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HISTÓRIA DA AMÉRICA
GUARULHOS – SP
1
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 4
3
1 INTRODUÇÃO
Prezado aluno!
Bons estudos!
4
2 HISTORIOGRAFIA DA AMÉRICA COLONIAL
[...] algo na construção narrativa chamada ‘história’ que não pode ser
inventado, pois é previamente dado e tem de ser reconhecido como tal
pelos historiadores [...]. [A] interpretação histórica não pode ir além dos
contornos da experiência quando tenha por intenção enunciar o que
ocorreu no passado (RÜSEN, 2001, p. 94, acréscimo nosso)
5
2.1 Historiografia cientificista
6
parte do pressuposto da existência de uma oposição entre barbárie, representada
pelo Novo Mundo, e a civilização, encarnada pela Europa. Isso se deve à sua
abordagem simplesmente formal dos documentos aos quais teve acesso e que lhe
permitiram escrever “As colônias americanas”. Ranke não considerou a posição do
outro, interpretando o processo histórico da colonização das Américas de uma
perspectiva unilateral, que recalca a riqueza e diversidade das culturas pré-
colombianas (FERNANDES; MORAIS, 2007).
O próprio termo “pré-colombiano” acaba por revelar o ponto de partida da
interpretação histórica da América colonial, já que a referência não está nas
civilizações que aqui já existiam, mas no nome de Cristóvão Colombo, o primeiro
europeu a comprovadamente chegar até o continente. Em resumo, Ranke adotou o
ponto de vista do colonizador, fato que influenciaria todos os seus trabalhos dali por
diante.
Na mesma época de Ranke, um historiador norte-americano chamado
William Hickling Prescott valia-se da mesma oposição civilização versus barbárie
para escrever sobre a história da conquista da América. Em sua obra The history of
the conquest of Mexico, publicada originalmente em 1843, Prescott trabalha o tempo
todo sobre características típicas dos astecas e dos espanhóis para provar sua tese
de que uma das culturas era superior à outra e que seria uma imposição histórica a
sua vitória, no caso, a vitória dos espanhóis sobre o Império Asteca. Esse
argumento, é desenvolvido pela comparação entre as armas utilizadas por
espanhóis e por astecas. Enquanto os primeiros utilizavam canhões, frutos da razão
e da ciência, os astecas se valiam de seus rudes e ineficazes tacapes. O
pensamento europeu é tido como racional em oposição ao pensamento mágico dos
astecas. Para o autor, essa é uma prova inequívoca de que o progresso (europeu)
deve suplantar as sociedades tidas como irracionais. Para não sermos injustos,
Prescott em vários momentos elogia a sociedade asteca, mas somente quando esta
apresenta características semelhantes às encontradas na Europa: urbanização,
canais, capacidade de dominar a natureza, etc. Em síntese, a obra de Prescott,
segundo Fernandes e Morais (2007, p. 148), é calcada na apologia da “[...] razão,
da civilidade e da urbanização” que servem como parâmetros civilizacionais e como
7
“[...] elementos julgadores e hierarquizadores” (FERNANDES; MORAIS, 2007, p.
148).
A corrente cientificista não ficou encapsulada no século XIX, influenciando
a historiografia durante o século seguinte também. O antropólogo francês Jacques
Soustelle (1912–1990), especializado nas sociedades pré-colombianas, foi um dos
autores mais relevantes dessa tendência. Na década de 1950, Soustelle publicou A
vida cotidiana dos astecas na véspera da conquista espanhola, obra em que cita
largamente Ranke e Prescott. O livro de Soustelle foi publicado no Brasil e obteve
grande êxito, fato que ajudou a promover sua grande influência sobre o ensino de
história da América na rede de educação básica.
Com uma perspectiva um pouco diversa da utilizada por Ranke e Prescott,
Soustelle valorizava enormemente a civilização asteca e considerava uma grande
tragédia a sua derrocada frente aos espanhóis. No entanto, é necessário atentar às
razões que faziam o autor lamentar o fim do Império Asteca. Não se tratava de uma
constatação de que uma cultura singular havia perecido de maneira injusta. Na
verdade, Soustelle lamentava o aniquilamento da civilização asteca por considerá-
la muito semelhante à civilização europeia. Mais uma vez encontramos a oposição
civilização versus barbárie. O autor defendia que os astecas, quando comparados
às outras sociedades indígenas existentes nas Américas, distinguiam-se
enormemente como povo civilizado diante dos bárbaros (FERNANDES; MORAIS,
2007).
Como visto, essa corrente dita cientificista estruturou-se sobre a dicotomia
entre civilização e barbárie, incorrendo em um erro metodológico no qual se
mensurou qualitativamente as sociedades pré-colombianas a partir da régua
europeia. Contudo, essa historiografia foi extremamente influente ao longo do
século XX, sendo possível ainda perceber alguns resquícios nos livros didáticos
atuais (FERNANDES; MORAIS, 2007).
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2.2 Historiografia lascasiana
9
A verdade é que essa tradição também se tornou influente sobre a
historiografia da América colonial. Na década de 1970, foi publicado pelo jornalista
uruguaio Eduardo Galeano o livro As veias abertas da América Latina, que se tornou
um clássico instantâneo. O livro relata a histórica submissão da América Latina em
relação a diferentes “metrópoles” ao longo do tempo. Na época colonial, Portugal e
Espanha; depois a Inglaterra; por fim, os Estados Unidos da América. O argumento
do autor, já expresso no próprio título, é de que a América Latina é constantemente
sugada em seus recursos sem que possa reagir em relação a isso (GALEANO,
2010).
Apesar da correção da mensagem principal, de que a América Latina não
conseguiu até hoje desenvolver uma forte soberania, sempre vilipendiada pelo
imperialismo, Galeano comete um erro metodológico que o assemelha a Las Casas.
O autor acaba reforçando a ideia de que o povo latino-americano é passivo,
acostumado ao autoritarismo e ao espólio de suas riquezas. Portanto, são
recalcados os movimentos históricos de luta no continente contra a opressão interna
e externa. Como a obra se tornou muito importante para a elaboração de livros
didáticos no Brasil e nos demais países latino-americanos, a ideia de que a
subjugação latino-americana parece ser nosso destino final foi amplamente repetida
pelos formatos institucionais do ensino de história.
O modo como a história é questionada e relatada frequentemente nos diz
mais sobre o presente do que sobre o passado em si. No caso das tendências
historiográficas e dos autores referidos, isso pode ser destacado. Enquanto os
autores cientificistas refletem o desenvolvimento das ciências naturais e o
simultâneo crescimento do expansionismo europeu, Las Casas nos informa sobre
a sua crença de que os indígenas deveriam ficar sob cuidados da Igreja. Por sua
vez, Eduardo Galeano, ao publicar seu livro no início da década de 1970, reflete o
pessimismo no continente, oriundo dos regimes militares que se instalavam e
fortaleciam.
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3 PERSPECTIVA INDÍGENA SOBRE A HISTÓRIA DA AMÉRICA
Para além das correntes descritas, é preciso que o historiador esteja atento
aos discursos que elas favorecem, em geral etno e eurocêntricos. No entanto,
cumpre lembrar que os povos indígenas não foram sujeitos passivos do processo
de colonização, já que possuíam suas próprias estruturas sociais, culturas e história.
Cabe questionar até que ponto a identidade indígena, em um contexto de tanta
diversidade de povos pré-colombianos, carrega seus próprios pressupostos ou foi
forjada a partir de categorias criadas pelos colonizadores. Ademais, é necessário
considerar o amplo processo de mestiçagem física e cultural que promoveu
alterações significativas na identidade indígena.
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além da própria auto definição indígena, contribuíram enormemente as distinções
realizadas pelo colonizador, como “[...] identidades inventadas” (CRUZ, 2012, p.
129).
Os processos de “ocidentalização” entendida como a exportação da cultura
europeia para o restante do globo a partir da época das grandes navegações e
“indianização” o fenômeno recém-descrito, ou seja, a criação de uma identidade
indígena de certa forma artificial anda lado a lado. A Igreja teve seu papel nesse
contexto ao criar, em consonância com o pensamento lascasiano, uma imagem
incorreta dos povos indígenas, que servia evidentemente para a dominação. De
acordo com o catolicismo em vigor no período colonial, as sociedades indígenas se
tratavam de vítimas indefesas dos conquistadores e precisavam conhecer a
verdadeira fé, a cristã. Portanto, há aqui uma convergência com certos tipos de
historiografia acerca da história colonial, que assim como a Igreja também serviram
como um “[...] mecanismo colonial de reprodução da diferença étnica” (CRUZ, 2012,
p. 130).
O historiador depende de fontes para fazer seu trabalho. Sem elas, não há
possibilidade de se conhecer o passado, já que as fontes são os vestígios da
atividade humana nas sociedades que existiram antes do presente. Portanto, sem
acesso a esses indícios, que informam ao historiador sobre os mais diversos
aspectos do seu objeto de estudo, é impossível para ele elaborar a sua narrativa.
