HEGEL, G. - A Diferença Entre Os Sistemas Filosóficos de Fichte e Schelling

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E1tudo1 Qeral1 Série Unlversltôrla • Clôsslcos de Fiiosofia

Título: Diferença entre os Sistemas Filosóficos


de Fichte e de Schelling
Autor: G. W. F. Hegel
Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Concepção gráfica: Departamento Editorial da INCM
Tiragem: 800 exemplares
Data de impressão: Setembro de 2003
ISBN: 972-27-1267-5
Depósito legal: 199 767 /03
G. W. F. Hegel

DIFERENÇA ENTRE
,

OS SISTEMAS FILOSOFICOS
DE FICHTE E DE SCHELLING

Tradução, introdução e notas de Carlos Morujão.

Revisão da tradução de Manuel do Carmo Ferreira

CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA


INTRODUÇÃO

1. HEGEL EM }ENA

No dizer de Rudolf Haym 1, a entrada em cena de Hegel no meio


literário e científico de ]ena, onde, conjuntamente com Schelling, assume
a responsabilidade pela direcção do Kritische Joumal der Philoso­
phie, e onde, no semestre de Inverno de 1801-1802, iniciará a sua car­
reira académica na Universidade local, ficou marcada pelo começo de
uma dupla polémica: com a filosofia pré-schellinguiana, por um lado,
em particular com a de Kant e de Fichte, e, por outro, com a filosofia
contemporânea, em particular, mas não exclusivamente, com a de K. L.
Reinhold e C. G. Bardilli. Não é nosso propósito, nesta Introdução,
seguir as sucessivas fases do desenrolar desta polémica, nem, tão pouco,
mostrar o seu enraizamento no lento processo de maturação do próprio
Hegel, desde os seus anos de Stiftler em Tübingen, e a sua prossecução
para lá do horizonte temporal em que se inscreve esta Diferença entre
os Sistemas Filosóficos de Fichte e cf.e Schelling, até, pelo menos,
esse extraordinário Prefácio que, em 1807, abr� a Fenomenologia do
Espírito. Notemos, apenas, que raramente na história da filosofia se
terá visto entrada em ceha mais retumbante: Hegel, que contava já
31 anos (sendo cinco anos mais velho do que Schelling), mas era ainda
11111 desconhecido nos meios literários e científicos, tendo apenas publi­
cado, anonimamente, dois pequenos textos de carácter político, revela,

1 l�udolf Haym, Hegel und seine Zeit, Berlin, Verlag Rudolf Gaertner,
IH!i7, n•lmp. Dnrmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974, p. 183.
nesta sua primeira obra filosófica, uma decidida vontade de «separar as
águas» em filosofia, com uma audácia e uma segurança pouco comuns
num estreante.
O título completo desta obra é Diferença entre os Sistemas Filo­
sóficos de Fichte e de Schelling, em relação com os «Contributos
para uma Mais Fácil Visão do Estado da Filosofia nos Começos
do Século Dezanove», l.º Fascículo, de Reinhold (de agora em
diante, referi-la-emos, simplesmente, pela abreviatura Differenzschrift),
tendo sido publicada em Jena, em 1801, pelo editor Seidler. A «Adver­
tência prévia» está datada de Julho desse mesmo ano, mas a redacção
deverá ter sido concluída em meados da Primavera. Numa nota à
p. 159 da edição original (ou seja, aproximadamente 4/s do total das
184 páginas da 1. ª edição), Hegel refere-se ao 2. º Fascículo do livro de
Reinhold, publicado em meados de Abril de 1801, como tendo saído
após aqueles linhas terem sido redigidas. Não sendo impossível que
aquela nota tivesse sido acrescentada após a redacção definitiva da to­
talidade da obra - como aliás a «Advertência prévia» o foi - é vero­
símil que em inícios de Abril o trabalho se encontrasse já concluído.
A reacção dos contemporâneos foi um misto de surpresa e de admi­
ração. A Stuttgarter Allgemeine Zeitung escreveu: «Schelling cha­
mou da sua pátria um robusto campeão e, através dele, declara ao
público estupefacto que mesmo Fichte está muito abaixo das suas teo­
rias». Reinhold, em carta dirigida a Fr. Niethammer, a 27 de Janeiro
de 1802, reconhece que Schelling encontrou um companheiro talentoso
e hábil. Poder-se-ia ainda mencionar o testemunho de Schiller, em car­
ta a W. von Humbolt de 18 de Agosto de 1803, em que Hegel é con­
siderado uma «profunda cabeça filosófica», embora aqui o juízo de
Schiller tenha já em conta a obra de 1802, Fé e Saber, e, provavel­
mente, o renome que Hegel, entretanto, adquirira como professor de
filosofia na Universidade de Jena, apesar dos seus fracos dons de expo­
sição 2 . O próprio Schelling, em carta dirigida a Fichte a 3 de Outubro
de 1801, refere-se à Differenzschrift como sendo a obra de um «espí­
rito excelente» 3.

2 Sobre a reacção dos contemporâneos, bem como sobre a relação de

Hegel com Schelling, à data da publicação da Differenzschrift, pode


consultar-se a obra de Xavier Tilliette, Schelling. Une Phílosophíe en Devenír,
Paris, Vrin, 1992, 2.ª ed., pp. 295-302.
3 Cf. Horst Fuhrmans, Schelling. Bríefe und Dokumente, Band II, Bonn,

Bouvier Verlag, 1965, p. 355.


Há algo de inesperado na escolha de Jena para o infeio de 1mm
actividade filosófica diante do público, embora a presença de Schelling
- a primeira figura filosófica da Universidade local, após o abandono
forçado de Fichte em 1799, no seguimento de uma acusação de atefsmo -
seja um factor de explicação preponderante. Fora em Jena, a capital do
primeiro romantismo, que, entre 1798 e 1800, Friedrich Schlegel diri­
gira a efémera revista Athenãum, em torno da qual se agruparam,
entre muitos outros, Novalis, Schleiermacher e Schelling. Nada, nas
preocupações filosóficas, teológicas e polfticas do jovem Hegel o parece
aproximar desta primeira geração romântica, mantendo-se muito mais
próximo do espírito do iluminismo, na senda crftica e reformadora, por
exemplo, de um Lessing. O próprio facto de Hegel, na sua qualidade de
autor da Differenzschrift, se identificar como « Weltweisheit Doktor» 4,
termo utilizado preferencialmente pelos círculos iluministas (em parti­
cular pelo filósofo iluminista berlinense Fr. Nicolai) para designar o
filósofo, aponta já no sentido de uma certa filiação, que o conteúdo da
obra não desmentirá. Dir-se-ia, mesmo, que nada nas preocupações fi­
losóficas de Hegel, até 1800, indicia uma aproximação aos problemas
com que se debate, em particular nas obras de Fichte e de Schelling, a
filosofia alemã após Kant. Além disso, muito mais do que nas obras,
quase contemporâneas, de Fichte ou de Schelling, transparece, neste
primeiro escrito de Hegel, uma relação viva com a totalidade da cultu­
ra alemã da Aufklãrung e do romantismo, um esforço consciente para
colocar a filosofia no contexto das manifestações espirituais do seu tem­
po, concebendo-a como expressão da vida da humanidade, em profunda
conexão com o desenvolvimento e as exigências da história s.
É certo que, como a Differenzschrift o reconhecerá de bom grado,
Fichte e Schelling souberam descobrir no pensamento de Kant - em
particular na Dedução Transcendental das Categorias da Crítica da
Razão Pura - o princípio especulativo que não recebera aí o seu ple-
110 desenvolvimento, a saber, a_uni.dade ef.o_ser e A_Q_pens.ar. Mas as
preocupações hegelianas (e, como veremos, o ano de 1801 não marca

4 Literalmente: «doutor em sabedoria mundana».


" /\cerca do profundo conhecimento que Hegel possuía, desde os seus
l1•mpos de estudante no Stift de Tübingen, da filosofia e da cultura alemãs
do sfrulo XVIII, bem como acerca das suas preferências no domínio da lite­
l'lllurn, silo ainda de grande utilidade as investigações de Wilhelm Dilthey;
l'f. I >i1• /11ge11dgeschichte Hegels, in Gesammelte Schriften, IV. Band, Stuttgart,
T1•uh1wr/(;iittingcn, Vandenhoeck & Ruprecht, 1959.
aqui uma ruptura, mas sim um aprofundamento) situam-se numa ou­
tra esfera; ou melhor, reconhecendo embora a importância decisiva da­
quela descoberta, Hegel pergunta de que modo ela pode influir na vida
dos homens, realizando no plano prático (ou seja, no da religião e do
direito) aquilo que o filósofo fizera já no domínio do pensamento.
Não é menos certo que, ainda aqui, podemos detectar a profunda
influência de Kant. Um estudioso como Ernst Cassirer mostrou, quanto
a nós de forma convincente, que é no horizonte de uma reinterpretação
global da filosofia de Kant que Hegel, nos seus escritos teológicos de
juventude, desloca o problema da unidade sintética, do campo do
conhecimento puro para o campo da vida espiritual concreta, nomeada­
mente nas suas manifestações artísticas, religiosas e políticas 6, Sim­
plesmente, a direcção que toma, em Hegel, a interpretação da filosofia
kantiana - e ainda tão patente, como veremos, nesta Differenzschrif -,
afasta-o das preocupações que, nos últimos anos do século XVIII, domi­
navam os principais intérpretes, seguidores e opositores do filósofo de
Konigsberg.
É significativo que Hegel possa afirmar, quase no início da
Differenzschrift, simultaneamente, que o filosofar começa com o filo­
sofar - ou seja, que nada pode ser considerado filosófico se não receber
da própria filosofia a sua justificação e legitimação -, e que a filosofia
não se apoia numa proposição-de-fundo, ou que o absoluto não se
resume a uma proposição absoluta, da qual todas as outras se deduzi­
riam e na qual receberiam a sua fundamentação 7, Mas é igualmente
claro, pela leitura da carta que Hegel dirige a Schelling a 2 de Novem­
bro de 1800 (da qual voltaremos ainda a falar mais adiante), que só
nele via Hegel alguém com quem pudesse compartilhar um programa
de acção destinado a transformar o panorama filosófico e cultural da
Alemanha, tal como apenas a amizade de Schelling - mais novo, mas
gozando já de um apreciável prestígio - lhe poderia abrir as portas
que• proporcionassem à referida acção o âmbito alargado sem o qual

6 Ernst C a ssirer, Das Erkenntn ispro blem in der Philosophie u n d


Wissenschaft der neueren Zeit, Band III, Berlin, Verla g Bruno Cassirer, 1923,
pp. 285 e segs.
7 He gel, Differenzschrift, in Gesammelte Werke, Band 4, «Jenaer Kritische

Schriften», Hamburg, Felix Meiner, 1968, p. 24. Sobre este assunto, cf. Otto
Põggeler, Regeis Idee einer Phiinomenologie des Geistes, Freibur g / München,
Karl Alber Verla g, 19932, pp. 110 e se gs.; Richard Kroner, Von Kant bis
Hegel, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck}, 1977, 2.ª ed., vol. 2.º, p. 152.
estaria condenada a permanecer um desejo vão. Exige-se, por isso, 1]111'
tentemos compreender mais claramente as intenções de Hegel, nos prin ­

cípios do século xrx, as razões para, a partir de então, se dedicar exclu­


sivamente à «ciência», e a forma como tais razões, longe de instaura­
rem uma ruptura com as suas preocupações anteriores que, em face da
ciência, teriam de ser classificadas como subordinadas, exprimem a
muito consciente necessidade de proporcionar a estas o seu acabamento
sistemático, sem o qual seriam apenas opinião não fundamentada.

2. A NECESSIDADE DA FILOSOFIA

Será legítimo vermos, na mencionada carta a Schelling, uma reserva


de Hegel em face do curso seguido até então pelo pensamento do seu
antigo condiscípulo? Por outras palavras: a necessidade de filosofar
- que, no ano seguinte, esta Differenzschrift apresentará corno carac­
terística fundamental da época, mas que resultou, em primeiro lugar, da
experiência pessoal do seu autor - e a proclamada intenção de o fazer
com Schelling, anunciarão uma adesão sem reservas às teses
schellinguianas? E por que motivo, nesta sua primeira obra, Hegel in­
siste, justamente, nas diferenças entre Fichte e Schelling? Sendo elas em­
bora, pelo menos parcialmente, já do domínio público, Schelling procura­
va ainda um acordo com Fichte, como é patente na Exposição do Meu
Sistema de Filosofia, cuja publicação precede apenas de algumas sema­
nas a da Differenzschrift, e ainda, em 1802, em Bruno ou acerca do
Princípio Divino e Natural das Coisas. A pertinência deste conjunto
de questões parece-nos a nós ser notória, a partir do momento em que
reparamos no seguinte: primeiro, que à data em que Hegel envia a refe­
rida carta, a obra principal de Schelling era o Sistema do Idealismo
Transcendental, publicado nesse mesmo ano, onde uma adesão ao
ftchteanismo parecia ser ainda evidente, impedindo mesmo que tudo aquilo
que, no desenvolvimento filosófico de Schelling desde 1797 ou seja, na
-

<filosofia da natureza» -, parecia anunciar um caminho divergente, se


transformasse em ruptura declarada; segundo, que ainda em Outubro de
1801, na carta a Fichte que mencionámos na nota n. º 3 (ou seja, cinco
meses após a publicação da Exposição), a referência à obra de Hegel,
enquanto sinal de que a natureza das relações entre Fichte e Schelling
começava a ser objecto de debate entre o público filosófico, é precedida de
uma observação conciliadora, em que Schelling dá a entender que, pelo
lll!'llOS provisoriamente, deixará a cada um o trabalho de descobrir even-
11111is d(fi•rcnças rntre ele próprio e Fichte.
1 :111/mra 11ão nos importe aqui analisar o modo como Fichte e
Sc/11•/lin x viam as diferenças que os separavam, importar-nos-á, con­
tudo, saber como é que Hegel as via, e por que motivo para ele só
podiam aparecer como diferenças o que, para outros, como era o caso
de Reinhold, representava uma fundamental identidade de pontos de
·

vistaª·
O idealismo de Fichte, defende Hegel, é um idealismo subjectivo;
isto significa que a harmonia entre o sujeito e o objecto, entre a liber­
dade e a natureza, para Fichte, está apenas idealmente contida no Eu,
ou seja, no princípio supremo da sua filosofia, nunca se podendo tornar
completamente objectiva sem que, fazendo-o, se negasse a si mesma e
ameaçasse a própria liberdade. É o ponto de vista prático, com que se
inicia o sistema de Fichte, que lhe dá um carácter necessariamente sub­
jectivo. O Eu prático, o Eu na sua mais alta potência, na terminologia
de Schelling, no seu acto originário de autodeterminação - que Fichte
designava pelo termo Tathandlung -, só consegue encontrar a natu­
reza como algo em que pode exercer a sua acção, legitimando, então,
que, para a consciência teórica, ela apareça de acordo com as leis
imanentes da inteligência. Só que daqui resulta, com não menos neces­
sidade, como também Schelling já demonstrara antes de Hegel, a nuli­
dade teórica deste sistema, condenado ao ponto de vista da reflexão,
para a qual a natureza aparece sempre como algo já dado e, por isso,
privado da sua dimensão espiritual. Por este motivo, em Fichte, ainda
segundo Hegel, a intuição transcendental que permite ao Eu aceder à
posse de si mesmo nunca se transforma na auto-intuição do absoluto,
permanecendo fixada na sua própria subjectividade.
Uma tal filosofia não poderá estar à altura das necessidades da
época. Se, como Hegel afirma, «O poder de unificação desapareceu da
vida dos homens», se o que o tempo cindiu - o sujeito e o objecto, o
homem e a natureza, Deus e o mundo - permanece cindido pela
inexistência de uma força capaz de proceder à sua unificação, não será

s Sobre este assunto, cf. Otto Põggeler, op. cit. , pp. 131 e se gs. Note-se,

no entanto, que Hegel, na Differenzschrift, se ocupa quase exclusivamente


da 1.ª Parte dos Contributos, publicada a 3 de Janeiro de 1801, mencionan­
do apenas uma vez a 2. ª Parte, publicada por ocasião da Ostermesse, em
finais de Abril desse mesmo ano. Ora, é justamente nesta 2.ª Parte que
Reinhold defenderá que a filosofia de Schelling não é apenas um desenvol­
vimento do ponto de vista de Fichte, mas representa uma nova posição
filosófica.
um idealismo meramente subjectivo que permitirá superar a fixação
absoluta das cisões. Para um tal idealismo, de que o sistema fichteano
fornece o exemplo acabado, a superação da cisão, realizada somente no
princípio do filosofar, é apenas postulada como atingível no mundo real
em que os homens vivem. Por este motivo, para Hegel, o pensamento
de Fichte revela-se mesmo incapaz de alcançar a unidade sistemática
que todo o autêntico filosofar exige, uma vez que o fim só assimpto­
ticamente - ou seja, de facto, nunca - coincide com o seu princípio.
Este ponto de vista fichteano, que Hegel denomina ponto de vista f.
da reflexão, equivale ao de uma filosofia que se mostra incapaz de ul­
trapassar as cisões com que opera o entendimento, a não ser através de
uma identidade que é, ela própria, produto do entendimento (e que
Fichte exprimiu no princípio supremo da sua filosofia: A = A), não
constituindo, por isso, aquela filosofia capaz de pensar as tarefas de
uma época em que o esforço da vida se dirige no sentido da recupera­
ção da harmonia perdida. Por um lado, conclui Hegel, tal filosofia fixa­
-se no absoluto como algo de superior e oposto aos contrários· cindidos,
por outro, considera o pensamento dos contrários como algo de intrin­
secamente contraditório, perdendo, assim, não só a absolutidade do
primeiro - degradando-o em «absoluto relativo» -, mas também a pos­
sibilidade de superar a dilaceração dos segundos.
Julgamos que, a partir destas considerações, é possível ver o que o
Sistema do Idealismo Transcendental poderá ter significado para
Hegel, o que, ao lê-lo, Hegel poderá ter visto como anúncio da inevi­
tável ruptura entre Schelling e Fichte, numa altura em que o primeiro
esperava ainda, como dissemos, a possibilidade de um acordo com o
segundo 9 . Mais precisamente, diríamos agora que, num momento em
que Schelling esperava que o sistema de Fichte se desenvolvesse até

9 Rudolf Haym, op. cit., p. 153, dirá a propósito de Hegel na


D ífferenzschrift: «Er ist in dieser Schrift, wenn man will, Schelling'scher als
Schelling», quer dizer, capaz já de ver, melhor do que o próprio Schelling,
as diferenças entre este e Fichte. Aliás, em princípios de 1801, no Prefácio
à referida Exposição do Meu Sistema de Filosofia, Schelling mostrava-se ainda
persuadido da quase inevitabilidade de um acordo com Fichte e de uma
identidade de pontos de vista que o prosseguimento do trab.alho filosófico
por ambos não faria senão patentear. (Cf. SW, Stuttgart-Augsburg, Cotta
Verlag, 1856-1861, Band I/4, p. 110; para a compreensão do significado
desta e de outras siglas, o leitor reportar-se-á ao ponto 5 desta «Introdu­
ção».)
àquele ponto em que o acordo com o seu próprio sistema seria evidente
para todos (e, em primeiro lugar, para o próprio Fichte), Hegel procu­
rava demonstrar que o sistema de Schelling se tinha desenvolvido pre­
cisamente até àquele ponto que tornava já qualquer acordo impossível 1 0 .

3. 0 PROBLEMA DO MÉTODO

Richard Kroner 11 observa acertadamente que, tal como antes dele


Fichte e Schelling, também Hegel inicia a sua actividade filosófica com
um escrito em que as preocupações de natureza metodológica desem­
penham um papel preponderante. Questões como o que é filosofar, que
é que o filosofar pressupõe, e que objectivos com ele se pretendem
alcançar, ocupam um papel de relevo nas páginas iniciais da Diffe­
renzschrift. Tais questões, no entanto, não constituem, para Hegel,
meras questões prévias, uma espécie de exercícios preparatórios de um
pensar que, com elas, pretendesse ganhar o balanço suficiente para
penetrar no domínio da verdade e do saber. A filosofia é amor da sa­
bedoria, mas tal amor é já saber efectivo. Se o não fosse, seria um
formalismo vazio de qualquer conteúdo. Este será, de agora em diante,
um tema recorrente nos escritos 1e Hegel, reiterado ainda, em 1807, no
Prefácio à Fenomenologia do Espírito, e dirigido aí contra Kan t,
acusado de impedir todo o conhecimento efectivo ao privilegiar, de for­
ma unilateral, uma investigação preliminar sobre as suas condições de
possibilidade.
Para Hegel, o facto de o sujeito-objecto schellinguiano, em resulta­
do das investigações de filosofia da natureza, se ter tornado objectivo,
o facto de a natureza, segundo uma fórmula schellinguiana de 1797,
ser «espírito invisível», impedirá que a filosofia caia no formalismo da
Doutrina da Ciência de Fichte. O paralelismo da natureza e da inte­
ligência, a possibilidade de ir de uma à outra percorrendo o mesmo

10 A quem se dirigirá a censura velada, expressa no início da «Adver­


tência Prévia» à Differenzschrift, de querer contornar ou ocultar a diferença
entre os sistemas de Fichte e de Schelling? Talvez não somente a Reinhold,
que é mencionado logo de seguida, mas também ao próprio Schelling que,
na sua polémica com Eschenmeyer (ou seja, em Acerca do Verdadeiro Concei­
to da Filosofia da Natureza, publicado nos inícios de 1801 no Jornal Crítico de
Filosofia), não clarificara ainda a questão.
1 1 ln Von Kant bis Hegel, ed. cit., p. 143.

14
caminho em direcções opostas, a igual dignidade da filosofia da natu­
reza e da filosofia transcendental - teses que Schelling defendera com
brio no Prefácio ao Sistema de 1800 , servirão a Hegel para forne­
-

cer às suas preocupações teológico-políticas iniciais o acabamento siste­


mático que procurava. A unidade do finito e do infinito, em cuja har­
monia banhava a bela vida social da cidade-estado grega e que tão
dramaticamente se ausentara da vida moderna, pode agora ser recupe­
rada, uma vez que a especulação se assegurou do princípio que a pode
produzir. A filosofia pode, finalmente, tornar-se compreensão da posi- -�
ção de determinações opostas, mas também do processo da sua supres­
são enquanto meramente opostas, quer dizer, fixadas no seu ser-oposto 1 2
- é neste sentido que, para Hegel, ela é especulativa, ao mostrar como
cada uma delas se revê na outra e regressa a si através da outra -,
permitindo, então, essa «Rückkehr in das Leben des Menschen» que
reclamava a carta a Schelling de 2 de Novembro de 1800. A decisão de
Hegel pela ciência, que o conduz a lançar-se no turbilhão do .meio lite­
rário de ]ena, resulta assim, directamente, do seu desenvolvimento filo­
sófico anterior, pois só a ciência lhe dará a possibilidade de resolver o
que antes lhe parecia possível sem o seu auxz1io.
Hegel, que, mais tarde e em público, criticará com alguma severi­
dade o rumo seguido pela filosofia da natureza (tanto em Schelling
como, sobretudo, nos seus seguidores, não distinguindo, contudo, os
segundos do primeiro), considera, na Differenzschrift, ser precisamen­
te nesta que se evidencia a superioridade da filosofia de Schelling sobre
o sistema de Fichte. Recordemos que, para este último, a filosofia
transcendental não tem diante de si uma filosofia da natureza, ou seja,
uma ciência com igual dignidade filosófica; nem, tão-pouco, o elemento
subjectivo da primeira e o elemento objectivo da segunda se reúnem no
sujeito-objecto que tem na arte o organon do seu conhecimento; para
Fichte, a filosofia transcendental tem diante de si, apenas, o saber co­
mum.
É certo que, para Hegel, Fichte não caiu nas vulgaridades e nas
simplificações de um Reinhold ou de um Bardilli, e a sua filosofia é um
produto genuíno da especulação 1 3. Ao primeiro princípio da sua filoso-

1 2 Cf. a advertência em Gesammelte Werke, Band 4, ed. cit., p. 13: «a


cisão necessária é um factor da vida, que se forma a si mesma opondo-se
eternamente.»
1 � Cf. ibidrm, p. 77.
fia, expresso na proposição Eu = Eu, onde se exprime a identidade do
subjectivo e do objectivo (mas apenas para o sujeito, que se toma a si
mesmo como objecto), Fichte não opõe o princípio de razão suficiente,
que justificaria o modo como aquela identidade (meramente lógica) se
aplicaria a uma matéria de que não pode dar conta. Mas Fichte opõe
ainda à multiplicidade do saber empírico a unidade da consciência
transcendental; em Schelling, ao invés, a multiplicidade dos fenómenos
naturais manifesta a actividade sintética do espírito que, através dela,
se encaminha para a consciência-de-si.
Não se conclua, daqui, que a argumentação de Reinhold, contra o
qual Hegel reage violentamente e, por vezes, com alguma injustiça, era
desprovida de todo o sentido. Em A Destinação do Homem, publicada
em 1800, Fichte dirá também que quem parte do conhecimento encon­
trará apenas os princípios do conhecimento, e as representações como
resultado da actividade da faculdade de conhecer, mas não a realidade
verdadeira. Em Fichte, porém, não se tratava, como em Reinhold, de
uma aplicação do conhecimento a uma realidade que lhe era estranha;
tratava-se, sim, de descobrir o órgão pelo qual a realidade surge imedia­
tamente em nós, e de mostrar como, em resultado desse encontro com
a realidade, se desenvolveram em nós todas as categorias do pensar que,
posteriormente, a filosofia teórica articulará num todo sistemático 14.

4. A CR.ÍTICA AO SISTEMA DE FICHTE E A SUPERIORIDADE


DO SISTEMA DE SCHELLING

Apesar do carácter especulativo do seu ponto de partida, a filosofia


de Fichte é, para Hegel, uma filosofia da reflexão, quer dizer, uma fi-

14 É assim que, em Fichte, o lugar que ocupa, no sistema da filosofia


teórica, o princípio de razão suficiente, é extremamente original. Que uma
acção se oponha à acção do Eu é algo de condicionado apenas do ponto de
vista material; do ponto de �ista da forma, a oposição é tão incondicionada
quanto a posição. Embora o prim�iro princípio da filosofia de Fichte ex­
presse uma posição absoluta (a do Eu por si mesmo, justamente), o segun­
do princípio exprime uma oposição igualmente absoluta e inderivável da
primeira. A validade lógica do princípio de razão suficiente (que relaciona
e distingue os opostos) é demonstrada e determinada pelo princípio mate­
rial que subordina a oposição à posição. (Cf. Fundamentos da Doutrina da
Ciência Completa, SW, 1, p. 1 1 1 / GA, 1/2, p. 272.)
losofia em que a cisão entre o sujeito e o objecto é superada apenas
subjectivamente, mas na qual, diante do sujeito assim erigido em abso­
luto, permanece uma multiplicidade empírica de objectos (o não-Eu
fichteano), desprovida de espírito e apenas sintetizável graças à imagi­
nação produtora.
Hegel compartilha com Schelling alguma incompreensão relativa­
mente às verdadeiras intenções de Fichte. A segunda parte dos Funda­
mentos da Doutrina da Ciência Completa, de 1794-1795, intitulada
«Fundamentos do saber teórico», pretende proceder a uma génese das
categorias kantianas. Assim, a primeira proposição-de-fendo de Fichte,
que afirma que o Eu se põe absolutamente a si mesmo, fenda a catego­
ria de realidade; a segunda, que afirma a oposição do não-Eu ao Eu,
funda a categoria de negação; a terceira, que afirma a relação entre o
Eu e o não-Eu, funda a categoria de limite. Trata-se, como aliás Hegel
observa acertadamente na Differenzschrift 1s, de uma síntese entre
opostos, possível na medida em que, embora absolutamente incon­
dicionada quanto à forma 16, a segunda proposição depende aznda ma­
terialmente da primeira: a negação deve ter ainda alguma realidade
(uma certa grandeza intensiva, para falarmos como Kant) e ser, por
conseguinte, um pôr. É assim que, de uma forma certamente diferente
da kantiana, Fichte legitima o uso transcendental das categorias e proíbe
o seu uso transcendente: elas deduzem-se do Eu (e não, como acontecia
em Kant, da tábua dos juízos) e aplicam-se a essa quantidade de acti­
vidade posicional que o Eu limitou em si mesmo, para que um mundo
objectivo pudesse surgir.
Só que, sendo assim, como Hegel observa no seguimen to de
Schelling, o sistema fichteano terá de se apoiar numa multiplicidade de
proposições-de-fundo. O princípio da oposição, fundando a categoria
de negação, não é dedutível. do princípio da posição, que fenda a cate­
goria de realidade; por outro lado, a oposição do não-Eu ao Eu não

is
Cf. Gesammelte Werke, Band 4, ed. cit., p. 42.
16 Entende-se por forma de uma proposição aquilo que ela diz acerca
da re laçã o do sujeito com o predicado. Neste sentido, é óbvio que a forma
da n e gaçã o se opõe à da afirmação. Mesmo supondo que. o sujeito e o
predicado são os mesmos, numa proposição afirmativa e numa negativa,
vt�-st• facilmente que a relação entre os dois é totalmente diferente num
l'ilHo t• no outro. Sobre este assunto, cf. Rolf-Peter Horstmann, Die Grenze
d1·r V1·n11111f1, Wcinhcim, Athcnílum Verlag, ·1995, 2.'' ed., p. 122.
tem, para Fichte, qualquer fundamento no Eu, sendo apenas um facto
contingente 1 7. Que algo se oponha, poderá acontecer ou não, compe­
tindo apenas à WL, enquanto ciência dos primeiros princípios do saber
humano, determinar o modo necessário como tal acontece. O que Fichte
nega é que no Eu, tal como a WL o concebe, possa residir, simultanea­
mente, o princípio do seu pôr-se e o do seu não se pôr.
Schelling, em carta dirigida a Fichte a 19 de Novembro de 1800,
insistia na necessidade de fornecer uma comprovação material do idea­
lismo, que mostrasse de que modo a natureza pode ser deduzida do Eu,
não, obviamente, do eu subjectivo do filósofo, mas sim do Eu objectivo,
do «puro objectivo da intuição intelectual», como dirá, em 1801, a Ex­
posição do Meu Sistema de Filosofia 1ª. Para Fichte, tal comprova­
ção, não só era desnecessária, como também contrária aos princípios da
WL: que um mundo material exista fora da consciência comprova-se
pela resistência que o Eu sente em fazer valer, por toda ·a parte, a li­
berdade absoluta, que é o fundamento do seu pôr-se a si mesmo.
É certo que, em Fichte, esta resistência recebe ainda uma explica­
ção de ordem transcendental. Se o Eu que se põe a si mesmo é a rea­
lidade absoluta, a negação só pode resultar de uma supressão, pelo
próprio Eu, da sua actividade posicional. É por isso que a resistência
que mencionámos não deve ser confundida com a afecção de que se
socorre a filosofia de Kant para explicar a origem dos nossos conheci­
mentos; aquela, ao contrário desta, é, simultaneamente, real e ideal: real
porque limita o Eu, ideal porque é posta pelo próprio Eu, ou seja, é,
como já dissemos, o Eu limitando-se. Só que, na interpretação hegeliana,
este limite interno, parecendo autorizar uma dedução da realidade a
partir do primeiro princípio da WL, falha, de facto, nos seus propósi-

1 7 Fichte, Fundamentos da Doutrina da Ci€ncia Completa, SW, I, p. 252/

GA 1/2, p. 390.
t s Regista-se aqui uma clara evolução no pensamento schellinguiano,

que Hegel não acompanhará, ou qµe, pelo menos, interpretará num senti­
do muito próprio. Enquanto no Sistema de 1800 Schelling admitia que o
caminho do Eu à natureza era paralelo ao caminho que ia da natureza ao
Eu, em 1801 defende que tanto o Eu como a natureza podem ser deduzi­
dos de um puro objectivo, que não é nem sujeito nem objecto, mas sim
indiferença quantitativa relativamente a um e a outro. (Cf. Exposição, § 1,
SW, IV, pp. 1 14-1 15.) Ora, para Hegel, o «puro objectivo» schellinguiano,
ou o absoluto, não se caracteriza pela indiferença; ele é sujeito e objecto
simultaneamente.
tos: o princípio e o resultado do sistema, em Fichte, nunca coincidem,
pois o limite, uma vez posto, nunca é reabsorvido pela actividnd1•
posicional. Como Hegel dirá (e é este o cerne da sua crítica ao sistema
de Fichte): neste «idealismo do dever», que transforma o absoluto em ..t
produto da reflexão, e o racional em algo que é posto pelo entendimen­
to, o Eu nunca é igual a Eu, mas deve, somente, sê-lo. A sua identi­
dade final consigo mesmo necessitaria, para ser posta, da forma do
tempo, resultaria de um progresso infinito, que mais não seria do que
um progresso empírico indefinido, cujo termo, apenas postulado, se
anularia de facto como termo efectivo.
É assim que, no sistema de Fichte, de acordo com a interpretação
hegeliana, o sujeito e o objecto estão condenados a permanecer eterna­
mente opostos e a cisão entre ambos não poderá nunca ser suprimida.
O absoluto hegeliano, ao invés, é uma identidade da identidade dos
opostos e da sua não-identidade; eles são efectivamente suprimidos no
absoluto, na medida em que é também nele e por ele que são postos
como opostos. Mas, no sistema de Fichte, a resolução da tarefa da filo­
sofia, que consiste em suprimir a cisão, terá de ser indefinidamente
adiada, pois tal sistema resultou apenas do facto de se ter elevado ao
absoluto um dos opostos, relativizando o outro. Ora um tal absoluto só
pode ser ainda algo de relativo, diríamos, até, de duplamente relativo:
não só relativo ao que se lhe opõe, mas também à arbitrária decisão do
filósofo em o absolutizar dessa forma.
Na linguagem de Hegel, o sujeito fichteano é, como já dissemos,
sujeito-objecto subjectivo: nele, exprime-se uma identidade entre o su­
jeito e o objecto, na medida em que o objecto resulta da supressão da
actividade posicional do sujeito; e o objecto é igualmente sujeito-objecto,
pelas mesmas razões, mas agora objectivo, ou seja, desprovido de ver­
dadeira capacidade posiciona}: o seu ser é um mero ser-posto, pois não
seria se um sujeito não o determinasse como o objecto que é. ·

Aqui, segundo nos parece, Hegel afasta-se de Schelling, embora,


até 1807, ano de publicação da Fenomenologia do Espírito, as dife­
renças entre ambos não sejam nunca claramente expressas. Tudo de­
pende, como julgamos que se estará a ver, do modo como cada um dos
dois filósofos encara o «começo» da actividade filosófica, ou, por outras
palavras, o modo como cada um deles procura ultrapassar o que tanto
11111 como o outro consideram ser o falso começo fichteano. A primeira
11ista, o acordo parece ser total: começa-se a filosofar com o absoluto.
Mas, a uma segunda aproximação, as diferenças saltam à vista. Pode-
1'1'/l/OS começar absolutamente com o absoluto? Quer dizer, começa-se
1·11111 o al1soluto enquanto identidade que suprimiu as diferenças entre o
sujeito e o objecto, entre o ser e o pensar, ou com o absoluto que se
manifesta na cisão daquilo que, justamente, difere?
Encontramo-nos aqui diante de uma diferença metodológica fu.nda­
mental, embora ainda não explicitamente assumida, e que ganhará uma
outra dimensão no «Prefácio» à Fenomenologia do Espírito. Não é
tanto acerca do absoluto como objecto único da filosofia que Schelling
e Hegel se opõem, nem tão-pouco sobre a impotência de uma filosofia
da reflexão, como a de Fichte, em atingir o absoluto, quanto sobre o
':-'f:modo como o absoluto se torna presente na especulação. Para Hegel, o
absoluto não é independente do processo da sua própria afirmação como
unidade da diferença, tornando-se apenas real para nós na medida em
que o fazemos surgir como união do que está cindido, o que só se torna
possível na medida em que a própria unidade vive da e na cisão.
�< Além disso, em 1801, Schelling e Hegel divergem, também, relati-
' vamente à natureza do organon do conhecimento do absoluto. Concor­
dando ambos na possibilidade do seu conhecimento, Hegel defende que
ele se realiza por intuição intelectual (ou transcendental), ao passo que
Schelling, na Exposição do meu Sistema de Filosofia, defende que,
após a intuição intelectual, se torna ainda necessário um acto reflexivo
da consciência filosofante, que lhe permita aceder ao «puro objectivo»
1 da intuição, como já anteriormente explicámos. Por outro lado, a intui­
ção in telectual hegeliana não coincide, nem com a versão dela por
Schelling, nos anos 1794-1796, nem com a intuição estética do Sistema
do Idealismo Transcendental. Não coincide com a primeira na medida
em que ela significa, para Schelling, uma perda da subjectividade, uma
«experiência de morte» da consciência, como se afirma nas Cartas Fi­
losóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo; nem coincide com a
segunda na medida em que esta visa suprir uma deficiência intrínseca
da razão filosófica, incapaz de exibir aquilo que pressupõe necessaria­
mente no seu ponto de partida.
Estas diferenças, mesmo que ainda não explicitamente formula­
das em 1801, apontam já na direcção que tomará a filosofia hegeliana
nos anos seguintes, e que culminará, em 1812, na publicação do
�1- 1. º Tomo da Ciência da Lógica. Para Hegel, a unidade entre uma
filosofia do espírito e uma filosofia da natureza deverá ser demons­
trada pela explicitação das estruturas lógicas que subjazem ao pri­
meiro e à segunda, e que os transformam a ambos em momentos
diferenciados de uma mesma totalidade. Só numa tal esfera abran­
gente, se assim nos podemos exprimir, uma filosofia transcendental
e uma filosofia da natureza - as duas partes principais em que se
divide, segundo Schelling, o sistema completo da filosofia - pode-

20
rão fundamentar as hipóteses que colocam como o seu ponto de
partida. Nesta perspectiva, esta Differenzschrift, para lá do seu
marcado carácter polémico e da sua inserção no contexto histórico­
-filosófico alemão dos começos do século XIX, antecipa a feição que
tomará o idealismo absoluto de Hegel, quando o autor o expuser
diante do público na sua forma acabada.

5. CRITÉRIOS SEGUIDOS NA ORGANIZAÇÃO DESTA EDIÇÃO

A versão a lemã que seguimos para es ta tradução é a da


Gesammelte Werke, Band 4, «/enaer kritische Schriften» (hrsg. Von
Hartmut Buchner und Otto Poggeler), Hamburg, Felix Meiner, 1968.
Na margem do texto desta tradução indicamos as páginas desta edição,
que deve ser hoje considerada como de referência nos estudos hege­
lianos. Não assinalámos as correcções dos editores ao texto da v�rsão ori­
ginal, por ser matéria que ultrapassa o âmbito desta edição portuguesa
e em parte, também, a nossa competência.
As remissões, nas notas explicativas que se encontram no final
desta edição, para as obras dos autores que Hegel menciona, cita, ou,
por vezes, parafraseia, fizeram-se a partir das edições seguintes:

a) KANT: Kants Gesammelte Werke, herausgegeben von der


Konigliche Preussische Akademie der Wissenschaften,
Berlin, 1902 e segs. (A seguir ao título da obra, assinala­
mos esta edição pela abreviatura Ak. Ausg., seguida da
indicação do volume em algarismos romanos e da página
em algarismos árabes.) Relativamente à Crítica da Razão
Pura, reenviaremos exclusivamente para a 1.ª e 2.ª edições,
sigladas, como é habitual, pelas letras A e B, respectiva­
mente, seguidas do número de página.
b) FICHTE: Gesamtaugabe der Bayerischen Akademie der
Wissenschaften (hrsg. von Reinhard Lauth u. a.), Stuttgart­
-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 1962 e segs. (A se­
guir ao título da obra citada - tratando-se da Doutrina
da Ciência de 1794-1795, referida pela sigla WL, como é
habitual na Forschung fichteana -, referimo.s esta edição
pela sigla GA, indicamos o número da série em algarismos
romanos, o número do volume em algarismos árabes e a
paginação.) Sãmmtliche Werke (hrsg. von I. H. Fichte),
Rerlin, 1845-1846. (Referimos esta edição pela sigla SW,
seguida da indicação do volume em algarismos romanos e
da paginação em algarismos árabes.)
c) SCHELLING: Historisch-Kritische Ausgabe, im Auftrag
der Schelling-Komission der Bayerischen Akademie der
Wissenschaften, Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann­
-Holzboog, 1976 e segs. (A seguir ao título da obra, refe­
rimos esta edição pela sigla HKA, indicamos o número da
série em algarismos romanos, o número do volume em al­
garismos árabes e a paginação.) Sãmtliche Werke (hrsg.
von K. F. A. Schelling), Stuttgart-Augsburg, Cotta Verlag,
1856-1861. (Referimos esta edição pela sigla SW, seguida
da indicação do volume em algarismos romanos e da pagi­
nação em algarismo árabes.)
d) K. L. REINHOLD: Beitrãge zur leichtem Uebersicht des
Zustands der Philosophie beim Anfang des 19.
Jahrhunderts, Ers tes Heft, Hamburg, Perthes, 1801.
(Abreviamos o título para Beitrãge e indicamos a seguir
ao título a paginação desta edição.)
e) C. G. BARDILLI: Grundriss der ersten Logik, gereiniget
von den Irrthümmern bisheriger Logiken überhaupt,
der kantischen insbesondere; keine Kritik sondem eine
Medicina Mentis, brauchbar hauptsãchlich für
Deutschlands kritische Philosophie, Suttgart, bei Franz
Chris tian Liiflund, 1800. (Abreviamos o título para
Grundriss der ersten Logik e indicamos a seguir ao títu­
lo a paginação desta edição. Servimo-nos da reimpressão
publicada na colecção «Aetas Kantiana», Bruxelles, Culture
et Civilisation, 1970.)

