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A Estética de Alexander Gottlieb Baumgarten

Prof. Guilherme Ferreira


guilhermecicm@yahoo.com.br

Aula 1

Chama a atenção o quanto as aparições mais extraordinárias dependem de causas


externas, não só no reino dos espíritos, mas também na república dos filósofos. As
diferentes conjunturas e situações de vida fornecem à maneira de pensar as suas
diversas direções, e é especialmente a tonalidade da instrução, por assim dizer, a
primeira roupagem da jovem alma, que mais contribui para a forma com que ela
posteriormente aparecerá para o mundo. Tudo isso é válido também para
Alexander Gottlieb Baumgarten. A sua primeira educação esteve aos cuidados de
um filólogo; poderia ser ela favorável para outra coisa senão o latim e a poesia? E
como chegou a eles sob os cuidados de um filólogo? Como não ver o latim e a
poesia como florescências, frutos, mais como um brinquedo que um instrumento,
mais como um doce sobre a língua que um alimento. Assim era o jovem
Baumgarten, que todo dia se acreditava incompleto se não compusesse versos em
latim, que podia digerir melhor o sermão de domingo se o forçasse a uma métrica
latina e, por fim, diz o seu biógrafo, que tirava de sua educação em latim e filologia
a “vantagem incomum de, na maturidade, poder proferir em latim o seu discurso
de posse em Frankfurt”. De fato, uma vantagem incomum (HERDER, 2010)1.

Com essas palavras, o filósofo e escritor alemão Johann Gottfried von Herder (1744-1803)
introduz o seu Monumento a Baumgarten, texto em homenagem ao filósofo fundador da estética
como disciplina filosófica moderna. Nascido em Berlim no ano de 1714, Alexander Gottlieb
Baumgarten foi filósofo e professor licenciado pela Universidade de Halle, onde construiu a sua
formação acadêmica, inteiramente influenciada pela filosofia racionalista de Christian Wolff
(1679-1754)2. Filho de Pastor luterano-pietista e irmão do teólogo e professor da Universidade de
Halle, Siegmund Jakob Baumgarten (1706–1757), Alexander Baumgarten defendeu a sua
dissertação em 1735, cujo título Considerações filosóficas sobre alguns tópicos referentes à
essência do poema o consagrou como primeiro e único filósofo da Escola de Wolff a se interessar

1
Sobre a tradução brasileira do texto, conferir: HEDER, J. G. Monumento a Baumgarten. Tradução e notas de Oliver
Tolle. In: A Palo Seco: Escritos de Filosofia e Literatura, Vol. 2, nº. 2010, pp. 58-65. Tradução realizada a partir de:
Bruchstück von Baumgartens Denkmal. In: Johann Gottfried Herder: Werke in zehn Bänden: Band 1: Frühe Schriften
1764-1772. Editado por Ulrich Gaier. Deutscher Klassiker Verlag: Bonn, 1985, p. 682-94.
2
Vale lembrar que, no contexto de sua formação na Martin Luther Universität Halle-Wittenberg, mais exatamente em
1733, Baumgarten passou uma boa temporada em Jena para acompanhar as palestras do professor Johann Peter Reusch
(1691-1758) sobre a filosofia de Christian Wolff.
pela arte enquanto objeto privilegiado da assim nomeada “filosofia racional” (Estética, 1993, p.
9). Na introdução do seu discurso de defesa de tese, o jovem filósofo, àquela época com apenas 21
anos de idade, rememora o seu prematuro interesse pelos estudos literários, desde a adolescência,
contexto em que se tornou órfão pelo falecimento precoce dos pais e ingressou no “próspero liceu
de Berlim”3, o antigo Berlinisches Gymnasium zum Grauen Kloster, tendo seus estudos guiados
pelo professor Martin Georg Christgau (1697–1776), com quem aprendeu hebraico e foi
estimulado aos primeiros contatos sobretudo com a poesia latina e a filologia. Em A vida e o
caráter de Alexander Baumgarten [Alexander Baumgartens Leben und Charakter] (1764), o seu
aluno e biógrafo Thomas Abbt (1738–1766) registra que Martin Christgau foi preceptor de
Baumgarten entre os 8 e os 13 anos de vida. Desde essa época, Baumgarten nunca mais abandonou
as investigações literárias, cuja estreita relação com a tradição metafísica wolffiana não só o
preparou para a escrita de sua tese inovadora – cujo objetivo central era demonstrar que “a filosofia
e a ciência da composição do poema [a poética em sentido aristotélico], frequentemente
consideradas muito afastadas uma da outra, constituem um casal cuja união é totalmente amigável”
(idem, p. 10) –, como também o consagrou como ilustre professor de poética nas universidades de
Halle e Frankfurt, atividades estas que certamente contribuíram para a sua fama como “pai da
estética filosófica”, um legado reconhecido por filósofos como Kant, Herder e Hegel, e que fora
consolidado com a publicação de sua obra de maior alcance, a Estética (1750), que nada mais
ambicionava senão a clara e revolucionaria tentativa de ampliação do campo poético ao regime
propriamente estético das artes liberais em geral (arquitetura, escultura, pintura, música etc.).
Mas é certo que essa fama atribuída a Baumgarten, sobretudo pelo texto de Herder, não se
justifica apenas pelo seu interesse particular pelas artes, ou mesmo, pela sua tentativa
revolucionaria de reposicionamento dos limites entre filosofia e poesia, poética e estética; há todo
um contexto social, político e intelectual favorável ao tal empreendimento inovador de
estabelecimento da Aesthesis como disciplina filosófica. Em termos políticos, na primeira metade
do “século das luzes” a Brandemburgo-Prússia se organizada sob as bases de um sistema
absolutista e centralizador de governo, orquestrado pelo soldado Frederico Guilherme I (1688-