As fontes se apresentam nas mais diversas formas: manuscritas, impressas,
imagéticas, sonoras, bibliográficas, etc. Logo, o historiador deve estar capacitado a
promover o recorte do seu objeto e decidir quais tipos de fontes deve utilizar ou
descartar para a construção do seu trabalho historiográfico. Em termos de história
da América colonial, são inúmeras as fontes disponíveis, embora no Brasil os
estudos nesse campo frequentemente tenham sido tratados de “forma marginal”
(SÁ; AZEVEDO, 2013, p. 37). No entanto, existem muitas fontes, sobretudo escritas
12
e figurativas à disposição do historiador que queira se dedicar ao estudo do período
colonial das Américas.
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paradigmas europeus, a fim de utilizá-los com muito cuidado e evitar a mera
reprodução de pontos de vista eurocêntricos. Afinal, como afirma Oliveira (2001, p.
24), essas crônicas também contribuíram para a “[...] instauração de hierarquias,
lugares sociais, desigualdades e diferenças entre índios e europeus, entre homens
e mulheres, entre os indivíduos dos dois mundos que se encontram e se
confrontam”.
As crônicas elaboradas pelos colonizadores e missionários constituem o
mais importante corpus documental para a pesquisa da história da América colonial.
Infelizmente, quase não existem registros escritos produzidos por maias, astecas
ou incas. Isso se explica principalmente pela tradição de história oral desses povos
e, é claro, pela dominação colonial que sofreram, que não propiciava um ambiente
favorável à produção de crônicas por parte dos indígenas (OLIVEIRA, 2011).
Uma fonte reconhecida como muito valiosa sobre a ocupação da região do
atual Paraguai, por exemplo, é o livro Relatos de la Conquista del Rio de la Plata y
Paraguay 1534 a 1554, escrito pelo soldado alemão Ulrich Schmidel, que viveu
durante quase duas décadas na região. É considerada por muitos pesquisadores
como um relato pioneiro e bastante completo sobre a conquista do Paraguai e do
rio da Prata. Todavia, deve ser utilizada com algumas ressalvas, devido ao
direcionamento que o autor dá aos fatos. Schmidel era militar e é possível perceber
em seu relato um certo exagero em relação aos feitos militares de então. Outra
lacuna importante diz respeito à ausência de castelhanos e indígenas em sua
narrativa (NOVAIS, 2011).
Diferentemente de Ulrich Schmidel, o adelantado (título militar de alguns
conquistadores espanhóis do século XVI) Álvar Nuñez Cabeza de Vaca mencionou
largamente os povos indígenas contatados em suas expedições pela América do
Sul. Os relatos de Cabeza de Vaca não foram escritos de próprio punho, mas por
seu escrivão-mor Pedro Hernández, em uma obra que ficou conhecida como
Comentário, de 1555. Esse texto é visto quase como um trabalho de etnografia, pela
forma em que os diversos povos nativos são descritos. A partir desse tipo de relato
particular de Cabeza de Vaca, é possível compreender melhor as motivações desse
conquistador:
14
[...] nos Comentários encontram-se descrições ricas em detalhes sobre o
modo de vida dos índios Agace, Payaguá, Guaycurú Guazarapo, Guató,
Sacosi, Chanese, Arianicosi, Artanece e Xarayé. A leitura desses relatos
evidencia que, nesse momento, já havia uma preocupação por parte dos
espanhóis em tornar os índios cristãos e súditos de sua majestade católica,
o rei da Espanha. Para tal, o Adelantado decidiu estabelecer uma nova
política indigenista, proibindo a escravidão e os abusos que Irala praticava
contra os Guarani Cário do Paraguai (NOVAIS, 2011, p. 3).
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brutalidade colonial. O objetivo do autor era relatar tal situação ao rei espanhol em
busca de sua intervenção. Não há registros de que o livro tenha chegado às mãos
do monarca. O escrito ficou desaparecido por quase 400 anos, sendo reencontrado
em Copenhague, capital da Dinamarca, em 1909 e publicado em Paris em 1936.
Contudo, o que acaba se tornando ainda mais importante em relação aos
escritos de Poma de Ayala é o seu caráter duplo como fonte histórica. A obra se
trata tanto de uma fonte textual, na qual é possível perceber as injustiças cometidas
contra os índios peruanos, quanto uma riquíssima fonte visual, que permite ao
historiador conhecer a estética indígena do período. Além disso, o livro é também
um trabalho histórico, no qual, além de registrar a história da Europa e da ocupação
colonial, esboça um panorama bastante completo acerca da história dos incas. Sem
dúvida alguma, El primer nueva corónica y buen gobierno é uma das fontes mais
importantes para o estudo da América colonial.
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mas sob uma monarquia cujo único caráter de unicidade se dava pela Igreja. Além
da diversidade cultural, havia interesses divergentes entre a nobreza dinástica
castelhana, que se interessava por questões internas, e a nobreza dinástica
aragonesa, voltada a interesses externos. Aragão havia mantido certa autonomia
econômica e política, mesmo com a centralização ocorrida com os Reis Católicos,
mas Castela era um reino mais rico, o que levou a uma série de problemas, inclusive
durante a colonização da América, que ficou juridicamente vinculada ao Reino de
Castela (ANDERSON, 1995). Durante o reinado de Isabel e Fernando, que durou
de 1474 a 1504, foi construída uma sociedade em Castela de caráter patrimonial,
com obrigações mútuas, sustentada pelas mercês, uma atualização das obrigações
feudais. Essa estrutura social seria posteriormente reproduzida na organização
administrativa e política da América (BETHELL, 1990).
Do ponto de vista econômico, antes da união dos reinos não havia uma
política econômica centralizada. Além das práticas econômicas de caráter feudal,
as riquezas e o poder eram assentados por uma política dinástica de casamentos,
garantindo influências e territórios (VILAR, 2000). Porém, após a centralização
política, iniciou-se um processo de expansão marítima, em que Aragão dedicou-se
ao Mar Mediterrâneo e Castela ao Oceano Atlântico, rivalizando com Portugal, uma
rivalidade assentada na navegação pelo Estreito de Gibraltar, nos arquipélagos
atlânticos e na exploração da costa africana, bem como no usufruto da rota para as
Índias. Essa rivalidade foi sanada com a assinatura de dois acordos: o Tratado de
Almeirim (1432) e o Tratado de Alcaçovas–Toledo (1479–1480).
De acordo com Bethell (1990, p. 128):
17
obtenção de especiarias e metais preciosos, frente às dificuldades impostas pelo
Império Otomano na rota terrestre. O processo de expansão marítima, que seria
seguido por Espanha, França e Inglaterra, vincula-se a uma prática econômica que
recebeu o nome de mercantilismo. Essa concepção econômica partia do
pressuposto que a riqueza de um Estado era medida pela quantidade de metais
preciosos que possuía. Ela surgiu durante o renascimento comercial das cidades e
com a emergência da burguesia, que transformou as relações de trabalho e passou
a exigir a monetarização das relações comerciais.
De acordo com Silva e Silva (2009, p. 283):
Cabe lembrar que esse conceito não é contemporâneo aos fatos que
nomeia; na verdade, foi empregado por liberais no final do século XVIII, com tom
depreciativo, para se referir às práticas de intervenção do Estado na economia.
Segundo Bethell (1990), assim como os lusitanos, os reinos espanhóis
souberam aproveitar a proximidade com a África e a costa atlântica, tendo
desenvolvido uma tradição marítima, com destaque para os navegadores e os
pescadores bascos e cantábricos, permitindo aventuras transoceânicas.
De acordo com Pinsky e Bruit (2001, p. 23):
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alcançar as Índias, tema que abordaremos no próximo tópico. Resta assinalar aqui
que, quando Colombo finalmente conseguiu o patrocínio e o respaldo dos Reis
Católicos para a realização de sua viagem de circum-navegação, encontrou na
Espanha uma tradição de boas relações entre a coroa e os navegadores
expedicionários.
19
O caso mais antigo [...] está na carta atribuída a Zuane Pizzigano [...] onde
surge um grupo de ilhas (Antília e Satanases são as de dimensões mais
significativas) que o autor coloca no Golfo do México, pretendendo, dessa
forma, documentar viagens portuguesas a essas longínquas paragens
antes de 1424, data da feitura do mapa. Não importa agora qualificar a sua
argumentação, mas apenas salientar o mito, a ideia e a conversa suscitada
pelo assunto, que, pelos vistos, não se circunscrevia à Península Ibérica
(MATOS, 2006, p. 30).