6. NOTA SOBRE A TRADUÇÃO

Se, por um lado, dos três grandes idealistas, Fichte, Schelling e


Hegel, talvez apenas Hegel não mereça que o qualifiquemos como um
grande escritor, por outro lado, nos seus textos transparece uma von­
tade de explorar a fu.ndo todos os recursos que a língua alemã oferece
para pensar. Procurámos nesta tradução para português o máximo de
fidelidade ao estilo hegeliano e ao ritmo da sua frase, desiderato que
nos pareceu mais importante que o da elegância formal.
Embora o alemão ofereça largas possibilidades de substantivizar os
infinitivos verbais e os adjectivos, o que nos impede de caracterizar esta
prática como uma peculiaridade hegeliana, a verdade é que o seu 11so
frequente por Hegel, por vezes mesmo ao arrepio do que é a prá tica
corrente da língua, obriga o tradutor a cuidados especiais. Preferi­
mos, por fidelidade ao original, correr o risco de despertar alguma
estranheza e optar, por exemplo, por «O intuir», em vez de «a intui­
ção», ou por «O subjectivo», em vez de «O sujeito». Também a plasti­
cidade que o sufixo alemão -heit proporciona, e de que Hegel larga­
mente faz uso, dificilmente encontra equivalente em português, em
todos os casos.
Procurámos fazer corresponder uma única palavra portuguesa a
uma única palavra alemã, embora nem sempre tal se tenha revelado
possível. Assim, sempre que tivemos que recorrer a duas ou mais pa­
lavras portuguesas para traduzir uma palavra alemã (por exemplo:
Bedingtheit, que traduzimos por «carácter-condicionado»), socorremo­
-nos do artifício da hifenização. No glossário final, o leitor encontrará
a palavra alemã que traduzimos daquela forma. Exceptuam-s�, obvia­
mente, aqueles casos em que, sendo a palavra alemã formada pela jus­
taposição de dois substantivos, a tradução consagrada para português
obriga ao recurso a um substantivo composto sem hífen. (Por exemplo:
Wechselwirkung traduz-se por «acção recíproca».) Exceptua-se tam­
bém o caso de todas as palavras formadas com o auxz1io do prefixo Ur-,
ao qual fizemos corresponder, como julgamos ser pacífico, o nosso adjec­
tivo «originário», ou, mais raramente, o adjectivo «original».
Por outro lado, em quase todos os casos respeitamos a hifenização
do original alemão, nomeadamente em palavras compostas por sich-,
ou selbst-, ou eventualmente pelos dois. (Exemplo: sich-selbst-setzen.)
Trata-se, quase sempre, de termos criados pelo próprio Hegel, mas que
fazem de tal maneira parte do seu vocabulário próprio, estão tão
indissoluvelmente ligados àquilo que quer ser dito e que não poderia,
provavelmente, ser dito de outra forma, que o tradutor não pode senão
correr o risco de sobrecarregar o texto português com substantivos
compostos, formados por um número invulgarmente grande de pala­
vras e letras.
A distinção entre os sufixos alemães -heit e -barkeit não nos pa­
receu, na maioria das situações, merecer qualquer distinção em portu­
guês, aliás sempre difícil nestes casos e, normalmente, artificial. Por
exemplo, em Bestimmtheit ou Wiederholbarkeit pareçeu-nos que
aq u eles sufixos indicariam uma mesma ideia, a saber, a «determinidade»
<' a «repetibilidade», no sentido de, respectivamente, possibilidade de
dcft'r111i11ação e de repetição, opostas à determinação e à repetição já
1:/i·cfi11111111'11ft' r m liz ada s . Nos dois casos mencionados, (> claro que a
razão do seu emprego se justifica para marcar, também do ponto de
vista do léxico, uma diferença relativamente a Bestimmung e Wie­
derholung.
Procedemos, também, a algumas alterações de pontuação, em face
do original. Por sistema, fizemos corresponder ao traço de suspensão o
seu equivalente em português, a saber, os dois pontos. Em algumas
frases excepcionalmente longas, separámos, ou por traços de suspensão,
ou por parêntesis curvos, algumas orações subordinadas, de todas as
vezes que o seu sentido, ou a ênfase que o autor lhes pretendia dar, nos
pareceu exigi-lo. Noutras situações, mas mais raramente, substituímos
o ponto e vírgula pelo ponto final.

Ao concluir o trabalho, a autor sente-se na obrigação de exprimir,


publicamente, alguns agradecimentos. Em primeiro lugar, ao Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa, que acolheu este projecto e patro­
cinou a sua edição. Em seguida, ao seu director, Prof Manuel do Carmo
Ferreira, que não apenas procedeu à revisão desta tradução como tam­
bém, com os seus comentários e sugestões, enriqueceu esta Introdução
e as notas finais.

CARLOS MORUJÃO
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DIFERENÇA ENTRE OS SISTEMAS FILOSÓFICOS
DE FICHTE E DE SCHELLING
ADVERT�NCIA PRÉVIA

Nas poucas expressões públicas nas quais se reconhece um


sentimento da diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e
de Schelling, evidencia-se mais o esforço em contornar esta dis­
tinção, ou em ocultá-la, do que uma clara consciência dela. Nem
o aspecto imediato de ambos os sistemas, tal como eles· se en­
contram diante do público, nem, entre outras, a resposta de
Schelling às objecções idealistas de Eschenmeyer 1 contra a filo­
sofia da natureza, exprimiram aquela distinção. Ao invés,
Reinhold, por exemplo, teve tão-pouco um pressentimento dela
que, antes, a outrora professada identidade completa de ambos
os sistemas lhe perturbou também, quanto a este assunto, o pon­
to de vista acerca do sistema schellinguiano. Este equívoco de
Reinhold, mais do que a prometida - ou melhor, já anunciada
como tendo acontecido - revolução da filosofia por meio da sua
recondução à lógica, é a ocasião do tratado que se segue.
A filosofia kantiana precisou que o seu espírito fosse separa­
do da sua letra e que o puro princípio especulativo fosse desta­
cado do restante, que pertencia à reflexão raciocinante ou podia
ser utilizado a favor dela. No princípio da dedução das catego­
rias, esta filosofia é autêntico idealismo, e este princípio é o que
Fichte extraiu em forma mais pura e rigorosa e a que chamou
espírito da filosofia de Kant. O facto de as coisas-em-si - atra­
vés do que nada se exprime objectivamente senão a forma vazia
da oposição - serem de novo hipostasiadas e colocadas como
objectividade absoluta, tal como as coisas do dogmático - o
facto de as próprias categorias, transformadas, em patte, em fa­
culdades inertes e mortas da inteligência, em parte, em princí­
pios supremos, por meio dos quais o enunciado, no qual o pró­
prio absoluto é expresso, como, por exemplo, a s.ubstância de
Espinosa, é aniquilado, e de, dessa forma, o raciocinar negativo
se ter podido colocar, agora tal como dantes, no lugar do filoso­
far, somente com mais pretensão, sob o nome de filosofia crítica -,
estas circunstâncias residem, acima de tudo, na forma da dedu­
ção kantiana das categorias, não no seu princípio ou espírito; e
se, de Kant, não tivéssemos outro pedaço da sua filosofia senão
6 este, aquela transformação seria 1 quase ininteligível. Naquela de­
dução das formas do entendimento está expresso, do modo mais
determinado, o prjnçíP-iQ _da__especulação, a saber, a identidade
do sujeito e do objecto; esta teoria do entendimento foi apadri­
nhada pela razão. Pelo contrário, quando Kant transforma esta
mesma identidade, como razão, em objecto da reflexão filosófica,
a identidade desaparece por si mesma; se o entendimento foi
tratado com a razão, a razão, pelo contrário, é tratada com o en­
tendimento. Torna-se aqui claro em que nível subordinado foi
concebida a identidade do sujeito e do objecto. A identidade do
sujeito e do objecto restringe-se aqui a doze, ou melhor, apenas
a nove actividades puras do pensar, pois a modalidade não ofe­
rece nenhuma determinação verdadeiramente objectiva; nela re­
side, essencialmente, a não-identidade do sujeito e do objecto.
Permanece fora das determinações objectivas por meio das cate­
gorias um domínio empírico monstruoso da sensibilidade e da
percepção, uma aposterioridade absoluta para a qual não é
indicada nenhuma aprioridade senão, apenas, uma máxima sub­
jectiva da faculdade de julgar reflexionante; quer dizer, a não­
-identidade é elevada a princípio absoluto. Não poderia ser de
outra forma, a partir do momento em que da Ideia, do produto
da razão, é retirada a identidade, quer dizer, o elemento racio­
nal, e a ideia é oposta ao ser de uma forma absoluta - e a partir
do momento em que a razão, como faculdade prática, foi apre­
sentada, não como identidade absoluta, mas sim em oposição
infinita, como faculdade da pura unidade do entendimento, tal
como tem de ser pensada a partir do pensar finito, quer dizer,
do entendimento. Surge daqui o resultado contrastante que, para
o entendimento, não existem quaisquer determinações objectivas
absolutas, porém, existem para a razão.
O puro pensar de si mesmo, a identidade do sujeito e do
objecto na forma Eu = Eu, é o princípio do sistema de Fichte, e
quando nos detemos imediatamente neste único princípio (tal
como, na filosofia de Kant, no princípio transcendental que subjaz
à dedução das categorias), obtemos o ous a damente expresso e

30
autêntico princípio da especulação. Mas, mal a especulação sai
do conceito de si mesma que apresentou por si mesma e se con­
figura como sistema, abandona-se a si mesma e ao seu princípio
e não regressa a ele. Ela abandona a razão ao entendimento e
transfere-se para a cadeia das finitudes da consciência, cadeia
essa a partir da qual não se reconstrói novamente a si mesma
como identidade e verdadeira infinitude. O próprio princípio, a
intuição transcendental, põe-se, com isso, na posição equívoca de
algo de oposto à . multiplicidade que é deduzida a partir dele.
O absoluto do sistema mostra-se apenas na forma do seu apare­
cimento captado pela reflexão filosófica, e esta determinidade,
que lhe é dada por meio da reflexão, a saber, a finitude e a
oposição, nunca lhe é retirada. O princípio, o sujeito-objecto,
apresenta-se como um 1 sujeito-objecto subjectivo. O que é de- 7
<luzido dele reveste, com isso, a forma de uma condição da cons­
ciência pura, do Eu = Eu, e a própria consciência pura reveste a
forma de uma consciência condicionada por uma infinitude ob­
jectiva, a saber, a progressão temporal in infinitum, na qual se
perde a intuição transcendental e o Eu não se constitui a si
mesmo em auto-intuição absoluta, portanto, o Eu = Eu trans­
forma-se a si mesmo no princípio: o Eu deve ser igual a Eu.
A razão posta na oposição absoluta, por conseguinte, despo­
tenciada em entendimento, torna-se, com isso, princípio das fi­
guras que o absoluto pode dar a si mesmo, e às suas ciências.
Ter de distinguir estes dois lados do sistema fichteano - um,
segundo o qual ele expõe de modo puro o conceito da razão e da
especulação, portanto, toma a filosofia possível, outro, segundo o <:

qual ele põe como um só a razão e a consciência pura e eleva a


princípio a razão concebida .numa figura finita -, tem de se mos-
trar como necessidade interna da própria coisa 2; a ocasião externa
é dada pela própria necessidade do tempo e, em primeiro lugar,
pela obra de Reinhold Contributos para uma Visão do Estado da Filo­
sofia no Começo do Século XIX, que se banha nesta necessidade da
época, obra na qual não se repara no lado pelo qual o sistema de
Fichte é autêntica especulação e, portanto, filosofia, nem no lado pelo
qual o sistema de Schelling se distingue do de Fichte e opõe ao
sujeito-objecto subjectivo o sujeito-objecto objectivo na filosofia da
"
na tureza, e expõe-nos a ambos unidos em algo superior ao sujeito.
No que diz respeito à necessidade do tempo, a filosofia de
Fich tl• fez tanta sensação e época que mesmo aqueles que se ex­
p l ica m con tra ela e se esforçam por abrir caminho a sistemas
especulativos próprios, apenas caem, de modo mais turvo e im­
puro, no princípio da filosofia de Fichte e não são capazes de se
defenderem dele. O fenómeno seguinte, que se apresenta a si
mesmo num sistema que faz época, são os desentendimentos e os
comportamentos desajeitados dos seus opositores. Quando se pode
dizer de um sistema que se tornou bem sucedido, então, é porque
se voltou para ele, com uma inclinação instintiva, uma necessida­
de mais universal da filosofia, incapaz de dar à luz, por si mesma,
a filosofia, pois, se o fosse, ter-se-ia contentado com a elaboração
de um sistema; e a aparência de uma aceitação passiva toca no
facto de, no íntimo, estar presente o que o sistema exprime e que,
de agora em diante, cada um faz valer na sua esfera científica ou
vital. Neste sentido, não se pode dizer do sistema de Fichte que
ele foi bem sucedido. Tanto, para isso, é um fardo a tendência
a não-filosófica 1 da época, como, ao mesmo tempo, quanto mais o
entendimento e a utilidade sabem proporcionar importância para
si mesmos e fazer valer para si mesmos fins limitados, tanto mais
existe o mais poderoso impulso do melhor espírito, em particular
no mundo desembaraçado e ainda jovem. Se fenómenos como os
Discursos sobre a Religião 3 não se adequam imediatamente à neces­
sidade especulativa, indicam, bem como a sua aceitação, mas mais
ainda a dignidade com que, com um sentimento mais obscuro ou
mais consciente, a poesia e a arte em geral começam a receber o
seu verdadeiro âmbito, a necessidade de uma filosofia, pela qual
a natureza seja reconciliada dos maus tratos de que padece nos
sistemas kantiano e fichteano, e a própria razão seja posta em
concordância com ela - não numa concordância na qual a razão
, renuncie a si mesma ou se tenha de tomar numa pálida imagem
da mesma, mas sim numa consonância, por a razão se configurar
a si mesma como natureza, a partir das suas próprias forças.
No que diz respeito às reflexões gerais, com que este escrito
começa, sobre a necessidade, o pressuposto, os princípios, etc.,
da filosofia, têm o defeito de ser reflexões gerais, e têm a sua
razão de ser no facto de com tais formas como pressuposto,
princípios, etc., o acesso à filosofia ser continuamente adiado e
ocultado e, por isso, é, de certo modo, necessário deixar-se intro­
duzir nela, até ao ponto de ser inteiramente e unicamente da
filosofia que se trata. Alguns dos mais interessantes destes temas
receberão ainda, noutra ocasião, um maior desenvolvimento.

Jena, Julho de 1801.

32
AS DIVERSAS FORMAS QUE APARECEM 9
NO FILOSOFAR DOS NOSSOS DIAS

PONTO DE VISTA HISTÓRICO


SOBRE OS SISTEMAS FILOSÓFICOS

Uma época que deixou atrás de si, como passado, uma tal
quantidade de sistemas filosóficos, parece ter de chegar àquela
indiferença que a vida obtém após ter-se experimentado todas as
formas; o impulso para a totalidade exprime-se ainda como im­
pulso para a completude dos conhecimentos, quando a individua­
lidade ossificada já não se atreve a viver; ela procura, através da
multiplicidade daquilo que tem, aparentar aquilo que não é. Na
medida em que transforma a ciência em conhecimento, recusou­
-lhe a participação viva que a ciência requer, manteve-a à distân­
cia e em pura figura objectiva, e manteve-se a si mesma, contra
todas as reivindicações a erguer-se à universalidade, intocável na
sua particularidade obstinada. Para este género de indiferença,
quando ela sai de si mesma por curiosidade, não há nada de
mais agradável do que dar um nome a uma filosofia de tipo
novo, e, tal como Adão exprimiu o seu domínio sobre os ani­
mais no facto de lhes ter dado um nome, exprimir o domínio
sobre uma filosofia através da descoberta de um nome. Deste
modo, ela é deslocada para o plano do conhecimento. Os conhe­
cimentos deparam-se com objectos que lhes são estranhos; no
saber da filosofia, que nunca é outra coisa senão um conheci-
1m! n to, a totalidade do interior não se moveu e a indiferença
n fi rm o u com p l e ta men te a sua liberdade.
Nenhum sistema de filosofia se pode subtrair à possibilidade
de um tal acolhimento; cada um é susceptível de ser tratado de
um ponto de vista histórico. Tal como cada figura viva pertence,
ao mesmo tempo, ao fenómeno, assim uma filosofia, como
fenómeno, se entregou àquele poder que a pode transformar
numa opinião morta e, desde o começo, em passado. O espírito
vivo que reside numa filosofia exige, para se revelar, nascer por
intermédio de um espírito semelhante. Ele passa diante da con­
duta histórica, que resulta de qualquer interesse pelo conheci­
mento de opiniões, como um fenómeno estranho, e não revela o
seu íntimo. Pode-lhe ser indiferente o facto de servir para en­
grossar a restante colecção de múmias e o amontoado universal
de contingências, pois ele próprio escapou ao coleccionar curioso
de conhecimentos disponíveis. Este agarra-se à sua tomada de
10 posição indiferente à verdade J e mantém a sua independência,
quer aceite quer recuse opiniões, quer se mantenha indecidido;
com os sistemas filosóficos, não pode ter qualquer outra relação
senão a de considerá-los opiniões, e tais contingências como
opiniões não lhe podem fazer mal algum; ainda não reconhece­
ram que a verdade existe.
Mas a história da filosofia ganha, quando o impulso de alar­
gar a ciência se lança a isso, um lado mais útil, na medida em
que deve servir, nomeadamente, segundo Reinhold, para pene­
trar no espírito da filosofia mais profundamente do que já acon­
teceu, e levar mais longe as opiniões próprias dos predecessores
sobre a fundamentação da realidade do conhecimento humano,
através de novã s opiniõe s próp rias; só através de um tal conhe­
cimento das tentativas que foram feitas até hoje para resolver a
tarefa da filosofia, poderá por fim a tentativa dar efectivamente
resultado, se é que foi concedido à humanidade alcançá-lo 4. Vê­
-se que à finalidade de uma tal investigação subjaz uma repre­
sentação da filosofia segundo a qual esta seria uma espécie de
arte manual, que se deixaria aperfeiçoar através de novos proce­
dimentos técnicos incessantemente descobertos. Cada nova des­
coberta pressupõe o conhecimento dos procedimentos já utiliza­
dos e dos seus objectivos; mas, após todos os melhoramentos
feitos até ao presente, permanece ainda a tarefa fundamental,
que, depois de todos os outros, Reinhold parece pensar como a
descoberta de um último procedimento técnico universalmente
válido, por meio do qual, para todos os que fossem capazes de
o conhecer, a obra se realizaria por si mesma. Se se tra tas se d e
fazer uma tal descoberta e a ciência fosse a obra morta da habi­
lidade alheia, caber-lhe-ia, certamente, aquela perf�ctibilidade de
que são capazes as artes mecânicas, e, em cada época, os siste­
mas filosóficos anteriores não deveriam ser considerados senão
como exercícios preliminares para as grandes cabeças. Mas se o
absoluto, tal como a sua manifestação, a razão, é eternamente
um e o mesmo, como de facto é, então, cada razão que se dirige
e se conhece a si mesma produziu uma verdadeira filosofia e re­
solveu para si a tarefa que, tal como a sua solução, é a mesma
para todas as épocas s . Porque, na filosofia, a razão que se conhece
a si mesma tem a ver somente consigo, reside também nela mes­
ma toda a sua obra e a sua actividade, "€, em relação à essência
mais íntima da filosofia, não há antecessores nem seguidores.
Tal como não se pode falar de melhoramentos constantes, tam- -rf.:
bém não se pode falar de pontos de vista próprios em filosofia 6.
Como poderia o racional ser uma coisa própria? Aquilo que é pró­
prio de uma filosofia, por ser próprio, só pode pertencer · à forma
do sistema, não à essência da filosofia. Se algo de próprio consti­
tuísse efectivamente a essência de uma filosofia, ela não seria filo­
sofia alguma; e se um sistema explica que algo 1 de próprio cons- 11
titui a sua essência, tal sistema poderá - não obstante isso - ter
resultado da especulação autêntica, que apenas fracassou na tenta­
tiva de se exprimir na forma de uma ciência. Quem está prisioneiro
de uma peculiaridade, só vê nos outros peculiaridades; se, na es­
sência da filosofia, se conceder lugar a pontos de vista particulares,
e se Reinhold considera uma filosofia própria aquilo de que se ·

ocupou nos tempos mais recentes, então é certamente possível con­


siderar em geral todos os modos anteriores de expor e resolver a
tarefa da filosofia, com Reinhold, como sendo apenas peculiaridades
e exercícios preliminares, por meio dos quais, todavia, a tentativa
bem sucedida seria produzida de forma preparatória (pois não
devemos pôr de lado o ponto de vista teleológico quando vemos as
margens das ilhas afortunadas da filosofia, pelas quais ansiamos,
cobertas apenas por barcos em destroços, e não vemos nenhum
meio de transporte em bom estado nas suas enseadas). Nem tão­
-pouco a partir da peculiaridade da forma na qual a filosofia de
Fichte se exprimiu, deve ser explicado que Fichte possa ter dito de
Espinosa que ele não poderia ter acreditado na sua própria filoso­
fia, nem poderia dela ter tido a convicção viva íntima e perfeita, e
possa ter dito dos antigos que era duvidoso o facto de terem pen­
sa d o com consciência a tarefa da filosofia.

r.
Se, aqui, a peculiar.idade da forma do próprio sistema, a to­
talidade da sua natureza intrínseca, produziu uma tal expressão,
ao invés, a peculiaridade da filosofia de Reinhold consiste na
tendência para instituir e fundamentar, que se ocupa com pon­
tos de vista filosóficos próprios e com a preocupação de fazer a
sua história. O amor e a fé na verdade elevou-se a uma altura
tão pura e vertiginosa que ele, para que a entrada no templo seja
correctamente instituída e fundamentada, edifica um átrio espa­
çoso, no qual a verdade, para se poupar o passo, se ocupa duran­
te muito tempo com o analisar, o metodologizar e o enumerar,
até que afirma, como prova da sua incapacidade para a filosofia,
que os passos temerários dos outros não foram senão exercícios
preparatórios, ou erros do espírito.
A essência da filosofia não tem justamente chão para proprie­
dades e, para atingi-la, se o corpo exprime a soma das proprie­
dades, é necessário lançar-se nela à corps perdu 7; pois a razão,
que encontra a consciência prisioneira de peculiaridades, só se
tornará especulação filosófica na medida em que se elevar a si
mesma e se confiar a si mesma e ao absoluto, que se tornará ao
mesmo tempo o seu objecto. Ela só põe em risco aí as finitudes
da consciência e, para as ultrapassar e construir o absoluto na
12 consciência, eleva-se à especulação e, 1 na ausência de funda­
mento para as limitações e peculiaridades, agarrou em si mesma
a sua própria fup.damentação. Porque a especulação é a activida­
de que a razão una e universal exerce sobre si mesma, ela, se
libertou o seu próprio ponto de vista das casualidades e das li­
mitações, deve (em vez de ver nos sistemas filosóficos de diver­
sas épocas e cabeças apenas diferentes modos e pontos de vista
meramente próprios), encontrar-se a si mesma através das for­
mas particulares, em vez de encontrar uma mera multiplicidade de
conceitos e opiniões razoáveis, pois uma tal multiplicidade não é
uma filosofia. O verdadeiramente próprio de uma filosofia é a
individualidade interessante, na qual a razão organizou para si
mesma uma figura, com os materiais de uma época particular;
aí, a razão especulativa particular encontra o espírito do seu
espírito, a carne da sua carne, intui-se a si nela como uma e a mesma
essên�ia viva e como um outro. Cada filosofia é em si completa
e tem, como uma autêntica obra de arte, a totalidade em si. Tão­
-pouco como a obra de Apeles ou de Sófocles, se Rafael e
Shakespeare a tivessem conhecido, lhes teria podido aparecer
como um exercício prévio para si mesmos, mas sim como u m a

.16
força espiritual aparentada à sua, tão-pouco pode a razão, nas
suas configurações precedentes, ver-se a si mesma como exercí­
cios prévios de que poderia tirar partido; e se Virgílio conside­
rou Homero como um tal exercíçio prévio para si e para a sua
época mais refinada, então a sua obra permaneceu um exercício
posterior de imitação.

A NECESSIDADE DA FILOSOFIA

Se considerarmos mais de perto a forma particular que uma


filosofia apresenta, vêmo-la, por um lado, surgir da originalida-
de viva do espírito, que, nela, produziu por si mesmo e configu­
rou pela sua acção a harmonia despedaçada, por outro lado,
resultar da forma particular que traz a cisão e da qual surge o
sistema. A cisão é a fonte da necessidade da filosofia B e, como cul­
tura da época, o lado não-livre e dado da sua figura. Na cultura,
aquilo que é manifestação do absoluto isolou-se do absoluto e
fixou-se como algo de autónomo. Mas, ao mesmo tempo, a ma­
nifestação não pode negar a sua origem e deve partir daí para
constituir como um todo a multiplicidade das suas limitações; a
força de limitar, a saber, o entendimento, liga ao seu edifício, que
coloca entre o homem e o absoluto, tudo o que 1 para o home� 13
é valioso e sagrado, consolida o seu edifício por meio de todos
os poderes da natureza e do talento e alarga-o até ao infinito.
Pode encontrar-se aí a totalidade das limitações, só que não o
próprio absoluto; perdido nas partes, ele impulsiona o entendi­
mento no sentido do desenvolvimento infinito da multiplicidade,
entendimento que, na medida em que se esforça por se afargar
até ao absoluto, mas apenas se produz sem cessar a si mesmo,
escarnece de si mesmo. A razão só atinge o absoluto na medida
em que se arranca a estas partes múltiplas; quanto mais firme e
resplandecente é o edifício do entendimento, tanto mais agitado
se toma o esforço da vida, que nele está presa como uma parte,
para dele sair em direcção à liberdade. Na medida em que ela se
afasta como razão, ao mesmo tempo é aniquilada a totalidade das
limitações, relacionada com o absoluto neste aniquilar .e, com isso,
imediatamente compreendida e posta como mera manifestação; a
c i são entre o absoluto e a totalidade das limitações desapareceu.
O entendimento imita a razão no pôr absoluto e, por meio
d t•sh1 mes ma forma, dá a si mesmo a aparência de razão, embora
as coisas postas sejam em si mesmas opostas e, portanto, finitas;
e fá-lo com tanto maior aparência quando transforma e fixa num
produto o negar racional. O infinito, na medida em que é oposto
ao finito, é um racional posto pelo entendimento; exprime para
si mesmo, como racional, apenas a negação do finito. Na medida
em que o entendimento fixa o infinito, opõe-no absolutamente
ao finito, e a reflexão, que se tinha elevado à razão, ao suprimir
o finito rebaixou-se de novo ao plano do entendimento, na me­
dida em que fixou o agir da razão na oposição; todavia, reclama
ainda a pretensão de ser racional neste retroceder. Tais opostos,
que deveriam valer como produtos da razão e como absoluto,
foram expostos de forma diferente pela cultura de diferentes
· épocas, e o entendimento deu-se a esse trabalho. Os opostos que,
outrora, tinham significado, sob a forma de espírito e matéria,
alma e corpo, fé e entendimento, liberdade e necessidade, etc.,
em esferas mais limitadas e ainda de modos diferentes, e liga­
vam a si todo o peso do interesse humano, transformaram-se,
com o progresso da cultura, na forma das oposições entre razão
e sensibilidade, inteligência e natureza e, para o conceito univer­
sal, entre subjectividade absoluta e objectividade absoluta.
Suprimir tais opostos tomados fixos é o único interesse da
razão. Este seu interesse não significa que ela se coloque em geral
contra as oposições e as limitações; pois a cisão necessária é um
factor da vida; que se forma a si mesma opondo-se eternamente,
e a totalidade só é possível, na forma suprema da vida, através
14 do restabelecimento a partir da suprema separação. 1 Mas a ra­
zão coloca-se contra a fixação absoluta da cisão por meio do en­
tendimento, e isto tanto mais quanto os próprios termos absolu­
tamente opostos tiveram origem na razão.
Quando o poder de unificação desapareceu da vida dos ho­
mens, e os opostos perderam a sua relação viva e a acção recí­
proca e ganharam autonomia, surge a necessidade da filosofia.
Nesta medida, é uma contingência, mas, sob a cisão dada, é a
tentativa necessária para suprimir a oposição da subjectividade e
da objectividade consolidadas, e conceber o surgimento do mundo
intelectual e do mundo real como um devir, o seu ser como
produto, como um produzir: na actividade infinita do devir e do
produzir, a razão uniu o que estava separado e rebaixou a cisão
absoluta a uma relativa, que está condicionada pela identidade
originária. Quando, onde e sob que forma tais auto-reproduções
da razão surgem como filosofias, é contingente. Esta contingên-
eia deve ser concebida como sendo o absoluto que se põe a si
mesmo como uma totalidade objectiva. A contingência é uma
contingência no tempo, na medida em que a objectividade do
absoluto é intuída como um progresso no tempo; mas, na medi­
da em que aparece como contiguidade no espaço, a cisão é cli­
mática; na forma da reflexão fixada, como um mundo de um ser
pensante e pensado, em oposição a um mundo de realidade efec­
tiva, esta cisão acontece no norte ocidental.
Quanto mais a cultura prospera, quanto mais diversificado
se torna o desenvolvimento das expressões da vida, no qual a
cisão se pode devorar a si mesma, tanto maior se torna o poder
da cisão, tanto mais firme a sua sacralidade climática, tanto mais
estranhos para a totalidade da cultura, e sem significado, os es­
forços da vida para recuperar para si a harmonia. Aquelas ten­
tativas, poucas relativamente à totalidade, dirigidas contra a nova
cultura e as significativamente mais belas configurações. do pas­
sado ou do estranho, puderam apenas despertar aquela atenção
que é possível quando não pode ser entendida a relação autên­
tica e mais profunda com a arte viva. Com o afastamento, rela­
tivamente a ela, da totalidade do sistema das relações vitais,
perdeu-se o conceito da sua conexão abrangente, que se trans­
formou, ou no conceito de uma superstição, ou no de um jogo
de entretenimento. A suprema perfeição estética - tal como se
forma numa determinada religião na qual o homem se eleva
acima de toda a cisão e vê desaparecer no reino da graça a liber­
dade do sujeito e a necessidade do objecto - pode apenas acon­
tecer energicamente até um determinado grau da cultura, e na
barbárie universal ou na barbárie da plebe. A cultura em pro- 1
gresso separou-se dela e pô-la ao seu lado ou pôs-se ao lado dela, 15

e porque o entendimento se tornou mais seguro de si, prospe­


ram ambas, uma ao lado da outra, numa certa tranquilidade, na
medida em que se separam em domínios totalmente distintos,
em que para cada um deles não tem qualquer significado aquilo
que se passa no outro.
Mas o entendimento pode também ser atacado, de forma
i mediata, no seu domínio, pela razão, e a tentativa de aniqui­
l n r a cisão por meio da própria reflexão e, com . isso, o seu
rn rá cter absoluto, pode ser melhor compreendida; por isso, a
c i sil o , q ue se sentia atacada, se voltou, durante tanto tempo,
rnm 6d io e raiva contra a razão, até que o reino do entendi­
nw n to se n l ç o u a u m poder tal, que se pode manter com mais
segurança diante da razão. Assim como se costuma dizer da
virtude que o maior testemunho da sua realidade é a aparên­
cia que a hipocrisia lhe pede de empréstimo, assim também o
entendimento não se pode proteger da razão e procura pre­
servar-se, através de uma aparência de razão, do sentimento de
falta de conteúdo interno e do medo secreto que atormenta
qualquer limitação, aparência essa por meio da qual disfarça
as suas particularidades. O desprezo pela razão não se mostra
de forma mais forte pelo facto de ela ser livremente desprezada
e injuriada, mas sim pelo facto de o carácter limitado se ga­
bar do seu domínio sobre a filosofia e da sua amizade por ela.
A filosofia deve repelir a amizade por tais falsas tentativas, que
se gabam de forma desleal da aniquilação das particularidades,
partem da limitação e, para salvá-las e assegurá-las, utilizam a
filosofia como um meio.
Na luta do entendimento com a razão vem àquele uma for­
ça, somente na medida em que esta renuncia a si mesma; o su­
cesso da luta depende, por isso, dela própria e da autenticidade
da necessidade, da qual ela surge, de restabelecer a totalidade.
A necessidadê da filosofia pode ser expressa como o seu pressu­
posto, se é que à filosofia, que começa consigo mesma, deve ser feita
uma espécie de átrio; e, no nosso tempo, muito se falou de um
pressuposto absoluto. Aquilo a que se chama o pressuposto da fi­
losofia não é senão a necessidade expressS. dela. Porque, assim, 'ã
necessidade é posta para a reflexão, devem existir dois pressupostos.
Um é o próprio absoluto; ele é o alvo que se procura; ele já
está presente: de outro modo, como poderia ser procurado?
A razão produ-lo apenas ao libertar a consciência das limitações;
este suprimir das limitações está condicionado pelo pressuposto
da ilimitabilidade.
O outro pressuposto seria a saída da consciência da totalida­
de, a cisão em ser e não-ser, em conceito e ser, em finitude e
infinitude. Para o ponto de vista da cisão, a síntese absoluta é
um além - o indeterminado e sem forma que se opõe às suas
16 determinidades. 1 O absoluto é a noite e a luz é mais jovem do
que ela, e a distinção entre ambas, tal como a saída da luz a
partir da noite, é uma diferença absoluta - o Nada é o primeiro,
do qual todo o ser, toda a multiplicidade do finito, procedem.
Mas a tarefa da filosofia consiste em unir estes pressupostos,
em pôr o ser no não-ser - como devir, a cisão no absoluto -
como sua manifestação, o finito no infinito - como vid a .
Porém, é desajeitado exprimir a necessidade da filosofia como
um pressuposto da mesma, pois, desse modo, a necessidade re­
cebe uma forma da reflexão; esta forma da reflexão aparece como
proposições contraditórias, de que mais abaixo se falará. Pode-se
exigir às proposições que se justifiquem a si mesmas; a justifica­
ção destas proposições, como pressupostos, não será ainda a fi­
losofia, e, assim, b sondar e fundamentar começa antes e fora da
filosofia.

