Você está na página 1de 20

O Demiurgo

Artigo publicado originalmente em 1909 na revista La Gnose,


por René Guénon.

Há um grande número de problemas que constantemente tem


preocupado a humanidade, mas nenhum é tão perturbador
quanto a origem do Mal, ao qual se dedicaram filósofos e
sobretudo teólogos a um obstáculo dito muitas vezes como
intransitável: ‘’Si Deus est, unde Malum? Si non est, unde Bonu
(EspaçoReservado1)m?” Este dilema não pode possuir resposta
para aqueles que, considerando a Criação como obra direta de
Deus e, por consequência, são obrigados a considerá-La como
responsável direta do Bem e do Mal Dir-se-á que essa
responsabilidade é atenuada, num certo sentido, pela liberdade
das criaturas; mas, se as criaturas podem escolher entre o Bem e
o Mal, é porque um e o outro já existem, ao menos em princípio,
e, se elas são suscetíveis de decidir muitas das vezes em favor do
mal, ao contrário de serem sempre inclinadas ao Bem, é porque
são imperfeitas. Como pode então Deus, que é perfeito, ter criado
criaturas imperfeitas?

É evidente que o Perfeito não pode gerar o imperfeito pois, se isso


fosse possível, então o Perfeito deveria conter em si o imperfeito
em estado de princípio, o que seria o mesmo que dizer que o
Perfeito não é perfeito. O imperfeito, portanto, não pode proceder
do Perfeito por via de emanação; logo, ele não poderia resultar da
criação ‘’ex nihilo’’. Mas como poderíamos admitir que alguma
coisa possa vir do nada ou, usando de outros termos, que possa
existir alguma coisa que não possua princípio? Além disso,
admitir a criação ‘’ex nihilo’’ seria admitir a aniquilação final dos
seres criados, pois tudo que há um início deve possuir um fim, e
nada é mais ridículo do que falar de imortalidade numa tal
hipótese; mas a criação assim entendida é uma absurdidade, pois
ela é contrária ao princípio de causalidade, algo que nenhum
homem pode honestamente negar, e poderia ser aplicado aqui
o motto de Lucrécia: ‘’Ex nihilo nihil, ad nihilum nil posse
reverti.’’

Não pode haver nada que não tenha um princípio, mas qual é esse
princípio? E não há na verdade um único Princípio de todas as
coisas. Se considerarmos o Universo como um todo, é evidente
que ele contém todas as coisas, pois todas as partes estão contidas
no Todo; por outro lado, o Todo é necessariamente ilimitado pois,
se possuísse um limite, este limite não estaria contido no Todo, e
essa suposição é absurda. O que não possui limite pode ser
chamado de Infinito e, como ele contém tudo, ele é o princípio de
todas as coisas. Aqui é preciso ressaltar um ponto: o Infinito é
necessariamente um, visto que dois Infinitos que não fossem
idênticos excluíram-se mutualmente; isso resulta que só pode
haver um único Princípio de todas as coisas, e esse Princípio é o
Perfeito, porque o Infinito não pode ser tal a menos que seja
Perfeito.

Assim, o Perfeito é o Princípio supremo, a causa primeira; ele


contém todas as coisas em potência e ele produziu todas as coisas.
Mas agora nos deparamos com outro questionamento: se há
apenas um Princípio, o que acontece com todas as oposições que
costumamos considerar no Universo: Ser e Não-Ser, Espírito e
Matéria, Bem e Mal? Nos encontramos finalmente na presença da
questão levantada de início, e podemos a formular de um modo
mais geral: como a Unidade pode produzir a dualidade?