3
O antigo Berlinisches Gymnasium zum Grauen Kloster foi fundado em 13 de julho de 1574 pelo príncipe-
eleitor John George de Hohenzollern, sendo conhecido como a primeiro liceu protestante de latim em Brandemburgo ,
e sediado no terreno do antigo mosteiro medieval de Greyfriars ( Graues Kloster ). Entre os ilustres estudantes do
antigo Ginásio protestante, destacam-se o filósofo e teólogo responsável pela tradução e edição dos Fragmentos de
Heráclito, Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), e o próprio Baumgarten.
1740), que havia sido eleito Rei da Prússia no primeiro ano do século. Embora o fim do Sacro
Império Romano, a Reforma luterana e a Paz de Vestfália, no conjunto de seus tratados, tenham
fortalecido o reino prussiano em termos de autonomia política e soberania territorial, enquanto os
Holandeses já haviam se libertado do despotismo católico espanhol e gozado de sua plena
autonomia e progresso cultural, político, econômico e artístico, em sua famosa “Idade de Ouro”, a
Prússia de Baumgarten ainda patinava na lama do despotismo do “Soldado Rei”. Ainda seriam
necessárias muitas décadas para que o florescimento daquela tal desejada “liberdade sagrada”
triunfasse sobre o despotismo do Estado e do clero.
Por um lado, a sensação prussiana de atraso cultural em relação a países como França e
Itália não deixava de ser um estímulo concreto para os empreendimentos intelectuais de
Baumgarten, mesmo que ainda não houvesse uma ampla e organizada reivindicação social contra
tais atrasos culturais, como ocorrerá a partir de 1790, com o início a Revolução Francesa e o seu
forte impacto na formação do Idealismo e Romantismo alemães, a começar por Kant. Nesse
contexto “iluminista”, a Alemanha ainda não possuía qualquer condição econômica ou política
para implementar a sua “Idade de Ouro”, como já havia ocorrido na França, na Itália e na Holanda,
por exemplo. O seu território ainda era fragmentado em diversos principados, tendo maior peso a
atividade agrária, e sendo a sua população de maioria camponesa, sem níveis de formação capazes
de confrontar o despotismo do Estado e do clero prussianos. Por outro lado, em termos artísticos
e intelectuais, a condição prussiana era no mínimo situacional e elitista; um privilégio para poucos,
como fora o caso de Baumgarten. Enquanto a França de Diderot, Voltaire, d’Alembert e Rousseau
já desfrutava do privilégio de ser a “capital da arte europeia”, caminhando a passos largos em
direção a realização de sua de liberdade, a Alemanha de Christian Wolff e Baumgarten ainda estava
à procura de idealização da liberdade, o que só se tornou uma ampla discussão cultural, política,
social, artística e intelectual apenas a partir da última década do século. Nesse sentido, a Escola de
Wolff foi, sem dúvida, o principal patrimônio intelectual-filosófico do contexto iluminista alemão,
compartilhando espaço com o nascente e restrito cenário artístico-liberal de historiadores de arte e
poetas como Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781)
e Christoph Martin Wieland (1733-1813). A altura do falecimento de Baumgarten em Frankfurt,
em 1763, Goethe ainda era um adolescente de 13 anos. E entre os séculos XV e XVIII, vale
lembrar, poucos nomes surgiram e se destacaram no âmbito das artes liberais alemãs, como é o
caso excepcional do pintor Albrecht Dürer (1471-1528).
No entanto, é verdade que para o campo das ciências da natureza o contexto iluminista-
alemão foi em alguma medida mais favorável em comparação com as artes e a “ciência do
conhecimento sensitivo”. Afinal, entre o fim reinado de Frederico I e as quatro primeiras décadas
do reinado do “Rei filósofo”, Frederico II da Prússia, os alemães puderam assistir a Academia
Prussiana de Ciências atingir o auge de suas realizações. Entre seus membros mais ilustres,
destacam-se os enciclopedistas franceses Montesquieu, Voltaire, d’Alembert e Diderot, ao lado do
químico alemão Andreas Sigismund Marggraf (1709-1782) e do matemático alemão Johann
Heinrich Lambert (1728-1777).
Em vista deste conjunto de situações, não me parece descabida, portanto, a sugestão de que
o “século das luzes” alemão era iluminista demais para dar atenção às vias obscuras e sensíveis da
alma humana. Do mesmo modo, me parece razoável sugerir que a filosofia alemã setecentista era
por demais “racionalista-cristã” para valorizar os conhecimentos sensitivos, na mesma medida em
que o Reino prussiano era economicamente atrasado demais para se preocupar com as artes
liberais; isso sem contar que o regime político Frederico Guilherme I era por demais centralizador
para dar espaço à autonomia e à liberdade proporcionadas pela arte e seu conhecimento estético-
filosófico. Mas é justamente com base neste contexto de atrasos em desfavor das artes, da Aisthesis
e do desenvolvimento cultural alemão, que Baumgarten encontrará um espaço totalmente aberto
para a sua tentativa revolucionaria de ampliação do campo poético ao regime propriamente
estético das artes em geral. E não poderia haver um ambiente intelectual mais propício aos
interesses do jovem filósofo senão a Universidade de Halle, onde Christian Wolff estabeleceu a
sua escola de pensamento, passando a maior parte de sua carreira como professor de matemática,
filosofia, ciência jurídica, metafísica e lógica, e ocupando o cargo de chanceler da instituição em
17434. Como lembra Herder em Monumento a Baumgarten, os estudos acadêmicos do jovem
filósofo

