriental adentrassem na porção europeia do continente. E ainda, além
do anseio de dominar, também traziam consigo um vasto patrimônio intelectual
e tecnológico, dominando diversas áreas do conhecimento, incluindo as
práticas das ciências médicas. Nesse contexto, por exemplo, a capital de al-
Andalus pode ser considerada como centro administrativo, além de representar
uma das cidades mais prósperas do Ocidente, onde se desenvolveu uma
cultura e tradição denominada hispano-muçulmana (BITTAR, 2009).

Do final do século XI, até o início do século XIV, a maciça tradução dos textos
orientais e a dominação dos ensinamentos neles contidos formaram um corpo
de obras que desenvolveram o cenário e a arte de curar na Europa. O conjunto
dessas obras fez com que os conhecimentos anatômicos ganhassem clareza e
precisão. Os grandes manuais de medicina de origem árabe, como o “Cânon”
de Avicena ou o Colliget de Averróis, possibilitaram um olhar mais atento
direcionado às questões anatômicas, atribuindo-lhe um papel mais definido.
(MANDRESSIM, 2005, p. 416). Com esta percepção sobre anatomia, e a
importância das dissecações para o conhecimento das funções internas, pode-
se perceber a tendência de conhecer as partes do corpo. Além de uma
observação de seu interior pautadas na experiencia, não restringindo apenas
aos limites dos manuais e registros escritos.

Abu Ali Huceine ibne Abdala ibne Sina, latinizado como Avicena, ou,
perpetuado como al Sheikh al-Rais, nasceu em Afsana por volta do ano de
980, sendo, possivelmente, de origem persa, foi um dos mais importantes
filósofos e médicos do Islam e do período medieval, produzindo cerca de 250
obras de temas diversos. (DE MACEDO; CINTRA, 2009, p. 1). Dentre seus
escritos, 16 deles destacam-se como sendo de caráter médico, corroborando
para sua ampla utilização nas disciplinas de Medicina teórica e Medicina

43
prática das Universidades de medicina da Europa, no século XVI, juntamente
com os manuais de clássicos como Hipócrates e Galeno (REBOLLO, 2010).

Em seu Livro 1 do Cânon, Avicena deu início ao curso de Medicina teórica,


mesclando noções de origem hipocrática-galênica, tais como: os quatro
elementos (terra, ar, fogo e agua); quatro temperamentos (colérico, sanguíneo,
fleumático e melancólico); quatro estações (primavera, verão, outono e
inverno); os quatro humores (sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma); os
órgãos; os espíritos naturais (naturais, vitais e animais); fatores não naturais
(ar, alimentos e bebidas, sono e vigília, movimento e repouso, evacuação e
retenção, sentimentos e emoções) as forças; as faculdades da alma; as ações;
e patologia. (REBOLLO, 2010, p. 317). Sua obra Cânon da Medicina, ou Kitab
al-Qanun fi al-Tibb, foi traduzida e considerada sua obra mestra, consolidando
as bases para estudos médicos no Oriente e Ocidente por setecentos anos.
(REBOLLO, 2010, p. 318).

Parafraseando um dos poemas de Avicena, a medicina é a arte de manter a


saúde e curar as doenças do corpo. Considerando e analisando brevemente a
descrição referente ao Livro 1 do Cânon, pode-se destacar a influência e
importância do meio como um mecanismo para a manutenção do equilíbrio
corporal, e consequentemente, a saúde. O meio, então, se mostra como um
influente aliado para a perpetuação das forças vitais que regem o bom
funcionamento corpóreo, bem como um potencial agente de desequilíbrio deste
complexo sistema; e ainda, a solução, uma fonte terapêutica.

Outro filósofo e produtor de conhecimentos médicos foi Abû al-Walîd


Muhammad ibn Ahmad ibn Muhammad ibn Ahmad ibn Ahmad ibn Ruchd
(1126-1198), também conhecido como Ibn Rushd ou na tradução latina como
Averróis, foi um polímata andaluz nascido em Córdoba cuja principal área de
atuação foi a jurisprudência, chegando a assumir o cargo de cadí em Sevilha e
Córdoba. Porém, devido a sua “formidável ânsia por conhecimento”, não
demorou a estender seus estudos para diversas outras áreas do saber tais
quais a astronomia, música, filosofia e medicina (BÁRCENA; NOGUERA, 1996-
97).

Nessa interdisciplinaridade, Averróis realiza uma analogia entre o fazer jurídico,


legislador e o medicinal, sendo “aquele como curador do corpo, e este como
curador das almas” (BITTAR, 2009, p. 87). Não obstante, foi através destas
contribuições filosóficas e medicinais, os quais conta com uma extensa lista de
publicações, que sua herança percorre o curso da história, influenciando
diversos outros cientistas posteriores, vindo a receber a alcunha de seu próprio
mestre, Avenzoar, de “maior físico após Galeno”.

Sobre essas obras, diversos estudiosos puderam encontra-las divididas em


dois grandes blocos, o primeiro de publicações, notas e comentários sobre os
trabalhos realizados por Galeno, Aristóteles e Avicena. Enquanto o segundo,
inclui suas obras de caráter medicinal originais como Fi Hifz al-Sihha ou Sobre
a conservação da saúde, Al-Sumum cujo título traduzido é Sobre os venenos e

44
o mais importante, Kitabal-Kulliyyat al-tibbiyya conhecido no mundo latino como
Colliget (BÁRCENA; NOGUERA, 1996-97, p. 7).

O livro se encontra dividido em sete grandes temáticas sendo elas: anatomia e


fisiologia, farmacologia, dietética, alimentação, patologia, sintomatologia,
matéria médica, higiene e terapêutica e possuía a intenção de listar as
prescrições que todo médico precisava conhecer no século X. Para Averrois, a
alimentação apresenta uma importância substancial no pensamento médico.
“Tanto es así que mantiene el critério que el secreto de la salud reposa em dos
elementos: la correcta alimentación y la buena evacuación de las diferentes
substâncias tóxicas”. (BÁRCENA; NOGUERA, 1996-97, p. 7). Em sua outra
obra, a já citada Sobre a conservação da saúde, Averróis não só expõe quais
alimentos são os mais saudáveis para a ingestão como define também o
momento ideal do consumo de cada um deles ao longo do dia e suas
quantidades.

Conclusão
No decorrer desse trabalho procurou-se, ainda que brevemente, demonstrar o
caminho da informação e conhecimento de origem grega, e postulações dos
grandes filósofos que, após sua crise, foi reencontrado e transformado em uma
febre no mundo árabe. Além de atuar como ator fundamental na filosofia da
região que estava surgindo. Entende-se a importância dos grandes sábios
muçulmanos e tamanha sua contribuição, dada às mais diversas áreas do
saber como astronomia, aritmética e, principalmente, na filosofia, ciências
naturais e medicina. Dentre numerosos eruditos, o legado de Avicena e
Averróis é notável. Através de seus conhecimentos somados as postulações de
Hipócrates e Galeno, a medicina encontrou uma possibilidade de reflorescer na
sociedade árabe, além da possibilidade de perpetuar-se através do tempo,
chegando ao ocidente pelas heranças e trocas culturais, principalmente na
região da Península Ibérica.

Referências
Gabrielle Legnaghi de Almeida – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Anelisa Mota Gregoleti – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Estadual de Maringá (UEM)

BITTAR, Eduardo C. B. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a


recepção de Aristóteles no mundo medieval. Rev. Port. de História do Livro,
Lisboa , n. 24, p. 61-103, 2009

DE MACEDO, Cavaleiro; CINTRA, Cecilia. Avicena e la Filosofia Oriental.


Revista Pandora8, p. 1-12, 2009

DOS SANTOS, D. Os saberes da medicina medieval. História Revista, v. 18, n.


1, 15 maio 2014.

45
GAUZ, V.; PINHEIRO, L. V. R. Fluxo da informação entre colecionadores,
escribas e cientistas árabes na pré-institucionalização da ciência, séculos IV ao
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GIES, F.; GIES, J. Cathedral, forge, and waterwheel: technology and invention
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PARENTE DA COSTA, Marta Silva Teles; BORGES DE MENESES, Ramiro


Délio. A idade de Ouro da Medicina Islâmica: evolução e declínio. Prosopon.
Europejskie Studia Społeczno-Humanistyczne, n. 3 (24), p. 17-35, 2018.

PORTER, Roy; VIGARELLO, Georges. Corpo, saúde e doenças. Corbin, Alain;


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REBOLLO, Regina Andrés. A Escola Médica de Pádua: medicina e filosofia no


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árabe. Revista Kairós, Fortaleza, v. 9, n. 1, p.62-74, jan./jun. 2012.

46
A 'AṣABĪYAH COMO PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA A PARTIR DE IBN
KHALDŪN, por Luiza Santana Locatel Araujo

Introdução
Ibn Khaldūn, muçulmano do século 14, da cidade de Túnis, dedicou sua vida
ao conhecimento. O polímata é autor da Muqaddimah, livro no qual objetivou
estudar, através de uma metodologia própria, sua sociedade a partir de
condições materiais e os fatores que orientariam os modos de vida dos povos.
Nascido em Túnis, em 372 AH, no primeiro dia do mês de Ramadan [Ibn
Khaldun, 1958], foi educado por diversos mestres ao longo de sua vida e
recebeu uma educação típica de um integrante da elite, desenvolvendo
atividades políticas no norte da África e na Península Ibérica [Bissio, 2012].

Considerado um dos maiores historiadores árabe-muçulmanos, o jurista


gozava de imenso prestígio social, chegando a se tornar professor de
jurisprudência mālikī. Ao longo de trinta anos, se dedicou à escrita do Kitāb al
'Ibar, uma obra de sete volumes, dos quais somente a Muqaddimah e trechos
do volume sete se encontram traduzidos fora do árabe. Composta pela
introdução, juntamente com o livro primeiro, trata a respeito de organização
social, economia, e valoração do trabalho, além de fazer uma abordagem
sociológica, antropológica e científica do conhecimento produzido até então.
Ele é considerado um precursor de várias disciplinas científicas sociais,
sobretudo da História e da Sociologia.

O interesse em estudar Ibn Khaldūn, pois, originou-se de leituras sobre o


polímata muçulmano, reparando-se que o autor desenvolvia em suas obras
temas muito conhecidos pela recente economia política e pelas ciênicas
sociais, tais como definições de valor, trabalho e dialética, entre outros.

Surgiu-se, assim, a necessidade em realizar um estudo visando compreender o


uso de seu conceito de 'aṣabīyah como prática historiográfica. Usualmente
traduzida como “espírito de grupo”, seria o fator material que, de acordo com
Ibn Khaldūn, pode conduzir à posse da soberania, visto que, por meio dela, os
clãs garantem defesa mútua, cuidam dos interesses coletivos, e o governante
age para garantir as necessidades de seu grupo [Ibn Khaldūn, 1958]. Ademais,
para Ki-Zerbo, seria usada para explicar o progresso da história [KI-ZERBO,
2010], formular leis para a administração econômica, e descrever a sociedade
como dependente de forças materiais.

Compreender tal problemática é fundamental para que seja possível analisar o


uso da 'aṣabīyah como um instrumento metodológico para a elaboração do
Kitāb al 'Ibar, seu livro da História Universal, cuja introdução é a Muqaddimah.
É a partir dela que se propõe a entender a ciência da sociedade, sobretudo

47
baseando-se em fatos comprovados, para fazer jus ao título de ciência. Para
isso, o historiador não só precisou reorganizar os saberes disponíveis até
então, mas selecionar aqueles que poderiam ser provados.

Deste modo, analisa-se uso do conceito de 'aṣabīyah como prática


historiográfica, utilizada por Ibn Khaldūn para o entendimento da História e
seus acontecimentos, marcados por gerações passadas, além de ressaltá-la
como uma ciência nova [De Araújo, 2018], que tratava da civilização e seus
feitos, incluindo-se caráter econômico e social. A partir da problemática
apresentada, se faz necessário localizar sua produção não apenas como um
compilado de análises e observações, mas como uma tentativa de fazer da
História uma ciência, com método e verdade, gerando diversas críticas aos
escritores que realizavam uma história ilusória ou tendenciosa.

a noção de 'AṢabīyah na Muqaddimah


A primeira e única vez que a Muqaddimah foi traduzida para o portugês foi
entre 1958 e 1960, por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, que
realizaram a transliteração direta dos manuscritos em língua árabe para o
português [Senko, 2009], resultando em uma obra de três volumes. Mas antes
disso, o mundo já havia conhecido Ibn Khaldūn a partir de escritores
orientalistas como o barão Silvestre de Sacy [1758- 1838], Barthélemy
D’Herbelot [1625-1695] e Antoine Galland [1646-1715]. [Ferreira, 2022]

De acordo com Senko [2011], além da Muqaddimah, que contém escritos a


respeito da ciência histórica e reflexões sociológicas, na qual Ibn Khaldūn
desenvolve a 'aṣabīyah, os livros II ao V do Kitāb al 'Ibar, não disponíveis fora
do árabe, tratam das dinastias pré-islâmicas, a exemplo dos assírios, hebreus,
persas, gregos e romanos. Na visão de Hourani [2002], Ibn Khaldūn visou
explicar o processo de ascensão e queda de dinastias a partir de um método
que julgasse científico. Nesse sentido, a 'aṣabīyah corresponderia a tal método.
Para De Araújo [2018], o conceito de 'aṣabīyah não seria novidade da obra do
polímata, mas já se faria presente desde os tempos de Maomé.

Diante disso, diversas são as definições para o conceito de 'aṣabīyah. Para o


próprio Ibn Khaldūn, ao explicar seu método, reflete acerca do “espírito de
grupo” e a coerção organizada de tribos, que, ao deixarem de ser nômades,
tomando para si um governante, um interesse coletivo, seriam organizados por
um laço em comum, se tornaram fortes e coerentes o suficiente para
prosperarem.

'AṢabīyah e temporalidade
A 'aṣabīyah, pois, é posta como um fator determinante para o poder político de
um povo, visto que, conforme a tribo ou clã atinge certo ponto de estabilidade,
adquirindo poder e recursos, a busca dos governantes pelo luxo e seu
descuido para com a população declara a ruína de seu poder. “Tudo isso
demonstra que o luxo, desde que introduzido numa tribo, [aniquila-lhe as
forças] e a impede de fundar qualquer império” [Ibn Khaldun, 1958, 246.]. No
mesmo sentido, afirma que, da mesma forma que gregos e persas haviam sido

48
grandes potências, haviam sido substituídos pelos árabes, que, por sua vez,
haviam sido substituídos pelos berberes na Espanha e pelos turcos ao leste.
No que tange à análise de tal concepção, é possível observar a perspectiva de
história cíclica presente em algumas análises:

“Sua noção de declínio fundava-se no tempo cíclico, cuja base supunha que o
futuro distante era igual ao passado também distante, constituindo assim uma
repetição. Cada ciclo comporta uma fase ascendente e uma descendente e, no
caso de Ibn-Ḫaldūn, quando o passado representava o modelo a seguir
passava a ser considerado superior a um presente tido como decadente.” [De
Araujo, 2018, p. 202]

Por outro lado, Senko, prefere tratar a concepção da 'aṣabīyah como uma
espiral progressiva:

“a‘asabiyya diminui na vida sedentária luxuosa e dá margem à substituição do


poder atual por outro mais animado pela coesão de grupo. Essa visão cíclica,
ou melhor, em espiral progressiva, é a fomentadora do tempo histórico
multifacetado do viés khalduniano. Trata-se de um processo em mudança
permanente, que leva a um período sucessivo de apogeu e posterior
desestruturação [SENKO, 2012, p. 155].

No que tange às interpretações acima, é possível falar de temporalidade


cíclica, como escolhe De Araújo, como também é possível falar de espiral
progressiva, como pontua Senko. Entretanto, apesar de rapidamente ser
possível tomar como parâmetro tal visão concepções de tempo cíclico
baseadas no neoplatonismo ou em algum suposto eterno retorno, no qual a
sociedade seria composta de diversos governos que, de forma cíclica,
acendem, se estabelecem e depois declinam, dando lugar a outros, se faz
necessário pontuar que a escolha de Senko, possivelmente motivada pela
concepção contemporânea de tempo cíclico, traz um aviso: a concepção
khalduniana não se refere a repetições históricas, visto que, diante do caráter
dialético concebida a tal, a história se estabeleceria como um processo.

Tal confusão se faz relevante sobretudo para relembrar a necessidade de


compreender a noção de história khalduniana e o próprio Ibn Khaldūn como
localizados em um determinado tempo histórico, utilizando de seus
conhecimentos para elaboração de teorias e métodos que façam sentido para
analisar a sua própria realidade. Diante disso, foram utilizadas, além de fontes
primárias e da bibliografia de apoio visando compreender sua noção de
história, materiais de apoio que ajudassem a compreender sua respectiva
realidade, visando localizar sua teoria em um tempo e espaço.

