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COURS VINCENNES

24/01/1978

Hoje estamos fazendo uma pausa no nosso trabalho sobre a variação contínua,
fazendo um retorno provisório para uma sessão de história da filosofia, sobre
um ponto muito preciso. É como um corte, a pedido de alguns de vocês. Esse
ponto muito preciso diz respeito ao seguinte: o que é uma idéia e o que é um
afeto em Spinoza? Idéia e afeto em Spinoza. No decorrer de março, a pedido de
alguns de vocês, também faremos um corte sobre o problema da síntese e o
problema do tempo em Kant.

Voltar à história produz em mim um efeito curioso. Eu quase gostaria que


vocês tomassem esse pedaço de história da filosofia como não mais do que
uma história. Afinal, um filósofo não é somente alguém que inventa noções,
ele também inventa, talvez, maneiras de perceber. Vou proceder quase que por
enumeração. Antes de mais nada farei algumas observações terminológicas.
Suponho que a sala está relativamente misturada. Creio que, entre todos os
filósofos dos quais a história da filosofia nos fala, Spinoza está numa situação
muito excepcional: a maneira pela qual ele toca aqueles que entram em seus
livros não tem equivalente. Eu conto uma história, pouco importa que vocês o
tenham lido ou não. Começo com advertências terminológicas. No livro
principal de Spinoza, que se chama “Ética” e está escrito em latim,
encontramos duas palavras: “affectio” e “affectus”. Alguns tradutores, muito
estranhamente, traduzem-nas da mesma maneira. É uma catástrofe. Eles
traduzem os dois termos, affectio e affectus, por "afecção". Eu digo que é uma
catástrofe porque, quando um filósofo emprega duas palavras é que, por
princípio, ele tem uma razão, e além disso o francês fornece-nos facilmente as
duas palavras que correspondem rigorosamente a affectio e a affectus, que são
"affection" [afecção] para affectio e "affect" [afeto] para affectus. Alguns
tradutores traduzem affectio por afecção e affectus por sentimento, é melhor
do que traduzi-los pela mesma palavra, mas eu não vejo necessidade de
recorrer à palavra "sentimento" já que o francês dispõe da palavra "affect"
[afeto]. Assim, quando eu emprego a palavra "afeto" ela remete ao affectus de
Spinoza, e quando eu disser a palavra "afecção", ela remete a affectio.

Primeiro ponto: o que é uma idéia? O que é uma idéia, para que possamos
compreender mesmo as mais simples proposições de Spinoza. Sobre esse
ponto Spinoza não é original, ele irá tomar a palavra idéia no sentido em que
todo o mundo sempre a tomou. O que se chama idéia, no sentido em que todo
o mundo sempre a tomou na história da filosofia, é um modo de pensamento
que representa alguma coisa. Um modo de pensamento representativo. Por
exemplo, a idéia de triângulo é o modo de pensamento que representa o
triângulo. Sempre do ponto de vista da terminologia, é muito útil saber que
desde a Idade Média esse aspecto da idéia é chamado "realidade objetiva". Em
um texto do século XVII ou anterior, quando se encontra a realidade objetiva
da idéia, isso sempre quer dizer: a idéia encarada como representação de
alguma coisa. Diz-se da idéia, na medida em que ela representa alguma coisa,
que ela possui uma realidade objetiva. É a relação entre a idéia e o objeto que
ela representa.

Assim, parte-se de algo muito simples: a idéia é um modo de pensamento


definido pelo seu caráter representativo. Isso já nos dá um primeiro ponto de
partida para distinguir idéia e afeto (affectus), porque se chamará de afeto
todo modo de pensamento que não representa nada. O que isso quer dizer?
Tomem ao acaso o que qualquer um chama de afeto ou sentimento, uma
esperança por exemplo, uma angústia, um amor, isto não é representativo.
Certamente há uma idéia da coisa amada, há uma idéia de algo que é esperado,
mas a esperança enquanto tal ou o amor enquanto tal não representam nada,
estritamente nada. Todo modo de pensamento enquanto não representativo
será chamado de afeto. Uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu
queira alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu
quero é dado numa idéia, mas o fato de querer não é uma idéia, é um afeto,
porque é um modo de pensamento não representativo. Isso funciona? Não é
complicado.

Disso ele conclui imediatamente um primado da idéia sobre o afeto, e isso é


comum a todo o século XVII; nem mesmo entrou-se ainda naquilo que é
próprio a Spinoza. Há um primado da idéia sobre o afeto por uma razão muito
simples: para amar é preciso ter uma idéia, por mais confusa que seja, por
mais indeterminada que seja, daquilo que se ama. Para querer é preciso ter
uma idéia, por mais confusa e indeterminada que seja, daquilo que se quer.
Mesmo quando se diz "eu não sei o que eu sinto", há uma representação, por
mais confusa que seja, do objeto. Há uma idéia extremamente confusa. Existe
um primado ao mesmo tempo cronológico e lógico da idéia sobre o afeto, ou
seja, dos modos representativos do pensamento sobre os modos não
representativos. Haveria um contra-senso realmente desastroso se o leitor
transformasse esse primado lógico numa redução. Que o afeto pressuponha a
idéia, isso acima de tudo não quer dizer que ele se reduza à idéia ou a uma
combinação de idéias. Nós devemos partir disto, que idéia e afeto são duas
espécies de modos de pensamento que diferem em natureza, irredutíveis um
ao outro, porém simplesmente tomados numa tal relação que o afeto
pressupõe uma idéia, por mais confusa que seja. Esse é o primeiro ponto.

Segunda maneira menos superficial de apresentar a relação idéia-afeto. Vocês


se lembram que partimos de uma característica muito simples da idéia. A idéia
é um pensamento considerado como representativo, é um modo de
pensamento enquanto representativo, e nesse sentido se falará da realidade
objetiva de uma idéia. Só que uma idéia não tem somente uma realidade
objetiva, e igualmente de acordo com a terminologia consagrada, ela também
tem uma realidade formal. O que é a realidade formal da idéia, uma vez que se
disse que a realidade objetiva é a realidade da idéia considerada como
representando alguma coisa? Dir-se-á que a realidade formal da idéia - e então
isto se torna muito mais complicado e ao mesmo tempo mais interessante - é a
realidade da idéia considerada como sendo, ela mesma, alguma coisa.
A realidade objetiva da idéia de triângulo é a idéia de triângulo considerada
como representando a coisa triângulo, mas a idéia de triângulo é nela mesma
alguma coisa; aliás, na medida em que ela é alguma coisa, eu posso formar
uma idéia dessa coisa, eu posso sempre formar uma idéia da idéia. Eu direi
portanto que não apenas toda idéia é idéia de alguma coisa - dizer que toda
idéia é idéia de alguma coisa é dizer que toda idéia possui uma realidade
objetiva, que ela representa alguma coisa - mas eu direi também que a idéia
possui uma realidade formal, uma vez que ela é nela mesma alguma coisa
enquanto idéia.

O que isso quer dizer, a realidade formal da idéia? Não poderemos continuar
indo muito mais longe nesse nível, será preciso deixar isso de lado. É preciso
acrescentar apenas que essa realidade formal da idéia é o que Spinoza muito
freqüentemente chama de um certo grau de realidade ou de perfeição que a
idéia enquanto tal possui. Cada idéia possui, enquanto tal, um certo grau de
realidade ou de perfeição. Sem dúvida esse grau de realidade ou perfeição está
ligado ao objeto que ela representa, mas não se confunde com ele: a realidade
formal da idéia, a saber, a coisa que a idéia é ou o grau de realidade ou de
perfeição que ela possui em si, é seu caráter intrínseco. A realidade objetiva da
idéia, a saber, a relação da idéia com o objeto que ela representa, é seu caráter
extrínseco; pode ser que o caráter extrínseco e o caráter intrínseco da idéia
estejam fundamentalmente ligados, mas não é a mesma coisa. A idéia de Deus
e a idéia de rã possuem uma realidade objetiva diferente, a saber: elas não
representam a mesma coisa, mas ao mesmo tempo elas não têm a mesma
realidade intrínseca, elas não possuem a mesma realidade formal, a saber, que
uma - vocês sentem-no muito bem - possui um grau de realidade infinitamente
maior do que a outra. A idéia de Deus possui uma realidade formal, um grau
de realidade ou de perfeição intrínseca infinitamente maior do que a idéia de
rã, que é a idéia de uma coisa finita.

Se vocês compreenderam isso, vocês compreenderam quase tudo. Existe então


uma realidade formal da idéia, isto é, a idéia é alguma coisa nela mesma, essa
realidade formal é seu caráter intrínseco e é o grau de realidade ou de
perfeição que ela envolve nela mesma.

Há pouco, quando definia a idéia por sua realidade objetiva ou por seu caráter
representativo, eu opunha imediatamente a idéia ao afeto dizendo que o afeto
é precisamente um modo de pensamento que não possui caráter
representativo. Agora eu acabo de definir a idéia assim: toda idéia é alguma
coisa, não somente é idéia de alguma coisa mas é alguma coisa, ou seja, possui
um grau de realidade ou de perfeição que lhe é próprio. Portanto, é preciso
que, nesse segundo nível, eu descubra uma diferença fundamental entre idéia
e afeto. O que é que se passa concretamente na vida? Acontecem duas coisas...
E é curioso, aí, como Spinoza emprega um método geométrico, vocês sabem
que a Ética apresenta-se sob a forma de proposições, demonstrações, etc., e ao
mesmo tempo, quanto mais é matemático, mais é extraordinariamente
concreto. Tudo o que eu digo e todos estes comentários sobre idéia e afeto
remetem aos livros II e III da Ética. Nos livros dois e três, ele nos faz uma
espécie de retrato geométrico de nossa vida que, ao que me parece, é muito,
muito convincente. Esse retrato geométrico consiste em dizer-nos, grosso
modo, que nossas idéias se sucedem constantemente: uma idéia caça a outra,
uma idéia substitui outra idéia, por exemplo instantaneamente. Uma
percepção é um certo tipo de idéia, e logo veremos o porquê. Há pouco minha
cabeça estava voltada para aí, eu via tal canto da sala, eu me viro, é uma outra
idéia; eu passeio numa rua onde há pessoas conhecidas, eu digo "Bom-dia,
Pedro", depois me viro e então digo "Bom-dia, Paulo". Ou então são as coisas
que mudam: eu olho o sol, e o sol pouco a pouco desaparece e eu me encontro
em plena noite; trata-se pois de uma série de sucessões, de coexistências de
idéias, sucessões de idéias. Mas o que acontece além disso? Nossa vida
cotidiana não é feita apenas de idéias que se sucedem. Spinoza emprega o
termo "automaton"; nós somos, diz ele, autômatos espirituais, ou seja, é
preferível dizer que são as idéias que se afirmam em nós do que dizer que
somos nós que temos idéias. Mas o que acontece além dessa sucessão de
idéias? Existe outra coisa, a saber: alguma coisa em mim não cessa de variar.
Existe um regime de variação que não se confunde com a sucessão das
próprias idéias. "Variações", isso deve servir-nos para o que queremos fazer, é
uma lástima que ele não empregue essa palavra... O que é essa variação? Eu
retomo o meu exemplo: eu cruzo na rua com Pedro, com quem antipatizo, e
depois passo por ele, e digo "Bom-dia, Pedro", ou então sinto medo e depois,
subitamente, vejo Paulo, que é tremendamente encantador, e eu digo "Bom-
dia, Paulo", tranqüilizado e contente. Bem. O que acontece? Por um lado,
sucessão de duas idéias, idéia de Pedro e idéia de Paulo; mas há outra coisa:
também operou-se em mim uma variação - e aqui as palavras de Spinoza são
muito precisas, vou citá-las: "(variação) de minha força de existir", ou outra
palavra que ele emprega como sinônimo, "vis existendi", a força de existir, ou
"potentia agendi", a potência de agir - e essas variações são perpétuas.