Alguns acreditam que deve ser admitido dois princípios


distintamente opostos um ao outro, mas essa hipótese é refutada
pelo que demonstramos anteriormente. Com efeito, estes dois
princípios não podem ser infinitos, tendo visto que que se
excluiriam ou se confrontariam; se apenas um fosse infinito, ele
seria o princípio do segundo. Enfim, se os dois fossem infinitos,
eles não seriam verdadeiros princípios, pois dizer que aquilo que
é finito pode existir por si mesmo, é o mesmo que dizer que
qualquer coisa pode vir do nada, já que tudo que é finito tem um
começo logicamente falando, senão cronológico. Neste último
caso, por consequência, um e outro, sendo finitos, devem
proceder de um princípio comum que é infinito, e nós aqui
retornamos a consideração de um Princípio único. A propósito,
muitas doutrinas que consideramos habitualmente como
dualistas são apenas em aparência: no maniqueísmo, o dualismo
era uma doutrina puramente exotérica, protegendo a verdade
doutrina esotérica da Unidade: Ormuzd e Ahriman são gerados
por Zurvan-Akereno e devem se unir a ele no fim dos tempos.

A dualidade é então um produto necessário para a Unidade, pois


ela não pode existir por si mesma. Mas como ela pode ser
produzida? Para compreender isso, nós devemos em primeiro
lugar ponderar a Dualidade sob seu aspecto menos
particularizado, que é a oposição de Ser e Não-Ser; agora, já que
um e o outro são contidos obrigatoriamente na Perfeição total, é
evidente que essa oposição não pode ser senão por aparência.
Valeria mais a pena falar apenas de distinção, mas no que consiste
essa distinção? Ela existe na realidade independentemente de
nós, ou ela é simplesmente o resultado de nossa forma de
considerar as coisas?

Se por Não-Ser entendemos o puro nada, então é inútil falar dele,


pois o que poderia ser dito daquilo que não é nada? Mas tudo
muda se considerarmos o Não-Ser como possibilidade de ser; o
Ser é a manifestação do Não-Ser assim entendido e ele está
contido no estado potencial nesse Não-Ser. A conexão que se
estende do Não-Ser ao Ser é a conexão do não-manifestado ao
manifestado, e podemos dizer que não-manifestado é superior ao
manifestado pois ele é o princípio, pois contém em potência toda
a manifestação, pois aquilo que não é, nunca foi e jamais será
manifestado. Ao mesmo tempo, percebemos que é impossível
falar de uma distinção real, pois o manifestado está contido em
princípio no não-manifestado; contudo, não podemos conceber o
não-manifestado diretamente, apenas através do manifestado.
Essa distinção existe para nós, mas somente para nós.

Se é assim na Dualidade sob o aspecto da distinção entre Ser e


Não-Ser, então só pode se seguir o mesmo, com maior razão, para
todos os outros aspectos da Dualidade. Vemos quão ilusória é essa
distinção entre Espírito e Matéria, sob a qual tem-se edificado —
especificamente nos tempos modernos — um número absurdo de
sistemas filosóficos sob uma base, assim dita, ‘’inabalável’’; se
essa distinção desaparece, todos esses sistemas caem por terra.
Ainda podemos dizer que a Dualidade não pode existir sem o
Ternário, porque o Princípio supremo, por diferenciação, dá
nascimento aos dois elementos, que são distintos apenas porque
os consideramos como tais. Esses dois elementos e seu Princípio
comum formam um Ternário, de sorte que na verdade, é o
Ternário e não o Binário que é imediatamente produzido pela
primeira diferenciação da Unidade primordial. Voltemos agora à
distinção do Bem e do Mal, que é, por sua vez, um aspecto
particular da Dualidade. Assim que colocamos como opostos o
Bem ao Mal, geralmente constituímos