Nesse sentido, é necessário pontuar que, apesar de ter nascido na região de


Túnis, o filósofo chegou a ocupar diversos cargos públicos em diversos locais
diferentes, tanto no Norte da África como em al-Andalus: Túnis, Fez, Tlemcen,
Granada, Cairo e Almeria foram sua residência por certo período. Além disso,
chegou a mediar grandes conflitos de dinastias locais e lecionar, sendo

49
reconhecido por seu prestígio e possibilitando acesso a diversas informações
importantes para seu ofício de escritor. Diante disso, é necessário
compreender a Muqaddimah como uma resposta fornecida por Ibn Khaldūn
aos acontecimentos vivenciados e estudados por ele [Senko, 2013]. Consoante
a isso, é importante ressaltar o cenário no qual se encontrava o autor da
Muqaddimah: Um mundo assolado pela peste e outras diversas epidemias que
provocaram instabilidade nas produções e, consequentemente, ondas de fome
e miséria, além de constantes declínios e ascensões políticas. A gravidade do
problema foi tanta que em muitos lugares a própria lei islâmica teve de ser
alterada: o crescente número de mortos forçou os juristas a alterarem o
sistema de divisão de heranças para evitar um colapso. [Cristi, 2017].
Outrossim, Ibn Khaldūn presenciou o islã perdendo terreno na Península
Ibérica e o declínio do Império Mameluco e outras dinastias, como a dos
Almorávidas e dos Almôadas, duas dinastias que se formaram no interior,
governaram Túnis e declinaram rápido., Ibn Khaldūn olhava ao redor e via
declínios e ascensões.

Crítica historiográfica e a 'AṢabīyah como ciência


Com o objetivo de compreender o uso do conceito de 'aṣabīyah como prática
historiográfica, todos esses fatores devem ser levados em consideração, visto
que, é através de sua teoria histórica, que Ibn Khaldūn reflete o que é visto em
seu tempo, sobretudo a noção de que a sociedade seria composta de diversos
governos que, de forma cíclica, ou, como opta Senko [2012], de forma espiral
progressiva, acendem, se estabelecem e depois declinam, dando lugar a outra.
Soma-se a isso, a percepção khalduniana de separação entre o mundo de
Deus e o mundo dos homens, pois, apesar de ser religioso e considerar Deus
como uno, separa a Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens:

“Seu primeiro argumento para excluir Deus das discussões parte do


fundamento ortodoxo para o qual Sua unicidade é a afirmação e aceitação
radical de que só há um Deus, o que não admite de forma alguma extensões
como a trindade santa dos cristãos. Dito isso, prossegue dizendo que os
homens conhecem as coisas que os rodeiam por meio dos sentidos, mas
também por suposições das causas que as criaram, levando ao Causador” [De
Araújo, 2018, p. 155].

Visando exemplificar tal separação, Renato Cristi expõe que Ibn Khaldūn faz
críticas aos erros de cálculos e exageros presentes na bíblia e também em
outros livros. Trata-se, de forma alguma, uma negação da religião, muito
menos de uma separação entre a ciência e o divino, mas de aceitar que há
fenômenos causados por Deus e fenômenos causados pelo próprio homem:

“Evitando una frontal oposición entre la ciencia y la religión, Ibn Jaldún acaba
por definir dos modos de reflexión, complementarios, si bien distintos: el
discurso racional para las ciencias humanas, pues, al fin y al cabo, el hombre
está dotado de pensamiento, y el discurso de la fe para las ciencias religiosas,
basado el mismo en los textos revelados.” [Martos Quesada, 2008, p. 11)

50
Nesse sentido, Ibn Khaldūn mantém-se firme ao realizar críticas à um fazer da
História ausente de rigor, fabuloso ou fantasioso. Em sua concepção, a História
seria o tesouro de ensinamentos, o objeto de estudo dos sábios, que
transmitiria o conhecimento dos humanos entre gerações. Nesse sentido, a
História, posta como mestra, revelaria os segredos do passado para os
homens do futuro. E, por isso, constituiria um importante ramo da filosofia,
posta junto às ciências. [Ibn Khaldūn, 1958, p. 3]

Conclusão
O polímata, portanto, usa da 'aṣabīyah como um instrumento metodológico
para entender a ciência da sociedade, sobretudo baseando-se em fatos
comprovados, para fazer jus ao título de ciência. Observa-se, portanto, que Ibn
Khaldūn apresenta a História a partir dos feitos do passado organizados por um
método. Ademais, o filósofo discorre em seu livro acerca das civilizações
nômades e sedentárias, assim como suas organizações políticas e instituições,
seus feitos econômicos e suas ciências, relatando fatores culturais e materiais
da sociedade. Outrossim, ao falar de 'aṣabīyah como necessária para a
estabilização de um império, também fala da falta de 'aṣabīyah ligada a
degradação da sociedade sedentária que, ao se esbaldaram de luxos e
ignorarem a diminuição da 'aṣabīyah, estariam assinando sua queda. Portanto,
caso não houvesse uma mudança de comportamento, todas as sociedades
estariam destinadas ao declínio com comportamentos individualistas e sem
nenhuma coesão social. Isso se faz relevante pois, para o autor, a 'aṣabīyah
estaria postulada como a negação do individualismo, visto que, agindo sozinho,
ou seja, sem o sentimento de grupo, os objetivos dificilmente iriam coincidir, o
que abriria caminho para ambição, caracterizando a antítese da civilização. É
importante ressaltar que Ibn Khaldūn não utiliza da noção de coletivo para
legitimar qualquer tipo de etnocentrismo, mas busca valorizar o indivíduo como
elemento não isolado do mundo, inserido em seu contexto. Enquanto nega o
individualismo, exalta a individualidade, visto que tal fator seria um reflexo
cultural do local no qual o homem vive [Katsiaficas, 1999].

Em conclusão, o objetivo do presente texto foi compreender a 'aṣabīyah como


prática historiográfica. Nesse sentido, a relação explorada entre sua noção
temporal, a ascensão e queda dos impérios a partir da 'aṣabīyah e seu rigor em
transformar a narrativa histórica em ciência permite considerar que o objetivo
foi cumprido, preenchendo a lacuna relativa ao seu saber historiográfico. No
que tange às limitações, há escritos de Ibn Khaldūn que permanecem sem
tradução fora do árabe, e ainda são de difícil acesso, o que impossibilita
compreender com profundidade sua própria forma de narrar a História.

Referências
Luiza Santana Locatel Araujo é graduanda de História na Universidade Federal
do Espírito Santo [UFES] e foi aluna de mobilidade internacional na
Universidade de Évora. Pesquisou o materialismo e a dialética na filosofia
social de Ibn Khaldūn em Iniciação Científica sob orientação do professor Dr.
Júlio Bentivoglio. Contato: Luizalocatel.hist@gmail.com

51
BISSIO, Beatriz. Unidade e continuidade no pensamento político árabe-
islâmico: Ibn Khaldūn e a ciência da civilização. Comunicação & Política, [S.l.],
v. 30, n. 3, p. 25-53, 2012.

CRISTI, Renato Roschel. A teoria econômica na cosmovisão de Ibn Khaldūn.


Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

DE ARAÚJO, Richard Max. A construção do método histórico de Ibn-Haldun:


entre a jurisprudência e a história. 2018.

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by Ibn Khaldun e o Orientalismo no século XIX. Monografia em História -
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Paulo, Guarulhos, 121 f., 2022.
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Letras, 2002.

IBN KHALDUN. Os prolegômenos ou filosofia social. Tomo primeiro. São


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______________. Os prolegômenos ou filosofia social. Tomo segundo. São


Paulo: Editora Comercial Safady Limitada, 1959.

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Paulo: Editora Comercial Safady Limitada, 1960

MARTOS QUESADA, Juan. Presentación. In: MARTOS QUESADA, Juan y


GARROT GARROT, José Luis. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. GRUPO
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KATSIAFICAS, George. Ibn Khaldūn: A dialectical philosopher for the 21st


century. New political science, v. 21, n. 1, p. 45-57, 1999.

KI-ZERBO, Joseph. “Da natureza bruta à humanidade liberada.” História Geral


da África, I: Metodologia e pré-história da África, Joseph KI-ZERBO, Brasília:
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SENKO, Elaine Cristina. ENTRE O PASSADO E O PRESENTE, UM HOMEM


EM BUSCA DA HISTÓRIA: Ibn Khaldūn [1332-1406] E SUA PROPOSTA
HISTORIOGRÁFICA. Tempos Acadêmicos, n. 7, 2013.

SENKO, Elaine Cristina. Ibn-Khaldun [1332-1406] e um olhar muçulmano sobre


a Península Ibérica. Revista Vernáculo, v. 1, n. 24/24, 2009.

SENKO, Elaine Cristina. O passado e o futuro assemelham-se como duas


gotas d'água: uma reflexão sobre a metodologia da história de Ibn Khaldūn
[1332-1406]. 2012.

52
SENKO, Elaine Cristina. Sobre a proposta historiográfica de Ibn Khaldūn: a
responsabilidade do historiador no tratamento de dados numéricos. NEARCO-
Revista Eletrônica de Antiguidade e Medievo, v. 4, n. 2, p. 138-146, 2011.

53
O EGITO COMO COSMÓPOLIS DO MUNDO
ISLÂMICO A PARTIR DO RELATO DE IBN BAṬṬŪṬAH
[1304-1377], por Pietro Enrico Menegatti de Chiara

Introdução
O século XIV é imerso em inúmeras complexidades e deslocamentos, tanto de
pessoas quanto de culturas. Os oceanos, desertos, florestas não eram
barreiras, uma vez que eram cruzados por várias ocasiões. Uma figura que
representa isso é Ibn Baṭṭūṭah [1304-1377], famoso viajante que dedicou quase
toda a sua vida a deslocar-se. Quanto à distância percorrida, ele foi um dos
maiores viajantes do período medieval. Muçulmano, nasceu em Tânger, em
1304, e dali partiria em viagem em 1325, com apenas 21 anos. Sua intenção
era peregrinar a Meca, um dos pilares do Islã, entretanto ele foi além e
percorreu grande parte do mundo conhecido na época. Ele passou pelo norte
da África até Cairo, chegou a Meca, Pérsia, Palestina, Iraque, Iêmen. Daí
cruzou para a África pela região litorânea índica: esteve em Mogadíscio, Kilwa.
Então retornou para a Península Arábica, visitando a Anatólia nesse momento.
Depois parte para a Europa: leste europeu, sul da Rússia, Constantinopla.
Depois vai de encontro rumo ao extremo oriente: Delhi, Malabar, as ilhas
Maldivas, o atual Sri Lanka, o sudeste asiático e a China. Ele retorna para sua
terra natal apenas em 1349, vinte e quatro anos depois de partir. Porém, logo
viajaria para al-Andalus [Península Ibérica] e atravessaria o Sahara rumo ao
Império do Mali [Mànden Kúurufáaba].

Fonte: Waines, 2012

54
Ao todo ele percorreu mais de 100 mil quilômetros em mais de 30 anos de sua
vida em viagem, não é à toa que ele era chamado de “príncipe dos viajantes”.
Para efeito de comparação com Marco Polo, famoso viajante veneziano, o
marroquino deslocou-se uma distância cerca de três vezes maior. Ibn Baṭṭūṭah,
ao retornar narraria sobre sua viagem para um poeta Ibn Juzayy[1321-1357]
com o intuito de registrar a viagem, além de adicionar uma beleza literária e
contribuir também com poemas e figuras de linguagem de modo a enriquecer a
obra. A escrita foi possível também graças ao financiamento do sultão marínida
Abū ᶜInān Fāris [1329-1358]. Contido no gênero riḥlah, o relato de viagens de
Ibn Baṭṭūṭah também se preocupa em ser uma jóia literária [FANJUL; ARBÓS,
2017, p. 26] Entretanto, para a existência, o sucesso e o relato de uma viagem
tão ambiciosa e bem sucedida foi imprescindível um contexto bem estabelecido
para as viagens que foi construído pelo Islã.

Um dos pilares religiosos, afinal, cada fiel é recomendado a viagem à Meca,


principal cidade islâmica, pelo menos uma vez na vida; a viagem
institucionalizou-se e transformou-se em parte do modo de vida islâmico na
medida em que ele consolidou-se. A religião, com início em um contexto de
encontro entre beduínos nômades e assentamentos oásis no deserto,
apropriou-se de diversas práticas locais e teve a hospitalidade realizada de
forma pública e privada. Isso pode ser percebido tanto nos relatos de
acolhimentos particulares por Ibn Baṭṭūṭah quanto de estruturas desenvolvidas
por poderes estatais com objetivo de acolher a viajantes como o caravançará e
a Zāwīah

Ao narrar a sua viagem, o relato possui as suas barreiras representativas e


discursivas, afinal, o viajante não deixa de fazer recortes e silenciamentos. Há
também o desafio de traduzir o universo do outro para o seu, isto é, o
maghrebino islâmico . Pode-se vislumbrar uma estratégia de trazer o não
familiar para o familiar. Vale ressaltar que isso não é feito em total exatidão,
afinal, cada cultura é única e descrever o outro a partir de si pode causar
deformações.

Centro, Periferia e Transformações Históricas no Islã


O mundo Islâmico é complexo e possui as suas próprias contradições e
movimentos históricos. Certamente, o jogo de poderes e as estruturas
consolidadas são diferentes no período de expansão do Islã. Além da diferença
temporal, há também a espacial, que revela inúmeras particularidades e
associações a especificidades locais, como apontado por Geertz [2004] em sua
análise da diferença do Islã do Marrocos e da Indonésia. O que se pretende
elucidar aqui é que o mundo islâmico é dinâmico, isto é, interage com o
ambiente de forma intensa e está sujeito a transformações imersas em seu
conjunto das possibilidades materiais. Qualquer construção que insista em
formas inertes e tratem tal complexidade como um bloco monolítico vai contra
as contradições históricas e as particularidades espaciais.

55
O mundo islâmico possui diversos marcos em sua cronologia e o ano de 1258
é um deles, isto é, a invasão mongol de Bagdá. De maneira clássica, essa data
é tida como o fim da era de ouro islâmica. A queda de Bagdá em 1258 criou um
vazio ideológico no mundo sunita [Demant, 2004]. Com as ruínas do antigo
centro, inclusive descritas tanto por Ibn Baṭṭūṭah, o Egito assumiu uma posição
central islâmica em diversos aspectos. Um dos pontos mais simbólicos é
quando, no século XII, tal local recebe o califado abássida restaurado. Como
um fantoche, de fato, mas a figura do califa sempre foi dotada de grande poder
simbólico, ainda mais em uma posição que marcaria um novo centro. Ademais,
as rotas comerciais confluíram para o Egito de modo a colaborar com a
circulação de riquezas e reunir pessoas de todos os lados da ummah [a
comunidade muçulmana]. Não é à toa que Jean Claude Garcin [2010, p. 429]
afirma que Cairo tornou-se a nova Bagdá, sendo capital de todos os países do
Islã. O objetivo desse texto é justamente situar Ibn Baṭṭūṭah em meio desse
centro de poder e perceber como tais aspectos descritos se fizeram presente
na riḥlah

Relato de Ibn Baṭṭūṭah


Feita essa breve introdução ao personagem e ao recorte espacial, pretende-se
agora partir para a análise de seu relato no Egito. Para tal, é importante
localizar a rota e em que momento Ibn Baṭṭūṭah cruzou o Nilo e os arredores.
Seu objetivo inicial era Meca, nesse sentido, percorreu o norte da África e logo
partiu para o Egito, rota usual dessa peregrinação . Esse era o caminho comum
a se seguir a partir do e ele era apenas um dentre os inúmeros fiéis
pertencentes ao mundo maghrebino, andaluz e subsaariano a realizar tal
jornada. Ele chegaria em Alexandria no dia 5 de abril de 1326 e ficaria cerca
de 3 meses. Porém, não seria a primeira vez do viajante naquele território.
Portanto, Ibn Baṭṭūṭah optou por descrever o Egito mais profundamente, suas
cidades, contar algumas anedotas na primeira vez em que ele chega ao Egito
em sua narrativa. Vale ressaltar que ele está narrando a partir da sua memória
a sua viagem cerca de 30 anos depois, e ele cria uma narrativa que tivesse
uma maior verossimilhança e pode, por vezes, combinar fatos que
aconteceram depois da sua primeira estadia. Como ele pretendia fazer o hajj, a
peregrinação, a partir do Egito, havia duas maneiras comuns de chegar até
Meca. A partir da Palestina, com o cruzamento do Sinai ou a partir do Mar
Vermelho pelo Alto Egito após embarcar no Rio Nilo. Inicialmente, Ibn Baṭṭūṭah
tinha a intenção de fazer a segunda opção, a partir do Mar Vermelho, mas ele
retornaria a peregrinar a partir da Síria. Ele apresenta essa decisão como
envolvida em uma previsão feita por um místico, o qual informou a ele que ele
não conseguiria prosseguir nessa rota.