ocorreram numa época em que a filosofia de Wolff era considerada heresia na


Alemanha – estímulo suficiente para uma mente nascida para a contemplação e
que até então tinha sido afastada dela pela teologia e pelos estudos filológicos.
Baumgarten não se deixou impedir pela má reputação do nome – foi antes esse

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Em função de sua ilusão intelectualista, que insistia na crença de que tudo pode ser provado, incluindo Deus, os
luteranos-pietistas se revoltaram contra as teses consideradas ateístas de Christian Wolff, ao ponto de Frederico I
expulsá-lo de Halle em 1723. Wolff então se muda para Marburgo, ensinando a sua filosofia, agora racionalista-
dogmática, na Universidade de Marburgo, até o momento em que é convocado por Frederico II para retomar a sua
cadeira na Universidade de Halle, no início da década de 1740.
impedimento que o incitou; o seu gênio estava vivo e dessa maneira o filósofo se
formou em meio aos escritos de Wolff (HEDER, 2010, p. 58).

Como vocês sabem, após o enfraquecimento do sistema metafísico-dogmático wolffiano,


articulado pelas filosofias de Hume e Kant, o termo “metafísica” alcançou inúmeros significados,
cujo aspecto dogmático de combate à “filosofia perene” (diríamos, a “filosofia realista do ser”) em
favor da tentativa obsessiva de provar a existência de Deus – a partir de predicações em busca de
certezas racionais absolutas (teologia racional), de modo a reduzir o irracional e contingente ao
racional e necessário, e anular as fronteiras e os limites entre os princípios da razão suficiente e da
contradição – se tornou a marca central dos sistemas metafísicos. Mas o próprio Kant – que, no
prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787), considerou Wolff “o maior de todos
os filósofos dogmáticos”, agradecendo Hume por despertá-lo desse sonho – sabia que a metafísica
da escola de Wolff extrapolava e muito a ilusão obsessiva em busca de provas para a existência de
um ser transcendente. A certeza mais imediata disso está no fato de que a estrutura distributiva das
CRP tem a sua referência pautada justamente na divisão das disciplinas metafísicas empregadas
pela escola wolfiana. Na parte preliminar de sua “Lógica enciclopédica”, Hegel nos oferece um
quadro adequado dessa divisão da metafísica dogmática: a “ontologia” configura-se como a parte
mais geral da metafísica wolffiana, já que ali ela se classifica como “a doutrina das determinações
abstratas da essência”. No interior dessa parte mais geral, encontram as partes específicas da
“metafísica/ontologia”: i) primeiro, temos a psicologia racional, cujo objeto é a “natureza
metafísica da alma” ou, se preferirmos, a natureza do “espírito como uma coisa” [Sache]; ii)
segundo, temos a cosmologia ou, se quisermos, a filosofia da natureza e do espírito ( espírito “em
suas implicações exteriores, em seu fenômeno; portanto, em geral o ser-aí, o teor [Inbegriff] do
finito”), cujos objetos são a quantidade (o número, o espaço e o tempo, o lugar e o movimento) e
a qualidade (a natureza e propriedades dos corpos, do orgânico e inorgânico etc.) dos seres, além
da “liberdade do homem e a origem o mal” e a diferença entre “liberdade e necessidade”; iii) por
último, temos a teologia racional, cujo objeto “é o conceito de Deus ou sua possibilidade [com
base no entendimento], isto é, as provas do seu ser-aí [existência] e suas qualidades”, tal como
“nós nos representamos por Deus” (ECF I, pp. 94-101).
Ora, Baumgarten não só conhecia com profundidade tal arquitetônica racionalista-
dogmática – tendo inclusive acompanhado as palestras do professor Johann Peter Reusch sobre a
filosofia de Christian Wolff, em 1733, na Universidade de Jena – como principalmente
acompanhou tal divisão estrutural em sua metafísica, acrescentado a ela, porém, a “ciência do
conhecimento sensível” (a estética com relação à sensibilidade artística sobretudo), definida em
geral como um “conhecimento inferior” ao “conhecimento superior” da “clareza” e da “distinção”,
não deixando porém de se estabelecer como um “saber análogon da razão”. É nesse espaço aberto
entre a sensibilidade e a razão, que a estética baumgartiana se insere e se fundamenta, sendo a
primeira parte específica da arquitetônica wolffiana, a psicologia racional (cujo objeto é a natureza
metafísica da alma), o ponto de partida e o regime natural para a fundamentação filosófica da
Poiética [ποίησις] e da Aisthesis [αἴσθησις] de Baumgarten.