Eu diria que para Spinoza há uma variação contínua - e é isso que “existir”
quer dizer - da força de existir ou da potência de agir. Como isso se conecta ao
meu exemplo estúpido, mas que é de Spinoza, "Bom-dia, Pedro", "Bom-dia,
Paulo"? Quando eu vejo Pedro, que me desagrada, uma idéia, a idéia de Pedro,
se dá em mim; quando eu vejo Paulo, que me agrada, a idéia de Paulo se dá em
mim. Cada uma dessas idéias possui, em relação a mim, um certo grau de
realidade ou de perfeição. Eu diria que a idéia de Paulo possui, em relação a
mim, mais perfeição intrínseca do que a idéia de Pedro, uma vez que a idéia de
Paulo me contenta e a idéia de Pedro me desagrada. Quando a idéia de Paulo
se sucede à idéia de Pedro, convém dizer que minha força de existir ou que
minha potência de agir é aumentada ou favorecida; quando, ao contrário, se dá
o inverso, quando após ter visto alguém que me deixava alegre eu vejo alguém
que me deixa triste, eu digo que minha potência de agir é inibida ou impedida.
Nesse nível, já não sabemos mais se ainda estamos lidando com convenções
terminológicas ou se já estamos lidando com algo muito mais concreto.

Eu diria portanto que à medida que as idéias se sucedem em nós, cada qual
tendo seu grau de perfeição, seu grau de realidade ou de perfeição intrínseca,
aquele que tem essas idéias não pára de passar de um grau de perfeição a
outro; em outras palavras, há uma variação contínua, sob a forma de aumento-
diminuição-aumento-diminuição, da potência de agir ou da força de existir de
alguém de acordo com as idéias que ele tem. Sintam como, através desse
exercício penoso, aflora a beleza. Já não é nada má essa representação da
existência, é verdadeiramente a existência nas ruas, é preciso imaginar
Spinoza passeando, e ele vive verdadeiramente a existência como essa espécie
de variação contínua: à medida que uma idéia substitui outra, eu não cesso de
passar de um grau de perfeição a outro, mesmo que [a diferença] seja
minúscula, e é essa espécie de linha melódica da variação contínua que irá
definir o afeto [affectus] ao mesmo tempo na sua correlação com as idéias e em
sua diferença de natureza com as idéias. Compreender essa diferença de
natureza e essa correlação. Cabe a vocês dizer se isso convém a vocês ou não.
Todos nós temos [agora] uma definição mais sólida do affectus; o affectus em
Spinoza é a variação (é ele quem fala pela minha boca; ele não chegou a dizê-lo
porque morreu jovem demais...), é a variação contínua da força de existir na
medida em que essa variação é determinada pelas idéias que se tem. Assim,
num texto muito importante do fim do livro III, cujo título é "Definição geral
dos afetos", Spinoza nos diz: sobretudo não creiam que o affectus, tal como eu
o concebo, depende de uma comparação entre as idéias. Ele quer dizer que a
idéia pode muito bem ser primeira em relação ao afeto, mas idéia e afeto são
duas coisas de natureza diferente; o afeto não se reduz a uma comparação
intelectual das idéias, o afeto é constituído pela transição vivida ou pela
passagem vivida de um grau de perfeição a outro, na medida em que essa
passagem é determinada pelas idéias; porém em si mesmo ele não consiste em
uma idéia, ele constitui o afeto.

Quando eu passo da idéia de Pedro à idéia de Paulo, eu digo que minha


potência de agir é aumentada; quando eu passo da idéia de Paulo à idéia de
Pedro, eu digo que minha potência de agir é diminuída. Isso equivale a dizer
que quando eu vejo Pedro, sou afetado de tristeza; quando eu vejo Paulo, sou
afetado de alegria. E sobre essa linha melódica de variação contínua
constituída pelo afeto, Spinoza irá determinar dois pólos, alegria-tristeza, que
serão para ele as paixões fundamentais: a tristeza será toda paixão, não
importa qual, que envolva uma diminuição de minha potência de agir, e a
alegria será toda paixão envolvendo um aumento de minha potência de agir.
Isso permitirá que Spinoza, por exemplo, realize uma abertura em direção a
um problema moral e político muito fundamental, que será sua própria
maneira de estabelecer o problema político: como acontece que as pessoas que
têm o poder, não importa em que domínio, tenham necessidade de afetar-nos
de uma maneira triste? As paixões tristes como necessárias: inspirar paixões
tristes é necessário ao exercício do poder. E Spinoza diz, no “Tratado
teológico-político”, que esse é o laço profundo entre o déspota e o sacerdote:
eles têm necessidade da tristeza de seus súditos. Aqui, vocês compreenderão
com facilidade que ele não toma "tristeza" num sentido vago, ele toma
"tristeza" no sentido rigoroso que ele soube lhe dar: a tristeza é o afeto
considerado como envolvendo a diminuição da potência de agir.

Quando eu dizia, na minha primeira distinção idéia-afeto, que o afeto é o


modo de pensamento que não representa nada, eu diria em termos técnicos
que se tratava de uma simples definição nominal, ou, se preferirem, exterior,
extrínseca. Na segunda distinção, quando eu digo que a idéia é aquilo que
possui em si uma realidade intrínseca, e que o afeto é a variação contínua ou a
passagem de um grau de realidade a outro, ou de um grau de perfeição a outro,
nós já não estamos no terreno das definições ditas nominais, nós já temos aí
uma definição real, chamando de definição real a definição que, ao mesmo
tempo em que define a coisa, mostra a possibilidade dessa coisa.

O que é importante é que vocês percebam como, segundo Spinoza, nós somos
fabricados como autômatos espirituais. Enquanto autômatos espirituais, há o
tempo todo idéias que se sucedem em nós, e de acordo com essa sucessão de
idéias, nossa potência de agir ou nossa força de existir é aumentada ou é
diminuída de uma maneira contínua, sobre uma linha contínua, e é isso que
nós chamamos afeto [affectus], é isso que nós chamamos existir.

O affectus é portanto a variação contínua da força de existir de alguém, na


medida em que essa variação é determinada pelas idéias que ele tem. Porém,
ainda uma vez, "determinada" não quer dizer que a variação se reduza às
idéias que ele tem, uma vez que a idéia que eu tenho só dá conta de sua
conseqüência, a saber, que ela aumente minha potência de agir ou ao contrário
a diminua em relação à idéia que eu tinha imediatamente antes, e não se trata
de uma comparação, trata-se de uma espécie de deslizamento, de queda ou de
elevação da potência de agir. Nenhum problema? Nenhuma questão?

Para Spinoza existem três tipos de idéias. Por enquanto, não falaremos mais
do affectus, do afeto, pois com efeito o afeto é determinado pelas idéias que
temos, ele não se reduz às idéias que temos, mas é determinado pelas idéias
que temos; portanto, o que é essencial é ver quais são essas idéias que
determinam os afetos, embora mantendo presente em nosso espírito que o
afeto não se reduz às idéias que se tem, e é absolutamente irredutível a elas.
Ele é de outra ordem.

Entre as três espécies de idéias que Spinoza distingue estão as idéias-afecções,


affectio; veremos que o affectio, contrariamente ao affectus, é um certo tipo de
idéias. Em primeiro lugar, portanto, haveria as idéias-afecctio, em segundo
lugar nós chegamos a formar também idéias que Spinoza chama de noções, e
em terceiro lugar, para muito poucos entre nós, pois é extremamente difícil,
chegamos a formar idéias de essências. Antes de mais nada, pois, são três tipos
de idéias.

O que é uma afecção (affectio)? Eu vejo vocês literalmente abaixando os


olhos... E no entanto tudo isto é, ao contrário, divertido. À primeira vista, se
nos atemos ao texto de Spinoza, ela não tem nada a ver com uma idéia, mas
tampouco tem a ver com um afeto. Tínhamos determinado o afeto [affectus]
como a variação da potência de agir. E uma afecção, o que é? Numa primeira
determinação, a afecção é isto: é o estado de um corpo considerado como
sofrendo a ação de um outro corpo. O que isso quer dizer? "Eu sinto o sol
sobre mim", ou então, "um raio de sol pousa sobre você": é uma afecção do seu
corpo. O que é uma afecção do seu corpo? Não o sol, mas a ação do sol ou o
efeito do sol sobre você. Em outros termos, um efeito, ou a ação que um corpo
produz sobre outro - note-se que Spinoza, por razões decorrentes de sua física,
não acredita em uma ação à distância: a ação implica sempre um contato - é
uma mistura de corpos. A afecção [affectio] é uma mistura de dois corpos, um
corpo que se diz agir sobre outro, e um corpo que recolhe o traço do primeiro.
Toda mistura de corpos será chamada de afecção.

Spinoza conclui a partir disso que a afecção [affectio], sendo definida como
uma mistura de corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza do
corpo afeccionado [affectionné] ou afetado [affecté]; a afecção indica muito
mais a natureza do corpo afetado do que a natureza do corpo afetante. Ele
analisa seu exemplo célebre, "quando nós olhamos o sol, nós imaginamos que
sua distância em relação a nós é de cerca de duzentos pés". [Livro II,
Proposição 35, Escólio]. Isso é uma affectio ou, ao menos, é a percepção de
uma affectio. Está claro que minha percepção do sol indica muito mais a
constituição de meu corpo, a maneira pela qual meu corpo está constituído, do
que a maneira pela qual o sol está constituído. Assim, eu percebo o sol em
virtude do estado de minhas percepções visuais. Uma mosca perceberá o sol de
maneira diferente.