A REFLEXÃO COMO INSTRUMENTO DO FILOSOFAR

A forma que revestiria a necessidade da filosofia, se tivesse


de ser expressa como pressuposto, fornece a transição da neces­
sidade da filosofia para o instrumento do filosofar, para a reflexão
como razão. o absoluto deve ser construído para a co�ciência,
tal é a tarefa da filosofia; mas, dado que tanto o produzir como
os produtos da reflexão são apenas limitações, isto é uma con­
tradição. O absoluto deve ser reflectido, posto; mas deste modo
ele não é posto, mas sim suprimido, pois, ao ser posto, tomou-se
limitado. A mediação desta contradição é a reflexão filosófica.
Deve-se preferencialmente mostrar em que medida a reflexão é
capaz de captar o absoluto e como, no seu trabalho como espe­
culação, suporta a necessidade e a possibilidade de ser sintetiza­
da com a intuição absoluta, e ser para si, subjectivamente, justa­
mente tão perfeita como o seu produto, o absoluto construído na
consciência, deve ser, ao mesmo tempo, consciente e inconsciente.
A reflexão isolada, enquanto pôr de opostos, seria um supri­
mir do absoluto; ela é a faculdade do ser e da limitação. Mas,
como razão, a reflexão J tem uma relação com o absoluto e só 17
é razão através desta relação; assim, a reflexão aniquila-se a si
mesma e a todo o ser e a . tudo o que é limitado, na medida em
que se relaciona com o absoluto. Mas, ao mesmo tempo, precisa­
mente através da sua relação com o absoluto, o limitado tem uma
subsistência.
A razão apresenta-se a si mesma como força do absoluto
negativo, portanto, como negar absoluto, e, simul�aneamente,
como força do pôr da totalidade dos opostos subjectivo e objec­
l i v o . Às vezes, eleva o entendimento acima dele mesmo,
i m p u l s i on a-o em direcção a um todo semelhante a si; leva-o a
p rod u z i r u m a to ta l idade objectiva. Cada ser, na medida em que
é posto, é um oposto, é condicionado e condicionante; o enten­
dimento completa estas suas limitações através da posição das
limitações opostas, como condições; estas necessitam do mesmo
completar e a sua tarefa alarga-se até ao infinito. Com isto, a
reflexão parece relevar apenas do entendimento, mas esta direc­
ção para a totalidade da necessidade é a participação e a secreta
eficácia da razão. Na medida em que torna o entendimento sem
fronteiras, ele e o seu mundo objectivo afundam-se na riqueza
infinita. Pois cada ser, que o entendimento produz, é um ser
determinado, e o determinado tem o indeterminado diante de si
e atrás de si, e a multiplicidade do ser encontra-se entre duas
noites, sem se conseguir manter; ela repousa no nada, pois o
indeterminado é nada para o entendimento, e acaba no nada.
A teimosia do entendimento permite que a oposição do determi­
nado e do indeterminado, da finitude e da infinitude abandona­
da, permaneçam lado a lado por unificar; e que o ser seja justa­
mente fixado diante do não-ser, para ele igualmente necessário.
Porque a sua essência se dirige a uma determinação geral, mas
o seu determinado é imediatamente limitado por um indeter­
minado, o seu pôr e determinar nunca completam a tarefa; no
próprio acontecimento do pôr e determinar encontra-se um não­
-pôr e um indeterminado, portanto, continuamente, a própria
tarefa de pôr e determinar. Se o entendimento fixa estes opostos,
o finito e o infinito, de modo a que ambos devam permanecer,
ao mesmo tempo, como opostos um ao outro, destrói-se a si
mesmo, pois a posição do finito e do infinito significa que, na
medida em que um deles é posto, o outro é suprimido. Na
medida em que a razão reconhece isto, suprimiu o entendimento;
o seu pôr aparece-lhe como um não-pôr, os seus produtos como
negações. Este aniquilar, ou o puro pôr da razão sem opor, se­
ria, quando ela é oposta à objectividade infinita, a subjectividade
infinita: o reino da liberdade oposto ao mundo objectivo. Porque
este é, nesta mesma forma, oposto e condicionado, deve então a
razão, para suprimir absolutamente a oposição, aniquilá-la tam-
18 bém na sua autonomia. 1 A razão aniquila-os a ambos ao unificá­
-los; pois eles são apenas na medida em que não são unificados.
Nesta unificação, subsistem ambos simultaneamente, pois o opos­
to e, por conseguinte, limitado é, com isto, relacionado com o
absoluto. Mas o oposto não permanece por si; mas apenas na
medida em que é posto no absoluto, quer dizer, como iden tidn­
de; o limitado, na medida em que pertence a uma das totn l idn-
des opostas, portanto, relativas, é ou necessano o u livre; na
medida em que pertence à síntese de ambas, suprime a sua pró­
pria limitação; é, ao mesmo tempo, livre e necessário, consciente
e sem consciência. Esta identidade consciente do finito e da
infinitude, a unificação dos dois mundos, do sensível e do inte­
lectual, do necessário e do livre, na consciência, é saber. A refle­
xão como faculdade do finito, e o infinito que lhe é oposto, são
sintetizados na razão, cuja infinitude capta em si o finito.
Na medida em que a reflexão se toma a si mesma como seu
objecto, a sua lei suprema, que lhe é dada pela razão e por meio
da qual ela se torna em razão, é o seu aniquilamento; como tudo, ·

ela permanece apenas no absoluto, mas, como reflexão, opõe-se­


-lhe; portanto, para permanecer, deve dar a si mesma a lei do
seu auto-aniquilamento. A lei imanente, por meio da qual ela se
constituiu como absoluta pelas suas próprias forças, seria o prin­
cípio de contradição, nomeadamente, que o seu ser posto seja e
permaneça; deste modo, ela fixou os seus produtos como abso­
lutamente opostos ao absoluto, constituiu-se em lei eterna de
permanecer entendimento e não se transformar em razão, e de
se fixar na sua obra que, na oposição ao absoluto - e, como li­
mitada, é oposta ao absoluto -, é nada.
Assim como a razão, por isso, se transforma em algo de
entendimento e a sua infinitude em infinitude subjectiva, quan­
do é posta numa oposição, assim também a forma, que o reflec­
tir exprime como pensar, se presta precisamente a esta ambigui­
dade e a este abuso. Se o pensar não for posto como a actividade
absoluta da própria razão, para a qual não há pura e simples­
mente nenhuma oposição, mas se o pensar for considerado ape­
nas um reflectir mais puro, quer dizer, um reflectir no qual ape­
nas se abstrai da oposição, então, tal pensamento abstractivo não
pode nem sequer sair do entendimento em direcção à lógica, que
·
deve incluir em si a razão, e muito menos em direcção à filoso­
fia ; A essência ou o carácter interno do pensar como pensar é
pósta por Reinhold 9 como a repetição infinita de um e precisa­
mente do mesmo, como um e precisamente o mesmo, num e
precisamente no mesmo, por meio de um e precisamente do
mesmo, ou como identidade 10 . Poder-se-ia, através deste aparen­
te carácter de uma identidade, ser induzido a ver neste pensar a
rnzão. Mas através da sua oposição a) a uma aplicação do pen­
sa r, b) a uma materialidade absoluta, torna-se claro que este
�wnsar não é a id e n tid ad e a b sol u ta , a identidade do sujei to e do
objecto, que suprime os dois na sua oposição e os capta em si,
19 mas sim uma identidade pura, quer dizer, 1 surgida da abstrac­
ção e condicionada pela oposição: é o conceito-de-entendimento
abstracto de unidade, a saber, uma unidade de opostos fixos.
Reinhold vê o erro das filosofias existentes até hoje no hábito,
tão difundido entre os filósofos do nosso tempo e tão profunda­
mente enraizado, de representar o pensar em geral e a sua apli­
cação como algo de meramente subjectivo 1 1 . Se fôssemos total­
mente sérios para com a identidade e não-subjectividade deste
pensar, Reinhold não poderia, desde logo, estabelecer nenhuma
diferença entre o pensar e a aplicação do pensar; quando o pen­
sar é verdadeira identidade, não subjectiva, como pode surgir
ainda algo de diferente do pensar, uma aplicação, para já não
falar da matéria que é postulada por causa da aplicação? Quan­
do o método analítico lida com uma actividade, esta, na medida
em que deve ser analisada, deve aparecer-lhe como algo de sin­
tético e, através da análise, surgem, logo de seguida, os elemen­
tos da unidade e de uma multiplicidade que lhe é oposta 1 2 .
Aquilo que a análise expõe como unidade será chamado subjec­
tivo e, enquanto tal, uma unidade oposta à multiplicidade, e o
pensar será caracterizado como identidade abstracta; deste modo,
o pensar é algo de puramente limitado e a sua actividade é uma
aplicação conforme a uma lei, de acordo com uma regra, a uma
matéria já existente, ou seja, é algo que não pode atingir o saber.
Só na medida em que a reflexão tem uma relação com o
absoluto é razão e a sua actividade um saber; mas, através desta
relação, a sua obra passa e apenas a relação permanece e é a
única realidade do conhecimento; por isso, não há nenhuma
verdade da reflexão isolada, do puro pensar, senão a da sua
aniquilação. Mas o absoluto, porque, no filosofar, é produzido
pela reflexão para a consciência, torna-se com isso uma totalida­
de objectiva, um todo de saber, uma organização de conhecimen­
tos. Nesta organização, cada parte é ao mesmo tempo o todo,
pois consiste na relação com o absoluto. Como parte que tem
outra fora de si, é algo de limitado, existindo apenas através de
um outro; isolada como limitação é insuficiente, só tem sentido
e significação através da sua conexão com o todo. Não pode, por
isso, falar-se de conceitos singulares por si, nem de conhecimen­
tos singulares, como se se tratasse de um saber. Pode haver uma
grande quantidade de conhecimentos empíricos isolados; na qua­
lidade de saber da experiência, apresentam a sua justificação na
experiência, quer dizer, na identidade do conceito e do ser, d o
sujeito e do objecto. Precisamente por isso, não são nenhum sa­
ber científico, porque têm a sua justificação apenas numa identi­
dade limitada e relativa, e nem se legitimam como uma parte
necessária de um todo de conhecimentos organizada na cons­
ciência, nem a identidade absoluta, a relação com o absoluto ne­
les, se tornou conhecida por meio da especulação. 1

A RELAÇÃO DA ESPECULAÇÃO 20
COM O SÃO ENTENDIMENTO HUMANO

Também o racional, que o chamado são entendimento hu­


mano conhece, é igualmente constituído por um conjunto de sin­
gularidades, transferidas do absoluto para a consciência, pontos
luminosos que se destacam por si mesmos da noite da totalida­
de, e com os quais o homem se auxilia racionalmente a si mes­
mo ao longo da vida; constituem, para ele, pontos de vista cor­
rectos, dos quais parte e aos quais regressa.
Mas, de facto, o homem só tem, também, tal confiança na
verdade de tais singularidades, porque o absoluto o acompanha
com um sentimento, e somente isso lhes dá significado. Tais
verdades do são entendimento comum, tomadas em si mesmas,
meramente isoladas como do entendimento, como conhecimen­
tos em geral, aparecem equívocas e como meias verdades. O são
entendimento humano pode ser induzido em erro pela reflexão;
tal como ele a admite em relação a si, assim também reivindica
que aquilo que exprime agora como proposição para a reflexão
valha como um saber, um conhecimento; abandonou a sua força,
nomeadamente as suas sentenças, apenas para suportar a totali­
d ade obscura, presente como sentimento, e somente com ela er­
guer uma barreira à inconstante reflexão. O são entendimento
h u mano exprime-se, certamente, a favor da reflexão, mas as suas
sen tenças também não contêm, para a consciência, a sua relação
com a totalidade absoluta, mas esta permanece no íntimo e
i nexpressa. Por isso, a especulação entende o são entendimento
h u m ano, mas o são entendimento humano não entende o agir
d n especulação. A especulação reconhece como realidade do co­
n lwcimcnto apenas o ser do conhecimento na totalidade; tudo o
l l l l l' (> determinado tem, para ela, apenas realidade e verdade na
rl' l ac;ih> reconhecida com o absoluto. Por isso, ela reconhece tam-
bém o absoluto naquilo que subjaz às sentenças do são entendi­
mento humano; mas porque para ela o conhecimento só tem
realidade na medida em que está no absoluto, o conhecido e o
sabido, tal como são expressos pela reflexão e têm, por conse­
guinte, uma forma determinada, são ao mesmo tempo aniquila­
dos. As identidades relativas do são entendimento humano, que
reivindicam, tal como aparecem na sua forma limitada, a
absolutidade, tornam-se contingências para a reflexão filosófica.
O são entendimento humano não pode captar como o imediata­
mente sabido por ele é ao mesmo tempo, para a filosofia, um
nada; pois, nas suas verdades imediatas, sente apenas a sua re­
lação com o absoluto, mas não separa este sentimento do apare­
cimento delas, através do qual elas são limitações; e, todavia, en­
quanto tais, devem também ter estabilidade, um ser absoluto,
mas desaparecem diante da especulação. 1
21 Mas não só o são entendimento humano não pode compreen-
der a especulação, como também a deve odiar quando faz a
experiência dela e, quando não se encontra na plena segurança
da indiferença, detestá-la e persegui-la. Pois, como para o são
entendimento humano a identidade da essência e da contingên­
cia das suas sentenças é absoluta e ele não consegue separar do
absoluto os limites da manifestação, também aquilo que ele se­
para na sua consciência é absolutamente oposto, e não pode li­
gar, na consciência, com o ilimitado, aquilo que ele conhece como
limitado; embora eles sejam nele idênticos, esta identidade, po­
rém, é e permanece algo de interior, um sentimento, algo de
desconhecido e de inexprimido. Assim como o senso comum se
recorda do limitado e ele é posto na consciência, também para
esta o ilimitado é absolutamente oposto ao limitado. Esta relação
ou referência do carácter limitado ao absoluto, refe!ência na qual
apenas a oposição está presente na consciência - e acerca da
identidade, ao invés, existe uma completa ausência de consciên­
cia -, chama-se crença . A crença não exprime o carácter sintético
do sentimento ou da intuição; ela é uma relação da reflexão ao
absoluto, a qual, nesta relação, é na verdade razão e se aniquila
a si mesma como o que separa e é separado, tal como aniquila
os seus produtos - uma consciência individual -, mas conser­
vou ainda a forma da separação. A certeza imediata da crença 1 3 ,
da qual tanto se falou como o último e supremo da consciência,
não é senão a própria identidade, a razão, mas que não se co­
nhece a si mesma e é acompanhada da consciência da oposição.


A especulação, porém, eleva à consciência a identidade sem cons­
ciência para o são entendimento humano, ou constrói como uma
identidade consciente o que é necessariamente oposto na cons­
ciência do entendimento comum, uma unificação do separado na
crença que é, para ele, um horror. Porque o sagrado e o divino
subsistem somente como objecto na sua consciência, ele vê ape­
nas na oposição suprimida, na identidade para a consciência,
somente a destruição do divino.
Mas em particular o são entendimento humano não pode ver
nada mais do que destruição naqueles sistemas filosóficos que
satisfazem a exigência da identidade consciente suprimindo a
cisão, pelo que um dos opostos, em particular quando se encon­
tra já fixado pela cultura do tempo, é elevado ao absoluto e o
outro é aniquilado. Aqui, a especulação, como filosofia, supri­
miu certamente a oposição, mas, como sistema, elevou de limita­
da a absoluta uma forma sua habitual e conhecida. O único lado
que é aqui tomado em consideração, a saber, o especulativo, não
existe, de forma alguma, para o são entendimento humano; des­
te . lado especulativo, o limitado é totalmente diferente daquilo
que parece ao são entendimento humano; 1 nomeadamente, pelo
facto de ter sido elevado ao absoluto, já não é este limitado.
A matéria do materialista não é mais a matéria morta a que se
opõem a vida e a cultura, ou o eu do idealista não é mais a cons­
ciência empírica que, como limitada, tem de pôr um infinito fora
de si. Cabe à filosofia a pergunta sobre se o sistema purificou de
verdade de toda a finitude a manifestação finita, que alçou a
infinito, e se a especulação, onde mais se afasta do entendimento
humano comum e das suas oposições fixas, não está submetida
ao destino do seu tempo, que consiste em pôr absolutamente urna
forma do absoluto, portanto, algo por essência oposto. Se a espe­
cu lação libertou realmente o finito, que tornou infinito, de todas
ns formas da manifestação, é antes de mais com o assumir que
o entendimento humano comum aqui esbarra, quando, de outro
modo, não tem qualquer notícia do trabalho especulativo. Quan­
d o a especulação apenas de facto alça o finito a infinito e assim
o a n i q uila - e a matéria e o eu, na medida em que devem abran­

�l' r a to ta li d ade, já não são eu nem matéria -, falta, na verdade,


o L'i l t i mo acto da reflexão filosófica, a saber, a cons c iência da s ua

•m i q u i l ação. E também quando, independentemente desta aniqui­


l n çíl o a co n tec i d a de facto, o absoluto do sistema conservou ainda
1 1 m n forma d e terminada, pelo menos não se deve d es c on he cer a
autêntica tendência especulativa, da qual, porém, o entendimen­
to humano comum nada compreende. Na medida em que este
último não vê sequer o princípio filosófico de suprimir a opo­
sição, mas apenas o princípio sistemático, encontra um dos
opostos elevado a absoluto e o outro aniquilado; nesta situa­
ção, ainda havia, pelo seu lado, uma vantagem relativamente à
cisão; nele, tal como no sistema, está presente uma oposição
absoluta, todavia, era ele que tinha a completude da oposição.
Agora, sente-se duplamente atingido. Além disso, a um tal sis­
tema filosófico que padece da falha de elevar ao absoluto algo
de ainda oposto por um certo lado, cabe, para lá do seu lado
filosófico, ainda uma vantagem e um préstimo, das quais o
entendimento comum não só nada compreende, como também
tem de detestar; a vantagem de ter, através da elevação de um
finito ao princípio infinito, derrubado de uma só vez toda a
massa das finitudes, ligadas ao princípio oposto; o mérito, rela­
tivamente à cultura, de ter tornado a cisão ainda mais dura e
de ter reforçado ainda mais a necessidade de unificação na
totalidade 14 .
A obstinação do são entendimento humano em manter se­
guro na força da sua indolência o sem consciência, no seu peso
e oposição originários, em face da consciência, e em manter a
23 matéria em 1 face da diferença que a luz apenas traz até ela para
a construir numa nova síntese, numa potência superior 1s, exige
certamente nos climas nórdicos um período de tempo mais lon­
go para ser superada; para que a própria matéria, composta por
uma multiplicidade de átomos, seja posta em movimento e
deslocada do seu próprio terreno, através de um combinar e
decompor mais diversificado que engendre, desse modo, uma
maior quantidade de átomos fixos; para que a entendimento
humano, na sua actividade e saber raciocinantes, se perturbe cada
vez mais, até que se torne capaz de suportar a supressão desta
confusão e da própria cisão.
Se, para o são entendimento humano, aparece apenas o lado
aniquilador da especulação, também este aniquilar não lhe apa­
rece em toda a sua extensão. Se ele pudesse conceber esta exten­
são, não tomaria a especulação por sua adversária; pois a espe­
culação, na sua síntese suprema do consciente e do sem
consciência, exige também a aniquilação da própria consciência,
e a razão submerge, com isso, o seu reflectir da identidade abso­
luta e o seu saber e ela própria, no seu próprio abismo, e nesta
noite da mera reflexão e do entendimento raciocinante, que é o
meio-dia da vida, ambos se podem encontrar.

0 PRINCÍPIO DE UMA FILOSOFIA


NA FORMA DE UMA PROPOSIÇÃO-DE-FUNDO ABSOLUTA

A filosofia como uma totalidade do saber produzida por re­


flexão torna-se um sistema, uma totalidade orgânica de concei­
tos, cuja lei suprema não é o entendimento, mas sim a razão;
aquele tem de mostrar correctamente a oposição daquilo que põe,
os seus limites, fundamento e condição, mas a razão une estes
opostos, põe-nos simultaneamente e suprime-os a ambos. Ao sis­
tema, como uma organização de proposições, pode acontecer que
se exija que, para ele, o absoluto, que subjaz à reflexão, esteja
presente também segundo o modo da reflexão, como proposição­
-de-fundo suprema e absoluta. Mas uma tal exigência tem já em
si a sua nulidade; pois algo posto pela reflexão, uma proposição,
é por si algo de limitado e de condicionado e necessita de outra
coisa para a sua fundamentação, e assim até ao infinito. Quando
o absoluto é expresso numa proposição-de-fundo válida através
do pensar e para o pensar, em que a forma e a matéria são idên­
ticas, então, ou é posta a pura igualdade e é excluída a desigual­
dade da forma e da matéria, e a proposição-de-fundo é condicio­
nada por esta desigualdade: neste caso, a proposição-de-fundo 1
não é absoluta, mas deficiente, exprime apenas um conceito do 24
entendimento, uma abstracção; ou a forma e a matéria estão,
como desigualdade, contidas imediatamente nela, a proposição é
ao mesmo tempo analítica e sintética; então, a proposição-de­
-fundo é uma antinomia e, por conseguinte, não é uma proposi­
ção; enquanto proposição está sob a lei do entendimento, que em
si não contradiz, não suprime, mas é algo de posto; mas como
a ntinomia suprime-se a si mesma.
Esta ilusão de que um termo posto pela reflexão deveria
necessariamente encontrar-se, como proposição-de-fundo supre­
ma e absoluta, no topo de um sistema, ou que a essência de um
ln 1 sistema se deixaria exprimir numa proposição que fosse ab­
:-;ol u ta para o pensamento, ocupa-se com ligeireza d e um sistemn
ao q u a l dirige a sua avaliação; pois de um tal pensado que é
l'X p n•:-;so pe l a proposição pode facilmente demonstrar-se que e�tá
mnd icionndo por um oposto, portanto, que não é absoluto. Deste
oposto à proposição, mostrar-se-á que deveria ser posto, e que,
portanto, aquele pensado que a proposição exprime é uma nuli­
dade. A ilusão considera-se tanto mais justificada quanto mais o
próprio sistema exprime o absoluto, que é o seu princípio, na
·forma de uma proposição ou de uma definição, mas que no
fundo é uma antinomia e que, por isso, se suprime a si mesma
como algo posto para a mera reflexão. Assim, por exemplo, o
conceito de .substância de Espinosa, que é explicado ao mesmo
tempo como causa e como resultado, como conceito e como ser,
deixa de ser um conceito, pois os opostos estão unidos numa
) contradição. Nenhum começo de uma filosofia pode ter pior
aspecto do que o começo com uma definição, como em Espinosa:
um começo que faz o mais estranho contraste com o fundar,
erigir, deduzir os princípios do saber, com o penoso remeter de
toda a filosofia aos supremos factos da consciência, etc. Mas
quando a razão se purificou da subjectividade do reflectir, aquela
ingenuidade de Espinosa, que começa a filosofia com a própria
filosofia e deixa a razão começar de modo igualmente imediato,
com uma antinomia, poderá ser convenientemente apreciada.
Se o princípio da filosofia tiver de ser expresso em proposições
formais para a reflexão, então, imediatamente, nada existe para rea­
lizar esta tarefa senão o saber, em geral a síntese do subjectivo e do
objectivo, ou o pensamento absoluto. Mas a reflexão não é capaz de
exprimir a síntese absoluta numa proposição, nomeadamente se esta
proposição tiver de valer como t\ffia autêntica proposição para a
reflexão; ela tem de separar o que é um só para a identidade abso­
luta, e exprimir a síntese e a antítese separadas em duas proposi­
ções, exprimindo numa a identidade e na outra a cisão.
Em A = A, como princípio de identidade, reflecte-se sobre o
ser relacionado, e este relacionar, este ser um, a igualdade, estão
25 contidos nesta pura identidade; 1 abstrai-se de toda a desigual­
dade. A = A, a expressão do pensamento absoluto ou da razão,
tem para a reflexão formal, que se exprime em proposições pró­
- prias do entendimento, apenas o significado de identidade do
entendimento, de unidade pura, quer dizer, uma tal na qual se
abstrai da oposição.
Mas a razão não se encontra expressa nesta unilateralidade
da unidade abstracta; ela postula também o pôr daquilo que foi
abstraído na pura igualdade, o pôr dos opostos, da desigualda­
de; um A é sujeito, o outro é objecto, e a expressão da sua dife­
rença é A não = A, ou A = B. Esta proposição contradiz tota l-

su
mente a anterior; nela, abstraiu-se da pura identidade e é posta
a não-identidade, a pura forma do não-pensar 16, tal como a p r i ­
meira põe a forma do puro pensar, que é distinta do pensa r
absoluto, da razão. Só porque o não-pensar é também pensado,
só porque A não = A é posto também pelo pensar, pode em geral
ele ser posto; em A não = A, ou A = B, é posta a identidade, o
relacionar, o = da primeira proposição também, mas apenas sub­
jectivamente, quer dizer, apenas na medida em que o não-pensar
é posto pelo pensar. Mas este ser-posto do não-pensar pelo pen­
sar é totalmente contingente para _o não_-pensar, uma mera forma
-
para a segunda proposição, da qual se deve abstrair para ter a
sua matéria em estado puro.
Esta segunda proposição é tão incondicionada quanto a pri­
meira e, nessa medida, condição da primeira, tal como a primei­
ra é condição da segunda. A primeira proposição é condicionada
pela segunda, na medida em que subsiste através da abstracção
·
da desigualdade que a segunda contém; a segunda, na medida
em que necessita de uma relação, para ser uma proposição.
A segunda proposição foi aliás exprimida sob a forma subal­
terna do princípio de razão suficiente; ou melhor, ela só foi re­
baixada nesta significação altamente subalterna na medida em
que foi transformada em princípio de causalidade. A tem um
fundamento, significa: a') A é atribuído um ser que não é o ser
de A, A é um ser-posto que não é o ser-posto de A; portanto, A
não A, A = B. Se se abstrair do facto de A ser algo de posto,
= -

tal como deve ser feito, para ter a segunda proposição em esta­
do puro, então, ela exprime, em geral, um não-ser-posto de A.
Pôr A como posto e, ao mesmo tempo, como não-posto é já a
síntese da primeira e da segunda proposições.
Ambas as proposições são proposições sobre a contradição,
só que em sentido oposto. A primeira, a da identidade, enuncia
que a contradição é = O; a segunda, na medida em que é relacio­
nada com a primeira, que a contradição é tão necessária como a
não-contradição. Ambas são, como proposições, postas por si com
n mesma potência. Na medida em que 1 a segunda é expressa 26
de ta l modo que a primeira é imediatamente relacionada com
l' l a , e l a é a máxima expressão possível da razão através do en­
ll'nd i men to; esta relação entre ambas é a expressão d ã antinomia,
l' como antinomia, como expressão da identidade absoluta, é in-
d i fl' rl• n te p ô r A = B ou A = A, nomeadamente quando A = B e
A = A <'.' a cei te como relação de ambas as proposições. A = A

r.
contém a diferença de A como sujeito e de A como objecto e, ao
mesmo tempo, a identidade, tal como A = B contém a identida­
de de A e de B, com a diferença entre ambos.
Se o entendimento, no princípio de razão suficiente, como
uma relação entre ambas as proposições, não reconhece a
antinomia, então é porque não cresceu em direcção à razão, e,
formalmente, a segunda proposição não é nada de novo para ele.
Para o mero entendimento, a proposição A = B não diz mais do
que a primeira; o entendimento compreende, a seguir, o ser posto
de A e de B apenas como uma repetição de A, quer dizer, ele
retém somente a identidade e abstrai do facto de que, na medida
em que A é repetido ao ser posto em B ou como B, é posto um
outro, um não-A e, na verdade, como A, portanto, A é posto
como não-A. Quando se reflecte apenas sobre o aspecto formal
da especulação e a síntese do saber se fixa na forma analítica, a
antinomia, a contradição que se suprime a si mesma, é a expres­
são formal suprema do saber e da verdade.
Na antinomia, se for reconhecida como expressão formal da
verdade, a razão subordinou a si a essência formal da reflexão.
Mas a essência formal sobrepõe-se, se o pensamento deve ser
posto na única forma da primeira proposição, oposta à segunda,
com o carácter de uma unidade abstracta como a verdade pri­
meira da filosofia, e se da análise da aplicação do pensar deve
ser atingido um sistema de aplicação do conhecimento. De se­
guida, todo o seguimento deste trabalho puramente analítico
surge do modo seguinte.
O pensamento, como repetibilidade infinita de A como A, é
uma abstracção, a primeira proposição é expressa como activida­
de. Mas, então, falta a segunda proposição, o não-pensar; deve­
-se transitar obrigatoriamente para ela como condição da primei­
ra, e também ela, a matéria, ser posta. Com isto, os opostos estão
completos e a transição é um certo modo da relação de uma com
a outra, que se chama uma aplicação do pensar e é uma síntese
altamente incompleta. Mas também esta síntese fraca persiste, ela
própria, contra a pressuposição do pensar como posição de A = A
até ao infinito; pois, na aplicação, A torna-se imediatamente posto
como não-A, e o pensamento é suprimido na sua subsistência
absoluta, como uma repetição infinita de A como A. O que é
oposto ao pensamento é determinado, através da sua relação com
o pensa.mento, como pensado = A. Mas porque um tal pensar é um
pôr = A, condicionado por uma. abstracção, e, por conseguinte,

52
é um oposto, , o pensado, para além de ser 1 um pensado = A , 27
tem também ainda outras determinações = B, que são totalmen te
independentes do mero ser-determinado através do puro pensar:
e estas determinações são meramente dadas ao pensar. Deve por­
tanto existir para o pensamento, como princípio do filosofar ana­
lítico, uma matéria absoluta, de que mais abaixo se falará .
A fundamentação desta oposição absoluta não deixa ao trabalho
formal, no qual consiste a famosa descoberta da recondução da
filosofia à lógica 17, nenhuma outra síntese imanente senão a da
identidade do entendimento, a saber, a de repetir A até ao infi­
nito. Mas mesmo para repetir ela necessita de um B, um C, etc.,
nos quais o A repetido possa ser posto; estes B, C, D, etc., são,
em prol da repetibilidade de A, uma multiplicidade, algo que se
opõe - cada um tem determinações particulares que não são
postas através de A -, quer dizer, uma matéria absolutamente
múltipla, cujos B, C, D, etc. devem encaixar em A da maneira
que for possível; uma tal impureza do encaixe substitui-se à iden­
tidade originária. O erro fundamental pode então ser representa-
do pelo facto de, na consideração formal, não se reflectir na
antinomia de A = A e A = B. A uma tal essência analítica não
subjaz a consciência de que o fenómeno puramente formal do <(­
absoluto é a contradição: uma consciência que só pode surgir
quando a especulação parte da razão e de A = A como identi­
dade absoluta do sujeito e do objecto.

INTUIÇÃO TRANSCENDENTAL

Na medida em que -a especulação é vista do lado da mera


reflexão, a identidade absoluta aparece em sínteses de opostos,
portanto, em antinomias. As identidades relativas, nas quais a
identidade absoluta se diferencia, são na verdade limitadas e,
nessa medida, existem para o entendimento, e não são antinó­
micas; mas ao mesmo tempo, na medida em que são identida­
des, não são puros conceitos do entendimento; e têm de ser iden­
tidades, pois, numa filosofia, nada de posto pode permanecer
sem relação com o absoluto. Mas do lado desta relação cada li­
mitndo é, ele próprio, uma identidade (relativa) e, nessa med i­
dn, a lgo de antinómico para a reflexão, e este é o lado negativo
d o snbcr, o formal, que, regido pela razão, se destrói a si m e s m o.

Porn d t• ste Indo nega tivo, o saber te m um lado posi tivo, ou st•jn,
a intuição. O puro saber (que seria o saber sem intuição) é o
aniquilamento dos opostos em contradição; a intuição sem esta
síntese dos opostos é uma intuição empírica, dada, sem consciên-
- eia. O saber transcendental unifica ambos, a reflexão e a intui-
28 ção; é, ao mesmo tempo, conceito e ser. Pelo facto de 1 a intui­
ção se tornar transcendental, surge na consciência a identidade
do subjectivo e do objectivo, que estão separados na intuição
empírica; o saber, na medida em que se torna transcendental, não
põe meramente o conceito e a sua condição - ou a antinomia
entre ambos, o subjectivo -, mas, ao mesmo tempo, o objectivo,
o ser. No saber filosófico, o intuído é, ao mesmo tempo, uma
actividade da inteligência e da natureza, da consciência e do
inconsciente. Pertence, simultaneamente, a ambos os mundos, ao
ideal e ao real: ao ideal na medida em que é posto na inteligên­
cia e, por isso, em liberdade; ao real, na medida em que tem o
seu lugar na totalidade objectiva,_ em que é deduzido como um
elo na cadeia da necessidade. 1.Se nos colocarmos do ponto de
vista da reflexão ou da liberdade, o ideal é o primeiro e a essên­
cia e o ser apenas a inteligência esquematizada; se ' nos colocar­
mos do ponto de vista da necessidade ou do ser, ó pensamento
é apenas um esquema do ser absoluto. No saber transcendental
ambos, o ser e a inteligência, encontram-se unidos; da mesma
forma, o saber transcendental e a intuição transcendental são uma
e a mesma coisa; a expressão diferenciada aponta apenas para a
preponderância do factor ideal ou do reaL
Tem o mais profundo significado que se tenha afirmado, com
tanta seriedade, que a filosofia não poderia existir sem intuição
transcendental. Que significaria então filosofar sem intuição?
Destruir-se a si mesmo infinitamente em finitudes absolutas; se­
jam estas finitudes subjectivas ou objectivas, conceitos ou coisas,
tenha-se ou não transitado de um género delas para o outro, o
filosofar sem intuição prossegue numa série infinita de finitudes,
e a passagem do ser ao conceito ou do conceito ao ser é um salto
injustificado. Chama-se formal a um tal filosofar, pois tanto a
coisa como o conceito, cada um para si, é apenas uma forma do
absoluto; ele pressupõe a destruição da intuição transcendental,
uma oposição absoluta do ser e do conceito, e, quando fala do
incondicionado, transforma-o novainente em algo de formal, pre­
cisamente na forma de uma ideia que estivesse em oposição ao
ser. Quanto melhor é o método, mais deslumbrantes se tornam
os resultados. Para a especulação, as finitudes são raios de u m
foco infinito, qu � as irradia e é_ SQ:nipos�� ��as; o foco é pos to
_
nelas e elas no foco. Na intuição transcendental é suprimida toda
a oposição, é aniquilada toda a diferença da construção do uni­
verso através e por meio da inteligência, e a sua organização que
aparece como independente e intuída como objectiva. O produ­
zir da consciência desta identidade é a especulação, e porque a
idealidade e a realidade são um só nela, ela é intuição. 1

Os POSTULADOS DA RAZÃO 29

A síntese dos dois opostos postos pela reflexão exigiu, como


trabalho da reflexão, a ºsua completação como antinomia que se
suprime a si mesma, a sua subsistência na intuição. Porque o
saber especulativo deve ser concebido como identidade da refle­
xão e da intuição, neste caso, na medida em· que soment� é pos­
ta a parte que cabe à reflexão (que, enquanto racional, é anti­
nómica) - e que permanece, porém, em relação necessária com
a intuição -, pode-se dizer da intuição que é postulada pela re­
flexão. Não se p ode falar em postular ideias, pois estas são pro­
dutos da razão, ou melhor, são o racional posto pelo entendi­
mento como um p roduto. O racional tem de ser deduzido
o
segundo seu conteúdo d�terminado, nomeadamente, a partir
da contradição de determinados opostos, cuja síntese ele é; ape­
nas a intuição, preenchendo e detendo o antinómico, é postulável.
Uma tal ideia assim postulada é o progresso infinito, uma mes­
cla de empírico e de racional; aquele é a intuição do tempo, este
é a supressão do tempo, a sua infinitização; mas no progresso
infinito o tempo não está. puramente infinitizado, pois deve sub­
sistir nele como finito, como momento limitado: é uma infinitude
empírica. A verdadeira antinomia que os coloca a ambos, o limi­
tado e o ilimitado, não justapostos, mas sim imediatamente como
idênticos, deve, com isso, suprimir imediatamente a oposição; na
medida em que a antinomia postula a intuição determinada do
tempo, este deve - momento limitado do presente e ilimitação
do seu ser-posto-fora-de-si - ser imediatamente ambos, portan-
to, ser eternidade. .
Da mesma forma, a intuição não pode ser exigida como um
oposto à ideia, ou melhor, à antinomia necessária. A intuição,
i:1 L i e é oposta à ideia, é existência limitada precisamente ��e
l'Xd u í n i d e i n A i n tuição é exactamente o que é postulado pela
.

- - - - - 5.5 -
razão, não como algo limitado, mas sim como completação da
unilateralidade do trabalho da reflexão; não para que permane­
çam opostas, mas sim para que sejam uma só. Vê-se em geral
que todo este modo de postular tem o seu fundamento somente
no facto de que se parte da unilateralidade da reflexão; esta
unilateralidade necessita de postular, para complemento da sua
insuficiência, o oposto que dela foi excluído. Mas, deste ponto
de vista, a essência da razão contém uma posição falsa, pois
aparece aqui como algo que não se basta a si mesmo, mas sim
como algo de necessitado. Mas quando a razão se conhece a si
'· mesma como absoluta, então aí começa a filosofia, com o que
- ' termina aquele modo de proceder que parte da reflexão: com a
3 0 identidade da ideia 1 e do ser. Ela não postula um deles, mas
põe imediatamente ambos com a absolutidade, e a absolutidade
da razão não é senão a identidade de ambos.

A RELAÇÃO DO FILOSOFAR COM UM SISTEMA FILOSÓFICO

A necessidade da filosofia não se pode satisfazer com ser a


descoberta do princípio da aniquilação de todos os opostos fi­
xos, e do princípio da relação do limitado com o absoluto. Esta
satisfação no princípio da identidade absoluta encontra-se no fi­
losofar em geral. O sabido seria, quanto ao seu conteúdo, algo
de contingente, a cisão, a cuja aniquilação o filosofar se dirige,
dada e desaparecida e nunca uma síntese de novo construída; o
conteúdo de um tal filosofar nunca teria em geral qualquer co­
nexão sob si e não constituiria uma totalidade objectiva do sa­
ber. Somente por causa da incoerência do seu conteúdo é que
este filosofar não é necessariamente um raciocinar. Este último
dispersa somente o que é posto em maiores multiplicidades e
quando, precipitado nesta corrente, nada sem cessar, a própria
totalidade da extensão sem fim da multiplicidade do entendimen­
to deve permanecer; pelo contrário, para o verdadeiro filosofar,
mesmo incoerente, desaparece o posto e o seu oposto, na medi­
da em que não conexiona apenas o limitado com outros limita­
dos, mas relaciona-o como absoluto e assim suprime-o.
Mas porque esta relação do limitado com o absoluto é um
múltiplo, pois os limitados são-no, deve portanto o filosofar co­
me �ar p or pôr em relação esta multiplicidade. Deve surgir a
:,_��é'sSid:�à.ê de produzir uma totalidade do saber, u m s i s tema

r.
da ciência. Só na medida em que recebem os seus lugares na
conexão da totalidade objectiva do saber e é realizada a sua
perfeição objectiva é que a multiplicidade daquelas relações se
liberta da contingência. O filosofar que não se constrói em siste­
ma é uma fuga constante diante das limitações, é mais uma luta
da razão pela liberdade do que um puro autoconhecimento de si
mesmo, que se tornou seguro e claro sobre si. A livre razão e o
seu acto são uma só coisa e a sua actividade é uma pura expo­
sição de si mesma.
Nesta autoprodução da razão, o absoluto configura-se numa
totalidade objectiva, uma totalidade em si mesma produzida e
acabada, que não tem nenhum fundamento fora de si, mas que
se funda em si mesma no seu início, no seu meio e no seu fim. 1
Um tal todo aparece como uma organização de proposições e de 3 1
intuições. Cada síntese da razão e da intuição que lhe corres­
ponde - ambas estando unidas na especulação - está, como
unidade do consciente e do inconsciente, para si no absoluto e
infinitamente; mas, ao mesmo tempo, ela é finita e limitada, na
medida em que está posta na totalidade objectiva e tem outras
sínteses fora de si. A objectividade menos cindida - objectiva­
mente, a matéria, subjectivamente, o sentir (a consciência-de-si) -
é ao mesmo tempo, um oposto infinito, uma identidade totalmen-
te relativa; a razão, a faculdade da totalidade (nessa medida
objectiva) completa-a através do que lhe é oposto e produz, por
meio de uma síntese de ambas, uma nova identidade, que é
novamente, diante da razão, uma identidade deficiente, que, por
isso mesmo, se completa de novo. O método do sistema, que não
deve ser chamado nem analítico nem sintético, aparece no esta-
do mais puro quando se apresenta como um desenvolvimento
da própria razão, que não reclama sem cessar para si a emana­
ção do seu aparecimento como uma duplicidade - com isto ape­
nas a aniquilaria -, mas se constrói a si mesma na forma de uma
identidade condicionada por aquela duplicidade, opõe de novo
a si mesma esta identidade relativa, de modo que o sistema pros­
segue até uma totalidade completa e objectiva, une-a com a vi­
são d o mundo oposta, subjectiva até à infinitude, cuja expansão,
d cssn forma, se contraiu, simultaneamente, na idef1_tidade mais
ricn e m a i s simples.
É possível que uma autêntica especulação não se exprima
1wrfo i tn mcnte no seu sistema, ou que a filosofia do sistema e o
p r<'i p r i o s i s tema n ã o coinci dam, q u e u m sistema exprima, da fo r-
ma mais determinada, a tendência para aniquilar os opostos, e
não consiga alcançar a identidade mais acabada. A diferença
entre estas duas considerações torna-se importante particular­
mente na avaliação dos sistemas filosóficos. Quando, num siste­
ma, a necessidade que lhe subjaz não se configurou perfeitamen­
te e um condicionado, um subsistente apenas na oposição, se
elevou ao absoluto, tal sistema tornou-se, enquanto tal, dogma­
tismo; mas a verdadeira especulação pode encontrar-se nas mais
diversas filosofias, que se caluniam entre si como dogmatismo e
desorientação espiritual. A história da filosofia só tem valor e
interesse quando se detém neste ponto de vista. De outro modo,
não se apresenta como a história da razão una e eterna, que se
apresenta em infinitas e múltiplas formas, mas apenas como uma
narrativa de acontecimentos ocasionais do espírito humano e de
opiniões sem sentido que são imputadas à razão, e que, todavia,
são uma carga só para quem não reconheceu o racional nelas e,
por isso, as subverteu. !
32 Uma autêntica especulação, mas que não se realizou até à
sua completa autoconstrução sob a forma de sistema, parte ne­
cessariamente da identidade absoluta; a cisão da identidade em
subjectivo e objectivo é uma produção do absoluto. O princípio
de base é, por conseguinte, completamente transcendental e, a
partir do seu ponto de vista, não há nenhuma oposição absoluta
do subjectivo e do objectivo. Mas, assim, o aparecimento do
-
absoluto é uma oposição; o absoluto não se encontra no se u
aparecimento, ambos se opõem. O aparecimento não é identida­
de. Esta oposição não pode ser suprimida transcendentalmente,
quer dizer, não de forma que, em si, não haja nenhuma oposi­
ção; com isto, o aparecimento é apenas aniquilado e, todavia, ele
deve igualmente ser; afirmar-se-ia que o absoluto, no seu apare-
.) cimento, teria saído para fora de si. Portanto, o absoluto deve
pôr-se a si mesmo no seu aparecimento, quer dizer, não o deve
aniquilar, mas sim construi-lo como identidade. A relação causal
entre o absoluto e o seu aparecimento é uma falsa identidade,
pois a oposição absoluta subjaz a esta relação. No absoluto am­
bos os opostos permanecem, mas com um grau diferente; a uni­
ficação é violenta, na medida em que um submete o outro; um
domina, o outro torna-se subordinado. A unidade foi forçada a
uma identidade meramente relativa; a unidade, que deve ser
absoluta, é incompleta. O sistema tornou-se num dogmatismo
- num realismo que põe absolutamente a objectividade, ou num

r.
idealismo que põe absolutamente a subjectividade -, c o n t rn n
sua filosofia, quando ambos (o que é mais ambíguo no p r i m e i ro
do que no segundo) saíram da verdadeira especulação.
O puro dogmatismo, que é um dogmatismo da filosofia, tam ­
bém permanece, segundo a sua tendência, imanente na oposição.
Nele domina como princípio fundamental a relação de causalida­
de, na sua forma mais completa, como acção recíproca, como in­
fluência do intelectual sobre o sensível ou do sensível sobre o
intelectual. No realismo e idealismo consequentes desempenha
apenas um papel subordinado, mesmo quando parece ainda do­
minar, e, naquele, o sujeito é posto como produto do objecto e
neste o objecto como produto do sujeito; mas a relação de causa­
lidade foi, segundo a sua essência, suprimida, na medida em que
o produzir é um produzir absoluto e o produto é um produto
absoluto, quer dizer, na medida em que o produto não tem qual­
quer estabilidade senão no produzir, não é posto como . algo de
autónomo, subsistente antes e independentemente do produzir, tal
como acontece na pura relação causal, que é o princípio formal do
dogmatismo. Neste, ele é um posto através de A e, ao mesmo
tempo, um não-posto através de A; A, portanto, absolutamente, é
apenas sujeito, e A = A exprime apenas a identidade do entendi­
mento. Mesmo quando a filosofia, no seu trabalho transcendental,
se serve da relação causal, 1 B, que parece oposto ao sujeito, de 33
acordo com o seu ser oposto, é uma mera possibilidade e perma­
nece absolutamente uma possibilidade, quer dizer, é apenas um
acidente; e a verdadeira relação da especulação, a relação substan­
cial, é, sob a aparência da relação causal, o princípio transcen­
dental. Formalmente, isto pode ser expresso da seguinte forma: o
verdadeiro dogmatismo reconhece ambos os princípios, A A e =