Se chamamos o Bem de Perfeito, o relativo não é realmente


distinto, pois está contido em princípio; logo, do ponto de vista
universal, o Mal não existe. Ele existirá somente se enxergarmos
todas as coisas sob um aspecto fragmentário e analítico,
separando-as de seu Princípio comum ao invés de considerá-las
sinteticamente como contidas no Princípio, que é a Perfeição. É
assim que o imperfeito é criado; distinguindo o Mal do Bem, os
dois são criados por essa mesma distinção, pois Bem e Mal só
existem quando se opõem um ao outro; mas se não há Mal, não
se deve falar mais de Bem num sentido ordinário, mas somente
de Perfeição. É a fatal ilusão do Dualismo que realiza o Bem e o
Mal e que as coisas sob um ponto de vista particularizado,
substituindo a Unidade pela Multiplicidade, deixando os seres
sob os quais ela exerce seu poder sob o domínio da confusão e da
divisão; esse domínio, é o que chamamos de Império do
Demiurgo.

O que nós falamos sob a distinção do Bem e do Mal nos permite


compreender o símbolo da Queda, pelo menos na medida em que
podemos exprimir tais coisas. A fragmentação da Verdade total,
ou do Verbo — no fundo são a mesma coisa -, que produz a
relatividade, é idêntica à segmentação de Adam Kadmon, cujas
parcelas separadas constituem Adam Protoplastos, isto é, o
primeiro fundador; a causa dessa segmentação é Nahash, o
egoísmo ou o desejo da existência individual. Esse Nahash não é
uma causa exterior ao homem, mas está nele, a princípio no
estado potencial, e ele só se torna exterior na medida em que o
homem o exterioriza; essa distinção separativa, por sua natureza
provoca a divisão, exorta o homem a comer o fruto da Árvore da
Ciência do Bem e do Mal, isto é, criar a distinção entre Bem e Mal.
Agora, os olhos do homem são abertos, porque aquilo que lhe era
interior se torna exterior, como consequência da separação que se
produziu entre os seres; estes aqui são manifestados revestidos de
formas que limitam e definem suas existências individuais, e
assim o homem foi o primeiro formador. Mas ele mesmo se
encontra submisso às condições dessa existência individual e ele
é igualmente revestido de uma forma, ou se preferir a expressão
bíblica, duma túnica de pele; ele está aprisionado no domínio do
Bem e do Mal, no Império do Demiurgo.

Vemos por essa exposição, que aliás é bem abreviada e muito


incompleta, que na realidade o Demiurgo não é uma potência
exterior ao homem; ele é em princípio apenas a vontade do
homem na medida em que faz a distinção do Bem e do Mal. Mas
em seguida o homem, limitado enquanto ser individual por essa
vontade que é dele mesmo, a considera como alguma coisa
exterior a si, e assim, ela se torna distinta dele; mais ainda, como
ela se opõe aos esforços que ele realiza para sair do domínio onde
está preso, ele a vê como uma potência hostil, e a chama
de Shaitan ou Adversário. A propósito, é bom relembrar que este
Adversário que nós mesmos criamos a cada instante, pois não
deve ser considerado como tendo ocorrido num tempo
determinado, que esse mesmo Adversário, digamos, não é mal em
si mesmo, mas é tão somente a união de tudo que nos é contrário.

Do ponto de vista mais geral, o Demiurgo se torna uma potência


separada e distinta como tal, é o Príncipe deste mundo que é
mencionado no Evangelho de João; ainda aqui, estritamente
falando, ele não é nem bom nem mal, ou melhor, ele é um e outro
pois ele contém em si mesmo o Bem e o Mal. Considera-se seu
domínio como o Mundo Inferior, opondo-se ao Mundo Superior
ou ao Universo Principal de onde ele foi separado, mas devemos
ter cautela pois essa separação nunca foi absolutamente real: ela
só pode ser real na medida em que a realizamos, tendo em vista
que este Mundo Inferior está contido em estado potencial no
Universo Principal, e é evidente que nenhuma parte pode
realmente sair do Todo. É o que, aliás, impede que a queda
continue indefinidamente; mas isso é uma expressão simbólica e
a profundeza da queda resume o grau de realização da separação.
Com essa restrição, o Demiurgo se opõe a Adam Kadmon ou a
humanidade do princípio, manifestação do Verbo, mas apenas
como um reflexo, pois ele não é uma emanação e ele não existe
por si mesmo; é isso que é representado pela figura dos dois
velhos do Zohar, tal como pelos dois triângulos opostos do Selo
de Salomão.