Para preservar o rigor de sua terminologia, Spinoza dirá que uma affectio
indica mais a natureza do corpo modificado do que a natureza do corpo
modificante, e que ela envolve a natureza do corpo modificante. Eu diria que
para Spinoza o primeiro tipo de idéia é todo modo de pensamento que
representa uma afecção do corpo; ou seja, a mistura de um corpo com outro,
ou então o traço de um outro corpo sobre meu corpo será chamado idéia de
afecção. É nesse sentido que se poderá dizer que o primeiro tipo de idéias é a
idéia-afecção. E esse primeiro tipo de idéias corresponde ao que Spinoza
chama de primeiro gênero de conhecimento. É o mais baixo. Porque é o mais
baixo? É óbvio que é o mais baixo porque essas idéias de afecção só conhecem
a coisa pelos seus efeitos: eu sinto a afecção do sol sobre mim, o traço do sol
sobre mim. É o efeito do sol sobre meu corpo. Porém as causas, a saber, o que
é meu corpo, o que é o corpo do sol, e a relação entre esses dois corpos de tal
maneira que um produza sobre o outro um determinado efeito ao invés de
produzir outra coisa, sobre isso eu não sei absolutamente nada. Tomemos um
outro exemplo: "o sol faz a cera fundir-se e faz a argila endurecer." Isso não é
nada. São idéias de affectio. Eu vejo a cera que escorre, e bem ao seu lado vejo
a argila que endurece; é uma afecção da cera e uma afecção da argila, e eu
tenho uma idéia dessas afecções, eu percebo efeitos. Em virtude de que
constituição corporal a argila endurece sob a ação do sol? Enquanto eu
permanecer na percepção da afecção, nada saberei a seu respeito. Dir-se-á que
as idéias-afecções são representações de efeitos sem suas causas, e é
precisamente isso que Spinoza chama de idéias inadequadas. São idéias de
mistura separadas das causas da mistura.

Assim, que nós só tenhamos, no nível das idéias-afecções, idéias inadequadas e


confusas, isso é perfeitamente compreensível, pois afinal o que são as idéias-
afecções na ordem da vida? E sem dúvida, muitos entre nós, que não se
dedicam o bastante à filosofia, infelizmente vivem assim.

Uma vez, uma única vez, Spinoza utiliza uma palavra latina muito estranha
porém muito importante, que é "occursus". Literalmente, é o "encontro". Na
medida em que tenho idéias-afecções, eu vivo ao acaso dos encontros: eu
passeio na rua, vejo Pedro que não me agrada, e isso em função da constituição
do seu corpo e da sua alma e da constituição do meu corpo e da minha alma.
Alguém que me desagrada, corpo e alma, o que isso quer dizer? Eu gostaria de
fazê-los compreender porque Spinoza teve, notadamente, uma reputação
muito forte de materialista apesar de falar o tempo todo do espírito e da alma,
e uma reputação de ateu apesar de falar o tempo todo de Deus: é bastante
curioso. Percebe-se com facilidade porque as pessoas diziam que é puro
materialismo. Quando eu digo: aquele tipo não me agrada, isso quer dizer
literalmente que o efeito do seu corpo sobre o meu, que o efeito de sua alma
sobre a minha, me afeta de maneira desagradável, são misturas de corpos ou
misturas de almas. Há uma mistura nociva ou uma boa mistura, tanto no nível
do corpo quanto no da alma. É exatamente como: "Eu não gosto de queijo." O
que isso quer dizer? "Eu não gosto de queijo": isso quer dizer que o queijo se
mistura com o meu corpo de tal modo que eu sou modificado de maneira
desagradável, não quer dizer nada além disso. Portanto não há nenhuma razão
para estabelecer diferenças entre simpatias espirituais e relações corporais.
"Eu não gosto de queijo" também diz respeito à alma, e "Pedro (ou Paulo) não
me agrada" também diz respeito ao corpo, é tudo a mesma coisa.
Simplesmente, por que essa idéia-afecção, essa mistura, é uma idéia confusa?
Ela é forçosamente confusa e inadequada porque eu absolutamente não sei,
nesse nível, em virtude de que e como o corpo ou a alma de Pedro são
constituídos, de tal maneira que sua alma não convém à minha, ou de tal
maneira que seu corpo não convém ao meu. Eu posso apenas dizer que isso
não convém, mas em virtude de que constituição dos dois corpos, do corpo que
afeta e do corpo que é afetado, do corpo que age e do corpo que padece, nesse
nível eu não sei rigorosamente nada. Como diz Spinoza, são conseqüências
separadas de suas premissas, ou, se preferirem, é um conhecimento dos efeitos
independente do conhecimento das causas. É portanto ao acaso dos encontros.
O que é que pode acontecer ao acaso dos encontros?

Mas o que é um corpo? Esse seria o objeto de um curso específico, e eu não vou
desenvolvê-lo. A teoria sobre o que é um corpo, ou então uma alma, dá no
mesmo, encontra-se no livro II da Ética. Para Spinoza, a individualidade de
um corpo se define assim: é quando uma relação composta ou complexa (eu
insisto nisso, muito composta, muito complexa) de movimento e de repouso se
mantém através de todas as mudanças que afetam as partes desse corpo. É a
permanência de uma relação de movimento e de repouso através de todas as
mudanças que afetam todas as partes, ao infinito, do corpo considerado. Vocês
compreendem que um corpo é necessariamente composto ao infinito. Meu
olho, por exemplo, meu olho e a relativa constância de meu olho, se define por
uma certa relação de movimento e de repouso através de todas as modificações
das diversas partes do meu olho; mas meu próprio olho, que já tem uma
infinidade de partes, é uma parte entre as partes do meu corpo, ele é uma
parte do rosto, e o rosto, por sua vez, é uma parte do meu corpo, etc. Portanto
vocês têm todos os tipos de relações que irão se compor umas com as outras
para formar uma individualidade deste ou daquele grau. Mas em cada um
desses níveis ou graus, a individualidade será definida por uma certa relação
composta de movimento e de repouso.

O que pode acontecer se meu corpo é feito desse modo, uma certa relação de
movimento e de repouso que subsume uma infinidade de partes? Podem
acontecer duas coisas: eu como alguma coisa que eu adoro, ou então, outro
exemplo, eu como alguma coisa e caio envenenado. Literalmente, em um caso
eu fiz um bom encontro, e no outro, fiz um mau encontro. Tudo isso refere-se à
categoria do "occursus". Quando eu faço uma mau encontro, isso quer dizer
que o corpo que se mistura com o meu destrói minha relação constitutiva, ou
tende a destruir uma de minhas relações subordinadas. Por exemplo, eu como
alguma coisa e tenho dor de barriga, e isso não me mata; mas isso destruiu ou
inibiu, comprometeu uma das minhas sub-relações, uma das relações que me
compõe. Depois eu como alguma coisa e morro: nesse caso, isso decompôs
minha relação composta, decompôs a relação complexa que definia minha
individualidade. Isso não destruiu simplesmente uma das minhas relações
subordinadas que compunha uma de minhas sub-individualidades, isso
destruiu a relação característica do meu corpo. Quando eu como alguma coisa
que me convém, se dá o inverso.

"O que é o mal?", pergunta Spinoza. Encontra-se esse tema na


correspondência; são cartas que ele envia a um jovem holandês extremamente
maldoso. Esse holandês não gostava de Spinoza e o atacava constantemente,
perguntando-lhe: "Diga-me o que é, para você, o mal." Vocês sabem que,
naquela época, as cartas eram algo muito importante, e os filósofos enviavam
muitas cartas. Spinoza, que era muito gentil, acreditava inicialmente que se
tratava de um jovem que queria instruir-se, e pouco a pouco compreendeu que
não era nada disso, que o holandês queria sua pele. A cólera de Blyenbergh,
que era um bom cristão, vai inchando de carta em carta, e ele termina por
dizer-lhe: "Mas você é o diabo!" Spinoza diz que o mal, isso não é difícil, o mal
é um mau encontro. Encontrar um corpo que se mistura mal com o seu.
Misturar-se mal quer dizer misturar-se em condições tais que uma das suas
relações subordinadas ou sua relação constituinte é ameaçada, comprometida
ou mesmo destruída.

Cada vez mais alegre, querendo mostrar que tem razão, Spinoza analisa à sua
maneira o exemplo de Adão. Nas condições em que vivemos, nós parecemos
condenados a ter um único tipo de idéias, as idéias-afecções. Por meio de que
milagre seria possível escapar dessas ações de corpos que não aguardaram por
nós para existir, como poderíamos nos elevar a um conhecimento das causas?
Por enquanto, o que vemos é que estamos condenados ao acaso dos encontros
desde que nascemos, e isso não nos leva muito longe. O que isso implica?
Implica uma reação furiosa contra Descartes, pois Spinoza afirmará com muita
força, no livro II, que nós não podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos
exteriores senão pelas afecções que os corpos exteriores produzem sobre o
nosso. Para aqueles que se lembram um pouco de Descartes, trata-se da
proposição anticartesiana de base, uma vez que exclui completamente a
apreensão da coisa pensante por si mesma, ou seja, exclui completamente a
possibilidade do cogito. Eu só conheço as misturas de corpos, e só conheço a
mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas. Isso é não
somente anticartesianismo, mas também anticristianismo. Por quê? Porque
um dos pontos fundamentais da teologia é a perfeição imediata do primeiro
homem criado, o que recebe o nome, em teologia, de teoria da perfeição
adâmica. Adão, antes de pecar, é criado tão perfeito quanto possível, e depois
há a história do pecado que é precisamente a história da queda, mas a queda
pressupõe um Adão perfeito enquanto criatura. Essa idéia parece, para
Spinoza, muito engraçada; para ele, isso não é possível. Supondo-se dada a
idéia de um primeiro homem, ela só pode ser dada como idéia do ser mais
impotente, do ser mais imperfeito possível, já que o primeiro homem só pode
existir ao acaso dos encontros e das ações dos outros corpos sobre si mesmo.
Portanto, supondo-se que Adão exista, ele existe num modo de absoluta
imperfeição e inadequação, ele existe à maneira de um pequeno bebê que está
entregue ao acaso dos encontros, a menos que esteja num ambiente protegido,
porém aqui eu falei demais... O que seria um ambiente protegido?

O mal é um mau encontro. O que isso quer dizer? Spinoza, na sua


correspondência com o holandês, lhe diz: "Você se refere o tempo todo ao
exemplo de Deus que proibiu Adão de comer a maçã, e cita isso como exemplo
de uma lei moral: a primeira interdição." "Mas isso não é de modo algum o que
acontece", diz Spinoza, retomando toda a história de Adão sob a forma de um
envenenamento e de uma intoxicação. O que acontece na realidade? Deus
jamais proibiu nada a Adão, ele lhe concedeu uma revelação. Ele o preveniu
sobre o efeito nocivo que o corpo da maçã teria sobre a constituição do corpo
de Adão. Em outras palavras, a maçã é um veneno para Adão. O corpo da maçã
existe sob uma tal relação característica que ela só pode agir sobre o corpo de
Adão, tal e qual ele é constituído, decompondo a relação característica do
corpo de Adão. E se ele errou ao não escutar Deus, não é no sentido de que ele
o teria desobedecido, é porque ele nada compreendeu. Isso também existe
entre os animais, alguns possuem um instinto que os desvia do que é veneno
para eles, e existem outros que, quanto a isso, não possuem esse instinto.

Quando eu faço um encontro de modo que a relação do corpo que me


modifica, que age sobre mim, combina-se com minha própria relação, com a
relação característica do meu próprio corpo, o que é que acontece? Eu diria
que minha potência de agir é aumentada; ela é aumentada ao menos sob
aquela relação. Quando, ao contrário, eu faço um encontro de modo que a
relação característica do corpo que me modifica compromete ou destrói uma
de minhas relações, ou minha relação característica, eu diria que minha
potência de agir é diminuída, ou mesmo destruída. Nós voltamos a encontrar
aqui nossos dois afetos - affectus - fundamentais: a tristeza e a alegria.

