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DOI: 10.5433/2447-1747.

2022v31n2p67

Geografia e Hermenêutica: Ibn Khaldun, por amor ao Magreb

Geography and Hermeneutics: Ibn Khaldun, for love of Magreb

Geografía y Hermenéutica: Ibn Khaldun, por amor al Magreb

Jahan Natanael Domingos Lopes1


https://orcid.org/0000-0002-0410-5219

RESUMO: Rumo à compreensão do magrebino Ibn Khaldun (1332-1406) e de sua obra “Os
Prolegômenos” (do árabe: ‫ ;خ ل ون اب ن‬lê-se Muqaddimah) construíram-se, pelas perspectivas
fenomenológica-hermenêutica e hermenêutica-fenomenológica, bases para a circularidade entre ser,
mundo e obra. Desse modo, em vista de uma Geografia hermenêutica, através dos círculos
hermenêuticos teceram-se, para tanto, a abertura do autor pelo mundo-no-ser e do ser-no-mundo e,
também, da obra pelo mundo-da-obra e enquanto obra-do-mundo. Com isso, assentiu-se, através da
geograficidade e da historicidade, o contexto da experiencialidade. Abre-se, portanto, da existência
geográfica khalduniana à obra fervente de temáticas geográficas, sociais, econômicas e históricas.
Neste trabalho, focou-se, sobretudo em sua epistêmica frente às perspectivas geográficas natural e
humana presentes e reverberadas. Prospectam-se, sobretudo, a abertura tanto da categoria Assabiya
(‫)ع ران‬, a sociabilidade quanto do conceito de umran ( ‫) ع ب‬, a sociedade. Compenetra-se, pois, em
um desvelar de vivência viajante e labutar ao passo de escutar uma voz longeva e generosa.

PALAVRAS-CHAVE: Pensamento geográfico. Geografia do Oriente. Ontologia. Circularidade.

ABSTRACT: Towards the understanding of the Maghreb Ibn Khaldun (1332-1406) and his work "The
Prolegômenos" (Arabic:‫اب خل ون‬ ; it reads Muqaddimah) were built,by phenomenological-
hermeneutic and hermeneutic-phenomenological perspectives, bases for the circularity between
being, world and work.Thus, in view of a hermeneutic Geography, through hermeneutic circles, the
author's opening was woven by theworld-in-the-being and being-in-the-world and also of work by the
world-of-the-work and as a work-of-the-world.With this, he nodded, through geographicality and
historicity, the context of experiality. It opens, therefore, from khaldunian geographical existence to the
fervent work of geographical, social, economic and historical themes. In this work, he focused mainly
on his epistemic in view of the natural and human geographical perspectives present and
reverberated. Above all, the opening of both the Assabiya category (‫)ع ران‬, sociability and the concept
of umran ( ‫) ع ب‬, society, are prospect. It penetrates, therefore, in an unenviable experience traveler
and toil to the while listening to a long and generous voice.

KEYWORDS: Geographical thinking. Oriental of geography. Ontology. Circularity.

RESUMEN: Para comprender el Magreb Ibn Khaldun (1332-1406) y su obra “Los Prolegómenos”
(árabe :‫اب خل ون‬ ; se lee: Muqaddimah) a partir de las perspectivas fenomenológico-hermenéutica y

1
Graduando na licenciatura e bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).

Geografia (Londrina) v. 31. n. 2. pp. 67 – 87, julho/2022.


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hermenéutico-fenomenológica, bases de la circularidad entre ser, mundo y obra. Así, en vista de una
Geografía hermenéutica, por círculos hermenéuticos, la apertura del autor por el mundo-en-el-ser y el
ser-en-el-mundo y, también, la obra por el mundo-del-obra y como una obra-del-mundo. Con eso, a
través de la geográfica y la historicidad, se estableció la obra de la experiencialidad. Se abre, por
tanto, desde la existencia geográfica khalduniana al ferviente trabajo de temas geográficos, sociales,
económicos e históricos. En este trabajo se centró, sobre todo, en su epistémica frente al presente y
repercutió en perspectivas geográficas naturales y humanas. Sobre todo, se prevé la apertura tanto
de la categoría Assabiya (‫)ع ران‬, sociabilidad, como del concepto de umran ( ‫) ع ب‬, sociedad. Entra,
por tanto, en un desvelamiento de una experiencia viajera y de fatigas en la escucha de una voz
longeva y generosa.

PALABRAS CLAVE: Pensamiento geográfico. Geografía del Oriente. Ontología. Circularidad.

INTRODUÇÃO

Suponhamos, por exemplo, que não tenha havido até nossa época a ciência
da geometria e tampouco da astronomia, e que um único homem, por si
mesmo, pretenda conhecer as dimensões dos corpos celestes e suas
formas, bem como as distâncias que os separam uns dos outros; ele seria
capaz disso (AVERRÓIS, 2005, p. 13).

À guisa de construção epistêmica tem-se, na geografia do Oriente, uma abertura de


múltiplas interpretações, isto é, tanto teórico-metodológicas quanto políticas; desse modo,
neste trabalho pensar-se-á na perspectiva existencial. A questão político-epistemológica,
contudo, complica-se quando se pensa que o próprio Oriente é uma construção não-oriental,
pois um “[...] investimento continuado criou o Orientalismo como um sistema de
conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciência
ocidental [...]” (SAID, 2007, p. 33). Com isso, muitos dos arquétipos orientais não condizem
com a real posição dessa cultura real, mas apenas à representação orientalizada, mitigando
ou até excluindo sua devida importância: um fundamento das artes, filosofias e ciências.
Ademais, quando inclusa, esquece-se do cotidiano de sua humildade: uma cultura com
movimento social coligado a indivíduos, famílias, trabalhos e religiões.
Há mais. Como toda cultura, há aqueles pensadores dispostos a refletir e, dentro de
suas possibilidades, são capazes de escrever e difundir seu pensamento. É nesse caminho
que instruí M. Gandhi (1982, p. 88) ao Oriente que o “[...] segredo da mensagem que esses
sábios homens do Oriente nos deixaram, se formos realmente dignos dessa grande
mensagem, a conquista do Ocidente será consumada. E será uma conquista que o próprio
Ocidente haverá de amar”. Nessa visão humanista, configura-se também uma atestação
política. Atenta-se mais afundo na questão do Ocidente, tendo em vista ser, o
conhecimento, uma construção em disputa e a região ocidental Ŕ no eixo europeu e anglo-
saxão Ŕ desvela um histórico vil frente a leituras que não a aluda. Assim denuncia Santos