Nós somos levados a considerar o Demiurgo como um reflexo


obscuro e inverso do Ser, pois ele não pode ser outra coisa senão
essa. Ele não é um ser. Mas, após o que já consideramos
anteriormente, ele pode ser visto como a coletividade dos seres na
medida em que esses são distintos ou, se preferir do seguinte
modo, contanto que eles possuam uma existência individual. Nós
somos seres distintos na medida em que criamos a distinção que
não existe fora da medida que nós a criamos. Contanto que
criemos essa distinção, nós somos elementos do Demiurgo e,
enquanto seres distintos, nós pertencemos ao domínio deste
mesmo Demiurgo, que é o que se chama de Criação.

Todos os elementos da criação, isto é, as criaturas, são contidos


no Demiurgo. Com efeito, ele não pode tirar elas se não for dele
mesmo, visto que a criação ex nihilo é impossível. Considerado
como Criador, o Demiurgo produz desde o início a divisão, da
qual ele mesmo não é distinto, dado que ele só existe enquanto a
divisão existir; desse modo, tal como a divisão é a fonte da
existência individual, definida pela forma, o Demiurgo deve ser
visto como formador e, portanto, ele é idêntico a Adam
Protoplastes, como já havíamos visto. Podemos ainda dizer que o
Demiurgo criou a matéria, entendo por essa palavra o caos
primordial que é o reservatório comum de todas as formas. A
partir desse reservatório, ele organiza a matéria caótica e
tenebrosa onde reina a confusão, fazendo sair formas múltiplas
cuja totalidade constitui a criação.

Devemos dizer então que essa criação é imperfeita? Certamente


não podemos considerá-la como perfeita; mas, se colocarmos ela
do ponto de vista universal, ela é um dos elementos constitutivos
da Perfeição total. Ela só é imperfeita se a considerarmos como
analiticamente separada de seu Princípio, e é nessa mesma
medida que ela é o domínio do Demiurgo. Mas, se o imperfeito é
somente um elemento do Perfeito, ele não é propriamente
imperfeito, do que resulta que o Demiurgo e seu domínio não
existem do ponto de vista universal, tanto quanto a distinção do
Bem e do Mal. Isso resulta, do mesmo ponto de vista, que a
matéria não existe: a aparência material é apenas uma ilusão, o
que não permite concluir que os seres que possuem essa
aparência não existem, já que isso seria cair em outra ilusão, que
é a de um idealismo exagerado e mal compreendido.

Se a matéria não existe, a distinção de Espírito e Matéria


desparece por si mesma. Tudo deve ser Espírito na realidade, mas
tomando essa palavra num sentido totalmente diferente do que a
grande parte dos filósofos modernos entendem. Estes, por sua
vez, opondo Espírito à Matéria, não o consideram como
independente de toda forma, podendo nos perguntar no que ele
se difere da matéria; se dissermos que ele é inextensível,
enquanto a matéria é estendida, como aquilo que inextensível
pode ser revestido de uma forma? Afinal, por que desejar definir
o Espírito? Seja pelo pensamento ou de outro modo, é sempre por
uma forma que procuramos defini-lo, e então já deixou de ser
Espírito. Em verdade, o Espírito Universal é o Ser, e não este ou
aquele ser particular, mas o Princípio de todos os seres, assim
contendo todos. É por isso que tudo é Espírito.