Aula 2

Como vocês sabem, desde a filosofia grega clássica o conhecimento da sensibilidade,


enquanto conjunto de operações sensitivas do espírito – ou se preferirem, enquanto faculdade de
experimentação dos sentimentos, sensações e imaginações os mais diversos –, não só se manteve
em relação de rígida dependência e oposição às operações intelectuais do entendimento e da razão,
como igualmente foi assimilado como “faculdade inferior”, digna de recorrentes
“descredenciamentos filosóficos”, bem como da “clara e distinta desconfiança” por parte dos
filósofos antigos. Quanto, por exemplo, Platão determina a expulsão dos poetas de sua “República
ideal”, sua operação de descredenciamento filosófico da arte é claramente justiçada pelo
“dualismo” entre a natureza enganosa do “conhecimento sensível” e o caráter verdadeiramente
belo e bom do “conhecimento inteligível”, sendo o fenômeno artístico, a propósito, mais do que
um conhecimento enganoso, uma “falsificação do falso” em relação aos três níveis ontológicos da
realidade ordinária: as ideias, as cópias materiais das ideias e a cópia das cópias das ideias.
Alguns filósofos argumentariam, contra Platão e em favor do tratado das Belas-artes de
Batteux5, que o trabalho mimético de “falsificação do falso” incidiria na realização da própria
verdade conforme as ideias suprassensíveis do belo e do bom, já que, por meio do trabalho dos
“artífices da imagem”, a ideia se manifestaria pela cópia da realidade, através da qual o caráter

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Professor de poesia grega e latina e retórica no Collège Royal de Paris, Charles Batteux (1713-1780) é autor do
famoso tratado Les Beaux-Arts réduits à um même principe, de 1746, em que defende a imitação como síntese do
“entusiasmo” da “ficção” e da “versificação” envolvidos na criação poética e artística, portanto, a mimesis como
princípio da arte em geral. Nas palavras de Batteux: “a imitação é a mais provável essência da arte, pois ela contém
em si o entusiasmo, a ficção e mesmo a versificação como meios para imitar perfeitamente o objeto” [tradução
modificada]. Conferir: BATTEUX, Charles. As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio. Trad. Natalia Maruyama
et. al. São Paulo: Humanitas, 2009, pp. 91.
falso da realidade em relação a ideia suprassensível seria superado pela manifestação de uma
“aparência da aparência”.
No entanto, como podemos acompanhar sobretudo nos livros III, V e X da República
(2004), a maiêutica socrática direcionada aos discípulos Adimanto e Glauco não deixa dúvidas
sobre o caráter “destrutivo” e “desprezível” das imitações artísticas, as “aparências das
aparências”, produzidas em especial pela poesia e pela pintura. Assim, ao ser interpelado por
Glauco sobre “quais seriam os verdadeiros filósofos” realmente “capazes de se elevarem ao nível
da essência do belo”, Sócrates não se hesita em devolvê-lo à questão: “– aquele que conhece as
coisas belas, não conhece a beleza em sua essência e não é capaz de seguir aos que poderiam levá-
lo a esse conhecimento, parece-te que vive sonhando ou acordado? – sem dúvida que sonhar é
isso”, conclui o jovem (2004, p. 184). No decorrer da conversa fica claro onde o raciocínio do
mestre pretende chegar: a distinção entre o “conhecimento do ser” (“pensamento é igual a
conhecimento”) e a “impressão sensível das coisas” (pensamento é igual a opinião) estão para a
diferença entre “ciência” e “juízo imediato”, no mesmo compasso em que a “realidade do belo em
si” (essência) e “impressão das coisas belas” (aparência) encontram-se em irresoluta oposição.
É justamente nesse sentido que o diálogo de Sócrates com Adimanto se encaminha na
direção da “expulsão do poeta da cidade” ideal. Se “realidade do belo em si, em sua essência e nos
objetos que nele participam” (idem, ibidem), possui um valor de verdade estruturado como “Ideia”,
então como poderia a cidade ideal conceber autonomia irrestrita aos “artífices do falso”, para os
quais a verdade suprema é rebaixada ao terceiro nível da imitação? Ora, assevera o mestre da
ironia: “por isso mesmo, para o nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias
mais austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo moderado
e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei,
quando nos dispusemos a educar nossos guardiões” (2012, p. 22). No livro X da República, ao
ensinar a Glauco “o que seria a imitação” – servindo-se do conhecido exemplo das “três formas”
do objeto “cama” e os graus de verdade atribuídos a esses modos de expressão –, Sócrates expõe
as consequências negativas em acolher na cidade ideal os “artífices do falso” como os poetas e os
pintores. Assim, ele conclui:

É claro que o poeta imitador não se inclina por natureza para um tal caráter da alma
[...] ao contrário, inclina-se para o caráter irritável e instável, porque este é mais
fácil de imitar [...] podemos com razão, censurá-lo e considerá-lo idêntico ao
pintor. Assemelha-se a ele por só produzir obras sem valor, do ponto de vista da
verdade, e assemelha-se também por estar relacionado ao elemento inferior da
alma [a sensibilidade], e não com o melhor dela [a ideia]. Estamos então bem
fundamentados para não o recebermos num Estado que deve ser regido por leis
sábias, visto que este indivíduo desperta, alimenta e fortalece o mal da alma e assim
arruína o elemento racional [...] o poeta imitador introduz um mau governo na alma
de cada indivíduo, lisonjeando o que nela há de irracional, o que é incapaz de
distinguir o maior e o menor [...], que só produz fantasias e se encontra a uma
distância enorme da verdade (PLATÃO, 2004, pp. 334-35).

Já no caso da filosofia de Aristóteles, ao contrário da abordagem de seu mestre, podemos


observar que a “arte mimética” por excelência (a poesia trágica) é exaltada como atividade capaz
de promover um “efeito catártico” [kátharsis]6 e, portanto, “formativo” em seus expectadores. Em
sua Poética, Aristóteles compreende a imitação não mais como uma mera reprodução da realidade
ordinária, mas sim como uma “mimética produtiva”, pela qual o poeta trágico representa as coisas
e os eventos particulares não como eles são ou ocorreram, mas como eles poderiam ser ou
acontecer, o que, em última instância, conduziria ao afeito catártico no espectador. Ao comparar,
por exemplo, o caráter mimético das atividades do poeta e do historiador, Aristóteles é enfático ao
sustentar que “a tarefa do poeta não é a de dizer o que de fato ocorreu, mas o que é possível e
poderia ter ocorrido segundo a verossimilhança e necessidade” (2015, pp. 95-96), ou por analogia
à realidade ordinária, se vocês preferirem. Nesse sentido, o historiador e o poeta “diferem entre si
não por descreverem os eventos em versos ou em prosa, mas porque um se refere aos eventos que
de fato ocorreram, enquanto o outro aos que poderiam ter ocorrido”. Tal caráter “universal” da
poesia (e de “outras artes miméticas”), nesse caso, tem a ver sobretudo com a coesão narrativa “em
torno uma ação una”, que não diz respeito à precisão dos fatos ocorridos com o “indivíduo
particular”, mas sim à imaginação mimética de um único evento e enredamento (a mimese da
ação). “Universal é o que se apresenta a tal tipo de homem que fará ou dirá tal tipo de coisa em
conformidade com a verossimilhança e a necessidade; eis o que a poesia visa” (idem, p. 97), diz
Aristóteles. Mas a essa conformidade soma-se a importante finalidade que é a afetação do
espectador, “uma vez que a mimese tem por finalidade não apenas a ação conduzida a seu termo,