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(1995, p. 328): “[...] o epistemícidio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu
sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar ou ilegalizar práticas e
grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista”. O percurso, pois, contra-
hegemônico é necessário, sendo que a perspectiva não necessita ser de apartar as
concepções hegemônicas, mas, ao contrário, congregá-las às demais, potencializá-las em
solidariedade: “des-hegemonizando-as”. Não se trata de trocar um enfoque por outro, mas
de conceber relações fortuitas na circularidade ontológico-dialética ao conhecimento.
Prossegue-se, nisso, uma orientação de compreensão, ao que diz Gomes (2019, p.
24): “O horizonte da hermenêutica abriria espaço para um conhecimento não-hierarquizado,
menos pretensioso em suas generalizações e mais atento às especificidades, pois não está
comprometido com uma ordem lógica, estável e geral. ”Lastreia-se, por conseguinte, pensar
no caminho hermenêutico para acessar à circularidade a centelha de Gadamer (2011, 2015)
e Heidegger (1995, 2015) ambos projetando o círculo como sustentáculo da compreensão
em sua noção ontológica, ao que“[...] tão vasto é o mundo-no-ser tanto quanto são as
possibilidades de ser-no-mundo” (LOPES, 2021a, p. 13). Compromete-se, assim, com a
ontologia, a própria abertura existencial, na seguinte proposição: “A espacialidade só pode
ser descoberta a partir do mundo e isso de tal maneira que o próprio espaço se mostra
também um constitutivo do mundo [...] no que respeita a sua constituição fundamental de
ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2015, p. 168). Com isso, imerso no Mundo oriental está o
Espaço oriental sendo, a espacialidade, o modo de ser desse segundo frente ao primeiro.
Confluir-se-á, como percurso existencial, a abertura de uma Geografia hermenêutica a
partir de Gadamer (2011, 2015) e Heidegger (1995, 2015) na compreensão de círculo
hermenêutico pela existência geográfica (ser-no-mundo e mundo-no-ser) através da
compreensão (mundo-da-obra e obra-do-mundo). Circulam-se: ser, mundo e obra. Nesse
caminho, visa-se ao embasamento ontológico das aberturas a serem construídas neste
trabalho que questiona a existência e suas criações.
Ainda, constrangem-se mais aberturas ao situar o espaço-tempo em sua
experiencialidade, assim, assente Besse (2014, p. 93) ao “[...] evocar uma geograficidade
originária do ser humano, que é, para o espaço, o par daquilo que a noção de historicidade
representa para a relação do homem com o tempo”. Esse excerto (de Besse), interpretativo
de Dardel (2011), cerceia a prefiguração da construção da existência geohistórica, pois a
relação do Homem e a Terra tem, como fruto, o Mundo que, de suas entranhas, permite que
o Universo seja alçado (LOPES, 2021a). De modo humanista, no caminho de Said (2011),
pensa-se anteposto à perspectiva determinada somente através da ideologia, classe ou
história econômica, mas contemplando que “[...] estão profundamente ligados à história de
suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em
diferentes graus” (SAID, 2011, p. 24). Tal assertiva contempla, pois, a questão da

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circularidade do mundo-no-ser e do ser-no-mundo aprofundada em uma concepção


histórico-geográfica de experiencialidade. Se assente, portanto, na geograficidade e
historicidade enquanto guias que situam a existência geográfica em sua experiencialidade
circular.
Encontram-se, deste modo, as fundamentações para, agora, com as devidas
considerações, fazer-se melhor a ponte de apresentação ao timbre magrebino de Ibn
Khaldun (732 A. M.- 806 A. M.) Ŕ (ou 1332 d.C. Ŕ 1406 d.C.). Esse será o ser humano
escutado neste trabalho. Dessarte, apenas com a apresentação de seu nome muito há
enunciado, de modo completo: “Abd‟ur-Ruhman Ibn Muhammad Ibn Khaldun” (do árabe: ‫ع ب‬
‫( )خ ل ون ب ن ح ب ن ال رح ن‬KHALDUN, 1958, p. 1). Utilizando o nome de família menos usado,
Khal, acrescentou dois títulos conexos, Ibn (que significa “filho de”) e dun (um aumentativo),
logo: o grande filho de Khal (KHALDUN, 1958, N.T.). Ele, e assim se concebe sua
importância, objetou seu mundo em sua obra e sua obra em seu mundo e desvelar esse
percurso marca a intenção deste estudo. De antemão, fala-se de um homem que
continuamente esteve ligado com os maiores redutos intelectuais Ŕ do Ocidente ao Oriente
da bacia mediterrânica Ŕ, ligado a uma família nobre que trabalhava para grandes impérios,
foi instruído por diversos professores desde a infância, tão logo assume cargos públicos que
a cada império que conheceu, elevava seu conhecimento, sabedoria, e com eles, poder.
Grande trabalhador houve poucos momentos para se dedicar à escrita, malgrado nas
centelhas produziu um generoso trabalho. Esse, o qual será a obra em abertura à
compreensão.
A maior construção filosófico-científica de Ibn Khaldun é sua obra intitulada “História
Universal”, de sete volumes. No entanto, sua fama é atribuída aos três tomos introdutórios,
chamados “Os Prolegômenos” (do árabe: ‫ ;خ ل ون اب ن‬lê-se: Muqaddimah); aqui
analisados pela tradução direta do árabe ao português (KHALDUN, 1958, 1959, 1960).
Permite-se, ainda, um subtítulo póstumo de “Filosofia social” que constitui bem os princípios
averiguados nos livros. Com mais critério, perscruta-se, como objeto da obra, a
compreensão da umran(do árabe: ‫)ع ران‬, conceito que “traduz a mesma ideia geral de
politeia de Aristóteles e abrange, ao mesmo tempo, diversos fenômenos sociais [...]:
Sociedade, Sociologia, Organização Política, Organização Social, Civilização etc.”
(KHALDUN, 1958, p. 105). Configurado o conceito supremo, perpassa-se na obra uma
construção que vai da metodologia às categorias de análise. A umran, pois, é o coração da
obra em suas intencionalidades de investigação, sendo esse conceito articulado a partir da
abertura contextual.
Ademais, há, na obra várias reverberações explicitamente geográficas e que permitem
uma projeção em especial a ser compreendida; sendo-as guia particular de perscrutação.

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Desse modo, antevê-se pertinente, na caracterização da obra, estabelecer que há diversos


caminhos já trilhados, isto é, por vezes em uma diversidade desmedida: para Lacoste (1991)
assemelha-se ao materialismo e para Serafim (1984) ao humanismo. Essa divergência, ao
que parece, produz-se como ecos de uma produção tão grandiosa que (voltando à
construção eurocêntrica do orientalismo) costuma-se ser pensada como algum traçado de
paralelo europeísta. Aqui, em outra posição, considera-se a perspectiva autônoma e
autêntica; o autor nele mesmo e a obra nela mesma, ou seja, guia-se pela hermenêutica e
pela fenomenologia, em uma mútua circularidade, rumo ao pensamento khalduniano.

EXISTÊNCIA KHALDUNIANA: MUNDO-NO-SER E SER-NO-MUNDO

Encarei com grande cuidado as questões condizentes com a matéria deste


livro de maneira a pôr meu trabalho ao alcance tanto dos eruditos como dos
homens do mundo [...]. Introduzindo-me pela porta das causas gerais no
estudo dos fatos particulares, consegui abarcar, numa narrativa
compreensível, a História do gênero humano (KHALDUN, 1958, p. 12 e 14).