III

De tudo que fora dito anteriormente, temos como resultado o


seguinte: o homem pode se libertar do domínio do Demiurgo ou
do mundo hilíquo e essa libertação só pode se dar através da
gnose, isto é, o Conhecimento integral. Precisamos dizer que esse
Conhecimento não possui nada em comum com a ciência
analítica e nem mesmo a supõe. É uma crendice absurda dos
nossos dias afirmar que não se pode alcançar a síntese total sem
passar pela análise; do contrário, a ciência profana é totalmente
relativa e limitada ao mundo hilíquo e, do ponto de vista
universal, ela não existe.

Ainda é preciso enfatizar que os diferentes mundos ou, segundo


uma expressão mais conhecida, os diversos planos do Universo,
não são lugares ou regiões, mas sim modalidades de existência ou
estados do ser. Isso nos permite compreender como um homem
que vive sob a terra pode pertencer, não ao mundo hilíquo, mas
ao mundo psíquico ou mesmo pneumático. É isso que constitui o
segundo nascimento, isto é, o nascimento para o mundo psíquico,
pelo qual o homem se torna consciente dos dois planos, mas sem
alcançar ainda o mundo pneumático, isto é, sem se identificar
com o Espírito universal. Este resultado só pode ser obtido por
aquele que possuir integralmente o triplo Conhecimento, pelo
qual ele é libertado de todos os nascimentos mortais. É
exatamente isso que queremos dizer quando falamos que apenas
os pneumáticos são salvos. o estado psíquico é, em suma, um
estado transitório; é o ser que está preparado para receber a Luz,
mas que apesar disso, ainda não a recebeu, pois é preciso que ele
tome consciência da Verdade una e imutável.

Quando falamos de nascimentos mortais, nós entendemos as


modificações do ser, sua passagem através das formas múltiplas
e mutáveis; isso não tem nada a ver com a doutrina
reencarnacionista dos espíritas e teosofistas, doutrina sob a qual
um dia iremos explicar1. O pneumático está liberto dos
nascimentos mortais, isso quer dizer que ele está livre da forma,
portanto, do mundo demiúrgico. Ele não está submetido as
mudanças e, por consequência, ele está sem ação; esse é um ponto
que voltaremos a falar mais adiante. O psíquico, em contraste,
não ultrapassa o mundo da formação, sendo este simbolicamente
designado como o primeiro céu ou a esfera da Lua; daí, ele
regressa para o mundo terrestre, o que não significa que ele
tomará para si um novo corpo, mas simplesmente que ele deve se
revestir de novas formas, sejam elas quais forem, antes de obter a
libertação.

II
O que nós queremos dizer mostra a concordância, e ousamos
dizer até mesmo a identidade real (apesar de certas diferenças de
exposição), da doutrina gnóstica com as doutrinas orientais; e
dizemos isso particularmente no tocante ao Vedanta, a mais
ortodoxa de todos os sistemas metafísicos fundados sob o
Bramanismo. É justamente por isso que podemos complementar
o que já fora dito sob os diversos estados do ser, realizando um
empréstimo de algumas citações do Tratado do Conhecimento do
Espírito de Adi Shankaracharya.

‘’Não há nenhum outro modo de obter a libertação completa e


final que pelo Conhecimento; é o único instrumento que separa
os laços das paixões; sem o Conhecimento, a Beatitude não pode
ser obtida.’’

‘’A ação que não se opõe à ignorância não pode afastá-la; mas o
Conhecimento dissipa a ignorância, como a Luz dissipa as
trevas.’’

A ignorância, aqui entendida como um estado do ser envolto nas


trevas do mundo híliquo, é unida à aparência ilusória da matéria
e das distinções individuais; pelo Conhecimento, que não é do
domínio da ação mas sim sendo-lhe superior, todas as ilusões
desaparecem, assim como já havíamos dito.

‘’Quando a ignorância nascida das afeições terrestres é destruída,


o Espírito, por seu próprio esplendor, brilha num estado
indivisível, como o Sol que espalha seu brilho quando a nuvem se
dispersa.’’
Mas antes de alcançar esse estágio, o ser passa por um estágio
intermediário, que corresponde ao mundo psíquico. Nesse
estágio, ele acredita ser a alma individual, e não mais um
composto de alma e matéria, pois todo tipo de distinção ainda não
desapareceu para ele já que não deixou para sempre o domínio do
Demiurgo.

