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Νεκροµαντεῖον

domingo, 9 de julho de 2023

Rabbi Maimônides, ocasionalismo, o imaginável, o


possível e o impossível

"Está demonstrado que coisas que não podem ser percebidas ou imaginadas, e que
seriam consideradas impossíveis se fossem testadas somente pela imaginação, no
entanto possuem real existência. A inexistência de coisas as quais são representadas
pela imaginação como possíveis foi igualmente estabelecida por prova, como, por
exemplo, a corporeidade de Deus, e Sua existência como uma força residindo em um
corpo. A imaginação não percebe nada exceto corpos ou propriedades inerentes aos
corpos."

RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, O Guia dos Perplexos, cap. LXXII

O grande filósofo e teólogo judeu do Al Andalus medieval, Rabbi Moisés ben


Maimônides, também conhecido pelo acrônimo Rambam, no capítulo LXXII de sua obra
maior O Guia dos Perplexos, escrito em árabe, apresenta as principais teses que
compunham à época o Kalam, uma corrente teológica islâmica que apresentava
argumentos pretendidamente racionais para provar suas teses centrais. Tais teólogos
não devem ser confundidos com os falasifas, os filósofos islâmicos, como Al Farabi, Al
Kindi, Ibn Sina ou Ibn Rushid, que apoiavam suas teses na herança filosófica grega. Ao
:
contrário, eles rejeitavam explicitamente o recurso a teorias filosóficas gregas.

Conhecidos em seu conjunto como Mutakallemin, embora divididos em correntes como


os Mu'tazillah e Asha'ariyah, os teólogos do Kalam influenciaram também o judaísmo.
Maimônides cita Saadia Gaon e seus discípulos como exemplos de um Kalam judaico. É
interessante notar que Maimônides salienta que os doutos judeus da Andalusia não
adotaram os métodos desse Kalam judaico, mas acolheram dos filósofos gregos aquelas
opiniões que não contradiziam os princípios da sua religião.

Apresentando as doze proposições básicas dos Mutakallemin, o rabbi de Córdoba, tece


ao mesmo tempo alguns comentários sobre os seus óbvios problemas filosóficos. A
primeira proposição ou postulado do Kalam é que o universo é composto inteiramente
por átomos sem magnitude, adimensionais e absolutamente homogêneos criados por
Allah segundo Sua vontade. As coisas não são mais do que configurações passageiras
formadas pela junção desses átomos, e a sua destruição não passa da separação dos
mesmos átomos.

Embora o Rabbi não comente diretamente essa primeira proposição, não é difícil
perceber as suas dificuldades intrínsecas. Se os átomos são adimensionais, ou seja, são
desprovidos de qualquer uma das dimensões corporais-geométricas (comprimento,
largura, altura, profundidade, superfície) como eles podem se unir a outros átomos
igualmente adimensionais para formar algo dimensional? Como diz Aristóteles na Física,
para que duas coisas possam se unir, é preciso contato, e contato pressupõe limite de
algum tipo. Algo que não possui nenhum limite justamente porque não possui nenhuma
extensão não pode entrar em contato com nada, menos ainda com algo que seja
igualmente adimensional.

As dificuldades, no entanto, só aumentam, pois na segunda proposição é afirmado que, a


fim de que os átomos se movimentem livremente, há que haver um espaço
absolutamente vazio, destituído de qualquer substância. Mais uma vez, o Rabbi não
comenta as dificuldades da tese, mas, de novo, não é difícil perceber onde elas residem.
Se já era problemático admitir que átomos adimensionais pudessem se juntar e gerar
entes dimensionais, agora esses mesmos átomos se movimentam e, portanto, mudam de
lugar em um vazio absoluto.

A questão é que, se algo é adimensional, como foi demonstrado por Aristóteles na Física,
não pode, por definição, ocupar um lugar no espaço, e menos ainda mudar de um lugar a
outro. Só o que possui magnitude pode se deslocar, pois ocupa um lugar graças à sua
extensão, por exemplo. Retirada toda a dimensionalidade, não há como apontar um lugar
de partida e um lugar de chegada.

Quanto ao vazio, resta saber o que os Mutakallemin querem significar com esse termo.
Pelo que a proposição assevera, a interpretação mais provável é que eles estejam
realmente tratando de um nada, e não somente de uma espécie de continente sem
conteúdos (como um cântaro sem água), já que o Rabbi diz que o vazio do Kalam implica
a ausência de toda substância. Se for o caso, então junta-se o adimensional com o nada
:
para formar tudo o que existe.