O itinerário dele já revela Miṣr [Egito em árabe] como uma parada lógica e
crucial entreposto para a circulação nas terras na qual o Islã tinha controle
político [dār al-islām], acordos [dār al-ṣulḥ] ou até para o dār al ḥarb [lugares no
qual o Islã não tem controle político]. Pessoas de todos os locais circulavam em
Cairo, a transformando em uma cosmópolis que reunia uma grande
diversidade. Vale ressaltar que o mansa Musa, liderança malinesa que
popularizou-se no mundo islâmico, antes de peregrinar à Meca, esteve no

56
Egito. Ou então, os relatos da Geniza do Cairo que indicam presença de judeus
das mais diversas origens e atuações. Ou seja, de judeus comerciantes da
costa índica [Fauvelle, 2018] a lideranças islâmicas que tinham que cruzar uma
enorme distância; Cairo reunia pessoas de todos os locais, tanto imersas ao
Islã quanto fora.

O primeiro relato de Ibn Baṭṭūṭah de Cairo já demonstra que o cosmopolitismo


já saltava aos olhos o suficiente para o viajante registrar como uma de suas
primeiras impressões da cidade: “Ponto de encontro de caminhantes e
viajantes, lugar de fracos e fortes, no qual pode encontrar-se o que gosta em
ignorantes e sábios, sérios ou sorridentes, indulgentes ou insensatos, modesto
ou nobres, de alguma linhagem ou plebeus, desconhecidos ou famosos.” [Ibn
Battuta, 2017, p. 157, tradução minha] A capital é introduzida como um local
das possibilidades, no qual é possível qualquer um encontrar o que quer a
partir de uma ampla gama de pessoas ali existentes. As antíteses demonstram
de forma poética um local vivo com habitantes que atendem qualquer extremo
que o leitor procurar.

Outro relato em concordância com essa ideia é o do cemitério de Cairo: “Neste


cemitério do Cairo, estão enterrados tanto ulemás e homens piedosos que não
se pode detalhar o seu número, assim como uma grande quantidade de
discípulos do Profeta e personagens ilustres, antigos e modernos” [Ibn Battuta,
2017, p. 161 ,tradução minha]. Para responder logicamente à imagem criada, o
cemitério deveria fazer jus ao Egito como cosmópolis e novo centro. A
descrição dos mortos diz muito também sobre os vivos, afinal, colocar dentre
os habitantes passados ulemás, homens piedosos e inúmeros personagens
ilustres dá a entender, além da importância da cidade para o Islã, a existência e
o potencial do local para tais figuras existirem ali. Nesse sentido, Ibn Baṭṭūṭah
reforça o cemitério como um local de memória que resgata um passado tão
vivo quanto o seu presente e em concordância com sua amplitude.

Outro local de memória curioso destacado pelo viajante é a cabeça de Ḥusayn


Ibn ʿAlī, terceiro imã xiita e filho de ᶜAlī Ibn Ṭālib e um dos revoltosos contra a
sucessão ocorrida no califado ortodoxo omíada, trazida pelos fatímidas. Se por
um lado, Ibn Baṭṭūṭah insistia em uma imagem estigmatizada do xiismo focada
na adoração excessiva da família do Profeta [Miquel, 1978, p. 78], citava o
mausoléu que guardava a relíquia como um dos lugares dignos de visita [Ibn
Battuta, 2017, p. 161]. Por mais que tal personagem tenha um caráter
importante para os xiitas, não se pode descartar também uma comoção para
os sunitas. [Hawting, p. 50, 2000] O tangerino não desenvolve mais, mas
escolhe não silenciar esse importantíssimo local de memória que remete
principalmente a adoração de um grupo não tão lembrado em sua riḥlah.

Quanto ao comércio, ele também revelava a amplitude de pessoas e produtos


e a possibilidade de, a partir do Egito, ir para qualquer lugar do mundo. É
evidente a confluência de rotas também no relato do viajante, além do já citado
itinerário. Mesmo com a troca de poderes, seja com os aiúbidas ou
mamelucos, na época de Ibn Baṭṭūṭah, o Egito continuava sendo um importante

57
ponto de ligação entre os vários continentes. O local tinha a oferecer os
produtos do extremo oriente, tanto da rota da seda, das especiarias, do ouro
que envolvia a África Subsaariana. O mapa a seguir retrata bem isso, mesmo
fazendo um recorte no século XIV no contexto otomano.

Fonte: Ruthven; Nanji, 2004

Como pode-se perceber, o Egito se constituía como um local importantíssimo


para o chamado mundo medieval, sobretudo o islâmico e assumia uma
centralidade tanto simbólica pelo fato de ser residência do califa, mas também
comercial. Em Cairo, era possível encontrar produtos e pessoas de boa parte
do mundo conhecido da época. Já no século XII, o viajante judeu Benjamim de
Tudela já destacava o intenso fluxo e o cosmopolitismo comercial egípcio a
partir da sua descrição de Alexandria: “Alexandria é um mercado comercial
para todas as nações. Mercadores de todos os reinos cristãos vêm para lá”
[Benjamim de Tudela, 2017, p. 142]. A seguir, o viajante faria uma intensa
descrição das nações que estavam presente nesse comércio que iam das
terras cristãs, islâmicas e para o extremo oriente. Entretanto, desde a
antiguidade é possível ver esse intenso fluxo e ele não é novidade no contexto
islâmico. O relato de Benjamin mostra que ele era intenso antes mesmo de
1258. Porém, os muçulmanos o souberam explorar bem e extrair lucros com
impostos.

Um mito importante a ser discutido que relaciona-se com tal questão é a


normalidade da viagem e dos fluxos durante a Idade Média internamente e
externamente na Europa. Como diz Hilário Franco Júnior [1999, p. 24], deve-se
abandonar a imagem de uma Europa medieval de agricultura feudal fechada,
isolada e autossuficiente. Ademais, as relações entre cristãos e muçulmanos
são demasiadas complexas e não podem ser reduzidas a um conflito

58
incessante. Leonardo de Pisa , mais conhecido como Fibonacci, por exemplo,
teve contato com os números indo-arábicos no Norte da África em meio a
viagens comerciais com seu pai. Há, inclusive, tratados dos almôadas com
cidades comerciantes italianas [De Mas Latrie, 1865]. Há conflitos, mas reduzir
o medievo a tais relações é criar uma imagem completamente inverossímil e
sem embasamento. Sem tal filtro é possível compreender melhor a amplitude
comercial do Egito, além do relato de Benjamin de Tudela que descreve à
exaustão as regiões europeias que ele percebeu que tinham tal contato. Aliás,
tal centralidade egípcia era reconhecida e não é toa a sucessão de conflitos
como a Batalha de Diu realizada por Portugal visando o controle comercial. O
avanço colonial europeu foi feito à sombra das antigas rotas muçulmanas com
a suplantação dos muçulmanos [Rodney, 2010].

Outro ponto que marca o que foi levantado é que no Cairo do século XIV havia
um qāḍī, um juiz islâmico, de cada escola de interpretação jurídica sunita
[madhhab] assessorando o sultão. São 4 escolas mais populares e
consolidadas no modo de lidar com a sociedade e cada uma costuma ter um
território majoritário no mundo islamico. São elas a Ḥanafī; Shāfiᶜī; Ḥanbalī e
Mālikī. Al-andalus e o maghreb, por exemplo, seguiam a tradição mālikī. Nesse
sentido, apesar de o Egito ter suas escolas consolidadas e uma hierarquia,
inclusive levantada por Ibn Baṭṭūṭah, a presença de um qāḍī para representar
cada escola diz muito sobre o cosmopolitismo do lugar. O viajante, inclusive,
gasta alguns parágrafos para expor em sua narrativa essa característica que
era diferente da qual a maghrebina estava acostumada. Ele aponta que o
sultão mameluco an-Nāṣir examinava ações judiciais com a presença dos
quatro juízes à sua esquerda. O tangerino conta um caso de uma intriga na
qual um dos juízes se ausenta da reunião, o que faz o sultão desaprovar. Neste
relato, pode-se ver que o poder mameluco prezava ter em suas decisões a
presença dos 4 juízes:

“[...] Al-Malik an-Nāṣir ordenou que fosse feito dessa forma, mas quando o juiz
hanafi soube disso ficou descontente com a medida e deixou de assistir às
reuniões. Al-Malik an-Nāṣir desaprovou a ausência e, uma vez conhecida a
causa, ordenou que ele permanecesse, após que o camareiro o agarrou e o fez
sentar onde o sultão decidiu, ao lado do juiz mālikī.” [Ibn Battuta, 2017, p. 168-
169]

Conclusão
Os relatos de viagem como a riḥlah, além de informar sobre as terras distantes,
serviam para promover a unidade da ummah em meio a diversidade composta
do Islã. Dessa forma, o apontamento das rotas egípcias como caminhos
plausíveis até Meca promove que o peregrino norte-africano teria que passar
pelo local para chegar até a Kaᶜbah. Não se pode perder de vista as intenções
discursivas ao abordar tais terras e as escolhas empregadas na representação.
O Egito aparece como caminho para chegar até Meca, mas também como um
local em que abunda a diversidade, tanto no passado como no presente. De
fato, essas terras eram mais conhecidas do público-alvo do que a China, por
exemplo.

59
Ibn Baṭṭūṭah fala a partir da identidade islâmica e para um público muçulmano
sunita maghrebino, o que implica em uma série de definições em seguida. Com
o Egito não é diferente, afinal ele está imerso na lógica narrativa do viajante.
No mais, é possível, a partir do príncipe dos viajantes, extrair muitos
fragmentos que estão inseridos na complexidade do Egito. Uma cidade tão
complexa que expressa diversas possibilidades narrativas. Há pessoas para
todo tipo de situação que for necessária, de acordo com a descrição do
viajante.

Este trabalho utilizou a riḥlah como uma fonte para compreender melhor o
papel da centralidade egípcia no Islã no século XIV e como ela se relacionava
com o itinerário, além da construção de uma imagem particular por Ibn
Baṭṭūṭah. As descrições comerciais com destaque na estrutura portuária
magistral ou o cemitério com sua imensidão de pessoas importantes para o Islã
dizem muito sobre o Egito como entreposto e uma cosmópolis em que
reuniam-se pessoas de diversos locais do mundo. Entretanto, isso não se
revelou uma particularidade islâmica, mas, de fato, foi muito aproveitado pelos
governantes mamelucos que reinavam um local com braços comerciais que
tocavam boa parte do mundo conhecido. Ao mesmo tempo que o filho do Emir
de Nahrāriyya estava a serviço na Índia, como destacou Ibn Baṭṭūṭah, o local
recebeu embaixadas e peregrinos subsaarianos, inclusive a figura de liderança
como pode registrar al-ᶜUmarī [2000], contemporâneo ao tangerino.

Quanto ao Islã e a sua estrutura diversa, o Egito de Ibn Baṭṭūṭah é um perfeito


mosaico de sua complexidade. Ao mesmo tempo em que sua principal cidade,
Cairo, foi fundada pelos Fatímidas e há elementos que remetem a um lugar de
memória mais celebrado pelos xiitas, o sultão mameluco fazia questão de que
os quatros juízes [qāḍī] estivessem presentes de maneira a representar cada
uma das madhhabs. O espaço ou como os pleitos se levavam neste local no
nordeste africano revelam um Islã com diversas contradições históricas. Quase
700 anos depois da primeira mesquita ser construída no Egito, Ibn Baṭṭūṭah
descreveu um local que, historicamente, teve diversas maneiras de lidar com o
Islã e assumia uma posição central nessa nova era após 1258.

Referências
Pietro Enrico Menegatti de Chiara é graduando finalista do curso de História na
Universidade Federal do Espírito Santo [UFES] e foi aluno de mobilidade na
Universidade de Évora. Durante dois anos pesquisou em Iniciação Científica,
orientada pelo Prof. Dr. Sérgio Alberto Feldman, sobre Ibn Baṭṭūṭah e
alteridade. Contato: pietro.mengatti@gmail.com

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61
O MUNDO DE AL-MA’ARRI: A VISÃO ANTES DO ORIENTE, por
Rafael R. M. Ramos e Rosana Pereira de Freitas

Pensar em orientalismo imediatamente traz à mente diversos conceitos do livro


homônimo de Edward Said, intelectual de origem palestina dedicado ao longo
de sua vida à uma epistemologia pós-colonial. Como intelectual das letras seu
trabalho influenciou nossos aprendizados principalmente no que hoje
denominamos ser da ordem do discurso. Temos de recordar que o orientalismo
se manifesta também numa imageria particular, mental ou material, abarcando
alguns dos objetos examinados pela disciplina da História da Arte. Muitos
foram os historiadores da arte incorrendo em orientalismos ao lidar com certos
objetos, lugares ou coleções, demonstrando onde esta ciência revela
dificuldades ao abordar critérios ocidentais, os quais se firmaram como crença
helênica de estar no mundo.

Se o orientalismo surge como método para lidar com o oriente, percebemos


como este forja conceitos próprios. Mas é de se esperar que aquilo
apresentado pelo nome de oriente também possua contradições como todo
resulto advindo de experiências humanas. Crenças e artes incluem muitas
dissidências internas e estrangeirismos, não seria diferente dos árabes aos
mongóis. A capacidade de perceber isso fornece condições de agir numa
atitude efetivada em nova postura diante de questões tratadas com pouca
atenção adequada.

Said afirma: “[...] o que de fato importa é que o humanismo é nossa única
possibilidade de resistência – e eu chegaria mesmo ao ponto de dizer que ele é
nossa última possibilidade de resistência – contra as práticas desumanas que
desfiguram a história humana.[...]” [Said, 2007, p. 26]. Afinal o desejo de
conhecer para coexistir se distingue do desejo de conhecer para dominar. O
conhecimento colonial triunfa no momento em que torna um indivíduo ocidental
um não-oriental, reflete ao lado deste o indiano Ashis Nandy. Esta operação de
exclusividade acarreta numa visão de mundo fundando uma autoimagem e
criando uma resposta às necessidades da colonialidade, dizendo: “Ele somente
podia ser não oriental; ele somente podia estar continuamente engajado em
estudar, interpretar e entender o Oriente como sua identidade negativa.”
[Nandy, 2015, p. 35].

Se formos capazes de encarar a tradição em sentido dinâmico, como aponta


Al-Jabri, teremos condições de trabalhar a perspectiva da modernidade
amplamente ao lado dos teóricos até aqui tomados por referências decoloniais.
Considera ele: “A modernidade significa, pois, antes de tudo elaborar um
método e uma visão modernas da tradição. Poderemos, assim, libertar a nossa
concepção da tradição dessa carga ideológica e afetiva que pesa sobre a
nossa consciência e nos força a ver a tradição como uma realidade absoluta,

62
que transcende a história, em vez de vê-la em sua relatividade e em sua
historicidade.” [Al-Jabri,1999, p. 29]. O intuito de Al-Jabri é nos tornar aptos a
elaborar um método e uma visão de mundo modernos de tradição.
Considerando assim como François Jost, o Corpus Literarum não se limita
apenas ao lido nas literaturas europeias, ele diz: “A China, o Japão, o Oriente
Médio, as Índias Ocidentais e a África podem muito bem, como qualquer região
europeia contribuir para uma compreensão da essência literária, para definir
suas características e determinar critérios para julgamentos de valor.” [Jost,
1974, p 343]. Neste sentido, inequivocamente a Filosofia das Letras proposta
se torna uma aliada aos estudos da História da Arte. Como atributo da
aproximação tais objetos vistos lado a lado recuperam suas matizes. Observar
o que diz a literatura de um grupo em sua honestidade contribui de modo ainda
pouco experimentado, por isso é relevante termos cuidado ao examinar os
produtos de uma cultura nos certificando de levar em conta diferentes
meditações.