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Quais foram as repercussões imediatas do “descobrimento” na Europa? A
primeira delas foi, com a intermediação do Papa Alexandre VI, a assinatura, no dia
4 de maio de 1493, da bula Inter Caetera, que estabelecia uma divisão no Oceano
Atlântico entre o reino de Castela e Portugal a partir de uma linha imaginária a 100
léguas das ilhas do Açores e de Cabo Verde, garantindo à Castela as possessões
dos territórios recém descobertos e à Portugal o controle sobre o Atlântico Sul e
sobre a rota africana às Índias. Em relação à bula Inter Caetera, seu texto
legitimava, em nome de Deus e da Santa Sé, a posse pelos Reis Católicos dos
achados territoriais realizados por Cristóvão Colombo, que, à época, imaginava-se
tratar de um território asiático. Dessa forma, esse espaço deveria ser conquistado
e incorporado ao Orbis Christianus. (A concepção cosmológica de um Mundo
Cristão). De acordo com Rodrigues (2017, p. 3):
21
Por fim, podemos assinalar que a “descoberta” representou o contato entre
dois mundos distintos, o que proporcionou aos europeus a constituição de sua
identidade a partir de uma comparação com um “outro”. De acordo com Rodrigues
(2017, p. 5):
22
Como dito anteriormente, o processo de conquista e de colonização do
território encontrado por Colombo começou a partir de sua segunda viagem,
baseado em sua crença de que se tratava de territórios asiáticos, e, assim,
estabelecendo feitorias nas ilhas da América Central. O processo de conquista e
colonização, portanto, iniciou-se pelo Caribe, e prosseguiria por meio de novos
navegadores e colonizadores na parte continental da América Central, na região
andina e na costa do Pacífico, em um processo que durou aproximadamente 80
anos, envolvendo três gerações.
No Caribe, paralelamente à integração territorial, política e social das
“Índias” à Espanha, houve o estabelecimento da soberania espanhola na região.
Conforme o estabelecido nas Capitulações de Santa Fé, o governo das Índias ficou
a cargo do então Vice-Rei Cristóvão Colombo entre 1492 e 1502, e, devido ao seu
insucesso, passou a outros administradores, até 1523. Nas Antilhas, a população
indígena foi organizada para a produção e o trabalho, e a partir desses contatos foi
sendo estabelecido o relato do indígena como primitivo e selvagem, informações
que podemos encontrar nas narrativas de Colombo em seu diário. Em certo trecho,
Colombo estabeleceu uma diferenciação dicotômica entre os indígenas “bons”,
“dóceis” e “covardes” e os indígenas “maus” e “selvagens”, como aqueles que
praticavam rituais antropofágicos. Assim, esses últimos deveriam ser submetidos
urgentemente à conversão católica, como forma de salvar suas almas e libertá-los
de costumes repudiados pelos europeus. Vejamos um dos trechos do diário:
[...] as outras ilhas dos canibais são muito maiores e bem mais povoadas,
pareceria aqui que capturar, tanto eles como elas, e enviá-los aí para
Castela só poderia fazer bem, porque se livrariam, de uma vez por todas,
desse costume desumano que têm de comer gente, e aí em Castela,
entendendo a língua, receberiam bem mais rápido o batismo, com grande
proveito para suas almas (COLOMBO, 1998, p. 133).
Após a ocupação das ilhas maiores e menores, que ocorreu nos primeiros
15 anos do século XVI, os navegadores dirigiram-se ao continente. A terceira e
quarta viagens de Colombo à América destinaram-se à exploração da costa da
América Central, ainda que outras expedições já tivessem estabelecidos núcleos
espanhóis no continente (VELOSO FILHO, 2012).
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Em relação à conquista do México, as expedições partiram das Antilhas
Maiores, e estavam a cargo do governador Diego Velásquez. As duas primeiras
fracassaram, e a terceira, liderada pelo capitão Hernán Cortés, foi realizada em
quatro etapas: a primeira, com a conquista da Península de Yucatán e a fundação
de Veracruz, que ocorreu mediante alianças firmadas com os grupos indígenas
rivais aos astecas (mexicas); a segunda, que marcou a entrada dos espanhóis em
Tenochtitlán em 8 de novembro de 1519; a terceira etapa, em que houve o
estabelecimento de um acordo entre Cortés e Montezuma, que durou até 1520, até
ser rompido após a rebelião dos astecas; e a quarta etapa, quando os espanhóis se
reorganizam e planejam um ataque a Tenochtitlán com barcos, cercando a cidade
e levando à sua rendição, em 1521. Após a vitória sobre os astecas, Cortés,
nomeado governador geral da “Nova Espanha”, iniciou seu governo promovendo a
convivência entre espanhóis e indígenas, principalmente para proporcionar a
organização para o trabalho e o processo de evangelização com padres
franciscanos (MONTEIRO, 2017).
A conquista dos Andes se insere na expansão dos espanhóis em direção à
América do Sul, com incursões que partiram do Panamá e da Colômbia na segunda
década do século XVI. Em relação aos incas, os primeiros intentos ocorreram entre
1524 e 1528, com duas expedições de Francisco Pizarro, Diego de Almagro e
Hernando de Luque. A primeira expedição, de reconhecimento da costa, saiu do
atual Panamá e chegou até a atual Colômbia. Já a segunda expedição, realizada
entre 1526 e 1527, estabeleceu contato com os incas. A conquista propriamente
dita do “Império” Inca ocorreu entre 1531 e 1537, aproveitando-se da guerra entre
Atahualpa (situado em Quito) e Huáscar (localizado em Cuzco). Assim, em 1533 os
espanhóis conquistaram a cidade de Cuzco, seguindo-se uma resistência indígena
que durou mais quatro anos. Os indígenas derrotados retiram-se a Vilcabamba, ali
permanecendo até 1572, quando os espanhóis capturam e executam Túpac Amaru
I, seu líder. Nas décadas seguintes, ocorreram uma série de confrontos, chamados
de “guerras civis”, entre os próprios conquistadores, por discordâncias em relação
às áreas de dominação, e, posteriormente, pelas leis estabelecidas pela
administração dos vice-reinos (MONTEIRO, 2017).
24
5.4 O papel da Igreja Católica na colonização da América espanhola
25
[...] pregar a palavra de Deus, a evangelizar, a batizar, a instruir os povos
que aí viviam, a lhes administrar os sacramentos necessários, a ouvir as
suas confissões e dispensá-los de certos votos, ou de recomendá-los que
fossem a Jerusalém, à Basílica de São Pedro e São Paulo, ou a Santiago
de Compostela (LUBIN, 1970, p. 451).
26
instalando colégios em suas áreas de atuação. De acordo com Vainfas (2000, p.
327):
Assim, a expansão da religião cristã era bem vista por Deus; estava em
seus planos para a humanidade, que teria a oportunidade de conhecer os
evangelhos [...] Tal cultura conquistadora, que modelou a consciência
social dos homens da Reconquista, atravessou o Atlântico e teve
continuidade no processo de conquista das civilizações do Novo Mundo
(MONTEIRO, 2017, p. 74).
27
ocupou-se dos judeus e dos protestantes, bem como de atos imorais e práticas
religiosas sincréticas, de forma semelhante à sua atuação na Europa (MONTEIRO,
2017).
28
dúvida, um elemento de incentivo às “grandes navegações” e à expansão marítima
europeia.
A configuração de um sistema-mundo foi sendo desenvolvida a partir da
colonização da América e da exploração colonial da África e da Ásia.
Segundo Falcon e Rodrigues (2006, p. 14):
29
Veja, na Figura 1, a seguir, uma representação do sistema monárquico
absolutista, sua política econômica mercantilista e, nesse âmbito, onde se insere a
expansão marítima.
Fonte: www.brasilescola.com.br
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7 A COLONIZAÇÃO E OS SISTEMAS DE TRABALHO NA AMÉRICA
31
por meio das novas formas de trabalho impostas aos nativos, pelas constantes
guerras e pelo processo de aculturação que envolveu a evangelização dos índios
(GAMBA; PIRES, 2016; TODOROV, 2003; WRIGHT, 2006). Além disso, houve
imenso impacto biológico, por meio das doenças trazidas pelos conquistadores, que
atingiram um elevado número de indígenas e provocaram um verdadeiro genocídio
(PALMQUIST, 2018).
Portanto, novos formatos administrativos foram implementados nas
Américas a partir da chegada dos espanhóis. Novos territórios foram demarcados,
frequentemente sem levar em consideração as diferentes etnias e povos que neles
viviam. Ademais, houve a padronização da exploração do trabalho indígena, devido
à ânsia de extrair a maior riqueza possível do continente (WILLIAMS, 2012). Assim,
é possível verificar que esses fenômenos surgem atrelados à criação de espaços
coloniais articulados ao desenvolvimento das forças produtivas e espelhados nas
estruturas governamentais da metrópole (PIETSCHMANN, 2016). As duas formas
principais assumidas por esses espaços foram os vice-reinados e as capitanias
gerais.