A questão é que, se não há nenhum medium real que separe um átomo e outro, não se
vê por qual razão eles não coincidam. Se entre o ponto A e o ponto B não existe
rigorosamente nada, então nada separa A e B, e, por conseguinte, eles devem coincidir.
Os teólogos do Kalam são obrigados a postular o vazio, como observa o Rabbi, por
causa da necessidade dos átomos de se juntarem e de se separarem a fim de formar ou
desfazer as coisas. Não haveria como essas mudanças acontecerem se houvesse
somente átomos, eles pensam. Como tudo poderia ser ocupado por entes adimensionais
é algo que escapa à compreensão.

Na terceira proposição é afirmado que o tempo é formado por átomos-tempo, cuja


duração curta não pode ser medida. Maimônides diz que essa é uma consequência
lógica da primeira proposição. O tempo, então, seria meramente uma extensão de
momentos indivisíveis ordenados segundo sua posição anterior ou posterior na
sequência. No fundo, isso é uma negação do tempo, pois o que o Kalam está dizendo é
que não há permanência ou duração das coisas, mas somente a passagem de um
átomo-tempo ao átomo-tempo subsequente. Sendo assim, eles admitem que nenhum
movimento pode ser mais veloz que outro. Não é preciso expor as contradições disso
com a realidade visível.

A quarta proposição diz que os acidentes são reais e que eles existem na substância, o
que o Rabbi reputa como verdadeiro. O que o Kalam quer expressar é que, os átomos
sendo absolutamente idênticos, o que vai diferenciá-los uns dos outros são os acidentes
como cor, cheiro, sabor, vida, força, inteligência, etc. Em suma, todas as características
das coisas apresentam não pertencem aos átomos dos quais elas são feitas, mas sim
aos acidentes que são adicionados ou "colocados" neles por Deus. Se todos os átomos
são igualmente sem características distintivas, o mundo formado por eles também não
abrigaria entes com características distintivas.

É exatamente por essa razão que a quinta proposição afirma que os átomos são sempre
providos com esses acidentes, e não podem existir sem eles. Nunca há e nem nunca
haverá o átomo nu, sem acidentes e, consequentemente, sem qualidades distintivas.
Mas que se entenda aqui que o átomo em si mesmo não possui traços próprios de
nenhum gênero. Ele é como uma base indiferenciada sobre a qual são depositados os
acidentes que distinguem as coisas umas das outras.

A sexta proposição é crucial para tudo o que vai ser dito adiante. Ela ensina que os
acidentes não existem entre dois átomos-tempo. O que caracteriza o acidente é sua
incapacidade de permanecer na existência logo após ter sido trazido à existência. Em
outros termos, recordando que os átomos-tempo são indivisíveis como os átomos que
formam as coisas são adimensionais, a cada ínfimo momento, Deus cria todos os
acidentes de uma substância novamente. Não há nenhuma continuidade entre um
momento e outro, de modo que para que um cachorro permaneça na realidade, por
exemplo, é necessário que Deus crie a cada momento que passa todos os acidentes
relativos ao cachorro.
:
O detalhe é que, não havendo nenhuma necessidade que ligue um momento a outro,
todos os acidentes do mundo estão sendo criados e recriados continuamente a cada
passagem de um átomo-tempo ao seguinte. A consequência lógica é que está
absolutamente nas mãos de Deus criar ou não criar, a cada momento, os acidentes que
farão um ente permanecer ou não na realidade, ou ainda, permanecer o que ele é/esteve
sendo até aquele momento. Os Mutakallemin não têm peias em afirmar que, se Deus
assim o desejar, pode descontinuar a existência de qualquer ente a qualquer momento
simplesmente não recriando nele o acidente da vida, por exemplo.

Eles não só admitem, como também defendem como parte essencial de sua doutrina,
que Deus pode a qualquer momento mudar os acidentes de um determinado ente,
acrescentando alguma característica que ele usualmente não possuía ou retirando
alguma característica da qual até ali o ente gozava. A razão disso, o Rabbi comenta, é
que os seguidores do Kalam não querem atribuir às coisas nenhuma capacidade natural
da qual os entes derivam suas propriedades. A consequência lógica é negar às coisas
qualquer capacidade causal na realidade.

A tese segundo a qual somente Deus é o real agente causal em tudo o que acontece no
mundo é conhecida como ocasionalismo divino. Na verdade, não há relações de causa e
efeito no mundo que não sejam efetuadas direta e exclusivamente por Deus. Todos os
acontecimentos são ocasiões nas quais o poder causal divino age no mundo, muito
embora os homens pensem que uma coisa age sobre a outra ou mesmo que eles agem
sobre essas coisas ou que agem sobre outros homens.