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Em Platão, a catarse ou a atividade catártica implica um certo “trabalho da psyché” de “purificação da alma” em
relação aos sentimentos e emoções positivas e negativas do indivíduo. Nesse sentido, o filósofo aborda a “catarse”
com base em um duplo aspecto de oposições: uma relacionada ao efeito de libertação individual dos prazeres e outra
relacionada a sobreposição ou libertação da alma em ralação ao corpo. Todavia, ao contrário de Platão, em sua Poética,
Aristóteles ressignifica a catarse como sendo um efeito re-criativo e formativo proporcionado pela atividade artístico-
mimética, na medida em que a poesia trágica, ao suscitar a piedade e o temor, ao mesmo tempo promove a ab-reação,
purificação ou libertação dessas paixões individuais. Nesse sentido, ao invés de imitar passivamente a realidade
ordinária por intermédio de situações particularidades, a arte dramática opera ativamente, elevando os conteúdos das
aparências singulares à universalidade do “possível” e do “verossímil”.
mas também os acontecimentos que suscitam o pavor e a compaixão” (idem, p. 102). Para
Aristóteles, na medida em que “tais emoções, uma após a outra, se realizam, sobretudo, contra
nossa expectativa, segue-se que os enredos desse tipo são necessariamente os mais belos” (idem,
p. 102), porquanto suscitam a catarse7.
Contudo, embora Aristóteles se oponha diametralmente a Platão no que se refere as
consequências negativas das artes miméticas, assim como o mestre, o Estagirita também concebe
a sensibilidade (enquanto conjunto de operações sensitivas do espírito) como “faculdade inferior”8
e em estreita relação de dependência às “operações intelectuais superiores”, inclusive no que
subjaz ao saber poético, uma vez que a “faculdade intelectiva ou racional” é hierarquicamente
determinada como uma atividade pressuposta pelas “faculdades vegetativa e sensitiva”, mas que
exige para si mesma um princípio ulterior não redutível às operações sensitivas. Em suma, para
Aristóteles, a faculdade intelectiva determina-se, por si mesma, como capacidade e potência de
recepção e conhecimento das “formas inteligíveis”, as quais se mantém conservadas em potência
nas “sensações” e nas imagens produzidas pela “fantasia” (derivada das sensações como atividade
produtora de imagens)9.

