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SE SE PODE FAZER REMONTAR AO INFINITO AS CAUSAS MATERIAIS

Carlos Nougué

Escreveu-me alguém a seguinte objeção à terceira via de S. Tomás para


provar que Deus é:

“Os entes se corrompem, porém a sua corrupção favorece a continuação da


vida e da existência, e esses entes que se corrompem permanecem de algum
modo em outros entes, como um sistema de reciclagem. Ex. o mineral é
consumido pelo vegetal e pelo animal, o animal é consumido por outro animal e
ainda o corpo decomposto de um animal ou de um vegetal servirá de nutrição
para os vegetais. Esse processo parece ser infinito, dessa forma como afirmar
que todas as coisas um dia deixarão de ser?”

RESPOSTA

I) PREÂMBULO.
1) Note-se, antes de tudo, que a objeção não se volta exatamente contra a
terceira via de S. Tomás. Com efeito, esta não se ocupa propriamente do gênero
das causas materiais enquanto tal, senão que afirma que, se só houvesse entes
que um dia deixariam de ser e que portanto antes não tinham sido – no sentido
preciso de que, conquanto derivando segundo a matéria da corrupção de outro
ente, um cavalo gerado é uma novidade no ser que um dia deixará de ser –,
então um dia nada teria sido: porque é impossível que se dê uma série de entes
somente possíveis1 sem que haja um primeiro ente necessário e eterno que seja
a causa do ser de todos os possíveis e seja, ele mesmo, incausado.
2) Como digo em um curso meu, a única fraqueza que se pode apontar na
terceira via tomista é sua suposição (que a objeção desconhece, uma razão mais
para dizer que não se volta precisamente contra esta via) de que há entes
necessários e incorruptíveis que porém requerem uma causa para ser: parece-
me tratar-se dos astros. Como se sabe, para S. Tomás, como para toda a
Antiguidade, os astros eram incorruptíveis, o que viria a desmentir-se pela

1Com efeito, o que um dia não foi e um dia deixará de ser é tão só um possível, e requer
uma causa para ser.
luneta de Galileu. Isso, porém, como explico no curso, não invalida a prova,
apesar de requerer de nós que a readequemos.
3) Em verdade, insista-se, a objeção atém-se à causalidade material. Poder-
se-ia responder a ela no só âmbito da mesma causalidade. Mas não seria uma
resposta cabal, definitiva. Como se diz em Se se contradiz Santo Tomás ao
afirmar que uma criação ab aeterno não repugna à razão, não devemos cair na
armadilha lançada pelas objeções às vias tomistas: sem compreenderem que
estas são apenas um passo na progressão da analogia do ente, tendem a forçar-
nos a responder a elas cingindo-nos também a este só passo. Por isso, a resposta
a esta objeção, se começa pelo âmbito da causalidade material, prosseguirá
porém com os demais passos da analogia do ente, para defender a via de S.
Tomás de uma objeção oblíqua.
II) Para mostrar que não há processo ao infinito no gênero da causa
material, leiamos antes de tudo ao mesmo S. Tomás.

“Não é possível que se proceda ao infinito em que algo se faça de algo como
de matéria, como, por exemplo, que a carne se faça de terra, a terra de ar, o ar
de fogo, e que isto não se detenha em algo primeiro, senão que proceda ao
infinito.”2

Devemos, ademais, atentar ao que diz o Padre Álvaro Calderón ainda de


maneira preambular: “Quanto a isto, há que considerar que o paciente se sujeita
ao agente, de maneira que proceder na ordem dos agentes supõe ascender
(sursum ire), enquanto proceder na ordem dos pacientes implica descer
(deorsum ire). Ora, assim como o agir se atribui à causa eficiente ou motora,
assim também o padecer se atribui à matéria. Portanto, o processo das causas
motoras é ascendente (in sursum), enquanto o processo das causas materiais é
descendente (in deorsum)”. Mas já se mostrou (em Se é possível fazer remontar
ao infinito as causas eficientes ou motoras) que não é possível proceder – in
sursum – ao infinito no âmbito das causas eficientes ou motoras: há que
mostrar agora, por conseguinte, que tampouco é possível proceder – in deorsum
– no âmbito das causas materiais. Para fazê-lo, antes de tudo sigamos a
argumentação de Santo Tomás em In II Metaphysica, lect. 3, n. 305-315.
No gênero das causas eficientes, é manifesto para os sentidos o último efeito,
que já não move nada, razão por que já não se investiga se se procede ao infinito