Não há ordem no mundo no sentido de um curso natural no comportamento manifesto


das coisas. Há somente a vontade absolutamente livre de Deus que realiza todas as
ações causais, e que pode mudar a qualquer momento os acidentes usuais de um ser,
adicionando ou retirando propriedades, e até transformando-o em algo completamente
diferente daquilo que foi até ali. O homem pensa que tinge um tecido com um pigmento
escuro quando, na realidade, é só Allah que realiza a criação do acidente da cor escura
no tecido onde estava antes o acidente da cor clara.

Na sétima proposição, os teólogos islâmicos afirmam que a ausência de uma


propriedade é ela mesma uma propriedade. As estranhezas não terminam, pois, com
essa tese, os Mutakallemin afirmam literalmente a existência real da ausência, da
privação e do nada. Por exemplo, se um corpo interrompe o seu movimento, ele não
somente deixa de movimentar-se, priva-se do ato de se movimentar, mas, segundo o
Kalam, o corpo pára porque Allah cria nele o acidente do repouso. Isto é, aquilo que é
mera ausência de uma propriedade é entendido pelos Mutakallemin como um acidente
tão real quanto a presença dessa mesma propriedade.

É como se alguém que dissesse que "o cavalo não está no estábulo" imaginasse que em
um momento o cavalo estava no estábulo e que, no seguinte, ele foi substituído por sua
ausência, da mesma forma que coisas físicas trocam de lugar umas com as outras. A
consequência dessa proposição é que, quando um ser vivo morre, a morte não será só a
simples ausência ou privação da vida, mas terá de ser um acidente real criado por Deus
:
em substituição ao acidente da vida, e, pior, terá de ser recriado indefinidamente a cada
momento.

A oitava proposição diz que não há nada além de átomo e acidente, e que a forma física
é também um acidente. A forma física de algo, com suas características sensíveis, é
meramente um acidente adicionado aos átomos indiferenciados. Isso significa que a
aparência de um gato é acidental, não é uma estrutura fixa que caracterize os gatos.
Como todo acidente, a forma física não se mantém de um momento a outro, e tem de ser
recriada ou mudada livremente por Deus. A nona proposição proíbe que um acidente seja
acidente de outro acidente.

Na décima proposição alcança-se o corolário de tudo o que foi postulado até aqui. Não
sem razão, o Rabbi Maimônides dedica à ela seu comentário mais extenso. Segundo a
proposição, que seria uma "teoria da admissibilidade", tudo aquilo que é imaginável deve
ser admitido como possível. Observamos que as coisas que vemos no mundo possuem
certas características constantes. Contudo, nada impede que imaginemos que essas
características pudessem ser diferentes. Por exemplo, podemos imaginar que animais
que são pequenos pudessem ser gigantes e vice-versa.

Ora, se nada nos impede de imaginar que certas propriedades poderiam estar presentes
ou ausentes, ou mesmo serem diferentes, nos entes que conhecemos na realidade,
então não haveria motivo para negar a possibilidade real de existência de qualquer coisa
que imaginemos. Portanto, se é possível imaginar, é possível na realidade. A objeção
óbvia a esse raciocínio é que podemos combinar ou separar imaginativamente coisas
que na realidade não podem ser combinadas ou separadas.

O Rabbi não dá os exemplos a seguir, mas cremos que ilustram facilmente a objeção.
Ninguém duvida que é perfeitamente possível imaginar uma fogueira no fundo do mar ou
um homem vivo sem cabeça, mas daí não se segue logicamente que qualquer uma das
duas situações seja possível na realidade. A razão é simples: as coisas se apresentam
na realidade com determinadas características que expressam uma ordenação fixa que
define o que elas são, o que podem ou não fazer e o que podem ou não sofrer.

Sabemos que o fogo e a água, tais como se apresentam neste mundo, possuem
propriedades essenciais que se anulam mutuamente. Não há como acender uma
fogueira no fundo do mar justamente porque a água apaga ou inibe o surgimento do fogo.
Do mesmo modo, o ser humano, tal como se apresenta neste mundo, não comporta a
possibilidade de permanecer vivo quando está ausente ou foi decepada a sua cabeça. Só
sabemos isso tudo porque compreendemos que há nas coisas uma estrutura fixa de
propriedades que definem o que é cada coisa.

Não parece haver nada de intrinsecamente contraditório na imagem de um cavalo alado.