Para reagrupar tudo nesse nível, em função das idéias de afecção que eu tenho,
há dois tipos de idéias de afecção: a idéia de um efeito que se concilia ou
favorece minha própria relação característica, e a idéia de um efeito que
compromete ou destrói minha própria relação característica. A esses dois tipos
de idéias de afecção irão corresponder os dois movimentos de variação do
affectus, os dois pólos da variação: em um caso minha potência de agir é
aumentada e eu experimento um affectus de alegria, no outro caso minha
potência de agir é diminuída e eu experimento um affectus de tristeza. E todas
as paixões, em seus detalhes, Spinoza irá engendrá-las a partir desses dois
afetos fundamentais: a alegria como aumento da potência de agir, a tristeza
como diminuição ou destruição da potência de agir. Isso equivale a dizer que
cada coisa, corpo ou alma, se define por uma certa relação característica,
complexa, mas eu também poderia dizer que cada coisa, corpo ou alma, se
define por um certo poder de ser afetado. Se vocês considerarem os animais,
Spinoza nos dirá com muita força que aquilo que importa nos animais não são
os gêneros e as espécies; os gêneros e as espécies são noções absolutamente
confusas, são idéias abstratas. O que importa é: de que um corpo é capaz? E
aqui ele lança uma das questões mais fundamentais de toda a sua filosofia
(antes dele houve Hobbes e outros) dizendo que a única questão está em não
sabermos sequer de que um corpo é capaz, nós tagarelamos sobre a alma e
sobre o espírito e não sabemos o que pode um corpo. Ora, um corpo deve ser
definido pelo conjunto das relações que o compõe, ou, o que dá exatamente no
mesmo, pelo seu poder de ser afetado. E enquanto vocês não souberem qual é
o poder de ser afetado de um corpo, enquanto vocês o aprenderem assim, ao
acaso dos encontros, vocês não estarão de posse da vida sábia, não estarão de
posse da sabedoria.
Saber de que vocês são capazes. Não como questão moral, mas antes de mais
nada como questão física, como questão dirigida ao corpo e à alma. Um corpo
possui algo fundamentalmente oculto: pode-se falar da espécie humana, do
gênero humano, mas isso não nos dirá o que é capaz de afetar nosso corpo, o
que é capaz de destruí-lo. Esse poder de ser afetado é a única questão. O que
distingue uma rã de um macaco? Não são caracteres específicos ou genéricos,
diz Spinoza, mas o fato de que eles não são capazes das mesmas afecções.
Assim, seria preciso fazer, para cada animal, verdadeiros mapas de afetos, os
afetos dos quais um bicho é capaz. Para os homens é a mesma coisa: os afetos
dos quais determinado homem é capaz. Nesse momento percebe-se que,
segundo as culturas, segundo as sociedades, os homens não são capazes dos
mesmos afetos. É bem conhecido o método pelo qual certos governos
liquidaram os índios da América do Sul, que foi deixar nos caminhos usados
pelos índios roupas de pessoas gripadas, roupas tomadas nos dispensários,
porque os índios não suportam o afeto gripe. Nem era necessário usar uma
metralhadora, eles caíam como moscas. E é óbvio que nós, nas condições de
vida da floresta, nos arriscamos a não viver muito tempo. Portanto, gênero
humano, espécie humana ou mesmo raça, Spinoza dirá que isso não tem
nenhuma importância enquanto não se fizer a lista dos afetos dos quais
alguém é capaz, no sentido mais forte da palavra capaz, compreendidas aí as
doenças das quais ele é capaz. É evidente que o cavalo de corrida e o cavalo de
carga são da mesma espécie, são duas variedades da mesma espécie, e no
entanto os afetos são muito diferentes, as doenças são absolutamente
diferentes, a capacidade de ser afetado é completamente diferente e, desse
ponto de vista, é preciso dizer que um cavalo de carga está muito mais próximo
de um boi do que de um cavalo de corrida. Assim, um mapa etológico dos
afetos é muito diferente de uma determinação genérica e específica dos
animais.

Vocês vêem que o poder de ser afetado pode ser preenchido de duas maneiras:
quando eu sou envenenado, meu poder de ser afetado é absolutamente
preenchido, mas ele é preenchido de tal maneira que minha potência de agir
tende para zero, ou seja, é inibida. Inversamente, quando eu experimento
alegria, ou seja, quando eu encontro um corpo que compõe sua relação com a
minha, meu poder de ser afetado é igualmente preenchido e minha potência de
agir aumenta, e tende para... quê? No caso de um mau encontro, toda a minha
força de existir (vis existendi) é concentrada, tendendo para o seguinte alvo:
investir o traço do corpo que me afeta para repelir o efeito desse corpo, de
modo que minha potência de agir foi diminuída na mesma proporção.

Essas coisas são muito concretas. Sua cabeça dói e você diz: "Eu já não posso
nem mesmo ler." Isso quer dizer que sua força de existir investiu a tal ponto o
traço de sua dor de cabeça que sua potência de agir foi diminuída na mesma
proporção. Ao contrário, quando você está contente e diz: "Ah, como eu me
sinto bem", você também está contente porque corpos se misturaram ao seu
em proporções e condições que são favoráveis à sua relação; nesse momento, a
potência do corpo que o afeta combina-se com a sua de tal modo que sua
potência de agir é aumentada. Nos dois casos o seu poder de ser afetado será
completamente efetuado, mas ele pode ser efetuado de tal modo que sua
potência de agir diminua ao infinito ou que a potência de agir aumente ao
infinito.

Ao infinito? Será que isso é verdade? Evidentemente não, porque no nosso


nível as forças de existir, os poderes de ser afetado e as potências de agir são
forçosamente finitos. Apenas Deus tem uma potência absolutamente infinita.
Bom, mas dentro de certos limites, eu não deixarei de passar por essas
variações da potência de agir em função das idéias de afecção que eu tenho,
não deixarei de seguir a linha de variação contínua do affectus em função das
idéias-afecção que eu tenho e dos encontros que eu faço, de tal modo que, a
cada instante, meu poder de ser afetado é completamente efetuado,
completamente preenchido. Preenchido, simplesmente, sob o modo da tristeza
ou sob o modo da alegria. Os dois ao mesmo tempo, bem entendido, pois
sabemos que, nas sub-relações que nos compõe, uma parte de nós mesmos
pode estar composta de tristeza e uma outra parte de nós mesmos estar
composta de alegria. Existem tristezas locais e alegrias locais. Por exemplo,
Spinoza define a cócega como uma alegria local, mas isso não quer dizer que
tudo seja alegria na cócega; ela pode ser uma alegria de tal natureza que
implique uma irritação coexistente de uma outra natureza, irritação que é
tristeza: meu poder de ser afetado tende a ser excedido. Nada é bom para
alguém que excede seu poder de ser afetado. Um poder de ser afetado é
realmente uma intensidade ou um limiar de intensidade. O que Spinoza
realmente quer é definir a essência de alguém de maneira intensiva, como uma
quantidade intensiva. Enquanto vocês não conhecem suas intensidades, vocês
se arriscam a ter um mau encontro, e poderão muito bem dizer que é belo o
excesso, a desmedida... porém não há desmedida, não há senão fracasso, nada
além do fracasso. Advertência quanto às superdoses [overdoses]. É
precisamente o fenômeno do poder de ser afetado que é excedido com uma
destruição total.

Quando se tratava de fazer filosofia, certamente a minha geração era na média


muito mais cultivada ou conhecedora, mas em compensação havia uma
espécie de incultura muito surpreendente em outros domínios, em música, em
pintura, em cinema. Eu tenho a impressão de que para muitos de vocês a
relação mudou, ou seja, que vocês não sabem nada, absolutamente nada de
filosofia mas sabem, ou melhor, vocês têm um domínio concreto de coisas
como cor, vocês sabem o que é um som ou uma imagem. Uma filosofia é uma
espécie de sintetizador de conceitos, criar um conceito não é uma questão de
ideologia. Um conceito é um bicho.

Até agora eu defini unicamente o aumento e a diminuição da potência de agir,


ou que a potência de agir aumenta ou diminui, sendo o afeto (affectus)
correspondente sempre uma paixão. Seja ele uma alegria que aumenta minha
potência de agir ou uma tristeza que diminui minha potência de agir, nos dois
casos trata-se de paixões: paixões alegres ou paixões tristes. Ainda uma vez
Spinoza denuncia um complô no universo daqueles que têm interesse em nos
afetar de paixões tristes. O sacerdote precisa da tristeza de seus súditos, ele
precisa que seus súditos se sintam culpados. Mas eu ainda não defini o que é a
potência de agir. As auto-afecções ou afetos ativos supõe que nós estejamos de
posse de nossa potência de agir e que, neste ou naquele ponto, tenhamos saído
do domínio das paixões para entrar no domínio das ações. É o que nos resta
ainda para ver.

Como poderíamos escapar das idéias-afecção, como poderíamos escapar dos


afetos passivos que consistem no aumento ou diminuição de nossa potência de
agir, como poderíamos escapar do mundo das idéias inadequadas, já que
dissemos que nossa condição parece condenar-nos estritamente a esse
mundo? É por isso que é preciso ler a Ética como preparando uma espécie de
giro dramático [coup de théâtre]. Ele irá nos falar de afetos ativos onde não
existem mais paixões, onde a potência de agir é conquistada ao invés de passar
por todas essas variações contínuas. Existe aqui um ponto muito preciso: há
uma diferença fundamental entre ética e moral. Spinoza não produz uma
moral, e por uma razão muito simples: ele jamais se pergunta o que devemos
fazer, ele pergunta-se o tempo todo de que nós somos capazes, o que está em
nossa potência; a ética é um problema de potência, não é jamais um problema
de dever. Nesse sentido, Spinoza é profundamente imoral. Ele possui uma
natureza afortunada, pois o problema moral, o bem e o mal, ele nem mesmo
compreende o que isso quer dizer. O que ele compreende, são os bons
encontros, os maus encontros, os aumentos e diminuições de potência. Assim,
ele produz uma ética e de modo algum uma moral. É por isso que ele marcou
Nietzsche com tanta força.

Nós estamos completamente encerrados neste mundo das idéias-afecção e


dessas contínuas variações afetivas de alegria e de tristeza, então ora minha
potência de agir aumenta, que bom, ora ela diminui; mas quer ela aumente,
quer ela diminua, eu permaneço na paixão porque, nos dois casos, eu ainda
estou separado de minha potência de agir, eu não estou de posse dela.
Portanto, quando minha potência de agir aumenta, isso quer dizer que eu
estou relativamente menos separado dela, e vice-versa, porém eu estou
formalmente separado de minha potência de agir, eu não estou de posse dela.
Em outros termos, eu não sou causa de meus próprios afetos, e uma vez que eu
não sou causa de meus próprios afetos, eles são produzidos em mim por outra
coisa: eu sou portanto passivo, eu estou no mundo da paixão.