‘’Se imaginando ser a alma individual, o homem fica assustado,


como uma pessoa que comete o erro de confundir uma corda com
uma cobra2; mas o seu medo é afastado pela percepção de que ele
não é a alma, mas o Espírito universal.’’

Aquele que toma consciência dos dois mundos manifestados, isto


é, o mundo hílico, que compreende a união das manifestações
grosseiras ou materiais e do mundo psíquico que é a união das
manifestações sútis, nasce duas vezes, Dwidja. Mas apenas
aquele que possui consciência do Universo não-manifestado ou
do mundo sem forma, isto quer dizer, do mundo pneumático, e
que chega ao ponto de identificar-se com o Espírito
universal, Ātma, pode ser dito como Yogi, aquele que está unido
ao Espírito universal.

‘’O Yogi, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como


se vivessem nele, e assim, pelo olho do Conhecimento, ele percebe
que todas as coisas são Espírito.’’

Observemos, o mundo híliquo é comparado ao estado vigília, o


mundo psíquico ao estado de sonho, e o mundo pneumático ao
sono profundo; devemos lembrar que o não-manifestado é
superior ao manifestado, pois ele é o princípio do manifesto.
Acima do universo pneumático, não há mais nada, de acordo com
a doutrina gnóstica que o Pleroma, que pode ser dito como sendo
constituído pela união dos atributos da Divindade. Não se trata
de um quarto mundo, mas sim do Espírito universal, Princípio
supremo dos três mundos, nem manifestado nem não-
manifestado, indefinível, inconcebível e incompreensível.

O yogi ou pneumático, que no fundo são a mesma coisa, não mais


como uma forma grosseira nem como uma forma sútil, mas como
um ser sem forma. Ele se identificado com o Espírito universal, e
vejamos a seguir em quais termos esse estado é descrito por
Shankaracharya:

‘’É Brahmā, que após a posse não há nada para possuir; após o
gozo da felicidade da qual não há felicidade que possa ser
desejada; e após a obtenção do conhecimento, não há
conhecimento que possa ser obtido.’’

‘’É Brahmā, que após ser visto, nenhum outro objeto pode ser
contemplado; com o qual se identificou, nenhum nascimento
pode ocorrer; o qual fora percebido, nada mais pode ser
percebido.’’

‘’É Brahmā que é derramado por todos em tudo: no espaço,


naquilo que está acima e naquilo que está abaixo; o verdadeiro, o
vivente, o feliz, sem dualidades, indivisível, eterno e um.’’
‘’É Brahmā que é sem grandeza, inesperado, incriado,
incorruptível, sem forma, sem qualidade ou caráter.’’

‘’É Brahmā por qual todas as coisas são clarificadas, cuja luz faz
brilhar o Sol e todos os corpos luminosos, mas que não é tornado
manifesto por sua luz.’’

‘’Ele penetra a sua própria eterna essência e contempla o Mundo


inteiro que se apresenta como sendo Brahmā’’

‘’Brahmā não se assemelha ao mundo e fora de Brahmā não há


nada; tudo que aparenta existir fora d’Ele é uma ilusão.’’

‘’De tudo que fora visto e de tudo que fora entendido, nada existe
senão Brahmā e, pelo conhecimento do
princípio, Brahmā contemplado como o Ser verdadeiro, vivente,
feliz, sem dualidades.’’

‘’O olho do Conhecimento contempla o Ser verdadeiro, vivente e


feliz penetrando tudo; mas o olho da ignorância não descobre
nada e nem percebe nada, como um cego não vê a luz.’’

‘’Quando o Sol do conhecimento espiritual se eleva no céu do


coração, ele persegue e remove as trevas, ele penetra tudo,
abraçando tudo e iluminando tudo.’’