A = B, mas, na sua antinomia, permanecem um ao lado do outro


sem serem sintetizados. O dogmatismo não reconhece que há aqui
uma antinomia e, por isso, também não reconhece a necessidade
de suprimir a subsistência dos opostos; a passagem de um ao
outro por meio da relação de causalidade é, para ele, a única sín­
tese possível incompleta. Não obstante o facto de a filosofia
transcendental ser nitidamente distinta do dogmatismo, ela é ca­
paz, na medida em que se constrói como sistema, de transitar para
ele, quando ela, nomeadamente - uma vez que nada existe senão
a identidade absoluta e nela se suprime toda a diferença e s u bs i s­
tência d os opostos -, não deixa permanecer nenhuma relação
cn u sa l ren l, mns - na med i d n em q u e o apareci mt• n to d l•ve ao
mesmo tempo permanecer e, com isso, deve existir uma relação
do absoluto com o aparecimento que seja diferente da aniquilação
deste último - introduz a relação causal, transforma o apareci­
mento numa subordinação e põe, por conseguinte, a intuição
transcendental apenas subjectivamente, não objectivamente, ou não
põe a identidade no aparecimento. A = A e A = B permanecem
ambos incondicionadamente; só deve valer A = A; isto quer dizer,
porém, que a sua identidade não é exposta na sua verdadeira sín­
tese, que não é nenhum mero dever-ser. Assim, no sistema de
Fichte, Eu = Eu é o absoluto. A totalidade da razão introduz o
segundo princípio, que põe um não-Eu; nesta antinomia da posi­
ção de ambos não está apenas posta a completude, mas também
é postulada a síntese entre eles. Mas nesta permanece a oposição;
tanto o Eu como o não-Eu não devem ser aniquilados, mas deve
permanecer uma proposição que seja de nível superior à outra. A es­
peculação do sistema exige a supressão dos opostos, mas o pró­
prio sistema não os suprime; a síntese absoluta a que este chega
não é Eu = Eu, mas sim o Eu deve ser igual a Eu. O absoluto é
construído para o ponto de vista transcendental, mas não para o
_.._ do aparecimento; ambos contradizem-se ainda. Porque a identida­
de não foi ao mesmo tempo posta no aparecimento, ou porque a
identidade também não transitou completamente para a objectivi­
dade, a própria transcendentalidade é um oposto, algo de subjec­
tivo, e pode-se também dizer que o aparecimento não foi total­
mente aniquilado.
Tentar-se-á mostrar, na exposição que se segue do sistema
de Fichte, que a consciência pura, a identidade do sujeito e do
objecto colocada como absoluta no sistema, é uma identidade
34 subjectiva do sujeito e do objecto. A 1 exposição tomará o cami­
nho de demonstrar que o Eu, o princípio do sistema, é um
sujeito-objecto subjectivo, tanto imediatamente quanto no modo
de dedução da natureza e, particularmente, na relação da iden­
tidade nas ciências particulares da moral e do direito natural, e
na relação da totalidade do sistema com a estética.
É já claro por aquilo que se disse acima que, nesta exposi­
ção, trata-se, em primeiro lugar, desta filosofia como sistema e
não, na medida em que é a especulação mais fundamentada e
profunda, um autêntico filosofar, o que é tanto mais maravilho­
so quanto se tem em conta o tempo no qual aparece e no qual
também a filosofia kantiana não tinha conseguido incitar a razão
a retomar o desaparecido conceito da autêntica especulação.
EXPOSIÇÃO DO SISTEMA DE FICHTE :14

O fundamento do sistema de Fichte é a intuição intelectual,


o puro pensar de si mesmo, a pura autoconsciência Eu = Eu, Eu
sou; o absoluto é sujeito-objecto, e o Eu é esta identidade do su­
jeito e do objecto.
Na consciência comum, o Eu aparece em oposição; a filosofia
tem de esclarecer esta oposição diante de um objecto; esclarecê-la
significa mostrar o seu carácter-condicionado por um outro e
comprová-la, por conseguinte, como fenómeno. Se, relativamente
à consciência empírica, se comprovar que ela está completamente
fundada na consciência pura e não é meramente condicionada por
ela, com isso está suprimida a sua oposição, sob a condição de,
por outro lado, a exposição estar completa, quer dizer, não estar
apenas mostrada uma i�ntidade parcial das consciências pura e
empírica. A identidade é apenas parcial se à consciência empírica .
sobrar uma parte pela qual ela não é determinada pela pura, mas
permanece incondicionada; e porque a consciência pura e empírica
surgem apenas como membros do antagonismo supremo, então, a
própria consciência pura seria determinada e condicionada pela
empírica, na medida em que esta fosse incondicionada. A relação
seria, deste modo, uma reciprocidade, que englobaria em si o
determinar e o ser determinado, mas que pressuporia uma oposi­
ção absoluta do que permanece na acção recíproca e, por conse­
guinte, a impossibilidade de elevar a cisão à identidade absoluta. j
Ao filósofo, surge esta pura autoconsciência na medida em :l!i
q m•, no seu pensar, abstrai de tudo o que é estranho, d o q u e não
é Eu, e apenas mantém a relação do sujeito ao objecto. Na intui­
ção empírica, sujeito e objecto são opostos; o filósofo concebe a
actividade do intuir, intui a intuição e concebe-a, assim, como
uma identidade. Este intuir do intuir é, por um lado, reflexão
filosófica, e oposta, em geral, tanto à reflexão comum como à
consciência comum, que não se eleva acima de si mesma e das
suas oposições; por outro lado, esta intuição transcendental é, ao
mesmo tempo, objecto da reflexão filosófica, o absoluto, a iden­
tidade originária. O filósofo elevou-se à liberdade e ao ponto de
vista do absoluto.
A sua tarefa é, de agora em diante, a de suprimir a oposição
aparente entre a consciência transcendental e a consciência em­
pírica. Em geral, isto acontece pelo facto de a última ser deduzida
da primeira. Esta dedução não pode, necessariamente, ser a tran­
sição para algo estranho; a filosofia transcendental procede de
modo a construir a consciência empírica, não a partir de um
princípio que lhe seja exterior, mas sim a partir de um princípio
imanente, como uma emanação activa ou autoprodução do prin­
cípio. Na consciência empírica nada pode surgir que não seja
construído a partir da pura consciência-de-si, tal como a cons­
ciência pura não é, de acordo com a sua essência algo de dife­
rente da empírica. A forma de ambas distingue-se precisamente
pelo facto de aquilo que na consciência empírica aparece como
objecto oposto ao sujeito, ser posto como idêntico na intuição
desta intuição empírica, e, com isso, a consciência empírica se
completar através daquilo que constitui a sua essência. Disto,
porém, ela não tem qualquer consciência.
A tarefa pode também ser expressa do seguinte modo: atra­
vés da filosofia, a consciência pura deve ser suprimida como
conceito. Na oposição à consciência empírica, a intuição intelec­
tual, o puro pensar de si mesmo, aparece como conceito, nomea­
damente, como abstracção de toda a multiplicidade, de toda a
desigualdade do sujeito e do objecto. Ela é, na verdade, actividade,
acção, intuir puros, ela existe apenas na auto-actividade pura que
a produz; este acto, que se arranca de tudo o que é empírico,
múltiplo, oposto, e se eleva à unidade do pensar, Eu = Eu, iden­
tidade do sujeito e do objecto, tem, no entanto, uma oposição a
outros actos; nessa medida, ele é passível de ser determinado
como conceito, e tem com o que lhe é oposto uma esfera comum
superior, a do pensar em geral. Fora do pensar de si mesmo há
ainda um outro pensar, fora da consciência-de-si há uma cons-

62
c1encia empírica múltipla, 1 fora do Eu como objecto há n i nd11 :ir.
múltiplos objectos da consciência. O acto da consciêncin-de-Hi
distingue-se de forma determinada do acto de outra consciência
pelo facto de o seu objecto ser igual ao sujeito; Eu = Eu é, nessa
medida, oposto a um mundo infinito objectivo.
Desta forma, não surgiu nenhum saber filosófico por meio
da intuição transcendental, mas, pelo contrário, quando a refle­
xão se apodera dela e a opõe a outras intuições, nenhum saber
filosófico é possível. Este acto absoluto da livre auto-actividade é
a condição do saber filosófico, mas ainda não é a própria filoso­
fia; por meio desta, a totalidade objectiva do saber empírico é
equiparada à pura consciência-de-si, esta última é, com isso, to­
talmente suprimida como conceito ou como oposto, e, com isso,
também a primeira o é. Notar-se-á que, em geral, só existe a
consciência pura, Eu = Eu é o absoluto; toda a consciência
empírica seria apenas um puro produto do Eu = Eu, e a consciên­
cia empírica seria, nessa medida, totalmente negada, enquanto
nela ou através dela existisse uma absoluta dualidade, nela apa­
recesse um ser-posto que não fosse um ser-posto do Eu, para o
Eu e através do Eu. Com a autoposição do Eu tudo seria posto,
fora dele nada seria posto; a identidade da consciência pura e
empírica não é uma abstracção do seu ser-oposto originário, mas,
pelo contrário, a sua oposição é uma abstracção da sua identida-
de originária.

Com isto, a intuição intelectual é posta igual a tudo, ela é a


totalidade. O ser-idêntico de toda a consciência empírica com a
pura é o saber, e a filosofia, que sabe deste ser-idêntico, é a ciên­
cia do saber; ela tem de mostrar através do agir a multiplicidade
da consciência empírica como idêntica com a pura, ou sej'a, atra­
vés do desenvolvimento efectivo do objectivo a partir do Eu, e
descrever a totalidade da consciência empírica como totalidade
objectiva da consciência-de-si; no Eu = Eu está dado, para a filo­
sofia, toda a multiplicidade do saber. Para a mera reflexão, esta
dedução aparece como o começo contraditório: deduzir da uni­
dade a multiplicidade, da pura unidade a dualidade; mas a iden­
tidade do Eu Eu não é nenhuma identidade pura, quer dizer,
=

nenhuma identi�ade surgida através do abstrair � a reflexão.


Quando a reflexão concebe o Eu = Eu como unidade, deve ao
mesmo tem p o concebê-lo também como dualidade; Eu = Eu é, ao
mL�s m o tem p o, unidade e duplicidade, é uma oposição no Eu = Eu.
O Eu l� u m a vez s ujeito, ou tra vez objecto; mas, o que é oposto
ao Eu, é igualmente Eu; os opostos são idênticos. A consciência
empírica não pode ser considerada, por isso, como um sair da
consciência pura; deste ponto de vista, uma ciência do saber, que
saísse da consciência pura, seria, certamente, um contra-senso; o
ponto de vista segundo o qual na consciência empírica se teria
3 7 saído da consciência pura subjaz à abstracção referida acima, 1 no
qual a reflexão isola aquilo que lhe é oposto. A reflexão, enquan­
to entendimento, é, em e por si, incapaz de conceber a intuição
transcendental; e quando a razão atinge o conhecimento de si, a
reflexão, onde lhe for dado espaço, subverte o racional e
transforma-o de novo em algo de oposto.
Até ao momento, descrevemos o lado puramente trans­
cendental do sistema, no qual a reflexão não tem qualquer po­
der, e a tarefa da filosofia foi determinada e descrita pela razão.
Por causa deste autêntico lado transcendental é que o outro, no
qual domina a reflexão, é , não só tão difícil de agarrar no seu
ponto de partida como, em geral, de fixar, pois para o que per­
tence ao entendimento, ou seja, àquilo em que a reflexão trans­
formou o elemento racional, permanece sempre em aberto o re­
gresso ao lado transcendental. Por conseguinte, deve-se mostrar
que os dois pontos de vista, o da especulação e o da reflexão,
pertencem essencialmente a este sistema e de modo tal que o
último não tem um lugar subordinado, mas que ambos se en­
contram de forma absolutamente necessária, e separados, no cen­
tro do sistema. Ou Eu = Eu é o princípio absoluto da especula­
ção, mas esta identidade não é mostrada pelo sistema; o Eu
objectivo não é identificado com o Eu subjectivo, ambos perma­
necem absolutamente opostos. O Eu não se encontra a si mesmo
no seu aparecimento ou no seu pôr; para se encontrar como Eu,
deve negar o seu aparecimento. A essência do Eu e o seu pôr
não coincidem: o Eu não se torna para si mesmo objectivo.
Fichte, na Doutrina da Ciência, escolheu para a exposição do
princípio do seu sistema a forma de proposições-de-fundo, de
cuja incomodidade se falou mais acima. A primeira proposição­
-de-fundo é o absoluto pôr-se a si mesmo do Eu, o Eu como
posição infinita; a segunda, é a oposição absoluta, ou a posição
de um infinito não-Eu; a terceira, é a absoluta unificação das duas
primeiras por meio da absoluta divisão do Eu e do não-Eu e a
repartição da esfera infinita num Eu divisível e num não-Eu di­
visível. Estas três proposições-de-fundo absolutas apresenta m três
actos absolutos do Eu. Desta multiplicidade de ac tos a bso l u tos
segue-se imediatamente que estes actos ou proposições-de-fundo
são apenas factores relativos, ou, na medida em que tomam parte
na construção da totalidade da consciência, apenas factores
ideais. O Eu = Eu tem nesta posição, na qual é oposto a outros
actos absolutos, apenas a significação da pura consciência-de-si,
na medida em que esta é oposta à consciência empírica; enquan-
to tal, está condicionado pela abstracção relativamente à cons­
ciência empírica, e, tanto quanto a segunda e terceira pro­
posições-de-fundo são condicionadas, o mesmo acontece também
com a primeira. Já a multiplicidade de actos absolutos aponta
imediatamente para esse facto, mesmo que o seu conteúdo seja
também totalmente desconhecido. Não é de forma alguma ne­
cessário que o Eu = Eu, o 1 pôr-se a si mesmo absoluto, seja 38
compreendido como condicionado; pelo contrário, vimo-lo mais
acima no seu significado transcendental como identidade absolu-
ta (e não apenas do entendimento). Mas nesta forma, quando o
Eu = Eu é apresentado como uma entre várias proposições-de­
-fundo, não tem outra significação senão a da pura consciência-
-de-si oposta à consciência empírica, a da reflexão filosófica opos-
ta à consciência comum.
Mas estes factores ideais do puro pôr e do puro opor pode­
ram apenas ser postos em benefício da reflexão filosófica, a qual,
apesar de partir da identidade originária, começa justamente
(para poder descrever a verdadeira essência desta identidade)
com a exposição dos absolutamente opostos, ligando-os como
antinomia; este é o único meio para a reflexão de expor o abso­
luto, para retirar imediatamente a identidade absoluta da esfera
do conceito e para a constituir, não como uma identidade que
abstrai do sujeito e do objecto, mas como uma identidade do
sujeito e do objecto. Esta identidade não pode ser concebida de
tal modo que o puro pôr-se-a-si-mesmo e o puro opor-se de
ambas as actividades sejam um e precisamente o mesmo Eu; uma
tal identidade não seria de forma alguma transcendental, mas sim
transcendente; a absoluta contradição dos opostos deverá perma­
necer, a unificação de ambos reduziu-se a uma unificação no
concei to universal de actividade. Exigir-se-á uma unificação
transcendental, na qual a contradição de ambas as activ:idades será,
l' la própria, suprimida e, a partir dos factores ideais, se construi­
r;) u ma síntese verdadeira, ao mesmo tempo ideal e real. Esta é
d a d a pelo terceiro princípio: o Eu opõe, no Eu, ao Eu divisív e l
u m ni'io- E u d iv isível I H. A esfera i n f i n i ta objectiva, o o p o s to , não
é, nem Eu absoluto, nem não-Eu absoluto, mas sim aquilo que
abarca os opostos e é preenchido pelos factores opostos, e que se
encontra a si mesmo na seguinte relação: na medida em que um
é posto, o outro não é, na medida em que um se eleva, o outro
decai.
Mas, nesta síntese, o Eu objectivo não é igual ao Eu subjec­
tivo; o subjectivo é Eu, o objectivo é Eu + não-Eu. Nele não se
expõe a identidade originária; a consciência pura Eu = Eu e a
consciência empírica Eu = Eu + não-Eu, com todas as formas nas
quais esta se constrói, permanecem opostas entre si. A incom­
pletude desta síntese, que exprime a terceira proposição-de­
-fundo, é necessária, se os actos da primeira e segunda pro­
posições-de-fundo forem actividades absolutamente opostas. Ou,
no fundo, nenhuma síntese é possível; a síntese é, então, apenas
39 possível quando a actividade do pôr-se-a-si-mesmo 1 e do opor
são postas como factores ideais. Parece ser realmente contraditó­
rio que actividades que não podem, de forma alguma, ser con­
ceitos, devam ser tratadas como factores ideais; mas se o Eu e o
não-Eu, o subjectivo e o objectivo, os elementos que devem ser
unificados, forem expressos como actividades (pôr e opor) ou
como produtos (Eu objectivo e não-Eu), isso não constitui qual­
quer diferença, nem em si, nem para um sistema cujo princípio
é a identidade. A sua característica de serem absolutamente opos­
tas torna-as em algo de absolutamente ideal, e Fichte reconhece
esta sua pura idealidade. Para ele; os opostos, antes da síntese,
são algo de completamente diferente do que são depois da sínte­
se; antes da síntese são meramente opostos e nada mais; um é
aquilo que o outro não é, e vice-versa: um mero pensamento sem
qualquer realidade, ainda assim pensamento da mera realidade.
Na medida em que um entra, o outro é aniquilado; mas como o
primeiro só pode entrar com o predicado de ser o oposto do
outro, como, desse modo, com o seu conceito, entra ao mesmo
tempo o conceito do outro e aniquila-o, o primeiro não pode
entrar. Com isto, nada está presente e tudo era apenas uma be­
névola ilusão da imaginação, que, sem repararmos, introduziu
um substrato naqueles meros opostos e tornou possível pensar
neles 19 . Resulta da idealidade dos factores opostos que eles nada
são senão na actividade sintética, que só através desta eles e o
seu ser-oposto são postos, e que a sua oposição apenas é utiliza­
da em proveito da construção filosófica, para tornar compreensí­
vel a faculdade sintética. A imaginação produtiva seria a próprin

________________....._
.___ __ _ _ _ ___ _ ___
identidade absoluta, representada como actividade, a qual, so­
mente, na medida em que coloca o produto, o limite, coloca ao
mesmo tempo os opostos como aquilo que limita. O facto de a
imaginação produtiva, como faculdade sintética, aparecer como
o que é condicionado pelos opostos, valeria apenas para o ponto
de vista da reflexão, que parte dos opostos e compreende a in­
tuição apenas como uma ligação deles. Mas, ao mesmo tempo, a
reflexão filosófica deveria, para indicar este ponto de vista como
subjectivo e próprio da reflexão, produzir o ponto de vista trans­
cendental, pois reconhece aquelas actividades absolutamente
opostas como sendo apenas factores ideais, como identidades
totalmente relativas em face da identidade absoluta, na qual tan­
to a consciência empírica, como o seu contrário (a saber, a cons­
ciência pura, que, como abstraída daquela, tem nela um contrá­
rio), são suprimidas. Só neste sentido o Eu é o ponto médio
transcendental de ambas as actividades opostas e indiferente
relativamente a ambas; a sua oposição absoluta tem somente um
significado para a sua idealidade. !
Simplesmente, já a incompletude da síntese, que está expres- 40
sa na terceira proposição-de-fundo e na qual o Eu objectivo é
um Eu + não-Eu, desperta a desconfiança de que as actividades
opostas não devem valer apenas como identidades relativas,
como factores ideais, aquilo pelo que poderiam ser tomadas se
se visse apenas a sua relação com a síntese e se se abstraísse do
título de absolutidade que ambas as actividades recebem, tal
como a terceira.
Mas o pôr-se-a-si-mesmo e o opor não devem surgir nesta
rl'lação um com o outro e contra as actividades sintéticas. Eu = Eu
{> actividade absoluta, que em nenhuma perspectiva deve ser vista
como identidade relativa e como factor ideal. Para este Eu = Eu,
u m não-Eu é um absolutamente oposto; mas a sua unificação é
necessária e o único interesse da especulação. Mas que unifica­
çno é possível se supusermos a existência de opostos absolu­
tos? É claro que propriamente nenhuma; ou - dado que se
deve partir, pelo menos em parte, do oposto da absolutidade, e
a terceira proposição-de-fundo deve necessariamente surgir, mas
a oposição subjaz - apenas uma identidade parcial. A identi­
dade absoluta é, na verdade, princípio da especulação, mas per­
manece, tal como a sua expressão Eu = Eu, apenas a regra, cuja
n•a l i zação infinita é apenas postulada, mas não construída no
sistt• m a .
O ponto fundamental deve ser o de comprovar que o pôr-se­
-a-si-mesmo e o opor são actividades absolutamente opostas no
sistema. Na realidade, as palavras de Fichte expressam-no de
forma imediata; mas esta oposição absoluta deve ser justamente
a condição sob a qual, somente, a imaginação produtiva é possí­
vel. Mas a imaginação produtiva é o Eu apenas enquanto facul­
dade teórica, que não se pode elevar acima da oposição; para a
faculdade prática, a oposição desaparece, e a faculdade prática é
a única que a suprime. Deve por isso demonstrar-se que tam­
bém para esta a oposição é absoluta, e que mesmo na faculdade
prática o Eu não se põe igual a Eu, mas que o Eu objectivo é
igualmente um Eu + não-Eu, e a faculdade prática não penetra
até ao Eu = Eu. Ao invés, a absolutidade da oposição surge da
incompletude da síntese suprema do sistema, na qual está ainda
presente.
O idealismo dogmático conserva a unidade do princípio na
medida em que nega o objecto em geral e põe um dos opostos,
a saber, o sujeito na sua determinidade, como o absoluto, tal
como o dogmatismo, que é materialismo na sua pureza, nega o
sujeito. Se, para o filosofar, {'.)a riecessiáade·
t.. P..P. \-'- t_ ' !'."" ' :. "' ""- .,
tem apenas na base
uma tal identidade, que deve ser realizada pelo facto de um dos
41 opostos ser negado e dele se abstrair absolutamente, 1 então é
indiferente qual dos dois, o subjectivo ou o objectivo, é negado.
A sua oposição encontra-se na consciência e a realidade de um,
tal como a realidade do outro, está aífundamentada; a consciên­
cia pura não pode ser nem mais nem menos comprovada na
consciência empírica, do que a coisa-em-si do dogmático. Nem o
subjectivo, nem o objectivo, isolados, preenchem a consciência; o
puro subjectivo é uma abstracção, tal como o puro objectivo; o
idealismo dogmático põe o subjectivo como fundamento-real do
objectivo, o realismo dogmático põe o objectivo como funda­
mento-real do subjectivo. O realismo consequente nega absoluta­
mente a consciência como uma auto-actividade do pôr-se. Mas
quando também o seu objecto, que o realismo põe como funda­
mento-real da consciência, é expresso como não-Eu = não-Eu,
quando ele indica a realidade do seu objecto na consciência e,
portanto, para ele a identidade da consciência é feita valer como
um absoluto, oposto ao seu alinhamento objectivo de finito em
finito, deve, certamente, abandonar a forma do seu princípio de
uma pura objectividade. Mal ele concede um pensar, o Eu = Eu
deve ser exposto a partir de uma análise do pensar. Trata-se do

68
pensar expresso como propos1çao; pois o pensar é o auto­
-relacionamento activo de opostos, e relacionar é pôr os opostos
como idênticos. Simplesmente, como o idealismo faz valer a
unidade da consciência, o realismo pode fazer valer a sua dupli­
cidade. A unidade da consciência pressupõe uma duplicidade, o
relacionar pressupõe um ser-oposto; ao Eu = Eu opõe-se uma
outra proposição igualmente absoluta: o sujeito não é idêntico ao
objecto; ambas as proposições têm o mesmo nível. Tanto como
certas formas, nas quais Fichte expôs o seu sistema, poderiam
induzir a tomá-lo por um sistema de idealismo dogmático, que
nega o princípio que lhe é oposto - tal como Reinhold não re­
para no significado transcendental do princípio de Fichte, segun­
do o qual se exige pôr no Eu Eu, ao mesmo tempo, a diferença
=

do sujeito e do objecto, e vê no sistema de Fichte um sistema da


absoluta subjectividade, quer dizer, um idealismo dogmático 20 , -

assim o idealismo de Fichte se distingue pelo facto de que a


identidade, que ele apresenta, não nega o objectivo, mas põe o
subjectivo e o objectivo no mesmo nível de realidade e de certe­
za, e a consciência pura e empírica são uma só. A favor da iden­
tidade do sujeito e do objecto, ponho as coisas fora de mim com
tanta certeza quanto me ponho a mim mesmo; tão certo como
eu ser, as coisas são. Mas se o Eu puser apenas coisas ou se se
puser a si mesmo, apenas uma das duas coisas ou ambas ao
mesmo tempo, mas separadas, então o Eu não se tornará ele
próprio, no sistema, sujeito = objecto. O subjectivo é certamente
sujeito = objecto, mas o objectivo não, e, portanto, o sujeito não
é igual ao objecto. 1
Como faculdade teórica, o Eu não se consegue pôr completa- 42
mente a si mesmo, de modo objectivo, e sair da oposição. «O Eu
põe-se a si mesmo como determinado pelo não-Eu» 2 1 , é aquela
parte da terceira proposição-de-fundo através da qual o Eu se
constitui como inteligente. Embora o mundo objectivo se mostre
como um acidente da inteligência, e o não-Eu, por meio do qual
a inteligência se põe a si mesma de modo determinado, seja um
i ndeterminado, e cada determinação sua seja um produto da
i n teligência, resta ainda um lado da faculdade teórica pelo qual
l'la é condicionada; nomeadamente, o mundo objectivo, na sua
d e te r m inação infinita por meio da inteligência, permanece sem­
p re, simultaneamente, algo para ela, que para ela é, simultanea­
nll'ntc, a l go de indeterminado. Na verdade, o não-Eu não tem
lJ L m l q m• r ca rá c ter posi tivo, mas tem o carácter negativo de ser,
em geral, um outro, quer dizer, um oposto; ou, como Fichte se
exprime: a inteligência está condicionada por um choque, mas
que é, em si mesmo, indeterminado. Porque o não-Eu exprime
apenas o negativo, um indeterminado, este carácter cabe-lhe
apenas por meio de um pôr do Eu: o Eu põe-se a si mesmo como
não posto; o opor em geral, o pôr de um absolutamente indeter­
minado por meio do Eu, é ele próprio um pôr do Eu 22 . Nesta
viragem, é afirmada a imanência do Eu, mesmo como inteligên­
cia, em relação ao ser condicionado por meio de um outro = X.
Mas a contradição recebeu apenas uma outra forma, por meio
da qual ela própria se tornou imanente; nomeadamente, o opor­
-se do Eu e o pôr-se-a-si-mesmo do Eu contradizem-se entre si;
e desta oposição a faculdade teórica não é capaz de sair; por isso,
ela permanece para si mesma absoluta. A imaginação produtiva
é um flutuar entre opostos absolutos, que ela pode apenas sinte­
tizar no limite, mas cujos extremos opostos não pode unificar 23 .
Por meio da faculdade teórica, o Eu não se torna objectivo
para si mesmo; em vez de se impor como Eu = Eu, o objecto
surge para ele como Eu + não-Eu; ou a consciência pura não se
mostra como idêntica à empírica.
Resulta daqui o carácter da dedução transcendental do mun­
do objectivo. O Eu = Eu, como princípio da especulação ou da
reflexão filosófica subjectiva, que se opõe à consciência empírica,
deve mostrar-se a si mesmo objectivamente como princípio da
filosofia, pelo facto de suprimir a oposição relativamente à cons­
ciência empírica. Isto tem de acontecer se a consciência pura
produzir a partir de si mesma uma multiplicidade de activida­
des, que é igual à multiplicidade da consciência empírica; com
isto, o Eu = Eu seria comprovado como o fundamento real
imanente da totalidade da contiguidade da objectividade. Mas na
consciência empírica existe um oposto, um X, que a consciência
pura não pode produzir nem suprimir a partir de si mesma, pois
43 ela é um pôr-se-a-si-mesma, 1 mas que tem de pressupor. Pode­
-se perguntar se a identidade absoluta, na medida em que apa­
rece como faculdade teórica, não se pode também abstrair total­
mente da subjectividade e da oposição relativamente à consciência
empírica, e, no interior desta esfera, tomar-se a si mesma objec­
tiva, A = A. Mas esta faculdade teórica, na qualidade de Eu que
se põe a si mesmo como um Eu determinado pelo não-Eu, não
é, de forma alguma, uma esfera imanente pura; no seu interior,
cada produto do Eu é, ao mesmo tempo, um produto não deter-
minado pelo Eu; a consciência pura, na medida em que produz
a partir de si mesma a multiplicidade das consciências empíricas,
aparece, por isso, com o carácter da insuficiência. Esta insufi­
ciência originária da consciência pura constitui, desde logo, a pos­
sibilidade de uma dedução do mundo objectivo em geral, e o
subjectivo dela aparece com a maior clareza nesta dedução.
O Eu põe um mundo objectivo na medida em que se reconhece
a si mesmo como insuficiente na medida em que se põe; e, com
isto, desaparece a absolutidade da consciência pura. O mundo
objectivo relaciona-se com a consciência como sendo uma condi­
ção dela. A consciência empírica e a pura condicionam-se mutua­
mente, uma é tão necessária quanto a outra; prossegue-se, segun­
do a expressão de Fichte, em direcção à consciência empírica,
porque a consciência pura não é uma consciência completa. Nesta
relação recíproca, permanece a absoluta oposição entre elas; a
identidade que pode ser realizada é altamente incompleta. e su­
perficial; é necessária uma outra, que compreende a consciência
pura e a empírica, mas que as suprime a ambas naquilo que são.
Da forma que o objectivo (ou a natureza) recebe, por meio
deste género de dedução, falar-se-á mais abaixo. Mas a subjec­
tividade da consciência pura, que surge da forma de dedução
que foi discutida, dá-nos a explicação para uma outra forma dela,
na qual a produção do objectivo é um acto puro da actividade
livre. Se a consciência-de-si estiver condicionada pela consciên­
cia empírica, a consciência empírica não poderá ser um produto
da liberdade absoluta e a livre actividade do Eu tornar-se-á ape­
nas um factor na construção da intuição de um mundo objectivo.
O facto de o mundo ser um produto da liberdade da inteligência
é o princípio do idealismo expresso com determinação, e se o
idealismo fichteano não construiu este princípio como um siste­
ma, o fundamento disso encontra-se no carácter com que a liber­
dade surge neste sistema.
A reflexão filosófica é um acto de liberdade absoluta, eleva-
-se com arbítrio absoluto acima da esfera do dado e produz com
consciência o que, na consciência empírica, a inteligência produz
i nconscientemente e que, por isso, aparece como dado. No sen­
tido em que, para a reflexão filosófica, a 1 multiplicidac;le das re- 44
presentações necessárias surge como um sistema produzido por
1 i bl• rd a d e, a produção inconsciente de um mundo objectivo não
(o v ista como um acto de liberdade - pois, nesta medida, a cons­
l' i l'\ n ci a l'tn p írica e a consciência filosófica opõem-se -, mas sim
na medida em que ambas são a identidade do pôr-se-a-si-mesmo;
o pôr-se-a-si-mesmo, identidade do sujeito . e do objecto, é activi­
dade livre. Na apresentação precedente da produção do mundo
objectivo a partir da consciência pura ou do pôr-se-a-si-mesmo,
aparece necessariamente uma oposição absoluta; isto acontece na
medida em que o mundo objectivo deve ser deduzido como um
acto de liberdade, como uma autolimitação do Eu por si mesmo,
e a imaginação produtiva é construída a partir dos factores da
actividade indeterminada { dirigindo-se ao infinito, e da activida­
de limitante, que se finitiza. Se a actividade reflexionante for ao
mesmo tempo posta como infinita, tal como deve ser posta
- na medida em que é aqui um factor ideal, um oposto absoluto -,
pode ser também ela posta como um acto da liberdade, e o Eu
limita-se a si mesmo livremente. Deste modo, a liberdade e o
limite não se oporiam um ao outro, mas pôr-se-iam de modo
infinito e finito; o mesmo que acima surgiu como oposição entre
a primeira e a segunda proposições-de-fundo. A limitação é, com
isso, sem dúvida, algo de imanente, pois é o Eu que se limita a
si mesmo; os objectos são apenas postos para explicar esta limi­
tação, e o limitar-se a si mesmo da inteligência é o único real.
Deste modo, a oposição absoluta, que a consciência empírica põe
entre o sujeito e o objecto, é suprimida, mas é transportada de
uma outra forma para a inteligência; e a inteligência encontra-se
a si mesma, uma vez mais, encerrada em limites inconcebíveis,
tem para si como lei ininteligível o limitar-se a si mesma; mas é
justamente o facto da oposição da consciência comum ser
ininteligível para ela que impulsiona a especulação. Mas o carác­
ter ininteligível permanece no sistema através do limite posto na
própria inteligência, e quebrar o seu círculo é o único interesse a�
necessidade da filosofia. Se houver uma oposição entre a liberdade
e a actividade limitante, ·como entre o pôr-se-a-si-mesmo e o opor,
'
a liberdade torna-se condicionada, o que não deve acontecer; se,
também, a actividade limitante for posta como uma actividade da
liberdade - como, mais acima, o pôr-se-a-si-mesmo e o opor fo­
ram ambos postos no Eu -, a liberdade é identidade absoluta, mas
contradiz o seu aparecimento,
1
que é sempre um não-idêntico, finito
e não-livre. A liberdadeJnão consegue produzir-se a si mesma no
sistema; o produto não corresponde à actividade produtiva; o sis­
tema, que parte do pôr-se-a-si-mesmo, leva a inteligência à sua
condição condicionada, num sem-fim de finitudes, sem a produzir
de novo neles e a partir deles.
Porque no produzir sem consciência a especulação não pode
indicar completamente o seu princípio Eu = Eu, mas o objecto
da faculdade teórica 1 contém em si, necessariamente, algo de 4�
não determinado pelo Eu, somos remetidos para a actividade prá­
tica. Ao Eu não chega pôr-se a si mesmo, através do produzir
inconsciente, como Eu = Eu, ou intuir-se como sujeito = objecto;
há ainda a exigência de o Eu se produzir como identidade, como
sujeito = objecto, quer dizer, praticamente, de se metamorfosear
a si mesmo no objecto. Esta suprema exigência permanece, no
sistema fichteano, uma exigência; ela, não somente não é resolvi-
da numa síntese autêntica, como, pelo contrário, é fixada como
exigência, para que o ideal se oponha absolutamente ao real, e a
suprema auto-intuição do Eu como um sujeito = objecto se torne
impossível.
O Eu = Eu é postulado do ponto de vista prático, e isto é
representado de tal modo que o Eu se toma deste modo, enquan­
to Eu, um objecto, na medida em que surge numa relação causal
com o não-Eu, na qual o não-Eu se desvaneceria e o objecto seria '
algo de absolutamente determinado pelo Eu, portanto, = Eu.
Aqui, a relação causal torna-se dominante e, com isso, a razão,
ou sujeito = objecto, é fixada como um dos opostos, e a verda­
deira síntese toma-se impossível.
Esta impossibilidade do Eu se reconstruir a partir da oposição
entre a subjectividade e o X, que surge para ele no produzir in­
consciente, e de se tomar um só com o seu aparecimento, exprime­
-se de tal forma que a síntese suprema, que o sistema mostra, é
um dever. O Eu igual a Eu transforma-se em: Eu deve ser igual a
Eu; o resultado do sistema não regressa ao seu começo.
O Eu deve aniquilar o mundo objectivo, o Eu deve ter cau­
salidade absoluta sobre o não-Eu; isto será considerado contradi­
tório, pois com isso o não-Eu seria suprimido e o pôr ou o opor
de um não-Eu é absoluto. A relação de uma actividade pura com
um objecto só pode ser posta como um esforço. O Eu objectivo,
i gual ao subjectivo, porque apresenta o Eu = Eu, encontra-se, ao
mesmo tempo, diante de uma oposição, portanto, de um não-Eu;
aquele, o ideal, este, o real, devem ser idênticos. Este postulado
prático do dever absoluto não exprime senão uma ligação pensada
d a oposição, que não se une numa intuição, ou seja, apenas a antí­
lt•sc da primeira e da segunda proposições-de-fundo.
O Eu = Eu é, com isso, abandonado pela especulação e re­
vt•rtt• a favor da reflexão; a consciência pura não surge mais como