Se o contexto e o autor relacionam-se de modo mútuo, compete perceber que a


passagem de Ser e Mundo circula sem prioridade de iniciativa de um perante o outro.
Acontece que: “A obra que faz parte da literatura universal ocupa seu lugar na consciência
de todos. Pertence ao „mundo‟. Ora, o mundo que uma obra de literatura universal atribui a
si mesma pode estar muito distante e afastado do mundo original ao qual a obra falou”
(GADAMER, 2015, p. 227). Portanto, o mundo-da-obra distingue-se da obra-do-mundo.
Disso, adentra-se na vivência autoral-contextual de Khaldun (1958, p. 481-553), em sua
“Autobiografia”, aberta em uma coligação de historicidade temporal e geograficidade
espacial. Abre-se, na Figura 1, a leitura de sua própria vida em lugares citados no decorrer
do mundo de sua obra, na abertura da obra de seu mundo. Sua compreensão do Mundo é
detalhada e, conscientemente, raciocinada, isto é, a pretensão é uma completude
interpretativa:

É preciso, pois, que o historiador conheça os princípios fundamentais da


arte de governar, o verdadeiro carácter dos acontecimentos, as diferenças
que apresentam as nações, os países e os tempos, no que diz respeito aos
costumes, aos usos, à conduta, às opiniões, aos sentimentos religiosos e a
todas circunstâncias que exercem qualquer influência sobre a sociedade
(KHALDUN, 1958, p. 67).

Conflui-se, então, em uma historicidade geográfica: a história geográfica construída


pela singularidade de cada “Eu geográfico” (LOPES, 2019). Pela autobiografia, além de
outras obras que a ratifica Ŕ sobretudo: Araújo (2007), Bissio (2012) e Lacoste (1991),
imagina-se um homem que trabalhou sua vida inteira e em diversos impérios de sua época

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e que conheceu uma vastidão de lugares que se tramam a formar seu mundo-no-ser. Ao
desnudar, poder-se-ia configurar uma linha corporal de deslocamento ao pertencimento dos
lugares citados. Ademais, convoca seu mundo-da-obra na verdade que a obra faz aparecer,
sendo que a contestação pode ocorrer enquanto obra-do-mundo. Nisso, integra-se em
Ricœur (2020, p. 53, destaque do autor): “[...] a tríade discurso-obra-escrita [...] que suporta
a problemática decisiva, a do projeto de um mundo, que eu chamo de mundo da obra, e
onde vejo o centro de gravidade da questão hermenêutica. [...] o deslocamento do problema
do texto em direção ao do mundo que ele abre.” Aqui se desvela a questão do mundo-no-
ser da existência khalduniana pela própria voz da obra que se abre de modo existencial
enquanto obra-do-mundo.

Figura 1 - Existência geográfica de Ibn Khaldun

Fonte: o próprio autor.

Cronogeograficamente marcam-se, assim, as cidades e o ano em que as deixou:


nasce (1332) em Túnis no império de Almoada (1354), vai para Fez Ŕ quando é preso,
inclusive torturado, por tentar trair o império Ŕ no império de Merídia (1362), parte a Granada
no Reino de Granada (1365), segue para Bugia Ŕ conhecendo Biskra os nômades Duaída Ŕ
(1372), volta à Fez na guerra contra Marrakesh (1374), volta a Granada (1375), vai ao
Taurzu como exílio em Calat Ibn Selama onde escreve “Os Prolegômenos” (1378), volta a
Túnis e deixa sua família em segurança (1382), viaja para Cairo Ŕ em 1384 sua família
inteira morre indo até ele Ŕ e, por fim, se torna Cádi, um juiz supremo, até sua morte (1406).
Ainda, enquanto Cádi viaja duas vezes do Cairo para Meca, a primeira do Sinai para Meca
passando por Cosair (1387) e a segunda Ŕ onde é preso pelo grande ditador mongol

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Tarmaleão Ŕ ao passar por Damasco (1891). Conforme o percurso de sua vida, nota-se que
as espacialidades evocavam aberturas, ora mais espaciosas, ora mais apinhadas (TUAN,
1983). A complexidade da historicidade geográfica é fática (pela existência geográfica) e
factível (pela corporalidade geográfica). Desse modo, entende-se um homem comum em
existência, assim como um homem individual em sua concretude na circularidade (Ser e
Mundo).
De modo a configurar o Espaço árabe, imerso ao Espaço oriental, deste mundo em
aberto, segue-se com Bissio (2012, p. 30) que “O domínio do Islã apresentava-se, dessa
forma, como um gigantesco corpo, enervado de rotas e pontilhados de vilas que, na Alta
Idade Média, ousavam empalidecer de inveja as da Europa”. Assim, a sociedade aportava
uma economia pujante de destaque para toda rede urbana entre territórios e regiões que
usufruíam da língua em comum para as trocas, tanto de bens materiais quanto imateriais.
Se assente, pois, ao que esta sociedade definia-se espacialmente por: “Consumidores e
área de trânsito ao mesmo tempo, os domínios muçulmanos viam passar e repassar
riquezas consideráveis, pagas com uma matéria-prima que eles detinham em quantidades
prodigiosas: o ouro” (BISSIO, 2012, p. 31). Assim, a riqueza do Oriente próximo é
irrevogável.
Também, a cultura religiosa alicerçava parcerias e amizades importantes às viagens
pelos impérios, sempre em crise Ŕ haja vista que pela poligamia as hierarquias eram sempre
uma problemática sucessória (LACOSTE, 1991). A literatura, nesse contexto, transpassava
o meio muçulmano com muita facilidade, a julgar por: “O processo de substituição da
tradição oral pela cultura escrita, a partir do século IX, foi acelerado pela introdução do papel
que os árabes conheceram através de seus contatos com a China. Em meados do século X,
a sociedade muçulmana já havia quase substituído o papiro” (BISSIO, 2012, p. 37).
Encanta-se de virtuosidades e fortunas; logo, Ibn Khaldun habitava em ser-no-mundo uma
espaciosidade plena e vigorosa, ainda que, em seu mundo-no-ser a espaciosidade ao
Magreb, no decorrer de sua vida, fecha-se em apinhamento ao que o Cairo se torna o
espacioso.
Pela riqueza dos lugares, a existência geográfica khalduniana permeou-se de virtudes
intelectuais, ocupando altos cargos públicos e cadeiras de professor. Ainda assim, averígua-
se que seu reduto familiar lhe trouxe grande sofrimento, perdera seus pais para a peste (em
abril de 1348) e em um naufrágio (em 1384) perde sua esposa e filhos: “[...] toda minha
família tinha embarcado num porto do Magrib para se juntar a mim; mas o navio soçobrou
numa tempestade e todos que iam nele pereceram. Assim, num só golpe, perdi para sempre
riqueza, felicidade e filhos” (KHALDUN, 1958, p. 543). A melancolia do Cairo opõe-se ao
ano anterior à tragédia, fato de momentos afortunados, isto, pois vislumbrava a cidade desta
forma:

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Em primeiro Dul‟-hijja (5 de fevereiro de 1383), fazia minha entrada na


metrópole do universo, o jardim do mundo, o formigueiro da espécie
humana, o pórtico do islamismo, o trono da realeza, cidade que regorgitava
de magníficos palacetes e castelos, ornada de conventos de dervixes e de
colégios, iluminada por iluminares de saber e estrelas de erudição. Em cada
margem do Nilo, estendia-se um paraíso; o curso de suas águas
desempenhava, aos olhos dos habitantes, o papel dos mananciais do céu,
que lhes proporcionavam com abundância frutas e mantimentos. Atravessei
as ruas da cidade atravancadas de uma azáfama de gente, e regorgitantes
de todas as delícias da vida (KHALDUN, 1958, p. 537).