Mas existem as idéias-noção e as idéias-essência. E já no nível das idéias-


noção irá surgir neste mundo uma espécie de saída. Estamos completamente
sufocados, estamos encerrados num mundo de impotência absoluta; mesmo
quando minha potência de agir aumenta, é num segmento de variação, e nada
me garante que na próxima esquina eu não receberei uma enorme paulada na
cabeça, fazendo cair novamente minha potência de agir.

Vocês estão lembrados de que uma idéia-afecção é a idéia de uma mistura, isto
é, a idéia de um efeito de um corpo sobre o meu. Uma idéia-noção já não diz
respeito ao efeito de um outro corpo sobre o meu, é uma idéia que concerne e
que tem por objeto a conveniência ou a inconveniência das relações
características entre os dois corpos. Existe esse tipo de idéia? Não sabemos
ainda se existe, mas sempre é possível definir alguma coisa, mesmo que seja
para concluir em seguida que ela não pode existir: é o que se chama de
definição nominal. Eu diria que a definição nominal de noção é: uma idéia
que, ao invés de representar o efeito de um corpo sobre outro, ou seja, a
mistura de dois corpos, representa a conveniência ou a inconveniência interna
das relações características de dois corpos.

Exemplo: se eu soubesse o bastante sobre a relação característica do corpo


chamado arsênico e sobre a relação característica do corpo humano, eu
poderia formar uma noção a respeito do que faz com que essas duas relações
não convenham entre si, chegando o arsênico, sob sua relação característica, a
destruir a relação característica do meu corpo: eu sou envenenado, eu morro.

Vocês vêem que, à diferença da idéia de afecção, ao invés de ser a apreensão da


mistura extrínseca de um corpo com outro, ou do efeito de um corpo sobre
outro, a noção elevou-se à compreensão da causa, a saber: se a mistura produz
este ou aquele efeito, é em virtude da natureza da relação entre os corpos
considerados e da maneira pela qual a relação de um corpo se compõe com a
relação do outro corpo. Sempre existe composição de relações. Quando eu sou
envenenado, é porque o corpo arsênico induziu as partes de meu corpo a
entrar sob uma relação diferente da relação que me caracteriza. Nesse
momento, as partes do meu corpo entram sob uma nova relação (induzida pelo
arsênico) que se compõe perfeitamente com o arsênico; o arsênico está feliz
porque ele se nutre de mim. O arsênico experimenta uma paixão alegre pois,
como bem disse Spinoza, todo corpo possui uma alma. Portanto o arsênico
está alegre, mas eu, evidentemente, não estou. Ele induziu partes de meu
corpo a entrar sob uma relação que se compõe com ele, arsênico. Quanto a
mim, eu estou triste, eu vou morrer. Vocês vêem que a noção, se pudermos
chegar a ela, é um truque formidável.

Não estamos longe de uma geometria analítica. Uma noção não é de modo
algum abstrata, ela é muito concreta: este corpo, aquele corpo. Se eu estivesse
de posse da relação característica da alma e do corpo daquele de quem digo
que não me agrada, em relação à minha própria relação característica, eu
compreenderia tudo, eu conheceria pelas causas ao invés de conhecer apenas
efeitos separados de suas causas. Nesse momento, eu teria uma idéia
adequada. O mesmo aconteceria se eu compreendesse porque alguém me
agrada. Eu tomei como exemplo as relações alimentares, mas não é preciso
mudar uma linha para dar conta das relações amorosas. Não é que Spinoza
conceba o amor como alimentação, pois ele também concebe a alimentação
como amor. Tomemos um casamento à Strindberg, essa espécie de
decomposição de relações que depois se recompõe para recomeçar. O que é
essa variação contínua do affectus, e como é possível que certa inconveniência
convenha a alguns? Por que alguns só podem viver sob a forma de uma cena
conjugal indefinidamente repetida? Eles saem dela como se fosse para eles um
banho de água fresca.
Vocês compreendem a diferença entre uma idéia-noção e uma idéia-afecção.
Uma idéia-noção é forçosamente adequada porque é um conhecimento pelas
causas. Spinoza não emprega somente o termo noção para qualificar esse
segundo tipo de idéia, mas emprega o termo noção comum. A palavra é
bastante ambígua: Será que ela quer dizer "comum a todos os espíritos"? Sim e
não; Spinoza é muito minucioso a esse respeito. Em todo caso, jamais
confundam uma noção comum com uma abstração. Ele define a noção comum
sempre assim: é a idéia de alguma coisa que é comum a todos os corpos ou a
muitos corpos - no mínimo dois - e que é comum ao todo e à parte. Portanto,
certamente existem noções comuns que são comuns a todos os espíritos, mas
elas só são comuns a todos os espíritos na medida em que elas são, em
primeiro lugar, a idéia de alguma coisa que é comum a todos os corpos. Assim,
elas não são de modo algum noções abstratas. O que é comum a todos os
corpos? Por exemplo, estar em movimento ou em repouso. O movimento e o
repouso serão objetos de noções ditas comuns a todos os corpos. Existem
noções comuns que designam algo de comum a dois corpos ou a duas almas;
por exemplo, alguém que eu amo. Ainda uma vez: as noções comuns não são
algo de abstrato, não têm nada a ver com espécies e gêneros, elas são na
verdade o enunciado daquilo que é comum a muitos corpos ou a todos os
corpos; ora, como não existe um único corpo que não seja, ele mesmo, muitos,
pode-se dizer que há coisas comuns ou noções comuns em cada corpo. Donde
volta-se à questão: como se pode escapar dessa situação que nos condenava às
misturas?

Aqui os textos de Spinoza são muito complicados. Não se pode conceber essa
saída senão da seguinte maneira: grosso modo, quando eu sou afetado ao
acaso dos encontros, ou sou afetado de tristeza, ou de alegria. Quando sou
afetado de tristeza, minha potência de agir diminui, ou seja, eu estou ainda
mais separado dessa potência. Quando sou afetado de alegria, ela aumenta, ou
seja, eu estou menos separado dessa potência. Bem. Se vocês consideram-se
afetados de tristeza, creio que tudo está arruinado, não há mais saída, por uma
razão muito simples: nada na tristeza, que diminui sua potência de agir, nada
na tristeza pode induzi-los a formar a noção comum de algo que seria comum
ao seu corpo e aos corpos que os afetam de tristeza. Por uma razão muito
simples: é que o corpo que os afeta de tristeza só os afeta de tristeza na medida
em que ele os afeta sob uma relação que não convém com a sua. Spinoza quer
dizer algo muito simples, que a tristeza não torna ninguém inteligente. Na
tristeza estamos arruinados. É por isso que os poderes têm necessidade de que
os súditos sejam tristes. A angústia jamais foi um jogo de cultura da
inteligência ou da vivacidade. Quando vocês têm um afeto triste, é porque um
corpo age sobre o seu, uma alma age sobre a sua em condições tais e sob uma
relação que não convém com a sua. Por conseguinte, nada na tristeza pode
induzi-los a formar a noção comum, isto é, a idéia de algo em comum entre os
dois corpos e as duas almas. O que ele está prestes a dizer está cheio de
sabedoria: é por isso que pensar na morte é a coisa mais imunda. Ele se opõe a
toda tradição filosófica que é uma meditação sobre a morte. Sua fórmula diz
que a filosofia é uma meditação da vida e não da morte; obviamente, porque a
morte é sempre um mau encontro.

Outro caso. Você é afetado de alegria. Sua potência de agir é aumentada, isso
não quer dizer que você esteja de posse dela, mas o fato de que você esteja
sendo afetado de alegria significa e indica que o corpo ou a alma que o afeta
desse modo afeta você sob uma relação que se combina com a sua, e isso
abrange desde a fórmula do amor até a fórmula alimentar. Num afeto de
alegria, portanto, o corpo que o afeta é indicado como compondo a relação
dele com a sua, ao invés da relação dele decompor a sua. Desde então, alguma
coisa irá induzi-lo a formar a noção do que é comum ao corpo que o afeta e ao
seu, à alma que o afeta e à sua. Nesse sentido, a alegria torna inteligente.
Sentimos que aqui há um truque interessante porque, método geométrico ou
não, estaremos plenamente de acordo, ele pode demonstrá-lo. Mas existe um
apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a
uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver. É preciso ter
desde já um tal ódio às paixões tristes, a lista das paixões tristes em Spinoza é
infinita, ele chegará a dizer que toda idéia de recompensa envolve uma paixão
triste, toda idéia de orgulho, a culpabilidade. É um dos momentos mais
maravilhosos da Ética.

É como se os afetos de alegria fossem um trampolim, eles fazem vocês


passarem através de alguma coisa pela qual jamais poderiam passar se só
existissem tristezas. Eles nos solicitam a formar a idéia do que é comum ao
corpo que afeta e ao corpo que é afetado. Isso pode fracassar, mas pode ter
sucesso e tornar-me inteligente. Alguém que se torna bom em latim quando se
apaixona... já se viu isso nos seminários. A que isso está ligado? Como alguém
faz progressos? Jamais fazemos progressos sobre uma linha homogênea, é um
truque aqui que nos faz progredir lá, como se uma pequena alegria tivesse
disparado um gatilho. Novamente a necessidade de um mapa: o que aconteceu
lá para que algo se desbloqueie aqui? Uma pequena alegria nos precipita num
mundo de idéias concretas que varreu os afetos tristes ou está prestes a
combatê-los, tudo isso faz parte da variação contínua. Mas ao mesmo tempo
essa alegria nos propulsiona de alguma forma para fora da variação contínua,
ela nos faz adquirir ao menos a potencialidade de uma noção comum. É
preciso conceber isso muito concretamente, são truques muito localizados. Se
você chegar a formar uma noção comum sobre em que ponto sua relação
compõe com tal pessoa ou tal animal, você diz: enfim eu compreendi alguma
coisa, sou menos estúpido do que ontem. O "eu entendi" que se diz é, por
vezes, o momento em que você formou uma noção comum. Você a formou
muito localmente, isso não deu a você todas as noções comuns. Spinoza não
pensa de modo algum como um racionalista; para os racionalistas, existe o
mundo da razão e existem as idéias; se você tem uma, evidentemente você tem
todas: você é racional. Spinoza pensa que ser racional, ou ser sábio, é uma
questão de devir, o que muda singularmente o conteúdo do conceito de razão.
É preciso saber fazer os encontros que convém a vocês. Ninguém jamais
poderá dizer que é bom para si algo que ultrapassa seu poder de ser afetado. O
mais belo é viver nas bordas, no limite do seu próprio poder de ser afetado, à
condição de que seja o limite alegre, pois há o limite de alegria e o limite de
tristeza; mas tudo o que excede o seu poder de ser afetado é feio.
Relativamente feio: o que é bom para as moscas não é forçosamente bom para
você...