É sintomático que nosso campo ainda não tenha superado estas lacunas, mas
também nos dá pistas do quanto o orientalismo ainda não é uma língua morta
entre nós. Está presente em Burckhardt, Riegl, Wölfflin, Hauser, Panofsky,
Jansson, Gombrich e muitos outros, aparecendo explicitamente em juízos de
valor, ou se fazendo presente pela omissão. Said reflete sobre as
generalizações inventadas pelo ocidente e comenta seu desempenho na
formatividade do olhar, dizendo: “Num lado, há ocidentais, e no outro, há
árabes-orientais; os primeiros são (em nenhuma ordem particular) racionais,
pacíficos, liberais, lógicos, capazes de manter valores reais, sem suspeita
natural; os últimos não são nada disso.” [Said, 2007, p 85]. Este pensamento
revela as vias pelas quais o ocidente inventou um oriente exótico, caótico,
fundamentalista, preguiçoso, esquecido. Devemos ficar atentos às diferentes
epistemologias em outros modos de formular ideias. Historiadores da arte
como Necipoğlu, Grabar, Rabbat, Bahnassi, entre outros, contribuem para
conhecermos as vias de acesso à uma leitura mais aclimatada àquilo curado
por artes árabe-islâmicas.

Ao falar em arte islâmica precisamos nos situar como se observássemos uma


grande abóbada feita de um mosaico de incontáveis partes criando um todo
coeso porém diverso. Importante notar, as artes dos povos muçulmanos é uma
miríade de muitas idas e vindas e por isso é prudente ficarmos atentos a alguns
tópicos elementares. Os árabes são o conjunto de diversas tribos, tendo seu
papel e suas trocas correspondentes aos arredores culturais e materiais de
onde habitam e por onde transitam. Isso nos leva a crer que os pilares culturais
do Islã dizem respeito às dinâmicas próprias da passagem de um sistema,
antes de adesão tribal e suas demandas, para um sistema universalista de
arabismo e uma maximização destas exigências. A partir desta configuração
notamos então: em todo lugar por onde se estenda carregará consigo códigos
socioculturais e cânones que refletirão, por consequência, sua existência
materializada em novos contextos. Distinguindo as diferentes manifestações de
uma mesma origem sob outras interpretações e a exegese sobre cada cultura
adquirida ao absorver o universalismo árabe vivo internamente no próprio Islã,

63
diz Hourani: ”Um mundo onde uma família se mudava do sul da Arábia para a
Espanha, e seis séculos depois retornava ao lugar de origem e continuava a
ver-se num ambiente familiar, tinha uma unidade que transcendia as divisões
de tempo e espaço [...]” [Hourani, 1994, p. 17]. Uma arte islâmica
invariavelmente trará consigo uma densa carga árabe em sua visão de mundo,
pois é um monoteísmo o qual fala e escreve em árabe, pensa das relações
tribais e seus costumes, olha para as tradições como patrimônio e requer
conhecimento de suas fontes. Ele inclui: ”[...] um conjunto de conhecimentos,
transmitidos através dos séculos por uma sequência conhecida de professores,
preservava uma comunidade moral mesmo quando os governantes mudavam
[...]” [Hourani, 1994, p. 18].

O todo conhecido pode nos parecer de alguma forma semelhante, porém é


evidente que cada manifestação trará eloquências individuais. Comenta ele:
“Em nome da nova religião - o Islã - [...] que inclui grande parte do Império
Bizantino e todo o Sassânida, e estendeu-se da Ásia Central até a Espanha.”
[Hourani, 1994, p. 21]. Alguns conceitos se apresentam com frequência; arte e
artesanias; gosto e beleza; tempo e espaço e etc. Diz Necipoğlu: "As artes no
mundo islâmico foram geralmente incluídas sob o domo de termos como arte e
artesanias referindo-se aos campos de especialização ou habilidade nas artes
e ofícios." [Necipoğlu, 1995, p. 185.] Esse joguete em dualidades é
característico, advém da noção interna do islã de uma verdade revelada,
pressupondo seu complemento naturalmente. Visto que o todo apresentado
acaba trazendo muito além do inicialmente deduzido, parcela do sentido fica
oculta nas linhas das palavras ou do desenho sendo apreendido pela síntese
intuitiva do observador. Revelando o caráter poético das artes do islã, trazem
em si o exercício do pensamento, exaltando o divino na habilidade do crente
em enxergar uma mensagem falando diretamente com seu coração. Ela afirma:
"[...] em outras palavras, o prazer estético surge quando a alma (sujeita às
mesmas proporções que regem o cosmos) encontra sua própria harmonia
interior duplicada no objeto." [Necipoğlu, 1995, p. 187]

O rigor estético do pré-islâmico habita também no islâmico, seus padrões de


beleza não se rompem, se transformam. O todo fala pelo Turath. Aí vemos uma
consciência árabe de estar no mundo, a revelação ao lado do irrevelado, sua
iluminação oculta frente à penumbra dos sentidos explícitos e por fim sua
demonstração particular para servir ao coletivo. Estas orientações se fazem
vivas, elas devem servir como estandarte à umma. Lembraremos sempre de
que todo processo incorre em múltiplas decisões e muitas contradições
aparecerão naturalmente, mas existe desse modo um pano de fundo complexo
para guiar escolhas feitas pelo calígrafo ou pelo arquiteto. Ideias sentidas de
Al-Kindi à Al-Haytham e também depois destes, na exploração da natureza do
poder ou da proporção. Necipoğlu informa: “O ornamento geométrico surge
como um sistema de sinais de várias camadas adaptável a uma grande
variedade de contextos variáveis, e não como um molde estático de formas
intemporais desligadas da memória histórica e dos códigos culturais de
reconhecimento ligados ao contexto de reconhecimento.” [Necipoğlu, 1995, p.
10]

64
O hakim de Ma’arra se tornou conhecido ao produzir um novo estilo de poesia
ao seu tempo, uma modernidade antes das modernidades. Abu L’ala Al-Ma’arri
é lembrado por inaugurar um estilo literário com fortes retomadas da poesia
pré-islâmica ao lado do sufismo, de caráter fatalista, profundamente existencial
e sofisticado. Verificamos que a estrutura da poética de Al-Ma’arri é oral e
escrita, o rigor da palavra entoada também se encontra na grafada, nosso
poeta cria imagéticas profundamente simbólicas, herméticas e extensas.
Lembrado por longas passagens e intermináveis sequências de enigmas para
o ouvinte ou leitor interpretar. As inovações para a produção poética estão em
temas de filosofia, religião e ciências, para que não esqueçamos dos meios nos
quais ocupou-se das artes e humanidades de seu tempo. Diz Ramírez Del Río:
“As ideias místicas e gnósticas encontraram neste período um excelente
terreno fértil, pois as situações em que as instituições religiosas e políticas
pareciam falhar promoveram um regresso à outras formas de espiritualidade,
sentidas como mais autênticas e mais eficazes na resolução dos problemas
humanos básicos.” [Ramirez Del Rio, 2003, p. 38]

Aparecendo com frequência no desenrolar de seu pensamento, o tempo para


Al-Ma’arri trás a noção do abstrato incapturável, prisão em vida, o tempo para
ele é uma face da própria tradição. A noção de tempo é um embate declarado
com os legados religiosos do ontem e a natureza dessa herança. Deste modo
coloca seus ouvintes diante de questões como bem e mal, exaurindo-as de
sentido para a vida do presente, relativizando a moral diante do destino, da
morte. A morte é um conceito alusivo e dirigido aos poetas pré-islâmicos, ela
aparece com frequência como evento máximo de limites do humano. Seja o
indivíduo um corajoso ou um covarde, estará destinado à finitude, seja erudito
ou aquele que nada sabe, o angustiado acabará no abismo. A angústia de Al-
Ma’rri é o último dos três conceitos também remontando ao Turath, o
patrimônio dos árabes. Sua forma de pensar a angústia é plural, mas sempre
ligada aquela angústia de quem sofre a vida, tanto pelos desafios do mundo
quanto pela ansiedade do encontro com o paraíso. Al-Ma’arri pensa por vezes
que o paraíso é o descanso dos vivos, e sofre por interpretações de religiosos
ocupados em distribuir espólios dogmáticos. Em sua poesia o paraíso divino é
um conflito, hora está repleto de corruptos e pessoas más, enquanto o inferno
é legado à gente de bom caráter, ou exibe um sentimento otimista. Deste modo
a angústia se faz presente no desenrolar de suas diversas imagens da vida e
dos viventes. Ele Inclui: “Estes três conceitos estão firmemente ligados na obra
do nosso poeta, e não devemos estudá-lo como um sistema filosófico exposto
através dos seus poemas, pois Al-Ma'arri não pretendia tal coisa na sua obra: a
contradição preside aos seus escritos [...]” [Ramírez Del Río, 2003, p. 13] Al-
Ma’arri nos ajuda por fim como guia para lidarmos com as cargas conceituais
divergentes àquela visão tradicionalista e pouco compreensiva dos muitos islãs
experienciáveis, auxiliando numa compreensão do universalismo árabe e o
modo ao qual este se comportou no passado influenciando os mais diferentes
intelectuais e artistas após ele, inclusive os do ocidente.

65
Analisamos brevemente um pequeno conjunto de obras onde podemos
enxergar os embates presentes em três visões distintas de um mesmo mundo.
As imagens vistas aqui articuladas com um pequeno trecho da poesia de nosso
poeta ganham outras matizes uma vez tocadas pela voz de um pensador que
violenta a crença arraigada numa postura rígida ou numa representação
inventada.

Pote Çanakkale.
Turquia, séc XVIII.
Museu de Arte do Rio - RJ

Ao examinarmos este pote de cerâmica, hoje uma peça integrante no acervo


do Museu de Arte do Rio, notamos um objeto de uso cotidiano aparentemente
prosaico, mas revelador de camadas profundas se visto com cuidado.
Presumimos que seu uso não estivesse meramente condicionado ao
desempenho funcional. A julgarmos pela decoração e técnica aplicada
supomos certo grau de luxo envolvido. Certamente foi concebido para
apreciação já que o engobe garante redução de sulcos para a superfície e a
pintura em preto – provavelmente a base de carbono – adicionam juntos uma
evocativa particular das cerâmicas esmaltadas Çanakkale. Contribui Necipoğlu:
“Esta abordagem taxonômica deixa questões cruciais sobre os mecanismos de
inovação artística, as transformações do gosto e o seu significado no contexto
mais vasto da cultura otomana.” [Necipoğlu, 1990, p. 156]. Este vaso
participava na vida social de um grupo, familiar ou não, o qual apreciava a
beleza deste objeto em circulação. As figuras na superfície exibem três
estágios de compreensão do mundo: uma banda de nuvens no céu, um
pássaro a voar por entre as vegetações e árvores e flores ascendendo da terra.
Na parte superior exibe um colar estrelado induzindo uma abstração da luz
solar e no oposto inferior uma faixa indicando um rio cortado por reflexos. É
suficiente para nos fazer enxergar uma compreensão poética do mundo. O
jardim neste contexto possui um aspecto de dádiva, tanto como ambiente de
descanso das jornadas como fonte de alimento. A maneira de ver o mundo
provido de vida inclina-se às imagens do Alcorão de um paraíso abundante,
amparado pelas purezas postas na terra por Allah. O estilo decorativo revela

66
influências iranianas e chinesas. É sabido como a arte do islã conflui
abstrações vegetais com figuração animal, ao lado de traços bastante
característicos de nuvens encadeadas, bem como o tratamento vitrificado,
comum também nas técnicas da extrema Ásia. O pássaro é, no contexto do
misticismo sufi, uma figura que substitui o humano, e conforma uma
mentalidade islâmica em figuração apologética. Diz Necipoğlu sobre a técnica:
“A este respeito, estava a seguir as pisadas de artistas timúridas anteriores que
também tinham feito experiências com cerâmica [...] tinha feito vasos de
porcelana que se aproximavam dos da China.” [Necipoğlu, 1990 p. 148].

Cavaleiros mouros e cruzados.


Johann Baptist Zwecker, 1846.
Fundação Biblioteca Nacional - RJ

Nesta litogravura colorida à mão, hoje no acervo da Fundação Biblioteca


Nacional e parte de um conjunto intitulado Cavaleiros e Cavalaria, o artista
alemão exibe uma cena inventiva de batalha em meio ao deserto. De pronto
vemos a teatralidade e vigor narrativo típicos das obras do movimento artístico
orientalista europeu. Ressaltamos o caráter descritivo da composição, como o
artista constrói estruturalmente uma cena falante, tagarela. O deserto é
insinuado fantasmagoricamente, feito imaginação de contornos borrados em
nossas mentes, um recurso à garantir certa generalidade ao local quando este
perde relevância geográfica assumindo certa retórica singular. Surgem as
figuras dos guerreiros árabes, belicosos, selvagens, tratados como bárbaros se
comparados ao requinte das armaduras e posturas adversárias, ocupando um
lugar cênico abaixo da linha média de seus oponentes. No canto inferior direito
o autor aloca um grupo de figuras humanas, espectadores que assistem à
barbárie como quem pouco tem a ver com ela, algo de ideológico sobrevive
nesta opção evocando a exoticidade dos estrangeiros que naturalizam a
guerra, sentem-se confortáveis neste ambiente. Um arranjo que dá ao
observador aquilo que este espera ver. Contribui Benjamin: “Muitas das
imagens exóticas estão repletas de tendências para o racismo estereotipado e
de pressupostos gerais de desigualdade cultural que eram tidos como certos
na época.” [Benjamin, 2004, p. 176].

67
E Abu L’ala nos diz:

“A terra então falou: meus filhos, calem-se


O mesmo vale pra Deus, o camelo e a pulga.
Ele faz uma bagunça em mim para alimentá-lo
Então faz uma bagunça em vocês para alimentar-me.” [Rihani, 1920, p. 58]

Que outra imagem do Islã nos sobra após ler estas palavras de Al-Ma’arri? O
poeta ao elevar a autoridade da terra põe até mesmo Deus entre as coisas
vivas sobre sua superfície. A imagem basilar de mundo islãmico onde o criador
está acima de tudo rui como argila quando Abu L’ala inverte o poder em
poucas linhas, este mesmo intelectual dizia-se o único muçulmano ortodoxo de
sua época. Al-Ma’arri mostra desse modo sua visão de mundo própria, sua
orientação: ele crê na vida sentindo suas angústias através do tempo até a
hora da morte. Um breve trecho carregado de forma sutil das três ideias tão
presentes em seus trabalhos. E renova aos poetas, eruditos e conhecedores
do texto sagrado: o mundo fala, a terra alerta e censura a arrogância. Desperta
aos indivíduos que tanto proferem em nome de algo maior, mas pouco
conhecem de seus irmãos. Nosso murshid nos ensina a calar ruídos e a versar
o ouvir. Informa Ramírez Del Río: “Na obra deste grande poeta há
composições em que ele apela à limpeza da face da terra da impureza que, na
sua opinião, o ser humano representava. Esta posição é, sem dúvida, próxima
de alguns dos primeiros místicos islâmicos, mas ele levou-a mais longe do que
qualquer outro, pois dispensa a missão que os místicos consideravam que
Deus tinha confiado ao homem na terra.” [Ramírez Del Río, 2003, p. 72].
Assim aprendemos, as dinâmicas de tudo o que conhecemos sobre as artes
árabe-islâmicas podem e devem receber um olhar mais cuidadoso. Ancorados
em ferramentas que sejam bons ambientes de encontros como o é a Literatura
Comparada. Mas sabendo sempre como este é um exercício tal qual uma
viagem sem destino certo. Observando que a História da Arte no ocidente até
então foi escrita sem levar em consideração outros olhares de tamanha
profundidade ou altitude. Visitar Al-Ma’arri é buscar um guia, o sábio apontando
o caminho para uma escrita honesta de uma história das artes árabe-islâmicas
pelo que tem de mais valiosa, a multiplicidade na unidade.

Referências
Rafael R. M. Ramos, bacharel em História da Arte em EBA/UFRJ, membro do
GEAA (Grupo de Estudos de Arte Asiática) em EBA/UFRJ.
Rosana Pereira de Freitas é professora do Departamento de História e Teoria
da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ, com atuação em PPGAV e no
curso de graduação em História da Arte, respondendo, entre outras, pelas
disciplinas de arte asiática e historiografia da arte.