Z.I
identidade absoluta, mas sim, na sua suprema dignidade, é opos­
ta à consciência empírica. A partir daqui, toma-se claro que ca­
rácter tem a liberdade neste sistema; ela não é a supressão dos
opostos, mas sim a oposição a eles e, nesta oposição, é fixada
como liberdade negativa. A razão constitui-se como unidade por
meio da reflexão, à qual se opõe absolutamente uma multi-
46 plicidade; o dever exprime esta oposição permanente, 1 o não­
-ser da identidade absoluta. O puro pôr, a actividade livre é posta
como uma abstracção na forma absoluta de algo de subjectivo.
A intuição transcendental, da qual parte o sistema, era algo de
subjectivo sob a forma da reflexão filosófica, que se eleva ao puro
pensamento de si própria por meio da abstracção absoluta; para
ter a intuição transcendental na sua verdadeira ausência de
forma, teve-se de abstrair deste carácter de algo de subjectivo; a
especulação teve de afastar a forma do seu princípio subjectivo,
para o elevar à verdadeira identidade do sujeito e do objecto.
Mas, assim, a intuição transcendental, na medida em que perten­
ce à reflexão filosófica, e a intuição transcendental, na medida
em que não é nada de subjectivo nem de objectivo, permanece­
ram uma e a mesma coisa. O sujeito = objecto não sai mais da
diferença e da reflexão, permanece um sujeito = objecto subjecti­
vo, para o qual o aparecimento é algo de absolutamente estra­
nho e que não consegue intuir-se a si mesmo no seu apareci­
mento.
Tal como a faculdade teórica do Eu não consegue atingir a
auto-intuição absoluta, também a faculdade prática não o conse­
gue; esta, tal como aquela, está condicionada por um choque,
que, como facto, não se deixa deduzir do Eu, e cuja dedução
significa que é mostrado como condição da faculdade teórica e
prática. A antinomia permanece como antinomia e exprime-se no
esforço, que é o dever como actividade. Esta antinomia não é a
forma na qual aparece o absoluto da reflexão, tal como para a
reflexão não é possível nenhuma outra concepção do absoluto
senão através da antinomia; mas este oposto da antinomia é o
fixado, o absoluto. Como actividade, nomeadamente, como um
esforço, o oposto deve ser a síntese suprema e a ideia de
infinitude permanecer uma ideia em sentido kantiano, absoluta­
mente oposta à intuição. Esta oposição absoluta da ideia e da
intuição, e a síntese de ambas, que não é senão uma exigência
que se destrói a si mesma - a saber, a exigência de uma unifi­
cação que não deve acontecer -, exprime-se no progresso i n fi-
nito. A oposição absoluta é, com isto, relegada para a forma de
um ponto de vista inferior, que, durante muito tempo, valeu
como uma verdadeira supressão da oposição e suprema dissolu­
ção da antinomia por meio da razão. A existência prolongada na
eternidade inclui a infinitude da ideia e a intuição, mas a ambas
de tal forma que torna impossível a sua síntese. A infinitude da
ideia exclui toda a multiplicidade; o tempo, pelo contrário, inclui
imediatamente em si a oposição, uma exterioridade recíproca, e
a existência no tempo é algo de em si mesmo oposto, múltiplo,
e a infinitude está fora dela. O espaço é, igualmente, um ser­
-posto-fora-de-si; mas, no 1 seu carácter de oposição, pode ser 47
considerado uma síntese infinitamente mais rica do que o tem­
po. A prioridade, que o tempo contém, de o progresso dever
acontecer nele, pode consistir apenas no facto de o esforço ser
absolutamente oposto a um mundo sensível externo e ser posto
como um interior, pelo que o Eu é hipostasiado como sujeito
absoluto, como unidade do ponto e, mais popularmente, como
alma. Se o tempo deve ser uma totalidade, como tempo infinito,
então o próprio tempo é suprimido, e não era necessário recor-
rer ao seu nome e a um progresso da existência alongada. A ver­
dadeira supressão do tempo é o eterno presente, quer dizer, a
eternidade; e, nesta, são abolidos o esforço e a permanência dos
opostos absolutos. Aquela existência alongada atenua a oposição
apenas na síntese do tempo, cuja indigência, através desta liga­
ção atenuante com uma infinitude que se lhe opõe absolutamente,
não se torna completa, mas mais acentuada.
Todos os desenvolvimentos posteriores do que está contido
no esforço e a síntese da oposição resultantes desse desenvolvi­
mento, têm em si o princípio da não-identidade. Todo o prosse­
gui mento posterior do sistema releva de uma reflexão conse­
q uente; a especulação não tem qualquer participação nisso.
t\ identidade absoluta está apenas presente na forma de um opor,
n saber, como ideia; a ligação causal incompleta subjaz a cada
u ma das suas ligações com os opostos. O Eu que se põe a si
mesmo na oposição, ou que se limita a si mesmo, e o que vai
l'ITI d irecção ao infinito, aparecem na seguinte ligação: o primeiro
sob o nome de subjectivo, o segundo sob o nome de . objectivo;
pois o determinar-se a si mesmo do Eu subjectivo é um determi­
l l íl I' d l' acordo com a ideia do Eu objectivo, da auto-actividade
abso l u tn , dn i n fini tude, e o Eu objectivo, a auto-actividade abso­
l u t n, (> d l• tl'rm i n a d o por m e i o do subjectivo, de acordo com esta

r.
ideia. A sua determinação é uma determinação recíproca. O Eu
subjectivo, ideal, recebe do objectivo, por assim dizer, a matéria
da sua ideia, a saber, a auto-actividade absoluta, a indetermi­
nação. O Eu objectivo, real, que se dirige ao infinito, é limitado
pelo subjectivo; mas o subjectivo, porque determina pela ideia
de infinitude, suprime de novo a limitação, toma o objectivo, na
sua infinitude, finito, mas ao mesmo tempo, na sua finitude,
infinito. Nesta determinação recíproca permanece a oposição da
finitude e da infinitude, da determinidade real e da indeter­
minidade ideal; idealidade e realidade não estão unidas; ou o Eu,
as actividades ideal e real simultaneamente, que se distinguem
apenas como direcções diferentes, unificou em sínteses singula­
res incompletas as suas direcções diferentes, tal como se mostra-
48 rá mais à frente, no impulso, no sentimento, 1 mas não atinge
nelas uma exposição completa de si mesmo. Ele produz, no pro­
gresso infinito da existência prorrogada, partes infinitas de si
mesmo, mas não se produz a si mesmo na eternidade do intuir­
-se a si mesmo como sujeito-objecto.
O agarrar-se à subjectividade da intuição transcendental, por
meio da qual o eu permanece um sujeito-objecto subjectivo, apa­
rece mais nitidamente na relação do Eu com a natureza, em parte
na dedução desta, em parte na ciência que nela se funda.
Porque o Eu é sujeito-objecto subjectivo, permanece nele um
lado pelo qual um objecto lhe é absolutamente oposto e pelo qual
ele é condicionado por ele; o pôr dogmático de um objecto abso­
luto transforma-se neste idealismo, tal como vimos, num limitar­
-se-a-si-mesmo, absolutamente oposto à actividade livre. O ser-
-posto da natureza através do Eu é a sua dedução e nisto consiste
o ponto de vista transcendental; mostrar-se-á até onde ele alcan­
ça e qual é o seu significado.
Como condição da inteligência é postulada uma determi­
nidade originária, o que apareceu acima como a necessidade
(porque a pura consciência não é nenhuma consciência comple­
ta) de prosseguir em direcção à consciência empírica. O Eu deve
limitar-se, opor-se absolutamente a si mesmo; ele é sujeito e o
limite está nele e através dele. Esta autolimitação é tanto uma
limitação da actividade subjectiva, de inteligência, como da ob­
jectiva; a actividade objectiva limitada é o instinto 24; a subjectiva
limitada é o conceito de fim. A síntese desta determinidade dupla
é o sentimento; nele, o conhecimento e o instinto estão unidos.
Mas, ao mesmo tempo, o sentir é algo de simplesmente subjec-
tivo 25 e, diante do Eu= Eu, diante do indeterminado, aparece
sobretudo como um determinado em geral e, na verdade, como
um subjectivo, em oposição ao Eu como objectivo; ele aparece
como um finito em geral, tanto diante da actividade infinita real,
como diante da infinitude ideal, e em relação a esta última como
um objectivo. Mas, para si mesmo, o sentimento caracterizou-se
como síntese do subjectivo e do objectivo, do conhecimento e do
instinto, e, porque é síntese, desaparece a sua oposição diante do
indeterminado, seja este indeterminado apenas uma actividade
infinita objectiva ou subjectiva. Ele é em geral finito apenas para
a reflexão, que produz aquela oposição à infinitude; em si, ele é,
tal como a matéria, subjectivo e objectivo, identidade, contanto
que esta não se tenha reconstruído em totalidade.
O sentimento, tal como o instinto, aparecem como limitados,
e a exteriorização do limitante e da limitação em nós é instinto
e sentimento; o sistema originariamente determinado de instin­
tos e sentimentos é a natureza. Porque a consciência d ela nos
importuna e, ao mesmo tempo, a substância, no qual este siste­
ma de limitações 1 se encontra, deve ser aquela que pensa e quer 49
livremente, e que nós pomos como nós mesmos, é que ela é a
nossa natureza 26. E eu e a minha natureza constituímos o sujeito­
-objecto subjectivo, a minha natureza está, ela própria, no Eu.
Porém, têm de ser distinguidos dois modos de mediação da
oposição entre a natureza e a liberdade, entre o limitar originá­
rio e o ilimitar originário, e deve-se essencialmente mostrar que
a mediação acontece de modos diferentes. Isto mostrar-nos-á
numa nova forma a diferenciação do ponto de vista trans­
cendental e do ponto de vista da reflexão, em que o último re­
prime o primeiro: a diferença entre o ponto de partida e o resul­
tado deste sistema.
Umas vezes, o Eu é Eu, a liberdade e o instinto são uma
=

e a mesma coisa: este é o ponto de vista transcendental. «Apesar


de apenas uma parte daquilo que me pertence dever ser apenas
possível por liberdade, e uma outra parte disso independente da
l iberdade, tal como a própria liberdade deve ser independente
disso, todavia, a substância que as inclui a ambas é apenas uma
e a mesma, e é posta como uma e precisamente a mesma. O Eu
que eu sinto, e o Eu que eu penso, o Eu que é movido por um
i nstinto, e o Eu que me leva a decidir com vontade livre, são o
m es m o . » 27 «Ü meu instinto como ser da natureza, a minha ten­
d f> n c i a como puro espírito, são -, do ponto de vista trans-

Zl
cendental, pontos de vista que partem de um e precisamente o
mesmo instinto originário, que constitui a minha essência, visto
simplesmente de dois lados diferentes.» 28 A sua diversidade re­
side apenas no aparecimento.
Outras vezes, são ambos diferentes, um é a condição do ou­
tro, um domina o outro. Na verdade, a natureza como instinto
deve ser pensada como determinando-se a si mesma através de si
mesma, porém, ela caracteriza-se por ser o contrário da liberdade.
Por isso, dizer-se que a natureza se determina a si mesma signi­
fica: ela é determinada a determinar-se, por meio da sua essência,
formaliter, ela nunca pode ser indeterminada como um ser livre
pode perfeitamente sê-lo; ela está também, materialiter, perfeitamen­
te determinada e não pode, como o ser livre, escolher entre uma
certa determinação e o seu oposto 29 . A síntese da natureza e da
liberdade dá, então, a seguinte reconstrução da identidade, a par­
tir da cisão e em direcção à totalidade. Eu, como inteligência, o
indeterminado, e Eu que sou movido pelo instinto, a natureza, o
determinado, torno-me no mesmo, pelo facto de o impulso vir
para a consciência; então, nesta medida, ele está em meu poder, ele
quase não age nesta região, mas sou eu que ajo, ou não ajo, de
acordo com ele 30. O reflectinte é superior ao reflectido; o instinto
do reflectinte, do sujeito da consciência, chama-se instinto supre­
mo 31; o inferior, a natureza, deve ser posto na dependência do su­
perior, da reflexão. A relação de dependência de um aparecimento
do Eu relativamente ao outro deve ser a síntese suprema.
Mas esta última identidade e a identidade do ponto de vista
transcendental são totalmente opostas. Na transcendental, há o
so Eu Eu, o Eu posto na relação substancial 1 ou, pelo menos, na
=

relação recíproca; pelo contrário, nesta reconstrução da identida­


de, uma é a dominante, outra é a dominada, o subjectivo não é
igual ao objectivo, mas encontram-se numa relação de causalida­
de: um deles aparece como dependente; das duas esferas da li­
berdade e da necessidade, esta está subordinada àquela. Assim,
o final do sistema é infiel ao seu início, o seu resultado infiel ao
seu princípio. O princípio era Eu = Eu; o resultado é Eu não =

Eu. A primeira identidade é ideal-real, forma e matéria estão


unidas; a última é meramente ideal, forma e matéria estão sepa­
radas; ela é uma síntese meramente formal.
Esta síntese do domínio surge do seguinte modo. Ao puro
impulso, que, para a sua autodeterminação absoluta, age por mor
do agir, opõe-se um impulso objectivo, um sistema de limitações.

78
Na medida em que a liberdade e a natureza se unificam, a q tl l' l n
abandona a sua pureza e esta a sua impureza; a actividade s i n ­
tética, para ser, todavia, pura e infinita, deve ser pensada como
uma actividade objectiva, cujo fim último é liberdade absoluta,
absoluta independência de toda a natureza: um fim último que
nunca pode ser alcançado 32, uma série infinita, através de cujo
prosseguimento o Eu se tomaria absolutamente = Eu; quer di­
zer, o Eu suprime-se a si mesmo como objecto e, com isso, tam­
bém como sujeito. Mas ele não se deve suprimir; assim, para o
Eu há apenas um tempo prorrogado indefinidamente, preenchi­
do com limitações e quantidades, e o conhecido progresso deve
prestar a sua ajuda; onde é esperada a suprema síntese, perma­
nece sempre a mesma antítese do presente limitado e de uma
exterioridade existente no seu exterior. O Eu = Eu é o absoluto,
a totalidade, fora do Eu não há nada; mas, até então, o Eu não
vai até ao sistema e, se o tempo estiver misturado niss<?, nunca
lá chegará; ele é absolutamente afectado por um não-Eu e só
consegue pôr-se constantemente a si mesmo como uma quanti­
dade de Eu.
Com isto, a natureza é algo de essencialmente determinado e
morto, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista
prático. Daquele ponto de vista, ela é a autolimitação intuída,
quer dizer, o lado objectivo do autolimitar-se; na medida em que
é deduzida como condição da consciência-de-si e é posta como
condição para explicar a consciência-de-si, ela é meramente algo
de posto em benefício da explicação pela reflexão, o resultado de
uma produção ideal. Mas se a natureza já possui, pelo facto de
a consciência-de-si ser mostrada como condicionada por ela, uma
igual dignidade da autonomia, então, a sua autonomia, porque
só é posta através da reflexão, é, por isso mesmo, também ani­
q uilada e o seu carácter fundamental é o do ser-oposto.
Da mesma forma, do ponto de vista prático, na síntese do
determinar-se-a-si-mesmo sem consciência e do autodeterminar-se
a través de um conceito, do impulso natural e do impulso da liber­
dade por mor da liberdade 33, a natureza toma-se, através da 1
cn usalidade da liberdade, um produto real. O resultado é o se- s1
g u in te : o conceito deve ter causalidade sobre a natureza e a natu­
rl•za deve ser posta como algo de absolutamente d eterminado.
Quando a reflexão põe completamente a sua análise do ab­
so l u to n u ma antinomia, quando põe um dos membros como Eu,
i nd l•tl'rm i n i d ad c ou determinar-se-a-si-mesmo, e o outro mem-

79
bro como objecto, ser-determinado, e reconhece ambos como
originários, afirma deste modo a relativa incondicionalidade de
ambos e, com isso, também a sua relativa condicionalidade.
A reflexão não pode ir além desta acção recíproca do condicionar
mútuo. Ela mostra-se como razão pelo facto de apresentar a
antinomia do incondicionado condicionado, e, na medida em que,
através deles, aponta para uma síntese absoluta da liberdade e
do impulso natural, não afirmou a oposição e a subsistência de
ambos, ou de um deles, nem se afirmou a si mesma como o
absoluto e o eterno, mas aniquila-os e derruba-os no abismo do
seu termo. Mas quando se afirma a si e a um dos seus opostos
como o absoluto e se fixa na relação causal, então, o ponto de
vista transcendental e a razão são subordinados ao ponto de vista
da mera reflexão e ao entendimento, que conseguiu fixar o racio­
nal, sob a forma de uma ideia, como um absolutamente oposto.
Nada resta para a razão senão a impotência de uma exigência
que se suprime a si mesma e a aparência de uma mediação - em­
bora formal e própria do entendimento - da natureza e da li­
berdade na mera ideia da supressão dos opostos, na ideia da in­
dependência do Eu e do absoluto ser-determinado da natureza,
que, como algo para ser negado, é posto como absolutamente de­
pendente. Mas a oposição não desapareceu, mas sim - porque,
na medida em que permanece um membro dela, o outro tam­
bém permanece - foi tornada infinita.
Deste ponto de vista supremo, a natureza tem o carácter da
objectividade absoluta ou da morte; só de um ponto de vista
inferior ela surge com a aparência de uma vida, como sujeito =

= objecto. Tal como, do ponto de vista supremo, o Eu não perde


a forma da sua manifestação como sujeito, ao invés, o carácter
da natureza de ser sujeito = objecto torna-se mera aparência e a
sua essência torna-se objectividade absoluta.
A natureza é o produzir sem consciência do Eu e o produzir
do Eu é um determinar-se-a-si-mesmo; a natureza é, portanto,
Eu, sujeito= objecto; e tal como a minha natureza é posta, há
também uma natureza fora da minha, que não é a totalidade da
natureza; a natureza fora de mim é posta para explicar a minha
natureza. Porque a minha natureza é determinada como impulso,
um determinar-se-a-si-mesmo por meio de si mesmo, também a
natureza fora de mim deve ser assim determinada, e esta deter­
minação fora de mim é o fundamento de explicação da minha /
natureza 34.

8U
Deste determinante-de-si-mesmo através de si mesmo devem
ser agora predicados, na sua antinomia, os produtos da reflexão,
causa e efeito, todo e partes, etc., 1 portanto, a natureza deve ser r.2
posta como causa e efeito de si mesma, como todo e parte, etc.
simultâneos, por meio do que ela conserva a aparência de ser
algo de vivo e orgânico 35 .
Simplesmente, este ponto de vista, a partir do qual o objec­
tivo é caracterizado, pela faculdade de julgar reflexionante, como
algo de vivo� transforma-se num ponto de vista inferior. O Eu só
se encontra a si mesmo como natureza na medida em que intui
apenas o seu carácter-limitado originário e põe absolutamente o
limite absoluto do impulso originário, portanto, põe-se objectiva­
mente a si mesmo. Mas, do ponto de vista transcendental, o
sujeito = objecto é reconhecido apenas na consciência pura, no
pôr-se-a-si-mesmo ilimitado; mas este pôr-se-a-si-mesmo tem
diante de si um oposto absoluto, o qual, deste modo, é . determi­
nado como limite absoluto do impulso originário. Na medida em
que o Eu, como impulso, não se determina a si mesmo segundo
a ideia de infinitude, portanto, põe-se como finito, este finito é a
natureza; como Eu, ele é simultaneamente infinito e sujeito­
-objecto. O ponto de vista transcendental, na medida em que põe
apenas o infinito como Eu, faz, assim, uma separação entre o
finito e o infinito. Ele extrai a subjectividade-objectividade da­
quilo que aparece como natureza, e esta não permanece senão
como o invólucro morto da objectividade. A ela, ao até então
finito-infinito, é retirada a infinitude, e ela permanece pura
finitude, oposta ao Eu = Eu; o que o Eu era nela, é atraído pelo
sujeito. Se agora o ponto de vista transcendental Eu = Eu, no
qual nada há de subjectivo nem de objectivo, progride da iden­
tidade para a diferença entre os dois, a qual, como opor, perma­
neceu contra o pôr-se-a-si-mesmo, contra o Eu = Eu, e determina
cada vez mais a oposição, chega também a um ponto de vista no
qual a natureza é posta para si mesma como sujeito = objecto;
mas não se deve esquecer que esta visão da natureza é apenas
u m produto da reflexão a partir do ponto de vista mais baixo.
Na dedução transcendental, o limite do impulso originário (ob­
jl'ctivamente posto: natureza) permanece uma pura . objectivida­
d c, absolutamente oposta ao impulso originário, à essência ver­
d a d e i ra , que é E u= Eu, sujeito = objecto. Esta oposição é a
m n d ição pela qual o Eu se torna prático, quer dizer, tem de
s u p ri m i r a o p os ição; e s ta su p ressã o é pensad a de modo ta l que
um é posto como dependendo do outro. A natureza é posta, na
perspectiva prática, como algo absolutamente determinado pelo
conceito; na medida em que ela não é determinada pelo Eu, o
Eu não tem causalidade ou não é prático; e o ponto de vista que
põe a natureza viva cai novamente, pois a sua essência, o seu
em-si, não deve ser senão um limite, uma negação. Deste ponto
de vista prático, a razão permanece apenas a regra morta e
mortal da unidade formal posta à disposição da reflexão, que põe
53 o sujeito e o objecto numa 1 relação de dependência mútua, ou
de causalidade, e, deste modo, põe totalmente de lado o princí­
pio da especulação, a identidade.
Na exposição e na Dedução da natureza, tal como ela é feita no
Sistema do Direito Natural, mostra-se em toda a sua dureza a opo­
sição absoluta da natureza e da razão e o domínio da reflexão.
O ser racional deve construir uma esfera para a sua liberda­
de, esfera essa que prescreve a si mesmo; mas ele é esta esfera
apenas em oposição, na medida em que se põe a si mesmo aí
em exclusividade, de modo que nenhuma outra pessoa a possa
escolher; na medida em que aí a prescreve a si mesmo, opõe-na
essencialmente a si. O sujeito - como o absoluto, em si mesmo
activo e determinando-se a si mesmo a pensar um objecto - põe
fora de si a esfera que lhe pertence da sua liberdade, e põe-se a
si mesmo separado dela 36, a sua referência a ela é apenas um
ter. A característica fundamental da natureza é ser um mundo
do orgânico, um oposto absoluto; a essência da natureza é um
atomismo morto, uma matéria mais fluida, ou mais resistente e
mais sólida 37, que, de múltiplos modos, é mutuamente causa e
efeito. O conceito de acção recíproca diminui pouco a oposição
total entre o que é mera causa e o que é mero produto; com
isso, a matéria toma-se mutuamente modificável de muitas for­
mas, mas mesmo a força desta ligação indigente reside fora dela.
A independência das partes, graças à qual elas podem constituir
em si mesmas todos orgânicos, tal como a dependência das par­
tes em relação ao todo, é a dependência teleológica do conceito,
pois a articulação 38 é posta em benefício de um outro, o ser ra­
cional, que é essencialmente distinto dela. O ar, a luz, etc., trans­
formam-se em matéria atómica configurável, e, aqui, trata-se, na
verdade, de matéria em geral no sentido vulgar, como o sim­
plesmente oposto ao que se põe-a-si-mesmo.
Deste modo, Fichte está mais próximo do que Kant de con­
seguir vencer a oposição da natureza e da liberdade, e de m os-

tl2
trar a natureza como algo de absolutamente causado e morto;
em Kant, a natureza é igualmente posta como algo de absolu ta­
mente determinado. Porém, ela não pode ser pensada como de­
terminada por aquilo que, em Kant, se chama entendimento, mas
os seus múltiplos fenómenos particulares devem ser deixados
indeterminados pelo nosso entendimento humano discursivo, devem
ser pensados como determinados por um outro entendimento,
mas de tal modo que isto vale apenas como uma máxima da
nossa faculdade de julgar reflexionante, e nada é decidido acerca
da realidade de um outro entendimento. Fichte não necessita
deste desvio que consiste em deixar a natureza surgir como algo
de determinado apenas pela ideia de um outro entendimento
separado, diferente do entendimento humano; ela é imediatamen-
te determinada através da 1 e para a inteligência. Esta, limita-se 54
a si mesma absolutamente, e este limitar-se-a-si-mesma não pode
ser derivado do Eu = Eu, mas apenas deduzido, quer dizer, deve
mostrar-se a sua necessidade a partir do estado de carência da
consciência pura, e a intuição deste seu absoluto carácter limita­
do, quer dizer, da negação, é a natureza objectiva.
Das consequências que daí resultam, sobressai esta relação
de dependência da natureza relativamente ao conceito, de oposi­
ção à razão, nos dois sistemas da comunidade dos homens.
A comunidade é representada como uma comunidade de
seres racionais, obrigada a desviar-se pelo domínio do conceito.
Cada ser racional é algo de duplo para o outro: a) um ser livre
e racional; b) uma matéria modificável, algo capaz de ser tratado
como uma mera coisa 39 . Esta separação é absoluta e, deste modo,
uma vez posta na sua não-naturalidade, não é mais possível uma
referência pura de uns relativamente aos outros, na qual a iden­
tidade originária se exponha e reconheça, mas cada referência é
um dominar e ser dominado de acordo com as leis de um enten­
dimento consequente; a totalidade do edifício da comunidade dos
seres vivos é erigida pela reflexão.
A comunidade de seres racionais aparece como condiciona­
da pela limitação necessária da liberdade, que dá a si mesma a
lei para se limitar 4º; e o conceito do limitar constitui um reino
da liberdade, em que cada acção recíproca da vida, infinita e ili­
mitada para si mesma, quer dizer, bela, é aniquilada, dado que
o vivo é despedaçado em conceito e matéria, e a natureza é posta
n u m a situação de dependência. A liberdade é o carácter da
rn c i o n a l i d a d c, ela é aquilo que em si suprime todas as limitações
e o ponto supremo do sistema fichteano; mas na comunidade
com outros ela deve ser abandonada, para que seja possível a li­
berdade de todos numa comunidade permanente de seres racio­
nais, e a comunidade é, de novo, uma condição da liberdade.
A liberdade deve suprimir-se a si mesma para ser liberdade. Com
isto, torna-se de novo claro que a liberdade é, aqui, algo de mera­
mente negativo, a saber, indeterminidade absoluta, ou, tal como
em cima foi mostrado acerca do pôr-se-a-si-mesmo, é um puro
factor ideal: a liberdade considerada do ponto de vista da refle­
xão. Esta liberdade não se encontra a si mesma como razão, mas
sim como ser racional, quer dizer, sintetizada com um oposto,
um finito; e já esta síntese da personalidade inclui em si a limi­
tação de um dos factores ideais, como é aqui a liberdade.
A razão e a liberdade como ser racional não são mais razão e
liberdade, mas sim algo de singular; e a comunidade da pessoa
com outros não deve ser vista como uma limitação da verdadei­
ra liberdade do indivíduo, mas sim como um alargamento dela.
A suprema comunidade é a suprema liberdade, tanto do ponto
55 de vista do poder como do exercício; suprema 1 comunidade essa
na qual, porém, a liberdade, como factor ideal, e a razão, como
oposto da natureza, desaparecem totalmente.
Se a comunidade dos seres racionais fosse, por essência, uma
limitação da verdadeira liberdade, seria em si e para si mesma a
suprema tirania; mas porque, por enquanto, é apenas a liberda­
de como algo de indeterminado e como factor ideal, que será
limitado, não surge ainda imediatamente na comunidade, atra­
vés daquela representação para si, a tirania. Mas ela surge da
forma mais completa através do modo como a liberdade deve
ser limitada, para que a liberdade dos outros seres racionais seja
possível; nomeadamente, a liberdade, através da comunidade,
não deve perder a forma de algo de ideal, de oposto, mas sim,
nessa qualidade, tornar-se fixa e dominante. Através da comuni­
dade de referências vivas autenticamente livres, o indivíduo re­
negou a sua indeterminidade, que se chamava liberdade. Somen­
te na referência viva existe liberdade, na medida em que ela
inclui em si a possibilidade de se suprimir e de entrar em outras
referências; quer dizer, a liberdade é posta de lado como inde­
terminidade, como factor ideal. Numa relação viva, a indeter­
minidade, na medida em que é livre, é apenas o possível, e não
algo de efectivo feito para dominar, um conceito imperativo. Mas,
no Sistema do Direito Natural, a indeterminidade suprimida não é

84
compreendida como limitação livre da sua liberdade; porém, n a
medida em que a limitação por meio da vontade comum é e l e­
vada a lei e fixada como conceito, a verdadeira liberdade, a
possibilidade de suprimir uma referência determinada, é aniqui­
lada. A referência viva não é mais possível de ser indetermina­
da, portanto, não é mais racional, mas sim absolutamente deter­
minada e fixada por meio do entendimento; a vida tornou-se
dependente, e a reflexão transportou para ela o seu domínio e
triunfou sobre a razão. Esta situação de indigência torna-se di­
reito natural e não é afirmada como se o seu supremo objectivo
fosse suprimi-lo, e, no lugar desta comunidade feita à medida
do entendimento e não-racional, construir uma livre organização
da vida por meio da razão, livre da escravidão sob o conceito;
ao invés, o estado de indigência e a sua extensão infinita vale,
acima de todo o movimento da vida, como necessidade absolu-
ta. Esta comunidade sob o domínio do entendimento não é re­
presentada de modo tal que ela própria devesse ter para si mes­
ma, como lei suprema, a supressão, na verdadeira infinitude de
uma bela comunidade, desta indigência da vida, na qual ela é
posta por meio do entendimento, e por este sem-fim do determi­
nar e do dominar, tornando dispensáveis as leis graças aos cos­
tumes, a desordem da vida insatisfeita graças ao gozo santifica­
do, e o crime da força comprimida graças à actividade 1 possível 56
por grandes objectos; mas, pelo contrário, o domínio do conceito
e a escravidão da natureza são absolutamente feitos e alargados
ao infinito.
O sem-fim do determinar, no qual o entendimento deve cair,
mostra do modo mais imediato a insuficiência do seu princípio,
do dominar por conceitos. Também este estado de indigência
conhece a finalidade de impedir as ofensas dos seus cidadãos,
em vez de as vingar quando já aconteceram. Portanto, ele tem
não somente de proibir ofensas reais por meio de castigos, mas
também de prevenir a possibilidade de uma ofensa, e proibir,
com essa finalidade, acções que, em e para si, não parecem pre­
j udicar ninguém e ser totalmente indiferentes, mas que tornam
mais fácil a ofensa de outros e dificultam a sua protecção ou a
descoberta dos culpados 41 . Se então, por um lado, _um homem
não se submete ao estado por nenhum outro impulso senão o de
u t i l izar e gozar de forma tão livre quanto possível o seu poder,
n i'l o há, por outro lado, de forma alguma, qualquer acção da qual
o l'n tl•nd i men to consequente deste estado não possa calcular u m a
possível ofensa para outros. É com esta possibilidade interminá­
vel que tem que lidar o entendimento que previne e o seu po­
der, o dever de policiamento, e neste ideal de estado não há
acção nem movimento que não tenham de ser necessariamente
submetidos a uma lei, tomados sob inspecção imediata e obser­
vados pela polícia e pelas restantes autoridades, de modo que
(2.ª Parte, p. 155 42) num estad.o com uma constituição fundada
nestes princípios a polícia sabe bastante bem onde está cada ci­
dadão a cada hora do dia e o que é que ele faz *.

* O modo como o sem-fim d o determinar se perde e ao seu fim,

clarificar-se-á melhor com alguns exemplos. Através do aperfeiçoamento da


polícia previne-se toda a quantidade de crimes que são possíveis em esta­
dos imperfeitos, por exemplo, a falsificação de letras de câmbio e de di­
nheiro. Vemos de que modo, na página 148: «Aquele que transporta uma
letra de câmbio deve demonstrar, através de um passe, que é essa deter­
minada pessoa, onde pode ser encontrado, etc. O que a recebe põe então,
junto ao nome do transportador, no lado de trás da letra de câmbio, sim­
plesmente isto: «com o passe de tal ou tal autoridade». Só é preciso escre­
ver mais duas palavras e são apenas necessários mais um ou dois minutos
para observar o passaporte e a pessoa; e, acima de tudo, o assunto é tão
fácil como anteriormente. » (Ou melhor, mais simples, pois um homem cui­
dadoso proterger-se-á presumivelmente de aceitar de um homem que não
conhece de modo algum urna letra de câmbio, mesmo que esta pareça estar
totalmente em ordem; e verificar um passaporte e uma pessoa é infinita-
57 mente mais fácil do que, de um qualquer outro modo, 1 receber dela qual­
quer informação.) «No caso de a letra de câmbio, todavia, ser falsa, a pes­
soa é em breve encontrada, quando a investigação chegou até ela. Não é
permitido a ninguém viajar para fora do seu lugar; pode ser detido às
portas da cidade.» (O facto de as nossas aldeias e muitas cidades não te­
rem portas de entrada, nem muito menos as habitações isoladas, não é
nenhuma objecção; pelo contrário, daqui deduz-se a necessidade da porta.)
«Ele deve determinar o lugar para onde viaja, o que será registado no re­
gisto do lugar e no passaporte. » (Resulta daqui o postulado de o escrivão
da porta poder distinguir um viajante de qualquer outra pessoa que passe
pela porta.) «Ninguém será aceite senão no lugar determinado pelo passa­
porte . » «No passaporte encontra-se a verdadeira descrição da pessoa
(p. 146), ou, em vez disso, dado que a descrição permanece sempre ambí­
gua, em pessoas importantes que o possam pagar» (no nosso caso, aquelas
que podem falsificar a letra de câmbio) «deverá encontrar-se um retrato
muito parecido.» «Ü passaporte está escrito num papel exclusivamente des­
tinados para o efeito, que está nas mãos e sob a vigilância da suprema
autoridade e das autoridades subordinadas, que têm de prestar con tas do
Nesta infinitude, em direcção à qual tem de prosseguir, o
determinar e o ser-determinado suprimiram-se a si mesmos.
A limitação da liberdade deve ser, ela própria, infinita; nesta
antinomia do carácter-limitado ilimitado desapareceu a restrição
da liberdade e o estado; a teoria do determinar negou a limita­
ção, o seu princípio, pelo facto de o alargar ao infinito.
Os estados normais são inconsequentes pelo facto de alarga­
rem o direito superior da polícia apenas a poucas possibilidades
de ofensa e de, no restante, confiarem os cidadãos a si mesmos,
na esperança de que cada um deles não tenha de 1 ser limitado sa
através de um conceito e graças a uma lei, de modo a não mo­
dificar a matéria modificável do outro, o que cada um pode real­
mente fazer, na medida em que, como ser racional, pode pôr-se
a si mesmo, segundo a sua liberdade, como determinando o não­
-Eu, e pode prescrever a si mesmo a faculdade de modificar a
matéria em geral. Os estados imperfeitos são imperfei�os pelo
facto de terem de fixar um qualquer oposto; são inconsequentes
porque não levam a cabo a sua oposição através de todas as re­
ferências; mas para t9rnar infinita a oposição que cinde absolu­
tamente o homem num ser racional e numa matéria modificável,
e para que a determinação não tenha fim, esta consequência
suprime-se a si mesma, e aquela inconsequência é o que há de
mais perfeito em estados imperfeitos.

papel consumido. Este papel não será falsificado, pois para urna falsa .letra
de câmbio basta apenas um passaporte, para o qual devem ser tornadas
tantas disposições e unir tantos artifícios. » {É, portanto, postulado que num
estado bem organizado poderia apenas surgir a necessidade de um passe
falso, por conseguinte, que fábricas de passes falsos, tal como são por vezes
descobertas nos estados vulgares, não encontrariam nenhum comprador.
Para a prevenção da imitação do papel privilegiado agiria também urna
outra organização do estado, que, de acordo com a p. 152, seria encontra­
da «para a impedir a moeda falsa».) «Na medida em que o estado tem o
monopólio dos metais, etc., não deve entregá-la aos pequenos comercian­
tes, sem comprovar com quem e para que utilização o anteriormente rece­
bido seria gasto.» Cada cidadão ocupará, tal corno entre os militares prus­
s i a nos um estrangeiro tem apenas um confidente para fiscalizar, não apenas
u m , mas pelo menos urna meia dúzia de homens para fiscalizar, prestar
l'on tas, etc., cada um destes vigilantes terá, por sua vez, outros tantos, e
. 1 ssim a té ao i n finito; tal corno cada um d os mais simples negócios dá ori-
1-11•111 a u m a q u a ntidade i n fin i ta de negócios.
O direito natural, através da oposição absoluta do impulso
puro e do impulso natural, torna-se a exposição do domínio
completo do entendimento e da escravidão completa da vida:
uma construção na qual a razão não toma qualquer parte e que,
por conseguinte, rejeita, porque ela tem de se encontrar, da for­
ma mais expressa, na organização mais perfeita que pode dar a
si mesma, a saber, na autoconfiguração sob a forma de um
povo. Porém, aquele estado do entendimento não é uma orga­
nização, mas sim uma máquina, o povo não é o corpo orgânico
de uma vida comum e rica, mas sim uma multiplicidade
atomística e pobre de vida, cujos elementos são substâncias
absolutamente opostas, às vezes uma quantídade de pontos, os
seres racionais, outras vezes matérias modificáveis de diversos
modos pela razão, quer dizer, nesta forma, pelo entendimento;
a unidade desses elementos é um conceito, a sua ligação é um
dominar interminável. Esta absoluta substancialidade dos pon­
tos funda um sistema da atomística da filosofia prática, no qual,
tal como na atomística da natureza, um entendimento estranho
aos átomos torna-se lei, que no plano prático se chama direito;
um conceito da totalidade, que se opõe a cada acção - pois cada
uma é uma acção determinada -, a deve determinar, portanto,
deve matar o que há de vivo nela, a saber, a verdadeira iden­
tidade. Fiat iustitia, pereat mundus, é a lei, mas nem sequer no
sentido em que Kant a interpretou 43 : aconteça o direito, mes­
mo que desapareçam todos os malandros do mundo, mas sim:
o direito tem de acontecer, mesmo que, para tal, tivessem de
ser exterminados, a ferro e fog o, como se costuma dizer, a con­
fiança, o prazer e o amor, todas as potências de uma autêntica
identidade moral.
Passamos agora para o sistema da comunidade ética humana.
A Doutrina da Ética tem em comum com o direito natural o
facto de a ideia dominar absolutamente o impulso, a liberdade,
a natureza; mas distinguem-se no facto de o direito natural ter
como finalidade o domínio dos seres livres sob o conceito uni­
versal, de modo que o abstracto fixado da vontade geral perma­
nece também fora do indivíduo e tem poder sobre ele. Na dou­
trina da ética, o conceito e a natureza devem ser postos e
unificados numa e precisamente a mesma pessoa; no estado, deve
dominar apenas o direito, no domínio da moralidade só o
59 dever 1 deve ter poder, na medida em que é reconhecido como
lei pela razão do indivíduo.
Ser-se senhor e escravo de si mesmo parece, na verdade, ser
preferível à situação na qual o homem é o escravo de um estra­
nho. Simplesmente, a relação da liberdade e da natureza, se se
deve tomar, na moralidade, um domínio e uma escravidão sub­
jectivas, uma submissão própria da natureza será muito mais anti­
natural do que a relação no direito natural, no qual o que orde­
na e tem poder aparece como um outro, situado fora do
indivíduo vivo. Nesta relação do direito natural, o vivo tein con­
tinuamente uma autonomia fechada em si mesma; o que não se
encontra unido nele, ele exclui de si; o que se opõe é um poder
estranho. E quando se perde também a crença na unidade do
interior com o exterior, pode todavia subsistir a crença na sua
concordância íntima, uma identidade sob a forma de carácter; a
natureza íntima é fiel a si mesma. Mas quando, na doutrina dos
costumes, o que ordena: é transferido para o próprio homem e
quando nele um ordenante e um subordinado são absolutamen­
te opostos, a harmonia interna é destruída; a desunião e a cisão
absoluta constituem a essência do homem. Ele tem de procurar
uma unidade, mas, na não-identidade absoluta subjacente, resta­
-lhe apenas uma unidade formal.
A unidade formal do conceito, que deve dominar, e a
multiplicidade da natureza, contradizem-se, e o conflito entre
ambas não tarda em mostrar um significativo estado de mal.
O conceito formal deve dominar; mas ele é um vazio e deve ser
preenchido pela referência ao impulso e, assim, surge uma
multiplicidade infinita de possibilidades para agir. Mas se a ciên­
cia o mantém na sua unidade, ela não realizou nada através de
um tal princípio vazio e formal. O Eu deve determinar-se a si
mesmo de acordo com a ideia de uma auto-actividade absoluta
no sentido de suprimir o mundo objectivo, deve ter causalidade
sobre o Eu objectivo, entra, portanto, em relação com ele .
O impulso ético toma-se um impulso misturado 44 e, assim, tão
múltiplo quanto o impulso objectivo: daqui resulta, então, uma
grande multiplicidade de deveres. Tal multiplicidade pode ser
g randemente diminuída quando, como Fichte, se permanece na
u n iversalidade dos conceitos; mas, então, tem-se apenas, de novo,
pri ncípios formais. A oposição de múltiplos deveres tom.a o nome
de col isão e traz consigo uma contradição significativa. Quando
os deveres deduzidos são absolutos, não podem colidir; mas coli­
l l l' m tll'ccssaria mente, porque são opostos; devido à sua idêntica
a hso l u t idndc, n cscolh n é possível e, por causa da colisão, neces-
sária; nada permite decidir senão o arbítrio. Se não dev l�SSl' ex i s t i r
qualquer arbítrio, não deveriam os deveres permanecer n o mesmo
plano de absolutidade; um deveria, como se tem de dizer, ser mais
60 absoluto do que os outros, o que contradiz o conceito, 1 pois cada
dever é, como dever, absoluto. Mas, porque temos de lidar com
esta colisão, portanto, abandonar a absolutidade e um dever ter
preferência relativamente aos outros, tudo depende agora, para
que se possa atingir a autodeterminação, de, através de uma ava­
liação, estabelecer a primazia de um conceito de dever sobre o
outro e, entre os deveres condicionados, escolher segundo o me­
lhor exame. Se o arbítrio e a contingência das inclinações são ex­
cluídos na autodeterminação da liberdade pelo conceito supremo,
então, a autodeterminação transita, de agora em diante, para a
contingência do exame e, com isso, para a inconsciência do móbil
de um exame contingente. Se Kant, na sua doutrina dos costumes,
acrescenta a cada dever exposto absolutamente perguntas
casuísticas, e se não se quer acreditar que ele, com isso, quis
mostrar o seu desprezo p ela absolutidade do dever exposto, deve­
mos aceitar que ele apontou, antes, para a necessidade de uma
casuística no que respeita à doutrina dos costumes, e, com isso,
para a necessidade de não confiar no seu próprio exame, que é,
na verdade, algo de totalmente contingente. Só que a contingência
é o que deve ser suprimido por uma doutrina dos costumes; trans­
formar a contingência das inclinações na contingência do exame
não pode satisfazer o impulso ético; que busca a necessidade.
Em tais sistemas da doutrina dos costumes e do direito na­
tural, a polaridade fixa e absoluta da liberdade e da necessidade
não permite pensar em nenhuma síntese nem em nenhum ponto
de indiferença; a transcendentalidade é totalmente perdida no
fenómeno e no seu poder, o entendimento; nela, a identidade
absoluta não se encontra nem se produz. A oposição permanece
também absolutamente fixada, mesmo se embelezada pelo pro­
gresso infinito. Ela não se pode verdadeiramente dissolver, nem
para o indivíduo, no ponto de indiferença da beleza do espírito
e da obra, nem para a comunidade verdadeiramente viva dos
indivíduos, numa colectividade.
Na verdade, Fichte fala também do sentido estético - quando
menciona, entre os deveres dos diferentes estados, os deveres dos
artistas estéticos, como de um último complemento da moral -
como sendo um elo de ligação entre o entendimento e o coração; e
porque o artista nem se volta somente para o entendimento, tal