Não há mais noção abstrata, não há nenhuma fórmula que seja boa para o
homem em geral. O que conta é qual é o seu próprio poder. Lawrence dizia
(nos escritos póstumos) uma coisa diretamente spinozista: uma intensidade
que ultrapassa o seu poder de ser afetado é má. É inevitável: ninguém me fará
dizer que um azul intenso demais para os meus olhos é belo, talvez seja belo
para outra pessoa. Mas existe o bom para todos, vocês me dirão... Sim, porque
os poderes de ser afetado se compõe. Supondo-se que existisse um poder de
ser afetado que definisse o poder de ser afetado do universo inteiro, é bem
possível, já que todas as relações se compõe ao infinito: porém não em uma
ordem qualquer. Minha relação não se compõe com a do arsênico, mas o que
isso pode fazer? Para mim, evidentemente, faz muito, só que nesse momento
as partes do meu corpo entram sob uma nova relação que se compõe com a do
arsênico. É preciso saber em que ordem as relações se compõe. Ora, se
soubéssemos em que ordem as relações de todo o universo se compõe,
poderíamos definir um poder de ser afetado do universo inteiro, seria o
cosmos, o mundo como corpo ou como alma. Nesse momento, você conheceria
propriamente falando um poder de ser afetado universal: Deus, que é o
universo inteiro enquanto causa, possui por natureza um poder de ser afetado
universal. Inútil dizer que estamos prestes a fazer um uso original da idéia de
Deus.

Você experimenta uma alegria, você sente que essa alegria concerne a você,
que ela concerne a algo de importante quanto às suas relações principais, suas
relações características. Então é preciso que você se sirva dela como um
trampolim, que você forme a idéia-noção: em que o corpo que me afeta e o
meu convém entre si? Em que a alma que me afeta e a minha convém entre si,
do ponto de vista da composição de suas relações, e não mais do ponto de vista
do acaso de seus encontros? Vocês fazem a operação inversa daquela que
geralmente se faz. Geralmente as pessoas fazem o somatório de suas
infelicidades, é de fato aí que a neurose começa, ou a depressão, quando
alguém se mete a contabilizar: "Ah, merda, há isso, e aquilo..." Spinoza propõe
o inverso: ao invés de fazer o somatório de nossas tristezas, tomar uma alegria
como um ponto de partida local, à condição que sintamos que ela nos concerne
verdadeiramente. Em cima disso forma-se a noção comum, em cima disso
tenta-se ganhar localmente, estender essa alegria. É um trabalho para toda a
vida. Tenta-se diminuir a porção respectiva de tristezas face à porção
respectiva de uma alegria, e tenta-se o seguinte golpe formidável: estamos
suficientemente assegurados quanto às noções comuns que remetem a
relações de conveniência entre determinado corpo e o meu, e tentaremos então
aplicar o mesmo método à tristeza, porém não se poderia fazê-lo a partir da
tristeza, ou seja, tentaremos formar noções comuns pelas quais chegaremos a
compreender de maneira vital em que determinado corpo e outro não convém
entre si ao invés de convirem. Isso se torna não mais uma variação contínua,
mas uma curva ascendente [courbe en cloche]. Vocês partem de paixões
alegres, aumento da potência de agir, vocês se servem delas para formar
noções comuns viventes, e vocês voltam a descer em direção à tristeza, desta
vez com noções comuns que vocês formam para compreender em que
determinado corpo não convém com o seu, em que determinada alma não
convém com a sua. Nesse momento, vocês já podem dizer que estão na idéia
adequada porque, com efeito, vocês entraram no conhecimento das causas.
Vocês já podem dizer que estão na filosofia. A única coisa que conta são as
maneiras de viver. A única coisa que conta é a meditação da vida, e a filosofia
só pode ser uma meditação da vida; longe de ser uma meditação da morte, é a
operação que consiste em fazer com que a morte só afete enfim a proporção
relativamente menor de mim, a saber: vivê-la como um mau encontro.
Simplesmente sabe-se muito bem que, à medida que um corpo se fatiga, as
probabilidades de maus encontros aumentam. É uma noção comum, uma
noção comum de inconveniência. Enquanto eu sou jovem, a morte é
verdadeiramente alguma coisa que vem de fora, é verdadeiramente um
acidente extrínseco, salvo em caso de doença interna. Não há noção comum,
mas em troca é verdade que quando um corpo envelhece, sua potência de agir
diminui: eu não posso mais fazer o que ontem eu ainda podia fazer; isso me
fascina no envelhecimento, essa espécie de diminuição da potência de agir. O
que é, vitalmente, um palhaço? É o tipo que, precisamente, não aceita o
envelhecimento, não sabe envelhecer suficientemente rápido. Não que seja
preciso envelhecer demasiadamente rápido, porque essa é também uma outra
maneira de ser palhaço: fazer-se de velho. Quanto mais envelhecemos, menos
temos vontade de fazer maus encontros, mas quando somos jovens lançamo-
nos no risco do mau encontro. É fascinante o tipo que, à medida que sua
potência de agir diminui em função do envelhecimento, seu poder de ser
afetado se modifica, mas não ele, que continua querendo fazer-se de jovem. É
muito triste. Há uma passagem fascinante num romance de Fitzgerald (o
número do esqui aquático), dez páginas de imensa beleza sobre não saber
envelhecer... Vocês sabem, os espetáculos que são constrangedores para os
próprios espectadores.

Saber envelhecer é chegar ao momento em que as noções comuns devem fazê-


los compreender em que as coisas e os outros corpos não convém com o seu.
Então, inevitavelmente, será preciso encontrar uma nova graça que será a de
sua idade, e sobretudo não apegar-se. É uma sabedoria. Não é a boa saúde que
faz dizer “viva a vida!”, não é tampouco a vontade de apegar-se à vida. Spinoza
soube morrer admiravelmente, mas ele sabia muito bem do que era capaz, ele
sabia mandar à merda os outros filósofos. Leibniz pegava pedaços de seus
manuscritos para depois dizer que eram dele. Existem histórias muito curiosas
- Leibniz era um homem perigoso.

Eu vou terminar dizendo que nesse segundo nível se atinge a idéia-noção onde
as relações se compõe, e mais uma vez, isso não é abstrato, pois eu tentei
mostrar que era uma empresa extraordinariamente viva. Saímos das paixões.
Conquistamos a posse formal da potência de agir. A formação das noções, que
não são idéias abstratas, que são literalmente regras de vida, me dá a posse da
potência de agir. As noções comuns são o segundo gênero de conhecimento.
Para compreender o terceiro, é preciso já estar no segundo. No terceiro
gênero, apenas Spinoza entrou. Acima das noções comuns... vocês notaram
que se as noções comuns não são abstratas, elas são coletivas, elas remetem
sempre a uma multiplicidade, mas elas não são menos individuais. Trata-se
daquilo em que este e aquele corpo convém, no limite aquilo em que todos os
corpos convém, porém nesse momento é o mundo inteiro que é uma
individualidade. Portanto as noções comuns são sempre individuais.

Para além das composições de relações, das conveniências interiores que


definem as noções comuns, existem as essências singulares. Quais são as
diferenças? Seria preciso dizer, no limite, que a relação e as relações que me
caracterizam exprimem minha essência singular, mas no entanto não se trata
da mesma coisa. Por quê? Porque a relação que me caracteriza - o que eu digo
aqui não está em absoluto no texto, mas pode-se dizer que está - porque as
noções comuns ou a relação que me caracteriza concerne ainda as partes
extensivas do meu corpo. Meu corpo é composto, ao infinito, de uma
infinidade de partes extensas, e essas partes entram sob determinadas relações
que correspondem à minha essência. As relações que me caracterizam
correspondem à minha essência mas não se confundem com minha essência,
pois as relações que me caracterizam são ainda regras sob as quais se
associam, em movimento e em repouso, as partes extensas de meu corpo; ao
passo que a essência singular é um grau de potência, ou seja, são meus
limiares de intensidade. Entre o mais baixo e o mais alto, entre meu
nascimento e minha morte, são meus limiares intensivos. O que Spinoza
chama de essência singular, parece-me que é uma quantidade intensiva, como
se cada um de nós fosse definido por uma espécie de complexo de intensidades
que remetem à essência, e também por relações que regram as partes extensas,
as partes extensivas. Desse modo, quando tenho o conhecimento das noções,
ou seja, o conhecimento das relações de movimento e de repouso que regram a
conveniência ou a inconveniência dos corpos do ponto de vista de suas partes
extensas, do ponto de vista de sua extensão, eu ainda não estou plenamente de
posse de minha essência enquanto intensidade.

E Deus, o que é? Quando Spinoza define Deus pela potência absolutamente


infinita, ele se exprime bem. Todos os termos que ele emprega explicitamente:
grau, grau em latim é “gradus”, e gradus remete a uma longa tradição na
filosofia medieval. O gradus é a quantidade intensiva, em oposição ou à
diferença das partes extensivas. Portanto seria preciso conceber que a essência
singular de cada um seja essa espécie de intensidade, ou de limite de
intensidade. Ela é singular porque, qualquer que seja nossa comunidade de
gênero ou de espécie - por exemplo, todos nós somos homens - nenhum de nós
tem limiares de intensidade iguais aos de outro.

O terceiro gênero de conhecimento, ou a descoberta da idéia de essência, se dá


quando, a partir de noções comuns, por meio de um novo giro dramático [coup
de théâtre], chega-se a entrar nessa terceira esfera do mundo: o mundo das
essências. Aqui se conhece em sua correlação - de todo modo não se pode
conhecer um sem o outro - o que Spinoza denomina como a essência singular
que é a minha, a essência singular que é a de Deus e a essência singular das
coisas exteriores.

Que esse terceiro gênero de conhecimento recorra, por um lado, a toda uma
tradição da mística judaica, e por outro, implique uma espécie de experiência
mística atéia, própria a Spinoza, creio que a única maneira de compreender
esse terceiro gênero é compreender que, para além da ordem dos encontros e
das misturas, existe esse outro estágio das noções que remete às relações
características. Mas para além das relações características existe ainda o
mundo das essências singulares. Então, quando formamos aqui idéias que são
como puras intensidades, onde minha própria intensidade irá convir com a
intensidade das coisas exteriores, nesse momento se dá o terceiro gênero
porque, se é verdade que nem todos os corpos convém uns aos outros, se é
verdade que, do ponto de vista das relações que regem as partes extensas de
um corpo ou de uma alma, as partes extensivas, nem todos os corpos convém
uns aos outros, todos eles serão concebidos como convenientes uns aos outros
se vocês chegarem a um mundo de puras intensidades. Nesse momento, o
amor que vocês têm por si mesmos é ao mesmo tempo, como diz Spinoza, o
amor às outras coisas, é ao mesmo tempo o amor de Deus, é o amor que Deus
tem por si mesmo, etc.

O que me interessa nesse limiar místico é esse mundo das intensidades. Aqui,
vocês estão de posse dele, não somente formal, mas consumada. Já não é nem
mesmo a alegria. Spinoza descobre a palavra mística "beatitude", ou afeto
ativo, isto é, o auto-afeto. Mas isso continua sendo algo muito concreto. O
terceiro gênero é um mundo de intensidades puras.