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69
A LÍNGUA E A RELIGIÃO COMO FATORES DE COESÃO NA
IBÉRIA MUÇULMANA DURANTE A DINASTIA OMÍADA, por
Renata Ary

A Ibéria muçulmana durante o século X


Muitas transformações ocorreram na Ibéria Muçulmana durante o século X. No
início, o Islã [século VII] permaneceu centralizado majoritariamente na
Península Arábica, porém, de acordo com Lewis, a expansão lhe era atávica e,
em algumas décadas, já havia conquistado o Oriente Médio e a África do
Norte. Do mundo Romano, os árabes conquistaram a Síria, a Palestina e o
Egito. Derrotaram o exército Bizantino, conquistaram parte da Espanha e das
ilhas mediterrâneas e incorporaram regiões como parte da Índia, da Indonésia
e China. [Lewis, 1982. p. 4]

A expansão islâmica, doutrinariamente, é dividida em três estágios: No


primeiro, denominado clássico [séculos VII ao XI], o islã conquistou o Oriente
Médio, África do Norte e parte do sul da Europa; No segundo, a expansão
ocorreu na Ásia Central e na Índia e no terceiro [séculos XV ao XVIII] deu-se
com o advento da expansão otomana. Após essas expansões, já na segunda
metade do século XX, o mundo muçulmano caiu sob a influência das potências
europeias e neste período seu legado foi apagado de modo que as tentativas
recentes de descolonização e o repensar num reequilíbrio do Islã entra em
confronto com a modernidade ocidental e o pensamento colonizado que nela
impera.

Nas palavras de Menocal, foi no ano de 750, após o massacre dos Omíadas
pelos Abássidas em Damasco, que o príncipe Abd al-Rahman, sobrevivente
dos Omíadas e de origem Berbere, atravessou o deserto como refugiado
político e chegou no ocidente - onde os romanos denominaram de Hispania ou
Ibéria, futuramente denominada Espanha ou al-Andaluz, em árabe. Nesse
período, “menos de 10% da população do Irã e do Iraque, Síria e Egito, Tunísia
e Espanha era muçulmana”. [Hourani, 2021, p. 76]. No ocidente, o príncipe se
aliou aos seus parentes berberes liderados por árabes sírios recém chegados
[711] e, movidos pelo desejo de uma vida melhor e pelo expansionismo militar,
colonizaram a região e nela estabeleceram o Califado. Nesse contexto, a
sociedade Ibérica assistiu a queda dos visigodos e a anexação ao mundo
mediterrâneo do dar-al-islam [casa do Islã].

Khordoba [Corduba em árabe] tornou-se a Capital e centro do império que ali


se estabeleceria por séculos - até a reconquista de Granada em 1492 quando
da expulsão dos muçulmanos da Hispânia. A reconquista dos Cristãos teve
início pelas extremidades e consolidou-se com as cruzadas. O fator crucial

70
para o sucesso da reconquista e início do silenciamento do pensamento árabe-
islâmico na região, foi a dissidência religiosa, os conflitos internos e a
fragilidade dos muçulmanos. [Menocal, 2004, p. 21-30]

Após a conquista e nos primeiros anos de instalação [777], os governantes da


Espanha, estabelecidos em Córdoba, enfrentaram alguns problemas, dentre
eles destacam-se a resistência dos Cristãos, as revoltas dos berberes [de
cunho Kharidjita] contra os árabes e as lutas internas entre os próprios árabes
de diferentes origens [retomando o conflito entre os árabes do Norte e do Sul
da Arábia]. No entanto, em pouco tempo, as agitações foram resolvidas e o
processo de colonização teve início.

Abd al-Rahman, com o apoio dos Sírios, foi proclamado Emir [malik – rei] de
Córdoba. Ele reinou sem impor a religião muçulmana aos habitantes da Ibéria,
sobretudo aos Cristãos que tinham liberdade de crença e culto. Os Cristãos
eram chamados de mustarib [daí a palavra: moçárabe] ou muabidun [os que
firmaram um pacto]. Os convertidos, eram chamados de musalima ou
muwalladun [os adotados]. Os árabes eram divididos em: baladis [emigrantes
de primeira leva] e shmis [sírios]. Os judeus, até então perseguidos pelos
visigodos, recepcionaram os conquistadores. A diversidade da população era
notória, no entanto, a convivência era pacífica, tolerante, fato que facilitou a
islamização e a arabização e, após algumas gerações, devido a miscigenação,
tornou-se imperceptível a distinção entre os descendentes dos conquistadores
e dos muwalladun. [Mantran,1977, p.156]

Após a morte de Abd al-Rahman [788] seus sucessores Hisham I [788-796] e


al-Hakam I [796-822] consolidaram o poder Omíada sobre al-Andaluz, mas foi
no governo de Abd al-Rahman II [822-852] que a paz interna efetivamente se
instalou e, de fato, Córdoba assumiu a aparência de Estado independente. A
organização do emirado foi implantada de acordo com os costumes abássidas:
autoridade total do soberano, centralização da administração, burocracia e
hierarquização sob a direção do badjib [vizir ou primeiro-ministro]. A economia
era próspera, o país rico, a corte vivia no luxo. O emir cercou-se de eruditos,
pessoas letradas, sábios, poetas e filósofos [alguns, inclusive, foram trazidos
do Oriente]. O esplendor e o requinte imperavam, inclusive sobre a música,
moda, indumentária e cozinha. [Mantran, 1977, p. 161]

Foi no governo de Abd al-Rahman III [912-961] que a Espanha viveu o seu
apogeu. Conhecido como um soberano notável em todos os aspectos, fez da
Ibéria o maior centro intelectual e artístico do Ocidente. A atmosfera refletia
uma grandeza política, econômica, intelectual e, como fatimíada, firmou a
presença do sunismo no Ocidente Muçulmano, além de consolidar a
independência da Espanha. [Mantran, 1977, p. 156]

A influência da Espanha muçulmana ultrapassou os limites de seu território


para além-mar e a grandeza islâmica em al-Andaluz durou séculos – até o
califado Omíada entrar em declínio e desaparecer por completo com a queda
do último califa, Hicham III no ano de 1031. Em seu lugar surgiram reinos

71
autônomos [Taifas]. [Menocal, prefácio, p. 12]. Durante o século XI, a dinastia
dos Almorávidas [de origem Berbere] assumiu o controle do Norte da África e
da Espanha. Enquanto a expansão muçulmana se alastrava pelo ocidente, no
oriente, os Abássidas construíram um Império islâmico do qual Bagdá tornou-
se a sua Capital e cujas conquistas se estenderam para o ultramar.

Unidade de Fé e de linguagem no mundo muçulmano da Ibéria do século


X
Conforme a expansão islâmica foi se concretizando do Oriente para o
Ocidente, os muçulmanos passaram a ter o controle dos espaços sociais,
culturais e geográficos. Essa heterogeneidade foi de fácil superação devido a
islamização dos grupos humanos conquistados, cujo “processo de conversão
foi facilitado pela simplicidade do processo de assimilação” [Bissio, 2012, p.
64], além da política de tolerância para com os seguidores das outras religiões
[cristãos e judeus, chamados de “povos do livro”]. Os convertidos recebiam de
plano o estatuto do mawali e por muito tempo foram tratados como dimmi
[protegidos], pois havia um estatuto jurídico que lhes garantia permanecer com
a sua identidade. Eles tinham direito à “livre interpretação teológica e filosófica
das Escrituras e total liberdade nas práticas litúrgicas. Além disso, podiam
manter as regras tradicionais em matéria de laços de parentesco, casamento e
herança, direito que lhes era negado pelo Império Bizantino, por exemplo”.
[Bissio, 2013, p. 64-65].

A Fé partilhada por seus membros sempre foi o principal recurso de união da


comunidade muçulmana. A religião islâmica foi a principal responsável pelo
processo de unificação do mundo muçulmano, apesar de subdividido
politicamente em Califados. Para o mundo exterior, o Islã formava um todo,
uma unidade e independe da vertente sunita ou xiita, era o Islã [como unidade]
que lutava contra a cristandade: contra os cristãos das Astúrias ou de Leão, por
exemplo. Caso os bizantinos, formassem ofensiva contra os muçulmanos, eles
se defenderiam como um todo e pouco importava se esses muçulmanos eram
ortodoxos ou não. [Mantran, 1977, p. 160].

No entender de Bissio [2012, p. 20], na sociedade muçulmana “o principal


vínculo entre as diferentes partes do espaço sempre foi o fato de seus
membros partilharem da mesma Fé e, consequentemente, do sentimento de
fazerem parte da umma, a nação fundada por Muhammad na cidade de
Medina em 622. No início a umma estava centralizada em um território
reduzido às estepes e aos desertos. Conforme o Império islâmico foi se
alastrando para o Oriente e para o Ocidente, ela passou a ocupar espaços
heterogêneos do ponto de vista social, cultural e geográfico”.

Com relação ao uso da língua - o segundo e não menos importante fator de


coesão do mundo muçulmano - grande parte das minorias cristãs e judaicas,
de forma rápida e por questões práticas, adotaram o árabe. Como
consequência, os outros idiomas falados pelo povo conquistado,
paulatinamente, foram abandonados [embora alguns deles tivessem suas
estruturas similares ao árabe, como por exemplo o sudarábico e o copta].

72
Nesse contexto, adicionado ao fato de que os muçulmanos têm uma visão
totalizadora do sentido de vida – que lhe incute uma visão integral do Universo
no qual o homem está incluído – o mundo muçulmano sofreu uma coesão
interna no vasto território conquistado e dominado pelo Islã, sobretudo na
Península Ibérica. [Bissio, 2013, p. 65]

O árabe, como meio de unificação cultural, consolidou-se como instrumentos


de comunicação por excelência entre o centro, as regiões mais afastadas
[mamlaka] e além-mar. De acordo com Bissio:

“O árabe transformara-se no meio de expressão já não só daqueles que


aceitavam o Islã, mas também de todos os que, por diferentes motivos,
necessitavam utilizar-se dessa língua. A preeminência da língua árabe estava
enraizada igualmente em questões objetivas, sobretudo na sua riqueza de
vocabulário. À beleza fonética soma-se a sua riqueza de sinônimos. Precisão e
concisão de expressão também adornam a expressão em árabe, que se
distingue pelas possibilidades incomparáveis de sua linguagem figurativa. E há
peculiaridades em seu estilo e em sua gramática que não encontram
correspondentes em nenhuma outra língua”. [Bissio, 2012, p. 21]

Na Península Ibéria, principalmente durante o século X [denominado por


alguns como o século das transformações] em que o ambiente era coerente e
harmônico, a língua árabe era dominante. O fato do califa Omíada Abd Almalik
Marwan [685-705] ter declarado o árabe como língua oficial e administrativa do
império [substituindo o grego da Síria, o pálavi no Iraque e nas províncias
orientais e o copta no Egito] contribuiu para o processo de assimilação
linguística do idioma e consolidou o árabe como língua das comunicações e
falado em toda a sua extensão, inclusive nas regiões conquistadas e
colonizadas.

O Corão, livro sagrado do Islã, também teve papel fundamental para o


processo de unificação linguística pois, como ele está escrito em árabe e no
entender dos muçulmanos, essa é a língua da revelação exprimindo a palavra
de Allah [Deus], era fundamental a compreensão e o entendimento dessa
língua. Conforme explica Cahen:

“Se trata de una cultura árabe porque es la lengua árabe la que ha servido de
vehículo común a los pueblos, hasta entonces separados lingiísticamente, que
contribuyeron a edificarla, incluidos los autores que escribieron en contra de las
pretensiones árabes. Sin duda el árabe se perfeccionó a lo largo del mismo
proceso, pero lo cierto es que pudo hacerlo; en lugar de abandonar su lengua
natal, como hicieron la mayoría de los conquistadores germánicos, por la de las
poblaciones sometidas, los árabes enseñaron a éstas la suya, e hicieron de ella
un instrumento de valor universal. Tanto si el árabe fue la lengua de los
conquistadores, como la de la Revelación, esto no es obstáculo para sospechar
que no hubiese podido realizar tal proeza si no hubiese disfrutado, respecto a
las otras lenguas del Próximo Oriente, de cualidades específicas”. [Cahen,
1898, p. 110 - 112]

73
Os laços religiosos e linguísticos garantiram uma unidade da qual a
Cristandade ocidental pareceria antiquada. Essa aliança do idioma, permitiu
que eruditos, estudiosos, músicos, artistas e até teólogos, se deslocassem de
um extremo ao outro do Islã – desde a península Ibérica, Oriente Médio até a
antiga Pérsia. Em todos os ramos do conhecimento, as produções culturais
eram em língua árabe, ainda que não necessariamente confiada aos árabes.
Sábios como “Avicena (Ibn Sina), Al-Buruni, Alhazen (Al-Haizam, físico), Ibn
Yunus (astrônomo), entre outros, integravam o importante conjunto de eruditos
muçulmanos cuja obra dominou o mundo durante vários séculos e cujo legado
influenciou a escolástica e a ciência ocidental”. [Bissio, 2012, p. 22]

Além do árabe, existiam vários dialetos locais que, no entanto, do ponto de


vista linguístico, não impediram a comunicação entre os povos, de modo que,
um comerciante muçulmano da Espanha por exemplo, não se sentiria
estrangeiro em Damasco ou em Bagdá. A língua árabe foi um instrumento de
comunicação comum entre os habitantes da Ibéria. De acordo com Mantran:
“Se a língua árabe não tivesse sido um instrumento comum de comunicação
entre as diversas regiões do Islã, seria difícil compreender como um Abu
Abdallah, originário do Iêmen, poderia ter levado os kotama e outros grupos
berberes a aderir a doutrina fatimíada”. Do mesmo modo, “como poderia a
propaganda ismaelita espalhar-se por todo o mundo islâmico central e oriental
sem o concurso da língua árabe?”. [Mantran, 1977, p. 163]

Língua e religião, em conjunto com o legado da antiguidade clássica e a


contribuição de outras culturas [grega, persa, chinesa, indiana – com as quais
os árabes estabeleceram relações] foram o alicerce para que, em pouco mais
de um século, após a morte de Muhammad, os árabes e mais tarde, os povos
por eles conquistados [desde a Península Ibérica até a Índia] fizessem parte do
chamado “domínio muçulmano” [mamlaka] que “unidos por uma cultura
comum, amalgamados pela língua árabe, pela experiência da peregrinação e
ainda pela importância do comércio e da troca de conhecimentos entre as
diferentes regiões desse conglomerado humano.” [Bissio, 2012, p. 40]
construíram um dos mais longevos e importantes impérios da história.

Referências
Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos
e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo [PUC-SP].

BISSIO. Beatriz. O mundo falava árabe: A civilização árabe-islâmica clássica


através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Batuta. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 2012.

________. O pensamento político no Islã Clássico: A sociedade humana como


objeto de estudo na Muqaddimah de Ibn Khaldun. 2013.

74
CAHEN. Claude. El Islam: Desde los orígenes hasta el comienzo del imperio
otomano. História Universal, v. 14. Espanha: Siglo veinteuno editores. 1989.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Tradução: Marcos


Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras. 2021.

LEWIS, Bernard. Os árabes na história. 2.ª ed. Lisboa: Editorial Estampa. 1990.

MANTRAN, Robert. Expansão muçulmana: séculos VII – XI. Tradução de


Trude Von Laschn Solstein. São Paulo: Pioneira. 1977.

MENOCAL, María Rosa. O ordenamento do mundo. Rio de Janeiro: Editora


Record. 2004.

75
ROXELANA, DA SERVIDÃO AO SULTANATO,
por Talita Seniuk

Este trabalho busca apresentar a trajetória de Roxelana, uma eslava, serva


ucraniana de nascimento que viveu durante os primórdios da Idade Moderna e
que devido a sua beleza ascendeu socialmente, provando, com o passar dos
anos que sua característica principal seria na verdade a inteligência. O artigo
estrutura-se em três tópicos, As origens étnicas de Roxelana, O encontro com
o sultão, e, O poder, respectivamente. Como referenciais utilizam-se Quataert
[2008] que apresenta a temática otomana; Segrillo [2012] e Subtelny [2009]
que abordam sobre algumas especificidades da Ucrânia; e por fim, Shutko
[2015] e Peirce [1993], duas autoras que tratam especificamente sobre a
personagem histórica, foco do debate. Vale ressaltar que existem inúmeros
boatos e lendas sobre ela, ora amada, ora odiada; devido a singularidade de
sua posição jamais ocupada por outra até a contemporaneidade.

As origens étnicas de Roxelana


Para que se possa compreender as origens de Roxelana [grafado também
como Roxolana, Roksolana], em especial sua condição de nascimento – serva
– faz-se necessário recorrer a história da Ucrânia, antes de se tornar um
Estado centralizado como se apresenta hoje; além de relembrar que a nação
faz divisa com a Rússia, Polônia, Bielorrússia, Moldávia, Romênia, Hungria e
Eslováquia.

A Ucrânia atual e todo seu entorno possuem suas raízes no Estado Kievano –
também chamado de Rus [formado por tribos eslavas de origem viking] –
existente entre os séculos IX ao XIII, que compreendia diversas cidades-Estado
compostas entre os povos eslavos orientais, os grão-russos [russos], os
pequeno-russos [ucranianos] e os russos brancos [bielo-russos] [SEGRILLO,
2012] que formariam diversos reinos e principados para posteriormente
delinear a Rússia, a Ucrânia e a Bielo-Rússia.