Nesse campo da poeticidade experienciada, percebe-se Khaldun como um homem


deveras sensível, isto é, aberto a uma disposição criativa e contemplativa do mundo
circundante, entremeio da Terra ao Mundo (LOPES, 2021a). Dessarte, o terceiro tomo de
sua obra, Khaldun (1960) aprofunda-se na literatura, sobretudo na poesia, analisando seu
conhecimento de modo histórico com, ao menos, uma centena de nomes e trechos. A
exemplo poder-se-ia citar o Cego de Tudela, de nome Al-Tutilli (do século IX), um poeta
cego que, em apologia à Lua, proferiu para uma reunião de xeques em Sevilha: “[...] rindo,
ela mostra pérolas, levantando o véu, é a lua cheia que brilha. O mundo é muito pequeno
para contê-la; contudo, está encerrada dentro de meu coração” (AL-TUTILLI apud
KHALDUN, 1960, p. 425). Esse é um de muitos dos artistas existentes durante toda a
história oriental. A riqueza literária é incomparável, arrojada em virtuosidade, e muito há
ainda o que se conhecer sobre ela.
Como uma breve e necessária divagação, pontua-se que o conceito de “árabe” não
era utilizado para auto identificação, Ibn Khaldun (como era de costume de sua época) o
reservava para os nômades. De modo mais preciso, a expressão surge em uma coalisão de
500 a 800 cameleiros findando a Guerra de Carcá (853-853), um grupo tanto de nômades
quanto de sedentários, sendo esses conexos por um calendário lunar, as feiras de comércio
e, principalmente, pelo islamismo (DONNER, 2006). Igualmente, Ibn Khaldun identificava-se
como magrebino, com muita enfática; por exemplo, suas vestes típicas do Magreb foram
utilizadas inclusive em todos os seus anos no Cairo, construindo tanto simpatia quanto
aversão no coração das pessoas circundantes (BISSIO, 2012). Era, assim, enraizado na
espaciosidade do Magreb em seu mundo-no-ser, mesmo quando vivendo no Cairo na
experiência de apinhamento do Magreb em seu ser-no-mundo.
Enquanto cientista considerava-se um historiador, ainda que em sua obra perpassem
temáticas que transbordam o escopo de movimentos apenas históricos. Dito isso, mais que
um descritor também se engajava nos problemas de seu tempo, “[...] podemos afirmar que
os efeitos de problemas como inflação, fome, carestia e a força da oferta e da demanda são
todos fenômenos muito evidentes para Ibn Khaldun. Ele não só percebe como indica quais

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seriam as possíveis soluções” (CRISTI, 2017, p. 87). Sua preocupação transcorre do


mundo-no-ser ao ser-no-mundo, isto é, a sua experiência com o mundo fermentou em si o
desejo e a ação desejosa de melhorar a sociedade. Aqui, se apreende tanto seu
materialismo quanto seu humanismo, ou melhor, sua perspectiva khalduniana: apoiando-se
na existência social (Asabiya) e na sociedade existencial (umran). Marca-se, então, pelo
dizer de Hourani (2006, p. 18) que “[...] a vida de Ibn Khaldun, segundo sua própria
descrição, nos diz alguma coisa sobre o mundo que pertenceu. Era um mundo cheio de
lembranças da fragilidade da empresa humana”. Nisso, encontra-se a vinculação circular do
ser e do mundo.
Prossegue-se, pois, sua carestia mundana e sua leitura frutos da circularidade de ser-
no-mundo-no-ser para o mundo-no-ser-no-mundo. Dessarte, nesse passo, tem-se a partir da
concepção de círculos de afinidades Ŕ ao prumo conceitual de Berdoulay (2003, 2017) Ŕ as
escolas de sua época os: mutzalitas, asharitas, corporalistas e escolásticos (KHALDUN,
1960). Em vista disso, entende-se que a falsafa (filosofia em árabe), inicia-se,
enfaticamente, a partir do conto “O filósofo autodidata” de Tufayl (2005). Esse autor será
seguido por filósofos Ŕ na corrente asharita: como Al-Kindi (VERZA, 2015), Avicena
(ISKANDAR, 2011), Averróis (2005) e Al-Fārābī (2018). Em outra germinação, verificam-se
movimentos mais experiencialistas, sobretudo com Al-Ghazālī (2012), na corrente mutzalita,
deveras empirista. Enquanto crítico voraz aos asharitas, Lacoste (1991) concebe a Khaldun
uma maior filiação na segunda linha (mutzalita), sendo, inclusive, extremista dessa posição.
Quanto aos corporalistas e escolásticos, mais duas correntes das quatro teórico-jurídico-
teológicas, cabiam a estes empiricizar a divindade e àqueles sectarizá-la.
Ratificando a filiação de Khaldun ao mutzalismo, firma-se, segundo Senko (2012, p. 7),
que as “[...] concepções formuladas por Ibn Khaldun são também frutos de sua observação
da própria realidade em que vivia, ou seja, de seu contexto”. Desta forma, arraiga-se um
sentimento de angústia, haja vista o fato de ele viver em “[...] uma época que, diante de um
panorama de crises e instabilidades políticas, apresentava um sentimento nostálgico em
relação ao período de apogeu e conquistas da civilização muçulmana no passado” (SENKO,
2012, p. 7). Consoante a sua historicidade geográfica, como afirma Lévi-Provençal (1948, p.
20): “Ibn Khaldun teve diante de si uma verdadeira mina de documentos vivos”2 pelo
frequente contato com diversas populações “[...] das quais ele pôde ao seu gosto, e no
próprio habitar delas, registrar pessoalmente os princípios de economia social” 3, refletindo a
partir da exterioridade (ser-no-mundo) para gestão e produção de sua obra (ao mundo-da-
obra).

2
Tradução livre de: “d'une véritable mine de documents vivants”.
3
Tradução livre de: “dont il peut, a son gré et sur leur propre habitat, aller noter lui-mêmes les
principes d'economie sociale”.