2 In II Metaphysica, lect. 2, n. 300.


in deorsum – isto é, ao inferior – segundo este gênero de causas, senão que se
investiga apenas se se pode proceder in sursum, isto é, ao superior – em outras
palavras, do mais particular ao mais universal. No gênero todavia das causas
materiais, tem-se por suposto que existe algo primeiro que é fundamento de
tudo o mais: a matéria prima. Apresenta-se então o problema de se se pode
proceder ao infinito descendo – ou seja, indo do mais universal ao mais
particular – segundo o processo mesmo do que se gera da matéria. Desse modo,
se se pusesse, como diz o Padre Calderón, que a matéria prima de todas as
coisas fosse o fogo ou o plasma, haveria que perguntar se “pode dar-se que do
fogo ou do plasma se gere a água ou o hidrogênio, se da água ou do hidrogênio
se gere a terra ou o carbono, se do carbono os carbonatos, se dos carbonatos
outros materiais e assim ao infinito, indo do mais geral ao mais particular”.
Para resolver esta questão, é necessário considerar os modos como algo se
faz de outro algo propriamente e essencialmente (isto é, per se). Com efeito, há
que excluir o modo impróprio segundo o qual se diz que algo se faz de outro
algo tão somente porque se faz depois deste algo, como quando se diz que a
Epifania se faz do Natal. Mas isso não se diz propriamente, porque todo e
qualquer fazer-se é certa mudança, e em toda e qualquer mudança se requer não
só a ordem de dois termos, mas também um mesmo sujeito para ambos, o que
não se dá no exemplo da Epifania e do Natal.3
Pois bem, diz-se propriamente que algo se faz de outro algo quando algum
sujeito muda disto para aquilo, o que pode dar-se de duplo modo. Antes de
tudo, como da criança se faz o homem, ou seja, na medida em que passa ou
muda do estado infantil para o estado adulto. Depois, como da água se faz o ar,
ou seja, por certa transmutação. Mas também é dupla a diferença entre estes
dois modos.
• Em primeiro lugar, no primeiro modo se diz que da criança se faz o homem
assim como do que se está fazendo se faz o que já está feito, ou assim como do
que se está perfazendo se faz o já perfeito. O que está fazendo-se ou perfazendo-
se é algo intermédio entre o ente e o não ente, assim como a geração é algo
intermédio entre o ser e o não ser. Ora, assim como pelo intermédio se chega ao
extremo, assim também do que se gera se faz o que está gerado, e do que se
perfaz se faz o perfeito. Diz-se assim, portanto, que da criança se faz o homem,
ou que do que aprende se faz o sábio. – No segundo modo, todavia, segundo o