O único elemento que unia a todos era a condição de vassalagem em relação


ao Grande Príncipe de Kyiv. Devido as suas diferenças e até mesmo pelas
suas características descentralizadas, esses reinos não foram capazes de frear
as invasões mongóis vindas do Oriente e que se estenderam entre os séculos
XIII ao XV, que só terminou com a unificação dos três povos sob o jugo de
Moscou, dos russos. Essa investida asiática dispersou os povos eslavos,
marcando-lhes a partir desse momento como povos separados [SEGRILLO,
2012].

À oeste da Ucrânia entre os séculos XIV e XVI, o território do Reino da Galícia


e da Volínia foi dominado respectivamente pelos poloneses e pelos lituanos.
Acredita-se que é nesse período que surge pela primeira vez a palavra

76
“ukraína” para designar tudo aquilo que estava aos arredores da atual Kyiv e
“rutenos” [русини - rusyny - derivado de Rus] para designar esse povo,
vocabulário que valia para os bielo-russos também, enquanto os russos eram
chamados de moscovitas [SUBTELNY, 2009].
A região da Galícia auxiliou durante séculos na proteção contra as invasões
dos nômades asiáticos e era ao mesmo tempo uma passagem comercial entre
o Oriente e o Ocidente, ao ligar trajetos entre os Mares Báltico e Negro com
Bizâncio. E os ucranianos étnicos desse reino, pertenciam, entre outros fatores,
mas até por esse contato direto, ao cristianismo ortodoxo, enquanto os
poloneses, por exemplo, seguiam o cristianismo católico.

Roxelana, ou Anastasia Lisowska, nome atribuído à ela mas que divide os


historiadores quanto as fontes confiáveis, nasceu em 1502 na cidade de
Rohatyn [Рогатин], no Reino da Galícia, entretanto, região sob domínio
polonês. Apesar disso, sua família era etnicamente ucraniana, seu pai era
padre da Igreja Ortodoxa, que permite o matrimônio de seus sacerdotes desde
que casem antes do celibato; totalmente diferente das regras do catolicismo
que imperava na Polônia.

O encontro com o sultão


No Ocidente Solimão, o Magnífico ou Solimão I Kanuni no Oriente [Kanuni
significa Legislador] nasceu perto do Mar Negro em Trabzon, na Turquia em
1495. Foi Califa do Islã e Sultão durante o apogeu do Império Otomano entre
os anos de 1520 a 1566, ou de acordo com Quataert [2008] – a Idade de Ouro;
num período marcado por campanhas militares, expansões territoriais
[expedições na Pérsia, Europa Central e Oriental] e conquistas culturais
significativas. Seu sultanato abrangia três continentes.

Uma de suas características principais era seu efetivo controle sobre a


administração do reino, inspecionava regularmente os registros e liderava
pessoalmente as campanhas militares [QUATAERT, 2008]. Obteve inúmeras
vitórias com estas expedições e de acordo com Subtelny [2009] durante todo o
século XVI a Europa estremecia só de pensar nas invasões otomanas, que
devastaram a Hungria em 1529 e quase conquistaram Viena. Todo o lado
oriental europeu ficava exposto às investidas asiáticas e ao sul, às otomanas.

Apesar de Anastasia viver no Oeste da Ucrânia, foi capturada por tártaros em


1520 e, depois de uma longa viagem, vendida como escrava no comércio de
pessoas em Istambul. A data exata de quando ela se tornou uma das
concubinas do harém de Solimão é imprecisa, mas de acordo com Peirce
[1993] provavelmente foi um pouco antes dele se tornar sultão ou no primeiro
ano que alcançou o poder. E ainda, para a mesma autora, ela pode ter sido um
presente de outrem por ocasião da sua ascensão.

Foi no harém que recebeu o nome de Roxelana, uma referência aos seus
cabelos ruivos [PEIRCE, 1993], apesar de existirem várias histórias para esta
origem e até de que seu verdadeiro nome é desconhecido [SHUTKO, 2015].
Embora houvessem inúmeras mulheres disponíveis para o sultão, em pouco

77
tempo sua preferência ficou evidente e o casamento foi arquitetado. A
cerimônia aconteceu no Palácio de Topkapi, de onde provinham todas as
ordens do sultão na época; então, ela passou a se chamar Hurrem Haseki
[Hurrem significando sorridente e Haseki favorita] um título bastante importante
[PEIRCE, 1993] e inaugurar uma nova fase histórica, o Sultanato das Mulheres.

O poder
Solimão, que expandiu e enriqueceu o Império Otomano graças a sua maestria
ao administrar um território tão vasto, articulou a permanência de elementos
herdados do governo de seu pai e sultão, Selim I, mas soube romper com
aquilo que se mostrava ineficiente, reformando questões jurídicas e
administrativas no seu governo, que lhe renderam ser conhecido como O
Legislador.

Durante o tempo que esteve à frente do Sultanato, conquistou Belgrado,


Rodes, Tabriz, Bagdad; cercou Viena, Diu na Índia, Malta; tornou a Hungria um
Estado vassalo e posteriormente o anexou ao seu Império [QUATAERT, 2008];
tudo em quarenta e seis anos.

Antes de Solimão, a política dinástica tinha a característica de ser


descentralizada em diversas famílias reais, para com ele, ser unificada na sua
pessoa e as decisões serem tomadas em Istambul [PEIRCE, 1993]. Isso
rompeu com algumas tradições e permitiu que novas articulações fossem
tecidas, em especial, pelos membros da sua própria família – filhos e esposa –
o que não poupou-lhe de tragédias pessoais como traições e assassinatos.

Para Peirce [1993] se o século XVI foi uma era de destaque para reis e rainhas
europeus, os otomanos na mesma época, também forjaram a sua, tendo como
expoente Roxelana. A ascensão de uma concubina aos grandes espaços de
poder, chancelada pelo sultão, representou uma ruptura no modus operandi da
dinastia do sultanato.

O pouco tempo que separava a situação dela enquanto consorte real até sua
nova posição como esposa legal, bem como as mudanças que aconteciam na
administração do governo, fez com que o povo lhe chamasse de ziadi [que
significa bruxa] e comentasse que ela havia enfeitiçado o sultão [PEIRCE,
1993], embora ninguém ousasse falar isso em público.

Vale ressaltar que segundo a tradição religiosa, Solimão poderia ter quatro
esposas legais e quantas concubinas pudesse sustentar. Depois dela, o harém
foi dissolvido e as mulheres foram doadas para os filhos dele ou tornaram-se
empregadas do palácio [SHUTKO, 2015], além disso, o sultão recusou outras
mulheres como presente a partir desse momento. E ainda, Roxelana, diferente
de todas as outras esposas dos sultões anteriores rompeu com o protocolo de
viver na residência real com seus filhos, mudando-se para o palácio [PEIRCE,
1993].

78
Roxelana, embora fosse cristã de nascimento, converteu-se para o Islamismo,
condição indispensável para conquistar seu espaço. Além da sua língua
materna, o ucraniano, obrigou-se a estudar turco, árabe e persa, idiomas que
usava no palácio; aprendeu a tocar alguns instrumentos e a dançar, pois o
sultão apreciava isso nas mulheres; lia e recitava poesias em voz alta.

As primeiras articulações de poder vieram com o nascimento do primeiro filho


em 1521, Mehmed. Até esse momento, o sultão ainda frequentava seu harém
mas com uma rara frequência; não obstante fosse conhecido além de tudo por
outros líderes como um homem extremamente lascivo. E nos três anos
seguintes, tiveram mais três filhos, período pelo qual ele deixou de se
relacionar com outras mulheres, até com a mãe de seu primogênito, que
inclusive naquele momento, segundo a tradição seria o seu sucessor, mas não
por ser o primeiro, mas o mais forte [PEIRCE, 1993].

Até aqueles que visitavam o palácio tinham impressões bastante interessantes


sobre o poder de Roxelana, registrando-as para a posteridade. O relato abaixo
é do embaixador veneziano Bernardo Navagero em 1553, quando da sua visita
ficou espantado com as mudanças que aconteciam na sua frente:

“Este sultão tem duas mulheres muito queridas; uma circassiana, mãe de
Mustafa, o primogênito, a outra, com quem, violando o costume de seus
ancestrais, ele se casou e considera como esposa, uma russa, tão amada por
sua majestade que nunca houve na casa otomana uma mulher que gozava de
maior autoridade. Diz-se que ela é agradável e modesta e que conhece muito
bem a natureza do sultão.” [PEIRCE, 1993, p. 59]

Durante toda a vida tiveram seis filhos, além de Mehmed já citado, Selim,
Abdullah, Bayazid, Dzhihangir e a única filha, Mihrimah. Entre os homens
apenas Selim sobreviveu, pois dois morreram jovens e os outros além de
brigarem entre si pelo trono do pai, não concordavam com o poder de sua mãe,
chegando a conspirar contra. A ausência do sultão para as expedições
militares, que ao todo foram treze, alimentavam insurreições que eram
abafadas com muita habilidade por Roxelana.

Sobre sua trajetória, existem diversos fatos que são atribuídos à ela, mas que
pela inexistência de fontes, são considerados apenas boatos, como a história
de que ordenou que todos os filhos de Solimão fossem encontrados – o que
aproximava-se de quarenta – e mortos, para abrir caminho para que seu filho
Selim pudesse acender ao trono. A questão da sucessão do trono era o
principal problema do sultanato de Solimão [PEIRCE, 1993].

Embora cada concubina do sultão pudesse até então ter apenas um filho dele,
devendo se afastar para cria-lo nos subúrbios, e quando o mesmo alcançasse
a maioridade deveria seguir com ele para uma cidade em que fora designado
pelo próprio pai para cuidar; tal regra mais uma vez não se aplicou a Roxelana.
Ainda que ela tenha se tornado sua esposa legal, havia estado no harém na
posição de amante.

79
Percebendo o perigo que isso poderia causar para sua mãe e para sua
ascensão ao trono, o primogênito do sultão, Mustafa, filho de Mahidevran, a
primeira esposa legal, brigaram com Roxelana. Além da troca de ofensas, ela
teve sua roupa rasgada e seu rosto machucado pela rival. Dias depois, quando
Solimão solicitou a presença da sua mais nova favorita que ousou recusar seu
convite, alegando que não estava digna o quanto ele merecia, ao saber os
motivos para isso e ver o seu rosto, acredita-se que nesse momento ele tenha
realmente se apaixonado e ficado bastante zangado com os causadores da
intriga [PERICE, 1993].

Em tempos de beligerância, ela se correspondia com o sultão através de


cartas, os temas versavam da saudade a administração do reino. Em uma
delas, o sultão pedia informações específicas sobre as finanças [PEIRCE,
1993]. Outro fator que demonstra a confiança dele na sua esposa era que
constantemente pedia que escrevesse cartas aos demais familiares que viviam
em outros locais, trocando informações essenciais. Além disso, era tradição
que as esposas e filhas do sultão se correspondessem também com outros reis
e rainhas de outros lugares, selando amizades e uma relação diplomática.

Roxelana também influenciou seu marido e por vezes usou seu próprio dinheiro
para construir [o que era permitido apenas aos homens] instituições
filantrópicas, como hospitais, escolas, casas de passagem para peregrinos,
asilos e cozinhas comunitárias, além de mesquitas. Recebeu sozinha diversos
embaixadores, artistas e nobres enquanto seu marido estava ausente do
palácio. Organizou festas familiares, cívicas e religiosas quando haviam datas
que careciam de comemorações.

“A posição de Hurrem como a favorita do sultão deu a ela acesso a fontes de


poder que nenhuma outra mãe de príncipe havia desfrutado. Ela dispunha de
uma enorme riqueza, e sua residência na capital lhe dava maior acesso a
informações e mais oportunidades de formar alianças políticas. A proximidade
de Hurrem com o sultão – tanto emocional quanto física – deu a ela grande
poder de persuasão sobre ele.” [PEIRCE, 1993, p. 90]

Não obstante a necessidade do véu pelas mulheres, ela andava com o rosto
descoberto. Quebrando todos os protocolos reais, sentava-se ao lado do
marido nas reuniões e tinha permissão para opinar também, o que era proibido
para todas as outras. Outra regra que não se aplicava a Roxelana era a visita a
biblioteca real e consequente leitura das obras, local que passava horas do dia.

Um elemento que merece destaque, foi o fato de que houve menos ataques
otomanos à Ucrânia enquanto o relacionamento durou. Para alguns
historiadores isso é resultado direto da ação dela sobre o marido,
demonstrando um pouco de estima pelos seus compatriotas. Entretanto, há
autores como Shutko [2015], que afirmam que esse período de relativa paz foi
fruto da aliança entre o sultão e o rei polonês.

80
O casamento durou aproximadamente quarenta anos. Roxelana morreu em 18
de abril de 1558 em Istambul, sendo enterrada na Mesquita de Solimão. Assim
como sua vida, sua morte também é repleta de boatos, se fora envenenada ou
se morreu naturalmente. Ele manteve-se viúvo por oito anos, até falecer em 6
de setembro de 1566 e ser sepultado ao lado da esposa. Selim, o filho de
ambos, tornou-se sultão com a morte do pai, apesar da mãe não ter vivido para
assistir seu desejo.

Considerações
Roxelana teve uma trajetória de vida análoga a um conto de fadas com suas
respectivas especificidades, ao ascender da escravidão para o sultanato. Se
sua beleza pode ter sido um dos motivos de Solimão se encantar por ela,
certamente sua inteligência logo se sobrepôs a qualquer primeira impressão.

Esse casamento por si só já foi algo extraordinário para a época; e ainda, suas
capacidades lhe permitiram manter-se numa posição delicada que exigia
talento e cuidado frente a inúmeros inimigos, entre eles os próprios familiares,
caso contrário não sobreviveria. E tal atitude lhe rende até hoje o
reconhecimento como a Grande Imperatriz Oriental.

Roxelana estampa os anais da História como uma excelente representante do


poder feminino em tempos que não permitiam tal empreita, o que demonstra
sua habilidade em lidar com isso. Sua história é dividida entre aqueles que
reconhecem seus esforços para se manter no poder considerando suas origens
e os que alegam que para isso ela agiu de forma egoísta para alcançar seus
objetivos.

Contemporaneamente, sua vida tanto na Ucrânia quanto na Turquia é tema de


livros, poesias, músicas, séries, óperas, filmes, novelas, peças, pinturas, entre
outros; além de nomear ruas, praças, lojas e estátuas que buscaram de alguma
forma resgatar a história de uma eslava em domínios orientais.

Referências
Talita Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa, em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em
Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em
Metodologia do Ensino de História e Geografia pelo Centro Universitário de
Maringá e em Ensino de Sociologia pela Universidade Cândido Mendes.
Coautora do livro As Ucrânias do Brasil: 130 anos de cultura e tradição
ucraniana pela Editora Máquina de Escrever. Atualmente é Professora de
História efetiva na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso,
colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця e colaboradora do Blog Exílio-
migração política.

PEIRCE, Leslie. The Imperial Harrem: Woman and Sovereignty in the Ottoman
Empire. Oxford: Oxford University Press, 1993.

81
QUATAERT, Donald. O Império Otomano das origens ao século XX. São
Paulo: Edições 70, 2008.

SEGRILLO, Angelo. Os Russos. São Paulo: Contexto, 2012.

SUBTELNY, Orest. Ukraine: a history. Toronto: University of Toronto Press,


2009.

UKRAINKY. Como a ucraniana Roksolana se tornou amante do sultão.


Oleksandra Shutko. Disponível em: https://ukrainky.com.ua/yak-podolyanka-
nastya-lisovska-stala-volodarkoyu-sultana/

82
O IMPÉRIO OTOMANO E OS NACIONALISTAS SÉRVIOS (1804-1878),
por Felipe Alexandre Silva de Souza

Este texto pretende abordar das relações entre o poder central do Império
Otomano e o movimento nacionalista sérvio que nasceu dentro desse Império e
lutou contra ele no início do século XIX. Espera-se que esta breve narrativa
contribua para a compreensão de parte do processo de decadência da Sublime
Porta.

Em primeiro lugar, precisamos destacar que a decadência otomana foi um


fenômeno complexo que se objetivou na longa duração. Impossibilitados de
abordar esse processo de forma satisfatória, destaquemos um elemento
necessário para compreendermos o que foi proposto neste texto: o fato de que
o sistema imperial Otomano era organizado fundamentalmente em torno da
contínua conquista militar e colonização de novos territórios, de modo que a
expansão era fundamental para que se garantisse uma coesão suficiente ao
Império [Lewis, 2010].