‘’Observemos que o Brahmā da atual questão é o Brahmā


superior; é preciso distingui-lo do Brahmā inferior, pois este não
é outra coisa que o Demiurgo, encarado como reflexo do Ser. Para
o yogi, não há nada que o Brahmā superior, que contém todas as
coisas e fora do qual não há nada. O Demiurgo e sua obra de
divisão não existem mais.’’

‘’Aquele que tiver feito a peregrinação de seu próprio espírito,


uma peregrinação na qual não há nada que concerna à situação,
o local ou os tempos e que está em todos os lugares, no qual nem
calor nem frio são experimentados, que concede uma felicidade
perpétua e uma libertação de toda pena; este está sem agir; ele
conhece todas as coisas e obtém a eterna Beatitude.’’

IV

Depois de caracterizar os três mundos e os estados do ser que lhes


correspondem, ter indicado — na medida do possível — o que é o
ser que foge do domínio demiúrgico, nós devemos retornar ainda
à questão da distinção do bem e do mal, afim de retirar algumas
consequências do que fora dito precedentemente.

De primeira mão, podemos ser tentados a dizer: se a distinção do


bem e do mal é totalmente ilusória, se ela não existe na realidade,
deve ser o mesmo então para a moral, pois é evidente que a moral
é fundada sob essa distinção, a qual ela supõe ser essencial. Isso
seria ir além demais da conta. A moral existe, mas na mesma
medida que a distinção do bem e do mal, isto é, para tudo que
participa do domínio do Demiurgo; do ponto de vista universal,
ela não possui mais nenhuma razão de ser. Com efeito, a moral
não pode se aplicar que ao que não é ação; ora a ação supõe a
mudança, que só é possível no formal ou manifestado; o mundo
sem forma é imutável, superior à mudança, portanto, a ação
também e é por isso que o ser que não pertence mais ao Império
do Demiurgo é sem ação.

Isso demonstra que devemos ter atenção para nunca


confundirmos os diversos planos do Universo, pois aquilo que se
diz de um não é verdadeiro para outro. Assim, a moral existe
necessariamente no plano social, que é essencialmente o domínio
da ação, mas não se deve colocar isso em questão quando
consideramos o plano metafísico ou universal, pois já não há mais
ação.

Tendo estabelecido esse ponto, devemos recordar que o ser que é


superior à ação possui a plenitude da atividade; mas é uma
atividade em potência, portanto, uma atividade que não é
realizada. Este ser não é imóvel como pode-se dizer a torto e a
direito, mas sim imutável, o que indica superioridade à mudança.
Com efeito, ele é idêntico ao Ser, que se identifica sempre a si
mesmo: de acordo com a Bíblia, ‘’o Ser é o Ser’’. Isso pode ser
identificado com a doutrina taoísta que diz, ‘’a Atividade do Céu é
não agir’’. O sábio, no qual a Atividade do Céu é refletida,
contempla o não-agir. No entanto, o sábio que nós designamos
como pneumático ou yogi, pode ter as aparências da ação, como
a Lua aparenta ter movimento quando as nuvens passam por ela.
Mas o vento que percorre as nuvens não possui influência sobre a
Lua. Do mesmo modo, a agitação do mundo demiúrgico não
influencia o pneumático; A respeito disso, podemos citar o que
fora dito por Adi Shankaracharya:
‘’O yogi, tendo atraversado o mar das paixões, está unido com a
Tranquilidade e se alegra no Espírito.’’

‘’Tendo renunciado a estes prazeres que nascem dos objetos


externos e perecíveis e gozando das delícias espirituais, ele é
calmo e sereno como uma tocha sob um apagador de velas, e ele
se regozija em sua própria essência.”

‘’Durante sua morada no corpo, ele não é afetado por suas


propriedades, como o firmamento não é afetado por aquilo que
boia em seu seio; conhecendo todas as coisas, ele não afetado
pelas contingências.’’

