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Νεκροµαντεῖον

quinta-feira, 7 de março de 2024

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes


Divinos" (Livro IV, sobre o Bem)

"No primeiro princípio das coisas a simples existência é ela mesma a bondade primordial
e absoluta em si. Assim como o Sol, luminoso em sua essência, e o fogo, quente por
essência, não necessitam de qualquer auxílio para agir além de seu próprio ser (e cada
um ilumina e esquenta por meio de seu ser), assim também o Bem em si, cuja natureza é
a absoluta bondade (bonitas), não carece, para além dessa bondade, de nenhuma
deliberação ou escolha por auxílio da qual pudesse transmitir suas bênçãos."

MARSILIO FICINO, Comentário aos Nomes Divinos, capítulo LXXIX

O quarto livro de Os Nomes Divinos, de Dionísio Areopagita, trata do Bem e do Mal. O


Princípio último de todas as coisas para o platonismo é o Bem, como apontavam Platão
na República e Plotino nas Enéadas. Tudo o que há, houve ou pode haver é uma
manifestação (imitação ou participação) do Bem eterno cuja natureza é indizível e
incognoscível. O Bem, por ser o Princípio de tudo, não está submetido a qualquer uma
das limitações das coisas.

Dionísio afirma que o Bem, pelo simples fato de sua existência, traz todas as coisas à
:
realidade, tal como o Sol, sem nenhuma escolha ou deliberação, ilumina todos aqueles
que são capazes de serem iluminados. O poder do Princípio se manifesta não por uma
decisão ou uma deliberação de criar as coisas. O ser humano precisa deliberar e decidir
se fará ou não algo, se tomará ou não determinado curso. Esse aspecto calculativo e
discursivo da vida humana é um sinal de sua natureza limitada.

Precisamos escolher este ou aquele curso de ação. Cogitamos, imaginamos e


discursamos sobre as possibilidades à nossa disposição a fim de termos uma maior
certeza do que faremos. As limitações desse gênero estão ausentes do Princípio último
de todas as coisas. Seria errôneo imaginar que Deus estivesse em algum momento em
dúvida acerca da criação das coisas.

Dionísio repete nesse início de capítulo um tema já enunciado por Plotino: o Princípio
gera os entes por sua simples presença ou existência. O que existe no mundo é fruto
direto do Princípio como (utilizando o exemplo de Plotino) o fogo gera o calor. Onde há
fogo, há calor. Não por uma deliberação do fogo, mas simplesmente por conta da sua
essência. Quando se acende o fogo, a emanação do calor é imediata e persiste enquanto
o fogo estiver presente.

O Sol é um símbolo platônico do Princípio. Ele ilumina todas as coisas capazes de


receber a sua luz. Em termos metafísicos, o Princípio traz à existência tudo aquilo que é
capaz de existir. Cada um dos entes deste mundo possui uma essência por conta da qual
pertence a um determinado tipo de ser. Essa é a sua limitação ou determinação primeira
e fundamental. Nesse sentido, ninguém escolhe ser o que é. As coisas simplesmente são
o que elas são. Não há, e nunca haverá, um momento anterior à existência em que haja
a escolha de ser isso ou aquilo.

Marsilio Ficino, comentando Dionísio, afirma que "em todas as coisas posteriores ao
primeiro, essência é uma coisa e a bondade outra". O Bem é o fundamento de todas as
coisas. Entretanto, cada coisa é diferente da outra por sua essência. Dito de outro modo,
é a essência que diferencia e que limita as coisas tornando-as isso ou aquilo. O Bem é a
fonte e o fundamento de todas essas diferenciações, e, exatamente por isso, está acima
de qualquer limitação essencial.

Obviamente, o Bem não gera as coisas como um ser limitado gera ou age. O ser humano
age segundo a sua vontade e a sua razão, que são potências diferentes e nem sempre
em concordância. Porém, nenhuma diferença existe entre a vontade e a razão em Deus,
pois não há diferenciações no Princípio. O Sol, imagem visível de Deus, simboliza a ação
criadora do Princípio justamente por iluminar todos os seres imediatamente, sem
necessidade da deliberação que caracteriza o modo humano de criar e de agir.

"Deus, como o Bem, cria por Sua própria existência pura, isto é, por Sua bondade,
enquanto outras coisas realizam o que elas realizam por participação nesse Bem", ensina
Ficino. O Bem, então, não é pensado aqui no sentido moral, mas é tomado no sentido
ontológico. O bem moral se segue do Bem ontológico, fundamento de tudo. O Bem é a
realidade quando encarada como algo desejável. E nada pode ser mais desejável do que
:
o Princípio último de todas as coisas desejáveis.

Como dito acima, o Bem é a fonte de todas as coisas e, por isso, consequentemente,
está acima de todas elas e não possui quaisquer das limitações que caracterizam as
coisas. Nesse sentido, é possível dizer que o Bem é Não-Ser, e que é Não-Mente. Então,
o Bem não existe e não pensa? Para compreender esse ponto, é preciso retornar ao
princípio do discurso apofático, isto é, afirmar a perfeição para negar a imperfeição, e
negar a perfeição para não afirmar a imperfeição.