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Geografia e Hermenêutica: Ibn Khaldun, por amor ao Magreb

Fecha-se essa seção no pensamento de que Ibn Khaldun existiu com um corpo, olhos,
cérebro, mãos etc., mas, mais que isso, refletiu e escreveu suas reflexões. Por conseguinte,
o mundo que construiu em sua percepção adere à circularidade do ser e do mundo em
mútua construção na circularidade de sua existência geográfica. Se nessa seção entendeu-
se melhor o Ser (pelo mundo-da-obra), a seguir destacar-se-ão as características de seu
Mundo (pela obra-do-mundo). Contempla-se, por fim, que Khaldun conheceu e soube
conhecer, logo, conhecedor, tornou-se sábio. Conhecer-se-á, pois, a sabedoria de sua obra.
Compreendida a abertura latente, nas concepções que cerceiam e circundam a obra,
prossegue-se rumo ao manifesto, no aparecimento da própria obra em si mesma.

APOLOGIA AO MANIFESTO: MUNDO-DA-OBRA E OBRA-DO-MUNDO

Pergunto: “Onde estão as ciências dos Persas, cujos escritos, na época da


Conquista, foram destruídos por ordem do Califa Oma? Que foi feito das
ciências dos Caldeus, dos Assírios, dos habitantes da Babilônia? Onde
estão os resultados e os vestígios deixados pelas ciências entre estes
povos? Onde estão a brilhante cultura dos Coptas e outras gerações de
eras mais remotas?” Há uma única nação, a dos Gregos, cujas produções
científicas estão em nosso poder, e isto, graças ao empenho d‟Al-Mamum,
que os mandou traduzir do idioma original (para o árabe). Este príncipe
pôde levar a cabo semelhante proeza, porque encontrou grande número de
tradutores e gastou muito dinheiro. Quanto aos outros povos, nada
conhecemos de suas ciências (KHALDUN, 1958, p. 95).

Para se adentrar na obra khalduniana, ou ainda, nas obras compiladas em sua


“História Universal” (VII tomos) e que “Os Prolegômenos” (III tomos primeiros) concebem a
maestria de sua concepção teórico-metodológica, afere-se pensar como Araújo (2007, p. 43)
“[...] que Ibn Khaldun estava inclinado a concentrar-se no fenômeno social. O centro de
gravidade em torno do qual fez suas reflexões foi fundamentado em suas próprias
experiências e direcionado para a etiologia do declínio”. Desse modo, tem-se um autor que
contemplava a experiência em seu aprendizado em proveito de seus raciocínios,
concebendo uma perspectiva autêntica com interesse na compreensão social; ou, mais
especificamente, na existência dos impérios. Sua preocupação é universal, haja vista ser, na
História, um fato aparente que os impérios nascem, desenvolvem, chegam ao apogeu,
declinam e, então, findam.
Há ainda mais. Quanto ao interesse da obra, projeta-se que “[...] Ibn Khaldun escolheu
a sociedade humana como objeto de estudo e esforçou-se em definir, da forma mais
objetiva possível, os fatos e a metodologia com os quais trabalharia” (BISSIO, 2012, p. 112).
Ademais, sabe-se que sua obra foi feita com um tempo de maturação, tomando um período
dedicado à reflexão Ŕ faculdade que, para ele, define o homem (KHALDUN, 1959) Ŕ, basta
ver que se retraiu: “[...] isolado na fortaleza de Qalat bin Salama, atual Argélia, para escrever

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a Muqaddimah, ele teria passado pelo menos dois anos concentrado na definição do que
seria o fio condutor da obra e na organização interna dela” (BISSIO, 2012, p. 112).
Contempla-se, pois, um autor não somente erudito, mas paciente de seu pensamento, que,
na sua experiência de criação, elaborava mentalmente seu texto para depois desvelá-lo no
papel. Malgrado sua obra-do-mundo apareceu de modo rápido, como diz Khaldun (1959, p.
458): “Eu acabei a composição desta primeira parte, encerrando os Prolegômenos, no
espaço de cinco meses, cujo último foi o que marca o meio do ano 779 [outubro de 1377].
Depois, comecei a pô-la em ordem e corrigi-la”. Assim surge a obra e, tão logo no mundo,
impacta na proporção da qualidade de abertura do escritor ao leitor.
Alude-se, neste momento, a uma necessidade de verificarem-se as reverberações
geográficas da obra, considerando-se serem, elas, basilares ao autor e influenciarem a
ciência geográfica. De prontidão, lança-se uma citação feita pelo pai da geografia francesa,
La Blache, em Princípios de geografia humana, demonstrando conhecer, ainda que de
forma indireta, o autor aqui estudado: “Não sejais como os Nabaths de Babilónia; quando
lhes perguntam donde vêm, eles respondem: de tal ou tal aldeia. Respondei: nós somos de
tal ou tal tribo” (KHALDUN apud LA BLACHE, 1954, p. 85). No contexto espano, tem-se
outra referência ao autor,feita por Ortega y Gasset, a qual demonstra um conhecimento
mais profundo sobre a monumentalidade da obra, definindoo autor como “[...] um africano
genial, de mente tão clara e tão polida de ideias como a de um grego” 4 (ORTEGA y
GASSET, 1927, p. 679). Ademais, ainda mais ilustre, assenta-se o livro Ibn Khaldun feito por
Lacoste (1991), de modo elogioso e profundo Ŕ tanto à vida quanto à obra Ŕ ao magrebino,
marcando a importância e relevância mesmo hoje das sentenças abertas na perscruta da
perspectiva khalduniana. Éinteressante, inclusive, mencionar que Lacoste tem o
sotaquekhalduniano em todas as suas obras em uma influência admitida (LACOSTE, 2016).
Enquanto reverberação ao estudo da história do pensamento geográfico, destacam-se dois
autores: primeiro Claval (2015) em seu livro História da Geografia, contemplando o autor
nesta concepção geohistórica:

Ibn Khaldun (1332-1406) é um pouco posterior, mas faz sua carreira numa
época em que o declínio do Islão árabe se acentua: nascido em Espanha,
viaja até o Médio Oriente e passa a maior parte da sua vida na Tunísia. Em
Os prolegômenos e História dos Bérberes propõe uma interpretação já
moderna de geo-história do Norte de África e inicia a reflexão geopolítica
(CLAVAL, 2015, p. 34).