Com isso, podemos compreender o verdadeiro sentido da palavra


Nirvana, cuja tantas falsas interpretações lhe são atribuídas. Essa
palavra significa literalmente extinção fôlego ou da agitação,
sendo possuída por um ser que não está mais submisso a
qualquer agitação e que é definitivamente livre da forma. É um
erro muitas vezes repetido, ao menos no Ocidente, de acreditar
que não há mais nada quando não há forma, apesar de que, na
realidade, é a forma que é nada e o sem forma que é tudo. Assim,
o Nirvana, bem longe de ser a aniquilação como pretendem certos
filósofos, é ao contrário, a plenitude do Ser.

De tudo que fora dito, pode-se concluir que não é preciso agir;
mas isso ainda assim seria inexato, senão em princípio, ao menos
na aplicação que queremos fazer. Com efeito, a ação é a condição
dos seres individuais, pertencente ao Império do Demiurgo. O
pneumático ou o sábio está sem ação na realidade, mas, como ele
ainda reside em um corpo, ele possui a aparência de ação.
Exteriormente falando, ele é totalmente idêntico aos outros
homens, mas ele sabe que isso é apenas uma aparência ilusória, e
isso é suficiente para que ele seja realmente libertado da ação,
pois o através do Conhecimento, obtém-se a libertação. Pela
mesma razão que ele é libertado da ação, ele não está mais sujeito
ao sofrimento, pois o sofrimento é um resultado do esforço,
portanto, da ação. É nisso que consiste o que chamamos de
imperfeição, se bem que não há aí nada de imperfeito.

É evidente que a ação não pode existir para aquele que contempla
todas as coisas em si, como existentes no Espírito Universal, sem
qualquer distinção de objetos individuais, assim o exprime estas
palavras dos Vedas: ‘’Os objetos diferem simplesmente pela
designação, acidente e nome, como os utensílios terrestres
recebem diferentes nomes, quaisquer que sejam, são apenas
diferentes formas de terra.’’ ‘’A terra, princípio de todas as formas,
não possui forma, mas contém todas em potência de vir-a-ser;
assim também é o Espírito universal.’’

A ação implica em mudança, isto é, quer dizer destruição


incessante das formas que desaparecem para serem substituídas
por outras. É isso que chamamos de nascimento e morte, as
múltiplas mudanças de estado que o ser que não alcançou a
libertação ou a transformação final deve passar; e aqui utilizamos
da palavra transformação em seu sentido etimológico, que é a
passagem para fora da forma. A fixação às coisas individuais ou
às formas essencialmente transitórias e perecíveis é algo próprio
da ignorância. As formas não são nada para o ser que está liberto
delas e, com justa razão, mesmo durante seu tempo no corpo, ele
não é afetado em nada por suas propriedades.

‘’É assim que ele se move livre como o vento, pois seus
movimentos são estão limitados pelas paixões.’’ ‘’Quando as
formas são destruídas, o Yogi e todos os seres entram na essência
que penetra tudo.’’ ‘’Ele está sem qualidades e sem ação;
incorruptível, sem volição; feliz, imutável, sem forma;
eternamente livre e puro.’’ ‘’Ele é como o éter, espalhado por toda
parte e penetrando ao mesmo o exterior e interior das coisas; ele
é incorruptível, imorredouro; ele é o mesmo em todas as coisas.
Puro, impassível, sem forma e imutável.’’ ‘’Ele é o
grande Brahmā, eterno, puro livre, um, incessantemente feliz,
não-dualista, existente, perseverante e sem fim.’’

Tal é o estado que o ser atinge pelo Conhecimento espiritual.


Assim, ele está livre de todas as condições da existência individual
para sempre. Ele está livre do Império do Demiurgo.

Revisão de tradução, estilística e gramática: Tiagodeac.

Você também pode gostar