32
frequentes entre os povos nativos e os conquistadores espanhóis. Nessas regiões,
a coroa espanhola optou por criar capitanias gerais no lugar dos vice-reinados
estabelecidos em outros pontos do continente. As capitanias gerais apresentavam
a especificidade de maior autonomia, favorecendo respostas rápidas aos ataques
dos indígenas (PIETSCHMANN, 2016).
Seja como for, em um primeiro momento a divisão administrativa das
colônias espanholas se materializou em vice-reinados, mais extensos
territorialmente. Contudo, como recém-mencionado, a necessidade de manutenção
e organização de contingentes militares mais expressivos contra os indígenas
promoveu uma nova divisão, dessa vez criando as capitanias gerais. De qualquer
forma, ambas estruturas administrativas se reportavam a um órgão centralizado,
com sede na Espanha, criado em 1503, quando os espanhóis já haviam assumido
o controle total de suas possessões americanas. Esse órgão ficou conhecido como
Casa de Contratação, o qual ficava logo abaixo do rei espanhol e do Conselho das
Índias, responsável geral pela colonização e exploração das colônias e pela
nomeação de capitães gerais e vice-reis (VAINFAS, 1984).
A Casa de Contratação estava sediada na cidade espanhola de Sevilha e,
dentre suas atribuições, estava encarregada de administrar o comércio entre
colônia e metrópole, fiscalizar o recolhimento do quinto (imposto de 20% sobre os
metais preciosos extraídos) e também de operar como Corte de Justiça, para
arbitrar quaisquer conflitos jurídicos surgidos na colônia. Vale ressaltar que a
metrópole, visando assegurar seu completo domínio sobre a produção colonial,
estabeleceu um sistema chamado de “exclusivo metropolitano” (VAINFAS, 1984).
De acordo com esse sistema, as colônias podiam negociar somente com a sua
própria metrópole, no caso a Espanha.
A escolha de Sevilha para sede da Casa de Contratação não foi à toa.
Sevilha se tratava então do mais importante porto espanhol. Dessa forma, a
burguesia mercantil e marítima do país exigiu que tal porto fosse o único autorizado
a receber os navios oriundos da colônia. Assim, a burguesia espanhola garantia seu
controle absoluto sobre os negócios coloniais, fato que a enriqueceu rapidamente e
lhe conferiu poder no campo político. Portanto, além de faturar alto com a
33
exploração das colônias, a burguesia passou a influenciar diretamente na
administração da colônia, determinando nomeações, regras comerciais e a criação
de órgãos especiais para tratar dos negócios das colônias. Um desses órgãos foi o
Consulado, que se tratava de um grupo de mercadores que possuíam primazia em
explorar o comércio intercontinental (VAINFAS, 1984).
Desse modo, os espanhóis se tornaram, ao longo do tempo, beneficiários
de uma grande variedade de produtos, que iam muito além dos metais preciosos do
início da colonização:
Fica claro que essa incrível gama de recursos para exploração exigia um
robusto aparato estatal para sua administração. Logo, a Espanha construiu uma
malha burocrática enorme, embora muito dinâmica, para cuidar de seus negócios
do outro lado do Atlântico.
Na própria Espanha, a estrutura administrativa era mais simples, composta
apenas pelo rei, pelo Conselho das Índias e pela Casa de Contratação. Na colônia,
ela se tornava muito mais complexa, com uma verdadeira rede hierárquica que ia
do Vice-Rei até os representantes indígenas. O Vice-Rei era responsável pela
administração geral do seu território, tendo submetidos a si quatro entes
administrativos principais. A área das finanças era administrada por um Tribunal de
Contas. No campo da justiça, havia uma instituição chamada Audiências, que por
sua vez controlava os alcaides municipais. Existia também a figura do Governador,
que cuidava dos corregedores espanhóis e indígenas. Por fim, para a defesa da
colônia, era mobilizado um exército, que se reportava diretamente ao Vice-Rei. Além
disso, paralelamente ao Vice-Rei estava a Igreja, representada pelos Arcebispados,
responsáveis por administrar os bispados e os missionários, que tinham a tarefa de
evangelizar os indígenas e construir mosteiros e conventos (Figura 1).
34
Contudo, apesar de estarem, em tese, sob o comando do Vice-Rei, as
Audiências tinham como uma de suas funções fiscalizá-lo, de forma que este não
adquirisse poderes absolutos. Para que isso fosse possível, existia o cargo de Juiz
de Residência, encarregado de apurar quaisquer irregularidades na gestão colonial.
Havia ainda a figura do Visitador, que fiscalizava tanto os órgãos administrativos na
metrópole quanto no vice-reinado. Por fim, existia uma instituição denominada
Cabildo, que funcionava como uma Câmara Municipal. Era ocupada por membros
da elite local, que não raramente acumulavam outros cargos na administração.
(PALMQUIST, 2018)
35
espanhóis, a exploração do trabalho por estamentos privilegiados da sociedade era
uma das bases para a própria expansão desses impérios (CARDOSO, 1995). Esse
segundo tipo de formação social viabilizou para os espanhóis a exploração do
trabalho indígena, já que, na prática, isso significou um mero processo de troca
daqueles que oprimiam e exploravam a grande massa das sociedades nativas. No
lugar das castas sacerdotais e de nobres autóctones, entraram os espanhóis.
O segundo motivo está no fato de que a escravidão africana se tornou um
negócio bastante lucrativo a partir do século XVI, suplantando, na América
portuguesa, a utilização da mão-de-obra escrava indígena (MATOS, 2007). No
entanto, devido à diversidade de climas, topografias e tipos de mão-de- -obra
disponíveis, diferentes modalidades laborais surgiram na América espanhola.
Assim, o trabalho indígena foi exigido de maneiras diferentes de acordo com o tipo
de produto a ser explorado e a conformação das relações de produção. As principais
matrizes produtivas se enquadraram dentro dos sistemas de plantation,
encomienda e repartimiento, analisados caso a caso a seguir.
36
plantations. Portanto, no contexto de expansão dos estados-nação ibéricos, a partir
dessas ilhas houve a aquisição de experiência nesse modelo de produção agrícola,
que viria a ser implantado posteriormente nas colônias americanas (MINT, 2008).
As plantations foram utilizadas em todo o mundo colonial, desde a Ásia,
passando pela África e chegando às Américas. Contudo, dois modelos de
exploração laboral completamente diferentes foram aplicados. Enquanto na Ásia e
na África preponderou o trabalho assalariado, nas Américas foi o trabalho escravo
e/ou compulsório que vigorou com mais força. Exemplificando, nas plantações de
seringueira (borracha) da Malásia, nas plantações de chá de Assam (Índia) e no
cultivo de palmeiras em Camarões, os trabalhadores eram nativos, livres e recebiam
algum tipo de remuneração pelo seu trabalho.
7.2.2 A encomienda
37
trabalhar nos regimes de encomienda e repartimiento, encontrados somente nos
domínios hispânicos. Esses sistemas não foram aplicados de maneira homogênea
nas colônias, mas contribuíram decisivamente para a consolidação do poder da
coroa espanhola sobre os nativos, fato que colaborou para a redução drástica das
populações indígenas (PALMQUIST, 2018).
A primeira metade do século XVI teve a encomienda como a forma
prevalente de trabalho forçado nas colônias. Ela sempre foi aplicada em regiões
onde a população indígena já estava estabelecida, devido à facilidade de transpor
esses trabalhadores, que já atuavam em sistemas exploratórios autóctones, para a
nova configuração das relações de produção.
A encomienda funcionava mediante um acordo entre o colono e a
metrópole. As terras recebidas pelo colono abrigavam comunidades indígenas
inteiras e a coroa espanhola autorizava que o novo proprietário explorasse o
trabalho de todos os indígenas que estivessem assentados em sua propriedade
(Figura 2). Esses colonos se tornavam, portanto, os encomenderos, possuindo,
além do direito de exploração do trabalho, o direito de cobrar tributos dos indígenas,
que eram pagos em espécie. Ou seja, no sistema de encomienda, os índios, além
de serem forçados a ceder sua força de trabalho, também eram obrigados a pagar
impostos ao encomendero (COGGIOLA, 2011).
38
No entanto, os encomenderos não tinham o direito de usar diretamente as
terras nas quais os índios estavam assentados. Era permitido somente forçá-los a
trabalhar nelas e obter o fruto do trabalho, sem a intervenção direta na terra. Por
outro lado, havia uma justificativa ideológica para que a cobrança de tributos se
tornasse possível: a evangelização dos índios. O encomendero, em troca dos
impostos recolhidos, era obrigado, pela coroa e pela Igreja, a fornecer a catequese
para os indígenas. Dessa forma, ficava estabelecido que era justo cobrar o tributo,
já que ele era revertido na salvação das almas dos nativos, considerados pagãos.
Além disso, era responsabilidade do encomendero providenciar a alimentação dos
trabalhadores sob o sistema de encomienda (COGGIOLA, 2011).