Percebe-se, com atenção, o equívoco de situar o autor como nascido na Espanha,


quando, na verdade, em sua própria autobiografia alega ter seu nascimento em Túnis Ŕ gafe

4
Tradução livre de: “un africano genial, de mente tan clara y tan pulidora de ideias como la de un
griego”.

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também cometida por Lencione (1999). Toma-se por Khaldun (1958, p. 491): “Vi a luz em
Túnis no primeiro dia do mês de Ramadan do ano 372 (27 de maio de 1332 de J. C.) e fui
criado e educado sob as vistas de meu pai até a época de minha adolescência”. Sua origem
familiar de Andaluzia não o fazia se sentir menos magrebino, ademais, o amor ao Magreb foi
um dos responsáveis por sua obra, renegá-lo é deturpar a compreensão da obra.
Pois bem, o autor, Kimble (2005) em seu livro A Geografia na Idade Média, concebe
de modo muito elogioso o transpassar khalduniano na ciência geográfica, ao penetrar em
sua questão epistêmica teórico-metodológica:

Ibn Khaldun, um dos maiores filósofos, chegou até a formular uma teoria do
desenvolvimento histórico que informava sobre o clima e a topografia assim
como as forças morais e espirituais em ação. Nesse esforço em investigar
as leis do progresso nacional e sua decadência, Ibn Khaldun pode ser
considerado o descobridor Ŕ como ele mesmo afirma Ŕ do verdadeiro
campo e da real natureza da pesquisa geográfica (KIMBLE, 2005, p. 218).

Com isso, prospecta-se um autor que coincide seus estudos com os interesses paraa
ciência geográfica em seu mundo-da-obra, e, assim, percebe-se, cada vez mais, com uma
importante obra-do-mundo. Ainda, posicionam-se mais algumas circunstanciais menções
deste autor na geografia, tal como afirma Moreira (1985, p. 18) que “Ibn Khaldun [...] entre
outros, passam ao largo da geografia” e também Lencione (1999, p. 50) ao passo que “[...]
Ibn Khaldun contribuiu para a elaboração de um conhecimento geográfico que continha uma
visão cíclica da história”. Demonstra-se, assim, a noção deste autor frente a importantes
referências da geografia em várias áreas do conhecimento geográfico. Procede-se, pois,
pensar em um autor que é mais mencionado que perscrutado, isto é, trata-se muito mais de
uma menção de recorrência histórica, em todas as proposições (com exceção talvez a
Lacoste), do que um digno teórico com proposições universais válidas cientificamente,
inclusive, para a compreensão da sociedade atual.
Na abertura de sua obra, adensa-se em compreender a visão geográfica do próprio
magrebino, sendo-a desvelada tanto na geografia natural quanto na humana. De modo
inicial, tem-se na concepção terrena de Khaldun (1958, p. 111) um questionamento da visão
corrente: “[...] concluem, certas pessoas, do exposto, que a água se acha por baixo da
Terra, o que é um erro. O verdadeiro baixo da Terra é o ponto central de sua esfera, para o
qual tudo se dirige em razão da gravidade”. Com isso, concebe-se a leitura geofísica, em
uma descrição coerente com a posição contemporânea. Ainda acerca da Terra, sua obra
acompanha, ao final do primeiro tomo, uma análise do mundo conhecido a partir do mapa
de Al-Idrisi (1999) Ŕ sob inspiração e diretriz românica ptolomaica Ŕ, cuja divisão do mundo
é feita em VII climatas paralelas e X seções meridionais, firmando, para cada uma das

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setenta partes, uma longa analítica tanto natural quanto humana, ao passo de gastar quase
trezentas páginas nessa formidável compreensão de fomentação geográfica.
Ao seguir uma linha determinista geográfica, isto é, não em uma visão eurocêntrica,
semelhante a Montesquieu (1997), ou de forma mais complexa, ao difusionista spenceriano,
Ratzel (1990), os quais situavam os climas frios como mais frutíferos, de outro modo
embrenha Khaldun na concepção que climatas mais frias fundamentam sociedades mais
infelizes e mais quentes, felizes. Faz, inclusive, menção que sua região magrebina, por ser
cercada pela cordilheira dos Atlas, fazia-a ocupada por pessoas mais tristes (KHALDUN,
1958). Nessa óptica, como Meca é uma cidade do nascimento do Profeta Mohammad, há
um esforço de explicação climática para compreendê-la como mais quente o que força uma
verdadeira visão do fator de maritimidade. Dessa forma, menciona que a região da
Península Arábica: “[...] está circundada pelo mar por três lados, como já se disse, de modo
que a umidade deste elemento influi sobre a umidade do ar e diminui a secura extrema que
o calor produz. A umidade do mar, pois, estabelece nestes países uma espécie de
temperatura média” (KHALDUN, 1958, p. 129). Com isso, a explicação dos fatores
climáticos de continentalidade e maritimidade evoca mais uma presença geográfica na obra.
Em outra fomentação de Khaldun (1958), tem-se uma leitura geomorfológica e
hidrológica terrena deveras detalhada em preocupação, por exemplo, com as nascentes:
“Eis aí os mais célebres Mares que os Geógrafos mencionam. Esses dizem que a parte
habitável do mundo é regada por um grande número de rios, entre os quais os mais
notáveis são: o Nilo, o Eufrates, o Tigre, o Rio de Balkh, chamado Jaihun” (KHALDUN,
1958, p. 118). Com mais assertiva, localiza-se acerca da bacia egípcia: “O Nilo tem seu
nascedouro numa grande montanha situada a dezesseis graus além do Equador e sob o
Meridiano que atravessa a 4° parte do Primeiro Clima. É chamada de Montanha de Comr, e
não se conhece no mundo outra mais elevada” (KHALDUN, 1958, p. 118). Visa-se, então, à
compreensão tanto mais geral quanto específica de noções de geografia natural, sendo
constituídas de uma cientificidade intencionada, ainda que a partir de métodos distintos dos
contemporâneos.
Nas proposições, agora, mais ligadas a visões humanas e sociais, afere-se uma base
constituída pela Antiguidade Clássica grega, como Khaldun (1958, p. 156) expressa: “A
alma humana [...] é invisível aos sentidos, mas suas influências evidenciam-se no corpo.
Pode-se dizer que o corpo e suas partes, combinadas ou isoladas, são instrumentos postos
a serviço da alma e de suas faculdades”. Sua sistemática do conhecimento é composta por
essa dorsal da alma e suas faculdades. Por conseguinte, da individualidade da alma, tem-se
uma coletividade do espírito, ou melhor, a coligação das almas em um espírito de grupo
(Asabiya), categoria a qual explica o conceito de sociedade (umran). Sua formulação inicial
para se pensar uma filosofia social é a do percurso entre o nomadismo e o sedentarismo:

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“Temos dito da vida sedentária, que é posterior à vida errante dos Nômades, servindo-lhes
esta de tronco onde a Civilização nasceu e desabrochou. Pedimos ao leitor que medite
sobre a importância deste fato” (KHALDUN, 1958, p. 208). Esse pedido concede que a
diferença da mudança social seja fundamental, aos nômades o espírito de grupo é forte e,
conforme a sedentarização, dilui-se e esvai-se em desagregação da sociabilidade.
Nesse mote, erige-se pensar nas sociedades perscrutadas formando uma verdadeira
“colcha de retalhos” espaço-temporais. Revela-se, na Figura 2 Ŕ em adaptação ao
construído por Lacoste (1991), o qual se inspira na regionalização do próprio Ibn Khaldun,
sua cartograficidade, atenta-se que não corresponde às contemplações geopolíticas e
geoculturais contemporâneas: a exemplo, a Ifriqiya, para o autor, era marcada apenas como
a atual Tunísia Ŕ, a abertura de vários impérios, todos, sem exceção, surgiram e, posterior
as fases de ascensão e declínio, desapareceram. Ibn Khaldun percebeu essa dinâmica e
questionou-se sobre essa tão cíclica história universalizante dos impérios. Nesta Figura 2,
todos os impérios foram estudados pelo autor, contudo, atenta-se que muitos outros
também foram a base para sua teorização, do Ocidente ao Oriente.