7
Na verdade, esse critério de precisão narrativa dos acontecimentos históricos e sua diferença em relação aos relatos
poéticos já havia sido estabelecido pelo próprio Heródoto, e pode ser identificado, por exemplo, na distinção que o
fidedigno repórter de fatos faz entre o seu trabalho e a narrativa poética de Homero da guerra dos gregos contra os
troianos. Como nos lembra Vieira-Filho (2008, p. 144), para Heródoto, “Helena foi raptada não por Páris, mas sim
por Alêxandros, os quais, por sua vez, após ventos fortes que modificaram a direção de sua nau, foram cair sob a
custódia do rei egípcio Proteus, que confiscou o rapto e os expulsou de sua terra”; ao contrário da versão de Homero,
“a guerra ocorreu porque os troianos não tinham Helena lá para devolvê-la” (idem, ibidem). Assim, reclama Heródoto:
“em minha opinião Homero também conhecia essa história, mas percebendo que ela não convinha tão bem à poesia
quanto a versão por ele usada, o poeta a rejeitou deliberadamente, mostrando, porém, que a conhecia. Sobre isso,
conferir: FILHO, Antônio Vieira S. Poesia e prosa: arte e filosofia na estética de Hegel. Campinas, SP: Pontes editores,
2008, pp. 144-145.
8
De acordo com a divisão proposta por Aristóteles, a “faculdade sensitiva” compreende os cinco “órgãos sentidos”
(visão, audição, paladar, olfato e tato), para os quais correspondem individualmente cinco “sensíveis próprios” (a cor,
o som, o gosto, o cheiro e a textura). Para além dos “sensíveis próprios”, a faculdade sensitiva também envolve os
“sensíveis comuns” (o movimento, o repouso, o formato, a magnitude, o número e a unidade), que subjazem aos
órgãos dos sentidos. Já a “fantasia” e a “memória” são assimiladas como derivações das sensações, sendo a primeira
caracterizada como atividade “produtora de imagens”, e a segunda concebida como atividade “conservadora de
imagens”, cujos conteúdos conservados constituem a experiência em sentido lato. acontecimentos dá origem ao que
nomeamos de experiência. O apetite (um tipo de desejo) e o movimento derivado do apetite também são assimilados
como componentes da faculdade sensitiva. Entre outros, essa divisão será em grande medida adotada por Hegel, em
sua “psicologia”.
9
Sobre essa hierarquia, no capítulo 4 do livro Γ do De anima (429a10-b9), Aristóteles afirma o seguinte: “a percepção
sensível não é capaz de perceber após um objeto perceptível intenso – um som, por exemplo, após sons altíssimos,
tampouco ver ou cheirar depois de cores e cheiros muito fortes. Mas o intelecto, quando pensa algo intensamente
inteligível, nem por isso pensa menos os mais fracos, pelo contrário: pensa ainda melhor. Pois a capacidade perceptiva
não é sem corpo, ao passo que o intelecto é separado. Assim, quando o intelecto se torna cada um dos objetos
inteligíveis no sentido em que isso se diz daquele que tem a ciência em ato (e isso ocorre quando ele pode atuar por si
mesmo), ainda nesta circunstância o intelecto está de certo modo em potência, embora não com o antes de aprender
Essa inferioridade e dependência do conhecimento sensitivo em relação à faculdade
intelectiva ou racional é radicalizada no contexto de decadência da filosofia grega (século II a.C.
a século III d.C.) – incluindo a fase inicial de elaboração da doutrina cristã, até a Idade Média –,
sendo Plotino e Tomás de Aquino os principais apologetas dessa hierarquização e