No final do século XVI, a encomienda passou a declinar, em função de uma
nova postura da coroa espanhola, que passou a se encarregar diretamente do
controle sobre os povos indígenas. O objetivo dessa mudança era forçar o
deslocamento dos índios para os arredores das cidades coloniais, abrigando- -os
nos chamados corregimientos, locais de concentração dessa população deslocada
para que ficasse supervisionada e disponível para o trabalho na mineração e
produção de alimentos (BAKEWELL, 1998).
7.2.3 O repartimiento
39
disso, liberava da obrigação de pagar o tributo aqueles caciques que indicassem os
trabalhadores. Assim, os indígenas se tornavam cada vez mais dependentes do
colonizador (VIEIRA, 2017).
Essa nova forma de trabalho teve impactos significativos sobre a sociedade
indígena, causando uma maior deterioração de sua cultura. No sistema de
encomienda, os indígenas tinham a possibilidade de produzir sua própria
alimentação, por exemplo. Também eram capazes de produzir seu próprio
vestuário, suas habitações, enfim, possuíam um grau expressivo de
autossuficiência. Já no repartimiento, essa relativa autonomia desapareceu por
quase completo (COGGIOLA, 2011).
A transposição de aldeias inteiras somada à prática do repartimiento foi o
golpe fatal na organização social e nos vínculos comunitários indígenas. Mesmo
aqueles índios que tentavam retornar para suas comunidades não obtinham
sucesso na empreitada. Em muitos casos, elas deixavam completamente de existir,
não somente pelo fato de terem sido transplantadas em sua maior parte para outras
localidades, mas pelo trabalho ativo dos espanhóis em inviabilizar sua existência.
Isso era feito pela destruição dos campos em torno das zonas originais de habitação
dos índios, de forma que não fosse mais possível produzir alimentos, eliminando as
chances de reagrupamentos. Unido a isso estava o fato de que os mitayos como
eram conhecidos os homens escalados para o trabalho no regime de repartimiento
acabavam por se fixar nos locais de trabalho, desligando-se permanentemente de
suas origens (VIEIRA, 2017).
Em meados do século XVII, o repartimiento evoluiu para uma nova forma
mascarada de exploração do trabalho. Justamente pelo fato dos índios serem
arrancados de suas comunidades originais, tornando-se privados de garantir sua
própria subsistência, os proprietários passaram a pressionar a coroa espanhola por
um novo modelo de contrato de trabalho, pois queriam evitar o compromisso de
fornecer o básico para a sobrevivência dos trabalhadores.
40
permanente, não escrava, ao longo de todo ano. A expansão territorial da
hacienda se reforçou com a aquisição destes trabalhadores que, a partir
de 1630 em diante, passaram a residir e a se reproduzir nos confins
territoriais da propriedade, constituindo a peonagem encasillada
(classificada), trabalhadores que praticamente careciam de toda liberdade
de movimento (COGGIOLA, 2011, documento on-line).
41
de pessoas tenham sido aprisionadas na África e trazidas para a escravidão nas
Américas. Dessa forma, houve uma imposição comercial da escravidão africana no
continente. As classes proprietárias lucravam de duas formas com a escravidão:
pelo trabalho do escravo em si e também pela sua comercialização. Portanto, esse
é um dos aspectos que nos ajuda a compreender a primazia do trabalho dos
africanos sobre o dos europeus, provocando uma cisão entre brancos e negros com
larga duração histórica. Esse é um problema secular da história brasileira, por
exemplo, que não foi devidamente resolvido até hoje e que se manifesta no dia a
dia de qualquer cidade do país, seja por meio do racismo, da desigualdade social
ou dos inúmeros problemas sociais que afetam em maior parte a população negra
do Brasil (GOTO, 2013).
42
Portanto, foi com essas características que o trabalho escravo africano foi
implantado nas colônias das Américas. Atuaram como propulsores desse tipo de
comércio e de trabalho os portugueses e holandeses, em primeiro lugar, seguidos
pelos ingleses, quando instalaram o sistema de plantation em São Domingos (Haiti)
e na Jamaica (MARIANO; FERRO, 2014).
O recrudescimento do trabalho escravo africano se deu no contexto da
produção em larga escala de produtos agrícolas para abastecimento do mercado
europeu, revolucionado pelo advento da industrialização. Daí a criação dos grandes
latifúndios, especializados no cultivo de um único produto. Eram grandes extensões
de terra, que permitiam grande produtividade. Ao mesmo tempo, devido ao tamanho
da produção, fazia-se necessário um grande contingente de mão-de-obra,
constituída basicamente de escravos. Afinal, estes se apresentavam
economicamente muito mais vantajosos para os grandes proprietários, já que seu
custo era menor que o exigido por um trabalhador livre branco (WILLIAMS, 2012).
Em relação ao trabalho indígena, é possível afirmar que ele se manifestou
de diversas formas dependendo da época e do local. Sua variedade ocorreu em
função de dois fatores principais: pelas particularidades regionais e pela quantidade
de habitantes na zona onde se desenvolvia a colonização. Um exemplo que ajuda
a elucidar esta última característica é o das ilhas caribenhas. Logo após a chegada
dos conquistadores europeus, a população indígena local ainda era expressiva, o
que não duraria muito, com sua quase completa dizimação provocada no desenrolar
da conquista. Portanto, havia uma oferta enorme de mão-de-obra, prontamente
escravizada pelos colonizadores. Nesse contexto específico, a implementação da
escravidão como modelo de trabalho teve a ver com a abundância de braços
trabalhadores. Na sequência, com a queda acentuada da população, novas formas
de exploração do trabalho foram sendo implementadas (SCHWARTZ; LOCKHART,
2002).
As características regionais também influíram no estabelecimento deste ou
daquele tipo de trabalho. Nas minas, em geral, o trabalho foi realizado em variantes
da servidão, como a encomienda em um primeiro momento e o repartimiento
43
suplantando-a posteriormente. Já no regime de plantation, a forma tradicional de
labor foi a escravidão.
No século XVI, no momento em que a colonização se organizava com
rapidez, foi instituída a encomienda, que combinava elementos do feudalismo
europeu com formas tributárias dos impérios pré-colombianos. O critério para a
escolha dos encomenderos, isto é, os colonos era o serviço que haviam prestado
ao rei da Espanha. Portanto, quanto mais leal e ativo fosse o colono, mais chances
teria de se tornar um encomendero. A honraria era muito desejada, não somente
pelo prestígio que conferia ao agraciado, mas pela possibilidade de fazer fortuna
rapidamente (TODOROV, 2003).
No entanto, o sistema de trabalho por encomienda, devido à sua própria
natureza superexploratória, acabava por exaurir os indígenas, fato que, aliado à sua
baixa imunidade frente às doenças trazidas da Europa, causava severa
mortandade. Assim, os recursos humanos foram se tornando cada vez mais
escassos para que o sistema de encomienda pudesse se manter. A coroa
espanhola foi obrigada a intervir, no sentido de criar mecanismos que protegessem
minimamente os indígenas, evitando as grandes mortandades que prejudicavam a
produção. O trabalho africano foi uma das formas de suprir essa escassez de
trabalhadores, principalmente no vice-reino de Nova Granada. Porém, na maior
parte da América espanhola a solução foi encontrada na criação de um novo modelo
de trabalho chamado de repartimiento (TODOROV, 2003).
Em 1542, foram promulgadas novas legislações, que ficaram conhecidas
como Leyes Nuevas, segundo as quais ficava proibida a escravidão indígena e
colocava-se um ponto final no sistema de encomienda. Assim surgiu o
repartimiento, uma forma de trabalho diferente da escravidão e da encomienda, já
que os trabalhadores desfrutavam de maior autonomia. Em meados do século XVI,
foram descobertas grandes minas de prata no México (Zacatecas) e nos Andes
(Potosí). A forma de trabalho típica dessas minas foi o repartimiento, que forçava a
indicação de trabalhadores pelos chefes das aldeias como forma de tributo. Esse
sistema durou até o século XVII, e acabou sendo substituído por um novo sistema,
44
quase liberal, em que os indígenas já não tinham mais nenhum vínculo com os
patrões (COGGIOLA, 2011).
Conforme examinado neste capítulo, a conquista da América pelos
espanhóis apresentou particularidades que a contrapõe ao processo de colonização
de outros países europeus no continente. A forma de divisão administrativa, por
exemplo, foi muito diferente das realizadas na América portuguesa, francesa e
inglesa. Os territórios hispânicos nas Américas foram divididos em vice- -reinados,
que possuíam uma complexa estrutura hierárquica e administrativa.
Posteriormente, alguns desses vice-reinados ainda teriam algumas partes
desmembradas em capitanias gerais, que se mostravam mais adequadas para o
enfrentamento militar em relação aos indígenas.