Tradução: Francisco Traverso Fuchs

COURS VINCENNES
25/11/1980

É muito curioso verificar a que ponto a filosofia, até o fim do século XVII, fala-nos
afinal, o tempo todo, de Deus. E no fim das contas, Spinoza, judeu excomungado, não
é o último a nos falar de Deus. O primeiro livro da Ética, sua grande obra, chama-se
"De Deus". E em todos, Descartes, Malebranche, Leibniz, tem-se a impressão de que a
fronteira entre a filosofia e a teologia é extremamente vaga. Por que a filosofia
comprometeu-se a tal ponto com Deus? Foi assim até o golpe revolucionário dos
filósofos do século XVIII. Trata-se de um comprometimento ou de alguma coisa um
tanto mais pura? Poderíamos dizer que a filosofia, até o fim do século XVII, deve
sempre atender às exigências da Igreja, e que ela é portanto forçada a dar conta de
muitos temas religiosos. Porém sentimos muito bem que seria demasiadamente fácil;
poderíamos dizer igualmente que, até essa época, sua sorte está um tanto ligada a um
sentimento religioso.
Eu vou retomar uma analogia com a pintura porque é verdade que a pintura está
repleta de imagens de Deus. Minha questão é: basta dizer que se trata de um
constrangimento inevitável nessa época? Há duas respostas possíveis. A primeira é
sim, trata-se de um constrangimento inevitável dessa época que remete às condições
da arte nessa época. Ou então dizer, um pouco mais positivamente, que é porque
existe um sentimento religioso ao qual o pintor, e sobretudo a pintura, não escapam.
Tampouco escapam dele a filosofia e o filósofo. Isso basta? Não seria possível uma
outra hipótese, a saber, que nessa época a pintura tem tanta necessidade de Deus
justamente porque o divino, longe de ser um constrangimento para o pintor, é o lugar
de sua emancipação máxima? Em outras palavras, com Deus ele pode fazer seja lá o
que for, ele pode fazer o que não poderia fazer com os humanos, com as criaturas.
Assim, Deus é investido diretamente pela pintura, por uma espécie de fluxo de
pintura, e, nesse nível, a pintura vai encontrar por sua conta uma espécie de liberdade
que ela não teria encontrado de outra maneira. No limite, não existe oposição entre o
pintor mais piedoso e esse mesmo pintor enquanto faz pintura e que é, de certa
maneira, o mais ímpio, pois a maneira pela qual a pintura investe o divino é
puramente pictural, onde a pintura encontra, precisamente, as condições de sua
emancipação radical.

Dou três exemplos: El Greco... Essa criação, ele só poderia obtê-la a partir das figuras
do cristianismo. Então é verdade que, num certo nível, havia constrangimentos se
exercendo sobre eles, e num outro nível, o artista é aquele que - Bergson dizia isso do
vivo, ele dizia que o vivo converte os obstáculos em meios, essa seria uma boa
definição do artista. É verdade que há constrangimentos da Igreja que se exercem
sobre o pintor, mas há transformação dos constrangimentos em meios de criação. Eles
se servem de Deus para obter uma liberação das formas, para levar as formas até um
ponto em que as formas já não têm nada a ver com uma ilustração. As formas se
desencadeiam. Elas se lançam numa espécie de Sabá, uma dança muito pura, as linhas
e as cores perdem toda necessidade de serem verossímeis, de serem exatas, de se
assemelharem a qualquer coisa. É a grande liberação das linhas e das cores que se faz
em favor dessa aparência: a subordinação da pintura às exigências do cristianismo.
Outro exemplo: uma criação do mundo... O Antigo Testamento lhes serve para uma
espécie de liberação dos movimentos, das formas, das linhas e das cores. De tal
maneira que, em certo sentido, o ateísmo jamais foi exterior à religião: o ateísmo é a
potência-artista que trabalha a religião. Com Deus, tudo é permitido. Eu tenho o vivo
sentimento de que com a filosofia foi exatamente a mesma coisa, e que se os filósofos
nos falaram tanto sobre Deus - e eles podiam muito bem ser cristãos ou crentes -, não
foi sem um intenso gracejo. Não era um gracejo de incredulidade, mas uma alegria do
trabalho que eles estavam prestes a fazer.

Assim como, eu dizia, Deus e Cristo foram para a pintura uma extraordinária ocasião
para liberar as linhas, as cores e os movimentos dos constrangimentos da semelhança,
também para a filosofia Deus e o tema de Deus foram uma ocasião insubstituível para
liberar aquilo que é o objeto de criação em filosofia - ou seja, os conceitos - dos
constrangimentos que a simples representação das coisas lhes teria imposto... É no
nível de Deus que o conceito é liberado, porque ele já não tem a tarefa de representar
alguma coisa; ele torna-se a partir desse momento o signo de uma presença. Falando
por analogia, ele assume linhas, cores e movimentos que ele não teria jamais sem esse
desvio por Deus. É verdade que os filósofos sofrem os constrangimentos da teologia,
mas em tais condições que, a partir desse constrangimento, eles irão produzir um
fantástico meio de criação, a saber, eles vão arrancar dele uma liberação do conceito
da qual ninguém poderá duvidar. Salvo no caso em que um filósofo vá longe demais
ou com demasiada força. Será esse, talvez, o caso de Spinoza? Desde o início, Spinoza
se colocou em condições segundo as quais o que ele nos dizia já não tinha mais nada a
representar. Eis que aquilo que Spinoza irá chamar de Deus, no primeiro livro da
Ética, será a coisa mais estranha do mundo: será o conceito capaz de reunir o conjunto
de todas as possibilidades... Por meio do conceito filosófico de Deus realiza-se - e não
podia realizar-se senão nesse nível - a mais estranha criação da filosofia como sistema
de conceitos.

O que os pintores e os filósofos fizeram Deus padecer representa, seja a pintura como
paixão, seja a filosofia como paixão. Os pintores fizeram o corpo de Cristo padecer
uma nova paixão: eles o condensam, o contraem... A perspectiva é liberada de todo
constrangimento de representar seja lá o que for, e para os filósofos é a mesma coisa.
Eu tomo Leibniz como exemplo. Leibniz recomeça a criação do mundo. Ele retoma o
problema clássico: saber qual é o papel do entendimento de Deus e da vontade de
Deus na criação do mundo.

Suponhamos que Leibniz nos conte isto: Deus possui um entendimento, certamente
um entendimento infinito. Ele não se assemelha ao nosso. A própria palavra
"entendimento" seria equívoca. Ela não teria um único sentido, uma vez que o
entendimento infinito não é em absoluto idêntico ao nosso próprio entendimento, que
é um entendimento finito. No entendimento infinito, o que é que se passa? Antes que
Deus crie o mundo, há por certo um entendimento, porém não há nada, não há mundo.
Não, diz Leibniz, mas há os possíveis. Há possíveis no entendimento de Deus, e todos
esses possíveis tendem à existência. Eis que a essência é, para Leibniz, uma tendência
à existência, uma possibilidade que tende à existência. Todos esses possíveis pesam de
acordo com sua quantidade de perfeição. O entendimento de Deus torna-se como que
uma espécie de invólucro onde todos os possíveis descem e se chocam. Todos querem
passar à existência. Mas Leibniz nos diz que isso não é possível, todos eles não podem
passar à existência. Por quê? Porque cada um por sua conta poderia passar à
existência, mas eles em sua totalidade não formam combinações compatíveis. Há
incompatibilidades do ponto de vista da existência. Determinado possível não pode ser
compossível com outro possível.

Eis a segunda etapa: ele está prestes a criar uma relação lógica de um tipo
completamente novo: não há somente as possibilidades, há também os problemas de
compossibilidade. Um possível é compossível com tal outro possível? Então qual é o
conjunto de possíveis que passará à existência? Só passará à existência o conjunto de
possíveis que, por sua conta, possuir a maior quantidade de perfeição. Os outros serão
recalcados. É a vontade de Deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis. É um
extraordinário descenso para a criação do mundo, e, em favor desse descenso, Leibniz
cria todos os tipos de conceitos. Nem mesmo se pode dizer que esses conceitos sejam
representativos, pois eles precedem as coisas a representar. E Leibniz lança sua
célebre metáfora: Deus cria o mundo como quem joga xadrez, trata-se de escolher a
melhor combinação. E o cálculo do xadrez irá dominar a visão leibniziana do
entendimento divino. É uma criação de conceitos extraordinária, que encontra no tema
de Deus a condição mesma de sua liberdade e de sua liberação. Ainda uma vez, do
mesmo modo que o pintor servia-se de Deus para que as linhas, as cores e o
movimento não fossem constrangidos a representar algo prévio, a reproduzir algo
pronto [donner tout fait]. Não se trata de perguntar o que um conceito representa. É
preciso perguntar qual é o seu lugar num conjunto de outros conceitos. Na maior parte
dos grandes filósofos, os conceitos que eles criam são inseparáveis, e são tomados em
verdadeiras seqüências. Se não compreendemos a seqüência da qual faz parte um
conceito, não poderemos compreender o conceito. Eu emprego o termo seqüência
porque faço uma espécie de aproximação com a pintura. Se de fato a unidade
constituinte do cinema é a seqüência, acredito que, guardadas as proporções [toutes
choses égales], poderia se dizer o mesmo do conceito e da filosofia.

No nível do problema do Ser e do Um, é verdade que os filósofos vão restabelecer


uma seqüência em sua tentativa de criação conceitual sobre as relações entre o Ser e o
Um. A meu ver, quem faz as primeiras grandes seqüências na filosofia, no nível dos
conceitos, é Platão, na segunda parte do Parmênides. Há, com efeito, duas seqüências.
A segunda parte do Parmênides é feita de sete hipóteses. Essas sete hipóteses se
dividem em dois grupos: primeiramente três hipóteses, depois outras quatro. São duas
seqüências. Primeiro tempo: suponhamos que o Um é superior ao Ser, que o Um está
acima do Ser. Segundo tempo: o Um é igual ao Ser. Terceiro tempo: o Um é inferior
ao Ser, e deriva do Ser. Jamais digam que um filósofo se contradiz; ao invés disso,
perguntem: "Tal página, em que seqüência colocá-la, em que nível da seqüência?" E é
evidente que o Um do qual Platão nos fala, segundo esteja situado no nível da
primeira, da segunda ou da terceira hipótese, não é o mesmo.

Plotino, um discípulo de Platão, fala-nos num certo nível do Um como origem radical
do Ser. Nesse caso, o Ser sai do Um. O Um faz Ser, portanto ele não é, ele é superior
ao Ser. Essa será a linguagem da pura emanação: do Um emana o Ser. Ou seja, o Um
não sai de si para produzir o Ser, pois se ele saísse de si ele se tornaria Dois; mas o
Ser sai do Um. Essa é a fórmula mesma da causa emanante. Porém quando nos
instalamos no nível do Ser, o mesmo Plotino irá nos falar em termos esplêndidos e em
termos líricos do Ser que contém todos os seres, o Ser que compreende todos os seres.
E ele emite toda uma série de fórmulas que terão uma grande importância para toda a
filosofia do Renascimento. Ele dirá que o Ser complica todos os seres. É uma fórmula
admirável. Porque é que o Ser complica todos os seres? Porque cada ser explica o Ser.
Existe aí um dobrete: complicar, explicar. Cada coisa explica o Ser, mas o Ser
complica todas as coisas, ou seja, compreende-as em si. Então essas páginas de
Plotino já não se referem à emanação. Vocês se dirão que a seqüência evoluiu: ele está
prestes a nos falar de uma causa imanente. E, com efeito, o Ser se comporta como
uma causa imanente em relação aos seres, mas ao mesmo tempo o Um se comporta
em relação ao Ser como uma causa emanante. E se descermos um pouco mais,
veremos que há em Plotino, que entretanto não é cristão, alguma coisa que assemelha-
se muito a uma causa criativa.