Figura 2 - Ibn Khaldun situado no espaço-tempo

Fonte: o próprio autor.

Ao cotejar os impérios com a existência humana, entende-se que a humanidade os


desenvolve e os destrói: “Donde se conclui que os impérios, como os indivíduos, têm uma

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existência que lhes é própria; crescem, chegam à idade madura, depois declinam”
(KHALDUN, 1958, p. 306). De modo mais específico, em passagens mais detalhadas, o
autor perspectiva cinco fases: surgimento, ascensão, apogeu, declínio e desaparecimento.
Nesse marco a ciclicidade histórica demonstra uma interpretação factível ao percebido em
sua profusão no que concerne aos impérios de modo existencial.
Para a categorização da vida dos impérios, o autor fundamente-se em experiências
tanto indiretas quanto diretas e sua existência geográfica corresponde, nessa dualidade, à
prospecção. Segundo Tuan (1983, p. 6-7): “A experiência pode ser direta e íntima, ou pode
ser indireta e conceitual, mediada por símbolos. [...] Uma pessoa pode conhecer um lugar
tanto de modo íntimo como conceitual”. Constata-se, dessa forma, um autor cuja vivência
estabeleceu relações tanto com povos nômades quanto sedentários, inclusive com questões
intencionais formuladas para a compreensão social de modo predominantemente conceitual,
mas também íntimo. Nesse caminho, relata Khaldun (1960, p. 187): “Obtive estas
informações dos que entre eles interroguei”. Logo, tem-se uma experiencialidade do mundo-
no-ser (advindo do ser-no-mundo) resvalada no mundo-da-obra (transpassando uma obra-
do-mundo).
A preocupação reitera-se, assente para a umran e, prossegue, à Asabiya. Deste
modo, entende-se: “Ibn Khaldun argumenta que os fenômenos sociais parecem obedecer a
leis que, conquanto não sejam tão absolutas [...] são suficientemente constantes para fazer
os acontecimentos sociais seguir seus padrões e sequências populares e bem definidos”
(TEIXEIRA; PEREIRA; LIMA, 2021, p. 921). Conforme relatado, a obra do autor desvela-se
a partir do conceito de mundo-da-obra (RICŒUR, 1968, 2020) e, em circularidade de
abertura, impera uma autêntica obra-do-mundo: tanto de modo físico como livros em
circulação, quanto de proposição teórica sobre o próprio mundo que faz circular, junto com
sua materialidade, a imaterialidade que configura os pensamentos dos leitores e, em
serialidade, das reverberações téticas ou não-téticas da obra.
Aprofunda-se, pois que, nos termos khaldunianos, pela Asabiya, a própria
configuração da dinâmica da umran, ou seja, o espírito de grupo e suas diversas formas de
grupo existentes convoca à sociedade em suas transformações e mutabilidades. Na
perspectiva khalduniana, de forma sintética, tem-se a concepção de que: “No sedentarismo,
entende-se, não se precisa mais do outro tal como antes se necessitava. [...] Assim, o
coletivo torna-se indivíduo e de indivíduo o outro é estranhado e, por vezes, inferiorizado
frente a um „eu‟ que se percebe parte e não todo” (LOPES, 2021b, p. 77). Tão logo, tem-se
que na sociedade sedentária o Outro é muito mais indistinto, ou seja, prospecta um
individualismo, haja vista as relações sociais se destituírem de coesão. A Asabiya é a
coesão social Ŕ diversificada enquanto espírito de grupo conceituado em espírito de: partido,
dominação, submissão, amor à terra, luta etc. (KHALDUN, 1958, 1959, 1960) Ŕ, que a

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Geografia e Hermenêutica: Ibn Khaldun, por amor ao Magreb

depender da situação e do tipo de estabelecimento é reforçada ou pulverizada. Imperado o


sedentarismo, a luxúria e a avareza tomam conta, as relações (até conjugais) são diluídas, o
ser humano se arroga e, por fim, perde a noção de grupo.
Há mais, e contrastante. Somente pela sedentarização e pela individualidade
florescidas que as artes e as ciências são possíveis. Na espacialidade citadina, Khaldun
entende, a todo momento, que essa é a ressalva positiva para o enfraquecimento da
Asabiya, o conhecimento desenvolve-se pela solitude individualista dos intelectuais. Pode,
inclusive, sobretudo aberto no terceiro tomo, a Asabiya ser fortalecida pela produção da
arte, aos árabes, enfaticamente na poesia, pois ela congrega esse grupo em uma coesão
cultural (KHALDUN, 1960). Desse modo, ainda que seja ao autor muito negativo o
sedentarismo, há pontos de importante tessitura que essa conjuntura social permite evocar,
reescreve-se: artes e ciências. Essa abertura social revê a obra-do-mundo pela
complexidade intencionada do mundo humano através do mundo-da-obra.
Aprofunda-se, ao Khaldun, pensar no ser humano em seus atributos originários: é
nômade; e, nessa condição, a “sociabilidade” (Asabiya) é uma necessidade irrevogável. A
“sociedade” (umran) seria fruto dessa relação que tende ao sedentarismo. Logo, as relações
sedentárias são menos obstinadas, afinal, não se precisa mais do outro (para caça, pesca,
trabalho, segurança, defesa, guerra etc.) como antes se precisava e, assim, os indivíduos
aparecem na fraqueza de individualidade. O social é o coletivo do espírito de grupo, em um
conjunto concreto em espírito de corpo, no entanto, o indivíduo é a carência dessas relações
mútuas de pensamento comum, é antinatural ao humano. Dois são os resultados: o ser
humano individual tanto se arroga perante os outros, diluindo as relações sociais,
enfraquecendo-as, mas, individualizado, pode, só assim, malgrado pontualmente,
contemplar uma intelectualidade científica e artística.
No entanto, conforme a sociabilidade da sociedade enfraquece, a sociedade
desmonta-se e, novamente, as relações voltam a ser necessárias. O círculo khalduniano
fecha-se, ou seja, sua metodologia se concretiza e totaliza em uma conjuntura que admite
diversas escalas. Tanto, por exemplo, ao espírito de partido, com o fim do partido, há a
diluição do espírito de grupo e surgem indivíduos (arrogados), mas, com o tempo, as
relações novas surgem. Transpondo-se uma exemplificação, o espírito de partido permite
remontar a história da URSS e as esquerdas que, de seu apogeu, quebraram-se em
acalentos de diversos cacos de um antigo todo na perda do sentido de coesão. Em outro
exemplo, ao espírito de amor a terra, encontra-se uma questão fortuita de territorialidade Ŕ o
modo de ser territorial, defronte ao pertencimento político Ŕ, que convoca uma força de
sociabilidade de um coletivo territorial, mas, sem a terra, a Asabiya enfraquece e o grupo
desmancha-se. Por mais uma exemplificação, convoca o espírito de dominação a pensar