Embora não se trate de uma impossibilidade lógica (como um triângulo quadrado), daí
não se segue que essa seja uma possibilidade empírica. Dado como as coisas são na
realidade, um cavalo alado é impossível sem que muitas outras condições não tenham
também que ser mudadas. Mas os Mutakallemin defendem que não importa se um ente
:
pertence a uma classe de coisas que possui um determinado conjunto de propriedades, a
verdade é que nenhuma forma é mais provável do que outra.

Tudo o que se pode afirmar é que a estrutura permanente e constante de propriedades


que um ser qualquer exibe neste mundo é comparável ao passeio a cavalo habitual de
um rei pelas ruas de uma cidade. Ele pode repetir sempre o mesmo trajeto sem nunca
perder a capacidade de mudar a sua rotina quando assim o desejar. Deus é esse rei que
habitualmente recria os mesmos acidentes de acordo com cada tipo de ser sem que
jamais esteja preso a qualquer forma ou modo de ação.

A implicação lógica é a de que Deus não está comprometido com a continuação de


nenhuma estrutura constante na realidade. Sendo Ele o único que cria ou recria os
acidentes das coisas a cada ínfimo momento, não há nenhuma ligação necessária entre
um instante e o instante seguinte. O que equivale dizer que não há naturezas. Nenhum
conjunto constante de propriedades caracterizam nenhum tipo de ser na realidade.

Consideramos que o cachorro tem certas características essenciais e fixas, e que


definem o que é ser um cachorro distinguindo-o de todos os outros tipos de seres. Na
realidade, o cachorro é somente o resultado do comportamento habitual de Deus que
discernimos até este momento. Nada, absolutamente nada, exige ou obriga que o
cachorro deva continuar existindo, ou mesmo que ele deva continuar exibindo as
características que até agora exibiu. Tudo depende da decisão e da agência da única
causa real no mundo: Deus.

O Rabbi Maimônides mostra que os Mutakallemin negam que haja uma Forma
substancial (ou essência ou natureza) nas coisas e atribuem toda diferença entre os
seres aos acidentes. Como os átomos são absolutamente idênticos e sem qualidades,
eles podem receber a qualquer momento quaisquer acidentes que Deus deseje impor
sobre eles, e como os acidentes são criados ou recriados a cada instante por Deus, eles
podem ser adicionados ou retirados das coisas sem nenhuma contradição.

O resultado de tudo o que vai acima é que, segundo o próprio Rabbi, por exemplo, o ser
humano não seria melhor constituído para se tornar sábio do que um morcego. Uma vez
que os átomos são uma base indiferente e uniforme, que os acidentes são criados
livremente a cada instante, e que não há nenhuma estrutura formal/essencial que defina
os entes, tudo pode ser tudo (em que pese o fato de que mesmo os
Mutakallemin admitam a impossibilidade de certas coisas). Com essa teoria da
admissibilidade, os adeptos do Kalam podem provar o que quer que desejem provar.

Após expor a décima proposição, o Rabbi Maimônides escreve uma nota ao leitor onde
explica o cerne do erro dos Mutakallemin. Aquele que conhece a alma e suas
propriedades sabe que os homens e os animais possuem imaginação. A diferença entre
os dois está em que o ser humano é capaz não só de imaginação, mas também de
intelecção. O intelecto forma ideias abstratas das coisas, concebendo-as em suas formas
verdadeiras, bem como deriva dos objetos muitos fatos, distingue aquilo que pertence ao
gênero daquilo que pertence somente ao indivíduo, e determina se certas qualidades de
:
uma coisa são essenciais ou não.

A imaginação, por seu turno, não realiza nenhuma dessas funções do intelecto. Ela só
percebe o individual, o composto, o composto, o que se apresenta aos sentidos e é
recolhido pela memória. Ela combina, une e separa aquilo que na realidade aparece
unido ou separado. É assim que podemos imaginar um homem com cabeça de cavalo,
com asas, e coisas desse tipo. A imaginação cria ficções, fantasmas. Não é capaz de
fornecer uma concepção puramente imaterial de um objeto. Não produz teste para a
realidade de uma coisa.

Muito há que a imaginação considera impossível e que, no entanto, é demonstravelmente


verdadeiro. Se imaginarmos uma esfera tão grande quando queiramos, e colocarmos
uma pessoa de pé no topo e outra de pé no lado de baixo, a pessoa de cima
permanecerá de pé e a outra cairá. Não obstante, sabemos muito bem por demonstração
racional que a Terra é esférica, e que o em cima e o em baixo são posições meramente
relativas, de modo que nenhuma pessoa sobre a Terra cai por supostamente se
encontrar na parte de baixo.