As colônias espanholas também exploraram de maneira diversa o trabalho
dos índios. A escravidão africana nessas colônias foi muito menor do que a
encontrada nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil. Os espanhóis criaram
sistemas que foram utilizados somente em suas possessões, como a encomienda
e o repartimiento, diferenciando-se dos outros conquistadores europeus.
45
Romano expandido até o Oriente Médio e com algumas incursões pelo interior
asiático já estavam disponíveis informações preciosas sobre as outras porções
territoriais quase que integralmente desconhecidas na Europa. Esse conhecimento
serviu como guia para as Cruzadas (séculos XI–XIII), por exemplo, que buscavam
retomar o controle cristão sobre Jerusalém. De modo similar, os romanos haviam
realizado expedições ao longo do Nilo, penetrando até a metade do território
africano, contudo sem conquistá-lo. No século XIII, as viagens de Marco Polo
haviam municiado mercadores italianos com relatos sobre a China. Em pleno século
XIV, contudo, esse conjunto de informações era esparso e fragmentado, somado
ao total desconhecimento das terras americanas (BRAUDEL, 1970).
No momento em que Portugal e Espanha iniciaram sua jornada em busca
de novos territórios, pode-se afirmar que era quase impossível prever o que se
encontraria. A motivação de portugueses e espanhóis era encontrar um caminho
alternativo para as Índias, já que havia um bloqueio árabe no Mediterrâneo. No
entanto, o termo Índias compreendia a ideia da Ásia inteira. Assim, China, Japão e
outros territórios incluíam-se nessa noção vaga sobre as terras buscadas pelos
navegantes ibéricos (BRAUDEL, 1970).
A principal razão para que os europeus procurassem desesperadamente
um novo caminho até o Oriente residia em questões econômicas. O comércio com
mercadores orientais crescia a olhos vistos; porém, com os bloqueios impostos no
Mediterrâneo, o fluxo de mercadorias foi drasticamente reduzido, causando graves
problemas de abastecimento na Europa. É interessante notar que, nesse período
anterior à Revolução Industrial e ao colonialismo, eram os europeus que dependiam
das mercadorias asiáticas para a movimentação de seu mercado interno, controlado
pelos negociantes genoveses e venezianos (BRAUDEL, 2016).
Os produtos mais importantes, transportados através de uma longa rede
desde o Extremo Oriente, passando pela Índia e chegando ao Mediterrâneo, eram
as chamadas especiarias e as pedras preciosas, com destaque para as primeiras
nesse comércio. Segundo Braudel (2016), a categoria reunia quase 300 tipos de
produtos, conforme registrado em catálogos de venda do século XIII.
46
Assim, devido à cada vez mais significativa carestia desses produtos, a
necessidade de se encontrar uma rota alternativa para o Oriente se tornou uma
imposição histórica. Mas você deve se perguntar as razões pelas quais Portugal se
lançou nessa tarefa bem antes dos outros reinos europeus. A resposta pode ser
resumida em três pontos (CARDIM, 1998):
47
dos já citados para a formação do reino unificado, foi a formação de uma nobreza
militar. Esta, alinhando-se de maneira hierárquica, comum ao militarismo, encontrou
no rei o seu líder supremo. Logo, o país se definiu em torno de uma monarquia forte,
pronta para defender os interesses dos portugueses, tanto na esfera militar quanto
na econômica, ambas essenciais para o início das grandes navegações de Portugal
(MONTEIRO, 1996).
No século XV, a economia europeia encontrava-se fortemente abalada por
uma série de fatores originados no século anterior. A produção agrícola apresentava
forte declínio, representando uma crise de abastecimento. A mão-de-obra estava
em queda, devido ao rescaldo da Peste Negra, que havia vitimado dezenas de
milhões de pessoa, causando um forte impacto sobre os índices populacionais na
Europa. Além disso, a Guerra do Cem Anos (1337–1453) havia causado sérios
danos nas economias e nas sociedades dos dois principais reinos envolvidos,
França e Inglaterra. Por fim, as reservas de ouro e prata do continente haviam se
esgotado, causando impacto na cunhagem de moedas e afetando duramente a
economia (WALLERSTEIN, 2004).
Como resultado imediato, os países centrais da Europa estavam
desestruturados, com poucas perspectivas de crescimento. Foi nesse cenário que
Portugal se destacou e teve forte protagonismo. O passo natural foi procurar
soluções fora do território da Europa, voltando-se inicialmente para a África. Nesse
contexto, os portugueses perceberam que, ao instalar bases no norte da África,
teriam acesso ao ouro da região do Sudão e da Etiópia e ao mesmo tempo poderiam
interceptar as rotas comerciais do Saara. Desse modo, a economia voltaria a
prosperar e seria possível garantir um papel para a nobreza militar sedenta por
combates (WALLERSTEIN, 2004).
A historiografia tem demarcado o ano de 1415 como o marco inicial da era
das grandes navegações e descobrimentos. Naquele ano, Portugal se apossou de
Ceuta, uma cidade estabelecida na região do Estreito de Gibraltar, local privilegiado
para o controle da costa ocidental africana. A conquista se deu no contexto da
dinastia da Avis, que iniciou a modernização e a expansão ultramarina de Portugal.
O rei D. João I (décimo rei de Portugal e o primeiro da Casa de Avis), buscando
48
prestígio, decidiu conquistar uma cidade muçulmana, garantindo assim uma vitória
sobre os “infiéis” ao mesmo tempo em que se apossava de local estratégico para a
navegação na costa da África. D. João I liderou em pessoa a conquista de Ceuta,
acompanhado se seus filhos, sendo o mais importante deles o Infante D. Henrique
(Figura 1). A incumbência de realizar novas conquistas marítimas lhe seria atribuída
pelo pai, fato que resultou na descoberta das ilhas da Madeira, Canárias e dos
Açores, que foram povoadas, passando a produzir alimentos para Portugal. Além
disso, essa primeira experiência de colonização além-mar serviu como um
importante laboratório para as conquistas coloniais portuguesas no século seguinte
(MICHELAN, 2013).
49
empreendimento de avanço de Portugal em direção ao sul do Atlântico (JOÃO,
2004).
No entanto, diversas superstições a respeito dessa região totalmente
desconhecida ao sul do Cabo do Bojador situado no extremo ocidental da África e
ainda não cruzado pelos portugueses retardavam o processo. Por fim, quando
Portugal finalmente conseguiu ultrapassar esse último obstáculo, após 12 anos de
insistência de D. Henrique, as portas para a conquista de territórios distantes,
inclusive o Brasil, estavam abertas para os portugueses (JOÃO, 2004).
51
chegando ao Brasil em 22 de abril do mesmo ano. Todavia, devido ao grande
entusiasmo português com a descoberta da rota marítima para o Oriente e com
todos os seus lucros previstos as novas terras “descobertas” por Cabral não
despertaram interesse imediato. Não à toa, após dez dias de sua chegada ao novo
continente, Cabral retomou sua viagem às Índias, chegando em Calicute em agosto
de 1500 (SILVA, 1990).
Foi somente três anos depois que o então rei D. Manuel (1469-1521)
determinou que as novas terras encontradas pela coroa fossem arrendadas, no que
se seguiu a instalação de feitorias, ao modo das que os portugueses vinham
instalando na África. Portanto, não se tratava ainda de um processo de colonização,
mas uma forma de iniciar a extração de riquezas do novo território sem ocupá-lo de
fato (SILVA, 1990).
O primeiro produto a ser explorado pelos portugueses foi um tipo de árvore
chamada pau-brasil. Sua importância comercial estava na tinta vermelha que podia
ser extraída da madeira e que servia para tingimento e pinturas em geral. Portanto,
52
a lógica de exploração nesse momento ainda correspondia ao tipo de produtos que
os portugueses buscavam nas Índias. O corante obtido era levado até a região da
atual Bélgica para serem processadas em feitorias portuguesas naquele país. O
pau-brasil era obtido pelo sistema de escambo (uma forma de troca) com os
indígenas. O escritor francês Jean de Léry (1534–1611), que esteve no Brasil em
meados do século XVI, durante a ocupação francesa na atual região do Rio de
Janeiro (França Antártica), registrou o modo como o comércio de pau-brasil ocorria
entre índios e europeus:
53
responsabilidade investir capitais para desenvolver a produção econômica nas
terras que lhe cabiam. Dessa forma, o negócio se tornava bom para ambos os lados.
A coroa não precisaria dispor de recursos para manter e desenvolver as novas
terras, já o capitão donatário usufruía da posse de terras quase do tamanho do
território de Portugal, com a vantagem de deixá-las para seus herdeiros, tendo em
vista que a doação era, como dizia o nome, hereditária (SILVA, 1990).