90
como o sá bio, tll'm somente para o coração, como o doutrinador
popu lar, ma s sim para a totalidade do espírito na unificação das
suas faculdades 45, prescreve ao artista estético e à formação estética
uma relação altamente eficaz no incremento dos fins da razão 46 .
Acima de tudo, o facto de não se compreender como na ciên­
cia que se baseia numa oposição absoluta, tal como este sistema
da doutrina dos costumes, se pode falar de um elo de unifica-
ção 1 entre o entendimento e o coração, da totalidade do espírito 61
- pois a determinação absoluta da natureza por meio de um
conceito significa o domínio absoluto do coração pelo entendi­
mento, condicionado pela unificação suprimida -, mostra-o já o
lugar perfeitamente subalterno que ocupa a formação estética,
quão pouco em geral se conta com ela para o acabamento do
sistema. Indicou-se, aí, que a arte deve ter uma relação altamen-
te eficaz com o incremento dos fins da razão, na medida em que
prepara o solo para a moralidade, de tal modo que, quando a
moralidade surge, encontra já metade do trabalho realizado, no­
meadamente, a libertação dos laços da sensibilidade.
É espantoso como Fichte se exprime de forma excelente acer­
ca da beleza, mas inconseque:i;i.temente em relação ao seu siste­
ma, e, por isso, não faz em geral nenhuma aplicação dela relati­
vamente a este, e, imediatamente, em relação à representação da
lei dos costumes, uma falsa aplicação.
A arte, exprime-se Fichte, transforma o ponto de vista trans­
cendental em ponto de vista comum, na medida em que, para àquele, o
mundo é feito, para este, é dado; mas, do ponto de vista estético, é dado
tal como é feito. Através da faculdade estética, há uma verdadeira
unificação do produzir da inteligência e do produto que aparece
a ela como dado, do Eu que se reconhece como ilimitado e ao
mesmo tempo como pondo a limitação, ou melhor, uma unifica­
ção da inteligência e da natureza, a qual, justamente em prol des­
ta unificação possível, é ainda algo mais do que um produto da
inteligência. O reconhecimento da unificação estética do produzir
e do produto é algo de completamente diferente da posição do
dever absoluto e do esforço, e do progresso infinito, conceitos que,
na medida em que se reconhece aquela suprema unificação, se
anunciam como antíteses, ou apenas como sínteses de esferas mais
subalternas e, com isso, carenciadas de algo superior.
O ponto de vista estético é, além disso, descrito desta forma:
o mundo dado, a natureza, tem dois lados; ela é o produto da
nossa limitação e o produto do nosso agir livre e ideal; cada figu-
ra no espaço deve ser vista como exteriorização da íntima pleni­
tude e da força do corpo que tem tal figura. Quem segue apenas
o primeiro ponto de vista, vê apenas formas desfiguradas, com­
primidas, angustiadas; vê apenas a fealdade. Quem segue o últi­
mo, vê a plenitude poderosa da natureza, a vida e a ascensão; vê
a beleza 47 . O agir da inteligência no direito natural produzira a
natureza apenas como matéria modificável; não era, portanto, um
agir livre e ideal, um agir da razão, mas sim do entendimento.
O ponto de vista estético da natureza é agora aplicado também às
leis morais e, certamente, à natureza não seria permitido, antes
das leis morais, ter a primazia da capacidade de um ponto de vista
belo. A lei moral comanda absolutamente e subjuga todas as inclinações
naturais. Quem a vê deste modo, comporta-se diante dela como um es-
62 cravo. Mas, todavia, a lei moral 1 é, ao mesmo tempo, o próprio Eu, ela
surge da profundidade íntima da nossa própria essência; e, quando lhe
obedecemos, obedecemos todavia apenas a nós mesmos. Quem a vê deste
modo, vê-a esteticamente 48 . Que nós obedecemos a nós mesmos sig­
nifica que a nossa inclinação natural obedece à nossa lei moral;
mas na intuição estética da natureza, vista como exteriorização da
íntima plenitude e força dos corpos, não surge uma tal separação
do obedecer, tal como na eticidade, de acordo com este sistema,
intuímos no obedecer a si mesmo a inclinação natural limitada pela
razão vizinha, o impulso submetido ao conceito. Este ponto de
vista necessário sobre a eticidade, em vez de ser estético, deve ser
justamente aquele que mostra a forma desfigurada, angustiada e
comprimida, a saber, a fealdade.
Se a lei moral incrementa apenas a autonomia como um de­
terminar de acordo com e através de conceitos; e se a natureza
apenas pode justificar-se por meio de uma limitação da liberdade
de acordo com o conceito de liberdade de muitos seres racionais; e
se estes dois modos comprimidos constituem o meio supremo pelo
qual o homem se constitui como homem; então, não se pode en­
contrar lugar para o sentido estético, tomado no seu âmbito mais
largo - a saber, como auto-configuração completa da totalidade
na unificação da liberdade e da necessidade, da consciência e do
sem consciência -, nem na medida em que se expõe no puro gozo
ilimitado de si mesmo, nem no seu aparecimento limitado, na ju­
risdição civil e na moralidade. Pois, no sentido estético, todo o
determinar por conceitos está de tal modo suprimido que, para
ele, esta essência ao modo do entendimento, que consiste em
dominar e determinar, quando é encontrada, é feia e odiosa .
COMPARAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA 62
DE SCHELLING E O DE FICHTE

Como carácter fundamental do princípio de Fichte mostrou-


-se que o sujeito objecto sai desta identidade e não pode mais
=

regressar a ela, pois o que-estabelece-a-diferença 49 foi transferi-


do para a relação de causalidade. O princípio de identidade não
se torna princípio do sistema; mal o sistema se começa a confi­
gurar, a identidade é abandonada. O próprio sistema é uma
quantidade consequente de finitudes que relevam do entendi­
mento, que não consegue captar a identidade originária 1 no foco 63
da totalidade, como auto-intuição absoluta. O sujeito = objecto
torna-se, por isso, subjectivo, e não é capaz de suprimir esta
subjectividade e pôr-se objectivamente a si mesmo.
O princípio de identidade é o princípio absoluto da totalidade
do sistema schellinguiano; filosofia e sistema coincidem; a identi-
dade não se perde nas partes, muito menos ainda nos resultados.
)
Para que a identidade absoluta seja o princípio de todo um
sistema é necessário que o sujeito e o objecto sejam ambos postos
como sujeito-objecto. No sistema de Fichte, a identidade consti­
tuiu-se apenas como sujeito-objecto subjectivo. Isto necessitou,
como complemento, de um sujeito-objecto objectivo, de modo que
o absoluto se expõe em cada um dos dois, apenas se sente com­
pleto nos dois como síntese suprema na negação de ambos, na
medida em que são opostos, engloba os dois em si como o seu
ponto absoluto de indiferença, engendra-os a ambos e engendra­
-st• a partir de ambos.
Quando a supressão da cisão é posta como tarefa formal da
filosofia, a razão pode procurar a solução da tarefa do seguinte
modo: aniquila um dos opostos e eleva o outro ao infinito. Foi
isto o que, de facto, aconteceu no sistema de Fichte; mas, deste
modo, a oposição permanece, pois aquele que é posto como
absoluto é condicionado pelo outro e, tal como ele permanece,
também o outro permanece. Para suprimir a cisão, ambos os
opostos, o sujeito e o objecto, teriam de ser suprimidos; eles são
suprimidos como sujeito e objecto na medida em que são postos
como idênticos. Na identidade absoluta, o sujeito e o objecto
estão relacionados um com o outro e, com isso, são aniquilados;
nesta medida, nada está presente para a reflexão e para o saber.
O filosofar que não pode atingir um sistema vai apenas até aí;
ele satisfaz-se com o lado negativo, que submerge todo o finito
no infinito; poderia perfeitamente surgir também como saber, e
é uma contingência subjectiva se o facto de a necessidade de um
sistema está ou não ligado a ele. Mas se este mesmo lado nega­
tivo é o princípio, tal filosofar não pode alcançar o saber, pois
cada saber parcial pertence, imediatamente, à esfera da finitude.
O entusiasmo agarra-se a esta intuição da luz sem cor; encontra­
-se nele uma multiplicidade apenas na medida em que combate
o múltiplo. Ao entusiasmo falta a consciência de si mesmo de
que a sua contracção está condicionada por uma expansão; ele é
unilateral, pois ele próprio se fixa num oposto e transforma a
identidade absoluta num oposto. Na identidade absoluta, o su­
jeito e o objecto são suprimidos; mas, porque eles se encontram
na identidade absoluta, subsistem ao mesmo tempo, e é esta
mesma subsistência que torna possível o saber, pois no saber é,
em parte, posta a separação entre ambos. A actividade separadora
é o reflectir; na medida em que é considerada por si mesma, ela
64 suprime a identidade e o J absoluto, e cada conhecimento seria
pura e simplesmente um erro, porque nele existe uma separação.
Este aspecto, pelo qual o conhecer é um separar e o seu produto
é algo de finito, torna cada saber um saber limitado e, com isso,
uma falsidade; mas, na medida em que cada saber é, ao mesmo
tempo, uma identidade, não existe nenhum erro absoluto. Assim
como se faz valer a identidade, assim também se deve fazer valer
a separação. Na medida em que a identidade e a separação são
opostas uma à outra, são ambas absolutas; e se a identidade deve
ser fixada pelo facto de a cisão ser aniquilada, elas permanecem
opostas entre si. A filosofia deve conceder o seu direito à sepa-

94
ração entre sujeito e objecto; mas, na medida em que os pÕl'
igualmente de forma absoluta com a identidade oposta à se p a ra ­

ção, pô-los apenas de forma condicionada, tal como uma tal iden­
tidade - que é condicionada pela aniquilação dos opostos - é
também apenas relativa. Mas o próprio absoluto é, por isso, a
identidade da identidade e da não-identidade; o opor e o ser-um
coexistem nele.
Na medida em que a filosofia separa, não pode pôr os sepa­
rados sem os pôr no absoluto; pois, de outro modo, eles são
puramente opostos, que não têm nenhuma outra característica
senão a de um não ser enquanto o outro é. Esta referência ao
absoluto não é, de novo, a supressão de ambos, pois assim não
seriam separados; pelo contrário, devem permanecer como sepa­
rados e não perder este carácter, na medida em que são postos
no absoluto e o absoluto é posto neles. E, de facto, ambos têm
de ser postos no absoluto: que direito teria um relativamente ao
outro? Em ambos encontra-se, não apenas o mesmo dire ito, mas
também a mesma necessidade; pois se apenas um estivesse rela­
cionado com o absoluto e o outro não, a essência de ambos seria
posta de forma diferente e a sua unificação - portanto, a tarefa
da filosofia que consiste em suprimir a cisão - seria impossível.
Fichte pôs apenas um dos opostos no absoluto ou como o ab­
soluto; o direito e a necessidade reside, para ele, na consciência-de­
·si, pois apenas esta é um pôr-se-a-si-mesmo, um sujeito = objec­
to, e esta consciência-de-si não é inicialmente relacionada com o
absoluto como algo de mais elevado, mas é ela própria o abso­
luto, a identidade absoluta. O seu direito mais elevado em ser
posta como o absoluto consiste precisamente no facto de ela se
pôr a si mesma e o objecto .não, o qual é simplesmente posto por
meio da consciência. Mas, que esta posição do objecto é apenas
contingente mostra-se a partir da contingência do sujeito-objecto,
na medida em que este é posto como consciência-de-si; pois este
sujeito-objecto é ele próprio um condicionado. O seu ponto de
v ista não é, por conseguinte, o supremo; ele é a razão posta
numa forma limitada, e só a partir do ponto de vista desta for-
ma limitada o objecto aparece como algo que não se 1 determina 65
a si mesmo, como algo de absolutamente determinado. Por isso,
·
a m bas as formas têm de ser postas no absoluto ou o absoluto
l' m a m bas as formas e, ao mesmo tempo, ambas permanecer
Sl'pa ra d as; com isto, o sujeito é sujeito-objecto subjectivo, e o
objl•cto é sujei to-objecto objectivo. E de agora em diante, uma vez

- - - - -- - - - - ---
posta uma dualidade, cada um dos opostos é em si mesmo um
oposto e a divisão prossegue até ao infinito; cada parte do sujei­
to e cada parte do objecto é, ela própria, no absoluto, uma iden­
tidade do sujeito e do objecto: cada conhecimento é uma verda­
de, tal como cada grão de poeira é uma organização.
Só na medida em que o próprio objecto é um sujeito-objecto
é que o Eu = Eu é o absoluto. Então, para que o Eu = Eu não se
transforme em Eu deve ser igual a Eu, o Eu objectivo deve ser,
ele próprio, sujeito = objecto.
Na medida em que tanto o sujeito como o objecto são um
sujeito-objecto, a oposição do sujeito e do objecto é uma oposi­
ção real; pois ambos são postos no absoluto e têm através dele
realidade. A realidade dos opostos e a oposição real encontra-se
apenas por meio da identidade de ambos *. Se o objecto é um
objecto absoluto, é um objecto meramente ideal, tal como a opo­
sição é meramente ideal. Pelo facto de o objecto ser algo de
meramente ideal e não se encontrar no absoluto, o sujeito torna­
-se também algo de meramente ideal so, e tais factores ideais são
o Eu como pôr-se-a-si-mesmo e o não-Eu como oposto a si. De
nada ajuda o facto de o Eu ser vida e agilidade puras, de ele
próprio ser fazer e agir, o mais real de tudo, o mais imediato na
consciência de cada um; mal ele é oposto absolutamente ao ob­
jecto, deixa de ser algo de real, mas apenas algo de pensado, um
puro produto da reflexão, uma mera forma do conhecer. E a
partir de meros produtos da reflexão não se pode construir a
identidade como totalidade, pois eles surgem por abstracção da
identidade absoluta que, em relação a eles, imediatamente, só se
pode comportar como aniquiladora, não como construtora. Tais
produtos da reflexão são, precisamente, infinitude e finitude,
indeterminidade e determinidade, etc. Do infinito não há nenhuma

* Platão exprime do seguinte modo a oposição real, por meio da iden­

tidade absoluta: «Ü elo verdadeiro e belo é aquele que se transforma a si


e ao ligado num só. Pois, quando de quaisquer três números, medidas ou
forças, o primeiro está para o do meio tal como o do meio está para o
último, e vice-versa, o último está para o do meio tal como o do meio para
o primeiro - e, de seguida, o do meio tornou-se o primeiro e o último, e
o primeiro e o último tornaram-se o do meio e vice-versa -, então, eles
tornam-se necessariamente no mesmo; mas, os que estão uns d i a nte dos
outros, são todos um só.» (Timeu, 31 c-32 a.)
passagem para o finito, do indeterminado não há nenhuma pm1·
sagem para o determinado. A passagem, tal como a sín tl'Sl',
toma-se uma antinomia; a reflexão, a separação absoluta (e é e l a
que aqui dá a lei) não pode fazer surgir uma síntese do fini to e
do infinito, do determinado e do indeterminado; 1 ela tem apc- ""
nas o direito de fazer valer uma unidade formal, na medida em
que a cisão entre infinito e finito, que é obra sua, foi admitida e
aceite; mas a razão sintetiza-a na antinomia e, assim, aniquila-a .
Se uma oposição ideal é obra da reflexão, que abstrai totalmente
da identidade absoluta, uma oposição real é, pelo contrário, obra
da razão, que põe os opostos, identidade e não-identidade, como
idênticos, não meramente na forma do conhecimento, mas tam­
bém na forma do ser. E é somente na forma de uma tal oposição
real que o sujeito e o objecto são ambos postos como sujeito­
-objecto, subsistindo ambos no absoluto, estando em ambos o
absoluto, portanto, havendo em ambos realidade. Por isso, tam­
bém somente na oposição real o princípio de identidade é um
princípio real; se a oposição for ideal e absoluta, a identidade
permanece um princípio meramente formal, ela é apenas posta
numa das formas opostas e não se pode fazer valer como sujeito­
-objecto. A filosofia cujo princípio é formal toma-se, ela própria,
numa filosofia formal, tal como Fichte diz também algures que,
para a consciência-de-si de Deus - uma consciência na qual pelo
ser-posto do Eu tudo seria posto -, o seu sistema teria apenas
uma correcção formal 51 . Quando, pelo contrário, a matéria, o
objecto, é ela própria um sujeito-objecto, a separação entre a for­
ma e a matéria pode ser posta de lado, e o sistema, tal como o
seu princípio, não é mais meramente formal, mas, ao mesmo
tempo, material e formal; tudo é posto por meio da razão abso­
luta 52 . Só na oposição real o absoluto pode pôr-se na forma do
sujeito ou do objecto, o sujeito transitar para o objecto ou o ob­
jecto para o sujeito, segundo a essência: o sujeito tomar-se a si
mesmo objectivo, porque ele é originariamente objectivo, ou
porque o objecto é ele próprio sujeito-objecto, ou o objecto tor­
n a r-se subjectivo, porque é originariamente sujeito-objecto.
Somente no facto de ambos serem sujeito-objecto consiste a ver­
dadeira identidade e, ao mesmo tempo, a verdadeira oposição,
de que ambos são capazes. Se ambos não forem sujeito-objecto,
n oposição é ideal e o princípio de identidade é formal. Com uma
i lkn tidade formal e uma oposição ideal não é possível nenhuma
o u t ra s ín tese senão uma síntese incompleta, quer dizer, a iden-
tidade, na medida em que sintetiza os opostos, é apenas um
quantum, e a diferença é qualitativa, à maneira das categorias,
nas quais a primeira, por exemplo, a de realidade, é posta ape­
nas quantitativamente na terceira, tal como a segunda. Mas, ao
invés, quando a oposição é real, ela é apenas quantitativa 53 ; o
princípio é ao mesmo tempo ideal e real, ele é a única qualida­
de, e o absoluto, que se reconstrói a si mesmo a partir da dife­
rença quantitativa, não é um quantum, mas sim uma totalidade. J
67 Para pôr a verdadeira identidade do sujeito e do objecto,
ambos serão postos como sujeito-objecto; e cada um por si é, de
agora em diante, capaz de ser objecto de uma ciência particular.
Cada uma destas ciências exige uma abstracção relativamente ao
princípio da outra 54. No sistema da inteligência, os objectos não
existem em si, a natureza tem apenas uma subsistência na cons­
ciência; abstrair-se-á do facto de o objecto ser uma natureza e de
que a inteligência como consciência está condicionada por isso.
No sistema da natureza esquecer-se-á que a natureza é algo de
sabido; as determinações ideais que a natureza recebe na ciência
são-lhe, ao mesmo tempo, imanentes. Mas a abstracção recíproca
não é uma unilateralidade das ciências, não é uma abstracção
subjectiva dos princípios reais da outra, que seria feita em prol
do saber e que desapareceria num ponto de vista superior, na
medida em que, considerados em si mesmos, os objectos da cons­
ciência que, para o idealismo, não são senão produtos da cons­
ciência, seriam todavia algo de absolµtamente diferente e teriam
uma subsistência absoluta fora da essência da consciência; e a
natureza, pelo contrário, que na sua ciência se torna determinante
de si mesma e posta em si mesma de forma ideal, seria, conside­
rada em si mesma, apenas objecto, e toda a identidade que a
razão nela reconhece seria apenas uma forma que lhe é empres­
tada pelo saber. Não se abstrairá do princípio interno, mas ape­
nas da forma peculiar da outra ciência, para conservar cada uma
de forma pura, quer dizer, a íntima identidade de ambas; e a
abstracção do que é peculiar na outra é uma abstracção da
unilateralidade. A natureza e a consciência-de-si são, em si, tal
como foram postas pela especulação na ciência própria de cada
uma; são, por isso, dessa forma em si mesmas porque é a razão
que as põe, e a razão põe-nas como sujeito-objecto, portanto,
como o absoluto, e o único em-si é o absoluto. Ela põe-nas como
sujeito-objecto pois é ela que, como natureza e como inteligên­
cia, as produz e se conhece a si mesma nelas.
Em prol da verdadeira identidade, na qual o sujeito e o ob­
jecto são postos, nomeadamente, na medida em que ambos são
sujeito-objecto, e porque a sua oposição é, por isso, real, e por­
tanto um é capaz de transitar para o outro, o ponto de vista
diferente de cada ciência não contradiz o da outra. Se o sujeito
e o objecto fossem absolutamente opostos e apenas um fosse
sujeito-objecto, as duas ciências não poderiam permanecer uma
ao lado da outra com igual dignidade; só um dos pontos de vista
seria o da razão. As duas ciências são apenas possíveis na medi-
da em que uma e a mesma coisa é, em ambas, construída na
forma necessária da sua existência. As duas ciências parecem
contradizer-se porque em cada uma delas o absoluto é posto
numa forma oposta. Mas a sua contradição não se suprime pelo
facto de apenas uma delas ser afirmada como a única ciência 1 e 6R
aniquilar a outra a partir do seu ponto de vista; o ponto de vista
mais elevado, que em verdade suprime a unilateralidade de
ambas as ciências, é aquele que reconhece nas duas predsamen-
te o mesmo absoluto. A ciência do sujeito-objecto subjectivo
chamou-se, até ao momento, filosofia transcendental; a do sujeito­
-objecto objectivo, chamou-se filosofia da natureza. Na medida
em que ambas se opõem, o subjectivo é primeiro naquela, e o
objectivo é primeiro nesta. Em ambas, o subjectivo e o objectivo
são postos numa relação de substancialidade; na filosofia trans­
cendental, o sujeito, como inteligência, é a substância absoluta, e
a natureza é o objecto, um acidente; na filosofia da natureza, a
natureza é a substância absoluta, e o sujeito, a inteligência, ape­
nas um acidente. O ponto de vista mais elevado não é, então,
nem aquele no qual uma ou outra ciência é suprimida e, ou
apenas o sujeito, ou apena.s o objecto, é afirmado como absoluto,
nem também aquele no qual ambas as ciências são confundidas.
No que diz respeito à confusão, confundir aquilo que per­
tence à ciência da natureza com o que pertence ao sistema da
inteligência dá as hipóteses transcendentes, que podem ofuscar
por meio de uma falsa aparência de unificação do consciente e
do sem consciência; ao invés, o elemento inteligente enquanto tal,
misturado na doutrina da natureza, dá o hiperfísico, em parti­
cular as explicações teleológicas. Ambos os erros da confusão par­
tem da tendência para explicar, a favor da qual a inteligência e
a natureza são postas em relação de causalidade, uma como
fu ndamento, a outra como fundada, relação pela qual apenas a
o posição é fixada como absoluta; por meio da aparência d e u m a
tal identidade formal, como é a identidade causal, o caminho
para a absoluta unificação é totalmente cortado.
O outro ponto de vista, pelo qual o contraditório em ambas
as ciências deve ser suprimido, seria aquele que não deixasse
uma ou outra ciência valer como ciência do absoluto. O dualismo
pode perfeitamente seguir-se da ciência da inteligência, deixan­
do ainda as coisas valerem como essências próprias; a favor dis­
to, pode ainda apropriar-se da ciência da natureza como um tal
sistema da essência própria das coisas; cada ciência valeria para
ele aquilo que quiser; elas têm pacificamente lugar uma ao lado
da outra. Mas, com isso, não se repararia que a essência de
ambas as ciências é serem ciências do absoluto, pois o absoluto
não é uma coisa ao lado da outra.
Há ainda um outro ponto de vista, segundo o qual nem uma
nem a outra ciência valeriam como uma ciência do absoluto,
69 nomeadamente, aquele 1 segundo o qual o princípio de uma de­
las, posto no absoluto, ou o absoluto posto no aparecimento deste
princípio, seria suprimido. Nesta perspectiva, o ponto de vista
mais espantoso é o do habitualmente chamado idealismo trans­
cendental; afirmou-se que esta ciência do sujeito-objecto subjecti­
vo é, ela própria, uma das ciências integrantes da filosofia, mas
uma delas apenas. Mostrou-se a unilateralidade desta ciência,
quando se afirmou a si mesma como cieência x:a:t' él;oxiív, e a
figura que tem a natureza a partir dela. Aqui falta ainda consi­
derar a forma que recebe a ciência da natureza, quando é erigida
a partir deste ponto de vista.
Kant reconhece uma natureza na medida em que põe o ob­
jecto como um indeterminado (por meio do entendimento), e
apresenta a natureza como um sujeito-objecto na medida em que
considera o produto da natureza como um fim da natureza, fi­
nalizado sem conceito de fim, necessário sem mecanismo, identi­
camente conceito e ser. Mas, ao mesmo tempo, esta visão da
natureza deve valer apenas teleologicamente, quer dizer, apenas
como máxima do nosso entendimento humano limitado e pen­
sando discursivamente, em cujos conceitos universais não estão
contidos os fenómenos particulares da natureza; por meio deste
modo humano de considerar, nada deve ser expresso acerca da
realidade da natureza; o modo de considerar permanece, por­
tanto, inteiramente subjectivo e a natureza como algo de pura­
mente objectivo, um mero pensado. A síntese da natureza deter­
minada pelo entendimento e, ao mesmo tempo, indeterm inada,

l UU
num tal entendimento sensível, deve, na verdade, · permanccL•r
uma mera ideia; para nós homens deve, na verdade, ser impossí­
vel que a explicação por meio do mecanismo concorde com a
conformidade a fins. Estes pontos de vista críticos, altamente
subordinados e irracionais, elevam-se todavia, mesmo quando
opõem simplesmente uma à outra a razão humana e a razão
absoluta, à ideia de um entendimento sensível, quer dizer, à ra­
zão; não deve portanto em si, quer dizer, na razão, ser impossí­
vel que o mecanismo natural e a conformidade natural a um fim
concordem. Mas Kant não abandonou a diferença entre um em si
possível e um real, nem elevou à realidade a ideia suprema ne­
cessária de um entendimento sensível, e por isso, para ele, na
sua ciência da natureza, por um lado, é impossível em geral a
intelecção da possibilidade das forças fundamentais, por outro,
uma tal ciência da natureza, para a qual a natureza é a matéria,
quer dizer, algo de absolutamente oposto, mas não determinante
de si mesmo, pode construir apenas uma mecânica. Com a po­
breza das forças de atracção e de repulsão 55 , tal ciência tornou
já a matéria demasiado rica; pois a força é um interior que pro­
duz um exterior, é um pôr-se-a-si-mesmo Eu, e, de um ponto
=

de vista puramente idealista, tal coisa não pode caber à matéria.


Kant concebe a matéria meramente como o 1 objectivo, como o 70
oposto ao Eu; para ele, aquelas forças são, não apenas supérfluas,
mas também, ou meramente ideais - e então não são forças -,
ou transcendentes. Não há, para ele, nenhuma construção di­
nâmica dos fenómenos, mas apenas matemática 5 6. A efec­
tivação dos fenómenos, que têm de ser dados, por meio das
categorias, pode certamente fornecer muitos conceitos correc­
tos, mas nenhuma neces!:!idade para os fenómenos, e a cadeia
da necessidade é o elemento formal da científicidade da cons­
trução . Os conceitos permanecem algo de ocasional para a
natureza, tal como a natureza permanece algo de ocasional
para os conceitos. As sínteses correctamente construídas por
meio das categorias não teriam, por isso, necessariamente a
sua comprovação na própria natureza; a natureza pode ape­
nas oferecer jogos múltiplos, que poderiam valer como esque­
mas contingentes para as leis do entendimento : ou seja, como
l'Xemplos, cujo aspecto peculiar e vivo seria justamente afasta-
do n a medida em que apenas as determinações da reflexão
fossem neles reconhecidas. Ao invés, as categorias são apenas
L'sq u c m a s ind i gentes da natureza 57.
Se a natureza for apenas matéria e não sujeito-objecto, não é
possível nenhuma tal construção científica da mesma, construção
essa para a qual o que conhece e o conhecido devem ser um só.
Uma razão que se transformou a si mesma em reflexão por uma
oposição absoluta ao objecto, apenas por meio da dedução pode,
a priori, dizer mais da natureza do que o seu carácter geral de
matéria; esta permanece como subjacente, as múltiplas determi­
nações posteriores são postas para e por meio da reflexão. Por
isso, uma tal dedução tem a aparência de um apriorismo na
medida em que põe os produtos da reflexão, a saber, os concei­
tos, como algo de objectivo; porque não põe mais nada, perma­
nece certamente imanente. De acordo com a sua essência, uma
tal dedução identifica-se com aquele ponto de vista que reconhe­
ce na natureza apenas uma conformidade a fins externa. A dife­
rença é apenas que aquela dedução parte mais sistematicamente
de um ponto determinado, por exemplo, a vida dos seres racio­
nais; em ambas, a natureza é absolutamente determinada por
algo que lhe é estranho, a saber, pelo conceito. O ponto de vista
teleológico, que reconhece a natureza apenas como determinada
por fins externos, tem, do ponto de vista da completude, um
privilégio, na medida em que toma a multiplicidade da natureza
tal como ela é dada empiricamente. Ao invés, a dedução da
natureza, que parte de um ponto determinado e que, por causa
da incompletude deste, postula ainda mais qualquer coisa - é
nisto que consiste a dedução -, está imediatamente satisfeita
com o que foi postulado, que deve imediatamente realizar tudo
o que o conceito exige. Se um objecto real da natureza pode
sozinho realizar o exigido, isso pouco lhe importa, e só o pode
encontrar por meio da experiência; se o objecto imediatamente
postulado não se encontrar na natureza, será deduzido um ou­
tro, e assim por diante, até que o fim se encontre preenchido.
A ordenação destes objectos deduzidos depende dos fins deter­
minados dos quais se partiu; e só na medida em que eles se re-
71 !acionam por consideração a 1 este fim é que têm uma conexão
entre si. Mas, propriamente, eles não são capazes de nenhuma
conexão interna; pois se o objecto que devia ser imediatamente
deduzido se mostrar, na experiência, como insuficiente para o
conceito que deve ser preenchido, por meio deste único objecto,
porque ele é exteriormente determinável de modo infinito,
realizou-se a dispersão na infinitude: uma dispersão que efecti­
vamente só seria evitada pelo facto de a dedução traça r com os

1 U2
seus múltiplos pontos um círculo, em cujo íntimo ponto méd io,
porém, ela não é capaz de se colocar, pois, desde o início, é alg o
de exterior. Para o conceito, o objecto é um exterior, para o ob­
jecto, o conceito é um exterior.
Nenhuma das duas ciências se pode, portanto, constituir
como a única, nenhuma pode suprimir a outra. O absoluto seria,
desse modo, posto apenas n uma forma da sua existência, e ao
pôr-se na forma da existência tem de se pôr numa dualidade da
forma, pois o aparecer e o cindir-se são um só.
Por causa da identidade interna de ambas as ciências - pois
ambas expõem o absoluto, tal como ele se engendra a partir das
potências inferiores de uma forma da manifestação, até à totali­
dade dessa forma -, cada uma das ciências, de acordo com a
sua conexão e a sua progressão, é igual à outra. Uma é um com­
plemento da outra. Tal como um antigo filósofo disse, aproxima­
damente: a ordem e a conexão das ideias (do subjectivo) é a mes­
.

ma que a conexão e a ordem das coisas (do objectivo) ss. Tudo


existe apenas numa totalidade; a totalidade objectiva e a totalida­
de subjectiva, o sistema da natureza e o sistema da inteligência,
são um e o mesmo; a uma determinidade subjectiva corresponde ·

precisamente a mesma determinidade objectiva.


Como ciências, elas são totalidades objectivas, e progridem
de limitado a limitado. Mas cada limitado está, ele próprio, no
absoluto, é, portanto, interiormente, um ilimitado; ele perde a sua
limitação externa porque é posto em conexão sistemática na to­
talidade objectiva; nesta, como limitado, tem também uma ver­
dade, e a determinação do seu lugar é o saber acerca dele.
À expressão de Jacobi de que os sistemas são um não-saber or­
ganizado 59, deve apenas. acrescentar-se que o não-saber - o
conhecer do singular -, pelo facto de ser organizado, se torna
u m saber.
Para lá da igualdade externa, que caracteriza estas ciências
na medida em que permanecem separadas, os seus princípios
penetram-se reciprocamente, imediatamente, de forma necessá­
r i a . Se o princípio de uma é o sujeito-objecto subjectivo e o da
ou tra é o sujeito-objecto objectivo, no sistema da subjectividade
t•x iste de facto, ao mesmo tempo, o objectivo, e nq sistema da
objectividade existe, ao mesmo tempo, o subjectivo: a natureza é
ta n to uma idealidade imanente, quanto a inteligência uma reali­
d n d e imanente. Os dois pólos do conhecer e do ser 1 encontram- 7 2
-Sl' l'm cnd a uma delas, portanto, ambas têm também em si o
ponto de indiferença; só que num dos sistemas o pólo do ideal
é predominante, noutro é o do real. Na natureza, o primeiro não
chega ao ponto da abstracção absoluta, que se põe a si mesmo
como ponto contra a expansão infinita, como acontece quando o
ideal se constrói a si mesmo na razão; o segundo, não chega, na
inteligência, até ao desenvolvimento do infinito, que, nesta con­
tracção, se põe infinitamente fora de si, como acontece quando o
real se constrói a si mesmo na matéria.
Cada sistema é ao mesmo tempo um sistema da liberdade e
da necessidade. Liberdade e necessidade são factores ideais e,
portanto, não estão em oposição real; por isso, o absoluto não se
pode pôr em nenhuma destas formas como absoluto, e as ciên­
cias da filosofia não podem ser, uma um sistema da liberdade, a
outra um sistema da necessidade. Uma tal liberdade separada
seria uma liberdade formal, tal como uma necessidade separada
seria uma necessidade formal. A liberdade é um carácter do
absoluto quando ele é posto como um interior que, na medida
em que se põe a si mesmo numa forma limitada, em pontos
determinados da totalidade objectiva, permanece aquilo que é,
um não limitado; quando, por conseguinte, é considerado em
oposição ao seu ser, quer dizer, como um interior, portanto, com
a possibilidade de o abandonar e transitar para uma outra mani­
festação. A necessidade é o carácter do absoluto na medida em
que ele é considerado como um exterior, como uma totalidade
objectiva, portanto, como uma contiguidade a cujas partes, po­
rém, não cabe nenhum ser senão no todo da objectividade. Por­
que a inteligência e a natureza, pelo facto de serem postas no
absoluto, têm uma oposição real, cabem a cada uma delas os
factores ideais da liberdade e da necessidade. Mas a aparência
de · liberdade, o arbítrio, quer dizer, uma liberdade na qual se
abstrairia totalmente da necessidade, ou da liberdade como uma
totalidade, que só pode acontecer na medida em que a liberdade
é já posta no interior de uma esfera singular; tal como a aparên­
cia de arbítrio, correspondente ao acaso no plano da necessida­
de, com o qual são postas partes singulares, como se não existis­
sem na totalidade objectiva e apenas através dela, mas sim para
si mesmas; este arbítrio e contingência, que só têm lugar de um
ponto de vista muito subordinado, são banidos do conceito da
ciência do absoluto. Ao invés, a necessidade pertence à i n tel i gê n
­

cia, tal como à natureza. Pois, pelo facto de a inteligência estar


posta no absoluto, cabe-lhe também, igua lmen te, a forma do Sl' I';
ela deve cindir-se de si mesma e manifestar-se; ela é . uma orgn ­
nização completa de conhecimento e intuição. Cada uma das s u a s
figuras é condicionada por uma figura oposta e quando a iden­
tidade abstracta da figura como liberdade é isolada das próprias
figuras, é apenas u m pólo ideal do ponto de indiferença da inte­
ligência, a que corresponde uma totalidade objectiva como o 1
outro pólo imanente. A natureza, ao invés, tem liberdade, pois 7:i
ela não é um ser em repouso, mas, ao mesmo tempo, um devir:
é um ser que não é cindido e sintetizado do exterior, mas que se
separa e que se une em si mesmo e que em nenhuma das suas
figuras se põe a si mesmo como meramente limitado, mas sim
livremente como o todo. O seu desenvolvimento sem consciência
é uma reflexão da força viva que se cinde sem fim, mas que em
cada figura limitada se põe a si mesma e permanece idêntica; e,
nessa medida, nenhuma figura da natureza é limitada, mas sim
livre.
Portanto, se a ciência da natureza em geral é a parte teórica
da filosofia, e a ciência da inteligência a parte prática, cada uma
delas tem ao mesmo tempo para si uma parte teórica e uma parte
prática próprias. Tal como no sistema da natureza a identidade
existente na potência da luz, não em si, mas como potência, não
é nada de estranho à matéria pesada, uma vez que a cinde e a
une para lhe dar coesão e produz um sistema da natureza inor­
gânica, também para a inteligência que se produz a si mesma
nas intuições objectivas, a identidade, na potência do pôr-se-a-si­
-mesmo, não é algo de presente: a identidade não se reconhece
a si mesma na intuição; ambos, o pôr-se-a-si-mesmo e a intuição,
são um produzir da identidade que não reflecte no seu agir,
portanto, objecto de uma parte teórica. Precisamente como, ao
invés, a inteligência se conhece a si mesma na vontade e se in­
troduz como tal na objectividade, e aniquila as suas intuições
produzidas sem consciência, assim a natureza se torna prática
na natureza orgânica, na medida em que a luz irrompe nos seus
produtos e se torna interior. Se a luz põe, na natureza inorgânica,
o ponto de contracção no exterior, na cristalização, como uma
idealidade exterior, igualmente se configura na natureza orgâni­
ca como interior, como contracção do cérebro; isto acçmtece já na
p l a n ta como flor, na qual o princípio interior da luz se dispersa
l' ITI c o res e nelas rapidamente esmorece; mas nelas, tal como mais
fi xa mente nos animais, põe-se a si mesma ao mesmo tempo sub­
jl•l'l i v n e objectivamente na polaridade dos sexos; o indivíduo
procura-se e encontra-se a si mesmo num outro. No animal, a
luz permanece mais intensamente no interior, no qual coloca a
sua individualidade como voz mais ou menos mutável, como
individualidade subjectiva em comunicação universal, como
reconhecendo-se e querendo ser reconhecida. Na medida em que
a ciência da natureza expõe a identidade, tal como reconstrói a
partir do interior os momentos da natureza inorgânica, tem em
si uma parte prática. O magnetismo prático, reconstruído, é a
supressão do peso expandindo-se em pólos para o exterior,
contraindo-o de novo no ponto de indiferença do cérebro, e
transpondo-o dos dois pólos para o interior como dois pontos de
indiferença, tal como a natureza o mostra também na órbita
elíptica dos planetas; a electricidade reconstruída a partir do inte­
rior põe a diferença sexual nos organismos, cada um dos quais 1
74 a produz por si mesmo; como resultado da sua carência, põe-se
idealmente a si mesmo, encontra-se a si mesmo objectivamente
num outro e tem de conferir identidade a si mesmo, fundindo-se
nele. A natureza, na medida em que se torna prática por meio
do processo químico, põe nele mesmo, como um interior, um
terceiro elemento que medeia os diferentes, interior esse que,
como tom, é uma sonoridade interior que se produz a si mesma;
tal como o terceiro corpo do processo inorgânico, este interior é
sem-potência e desvanece-se, dissolve a substancialidade absolu­
ta das essências diferentes e trá-las à indiferença do reconheci­
mento mútuo, de um pôr ideal, que, ao contrário da relação
sexual, não morre de novo numa identidade real 60.
Até agora, opusemos uma à outra ambas as ciências pela sua
identidade interna; numa, o absoluto é um elemento subjectivo
na forma do conhecer, na outra, um elemento objectivo na forma
do ser 61 . O ser e o conhecer tornam-se factores ou formas ideais,
pelo facto de serem opostos um ao outro; ambos se encontram
nas duas ciências, mas numa o conhecer é a matéria e o ser a
forma, na outra o ser é a matéria e o conhecer a forma. Ora o
absoluto é o mesmo em ambas, e as ciências não expõem mera­
mente os opostos como formas; mas, na medida em que o sujeito­
-objecto se põe a si mesmo nelas, essas mesmas ciências não se en­
contram numa oposição ideal, mas sim real e, por isso, devem
ser consideradas ao mesmo tempo numa continuidade, como uma
ciência coerente. Na medida em que são ciências opostas,
encontram-se, na verdade, interiormente fechadas em si e forma m
totalidades, que, ao mesmo tempo, são apenas rela tivas, e, l' n -