Ao tratar do Princípio Absoluto de todas as coisas, a linguagem utilizada não deve afirmar
alguma imperfeição, como dizer que o Princípio Absoluto é inexistente. Alternativamente,
tampouco é adequado afirmar que o Princípio Absoluto é existente. No primeiro caso,
atribui-se uma falta, uma privação. No segundo, afirma-se uma perfeição. Porém, é uma
perfeição limitada. Se é errado dizer que o Bem é inexistente (por se tratar de uma
privação), por outro lado, é inadequado dizer que o Bem é existente (na medida limitada
em que, por exemplo, uma maçã é existente).

Então, quando se afirma que o Bem é Não-Ser, o que se deseja expressar é a absoluta
transcendência do Bem, e não a sua inexistência. Decerto o Bem existe, mas em uma
razão tão transcendente que, de certo modo, seria mais correto dizer que o Bem é Não-
Ser, a fim de que as limitações próprias dos seres não lhe sejam atribuídas. A negação
aqui não tem o papel de indicar uma insuficiência ou uma ausência, mas, ao contrário,
indica a absoluta transcendência com relação a todas as coisas, quaisquer que elas
sejam.

O Bem dá origem a tudo e abraça tudo, das mais sublimes realidades até às mais
humildes, como o Sol ilumina tudo o que alcança. Todos os entes existem por causa do
Bem e, cada um a seu modo, deseja e busca o Bem. Os seres intelectuais, buscam por
meio do intelecto, os seres irracionais buscam por sua vida, os seres inanimados buscam
por sua mera existência. Em todos os casos, os entes existem por causa do Bem e
permanecem na existência na medida em que estão "voltados" ao Bem.

Não é necessário entender isso em termos literais, como se uma pedra tivesse desejo tal
qual um ser humano deseja algo. A pedra tem a sua existência graças ao Bem. De certa
forma, ela "sai" do Bem para a existência. Mas a pedra não se torna ontologicamente
autônoma, como se pudesse existir sem mais nenhuma relação com o Bem. Ela precisa
estar continuamente sustentada na realidade pelo Bem, o que, em certo sentido, significa
que a pedra está sempre "voltada" para o Bem.

Analogamente, um objeto amarrado a uma corda presa no teto permanece suspenso


somente pelo tempo em que a corda o sustenta. Ele está dependurado (pendendo de),
isto é, dependendo da corda para permanecer suspenso. Nesse sentido, a dependência
tem duas "direções": ela "desce" do teto até o objeto pela corda, e "sobe" do objeto até o
teto pela corda. O teto sustenta o objeto de cima para baixo, mas o objeto precisa estar
ligado ao teto pela corda para que esteja suspenso. Trata-se de um só e mesmo
fenômeno enxergado de dois modos diferentes.
:
No fundo, o que Dionísio deseja expressar é a absoluta dependência ontológica das
coisas com relação ao Bem. Há como um circuito, a "saída" e o "retorno" simultâneos das
coisas ao Bem. A existência das coisas jamais significa uma separação absoluta do Bem,
uma vez que sua permanência na existência só pode se dar pela ação contínua do Bem.
Semelhante ao movimento circular de um objeto que, embora distanciado do seu centro,
jamais se separa totalmente do centro adquirindo uma trajetória independente.

O Bem é igualmente chamado de Beleza. O que poderia ser mais belo do que o Princípio
de onde todos os entes provêm? Platão, no Timeu, afirma que tudo o que é um artista
deriva de um modelo consistente é belo. A beleza do cosmos indica, então, a sua
imitação de um modelo que é eternamente consistente. O Demiurgo, autor da ordenação
do Cosmos, imita as Formas eternas, e dá existência às coisas. O Bem é o modelo ao
qual todos os entes imitam, cada um na sua medida.

Ao fim e ao cabo, diz Dionísio, é o Bem, enquanto Belo, que "causa as harmonias, as
simpatias e as comunidades de todas as coisas". O Belo reúne e ordena, mantém os
entes na existência, é o fim (telos, τέλος) de tudo o que há e pode haver. Ele é
paradigmático (πᾰρᾰδειγµᾰτῐκόν), o modelo de onde todas as coisas adquirem seus
limites próprios. Dionísio ousadamente afirma que mesmo o Não-Ser é belo, quando se
refere ao Bem enquanto princípio absolutamente transcendente.

O Belo é o poder harmonizador de todas as coisas, realiza a coordenação universal,


reúne por ligações eternas as misturas dos elementos. Proclo, comentando o Timeu,
afirma que Atena possui um aspecto filosófico e um aspecto filopolêmico. Pelo aspecto
filosófico, a deusa realiza a virtude, que está na ordem do formal. Pelo aspecto
filopolêmico, ela realiza a harmonia entre os contrários no mundo. A polêmica (polemos,
πόλεµος) é a guerra, a oposição sem conciliação. O Belo, tal qual Atena filopolêmica, é a
conciliação daquilo que não estava unido e que não se manteria unido não fosse por sua
ação.

...

Leia também: Νεκροµαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)

Immanuel Rosenkreuz às 13:26

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