Ademais, o capitão donatário tinha poderes totais sobre a sua capitania,
tanto no aspecto político quanto judicial. Ele também se tornava um chefe militar, já
que uma de suas atribuições era manter o domínio português sobre a região. Assim,
a figura do capitão donatário se tornou a mais importante no que concerne à defesa
do território português nas Américas, já que lutava ao mesmo tempo contra invasões
estrangeiras e contra constantes ataques indígenas. Nesse sentido, a historiografia
tem refletido longamente sobre o caráter da chegada e domínio dos portugueses no
Brasil, classificando-os por vezes como descoberta e em outras como achamento;
como encontro ou contato; ou então como invasão e conquista (GOMES; ROCHA,
2016).
Entretanto, na mesma medida era necessário tornar as terras lucrativas.
Para isso, os donatários precisavam organizar um aparato administrativo eficiente,
que tornasse viável a exploração comercial da colônia. Após o ciclo do pau-brasil,
um novo modelo produtivo foi instalado pelos capitães donatários: os engenhos de
cana-de-açúcar. Esse advento transformaria totalmente a relação da metrópole com
a colônia, pois foi assim que os novos domínios passaram a ser lucrativos de uma
maneira expressiva, o que também levou ao surgimento do tráfico de escravos
africanos. Após algumas décadas de subaproveitamento das terras americanas, a
colonização agora se tornava um fato (SILVA, 1990).
Porém, ao fim e ao cabo, o sistema de capitanias revelou-se incapaz de
desenvolver a colônia como Portugal esperava. Das 14 capitanias, somente as de
São Vicente e de Pernambuco atingiram níveis satisfatórios de prosperidade.
Alguns dos capitães donatários nem chegaram a vir para o Brasil, permanecendo
em Portugal. Assim, a partir de 1540 a coroa combinou o sistema de capitanias com
o regime de administração centralizada. No entanto, mesmo com essas
54
transformações o sistema de capitanias vigoraria até o século XVIII (FAUSTO,
1995).
A centralização administrativa se manifestou na forma de um governo-geral,
com sede na Bahia e criado em 1548. Diversos fatores fizeram com que Portugal
optasse por esse novo tipo de governo nas colônias. As tentativas de invasão
estrangeira se tornavam cada vez mais frequentes. Por outro lado, os conflitos com
os indígenas não arrefeciam. Por fim, a descoberta de prata no Peru e a
subsequente conquista do território pelos espanhóis colocavam esses adversários
coloniais muito próximos aos domínios portugueses (FAUSTO, 1995).
Tomé de Sousa (1503–1579) foi escolhido como o primeiro Governador- -
Geral, com a missão de centralizar as ações entres as capitanias. Souza possuía
vasta experiência, tendo servido na Índia, fato que colaborou para sua nomeação e
pelo trabalho que conseguiria realizar, tornando mais “profissional” a administração
da colônia. Na sua passagem pelo governo, Tomé de Sousa criou o primeiro
bispado do Brasil, em 1551, e forneceu as condições para que a chegada de
escravos africanos se tornasse regular (FAUSTO, 1995).
Portanto, o sistema de capitanias foi extremamente relevante para o
desenvolvimento da empresa colonial brasileira. Da mesma forma, dois de seus
principais atributos representam algumas das mais consistentes permanências
históricas do Brasil. As capitanias se estruturaram sobre a posse de grandes
extensões de terra, isto é, em latifúndios, que ainda são uma característica
marcante da propriedade rural no país. Outro aspecto foi justamente a consolidação
do trabalho escravo negro, que cinco séculos depois ainda se expressa
residualmente em nossa sociedade, seja na imensa desigualdade social, seja na
violência e exclusão que atingem os negros brasileiros (FAUSTO, 1995)
55
todas as esferas da sociedade europeia. Nesse sentido, a religião também foi uma
das esferas afetadas pelas notícias que chegavam da América. Afinal, os povos
indígenas eram considerados pagãos, isto é, sem religião, fato que movimentou a
Igreja no sentido de procurar assumir o protagonismo na condução dos negócios
indígenas e levar a cabo a missão de evangelizá-los (PAIVA, 1982).
Diversas ordens religiosas enviaram membros para as Américas, como os
dominicanos, agostinianos, franciscanos, beneditinos e, no caso brasileiro,
principalmente os jesuítas. Enquanto a maior parte dessas ordens instalou- -se no
Brasil com propostas mais contemplativas mediante a criação de mosteiros, de
conventos, construção de igrejas, etc. os jesuítas marcaram a sua trajetória na
América portuguesa por uma profunda ligação com os indígenas. Assim, atuaram
na sua procura em meio às matas e na sua introdução à cultura e educação
europeias, bem como para protegê-los de bandeirantes que procuravam escravizar
os nativos (TAVARES, 2007).
A Companhia de Jesus, ordem religiosa à qual pertencem os jesuítas, foi
fundada em 1534, na cidade de Paris, pelo religioso Inácio de Loyola (1491–1556).
A ordem espalhou-se rapidamente pela Europa e seu modelo de hierarquia criava
um sentimento de devoção e obediência extrema ao Papa. Essa forma de organizar
a ordem não era à toa. Sua criação ocorreu em um contexto muito atribulado na
Europa. Alguns anos antes, em 1517, havia ocorrido a divisão da Igreja devido às
95 teses publicadas pelo monge Martinho Lutero na Alemanha, ao que se seguiu a
sua excomunhão pelo Papa (PAIVA, 1982).
Lutero questionava diversos dogmas da Igreja, sendo apoiado por muitos
fiéis, que criaram uma nova igreja cristã, no evento histórico que ficou conhecido
como Reforma Protestante. Dessa forma, a igreja católica, conduzida com mão de
ferro pelo papa Paulo III (1468–1549), iniciou um movimento de contrarreforma, em
que os valores e os dogmas católicos eram veementemente reafirmados. Foi nessa
situação que surgiram ordens como a Companhia de Jesus, que exigia de seus
membros total fidelidade ao Papa (MONTEIRO, 2007).
Por outro lado, a Igreja havia perdido muitos fiéis com a Reforma. Dessa
maneira, o fato de se descobrir a existência de uma população de milhões de
56
pessoas não cristãs na América caiu como uma luva sobre a necessidade da Igreja
recuperar, ou até aumentar, o número de seguidores do catolicismo. Sendo assim,
a Companhia de Jesus foi encarregada de enviar missionários para o Novo Mundo,
com a importante missão de levar o cristianismo para o continente e catequizar seus
habitantes originais. De acordo com Paiva (2000), o entendimento era de que, para
a consolidação do vasto império ultramarino ibérico, além de seu controle militar,
político e econômico, era igualmente necessário estabelecer bases religiosas
europeias nos novos domínios, definindo assim o controle total das metrópoles
sobre suas colônias.
Os jesuítas exerceram papel de suma relevância na empreitada colonial
portuguesa. Os primeiros missionários chegaram em 1549 e iniciaram seu trabalho
por meio da criação das primeiras escolas do Brasil. Além disso, passaram a montar
os chamados aldeamentos indígenas, onde reuniam os índios convertidos, que
eram introduzidos ao modo de vida europeu, às artes (sobretudo a música) e ao
trabalho em comunidade, que assim se tornavam autossuficientes.
Consequentemente, é possível afirmar que os padres jesuítas tiveram papel ativo
na vida espiritual, cultural, política e econômica da colônia portuguesa. A primeira
escola foi a da capitania de São Vicente, inaugurada em 1554, seguida pelas da
Bahia (1556) e Rio de Janeiro (1568). Além de atuarem na evangelização dos
índios, essa escola tinha como objetivo formar novos sacerdotes, para que a colônia
não dependesse do envio de missionários europeus. A ligação com o papado era
bastante estreita, pois era preciso que o papa fornecesse uma licença para o
estabelecimento de instituições de ensino. A licença se chamava “missão”,
contendo em si a determinação para que os colonos não católicos fossem
convertidos, a catequização indígena e a obrigação de enquadrar os índios nos
padrões culturais e sociais europeus. Segundo Paiva (2000), a partir do termo
“missão” é que se caracterizaram as “missões jesuíticas”, grandes aldeamentos que
frequentemente comportavam milhares de habitantes.
As primeiras missões foram estabelecidas em torno de 1550. No entanto,
um problema se apresentava perante os padres: como estabelecer a aproximação
inicial com os indígenas? Vários métodos foram utilizados, tais como tocar música,
57
oferecer presentes, etc., contudo, umas das formas mais exitosas foi o uso dos
conhecimentos médicos desenvolvidos pela ciência até então. Dessa forma, os
padres demonstravam aos indígenas que a medicina trazida por eles era, de
maneira geral, mais eficaz que as tradicionais curas realizadas pelos pajés (PAIVA,
2000).
Os padres jesuítas também realizavam adaptações nas liturgias católicas a
fim de torná-las mais significativas para os índios, facilitando o processo de
conversão. Muitas vezes, as crianças desempenhavam um papel importante nessa
estratégia. A missa tradicional era substituída por uma cerimônia em que as
crianças atuavam, como em um teatro, representando passagens bíblicas. No
entanto, essa forma de evangelização acabou não atendendo as expectativas dos
jesuítas e teve que ser revista (RIBEIRO, 2015).