Resta demonstrado que há no homem uma certa faculdade que é de todo distinta da
imaginação, e pela qual o necessário, o possível e o impossível podem ser distinguidos
uns dos outros. Rabbi Maimônides refere-se à intelecção, a capacidade de abstrair,
separar, a estrutura formal que define um determinado tipo de ser. É essa estrutura, que
os antigos e os medievais denominavam Forma (eidos, essência, natureza), que
permanece a mesma e que delimita o que é (quidditas, quid est?) aquele ser, o que ele
pode ou não fazer e o que pode ou não sofrer.

Maimônides assume a posição aristotélica de que o mundo, embora tendo sua causa
última em Deus, é composto por seres que exibem naturezas invariáveis pelas quais
recebem seu ser e suas delimitações essenciais. Não fosse essa ordenação inscrita na
própria estrutura da realidade física, nenhum conhecimento e nenhuma ciência seriam
possíveis, pois todas as coisas estariam sujeitas às mais extravagantes transformações a
cada momento. Em certo sentido, as coisas jamais seriam coisas.

Nenhuma ciência verdadeira do mundo pode ter sua base e limite na imaginação. Isto é,
os meros dados dos sentidos, unidos na memória e compilados na imaginação, nunca
ultrapassam o âmbito do individual. A ciência, contudo, só trata do que é universal,
daquilo que vale para todos ou para a maioria, como já ensinava Aristóteles. O homem
de ciência busca descobrir o que vale não para este caso particular, e sim o que vale
para todos os casos análogos.

Necessariamente, ele busca uma estrutura comum a todos os casos a fim de poder
derivar com certeza as propriedades, as capacidades, os poderes e as limitações
daquele tipo de ser como um todo. Ao reduzir todo conhecimento humano das coisas aos
acidentes sensíveis e observáveis que são criados e recriados de instante a instante por
Deus, o Kalam destruiu de antemão a possibilidade de qualquer conhecimento comum ou
científico da realidade.
:
O mesmo acontece com qualquer filosofia que reduza o conhecimento humano às
informações sensíveis e à imaginação. Caso todo nosso conhecimento se limite ao que
testemunhamos pelos sentidos, recolhemos pela memória e recompomos pela
imaginação, nenhuma conexão necessária poderá ser estabelecida entre uma percepção
e outra, entre um fato e outro, entre um acontecimento e outro. Isso se deve ao fato
simples de que nem os sentidos e nem a imaginação (que deles depende) são capazes
determinar ou captar uma ligação entre os fenômenos que não está diretamente à mostra
sensivelmente.

O que nos permite captar uma ligação necessária entre os fenômenos, bem como entre
as propriedades das coisas que observamos, é a intelecção de uma estrutura formal fixa
que constitui a natureza daquele tipo de ser. Não inteligimos ou compreendemos essa
natureza da coisa diretamente pelos sentidos. Vemos uma coisa que se apresenta a nós
sensivelmente com determinadas características. Mas isso nada diz sobre a permanência
ou não dessas características no futuro imediato, e nem é possível distinguir o que é
essencial e o que não é essencial.

O intelecto é capaz de, a partir dos dados dos sentidos, mas para além deles, captar nas
coisas uma estrutura subjacente que permanece a mesma, e que explica e garante que
todos os membros daquele gênero terão basicamente as mesmas características,
propriedades, capacidades e limitações. Sem conhecer as naturezas intrínsecas das
coisas, torna-se impraticável qualquer distinção entre o possível e o impossível que não
tenha a mera imaginação como único critério. O resultado é que o cavalo alado Pégaso
será perfeitamente possível, e a Terra esférica será irremediavelmente impossível.

Não é de se espantar que, séculos depois dos Mutakallemin, uma filosofia como a
defendida por David Hume, que reduz todo o conhecimento humano a impressões,
percepções sensíveis, e ideias, cópias menos vivazes de impressões, não tenha
condições de garantir que o pão que me alimentou ontem vai me alimentar hoje, e talvez
também amanhã. Ao negar qualquer possibilidade de conhecimento empírico que
ultrapasse os sentidos e a imaginação, Hume se coloca na mesma situação dos
Mutakallemin (só que sem Deus). Não deve ser por pura coincidência que ambos falem
do hábito ao tratar das regularidades naturais.

...

Leia também: Νεκροµαντεῖον: Maimônides (oleniski.blogspot.com)

Immanuel Rosenkreuz às 18:51

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