Segundo Lewis [2010], o Império Otomano começou a se configurar em fins do


século XIII, na Anatólia [território de maior parte da Turquia atual], que então já
se caracterizava como fronteira entre a Cristandade e o Islã. Seus soberanos
então se intitulavam "ghazi" - nome dado aos guerreiros de fronteira. Os ghazi
se se consideravam instrumento divino de proselitismo, na luta contra o
politeísmo e contra os infiéis em nome da verdadeira fé do Projeta Mohamed.
Nessa guerra santa, as áreas da Cristandade [como era conhecida a Europa]
eram consideradas terras áridas, atrasadas, porém cheias de potencial de
conversão, e era tarefa otomana levar até lá a religião do Islã. O Império
manteve, nos séculos seguintes à sua fundação, tal senso de missão sagrada.

Foi nesse contexto que, mais de meio século antes de derrubarem o Império
Romano Oriental bizantino e conquistarem Constantinopla - convertendo-a
como sua capital -, os otomanos chegaram à regiões que hoje conhecemos
como Balcãs, no sudeste do continente europeu, e colocaram boa parte dos
povos eslavos daquela área sob o jugo do sultanato. Em 1389, as forças
otomanas do sultão Murad derrotaram o exército do Império Sérvio,
comandado pelo príncipe Lázaro. A queda da importante cidade sérvia de
Kosovo colocou as regiões da Sérvia e da Bósnia-Herzegovina sob o sultão,
tornando-as parte dos domínios da Sublime Porta [Benson, 2001].

A partir de então, a maior parte dos sérvios [embora não todos, pois uma
porção considerável deles não estava sob território Otomano, mas sim nas
regiões de domínio dos Habsburgo austríaco, junto com eslovenos e croatas]
passou a ser parte da Rumélia - a região europeia do Império Otomano, a
oeste do Estreito de Bósforo [Glenny, 2012]. Dentro da Rumélia, os sérvios

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costumavam viver em uma província em torno da cidade de Belgrado, onde
desfrutavam de relativa liberdade religiosa. De modo geral, a província de
Belgrado era escassamente povoada por sérvios que trabalhavam na terra e
criavam porcos - além dos números homens jovens que se dedicavam ao
saque e ao banditismo [Glenny, 2012].

Enquanto isso, aos poucos o Império Otomano foi encontrando dificuldades


crescentes para se expandir. A partir do século XVII, o fim da expansão
começou a alterar profundamente as dinâmicas internas do Sultanato [Lewis,
2010]. Uma das consequências mais imediatas foi o encolhimento das forças
armadas, o que acabou criando uma massa de desempregados. Ao mesmo
tempo, a falta de novas terras, aliada ao conservadorismo técnico que criava
atraso tecnológico acabou levando a baixas cumulativas na produção
[Anderson, 1974]. Além disso, a perda de territórios na Europa também se
traduzia na redução da arrecadação de impostos. O crescimento demográfico
foi um elemento agravante: somado à redução da disponibilidade fundiária,
acarretou no aumento de camponeses sem terra e na eclosão de conflitos
sociais e do banditismo. Desta forma, os sucessivos sultões, providos de
recursos cada vez menores, se viam às voltas com o agravamento da
instabilidade social. As tentativas de recuperar a arrecadação por intermédio do
aumento dos impostos e da intensificação da exploração do trabalho tornavam
os conflitos mais intensos, gerando um ciclo vicioso [Anderson, 1974].

O governo central, incapaz de administrar satisfatoriamente esses conflitos,


encontrava sua autoridade progressivamente desafiada pela crescente
autonomia de seus representantes locais, alguns dos quais conseguiram
instalar potentados relativamente independentes de Constantinopla. No bojo
dessa tendência centrífuga, várias forças políticas sob a Porta do Sultanato
procuraram estabelecer alianças com diversos governos e grupos privados
europeus, buscando uma correlação de forças favorável para defender seus
interesses frente ao sultanato. No início do século XIX a situação chegou a tal
ponto que, embora o território imperial oficialmente se alongasse do Iêmen à
Argélia, da Bósnia ao Cáucaso e da Eritreia a Basra, abarcando 30 milhões de
súditos, Constantinopla mantinha sob controle efetivo apenas as províncias
centrais da Anatólia e da Rumélia. O restante de seus domínios exibia uma
ampla variedade de padrões administrativos, com governadores locais
apoiados exércitos privados e cada vez mais autônomos [Anderson, 1974].

Esse contexto de decadência acabou por fornecer solo fértil para a penetração,
a partir da Europa, dos ideais nacionalistas que pregavam que cada povo,
tomado como uma unidade cultural, étnica e linguística, que formariam a
essência de um povo, imutável e verificável ao longo da história, deveria lutar
para conquistar um estado nacional autônomo que pudesse preservar as
características essenciais desses povos [Hobsbawm, 1991].

O primeiro impulso nacionalista que o poder central Otomano precisou


enfrentar foi justamente aquilo que poderíamos chamar hoje de nacionalismo
sérvio. De acordo com Benson [2001], a partir de fins do século XVIII, alguns

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intelectuais sérvios passaram a ver a crescente dissolução otomana como a
oportunidade de estabelecer um estado independente. A partir daí procuraram
utilizar a profunda religiosidade dos sérvios otomanos - em sua maioria,
cristãos ortodoxos - para criar a ideia dos sérvios como um povo
profundamente unido por símbolos religiosos da Cristandade ortodoxa.
Elegeram Kosovo [o centro da vida sérvia otomana] como uma espécie de
cidade sagrada, estabeleceram o culto a São Sava [considerado o primeiro
arcebispo da Igreja autocéfala sérvia, tendo vivido no início do século XIII] e, de
modo geral, procuraram reforçar a identidade cristã ortodoxa como forma de
fazer contraste e diferenciar os sérvios dos otomanos muçulmanos. Há
gerações acostumados com a liturgia cristã e portadores de várias tradições de
cristianismo popular, aos poucos a população sérvia foi absorvendo a ideia de
que eles faziam parte de um povo unido - um povo cristão que deveria lutar
pela sua liberdade contra os otomanos islâmicos [que eles chamavam, de
maneira bastante genérica, de "turcos"]. Essa crescente diferenciação, no
plano das mentalidades, entre uma identidade sérvia, ainda em formação, em
contraposição ao restante do Império Otomano, também tinha como elemento
essencial o resgate e a criação de histórias populares sérvias, mantidas pela
tradição oral, da ênfase em um suposto passado glorioso - do qual o elemento
principal passou a ser a celebração do antigo império eslavo de Stefan Digam,
que conhecera seu auge antes de os otomanos chegarem aos Balcãs - e a
elaboração e organização, por parte de linguistas e outros intelectuais, de um
idioma sérvio [baseado em um antigo dialeto eslavo], que deveria ser
promovido como princípio diferenciador e fundador da nacionalidade [Benson,
2001].

Registre-se que, além de sua profunda religiosidade e de seu apelo a um


idioma próprio e a histórias de um suposto passado glorioso, o nacionalismo
sérvio também era bastante militarista: buscava estabelecer um grande estado,
com acesso ao mar, pela força, meio às possessões do Império Otomano
[Benson, 2001].

O levante sérvio começou no início do século XIX, ironicamente em uma época


em que o Império Otomano era governado por um sultão reformista, Selim III,
que pretendia modernizar o império. Para comandar a região sérvia de seus
domínios, Selim havia convocado o paxá Hack Mustafá, um governador que
acabou sendo bastante popular entre seus súditos eslavos cristãos, por ser
considerado justo na cobrança de impostos, razoável na administração e na
burocracia e respeitoso diante das questões religiosas sérvias.

No entanto, como já mencionado acima, uma das características centrais do


Império Otomano em crise era a existência de um grande número de soldados
ociosos e sem recursos por conta do fim das guerras de conquistas e do
declínio econômico. Isso fez que até mesmo os grupos militares de elite
conhecido como janíssaros, tradicionalmente considerados fiéis aos sultões,
cada vez mais passassem a desprezar as ordens de Constantinopla e agir por
conta própria, muitas vezes de forma violenta, em busca de novas fontes de
renda - não raro, fontes ilegais. Foi o que aconteceu em 1801, quando quatro

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comandantes janíssaros assassinaram o governador Mustafá e, a despeito de
qualquer ordem e orientação do poder central Otomano, passaram a governar
os sérvios com extrema violência, instituindo castigos físicos indiscriminados,
aumentando os impostos [que por eles eram embolsados sem serem
transferidos à capital] e estabelecendo o trabalho forçado entre os sérvios
[Glenny, 2012].

Três anos depois, em 1804, os janíssaros, cientes de sinais de crescente


descontentamento, resolveram assassinar algumas lideranças sérvias na vila
de Valjevo, buscando evitar uma revolta cristã antes mesmo que ela
começasse. No entanto, esses assassinatos acabaram desencadeando
exatamente aquilo que os soldados otomanos queriam evitar, e iniciou-se aí o
evento que Glenny [2012] considera o começo da contemporaneidade na
península balcânica: o Primeiros Levante Sérvio de 1804.

Durante os anos de 1805 e 1806, os rebeldes sérvios - apoiados pelo Império


Russo, que desejava tanto auxiliar um povo considerado irmão com base na
ideologia do paneslavismo quanto enfraquecer o Império Otomano por conta da
rivalidade geopolítica entre São Petersburgo e Constantinopla - foram bem
sucedidos em sua luta contra as forças otomanas. Conseguiram expulsar os
janíssaros e estabelecer um governo autônomo [embora não independente da
Sublime Porta], dotado de um parlamento, em que os impostos foram
reduzidos, o trabalho escravo foi abolido e terras foram distribuídas entre os
camponeses [Glenny, 2012].

Inicialmente, os rebeldes contaram com o apoio do próprio sultão Selim III, que
via os sérvios como uma maneira de derrotar seus próprios funcionários
otomanos [os janíssaros], sob os quais não tinha mais controle. No entanto, na
medida em que ficava claro que os sérvios não pretendiam depor as armas e
obedecer ao sultão, e quando se tornou evidente que os sérvios almejavam
caminhar rumo à independência total, a aliança instrumental entre rebeldes e
sultanato se desfez. Em 1807 foi formado um Concílio Supremo para governar
o território sérvio - agora sem nenhum controle Otomano - e o líder rebelde
Karadjordje Petrovic foi eleito pelo Concílio como Voivode [governante] do novo
Estado. Essa situação duraria até 1813, quando o Império Russo afrouxou sua
proteção aos sérvios [por estar ocupado com os conflitos contra Napoleão] e
Constantinopla, aproveitando-se da situação, conseguiu recuperar suas terras,
forçando Karadjordje a fugir para a Áustria [Connelly, 2020].

No entanto, a retomada territorial não significou pacificação, pois os sérvios


continuavam armados e desafiando o poder Otomano sob a liderança de um
novo rebelde que ocupara o espaço deixado por Karadjordje: Milos Obrenovic.
Uma escalada de atos de crueldade tanto da parte otomana quanto da parte
sérvia, bem como o progressivo enfraquecimento geral do Império Otomano,
criaram as condições para que Obrenovic liderasse o Segundo Levante Sérvio
em 1815, que foi bem sucedido em liberar toda a Sérvia central [incluindo
Belgrado]. Uma vez que nessas alturas Napoleão já se encontrava derrotado,
os russos puderam novamente ajudar seus irmãos menores eslavos, e diante

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de tal pressão internacional a Porta Otomana não teve escolha a não ser
conceder autonomia prática à região, ainda que esta continuasse oficialmente a
ser parte das posses do sultão. Obrenovic foi reconhecido por Constantinopla
como Príncipe da Sérvia [Connelly, 2020].

Uma Chancelaria Nacional de doze notáveis foi estabelecida em Belgrado


como a mais alta corte sérvia. Oficiais sérvios ganharam poder de coletar
impostos e administrar o território. Os janíssaros foram proibidos de ter
propriedades de terra e, em 1819, Constantinopla reconheceu o avanço da
autonomia, considerando a Sérvia um principado. Em 1830, Obrenovic
alcançou autonomia prática total para seu principado, ou seja: conquistou o
direito de estabelecer um exército sem qualquer ligação prática com o poder
central. Em 1875, sérvios da Herzegovina - uma região otomana que não fazia
parte do principado sérvio de Obrenovic - se revoltaram e foram esmagados
pelo poder central.

Aproveitando o ensejo, o Principado Sérvio, em busca de aumentar seus


territórios e abarcar sob seu governo a totalidade dos indivíduos sérvios,
declarou guerra a Constantinopla em 1876. Após um breve armistício em 1877,
os sérvios, novamente com auxílio russo, voltaram a atacar as forças
otomanas, e foram vitoriosos. Em 1978, quando o Império Otomano reconhecia
sua derrota no Congresso de Berlim, o Reino da Sérvia ascendia como um
estado oficialmente independente, livre de qualquer amarra formal com o sultão
[Connelly, 2020].

A luta dos sérvios pela independência foi, ao fim e ao cabo, um dos momentos
da decadência do Império Otomano, que não conseguia lidar de forma
satisfatória com os nacionalismos que surgiram em seu interior, com a falta de
fidelidade de seu próprio exército e com sua falta de dinamismo econômico, na
medida em que as potências europeias cada vez mais se tornavam
interessadas, por diversas razões, no enfraquecimento dos sultões. Essa longa
agonia teria fim apenas após a Grande Guerra [1914-1918], quando o Império
foi efetivamente destruído. De seus escombros surgiria, em 1923, sob a
liderança de Mustafá Kemal Atarurk, a Turquia contemporânea.

Referências
Felipe Alexandre Silva de Souza é Doutor em História pela Universidade
Federal Fluminense, membro do Núcleo de Estudos Contemporâneos
(NEC/UFF), pesquisador de pós doutorado (UFF) e bolsista da FAPERJ.

ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense,


1974.

BENSON, Leslie. Yugoslavia: a concise história. New York: Palgrave, 2001.

CONNELLY, John. From peoples into nations. Princeton: Princeton University


Press, 2020.

87
GLENNY, Misha. The Balkans. London: Penguin, 2012.

HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1991.

LEWIS, Bernard. A descoberta da Europa pelo Islã. São Paulo: Perspectiva,


2010.

88
OS CONFLITOS ISRAELO-PALESTINOS NA RELAÇÃO ENTRE O
SIONISMO E O CAPITALISMO, por Christian Souza Pioner

Os conflitos entre Israel e Palestina tornam cristalinas as contradições


inerentes ao funcionamento do sistema capitalista, ao escancarar ao mundo as
transgressões aos direitos humanos operadas por interesses hegemônicos. É
necessário entender os motivos levaram à deflagração de tal beligerância,
assim como quais foram e são os atores que a financiam desde os bastidores.
Dessa maneira, se buscará aqui entender a origem e a responsabilidade do
sionismo enquanto elemento de arrimo de tal situação histórico-político-social e
como pode se dar a construção de um novo paradigma, que objetive, acima de
tudo, o respeito indistinto aos direitos humanos e elimine na raiz o minadouro
destes problemas.

A formação de Israel e os conflitos que o envolvem


A criação do Estado de Israel remonta ao Primeiro Congresso Sionista, de
1897, quando surge, nos debates públicos encampados pelo líder do
movimento, Theodor Herlz, a reivindicação de um lar nacional dos judeus,
principalmente europeus, que viviam desde a diáspora judaica promovida ainda
em 70 d.C. pelo Império Romano espraiados por toda a Europa. Entretanto, a
Terra Prometida já era povoada por árabes-muçulmanos —
predominantemente camponeses espraiados em centenas de aldeias pelo
território — e detinha identidade nacional própria, a palestina [CHEMERIS,
2002, p. 21–27].

Então parte do Império Otomano, a Palestina vê-se envolta em a partir da


Grande Guerra por articulações políticas que buscavam, ao cabo, a
concretização de tal empreendimento. O apoio que Herlz encontra na Grã-
Bretanha é essencial, na medida que a Declaração Balfour, de 1917, inicia uma
série de movimentos que culminam na criação de um protetorado inglês na
Palestina e permite que o projeto sionista tenha sucesso na medida que o
Império Otomano vislumbrava seu ocaso [CHEMERIS, 2002, p. 57–58].

Desde este momento os palestinos iniciam um movimento de resistência que


afasta as pretensões sionistas na região até a Segunda Guerra Mundial.
Contudo, com o Holocausto a empresa que Herlz iniciara ganha apelo
internacional e, com o apoio das duas potências do pós-guerra, culmina, a
partir de 1945, na Aliyah, ou a migração maciça de judeus para a Palestina
[CHEMERIS, 2002, p. 59–62]. Tal influxo deflagra uma série de conflitos entre
Israel e as nações árabes que perdura até hoje. Mesmo seu estabelecimento
inicial ocorreu por meio da atualmente conhecida Primeira Guerra Árabe-
Israelense.