Como as tentativas pacíficas de levar o evangelho aos índios estava
fracassando, um dos líderes mais importantes da Companhia de Jesus, o padre
Manuel da Nóbrega, encarregado das missões no Brasil, decidiu radicalizar os
procedimentos de conversão. Para isso, Nóbrega defendeu o uso da força,
argumentando que esta seria a única forma de se organizar os aldeamentos. A partir
daí, Nóbrega lançou em 1558 um documento intitulado “Plano Civilizador”, no qual
expunha a sua nova doutrina para os índios:
A lei, que lhes hão de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear
sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se,
pois tem muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os
feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos: fazê-los
viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for ante cristãos,
tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes padres da
Companhia para doutrinarem (RIBEIRO, 2015, p. 151).
58
sociedades nativas. Além disso, fica evidente que o padre considerava urgente
impor a moralidade cristã por meio de uma espécie de tutela pela qual os índios
deveriam estar sempre submetidos aos padres e aos colonos brancos.
59
evangelização dos índios. Esses encontros determinaram o desenvolvimento
colonial dali por diante, deixando marcas que permanecem até os dias atuais na
sociedade brasileira.
60
10.1 A teoria asiática
A mais antiga ponte terrestre existiu entre cerca de 50.000 e 40.000 anos
[...] e foi usada por várias espécies de mamíferos do Velho Mundo,
incluindo o caribu e o mamute peludo, para invadir as Américas. Após um
intervalo de submergência que durou uns 12.000 anos, a ponte reapareceu
entre cerca de 28.000 e 10.000 anos atrás. [...]. No decorrer de alguns
milênios, antes que os segmentos de Leste e Oeste se fundissem e um
corredor se abrisse novamente, a ponte terrestre foi transitável.
Aproximadamente há 10.000 anos [...], o nível do mar elevou-se
suficientemente para cobrir o Estreito de Bering e desde essa época o
Novo Mundo tem sido atingido somente por água.
61
quanto à denominação dos grupos migratórios e as datas de
migração. Alguns autores desses grupos, além das análises
genéticas, utilizam a morfologia craniana como fonte para suas
análises. (SALAZANO, 1997, p. 38)
62
[...] apesar de suas limitações, os estudos genéticos, tanto em nível de
proteína como de DNA, têm fornecido importantes contribuições para a
análise e eventual solução da questão da origem de nossos indígenas.
Atualmente, há consenso quanto à entrada no continente através do
estreito de Bering, mas dúvidas quanto ao número de ondas migratórias
(SALAZANO, 1997, p. 43).
63
11 OS INDÍGENAS DA AMÉRICA DO NORTE
64
verbal, baseada na expressão corporal. Até pouco tempo, os inuits eram chamados
de esquimós, uma palavra proveniente do idioma dos algonquianos (outro povo
indígena), que significa “comedores de carne crua”. Entretanto, os inuits consideram
esse termo ofensivo e lutam para não serem identificados como “esquimós”.
Existem outras etnias vivendo na região do Ártico, mas os inuits são os mais
numerosos. Em relação a outros povos originários da América, seu contato com
europeus e descendentes se deu tardiamente, somente a partir de 1780, e alguns
grupos foram contatados apenas no século XX (KAVIN, 2006).
Os inuits dedicam-se à caça e à pesca como subsistência, organizam-se
em famílias nucleares como unidade básica, mas reconhecem uma família
estendida, e eventualmente formam acampamentos ou assentamentos sazonais
com uma ou mais famílias, formando alguns bandos. Não existe uma liderança
específica, a não ser em episódios pontuais, como em expedições baleeiras, em
que se destacam homens mais velhos. Quanto a essa organização social, ela não
pode ser universalizada para todas as etnias e as regiões do Ártico; no Alasca, por
exemplo, onde se estabeleceu um maior contato com as culturas da região noroeste
do território do atual Estados Unidos, costuma haver uma formalização da
autoridade (KAVIN, 2006).
Entre os inuits, havia uma divisão de gênero nas atividades a serem
desempenhadas, sendo as mulheres responsáveis pela elaboração de artefatos e
ferramentas de marfim ou ossos, como agulhas, facas, raspadores de peles, etc.
Além disso, os habitantes do Ártico usavam artefatos de pedras lascadas, como
pontas, lâminas e panelas. As vestimentas eram elaboradas com couros e peles de
animais caçados (KAVIN, 2006).
Com variações regionais, os povos do Ártico acreditavam que todas as
coisas, animadas ou inanimadas, possuíam alma ou espírito, que eram bastante
respeitados, a partir de uma moral e de um conjunto de regras compartilhadas. O
respeito às almas ou aos espíritos era necessário para a manutenção do bem-estar
geral, em uma noção de equilíbrio. Por isso, também usavam amuletos e rituais de
magia, existindo a figura de um xamã, que estava em contato com esse mundo
espiritual (KAVIN, 2006).
65
12 ESTADO-NAÇÃO E IDENTIDADES NACIONAIS
66
De acordo com os autores, para a construção de uma identidade nacional,
muitas vezes recorre-se a elementos tradicionais oriundos de um passado
mitificado, com heróis e momentos épicos, apresentados como definitivos na
formação da “nação” e do “povo”, conferindo coesão e harmonia (SILVA; SILVA,
2009).
Já o sociólogo panamenho Beluche (2014) sugere que, para compreender
o conceito de nação e suas variantes, é necessária uma distinção entre “nação-
Estado” e “nação-cultura”. Por nação-Estado, entende-se a tradicional definição de
um território delimitado, com uma população definida e um governo soberano; já por
nação-cultura, entende-se uma população que se auto identifica por seus costumes,
tradições, história e identidades, que se expressa por uma mesma língua e que
pode ou não ter governo e território próprios. A nação-cultura seria aquilo que, em
termos antropológicos, é chamada de etnia ou identidade nacional, em um sentido
de uma comunidade imaginada (BELUCHE, 2014).
O autor afirma que os Estados nacionais surgidos a partir da emancipação
política da América espanhola não advêm de um Estado-nação comum, o Império
Espanhol, mas de uma nacionalidade, de uma nação-cultura comum, a hispânica.
A partir dessa ideia de uma origem comum, foram elaboradas as ideias de uma
unidade hispano-americana (BELUCHE, 2014). Assim, podemos afirmar que, nos
dias de hoje, as repúblicas latino-americanas, em sua maioria, são Estados-nação,
cuja identidade central é a hispânica, mas que contêm outras identidades nacionais
ou “nações”. Dessa forma, é compreensível que, na América espanhola, tenham
primeiro surgido as nações-estado, para só então se consolidar a formação das
nações-cultura. Em outras palavras, as independências não foram realizadas a
partir de um “projeto nacional”, mas como realização de projetos de setores das
elites coloniais.
Uma observação: chama a atenção o fato dos principais teóricos do
nacionalismo terem concentrado suas análises nos casos europeus, prestando
pouca atenção nos fenômenos latino-americanos, considerados um caso anômalo
da questão nacional europeia (CID, 2012). Contudo, outros pensadores da América
Latina vêm se dedicando desde os anos 1990 a refletir sobre o nacionalismo e a
67
identidade nacional na região e suas particularidades, conferindo importância a um
fenômeno de difícil resolução após os processos de emancipação. Com essas
análises, a nação deixou de ser entendida por um viés essencialista, passando a
ser interpretada como uma construção cultural, discursiva, estética, política,
simbólica e social, em constante transformação e questionamento ao longo do
tempo. Assim, o nacionalismo pode ser entendido como o processo de formação
das nações; um sentimento de consciência ou de pertencimento a uma nação; a
linguagem e o simbolismo de uma nação; e, finalmente, como uma ideologia sobre
a nação (CID, 2012). No desenvolvimento das análises, destacam-se o estudo do
papel do Estado nesse processo, a relação entre a identidade nacional e os setores
populares, e o papel da cultura e dos intelectuais na construção dos imaginários
nacionais.
E de que forma esses conceitos aparecem na realidade da América Latina
após as independências? Segundo Claudia Wasserman (2011, documento on-line):
68
Muitas vezes, como no caso dos militares que participaram nos processos
de independência, essas ideias de existência prévia de identidades
nacionais emanavam de um desejo de que existissem nações e
nacionalidades nestes territórios, mais do que fruto da observação
empírica objetiva destes políticos. Em outros casos, os políticos e
pensadores que formularam estas ideias de identidades nacionais
originárias estavam atraídos pelos modelos francês, inglês ou norte-
americano. Diante do padrão estrangeiro, ao se deparar com a realidade
latino-americana e com as dificuldades de implantação de ordenamentos
políticos estáveis em todo o subcontinente, estes intelectuais acabavam
acreditando que a América Latina tinha desvios e deformações no
processo de formação nacional, ou que esses processos estavam ainda
inacabados.
69
13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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