De certa maneira, se vocês não levarem em conta as seqüências, não saberão mais ao
certo de que ele está falando. A menos que existam filósofos que destroem as
seqüências porque querem fazer outra coisa. Uma seqüência conceitual seria o
equivalente das nuanças em pintura. Um conceito muda de tom, ou no limite muda de
timbre. Haveria aí como que timbres, tonalidades. Até Spinoza, a filosofia caminhou
essencialmente por seqüências. E, nessa via, as nuanças que concernem à causalidade
eram muito importantes. A causalidade original, a causa primeira, ela é emanante,
imanente, criativa ou ainda alguma outra coisa? Assim, a causa imanente estava
presente na filosofia o tempo todo, mas sempre como um tema que não ia até as
últimas conseqüências. Por quê? Porque era sem dúvida o tema mais perigoso. Deus
pode muito bem ser tratado como causa emanante, isso não traz nenhum problema,
porque haverá ainda uma distinção entre a causa e o efeito. Mas tudo se torna muito
mais difícil se Ele for tratado como causa imanente, de tal modo que não se saiba
muito bem como distinguir a causa e o efeito, ou seja, Deus e a criatura. A imanência
era antes de mais nada o perigo. Assim, a idéia de uma causa imanente aparece
constantemente na história da filosofia, porém refreada, mantida num determinado
nível da seqüência, carecendo de valor e devendo ser corrigida nos outros momentos
da seqüência, pois a acusação de imanentismo foi, em toda a história das heresias, a
acusação fundamental: "Você confunde Deus e a criatura". Essa é a acusação para a
qual não há perdão. Portanto a causa imanente estava constantemente em jogo, mas
não chegava a receber um estatuto. Ela só tinha um pequeno lugar na seqüência dos
conceitos.

Chega Spinoza. Ele havia sido precedido sem dúvida por todos aqueles que tiveram
mais ou menos audácia no que concerne à causa imanente, isto é, essa causa bizarra
que não apenas permanece em si para produzir, mas cujos produtos permanecem nela.
Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Na Ética, creio que a Ética está
construída sobre uma primeira grande proposição que se poderia chamar a proposição
especulativa ou teórica. A proposição especulativa de Spinoza é: só existe uma única
substância absolutamente infinita, ou seja, que possui todos os atributos, e aquilo que
se chama de criaturas não são criaturas, mas os modos ou maneiras de ser dessa
substância. Portanto, uma única substância possuindo todos os atributos e cujos
produtos são os modos, as maneiras de ser. Desde então, se eles são as maneiras de ser
da substância que possui todos os atributos, esses modos existem nos atributos da
substância. Eles estão compreendidos nos atributos.

Todas as conseqüências aparecem imediatamente. Não há nenhuma hierarquia nos


atributos de Deus, da substância. Por quê? Se a substância possui igualmente todos os
atributos, não existe hierarquia entre os atributos, um não vale mais do que o outro.
Em outros termos, se o pensamento é um atributo de Deus e se a extensão é um
atributo de Deus ou da substância, não haverá nenhuma hierarquia entre o pensamento
e a extensão. Todos os atributos terão o mesmo valor a partir do momento em que eles
são atributos da substância. Ainda permanecemos no abstrato. É a figura especulativa
da imanência.

Tiro daí algumas conclusões. É isso que Spinoza irá chamar de Deus. Ele chama isso
de Deus porque se trata do absolutamente infinito. O que isso representa? É muito
curioso. Pode-se viver dessa maneira? Tiro daí duas conseqüências. Primeira
conseqüência: ele é quem ousa fazer o que muitos tiveram o desejo de fazer, a saber,
liberar completamente a causa imanente de qualquer subordinação a outros processos
de causalidade. Só existe uma causa, a causa imanente. E isso tem uma influência
sobre a prática. Spinoza não intitula seu livro "Ontologia", ele é demasiadamente
sagaz para isso, ele o intitula "Ética". E essa é uma maneira de dizer que, qualquer que
seja a importância de minhas proposições especulativas, vocês só poderão julgá-las no
nível da ética que elas envolvem ou implicam. Ele libera completamente a causa
imanente com a qual, até aí, haviam lidado os judeus, os cristãos, os heréticos, porém
no interior de seqüências muito precisas de conceitos. Spinoza arranca-a de todas as
seqüências e faz uma violenta apropriação [coup de force] no nível dos conceitos. Já
não há mais seqüência. Posto que ele extraiu a causalidade imanente da seqüência das
grandes causas, das causas primeiras, posto que ele aplanou tudo sobre uma substância
absolutamente infinita que possui todos os atributos e compreende todas as coisas
como seus modos, ele substituiu a seqüência por um verdadeiro plano de imanência. É
uma revolução conceitual extraordinária: em Spinoza tudo se passa como que sobre
um plano fixo. Um extraordinário plano fixo que não será de modo algum um plano
de imobilidade, pois todas as coisas irão se mover - e para Spinoza só o movimento
das coisas conta - sobre esse plano fixo. Ele inventa um plano fixo. A proposição
especulativa de Spinoza é essa: arrancar o conceito do estado de variações de
seqüências e projetar tudo sobre um plano fixo que é o da imanência. Isso implica uma
técnica extraordinária.

Viver num plano fixo é também um certo modo de vida. Eu não vivo mais segundo
seqüências variáveis. Então, viver sobre um plano fixo, o que seria isso? É Spinoza
polindo suas lentes, ele que tudo abandonou, sua herança, sua religião, todo êxito
social. Ele não faz nada e antes mesmo que tenha escrito seja lá o que for, é injuriado,
denunciado. Spinoza é o ateu, o abominável. Ele praticamente não pode publicar. Ele
escreve cartas. Ele não queria ser professor. No "Tratado Político" ele concebe o
magistério como uma atividade não remunerada, e mais ainda, diz que seria preciso
pagar para ensinar. Os professores ensinariam arriscando sua fortuna e sua reputação.
Um verdadeiro professor público seria isso. Spinoza relaciona-se com um grande
grupo de estudantes, ele envia-lhes a Ética à medida que a escreve, e eles explicam os
textos de Spinoza uns para os outros, e escrevem a Spinoza, que responde. São
pessoas muito inteligentes. Essa correspondência é essencial. Ele tem sua pequena
rede. Denunciado em toda parte, ele se preserva graças à proteção dos irmãos De Witt.

É como se ele inventasse o plano fixo no nível dos conceitos. A meu ver, é a mais
fundamental tentativa de dar um estatuto à univocidade do Ser, um Ser absolutamente
unívoco. O Ser unívoco é precisamente o que Spinoza define como sendo a substância
tendo todos os atributos iguais, tendo todas as coisas como modos. A substância
absolutamente infinita é o Ser enquanto Ser, os atributos todos iguais uns aos outros
são a essência do Ser - e aqui temos essa espécie de plano sobre o qual tudo é
aplanado e onde tudo se inscreve.

Nenhum filósofo foi tratado por seus leitores como Spinoza o foi, graças a Deus.
Spinoza foi um desses autores essenciais, por exemplo, para o romantismo alemão.
Ora, mesmo esses autores tão cultos nos dizem algo muito curioso. Eles dizem que a
Ética é a obra que nos apresenta a totalidade mais sistemática, é o sistema levado ao
absoluto, é o Ser unívoco, o Ser que não se diz a não ser em um único sentido. É a
ponta extrema do sistema. É a totalidade mais absoluta. E também dizem, ao mesmo
tempo, que quando lemos a Ética temos sempre o sentimento de que não chegamos a
compreender o conjunto. O conjunto nos escapa. Não somos suficientemente rápidos
para reter tudo conjuntamente. Há uma página muito bela de Goethe em que ele diz
que releu dez vezes a mesma coisa e que ele nunca compreende o conjunto; cada vez
que eu o leio eu compreendo uma outra parte. Spinoza é o filósofo cujo aparelho
conceitual está entre os mais sistemáticos de toda a filosofia. E, no entanto, nós
leitores temos sempre a impressão de que o conjunto nos escapa e que estamos
reduzidos a sermos tomados por esta ou aquela parte. Somos verdadeiramente
tomados por esta ou aquela parte. Num outro nível, ele é o filósofo que leva mais
longe o sistema de conceitos, e portanto exige uma cultura filosófica muito grande. O
início da Ética começa com definições: da substância, da essência, etc. Isso remete a
toda a escolástica e ao mesmo tempo não há filósofo que possa, como ele, ser lido sem
que se saiba absolutamente nada. E é preciso manter ambos. Vamos, pois,
compreender esse mistério. (Victor) Delbos diz que Spinoza é um grande vento que
nos arrasta. Isso combina bem com a minha história do plano fixo. Poucos filósofos
tiveram esse mérito de aceder ao estatuto de um grande vento calmo. E os miseráveis,
os pobres tipos que lêem Spinoza, o comparam a rajadas que nos assaltam. Como
conciliar a existência de uma leitura analfabeta e de uma compreensão analfabeta de
Spinoza com esse outro fato, o de que Spinoza seja, repito, um dos filósofos que
constituíram o aparelho conceitual mais minucioso do mundo? Existe aqui um êxito
no nível da linguagem.

A Ética é um livro que Spinoza considera como terminado. Ele não publicou o seu
livro porque sabia que, se o publicasse, seria preso. Todo mundo lhe cai em cima, ele
já não tem um protetor (1). As coisas vão muito mal para ele. Ele renunciou à
publicação, mas em certo sentido isso não tinha importância, pois seus alunos já
possuíam o texto. Leibniz conhecia o texto.

De que é feito esse texto? Ele começa pela Ética demonstrada à maneira geométrica. É
o emprego do método geométrico. Muitos autores já empregaram esse método, mas
geralmente em uma seqüência na qual uma proposição filosófica é demonstrada à
maneira de uma proposição geométrica, de um teorema. Spinoza arranca-o do estado
de um momento numa seqüência e fará dele o método completo de exposição da Ética.
De modo que a Ética se divide em cinco livros. Ela começa com definições, axiomas,
proposições ou teoremas, demonstrações do teorema, corolário do teorema, etc. É isso
o grande vento, formando uma espécie de camada [nappe] contínua. A exposição
geométrica já não é em absoluto a expressão de um momento numa seqüência, ele
pode livrar-se dela completamente porque o método geométrico será o processo que
consiste em preencher o plano fixo da substância absolutamente infinita. Portanto, um
grande vento calmo. E em tudo isso há um encadeamento contínuo de conceitos, cada
teorema remete a outros teoremas, cada demonstração remete a outras demonstrações.

(1) Os irmãos De Witt foram assassinados em 1672. (N. do T.)

Tradução: Francisco Traverso Fuchs

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