______________ __......._
. _ _ ___ __ ___ --- - -
quanto tais, esforçam-se por atingir o ponto de indiferença; como
identidade e totalidade relativa, este último encontra-se por tod n
a parte nelas, mas, como totalidade absoluta, encontra-se fora
delas. Porém, na medida em que cada uma das ciências do ab­
soluto, assim como a sua oposição, é real, conexionam-se, como
pólos da indiferença, nesta última; elas são as linhas que ligam
os pólos ao centro. Mas este centro é, ele próprio, algo de duplo,
uma vez identidade, a outra totalidade, e, nesta medida, ambas
as ciências aparecem como a progressão do desenvolvimento, ou
como autoconstrução da identidade, em direcção à totalidade.
O ponto de indiferença pelo qual ambas as ciências - na medida
em que, consideradas do lado dos factores ideais, são opostas -
se esforçam, é o todo, representado como uma autoconstrução
do absoluto, o ponto último e supremo delas. O centro, o ponto
de transição da identidade que se constrói como natureza, à sua
construção como inteligência, é o devir interior da luz da natu­
reza, como diz Schelling, o relâmpago do ideal no real e o seu
constituir-se a si mesmo como ponto. Este 1 ponto, como razão, 75
é o ponto de viragem das duas ciências, é o cume supremo da
pirâmide da natureza, o seu último produto, ao qual ela chega
completando-se; mas, como ponto, deve igualmente expandir-se
numa natureza. Quando a ciência se põe nele como centro e a
partir dele se cinde em duas partes, e um dos lados se anuncia
como o produzir sem consciência, o outro, como o consciente,
ela sabe, imediatamente, que a inteligência, como um factor real,
transporta ao mesmo tempo consigo, para o outro lado, toda a
autoconstrução da natureza, e tem em si ou ao seu lado tudo o
que a precedeu, tal como sabe que na natureza, como um factor
real, o que se lhe opõe na ciência é igualmente imanente. E, com
isto, é suprimida toda a idealidade dos factores e a sua forma
unilateral; este é o único ponto de vista superior no qual ambas
as ciências se perdem uma na outra, na medida em que a sua
separação é reconhecida como apenas científica, e a idealidade
dos factores é reconhecida como sendo apenas posta com esta
finalidade. Este ponto de vista é, imediatamente, apenas negati­
vo, subsiste apenas a separação de ambas as ciências e das for­
mas nas quais o absoluto se pôs a si mesmo, não uma síntese
real, não o ponto de indiferença absoluto, no qual estas formas
são aniquiladas na medida em que ele as une. A identidade ori­
ginária, que expandiu a sua contracção sem consciência - sub­
jl'cti va men te, do sentir, objectivamente, da matéria - na conti-

l Ul
guidade do espaço e na sucessão do tempo, organizadas sem fim,
como totalidade objectiva, e opôs a esta expansão a contracção,
que se constitui a si mesma, aniquilando-a no ponto que se co­
nhece a si mesmo da razão (subjectiva), a saber, a totalidade
subjectiva; aquela identidade deve uni-las a ambas na intuição
do absoluto que se torna objectivo na totalidade completa: na
intuição do eterno devir humano de Deus, da geração do Verbo
desde o início.
Esta intuição do absoluto que se configura e se encontra
objectivamente a si mesmo, pode igualmente ser considerada de
novo numa polaridade, na medida em que são postos em pre­
ponderância, como factores deste equilíbrio, de um lado, a cons­
ciência, do outro, o sem consciência. Aquela intuição aparece, na
arte, mais concentrada num ponto, e dominando a consciência:
ou, na arte propriamente dita, como obra, que, sendo objectiva,
é em parte duradoura, e em parte pode ser tomada, pelo enten­
dimento, como uma exterioridade morta, um produto do indiví­
duo, do génio, mas pertencendo à humanidade; ou aparece na
religião como um movimento vivo que, sendo subjectivo, satisfa­
zendo apenas por momentos, pode ser posto pelo entendimento
como um mero interior, o produto de uma multidão, de uma
genialidade universal, mas pertencendo também a cada indiví­
duo. Na especulação, aquela intuição aparece mais como cons­
ciência, e, alargada na consciência, como um agir da razão sub­
jectiva, que suprime a objectividade e o sem consciência. Se para
a arte, na sua verdadeira amplitude, o absoluto aparece mais na
76 forma 1 do ser absoluto, para a especulação ele aparece mais
como algo que se engendra a si mesmo na sua intuição infinita;
mas, na verdade, na medida em que se concebe como um devir,
põe ao mesmo tempo a identidade do devir e do ser, e o que lhe
aparece como engendrando-se a si mesmo é posto, ao mesmo
tempo, como o ser originário absoluto, que apenas pode devir
na medida em que é. Ela sabe, deste modo, afastar a preponde­
rância que a consciência tem sobre si, uma preponderância que
é, mesmo assim, algo de essencialmente exterior. Ambas, a arte
e a especulação, são, na sua essência, ofício divino, ambas são
uma intuição viva da vida absoluta e, por isso, estão em unidade
com ela.
Deste modo, a especulação e o seu saber encontram-se no
ponto de indiferença, mas não, em si e para si, no verdadeiro
ponto de indiferença; se se encontram aí, depende do facto d e Hl'

1 Uli
reconhecerem apenas como um lado desse ponto. A filosofi a
transcendental é uma ciência do absoluto, pois o sujeito é, ele
próprio, sujeito-objecto e, nessa medida, razão; se ela se puser a
si mesma, na qualidade desta razão subjectiva, como o absoluto,
ela é então uma razão pura, quer dizer, formal, cujos produtos,
as ideias, são absolutamente opostos a uma sensibilidade ou
natureza, e, em relação aos fenómenos, podem apenas servir
como regra de uma unidade que lhes é estranha. Na medida em
que o absoluto é posto na forma de um sujeito, esta ciência tem
um limite imanente; ela só se eleva a ciência absoluta e ao ponto
de indiferença absoluto pelo facto de conhecer o seu limite e de
saber suprimir-se a si mesma e a este, e fazendo-o, de facto, de
forma científica. Na verdade, muito se falou, no passado, das
barreiras da razão humana e também o idealismo transcendental
reconhece limites que não se podem conceber da consciência-de­
-si, nos quais estamos encerrados de uma vez por todas; mas, na
medida em que os limites são ali aceites como barreiras da · razão
e aqui como inconcebíveis, a ciência reconhece a sua impotência
para se suprimir por si mesma, quer dizer, a não ser por um
salto mortale ou pelo subjectivo, no qual ela pôs a razão para
novamente dela abstrair.
Porque a filosofia transcendental põe o seu sujeito como um
sujeito-objecto e, com isso, é um lado do ponto de indiferença
absoluto, a totalidade está com certeza nela; a própria filosofia
da natureza no seu conjunto cai, enquanto saber, no interior da
sua esfera. E não se pode proibir a ciência do saber, que consti­
tuiria apenas uma parte da filosofia transcendental, nem tão
pouco a lógica, de reivindicar a forma que ela dá ao saber e a
identidade que se encontra no saber, ou melhor, de isolar a for­
ma como consciência e de construir por si o fenómeno. Mas esta
identidade, separada de toda a multiplicidade do saber, como
pura consciência-de-si, mostra-se como relativa, pelo facto de não
sair, em nenhuma das suas formas, do seu ser condicionado, por
meio de um oposto.
O princípio absoluto, o único fundamento real e ponto de
apoio estável da filosofia é, tanto na filosofia de Fichte como na
de Schelling, a intuição intelectual; 1 dito para a reflexão: a iden- 77
tidade do sujeito e do objecto. Na ciência, ela torna-se objecto de
reflexão; e, por isso, a reflexão filosófica é, ela própria, intuição
transcendental, torna-se objecto para si própria e é uma só com
l'l e; d es ta forma, é especulação. Por isso, a filosofia de Fichte é

l WJ
um produto autêntico da especulação. A reflexão filosófica está
condicionada, ou a intuição transcendental vem à consciência
através da livre abstracção de toda a multiplicidade da consciên­
cia empírica. Nessa medida, ela é subjectiva. Se a reflexão filosó­
fica se transformar, assim, a si mesma, em objecto, ela transfor­
ma algo de condicionado em princípio da sua filosofia; para
captar puramente a intuição transcendental, ela deve ser ainda
abstraída deste elemento subjectivo, de modo a que ela não seja,
para a reflexão filosófica, como fundamentação da filosofia, nem
subjectiva nem objectiva, nem consciência-de-si oposta à matéria,
nem matéria oposta à consciência-de-si, mas sim identidade ab­
soluta, nem subjectiva nem objectiva, pura intuição transcen­
dental 62. Como objecto da reflexão, toma-se sujeito e objecto 63 ;
a reflexão filosófica coloca estes produtos da pura reflexão, na
sua permanente oposição, no absoluto. A oposição da reflexão
especulativa não é mais um objecto e um sujeito, mas sim uma
intuição transcendental subjectiva e uma intuição transcendental
objectiva: aquela é um Eu, esta é uma natureza. Ambas são a
suprema manifestação da razão absoluta que se intui a si mes­
ma. Pelo facto de estes dois opostos - que se chamam, então,
Eu e natureza, consciência-de-si pura e empírica, conhecer e ser,
pôr-se e opor-se a si mesmo, finitude e infinitude - serem pos­
tos ao mesmo tempo no absoluto, a reflexão comum não vê nes­
ta antinomia senão contradição; só a razão vê a verdade nesta
contradição absoluta, por meio da qual ambos são postos e am­
bos são aniquilados, nenhum é e os dois são ao mesmo tempo.

lW
ACERCA DO PONTO DE VISTA DE REINHOLD 77

E A FILOSOFIA

Resta ainda dizer, por um lado, alguma coisa acerca do ponto


de vista de Reinhold sobre a filosofia de Fichte e de Schelling, por
outro, acerca da sua própria filosofia.
No que respeita àquele ponto de vista, em primeiro lugar,
Reinhold não reparou na diferença entre ambas como sistema, e,
em segundo lugar, não as tomou como filosofias.
Reinhold não parece ter suspeitado que, há muito, uma ou-
tra filosofia, diferente do idealismo transcendental, se encontrava
diante do público; de forma espantosa, ele não vê na filosofia,
tal como Schelling a expôs, senão um princípio do elemento
conceptual da subjectividade, da egoidade 64 . Reinhold consegue,
de uma só vez, dizer que Schelling descobriu que o absoluto, na
medida em que não é mera subjectividade, nada mais é nem
pode ser 1 do que a mera objectividade, ou mera natureza en- 78
quanto tal, e que o caminho para tal consiste em pôr o absoluto
na absoluta identidade da inteligência e da natureza 65 ; portanto,
consegue representar o princípio schellinguiano num traço: a) o
absoluto, na medida em que não é mera subjectividade, é mera
objectividade e, por conseguinte, não é a identidade de ambos;
b) o absoluto é a identidade de ambos. Ao invés, o princípio da
identidade do sujeito e do objecto teve de se tornar o caminho
·
para ver que o absoluto, como identidade, não é nem mera
subjectividade nem mera objectividade. Correctamente, Reinhold
apresenta a seguir a relação entre as duas ciências de tal modo
q ue ambas são apenas diferentes pontos de vista, não certamente

111
da mesma coisa, mas da absoluta mesmidade, do único. E, pre­
cisamente por isto, nem o princípio de uma, nem o princípio da
outra, são mera subjectividade ou mera objectividade, nem, muito
menos, aquilo em que ambas se interpenetram é a mera
egoidade, a qual, tal como a natureza, é engolida no ponto de
indiferença absoluto.
Quem, pensa Reinhold, está tomado pelo amor e crença na
verdade, e não pelo sistema, deixar-se-á facilmente persuadir que
o erro da solução que foi descrita reside no modo de conceber a
tarefa; mas não é tão fácil explicar em que consiste o erro das
descrições de Reinhold daquilo que, segundo Schelling, é a filo­
sofia, nem como foi possível este modo de a conceber.
De nada serve remeter para a Introdução ao Sistema do Idea­
lismo Transcendental, na qual se expõe a sua relação com a tota­
lidade da filosofia e o conceito desta totalidade; pois, na sua
avaliação dele, Reinhold restringe-se a esta Introdução e vê aí o
contrário daquilo que lá se encontra. Muito menos se pode cha­
mar a atenção para alguns lugares dela, nos quais o verdadeiro
ponto de vista é expresso da. forma mais determinada, pois
Reinhold menciona estes lugares na sua primeira avaliação deste
sistema; em tais lugares determinados afirma-se que só numa das
ciências necessárias e fundamentais da filosofia, a saber, no idea­
lismo transcendental, o subjectivo é o primeiro 66, e não, como em
Reinhold, que coloca imediatamente a própria coisa às avessas,
que ele é o primeiro de toda a filosofia; não se trata também do
puro subjectivo, que é apenas o princípio do idealismo trans­
cendental, mas sim do sujeito-objecto subjectivo.
Para aqueles que são capazes de não perceber em certos
enunciados o seu contrário, não é talvez supérfluo chamar a aten­
ção, para além da Introdução ao Sistema do Idealismo Trans­
cendental, e mesmo para além dos números mais recentes da
Revista de Física Especulativa, já para a 2.ª Parte do 1 .0 volume
79 deste última, 1 na qual Schelling se exprime deste modo 67: «A
filosofia da natureza é uma explicação física do idealismo; [ . . . ] a
natureza dispôs-se, desde longe, a chegar a estas alturas, que
atinge na razão. O filósofo só não repara nisto porque toma o
seu objecto, com o primeiro acto, já na mais alta potência, como
Eu, como dotado de consciência, e apenas o físico dissipa esta
ilusão. [ . ] O idealista está certo quando transforma a razão n a
..

autocriadora de tudo [ . . . ], ele tem para si a própria in tenção d a


natureza relativamente ao homem; mas j us ta m e n te porq u e esta (>

ll2
a intenção da natureza [ . . . ] aquele mesmo idealismo torna-se, e k•
próprio, [ ] algo de explicável, e nisso coincide com a realidadl�
. . .

teórica do idealismo. Só quando os homens aprenderem a pen­


sar de modo puramente teórico, de forma puramente objectiva e sem
qualquer mistura do subjectivo, é que aprenderão a compreender
isto.»
Quando Reinhold coloca o defeito principal da filosofia exis­
tente até agora no facto de se ter representado o pensar sob o
aspecto de uma actividade meramente subjectiva, e exige que se
faça a tentativa de abstrair 68 da sua subjectividade, isto é, como
é suposto, não apenas no que foi mencionado, mas também no
princípio da totalidade do sistema schellinguiano, o carácter for­
mal de fundo desta filosofia: a saber, a abstracção do elemento
subjectivo da intuição transcendental. É o que foi afirmado de
forma mais determinada na Revista de Física Especulativa, vol. 2.º,
l.ª Parte, por ocasião das Objecções contra a Filosofia da Nqtureza,
de Eschenmayer, que são tomadas tendo como fundamento o idealis­
mo transcendental, no qual a totalidade é apenas posta como ideia,
corno algo de pensado, quer dizer, como algo de subjectivo 69 ,
No que diz respeito à posição de Reinhold sobre o elemento
comum a ambos os sistemas, de serem filosofia especulativa, eles
aparecem necessariamente, para o ponto de vista peculiar de
Reinhold, como peculiaridades e, por conseguinte, como não
sendo filosofias. Se, de acordo com Reinhold, a ocupação mais
essencial, o tema e o princípio da filosofia é fundamentar a rea­
lidade do conhecimento pela análise 70, quer dizer, pela separa­
ção, certamente que a especulação, cuja tarefa suprema é supri­
mir a separação na identidade do sujeito e do objecto, não tem
então qualquer significado, e o lado mais essencial de um siste­
ma filosófico, que consiste em ser especulação, não pode, de
seguida, ser tido em consideração; nada resta, a não ser urna
posição peculiar e urna mais forte ou mais fraca desorientação
do espírito. Assim, por exemplo, para Reinhold, o materialismo
aparece como urna desorientação do espírito, que não tem, na
Alemanha, luRfir �e ��sidência 71 , e não reconhece nele nada d�
, ,,
autêntic'à J ft� ce �si d aà e filosófic'ã de suprimir a cisão sob a for- ao
ma de espírito e matéria. Se a localização ocidental qa cultura,
da qual este sistema saiu, o mantém afastado de um país, a
questão é saber se este afastamento não provém de uma
un ila teralidade em sentido oposto da cultura; e mesmo que o seu
v a lor científico seja muito pequeno, não se deve ao mesmo tem-
po desconhecer que, por exemplo, no Systeme de la Nature 72, se
exprime um espírito que se perdeu no seu tempo e que se repro­
duziu na ciência; nem como o desgosto sobre o engano geral do
seu tempo, sobre a desorganização insondável da natureza, so­
bre a mentira infinita que se chama verdade e direito, como tal
desgosto, que sopra sobre o todo, conserva força suficiente para
construir, numa ciência, o absoluto q_!l� ��$�R.�,� , g o fenóm�.po da
vida, como verdade de umà autêntica necessid ade filosófica e de
uma verdadeira especulação. A forma daquela ciência aparece no
princípio local objectivo, tal como, ao invés, a cultura alemã se
refugia frequentemente na forma do subjectivo - a que pertence
também o amor e a fé - sem especulação. Uma vez que o lado
analítico, porque se reporta à oposição absoluta, não deve repa­
rar no lado filosófico de uma filosofia que se dirige à unificação
absoluta, aparece-lhe como o mais espantoso de tudo que Schelling,
como Reinhold se exprime, tenha introduzido na filosofia a liga­
ção do finito com o infinito, como se filosofar não fosse senão
pôr o finito no infinito. Por outras palavras, aparece-lhe como o
mais espantoso que o filosofar deva ser introduzido na filosofia.
Do mesmo modo, Reinhold não vê, nos sistemas de Fichte e
de Schelling, não só em geral o lado especulativo e filosófico,
mas também toma-os por uma descoberta e uma revelação im­
portantes, quando, para ele, os princípios desta filosofia se trans­
formam no mais particular de tudo, e o mais universal, a iden­
tidade do sujeito e do objecto, se transforma para ele no mais
particular, a saber, na própria individualidade pessoal dos senho­
res Fichte e Schelling 73 . Quando Reinhold, como que das altu­
ras, deixa cair o seu princípio limitado e o seu ponto de vista
peculiar no abismo do ponto de vista limitado destes sistemas,
tal é compreensível e necessário. Mas a viragem toma-se contin­
gente e odiosa, quando Reinhold, provisoriamente no Teutscher
Merkur e, mais pormenorizadamente, no número seguinte dos
Contributos *, explicou a particularidade destes sistemas a partir
da imoralidade, e de tal modo que a imoralidade teria recebido,
nestes sistemas, a forma de um princípio e a forma da filoso­
fia 74 • Pode-se chamar a esta viragem uma coisa deplorável e

"" O que aconteceu depois de isto ter sido escrito. (Cf. Beitrii[(L', 2. Hc ft,
pp. 104 e segs.)

------ _ ili
vituperá-la como um expediente da exasperação, etc.; como se
queira. Sobre isto, a liberdade é total. Além do mais, uma filoso-
fia surge da sua época e, se se 1 quer compreender o despeda- 81
çamento desta última como uma imoralidade, a filosofia surge
da imoralidade; mas para restabelecer os homens da desorgani­
zação da época, e salvaguardar a totalidade despedaçada pelo
tempo.
No que diz respeito à filosofia própria de Reinhold, ele dá uma
história pública dela: no decurso da sua metempsicose filosófica,
começou por vaguear na filosofia kantiana, e depois de a ter aban­
donado vagueou pela de Fichte, desta passou à de Jacobi e, de­
pois de a ter também abandonado, introduziu-se na lógica de
Bardilli. Após ter, de acordo com a página 163 dos Contributos,
«limitado a ocupação com ela ao puro aprender, ao puro receber
e à meditação no sentido mais autêntico, para combater a imagina­
ção estragada pelos maus hábitos e para desalojar finalmente da
cabeça os antigos tipos transcendentais através dos novos
racionalistas», começa agora a elaboração daquela lógica nos
Contributos para um mais fácil Panorama do Estado da Filosofia no
Começo do Século XIX. Estes Contributos abrangem a época tão im­
portante no avanço da formação do espírito humano que é o
surgimento do novo século, «para o felicitar por a causa da oca­
sião de todas as revoluções filosóficas não ter sido realmente des­
coberta nem antes nem depois dos derradeiros anos do século XVIII
e, com isso, a sua necessidade ter sido suprimida» 75 . Tal como
demasiadas vezes foi decretado em França que la révolution est finie,
também Reinhold já anunciou muitos fins da revolução filosófica.
Agora, reconhece a última finalização das finalizações, e, «apesar
de as piores consequências da revolução transcendental ainda
durarem um longo espaço de tempo», acrescenta ainda a pergun­
ta sobre «Se não se equivocará outra vez, se, mesmo assim, tam­
bém este verdadeiro e autêntico fim não poderá ser de novo,
apenas, o começo de uma nova viragem tortuosa?» 76 . Talvez se
devesse antes perguntar se este fim, na medida em que não é
capaz de ser um fim, será capaz de ser o início de qualquer coisa.
A tendência para fundar e sondar, o filosofar antes da filoso­
fia, soube, por fim, exprimir-se perfeitamente a si mesmo. En­
controu justamente aquilo que devia ser feito: a transformação
da filosofia num elemento formal do conhecer, em lógica.
Se a filosofa como um todo se funda a si mesma e funda em
si mesma a realidade dos conhecimentos, segunda a sua forma e
o seu conteúdo, o fundar e o sondar, ao invés, no seu impulso
de comprovar e analisar, de estabelecer o porquê e o «na medi­
da em que», o então e o «até que ponto», nem saem de si mes-
82 mos nem 1 entram na filosofia. Para a angústia incessante, que
aumenta constantemente com a sua própria ocupação, todas as
investigações chegam demasiado cedo, e cada começo é uma
antecipação, tal corno cada filosofia é apenas um exercício pré­
vio. A ciência afirma fundar-se em si mesma na medida em que
põe absolutamente cada uma das suas partes e, com isso, cons­
titui no começo e em cada ponto singular uma identidade e um
saber; como totalidade objectiva, o saber funda-se tanto mais
quanto mais se forma a si mesmo, e as suas partes existem ape­
nas enquanto fundadas ao mesmo tempo com esta totalidade dos
conhecimentos. O centro e o círculo estão de tal modo relaciona­
dos entre si que o primeiro início do círculo é já uma referência
ao centro, e este não é um centro completo senão quando todas
as suas referências, a totalidade do círculo, estão completas: um todo
que necessita tão pouco de um motivo particular de fundamenta­
ção quanto a terra necessita de um motivo particular para sofrer a
influência da força que a faz girar à volta do Sol e, ao mesmo tem­
po, a mantém em toda a multiplicidade viva das suas figuras.
Mas o fundar ocupa-se sempre em procurar o motivo e em
balancear-se em direcção à filosofia viva; ele transforma este
balanço em obra verdadeira e, pelo seu princípio, torna impossí­
vel atingir o saber e a filosofia. O conhecimento lógico, quando
prossegue realmente em direcção à razão, deve ter como resulta­
do ser aniquilado na razão; deve reconhecer a antinomia como a
sua lei suprema. No tema de Reinhold da aplicação do pensar, o
pensar torna-se na repetibilidade infinita de A enquanto A em A
e através de A 77, e, de facto, de modo antinómico, na medida
em que A, ao ser aplicado, é posto de facto como B. Mas esta
antinomia está presente de forma totalmente sem consciência e
não reconhecida, pois o pensar, a sua aplicação e a sua matéria
coexistem pacificamente. Por isso, o pensar, como faculdade da
unidade abstracta, tal como o conhecimento, são meramente for­
mais, e toda a fundamentação deve ser apenas problemática e
hipotética, até que, com o tempo, ao progredir no problemático
e no hipotético, se choque com o verdadeiro originário da verda­
de, e com o verdadeiro por meio do verdadeiro originário 78•
Mas, por um lado, isto é impossível, pois de uma absoluta for­
malidade não se pode atingir nenhuma materialidade (ambns são
absolutamente opostas), nem, muito menos, uma síntese absolu-
ta, que deve ser mais do que um mero encaixe; por outro lado,
nada se fundamentou, em geral, com algo de hipotético e de pro­
blemático. Ou, então, o conhecimento é relacionado com o abso­
luto, torna-se uma identidade do sujeito e do objecto, do pensar
e da matéria, e, assim, não é mais formal, surgiu um saber ma­
çador, e, uma vez mais, a fundamentação antes do 1 saber não 83
foi conseguida. À angústia de entrar no saber nada resta senão o
consolo do seu amor e da sua crença e a sua tendência fixa para
analisar, metodologizar e narrar.
Se o balanço não transpõe o fosso, o erro não cai sobre este
perpetuar do balanço, mas sim sobre o seu método. Porém, o
verdadeiro método seria aquele em que o saber fosse atraído para
este lado do fosso, para o espaço de jogo do balanço, e a filoso­
fia fosse reduzida à lógica.
Não podemos passar imediatamente à consideração deste
método, pelo qual a filosofia deve ser colocada no â mbito do
balanço, pois temos de falar, em primeiro lugar, daqueles pressu­
postos que Reinhold considera necessários para a filosofia, portan­
to, para o balanço para o balanço.
Como condição prévia do filosofar, da qual deve sair o esforço
para fundar o conhecimento, Reinhold menciona o amor à verda­
de e à certeza; e como este amor é reconhecido imediatamente e
com suficiente facilidade, Reinhold não se detém mais nele 79.
E, de facto, o objecto da reflexão filosófica não pode ser senão o
verdadeiro e o certo. Se a consciência se encontra preenchida por
este objecto, uma reflexão sobre o subjectivo, sob a forma do
amor, não tem qualquer lugar; esta reflexão só produz o amor
na medida em que fixa o subjectivo, o qual, tendo um objecto
tão sublime como a verdade, é transformado - não menos que
o indivíduo animado por um tal amor, cuja existência ela postula -
em algo de supremamente sublime.
A segunda condição essencial do filosofar, a fé na verdade como
verdade, não será tão facilmente reconhecida como o amor. A pa­
lavra fé teria certamente expresso de forma suficiente o que deve
ser expresso; em relação à filosofia, poder-se-ia falar, de facto,
da fé na razão como sendo a autêntica saúde; o ca �ácter supér­
fluo da expressão «fé na verdade como verdade», em vez de
tornar a fé edificante, transforma-a em algo de equívoco. O prin­
cipal é que Reinhold explica com seriedade que não se lhe deve
11erg11ntar o que é a fé na verdade; aquele para quem isto não é claro

1.11
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por si mesmo não tem, nem conhece, a necessidade de ver comprovado
pelo saber aquilo que só pode partir desta fé. Não se entende a si mesmo
com aquela pergunta; e Reinhold não tem mais nada a dizer-lhe 80 .
Se Reinhold acredita ter uma justificação para postular, é nos
postulados da intuição transcendental que se encontra o pressu­
posto de algo de sublime para lá de qualquer prova, bem como
o direito e a necessidade de postular daí resultantes. Todavia,
B4 Fichte e Schelling, como o próprio Reinhold afirma, 1 descreveram
o agir peculiar da razão pura, a saber, a intuição transcendental,
como uma acção que regressa a si mesma 81 ; mas, àquele que
pedisse uma descrição da fé reinholdiana, Reinhold nada teria a
dizer. Todavia, ele faz mais do que aquilo a que se julga vin­
culado; pelo menos, define a fé por oposição ao saber, como algo
que se tem por verdadeiro sem ser sustentado por nenhum sa­
ber, e a definição daquilo que é o saber mostrar-se-á, também,
no decurso da fundamentação problemática e hipotética, tal como
a esfera comum do saber e da fé, e, portanto, a descrição ficará
completa.
Se Reinhold acredita estar dispensado de qualquer afirmação
posterior, parece-lhe, ao invés, que surgiu de forma surpreenden­
te o facto de os senhores Fichte e Schelling terem postulado; os
seus postulados valem para ele como uma idiossincrasia da cons­
ciência de certos indivíduos extraordinários, equipados para isso
com um sentido particular, em cujos escritos a própria razão pura
publicita o seu saber actuante e o seu agir sabedor 82 . Reinhold
também acredita (p. 143) ter-se encontrado no interior deste cír­
culo mágico, ter saído dele e estar agora em condições de reve­
lar o mistério. O que ele agora propala é que o que há de mais
universal, o agir da razão, se transforma para si no mais parti­
cular, numa idiossincrasia dos senhores Fichte e Schelling. Aque­
le para quem o amor e a fé de Reinhold não são claros e para
quem Reinhold nada tem a dizer sobre isso, não tem de o ver no
círculo mágico de um mistério, cujo possuidor, como represen­
tante do amor e da fé, afirma estar equipado com um sentido
particular; um arcano que se ergue e apresenta na consciência
deste indivíduo extraordinário, e se quis publicitar no mundo
sensível através do Compêndio de Lógica e dos Contributos que
trabalham para ele.
_ . O postulado do amor e da fé soa mais agradável e mais suave
do que uina exigência maravilhosa de uma intuição transcen­
dental. Um público pode ser mais edificado por meio de um pos-

118
tulado suave, mas ser repelido pelo postulado agreste da intuição
transcendental; simplesmente, isto nada tem a ver com o assunto
principal. .
Chegamos agora ao pressuposto fu.ndamental que diz respeito,
finalmente, do modo mais imediato, ao filosofar. Àquilo que a
filosofia deve pressupor, provisoriamente, para poder sequer ser
pensada como tentativa, chama Reinhold o verdadeiro origmá-
rio *, 1 o que é verdadeiro e certo por si mesmo, o fundamento 85
explicativo de todo o verdadeiro concebível; mas aquilo com que
a filosofia começa deve ser o primeiro verdadeiro concebível e,
na verdade, o verdadeiro primeiro concebível, o qual, por en­
quanto, é apenas aceite de forma problemática e hipotética pelo
esforço filosófico; porém, no filosofar como saber, ele mostra-se
como o único primeiro possível se e na medida em que, quando
e até onde, surge com uma certeza completa; o facto de ele pró­
prio, e a possibilidade e a realidade do conhecível e do q>nheci­
mento, serem possíveis por meio do verdadeiro originário, como
o fundamento originário de tudo, que se anuncia no possível e
no real, e as razões porque eles o são; como e porque ele é ver­
dadeiro por meio do verdadeiro originário, fora da sua relação
com o possível e o real no qual se revela, eis o que é simples­
mente inconcebível, inexplicável e inomeável 83.
Vê-se, a partir desta forma do absoluto como um verdadeiro
originário, que, por isso, não se trata de produzir, em filosofia, o
saber e a verdade por meio da razão, que o absoluto na forma
da verdade não é uma obra da razão, mas que ele é já em e para
si algo de verdadeiro e certo, por conseguinte, algo de conhecido
e sabido. A razão não pode dar a si mesma nenhuma relação
activa com ele; ao invés, cada actividade da razão, cada forma
que o absoluto recebe através dela, deveria ser vista como uma
modificação dele, e uma modificação do verdadeiro originário
seria a produção do erro. Por isso, filosofar significa tomar em si

* Reinhold conserva aqui a linguagem de Jacobi, mas não o assunto;

teve de o abandonar, como diz. Quando Jacobi fala da razão como da fa­
culdade da pressuposição do verdadeiro, opõe o verdadeiro, corao a essência
verdadeira, à verdade formal, mas nega, como céptico, que ela possa ser
sabida humanamente; ao invés, Reinhold diz que aprendeu a pensá-lo por
ml•io de um fundamento formal, no qual, para Jacobi, o verdadeiro não se
1•1won trn .

11j
o já sabido de forma totalmente pronta com uma receptividade
pura e simplesmente passiva: e não se deve negar a comodidade
deste modo de proceder. Não é necessário recordar que a verda­
de e a certeza fora do conhecimento, seja este uma fé ou um
saber, é um absurdo, e que só através da auto-actividade da
razão o absoluto se torna em verdadeiro e certo. Mas com­
preende-se que seja estranho que esta comodidade, que já pres­
supõe um verdadeiro originário pronto, o possa encontrar, quan­
do se exige que o pensamento se potencie em saber por meio da
auto-actividade da razão, que através da ciência a natureza seja
constituída para a consciência, e que o sujeito-objecto não seja
nada se não se constituir por meio de uma auto-actividade.
A unificação da reflexão e do absoluto no saber acontece graças
àquele procedimento cómodo, completamente de acordo com o
ideal de uma utopia filosófica, na qual o absoluto se prepara já
86 para si mesmo num verdadeiro e certo e 1 se entrega totalmente
ao gozo do pensar passivo, que necessita somente de escancarar
a boca. Desta utopia, está banido o criar e construir trabalhosos,
assertóricos e categóricos; através de uma sacudidela problemá­
tica e hipotética caem da árvore do conhecimento, plantada na
areia do fundamentar, os frutos que se mastigam e digerem por
si mesmos. Para a totalidade da ocupação da filosofia reduzida,
que quer apenas uma tentativa problemática e hipotética e um
carácter provisório, o absoluto deve ter-se já necessariamente
posto como o verdadeiro originário e sabido; pois como é que,
de outro modo, a verdade e o saber poderiam resultar do pro­
blemático e do hipotético?
Porque e na medida em que o pressuposto da filosofia é o
inconcebível em si e o verdadeiro originário, por este motivo e
nessa medida ela deve poder anunciar-se num verdadeiro conce­
bível, e a filosofia não pode partir de um verdadeiro originário
inconcebível, mas tem de o fazer a partir de um verdadeiro con­
cebível. Não somente não se demonstra esta consequência como,
pelo contrário, deve tirar-se a conclusão oposta: se o pressuposto
da filosofia é o verdadeiro originário, um inconcebível, então, o
verdadeiro originário anunciar-se-ia através do seu oposto, logo,
falsamente. Dever-se-ia antes dizer que a filosofia teria de come­
çar, prosseguir e terminar com conceitos, mas com conceitos in­
concebíveis: pois, na limitação de um conceito, o inconcebível,
em vez de ser anunciado, é suprimido. E a unificação de conce i­
tos opostos na antinomia, o que para a ca p ac i d a d e de con cl'Lw r
é uma contradição, não é a verdadeira revelação do inconcebível
em conceitos, meramente problemática e hipotética, mas sim,
devido à conexão imediata com ele, a manifestação assertórica e
categórica, tornada possível pela reflexão. Se, de acordo com
Reinhold, o absoluto é inconcebível fora da sua relação com o
real e o possível, nos quais se revela, se ele é para conhecer no
possível e no real, isto é apenas um conhecimento por meio do
entendimento e não um conhecimento do absoluto. Pois a razão,
que intui a relação do real e do possível ao absoluto, suprime,
precisamente por isso, o possível e o real enquanto tais; diante
dela, desaparecem estas determinidades bem como a sua oposi­
ção, e, desta forma, ela não reconhece a manifestação externa
como revelação, mas sim a essência, que se revela a si mesma;
tem, pelo contrário, de reconhecer um conceito em si, tal como a
unidade abstracta do pensar, não como um anúncio da essência,
mas como um seu desaparecimento da consciência; certamente
que ela em si não desapareceu, mas sim graças a uma tal espe­
culação. 1
Passamos agora a considerar o que é a verdadeira tarefa da 87
filosofia reduzida à lógica. Ela consiste em descobrir e expor, por
meio da análise da aplicação do pensar enquanto pensar, o ver­
dadeiro originário com o verdadeiro, e o verdadeiro através do
verdadeiro originário; vemos os diversos absolutos que para tal
são exigidos:

a) O pensar não se torna somente pensar na e através da


aplicação e como um aplicado, mas deve ser aqui en­
tendido o seu carácter interno, a saber, a possibilidade
infinita de repetição · de uma e precisamente a mesma
coisa, numa e precisamente a mesma, através de uma
e precisamente a mesma: a pura identidade, a infini­
tude absoluta, excluindo de si toda a exterioridade,
toda a sucessividade e toda a contiguidade 84;
b) Algo de totalmente diferente do pensar é a aplicação
do pensar. Tão certo quanto o próprio pensar de forma
alguma é a aplicação do pensar, é igualmente certo
que se tem de chegar ao pensar na aplicação e através
dela;
c) Tem de se acrescentar um terceiro elemento = C, a sa­
ber, a matéria da aplicação do pensar 85; esta materia­
l i d a d e 86, em pa r te ani q uilada n o pensar, em pa rte
encaixando-se nele, é postulada, e a legitimidade e a
necessidade de aceitar e pressupor a matéria reside no
facto de ser impossível o pensar poder ser aplicado
no caso de não existir uma matéria. Porque a matéria
não pode ser aquilo que o pensar é - pois se fosse o
mesmo não seria um outro e não se encontraria ne­
nhuma aplicação, pois o carácter interno do pensar é
a unidade -, o carácter interno da matéria é a mul­
tiplicidade, oposta àquela unidade 87 . Precisamente o
que outrora fora aceite como empiricamente dado, é,
desde os tempos de Kant, postulado, o que significa
que permanece imanente. Só no elemento subjectivo
- pois o objectivo tem de ser postulado - são ainda
admitidas leis empíricas dadas, ou formas, ou o que
se quiser, sob o nome de factos da consciência.