descredenciamento filosófico da sensibilidade enquanto faculdade de conhecimento autônomo de
seus objetos mais elevados, o belo e a arte, ou seja, enquanto um “regime estético”
autodeterminante e independente da faculdade intelectiva ou racional. Em seu tratado sobre o Belo
(Enéada I. 6, 1), por exemplo, Plotino aborda a “beleza sensível” (aquela percebida sobretudo
pelos sentidos da visão e audição) como participação ou particularização simples (ou simétrica) da
beleza suprema, a “beleza inteligível”, cujo acesso só pode ser alcançado através da “alma que
intui” (sem a necessidade de nenhum órgão sensitivo), pela qual o penoso trabalho interior de
ascese e contemplação das belezas mais elevadas, escapam totalmente ao âmbito da percepção
sensitiva; um verdadeiro trabalho de purificação da “alma particular”, a qual se conquista pela
abstração e “desprezo das coisas daqui embaixo” (Enéada I. 6,4). Nas palavras do próprio Plotino,
“a Alma purificada vem a tornar-se como uma forma, uma razão; toda incorpórea e intelectiva, e
pertence inteira ao divino [o Uno], onde está a fonte da beleza, e de onde vêm todas as coisas do
mesmo gênero [...] Reduzida à inteligência, é a alma muito mais bela (Enéada l. 6, 6).
De outra parte, não obstante ao descredenciamento filosófico da sensibilidade e do belo
artístico operada por Plotino, Tomás de Aquino vai ainda mais longe ao implementar em sua Suma
teológica (a síntese do pensamento medieval) o que eu nomearia aqui de “descredenciamento
teológico” da sensibilidade enquanto “regime estético” autodeterminante. Isso porque, na
compreensão do Aquinate, a verdadeira beleza tanto deveria ser entendida como sinônimo do que
é “bom”, quando os órgãos dos sentidos que avaliam a beleza autêntica, a visão e a audição,
estariam diretamente vinculados à razão. Ou seja, para o doutor da igreja, a beleza das coisas em
geral, incluindo acidentalmente as artes, não significaria outra coisa senão “as próprias relações da
ordem e da harmonia”, ou se preferirem, a manifestação sensível de Deus aos olhos do espírito
humano (Suma teológica, parte I, questão V, artigo IV).
Ora, com essas considerações preliminares em torno das principais teorias grega e medieval
da sensibilidade, do belo e das artes, vocês já podem desconfiar que a história da Estética enquanto

ou descobrir; e agora ele mesmo é capaz de pensar a si próprio”. Conferir: ARISTÓTELES. De anima. Trad. Maria
Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006.
disciplina autônoma é acontecimento tardio para a história da filosofia ocidental. Em qualquer
manual sobre Estética ou Filosofia da arte vocês poderão encontrar com facilidade uma
reconstrução detalhada dessa história, sobre a qual, pelo menos até o início do século XVIII, a
beleza e a arte ora são completamente marginalizadas pelos estudos filosóficos, ora são apenas
consideras sob a ótica clara e distinta das normas racionais, éticas e religiosas. Mas é justamente a
partir dessa prolongada história de marginalização do domínio da Aisthesis, que Baumgarten
assume, pela primeira vez na história da filosofia, o conceito de Belo como objeto próprio ao
domínio da sensibilidade como um conjunto de operações autônomas e imediatas da percepção
sensível, das sensações e sentimentos, da representação sensível e imaginação, para as quais a
beleza e sua expressão artística.

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