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Em 1947, a ONU promulga a Resolução 181, que, reconhecendo a falta de
ação inglesa — que já entrava em franca decadência face aos EUA — em
controlar a situação, determina a criação de dois Estados, que repartiriam
equitativamente o território disputado [ONU, 1947]. Tanto o bloco soviético
quanto os países capitalistas, como Grã-Bretanha, França e EUA apoiaram a
Resolução. Para os socialistas, a ideia era garantir um espaço vital e de
autodeterminação judaica logo após o holocausto, enquanto ao restante das
potências supracitadas, pretendia-se construir na região do Oriente Médio um
entreposto militar visando o controle dos maiores países produtores de petróleo
no planeta e também capaz de atingir Moscou com a instalação de ogivas
nucleares [VIDAL, 2019]. Entretanto, a assinatura dos representantes de Israel
não representou respeito à Resolução, pois — mediante o exponencial
financiamento estadunidense, estes passaram a se alinhar cada vez mais
estreitamente com a política de Washington, ultrapassando as fronteiras
definidas, expulsando violentamente a população palestina e criando
assentamentos efetivamente neocoloniais.

Por seu lado, os palestinos criticam duramente a Resolução, entendendo tratar-


se de um flagrante ataque à sua soberania nacional, a medida em que
denunciam os avanços sobrescritos. A URSS, paralelamente à tomada de
posição israelense, afasta-se dos sionistas e junta-se aos árabes no apoio à
luta palestina [VIDAL, 2019]. Núcleos de resistência organizada começam
então a se formar, como a Organização para Libertação da Palestina (OLP),
em 1959, e a Frente Popular de Libertação Palestina (FPLP), em 1967. A
primeira, liderada por Yasser Arafat até 2004, ganha protagonismo na luta com
o tempo, tornando-se não só plataforma política — ao passo que é reconhecida
pela ONU em 1974 legítima representante do Estado palestino — como
também militar, arregimentando braços armados no combate direto às
investidas de Israel, como o Fatah, também liderado por Arafat [SOARES,
1989, p. 60].

Contudo, a partir do final da década de 1980, após sucessivas derrotas face a


Israel e com o processo de enfraquecimento e, posteriormente, dissolução da
URSS, a OLP passa a cada vez mais buscar soluções pela via diplomática,
abandonando a resistência beligerante. É nesse ínterim que se dá a formação
do Hamas, que substitui rapidamente o Fatah nas frentes de luta enquanto tece
críticas públicas quanto ao recrudescimento de sua luta política histórica
[SAAB, 2016, p. 64].

Esse período também é considerado momento chave para a compreensão da


dinâmica política atual, por ser o momento no qual é deflagrada a Primeira
Intifada, revolta civil de grande proporção sem a organização de núcleos de
resistência [SAAB, 2016, p. 63–64]. A flagrante disparidade de forças entre as
partes é amplamente noticiada, com imagens de crianças palestinas
participando da revolta, atirando pedras em tanques de guerra israelenses,
tornando-se famosas em todo o mundo.

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Resulta da Intifada os Acordos de Oslo, assinada na Casa Branca por Arafat e
Shimon Peres, primeiro-ministro israelense, garantiu um período efêmero de
paz entre as partes e um Nobel da Paz aos envolvidos. Contudo, conforme
aponta Klein [2007, p. 730], o Acordo é duramente criticado pelos árabes por
conter termos muito desproporcionais e garantir um controle ainda maior de
Israel e, consequentemente, dos EUA, sobre a região.

A Intifada Al-Aqsa, deflagrada poucos anos depois, demonstram ainda mais


intensamente o nível de pauperismo da vida palestina. É nesse conflito, com o
início da construção do chamado Muro do Apartheid, que é criada, por meio do
enclausuramento de Gaza e Cisjordânia com barreiras físicas, uma prisão a
céu aberto. Davis [2019], em viagem que fez para a região em 2011, relata
que:

As Forças Armadas israelenses não fizeram nenhuma tentativa de esconder


nem mesmo de abrandar o caráter da violência que infligiam ao povo palestino.
Mulheres e homens do Exército […] estavam por toda parte, portando armas. O
muro, o concreto, o arame farpado em todos os lugares transmitiam a
impressão de que estávamos em uma prisão. Antes mesmo de serem detidas,
as pessoas palestinas já estão em um cárcere. Um passo em falso, e a pessoa
pode ser detida e arrastada para a cadeia; pode ser transferida de uma prisão
ao ar livre para uma fechada [p. 45].

O papel do sionismo no sistema capitalista


A conformação histórica e política da relação entre Israel, Palestina e os
demais países árabes é o mais patente exemplo das condições e contradições
que o capitalismo, enquanto sistema-mundo, impõe sobre os povos de todo o
planeta. As similitudes encontradas entre a descrição de Davis e a fronteira
entre EUA e México não são meras coincidências, ao contrário, são facetas
diversas de uma questão comum, qual seja: o racismo como instrumento de
manutenção das iniquidades sociais construídas historicamente, manutenidas e
aprofundadas com o sistema de acúmulo de capital.

O sionismo é exatamente o instrumental ideológico que cria a noção de um


inimigo comum para os judeus, na medida que caricatura árabe-muçulmanos
como potenciais “terroristas jihadistas”, e dá forma a uma identidade nacional
profundamente marcada pelo racismo contra tais grupos. Os interesses do
capital se evidenciam plenamente com a divisão social erigida com a violência
financiada pela burguesia internacional e a exploração da mão-de-obra
palestina que diuturnamente atravessa a fronteira com Israel para trabalhar.

O sionismo é também é marcado por aquilo que Said [1996, p. 54] chama de
orientalismo. Para ele, tal categoria sintetiza a noção de que o mundo é
dividido de forma permanente entre o Ocidente e o Oriente. O primeiro,
autopoiético, advoga para si o pendão civilizacional à medida que lega ao outro
a pecha do exotismo e do barbarismo, e, portanto, da superioridade. Sob tal
manto, justifica toda e qualquer transgressão àqueles cometidas. O
orientalismo é elemento-chave na construção de narrativas que alicerçam a

91
prática imperialista dos países centrais do capitalismo, pois a um só tempo
clamam “levar a civilização aos povos selvagens” e afirmam a si próprios como
os modelos de sociedade, que devem ser indistintamente seguidos, mesmo
que isso seja impossível exatamente pelos motivos acima elencados acerca da
constituição de tal sistema. O orientalismo é chave para a compreensão do
sionismo como um tipo de racismo.

No caso palestino, o orientalismo aparece principalmente nas construções que


Israel e a mídia internacional fazem dos conflitos, com a criação de imagens
estereotipadas das populações árabe-palestinas que justificam a violência
neocolonial realizada. Ademais, o sionismo contribui para a reprodução de
situações que façam tal ciclo de desinformação, justificação e violência se
perpetuar. Como exemplo cabe citar o chamado Massacre de Munique, de
1972, em que membros da organização de guerrilheiros palestinos Setembro
Negro invade a vila olímpica durante os jogos, toma como refém e assassina
onze esportistas de Israel [SOARES, 1989, p. 61–62]. O episódio desencadeia
a Operação Cólera de Deus, que captura e assassina ainda em 1972 todos
aqueles diretamente envolvidos em Munique e destaca a questão pan-arábica
que emanava desde o Egito. Em 1973, EUA e Israel vencem a Guerra do Yom
Kippur, mantendo o controle do Sinai até Suez, tomando Golã e pondo fim ao
projeto do já falecido presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser [SOARES, 1989,
p. 63–67].

Aqui, importante um parêntese para ressaltar que, conforme Butler [2017]


demonstra, há uma diferença fulcral entre o sionismo e o judaísmo moderno,
pois este último não só é uma das religiões abraâmicas, como têm, desde o
bíblico êxodo de Moisés e a diáspora judaica de outrora supracitada, o exílio
como elemento de identidade nacional histórica:

[…] incorporado na ideia de judaico (não em termos analíticos, mas históricos,


ou seja, no tempo); nesse sentido, ‘ser’ judeu é estar afastado de si mesmo,
jogado num mundo dos não judeus, fadado a progredir ética e politicamente
justo ali, naquele mundo de uma heterogeneidade irreversível. A ideia de exílio
ou galut na cultura judaica caracteriza uma população que perdeu um lugar e
não foi capaz de retornar a outro. A ideia de ‘retorno’ continua implícita na ideia
de exílico, na medida em que é ligada a Sião e ao sionismo. Assim, dentro do
discurso sionista, a galut é considerada um domínio decaído, um domínio que
só pode ser retificado e restaurado pelo retorno à pátria. O diaspórico funciona
de modo diferente, significando uma população e até mesmo um ‘poder’ que
dependem da coabitação com os não judeus e evitam a ligação sionista da
nação com a terra [p. 24].

O sionismo, em essência, na medida que se contrapõe a esta noção, confronta


o que é ser judeu irremediavelmente. Assim, revela, ao cabo, sua essência
enquanto ideologia, aqui já debatida. Esta, por seu lado e conforme bem
apontam Karl Marx e Friedrich Engels [2007, p. 47], é construída pela
burguesia de maneira a expressar o conjunto de ideias partilhado por todo o
corpo populacional a si subordinado:

92
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto
é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da
produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo
que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo, os
pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As
ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como
ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a
classe dominante, são as ideias de sua dominação.

Os processos sociais de tal lógica capitalista são em si antinômicos, pois,


garantindo a diferentes classes sociais quinhões excessivamente diferentes do
conjunto de riquezas produzidas coletivamente, fragmentam os trabalhadores e
mantém conflitos perenes entre tais grupos sob diversas matizes. A ideologia,
como a sionista, tem por papel escamotear as raízes destes problemas,
fornecendo “soluções” que sequer as tangenciam e, não raro, as aprofundam.

Como aponta a denúncia de Davis [2018], não é apenas o exército israelense


que atualmente reprime a população palestina. A multinacional de segurança
privada G4S tem desde a última década avançado sobre o setor na região e
contribuído para o acirramento do que a autora identifica como verdadeiro
apartheid. O manifesto do Congresso dos Sindicatos Sul-africanos é pontual:

O modus operandi da G4S aponta para dois dos mais preocupantes aspectos
do capitalismo neoliberal e do apartheid israelense: a ideologia da ‘segurança’
e a crescente privatização de setores que têm sido tradicionalmente
administrados pelo Estado. Segurança, nesse contexto, não significa
segurança para todas as pessoas; ao contrário, quando se observam os
principais clientes da G4S Security (bancos, governos, corporações, etc.), fica
evidente que [...] ela se refere a um mundo de exploração, repressão,
ocupação e racismo.

Na atual quadra, a burguesia aparta-se dos trabalhadores justamente por deter


dos meios de produção, legando à sua contraparte o único direito de manter-se
livre para vender sua força em troca do mínimo capaz de garantir a existência e
a reprodução de tal mão de obra. O capitalismo é, em essência, contrário à
dignidade da vida humana, uma vez que a acumulação contínua e cada vez
mais concentrada de tais riquezas nas mãos de um quórum que só faz reduzir
impede a concretização daquilo que se conhece por Direitos Humanos.

Marx, Engels e os marxistas propõem, com o método histórico-dialético, que a


consubstanciação dos direitos humanos somente pode ser efetivada com a
destituição do modelo de sociedade que a eles se contrapõe. Não há que se
falar apenas em tornar o capitalismo mais justo, mais humano, uma vez que ele
se funda na incorrigível disparidade das diferentes classes sociais [HUNT,
2009, p. 198].

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A acumulação capitalista é a um só tempo elemento sine qua non de
caracterização de uma sociedade sob tais moldes e prática ilógica, pois inverte
os papéis construídos no curso da história. Se, na alvorada da humanidade, os
agrupamentos se formaram sob a necessidade precípua de sobrevivência e, à
medida que criaram novas tecnologias as utilizaram em benefício coletivo,
aumentando a produção e a concorrentemente diminuindo a carga de trabalho
individual, com a fundação do capitalismo tal conformação se inverte. Os seres
humanos, que antes sofriam as duras penas da escassez de insumos básicos
para a vida, agora se veem tanto imersos nas possibilidades de possuírem o
que bem entenderem, como continuam praticamente sem acesso algum, pois
não detém os meios de produção e tem de vender sua força de trabalho
àqueles que exercem o controle desses meios e por meio deles acumulam — a
este processo, Marx e Engels nomeiam exploração da mais-valia [2005, p. 40–
51].

Tais questões se acirram com passar do tempo, dada a já citada necessidade


irrefreável de acumulação capitalista, e, portanto, são gestadas novas formas
de aprofundar da exploração do proletariado pela burguesia. O sionismo, no
contexto abordado, é uma dessas formas.

Considerações finais
Os conflitos israelo-palestinos tornam cada vez mais evidente como a
manutenção de tal estado permanente de guerra na região serve aos
interesses tanto do grupo sionista que controla o país, que operam em uma
lógica neocolonial, como dos que financiam tal projeto desde a fundação do
Estado de Israel, a burguesia internacional, e principalmente, os EUA. Os
países centrais do capitalismo reiteradamente põem em xeque a estabilidade
social daqueles que estão às margens do sistema, e não há acaso nisso. A
estrutura do capitalismo monopolista necessita da contínua reprodução da
lógica acumulativa, que em um planeta finito em recursos e espaços, leva a
destruição de sociedades inteiras — para que se possa lucrar tanto na guerra
quanto na reconstrução — como do próprio ecossistema, o que no não tão
longo prazo pode significar o fim da humanidade como um todo. No caso
palestino, há uma efetiva substituição, por meio da violência financiada
internacionalmente, de uma população por outra. A destruição e a reconstrução
convivem diariamente.

É sabido, porém, que o desenvolvimento de um novo paradigma somente


ocorre pela transformação das estruturas sociais. Tal tarefa não é fácil, pois
depende da compreensão da realidade em suas múltiplas determinações, bem
como da organização por parte daqueles que restam irresignados perante tal
status quo. Estudar a questão palestina e sua relação com o sionismo e o
capitalismo é observar diretamente as contradições intrínsecas no seio do
sistema capitalista.

O sionismo, como instrumento político de dominação e aprofundamento das


contradições e violências promovidas por Israel contra a população palestina,

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precisa — em conjunto com o sistema capitalista, que lhe garante o vigor da
existência — ser denunciado e combatido nas diversas searas em que possa
se apresentar. Não basta, portanto, a defesa abstrata dos direitos humanos no
Oriente Médio, correndo inclusive o risco de se auxiliar as narrativas
hegemônicas e contrapostas a tais direitos. Certamente, posicionamento
também não pode se realizar uma metonímia, tomando todos os judeus e
israelenses por sionistas, repetindo a falácia antissemita que levou em 1933 o
nazismo ao poder e, mais tarde, ao Holocausto. É necessário, sim, alinhavar o
estudo da situação concreta da situação na região e a tomada de posição
contra o sionismo, especificamente, e os avanços dos interesses do capital
sobre as vidas árabes e, sobretudo, palestinas.

Ao cabo, os direitos humanos, há muito negados aos palestinos e tão


universalmente reconhecidos no grande teatro das nações, não podem
florescer a cada um dos seres humanos que caminhou e caminha sobre a
Terra sem que se fale na extirpação do sistema social que se mantém de pé
em alicerces como o racismo, a misoginia, a desigualdade econômica, etc. A
ONU, a União Europeia e outras organizações internacionais de grande
destaque não têm e nem podem ter condições de mudar o curso de situações
como a palestina, posto que são primordialmente balcões de negócios dos
países capitalistas. Não basta, portanto, o endosso a discursos pouco
inflamados que lideranças social-liberais fazem em favor de uma defesa
abstrata da paz. É preciso reafirmá-la diuturnamente nas ruas, visando a
construção de um novo paradigma que finalmente tenha a humanidade, e não
o capital, como aquilo que realmente mereça proteção e respeito.

Referências
Christian Souza Pioner é historiador pela Universidade do Estado de Santa
Catarina e graduando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

BUTLER, Judith. Caminhos Divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São


Paulo: Boitempo Editorial, 2017. 328 p.

CHEMERIS, Henry Guenis Santos. Os Principais Motivos que Geraram os


Conflitos entre Israelenses e Árabes na Palestina (1897–1948). 2002. 75 f.
TCC (Graduação) — Curso de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.

DAVIS, Angela. Sobre a Palestina, a G4S e o complexo industrial-prisional. In:


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Editorial, 2018. Cap. 4. p. 41–46.

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Companhia das Letras, 2009. 285 p. Tradução de Rosaura Eichenberg.

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Disponível em: https://bit.ly/3MI1P20. Acesso em: 25 abr. 2023.

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