3 Se dizemos que a Epifania se faz do Natal, não é senão porque imaginamos que o
tempo é o sujeito das diversas festas.
qual se diz que da água se faz o ar, um dos extremos não está para o outro como
o que se está fazendo está para o já feito, mas antes como o termo de que se
parte está para o termo a que se chega, de modo que da corrupção de um se faz o
outro.
• Em segundo lugar, do que se acaba de dizer decorre a outra diferença. Com
efeito, como no primeiro modo um está para o outro como o que se está fazendo
está para o já feito e como o intermédio está para o extremo, é manifesto que há
uma ordem natural entre os dois, razão por que não eles podem reverter-se
entre si indiferentemente. De fato, não se pode dizer que, assim como da criança
se faz o homem, assim do homem se faz a criança, porque estes dois, de um dos
quais se faz o outro segundo o primeiro modo, não estão entre si como dois
termos de certa transmutação, mas como dois dos quais um vem depois do
outro. E isso é assim porque o gerado, isto é, o que é termo da geração, não se
faz da geração como se a própria geração mudasse no que é, senão que o ser vem
após a geração porque se segue à geração segundo a ordem natural (assim como
o termo vem ao fim do caminho, e o último após o intermédio). Se pois se
consideram a geração e o ser, ver-se-á que não diferem do modo que se excluiu,
no qual só se considerava a ordem, como quando se diz que o dia se faz da
aurora porque vem depois desta. Mas tampouco aqui se pode dizer, pela ordem
natural que seguem, que inversamente a aurora se faz do dia: justamente como,
pela mesma razão, não se pode dizer que do homem se faz a criança. – Segundo
o outro modo, todavia, no qual algo se faz de outro algo, dá-se, sim, reversão ou
reflexão: com efeito, assim como o ar se gera da corrupção da água, assim
também a água se gera da corrupção do ar. É que estas duas coisas não estão
uma para a outra segundo uma ordem natural, como de intermédio para termo,
mas como dois extremos que podem ser, ambos, primeiros ou últimos.
Supostas pois tais distinções, vê-se que é impossível um processo ao infinito
nos dois modos referidos
• No primeiro, no qual, por exemplo, da criança se faz o homem, não se pode
proceder ao infinito porque a criança se encontra como intermédio entre dois
extremos, o ser e o não ser; e é impossível que haja infinitos meios sem estes
dois extremos, porque, com efeito, o extremo repugna ao infinito. Trata-se da
mesma razão que para as causas eficientes ou motoras, onde sempre se dá uma
ordem de anterior a posterior sem reversão ou reflexão.
• No segundo, ademais, tampouco se pode remontar ao infinito, mas aqui
porque neste modo se dá reversão ou reflexão dos extremos entre si. Com efeito,
a corrupção de um implica a geração do outro, mas, onde se dá reversão ou
reflexão, volta-se ao primeiro, de sorte que o que primeiramente foi princípio
passa a termo. Mas isto não pode dar-se no infinito, em que não há princípio
nem fim.
Conclui-se, por conseguinte, que nada pode fazer-se de outro ao infinito, de
modo algum.
III) Como diz porém Santo Tomás em muitos lugares e especialmente em Da
Eternidade do Mundo contra Murmurantes, conquanto saibamos pela fé que o
mundo foi criado no tempo, não é impossível porém que tivesse sido criado ab
aeterno.4 Neste caso, portanto, como não se pode remontar ao infinito nas
causas materiais, dever-se-ia então encontrar um princípio material eterno de
que se fizessem todas as coisas – e pareceriam ter razão, então, os filósofos
físicos da Jônia. Para refutá-lo, basta que sigamos uma vez mais a S. Tomás.5
Com efeito, Aristóteles mostra em que sentido algo provém de um princípio
material. Para tal, subentende duas razões gerais com respeito às quais todos os
físicos jônios estavam de acordo. A primeira é, precisamente, que existe um
primeiro princípio material, o que impede que se remonte ao infinito na
geração. A segunda é a eternidade da matéria prima.
Dado, porém, justamente, que a geração não remonta ao infinito, senão que
se detém num princípio material, é pois necessário que não seja o princípio
material eterno postulado pelos físicos jônios. Com efeito, não pode tratar-se
deste princípio, tal como postulado pelos jônios, porque todas as coisas provêm
de um primeiro princípio material como de um imperfeito existente em
potência, intermediário entre o puro não ente e o ente, e não como a água se faz
do ar e vice-versa.
Temos assim, repita-se, não só que há de haver um primeiro princípio
material, a matéria prima, senão que este princípio não é o afirmado pelos
físicos jônios, mas um imperfeito existente em potência e intermédio entre o
ente e o não ente. Pois bem, podemos considerá-lo, de certo modo, o inverso da
causa motora ou eficiente primeira: assim como esta, para sê-lo, há estar quanto
ao ser acima da própria série de causas de que é primeira, assim também a
matéria prima, para sê-lo, tem de estar quanto ao ser abaixo da própria série de
entes de que é princípio material primeiro: ou seja, subjacente a eles no sentido

4 Cf. ainda Se se contradiz Santo Tomás ao afirmar que uma criação ab aeterno não
repugna à razão.
5 Segue-se a partir daqui o dito em In II Metaphysica, lect. 3, n. 315.
de implícita neles, porque, com efeito, a matéria prima por si não tem forma,
senão que está potência para todas as formas.
Poder-se-á objetar então que, um pouco ao modo como a considerava Platão,
a matéria prima seria eterna por si ao mesmo título que a ideia do Uno. Não
pode porém ser assim, porque o que é tão imperfeito a ponto de ser pura
potência entre o não ente absoluto e o ente não poderia, muito mais que tudo,
ser por si. Por isso, muito mais que tudo, a matéria prima tem de ter sido criada,
ou seja, feita de nada, ex nihilo. Mas, como é pura potência, não pode ter sido
criada senão como já subjacente aos entes em sua multiplicidade de formas, ou
seja, enquanto já informada. E, como tal, poderia ter sido criada ab aeterno por
Deus. Com efeito, como diz S. Tomás em Da Eternidade do Mundo contra
Murmurantes, o nada não precede no tempo ao ente, porque não pode haver
trânsito temporal a partir do nada: a criação do mundo é súbita. Mas porque o
nada não precede no tempo ao ente não é necessário que eles sejam
simultâneos; e, se a criatura tivesse existido sempre, não haveria de pôr-se, é
claro, que em dado tempo tivesse sido nada. É porém necessário pôr que sua
natureza ainda seria tal, que ela não seria nada se fosse entregue a si mesma,
assim como, se o ar tivesse sido sempre iluminado pelo sol, far-se-ia sempre
luminoso por este, mas, se este o deixasse entregue a si mesmo, deixaria de
imediato de ser luminoso e se tornaria tenebroso.

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