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que um grande dominador (um grande tirano) reforça uma Asabiya enquanto está presente,
em pontos que com a relação de múltiplas forças do espírito (somando partido, amor a terra,
dominação etc.) abre a compreensão originária dos fascismos. Enfim, entre infinitas
possibilidades de se apoiar na perspectiva khalduniana, marca-se uma virtuosa
universalidade para a categoria Asabiya (sociabilidade) que compreende o conceito de
umran (sociedade).
Contempladas as diversas facetas geográficas Ŕ naturais e humanas Ŕ que aportam a
obra khalduniana, há, ainda, algumas temáticas curiosas a serem apresentadas para fins
indicativos. Ao trânsito de cosmovisão, tem-se uma avaliação crítica do misticismo, por
exemplo, da astrologia, geomancia e hiçab na-nim (uma caballa da guerra, supostamente
ensinada por Aristóteles); no entanto, o magrebino é concordante com uma única
metodologia mística, a Zayarja Ŕ “Zayarja [...] em que em cada pergunta pode haver
trezentos e sessenta respostas” (KHALDUN, 1960, p. 203). Em outra orientação, enfatiza-se
uma maquinação axiológica: “No momento de ser criada, a alma nasce com a disposição de
receber impressões, boas ou más, que lhe podem sobrevir” (KHALDUN, 1958, p. 209).
Outra temática, muito bem delimitada, são as definições de cargos governamentais dentro
dos impérios: Imamato, Sultão, Muftti, Cádi, Chorta, Adala, Hisba, Sicca, Cherifs, Madhahim.
(KHALDUN, 1958, p. 336-420). Outros cargos existentes em outros impérios, além dos
árabessão pontuados e descritos: Cohen (Israel), Cheignes (Palestina), Baba (Egito),
Patriarca e Imperador (Roma). (KHALDUN, 1958, p. 421-428). Essas são as concepções
ideológicas das políticas de seu espaço e de seu tempo. Ainda, a temática do Estado vem à
tona enquanto configuração jurídica, amplamente descrita a partir de “[...] cinco pontos
essenciais a que se reduzem os motivos de todas as leis, a saber: a conservação da
religião, a da inteligência (do homem), a da vida, a da população e a da propriedade”
(KHALDUN, 1959, p. 104). Enfim, pode-se, ainda, mencionar ao terceiro tomo da obra
perscrutada uma analítica de centenas de autores poetas árabes em alguns séculos de
escritos com dezenas de excertos citados.
Ademais, destaca-se, no horizonte de construções, a face nada amistosa dos
muçulmanos frente aos não muçulmanos, opondo-se para com a visão orientalista de uma
pacificidade plena dos muçulmanos defronte a outras religiões. Assim, prossegue-se a
posição dita por Khaldun (1958, p. 428): “Todas as doutrinas são falsas, como declarou o
Alcorão. Não hemos que discutir ou argumentar com eles a este respeito; o que temos a
dar-lhes são três coisas: o islamismo, a capitação ou a morte”. É, nessa visão, normalmente
efetivada a capitação, que uma falsa leitura de harmonia islâmica é difundida aos ocidentais,
isto é, ignoram pensar que a tolerância tinha seu preço e, na recusa, os meios violentos
eram congregados.

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Enfim, aquém dessas, diversas temáticas, pontualmente situadas aqui, podem ser
desmembradas em trabalhos mais específicos, mas objetivou-se uma compreensão geral,
embora com um maior detalhamento à geografia da obra. Desse modo, a o mundo-da-obra
exige compreensão para que se percorra a perspectiva khalduniana como obra-do-mundo.
A entrada do mundo-no-ser do autor é caminho necessário para adentrar em seu ser-no-
mundo e, assim, melhor interpretar a configuração de sua obra. Na hermenêutica, conhecer
a que perguntas o autor possui respostas são as chaves da compreensão (GADAMER,
2015), desse modo, a questão mais enfática proposta em resposta por Khaldun é o que vem
a ser o social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chega-se, pois, à compreensão de que a vastidão temática khalduniana excede a


capacidade de aberturas em um trabalho de pretensão geral. Contudo, de modo a trilhar
uma correlação da fenomenologia-hermenêutica para com a hermenêutica-fenomenológica
tem-se a trilha de embasamento na circularidade dessas teorias e na concepção efetiva do
círculo hermenêutico. De modo ontológico, a fim de promover o ser-no-mundo e o mundo-
no-ser, configurou-se a leitura a conceber movimento para a existência geográfica, no caso
específico, para situar Ibn Khaldun. Nisso, edificou-se a profusão da obra “Os
Prolegômenos” no sentido da voz de sua verdade aberta pelo mundo-da-obra (primorosa em
questões da existência geográfica do autor) e da obra-do-mundo (inclusive, com grande
reverberação na ciência geográfica). Ademais, repercutiram-se circularidades hegemônicas
e contra-hegemônicas, isto é, desbaratina-se pensar enquanto dicotomias, mas em uma
fenomenologia da experiencialidade sintético-analítica.
Compenetrada a jornada perscrutada, assente-se a configuração de um estudo de um
autor, um humano, um homem, um corpo com consciência em memórias e intenções;
contudo, irrompendo a monotonia, esse ser concebeu uma obra. Relacionam-se, portanto,
seu ser e seu mundo e seu mundo com sua obra. Aparece, tão logo, a experiência de Ibn
Khaldun: preenchida com desastres em apinhamentos e fortunas em espaciosidades em
sua vida, ademais, em recorrentes momentos de estudos e outros de deslocamentos.
Assim, seu ser e sua obra foram ouvidos em si mesmos e para com o mundo de modo a
desvelarem um conhecimento rico de geograficidade e historicidade para a compreensão
social, através da categoria Asabiya e, sobretudo, do conceito de Umran. Entranha-se, pois,
em noções de grande capacidade argumentativa que desvendam o modo humano de
construção social, sobretudo através do nomadismo (de forte espírito de grupo) ao
sedentarismo (de fraco espírito de grupo, mas fértil para as artes e ciências) que propicia um

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Jahan N. D. Lopes

pensamento robusto e confrontante, sobretudo em linhames geográficos. Deliciou-se,


portanto, a projetar a compreensão de um autor de peso a ser refletido para cada vez mais,
espera-se, vir a Ser, sobretudo estudado.

REFERÊNCIAS

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ISSN 2447-1747 85
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ISSN 2447-1747 86
Jahan N. D. Lopes

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é resoluto de uma iniciação científica, pelo Programa Institucional de


Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), no período de 2020 e 2021, pelo Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Recebido: janeiro de 2022.


Aceito: março de 2022.

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ISSN 2447-1747 87

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