No que, em primeiro lugar, diz respeito ao pensar, como já


acima se recordou, Reinhold coloca o erro fundamental de toda
a filosofia moderna no preconceito fundamental e no mau há­
bito de se tomar o pensar por uma mera actividade subjectiva,
e procura, apenas como tentativa e a título provisório, que se
abstraia de toda a sua subjectividade e objectividade. Mas não
é difícil de ver que, enquanto o pensar for posto na unidade
pura, quer dizer, que abstrai de toda a materialidade e, por con­
seguinte, se lhe opõe, e em seguida, como é necessário, se se­
guir desta abstracção o postulado de uma matéria essencialmen­
te diversa e independente do pensar, aquele erro e aquele
preconceito fundamentais surgem, eles próprios, em toda a sua
força. O pensar, aqui, não é essencialmente a identidade entre
88 o sujeito e o objecto, pela qual 1 é caracterizado como activida­
de da razão e, por isso, simultaneamente, é abstraído de toda a
subjectividade e objectividade pelo facto de ser as duas ao
mesmo tempo, mas o objecto é uma matéria postulada para o
pensar e, deste modo, o pensamento não é senão algo de sub­
jectivo. Se se quiser, em prol daquela tentativa, abstrair da
subjectividade do pensar e pô-lo, ao mesmo tempo, como sub­
jectivo e objectivo e, portanto, simultaneamente, sem nenhum
destes predicados, tal não será concedido; mas, através da opo­
sição de um objectivo ele será determinado como um subjecti­
vo, e a oposição absoluta transformar-se-á em tema e princípio
da filosofia, reduzida pela lógica.
De acordo com este princípio, desaparece também a smtese. Ela
é, dito com urna expressão popular, urna aplicação, e mesmo nesta
figura indigente - para a qual não se pode, de dois opostos absolu­
tos, esperar grande coisa para sintetizar - ela não está de acordo com
o facto de o primeiro tema da filosofia dever ser algo de concebível;
pois mesmo a mais pequena smtese da aplicação contém urna passa­
gem da unidade para a multiplicidade, urna unificação do pensar e
da matéria, inclui portanto em si algo pretensamente concebível. Para
os poder sintetizar, o pensamento e a matéria não deveriam ser pos­
tos como absolutamente opostos, mas sim como sendo originariamen­
te um só, e, com isso, estaríamos diante da triste identidade do sujei­
to e do objecto, da intuição transcendental, do pensar intelectual.
Todavia, nesta exposição prévia e introdutória, Reinhold não
trouxe nada que, partindo do Compêndio de Lógica, pudesse servir
para atenuar aquele tipo de dificuldade que se encontra na oposi­
ção absoluta. Nomeadamente, o Compêndio, para além da matéria
postulada e da sua multiplicidade deduzida, postula também uma
capacidade interna e uma aptidão da matéria para ser pensada;
ao lado da materialidade que tem de ser aniquilada no pensar,
postula ainda mais qualquer coisa que não se deixa aniquilar pelo
pensar, que também não falta à percepção dos cavalos: a saber,
uma forma independente do pensar, com a qual (porque, segundo
a lei da natureza, a forma não se deixa aniquilar pela forma) a forma
do pensar se tem de juntar, fora da materialidade não pensável, da
coisa-em-si, a saber, urna matéria absolutamente representável, que
é independente daquele que representa, mas que, na representa­
ção, é relacionada com a forma 88 . A este referir da forma à maté-
ria Reinhold chama sempre aplicação do pensar, e evita o termo
«representar», que Bardilli emprega para esse efeito. Já se notou
que o Compêndio de Lógica não é senão a filosofia elementar requen­
tada 89 . Não parece que se tenha atribuído a Reinhold o intuito de
ter querido introduzir de novo, no mundo filosófico, a filosofia
elementar 1 nesta forma ligeiramente modificada que o público já Hl.J
não procura, mas sim que a mais simples recepção e a pura apren­
dizagem da lógica se tenha introduzido propriamente com ele na
escola, sem o saber. Reinhold opõe, nos Contributos, a este ponto
de vista sobre o assunto, os fundamentos seguintes:

- Que, em primeiro lugar, em vez de procurar a sua filo­


sofia elementar no Compêndio de Lógica, viu nele uma
«afinidade com o idealismo», e, na verdade, por cau-
sa do desprezo irónico com que Bardilli, sempre que
vem a propósito, menciona a teoria de Reinhold, teria
suspeitado de qualquer outra filosofia além da sua;
- Que as palavras «representação», «representado» e
«mera representação», etc., aparecem no Compêndio em
sentido totalmente oposto àquele que foi utilizado
pelo autor da filosofia elementar, o que ele próprio
teria de saber melhor do que qualquer outro;
- Que quem afirma que aquele Compêndio, num qual­
quer sentido em que se possa pensar, seria uma
reelaboração da filosofia elementar de Reinhold, mos­
trou que nada entendeu daquilo que está a julgar 90 •

Quanto ao primeiro fundamento, o desprezo irónico, não há


nada a acrescentar. O que resta, são afirmações cuja justeza re­
sulta facilmente de uma breve comparação dos momentos fun­
damentais da Teoria 91 com o Compêndio.
De acordo com a Teoria, pertencem ao representar, como
condição interna, elementos essenciais da representação:

a) Uma matéria da representação, o dado da receptivi­


dade, cuja forma é a multiplicidade;
b) Uma forma da representação, o produzido pela espon­
taneidade, cuja forma é a unidade 92 .

Na Lógica:

a) Um pensar, uma actividade, cujo carácter fundamen­


tal é a unidade;
b) Uma matéria, cujo carácter é a multiplicidade;
c) O referir-se de uma à outra chama-se, na Teoria e na
Lógica, representar, só que Reinhold diz sempre apli­
cação do pensar. Forma e matéria, pensar e matéria,
são, em ambas, igualmente subsistentes por si sós.

Ainda no que diz respeito à matéria:

a) Uma parte dela, na Teoria e na Lógica, é a coisa-em-si;


naquela, é o próprio objecto, na medida em que não
é representável 93, mas que tão pouco pode ser nega­
do quanto os próprios objectos representáveis 94; nesta,

U4
é a materialidade que tem de ser destruída no pensar,
a matéria que não é pensável; 1
b) A outra parte do objecto é, na Teoria, a conhecida matéria lJO
da representação 95, na Lógica, a inexterminável forma do
objecto 96 independente do pensar, e que, porque a forma
não pode exterminar a forma, se deve ajustar a ela.

E para lá desta bipartição do objecto - o qual, por um lado, é


uma absoluta materialidade para o pensamento, com a qual o pen­
sar sabe não se ajustar, mas com a qual nada faz senão aniquilá-la,
quer dizer, abstrair dela, e, por outro, é uma peculiaridade do ob­
jecto novamente independente de todo o pensar, mas uma forma
que o toma apropriado para ser pensado, e com a qual o pensar se
ajusta o melhor que pode -, o pensar deve lançar-se à vida w. Da
queda numa tal dualidade, o pensar chega à filosofia com o pesco­
ço partido; uma dualidade pode mudar infinitamente as . suas for­
mas, mas engendra sempre uma e a mesma não-filosofia. Nesta
teoria, que apresenta novamente a sua própria doutrina, Reinhold
vê - de forma não muito diferente da daquele homem, que, para
seu grande contentamento, tivesse bebido o vinho da sua própria
adega - o cumprimento de todas as suas esperanças e desejos,
temtinadas as revoluções filosóficas no novo século, de forma que,
de agora em diante, a eterna paz filosófica pode estabelecer-se ime­
diatamente com a redução universal da filosofia pela lógica.
Reinhold começa o novo trabalho nesta vinha filosófica, como
outrora o jornal político começava cada um dos seus artigos, com
a narrativa de que tudo aconteceu como sempre de modo dife­
rente do que ele tinha vaticinado: «De modo diferente daquele
que anunciara no início da revolução; de modo diferente daque­
le que procurara promover no meio da revolução, de modo di­
ferente daquele que acreditava ter atingido perto do fim; pergun­
ta se não se iludirá pela quarta vez.» 98 Aliás, se a quantidade de
ilusões pode facilitar o cálculo das probabilidades e, relativamen­
te àquilo que se chama uma autoridade, pode ser tomado em
consideração, pode-se, a partir dos Contributos, acrescentar ou­
tras mais àquelas três que foram reconhecidas antes desta últi­
ma, que não tem qualquer realidade:

1) Segundo a p. 126, Reinhold teve de abandonar para


sempre o ponto de vista intermédio que julgava ter
encontrado entre as filosofias de Fichte e de Jacobi;
2) Ele acreditava, julgava, etc. (p. 129), que o essencial
da filosofia de Bardilli se deixava reconduzir ao es­
sencial da filosofia de Fichte, e vice-versa, e lançou-se
com toda a seriedade para Bardilli a fim de o conven­
cer de que era um idealista. Mas não só Bardilli não
foi convencido, como, pelo contrário, foi Reinhold for­
çado, pela carta de Bardilli (p. 130), a abandonar o
idealismo em geral; 1
91 3) Porque a tentativa com Bardilli foi mal sucedida, lan-
çou a Fichte, com insistência, o Compêndio (p. 163),
exclamando: «Que triunfo para a boa causa, se Fichte,
rompendo o baluarte da sua letra e da dele (Bardilli),
avançasse para se unir a eles ! » Como as coisas se
passaram, é conhecido.

Por fim, não se poder esquecer, tendo em conta os pontos de


vista históricos, que as coisas se passaram de forma diferente do
que Reinhold pensava, quando acreditava ver numa parte da
filosofia schellinguiana a totalidade do sistema, e considerava esta
filosofia como aquilo a que habitualmente se chama idealismo.
Como, finalmente, se passará com a redução lógica da filoso­
fia, não é muito difícil vaticinar. A descoberta tem demasiados
préstimos, para nos mantermos fora da filosofia e todavia filoso­
far, para não ser desejada; simplesmente, ela condena-se a si pró­
pria. Nomeadamente, uma vez que entre as muitas formas pos­
síveis do ponto de vista da reflexão se deve escolher uma
qualquer, cada um poderá arranjar a que for mais do seu agra­
do. Seguidamente, chama-se a isso repelir um sistema antigo
através de um novo, e deve chamar-se assim, porque a forma da
reflexão deve ser considerada como a essência do sistema; assim,
o próprio Reinhold poderia ter visto na lógica de Bardilli um
sistema diferente do da sua teoria.
A tendência para a fundamentação que daí parte, no sentido
de reconduzir a filosofia à lógica, como a manifestação fixada
em si :mesma de um dos lados da necessidade universal da filosofia,
tem de tomar o seu lugar necessário e obj e c tivo na
multiplicidade dos esforços da cultura que se relacionam com a
filosofia, mas dar de si mesma uma figura estável antes de
chegar à própria filosofia. O absoluto, na linha do seu próprio
desenvolvimento, que produz até ao seu acabamento, deve, ao
mesmo tempo, refrear-se a si mesmo em cada ponto e organizar-se
numa figura; nesta multiplicidade, ele aparece como formando­
-se a si mesmo.
Se ã hetê�s'ia�é:i� da filosofia não alcança o seu centro, mos­
tra como separados os dois lados do absoluto, que é simultanea­
mente interior e exterior, essência e manifestação: em particular,
a essência interna e a manifestação externa. A manifestação ex­
terna torna-se para si em totalidade absoluta objectiva, em
multiplicidade que se dispersa no infinito, que, no esforço em
direcção à quantidade infinita, anuncia a sua conexão sem cons­
ciência com o absoluto; os cuidados não-científicos devem
justificar-se pelo facto de eles sentirem qualquer coisa da neces­
sidade de uma totalidade, na medida em que se esforçam por
alargar o empírico até ao infinito, apesar de no fim, exactamente
por isso, a matéria se tornar muito escassa. Este cuidar da maté-
ria infinita objectiva 1 constitui o pólo oposto ao da densidade, 92
que se esforça por permanecer na essência interna e não pode
atingir a expansão científica a partir da contracção da sua maté-
ria sólida. Aquele esforço traz à morte da essência, com que lida
numa ocupação infinita, não uma vida, mas sim, todavia, um es­
tremecer, e se as Danaídas, por causa do eterno fluir da água,
nunca atingem a plenitude, também não o atingem aqueles cui­
dados, na medida em que alargam ao infinito o seu mar por meio
de um acréscimo constante 99 . Como não obtêm a satisfação de
nada encontrar que não tivesse sido molhado pela água da chu­
va, precisamente por isso, a sua ocupação alimenta-se continua­
mente da superfície sem limites; fixando-se no adágio segundo o
qual no interior da natureza não penetra nenhum espírito
configurador 1 00, desistem de configurar o espírito e um interior,
e de vivificar o morto transformando-o em natureza. Ao invés, a
força de atracção interior do entusiasta desdenha a água, cuja
contribuição à densidade lhe permitiria cristalizar-se numa figu-
ra; o impulso em fermentação, que resulta da necessidade natu-
ral de produzir uma figura, repele a sua possibilidade e dissolve
a natureza em espíritos, configura-a em figuras sem figura, ou,
se a reflexão prevalece sobre a fantasia, nasce o autêntico cepti­
cismo.
Uma filosofia popular e que se apoia em fórmulas constitui
um falso ponto intermédio entre os dois pontos de vista, que não
os compreendeu e, por isso, acredita poder satisfazê-los pelo facto
d e o princípio de cada um deles permanecer na sua essência e,
d e, a tra vés de uma modificação dos dois, eles se ajustarem u m

ül
ao outro. Ela não concebe ambos os pólos em si, mas, numa
modificação superficial e uma união por vizinhança, deixa esca­
par a essência de ambos, e permanece alheia a ambos e à filoso­
fia. Do pólo da dispersão, ela tem o princípio da oposição, mas
os opostos não devem ser meros fenómenos e conceitos até ao
infinito, mas um deles deve ser também um infinito e inconcebí­
vel; deste modo, seria satisfeita a carência do entusiasta relativa­
mente a um supra-sensível. Mas o princípio da dispersão desde­
nha do supra-sensível, tal como o princípio do entusiasmo
desdenha a oposição do supra-sensível e qualquer permanência
de um limitado diante dele. Do mesmo modo, qualquer aparên­
cia de um ponto intermédio, que a filosofia popular dá ao seu
princípio de uma não-identidade de um finito e de um infinito,
será rejeitado pela filosofia, que transforma em vida a morte dos
termos cindidos, por meio da identidade absoluta, e através da
razão, que os devora a ambos e os põe, maternalmente, em igual­
dade, quer atingir a consciência desta identidade do finito e do
infinito, quer dizer, o saber e a verdade.
NOTAS
t C. A. Eschenmayer (1768-1 852), filósofo, físico, médico e teólogo

especulativo, personagem de segundo plano no contexto do desenvolvimen­


to do idealismo alemão, mas autor de algumas obras curiosas, em parti­
cular no domínio da filosofia da natureza; quase sempre em reacção a
Schelling (de quem era, aliás, amigo e correspondente), elas serviram mui­
tas vezes ao próprio Schelling de estímulo para a elaboração do seu pró­
prio pensamento. Na «Advertência prévia» à Exposição do Meu Sistema de
Filosofia (SW, IV, p. 1 13), Schelling aconselha a leitura das obras de
Eschenmayer sobre filosofia da natureza, tanto pelo seu valor intrínseco
quanto pela possibilidade que oferecem de tornar claras as diferenças entre
o pensamento de Eschenmayer e o seu. A «resposta de Schelling às objec­
ções idealistas de Eschenmayer», mencionada por Hegel, é o pequeno arti­
go publicado em inícios de 1801 na Zeitschrift für spekulative Physik, Band 2.
1 .0 Heft, intitulado « Über den wahren Begriff der Naturphilosophie» (cf.
SW, Band IV, pp. 81-103), em resposta ao ensaio de Eschenmayer «Spon­
taneitãt= Weltseele, oder das hõchste Princip der Naturphilosophie», pu­
blicado no mesmo número da referida revista.
2 Sache Selbst no original. Esta expressão (de que há outras traduções
igualmente possíveis para português: «coisa mesma», «próprio assunto»,
etc.) é muito frequente em Hegel; embora não conheçamos ao certo a sua
origem, registamos já a sua presença em Schelling, com um sentido idên­
tico ao que lhe é dado por Hegel, sendo talvez uma das marcas da forte
presença schellinguiana - aliás natural, dada a importância filosófica de
Schelling nesta altura - na Differenzschrift. A «própria coisa», ou a «coisa
mesma» significa «aquilo que está em causa», isso mesmo de que a obra
trata - o seu assunto, portanto -, e cujo movimento de auto-apresentação
o fi lósofo deverá seguir. Os textos de Schelling, próximos no tempo da

l >(fferenzsch rift, em que esta expressão ocorre são: Sistema do Idealismo

131
Transcendental (SW, III, p. 332), Acerca do Verdadeiro Conceito da Filosofia da
Natureza (SW, IV, p. 83) e Exposição do Meu Sistema de Filosofia (SW, IV,
p. 1 14).
3 Hegel refere-se à obra do teólogo Fr. Schleiermacher intitulada úber
die Religion. Reden an die Gebildeten unter ihren Veriichtern, publicada em 1799.
Posteriormente, em Glauben und Wissen (in Gesammelte Werke, «Jenaer
Kritische Schriften», hrsg. von Hartmut Buchner und Otto Põggeler, Band
4, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1968, p. 385), Hegel pronunciar-se-á cri­
ticamente acerca de Schleiermacher, mas, em 1801, percebe-se a importân­
cia que esta obra possa ter tido a seus olhos, em sintonia com os seus
próprios projectos filosóficos. A religião representava, para Schleiermacher,
uma forma de o homem se elevar acima da vida finita, ou seja, da influên­
cia que o mundo dos objectos exerce sobre si, permitindo-lhe, assim,
desprender-se do poder do entendimento e da sua legislação.
4 Reinhold, Beitriige, 1. Heft, pp. 5 e segs.
s O termo «razão», neste contexto, deve ser entendido no sentido que
Schelling lhe deu na Exposição do meu Sistema de Filosofia, embora o facto de
a Differenzschrift ter sido publicada quase simultaneamente torne pouco
verosímil a existência de uma influência directa de Schelling sobre Hegel,
pelo menos no plano textual. Em todo caso, este era um dos temas sobre
que assentava o trabalho comum dos dois autores. (Aliás, e mau grado
algumas diferenças que iremos assinalando, a linguagem desta primeira
obra de Hegel ainda é, como já dissemos, largamente schellinguiana.) Para
a compreensão desta passagem, o leitor reportar-se-á aos §§ 1 e 2 da men­
cionada obra de Schelling, in SW, IV, pp. 1 14-1 16, nos quais se defende:
1) que esta razão deve ser considerada como uma razão absoluta, ou seja,
uma razão na qual o pensar abstraiu daquele que pensa, e que não é,
portanto, razão de um � ujeito, mas não é também razão objectiva, na me­
dida em que algo de objectivo só é possível por oposição ao subjectivo;
2) que uma tal razão nada tem fora de si, de modo que o seu ponto de
vista é o do absoluto na sua automanifestação.
6 Não é impossível que Hegel, aqui, se queira distanciar tanto de Fichte

como de Schelling. Efectivamente, em 1796, nas Cartas Filosóficas sobre o


Dogmatismo e o Criticismo, Schelling defendera que o princípio supremo em
que se apoia uma filosofia - seja dogmática ou crítica - não pode ser
demonstrado teoricamente, devendo antes ser produzido como resultado
de uma livre decisão do filósofo. Fichte, no ano seguinte, na Segunda Intro­
dução à Doutrina da Ciência, fizera eco a esta tese, dizendo que o tipo de
filosofia que se escolhe depende do tipo de homem que se é. E ainda em
1801, poucas semanas antes da publicação da Differenzschrift, Schelling
publicara, como dissemos, uma Exposição do Meu Sistema de Filosofia. No
fundo, tanto Fichte como Schelling limitaram-se a retomar uma tese
kantiana; Kant defendera que os sistemas filosóficos rivais têm a sua ori­
gem no espírito humano (cf. Crítica da Razão Pura, Prefácio à 1.11 edição,
A VII-IX) e que uma análise do modo como ele se compreende a si m l•s m o
nos daria a chave para a compreensão de todos eles. Consequência i m por­
tante: o conhecimento correcto do modo como o espírito humano func ionn
- tarefa que a Crítica da Razão Pura teria, segundo Kant, levado a cabo -
permitiria a instauração da paz filosófica. Hegel recusa esta perspectiva,
não tanto por julgar esta paz impossível, qtlanto por admitir que a sua
instauração supõe o desenvolvimento, e mesmo a agudização, de todos os
conflitos e dilacerações de que o espírito humano é capaz, até que daí re­
sulte, já não simplesmente mais um sistema, mas a consciência da própria
sistematicidade do espírito, expondo-se ao longo da sua história. (Não é de
excluir que Schelling tenha reagido imediatamente a esta tese hegeliana,
corrigindo-se a si mesmo, ao publicar, em 1802, as Exposições Ulteriores a
partir do Sistema de Filosofia, e já não, note-se, como ainda em 1801, a partir
do «meu» sistema.)
7 Em francês no original.
8 Traduzimos Bedürfnis por «necessidade», reservando «carência» para
a tradução de Mangel. Os contextos em que a palavra ocorre não permitem
qualquer confusão com outros sentidos de «necessidade», em particular
aquele que corresponde à palavra alemã Notwendigkeit. Quanto à· expressão
Bedürfnis der Philosophie, registe-se uma primeira ocorrência sua na «Intro­
dução» a Ideias para uma Filosofia da Natureza, de Schelling (SW, II, p. 15,
nota /H.KA, 1/5, p. 72), embora com um sentido diferente daquele que Hegel
lhe dará na Differenzschrift; Schelling defende que, tendo o homem quebra­
do os laços de solidariedade que o ligavam à natureza, separando-se dela
com o fito de a conhecer e dominar, necessita da filosofia apenas para
melhor compreender essa natureza de que se separou. Mas o fim da hu­
manidade é o restabelecimento daqueles laços, de modo que, não só a fi­
losofia, mas mesmo o seu próprio nome, estão condenados a desaparecer,
uma vez ultrapassada aquela separação.
9 Cf. Beitriige, 1. Heft, pp. 106 e segs.
10 Cf. ibidem, p. 106. Quer-nos parecer que Hegel simplifica um pouco a
tese de Reinhold, que parte de uma reflexão acerca da natureza da cópula «é».
Num juízo, por exemplo, defende Reinhold, apenas o «é» exprime aquilo que
pertence ao pensar enquanto pensar. Este, pelo seu lado, não pode ser defini­
do, em termos kantianos, como a função que opera a síntese do diverso, pois
é impossível de articular de acordo com as divisões do quadro categorial. (Daí
que, para Reinhold, não haja lugar para qualquer dedução transcendental: as
categorias têm a sua origem na matéria a que o pensamento se aplica, sendo
estranhas à sua essência enquanto puro pensamento.) Tudo o resto - aquilo
de que se julga, se se tratar de um juízo -, é acrescentado ao pensar, não
pertence ao pensamento puro e constitui aquilo a que chamámos a sua maté­
ria. Em linguagem hegeliana, diríamos que, para Reinhold, a única identidade
que podemos conceber é a do pensar consigo mesmo, enquanto a diferença,
que aquela identidade nunca poderá reduzir a si, é a que separa o próprio
pensar da matéria do pensamento. (Sobre o mesmo assunto, cf., igualmente,
ílard i l l i, Grundriss der ersten ú:Jgik, pp. 19-21.)
11 Reinhold, ibidem, p. 96.
12 Acerca das concepções de análise e de síntese, que são aqui pressu­
postas, dever-se-á consultar o Sistema do Idealismo Transcenden tal, de
Schelling (SW, III, pp. 455-456) . O procedimento sintético consiste em se­
guir as acções do Eu, no termo das quais surge, para este, um mundo
objectivo, ao passo que o procedimento analítico supõe aquelas acções já
realizadas e transformadas em conceitos de acção. Assim, o filósofo pode,
uma vez que aquelas acções tenham acedido à reflexão, enumerá-las e
descrever o seu modus operandi, ou seja, a forma como, no plano da síntese
derivada do conhecimento, se aplicam ao diverso da intuição.
1 3 Vários poderão ser os visados por Hegel, nesta sua crítica da certe­
za imediata da crença, como relação com um absoluto posto fora do saber.
Em primeiro lugar, evidentemente, Friedrich Heinrich Jacobi, que, em David
Hume über den Glauben, oder Idealismus und Realismus (publicado em 1787),
criticara Kant por este, alegadamente, ter submetido a sensibilidade ao en­
tendimento, mera capacidade formal para ligar conceitos, mas desprovida
de qualquer conteúdo material. Só a sensação poderia ser, para Jacobi, a
percepção de alguma coisa efectiva, de algo de positivo cuj a realidade
postulamos e é o objecto primeiro da nossa crença. Não é de excluir, igual­
mente, que Eschenmeyer (cf. nota n.0 1) seja aqui também avisado, que,
contra Schelling, defendera a existência de um absoluto exterior ao absolu­
to da filosofia, acessível somente mediante a crença. Finalmente, não é ain­
da de excluir a hipótese de Hegel visar os mais recentes desenvolvimentos
do pensamento de Fichte, em particular a tese expressa na 3. ª Parte de
A Destinação do Homem, 1800, intitulada, justamente, «Cren­
p ublicada em
ça». (No entanto, Hegel não cita A Destinação do Homem, não sendo, por
isso, possível garantir que, em 1801, já a conheceria.) Esta obra encontrou­
-se no centro do intenso debate epistolar travado por Fichte e por Schelling,
nos anos 1800-1802. A tese schellinguiana, que Hegel, ao que nos parece,
quanto ao essencial compartilha, resume-se ao seguinte: Fichte nega que o
saber possa conter em si o princípio do real ( «Ü que nasce através do saber
e a partir do saber é apenas saber.»), de modo que o reconhecimento desta
impossibilidade condu-lo a procurar na crença o que não é possível de en­
contrar por meio da especulação.
14 O visado pode, uma vez mais, ser Fichte, que, em A Destinação do
Homem (cf. SW, II, pp. 246-247 / GA, 1/6, p. 252), separara o saber e a rea­
lidade e afirmara a impossibilidade de atingir a segunda através do pri­
meiro. Para ultrapassar o abismo entre um saber entregue aos seus próprios
princípios reflexivos e uma realidade inatingível, Fichte, como dissemos na
nota anterior, afirmava a realidade de uma crença - que, em última ins­
tância, é de natureza moral, pois abre ao domínio da intersubjectividade e
do direito - que liga o homem ao solo onde se enraíza toda a especula­
ção. A argumentação de Hegel, na Differenzschrift, será retomada por
Schelling em carta a Fichte de 3 de Outubro de 1801 . (Cf. Fich te, Ge­
samtausgabe, Band 111/5, pp. 82-83.)

______________ ___._,._________ _ _ - . - - -
1s Hegel resume, nestas linhas, um dos aspectos mais complexos da
filosofia da natureza de Schelling, e da filosofia da identidade. Para um cor­
recto entendimento do texto, salientamos os aspectos seguintes. 1) Schelling
caracteriza a identidade absoluta como indiferença entre o sujeito e o ob­
jecto e simboliza-a por A B. 2) Face a ela, quer o espírito, quer a matéria,
=

representam apenas o predomínio de um dos pólos daquela identidade, de


modo que os podemos representar por A+ = B ou por A= B+; neste sen­
tido, a diferença entre espírito e matéria é meramente quantitativa, pois a
matéria é aquela mesma identidade, na qual, somente, a objectividade se
tornou predominante; Schelling chamará também à matéria (mas num tex­
to de 1803, posterior, portanto à Differenzschrift; cf. SW, II, p. 225) a «eterna
produção da infinitude na finitude». 3) O espírito, ou princípio ideal, é,
enquanto tal, ilimitável, mas pode tornar-se limitado na medida em que se
identificar com o real. Ao ser-limitado do princípio ideal =A, Schelling
chama o peso, considerando-o como o princípio das diferenças qualitativas
entre os corpos (ou seja, do modo como cada um preenche a porção deter­
minada de espaço que ocupa). 4) Mas, sendo ilimitado enquanto ideal, A
não se pode deixar identificar totalmente com o real, esforçando-se por
recuperar os seus direitos ou a sua idealidade; é, segundo Schelling, o que
acontece com o fenómeno da luz. 5) A luz é, então, A numa potência su­
perior� quer dizer, o ideal que venceu o limite que lhe foi imposto pelo
real. Schelling representa-o por A2, ou potência superior de A. (Sobre estes
assuntos, cf. o Primeiro Projecto de um Sistema de Filosofia da Natureza, in
S W, II, p . 24, n. 1 ; Dedução Geral dos Processos Dinâmicos, S W, IV,
pp. 45-46; Exposição do Meu Sistema de Filosofia, SW, IV, pp. 148-152.)
16 Reinhold, Beitriige, 1 . Heft, p. 1 1 1 .

1 7 Idem, ibidem, p. 98.


1s Cf. Fichte, Grundlage der Gesamten Wissenschaftslehre, SW, 1, p. 110/

GA, 1/2, p. 272. Hegel não cita correctamente. Fichte escreve: «Eu oponho»
(Ich setze) e não «o Eu opõe» (Ich setzt) . Este equívoco tem pesadas
consequências para toda a interpretação hegeliana do pensamento de Fichte;
é justamente a livre actividade . do filósofo que desaparece, resultando da­
qui, imediatamente, uma ontologização do Eu fichteano, que nada na Dou­
trina da Ciência autoriza.
19 Idem, ibidem, SW, I, pp. 224-225 / GA, 1/2, pp. 366-367.
20 Reinhold, Beítriige, l. Heft, pp. 124 e segs.
21 Fichte, ibidem, SW, 1, p. 127 / GA, 1/2, p. 287.

22 Não cairá Fichte numa contradição, na medida em que parece afir­

mar que, no Eu, o Eu se suprimiu (ou seja, não é posto), para se pôr o
não-Eu, mas também que, no Eu, o Eu tem de ser posto para se pôr o
não-Eu? Mas só existiria contradição, como Hegel parece defender, se Fichte
a fi rmasse que o Eu é não-Eu; ora tal não acontece. A 3.ª proposição-de­
=

-fundo diz-nos apenas que o eu empírico (ou inteligente) e o não-Eu são


n•c i procamente limitados, de modo que ambos podem coexistir no Eu ab­
sol u to . Esta limitação recíproca é de ordem quantitativa: há uma certa quan-

U[i
tidade de actividade que é limitada no Eu, à qual corresponde uma certa
quantidade de actividade que é afirmada no não-Eu.
23 Cf. com o que dizemos, na Introdução, acerca da intenção de Fichte

em proceder a uma génese das categorias de Kant, e da incompreensão,


por Hegel, das intenções fichteanas.
24 Fichte, Das System der Sittenlehre, S W, Bd. IV, pp. 105 e segs./GA, 1/5,
pp. 105 e segs.
25 Idem, Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre, SW, 1, p. 289 / GA, 1/2,

p. 419.
26 Idem, Das System der Sittenlehre, SW, Bd. IV, p. 109 / GA, 1/5, p. 108.
27 Idem, ibidem, SW, Bd. IV, p. 108 / GA, 1/5, p. 1 07.
28 Idem, ibidem, SW, Bd. IV, p. 130 / GA, 1/5, p. 125.

29 Idem, ibidem, SW, Bd. IV, pp. 1 1 1 e segs. / GA, 1/5, pp. 109 e segs.
Cf., igualmente, A Destinação do Homem, S W, Bd. II, p. 1 84 / GA, 1 / 6,
pp. 202-203. A natureza determinada formaliter é, segundo Fichte, a natureza
tal como Espinosa a concebeu, na qual cada produto - na obra menciona­
da, Fichte socorre-se do exemplo de uma árvore -, nas suas exteriorizações,
quer dizer, no aspecto exterior que sucessivamente reveste, não faz senão
aquilo que a sua natureza interna lhe exige. Se imaginássemos uma tal ár­
vore dotada de consciência, esta seria apenas a observação das fases neces­
sárias do seu crescimento, nunca a origem de um sentimento de limitação.
Qualquer limitação só lhe poderia aparecer como algo que, do exterior,
perturbasse o seu desenvolvimento, inflectindo-o numa direcção diferente
daquela que normalmente tomaria. Neste sentido, pode afirmar-se que a
árvore está completamente determinada, não possuindo a indetermina­
ção do ser livre, ou seja, a possibilidade de escolher entre determinações
opostas.
3 0 Idem, Das System der Sittenlehre, SW, Bd. IV, pp. 126 e segs. / GA, 1/5,

pp. 121 e segs.


3t Idem, ibidem, SW, Bd. IV, p. 131 / GA, 1/5, p. 126.

3 2 Idem, ibidem, SW,- Bd. IV, pp. 144 e 131 / GA, 1 /5, pp. 136 e 126.

33 Idem, ibidem, SW, Bd. IV, p. 139 / GA, 1/5, p. 231 .

34 Idem, ibidem, S W, Bd. IV, p . 1 1 3 / GA, 1/5, pp. 1 1 1-112.

3 5 Idem, ibidem, SW, Bd. IV, p. 114 e segs . / GA, 1 /5, pp. 112 e segs.

36 Idem, Grundlage des Naturrechts, SW, Bd. III, pp. 57 e segs . / GA, 1/3,

pp. 361 e segs.


37 Idem, ibidem, SW, Bd. III, pp. 67 e segs . / GA, 1 /3, pp. 369 e segs.

38 Idem, ibidem, SW, Bd. III, p. 61 / GA, 1/3, p. 363.

39 Idem, ibidem, SW, Bd. III, pp. 86 e segs . / GA, 1 / 3, pp. 384 e segs.
Hegel distorce um pouco o pensamento de Fichte. Na realidade, este escre­
vera: «Cada um pôs também como matéria o corpo do outro, como maté­
ria configurável conforme o conceito: cada um prescreveu em geral a si
mesmo a faculdade de modificar a matéria. Cada um pode, por isso, cla­
ramente, modificar o corpo do outro, na medida em que ele é m n terin l . »
É óbvio que a intenção d e Fichte é mostrar q u e o ou tro, n a med i d o cm q m •
não é apenas um corpo material, mas também um ser de razão, não pode
ser modificável, e que a minha acção sobre ele depende de uma lei da li­
berdade. Por outras palavras: o outro exige-me que o reconheça como livre
e que paute por essa decisão a minha relação com ele. O que Fichte defen­
de, e nisto Hegel já não o seguirá, como a leitura do seguimento tornará
claro, é que não há nenhum fundamento absoluto para que um ser racio­
nal mantenha aquela decisão, que é, por este motivo, obra da liberdade.
40 Idem, ibidem, SW, Bd. III, pp. 85 e 92 e segs./GA, 1 /3, pp. 383-384 e
389 e segs.
41 Idem, ibidem, SW, Bd. III, p. 294/GA, 1/4, p. 86.
42 Idem, ibidem, SW, Bd. III, p. 302 / GA, 1/4, p. 92.

43 Kant, Zum Ewigen Frieden, B 93 / Kants Gesammelte Werke, Ak. Ausg.,

Bd, 8, pp. 378-379. Kant diz: «A proposição, de facto bem sonante, posta
em circulação sob forma de sentença, mas verdadeira: fiat iustitia, pereat
mundus, que significa em alemão. «que a justiça domine, mesmo que todos
os malandros do mundo desapareçam totalmente com ela», é uma pedra
angular e um princípio fundamental do direito, que corta todos os cami­
nhos ínvios traçados pela astúcia ou pelo poder.»
44 Fichte, Das System der Sittenlehre, S W, IV, p. 152 / GA, 1/5, p. 143.

45 Idem, ibidem, p. 353/p. 307.


46 Idem, ibidem, p. 355 /p. 3 09.

47 Idem, ibidem, p. 354/p. 30 8.


48 Idem, ibidem, p. 3 54 /p. 30 8 .

49 Das Differente, no original.


50 O primeiro «ideal» traduz o alemão Ideal, e o segundo, o alemão
Ideel. Ideal é o objecto fora do absoluto e, por conseguinte, oposto ao sujei­
to; Ideel é o sujeito oposto ao objecto.
51 Fichte, Grundlage der Gesamten Wissenschaftslehre, SW, 1, p. 253/GA, 1/2,
pp. 391-392. Fichte, no entanto, não diz que, para Deus, o seu sistema seria
apenas formalmente correcto, mas sim, o que não é bem a mesma coisa,
que até mesmo para Deus ele teria correcção formal.
52 Sobre o conceito de razão absoluta, cf. Schelling, Darstellung meines
Systems der Philosophie, SW, Bd. IV, pp. 1 14-1 15.
5 3 Idem, ibidem, pp. 123 e segs.

54 Idem, System des transzendentalen Idealismus, «Vorrede», in SW, III,

pp. 329 334.


-

55 Kant, Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, A 34 e segs./

Ak. Aus g ., Bd. 4, pp. 496 e segs.


56 Idem, ibidem, A VIl/pp. 469-470.

57 Idem, ibidem, A XVI/p. 474.

ss Espinosa, É tica, Livro II, Prop. VII. .


59 Cf. Jacobi an Fichte, in Werke, Leipzig, Fr. Roth e Fr. Kõppen, 1812-

- 1 82 5 , Bd. III, p. 29.


60
O magnetismo, a electricidade e os processos químicos constihtem,
pn rn Schel l i ng, a 2.ª potência da construção do mundo material, ou «pro-

HZ
cesso dinâmico». Convém, no entanto, que não se compreenda a relação
entre estes três momentos como relevando de uma sucessão de carácter
temporal. São, em primeiro lugar, categorias que se encontram ao serviço
da nossa especulação, ou seja, do modo como o espírito humano expõe a
construção da matéria; e como cada etapa da construção da matéria repete,
a um nível superior, o que aconteceu em todos os outros, não há processos
químicos sem magnetismo ou electricidade, tal como, aliás, nesta 2." potên­
cia da construção do mundo material se repetem os mesmos momentos da
l.ª potência (a saber, a força atractiva, a força repulsiva e o peso). Por outro
lado, Schelling defende que aquelas categorias têm um carácter dinâmico e
não meramente transcendental; isto significa que não constituem somente,
à maneira kantiana, uma condição de possibilidade do nosso conhecimento
do mundo material, pois são, em primeiro lugar, as condições originárias
que possibilitam que a matéria se construa a si mesma. (Cf. Primeiro Pro­
jecto de um Sistema de Filosofia da Natureza, SW, Bd. III, pp. 1-268 /H.KA, Bd.
I / 7; Dedução Geral do Processo Dinâmico, SW, Bd. IV, pp. 1-78; Exposição do
Meu Sistema de Filosofia, esp. §§ 68-159, S W, Bd. IV, pp. 153 e segs.)
61 Para uma melhor compreensão do significado do conceito de forma,
tal como Hegel aqui o emprega, cf. Schelling, Exposição do Meu Sistema de
Filosofia (§ 15), S W, IV, p. 120: «A identidade absoluta existe apenas sob a forma
da proposição A = A, ou esta forma é imediatamente posta pelo seu ser. Pois
ela só existe de forma incondicionada e não pode ser de modo condiciona­
do, mas o ser incondicionado pode apenas ser posto sob a forma daquela
proposição. Portanto, com o ser da identidade absoluta é posta também
imediatamente aquela forma, e não há aqui nenhuma passagem, nenhum
antes ou depois, mas sim absoluta simultaneidade do ser e da própria
forma.» Uma primeira ocorrência do conceito de forma, em Schelling, num
sentido já muito próximo do que adquirirá posteriormente na filosofia da
identidade, encontra-se no Primeiro Projecto de um Sistema de Filosofia da Na­
tureza, de 1 799, in SW, III, p. 1 3 / HKA, I/7, p. 78.
62 A exigência de abstrair daquele que pensa, para se ficar com o «puro

objectivo» da intuição (a que Hegel, na Differenzschrift, chama transcen­


dental), fora já formulada por Schelling no § 1 da Exposição do Meu Sistema
de Filosofia (S W, IV, pp. 1 14-1 15). Este puro objectivo, contudo, não é o
objecto oposto ao sujeito, dado que este não é mais tido em conta, mas o
em-si verdadeiro, ou seja, o ponto de indiferença entre o subjectivo e o
objectivo.
63 A mesma palavra portuguesa «objecto» traduz, neste contexto, res­
pectivamente, Gegenstand e Objekt. No primeiro caso significa o mesmo que
«tema de estudo», ou «conteúdo», no segundo caso, «aquilo que se opõe
ao sujeito».
64 Reinhold, Beitriige, 1 . Heft, p. 86.

65 Idem, ibidem; p. 85.


66 Cf. Schelling, Sistema do Idealismo Transcenden tal, in S W, Bd . I I I ,

p. 342: «Se, portanto, há uma filosofia transcendental, só lhe res ta a d i rt•c-


ção oposta: partir do subjectivo como o primeiro e absoluto e fazer surgir dele o
objectivo. Portanto, a filosofia da natureza e a filosofia transcendenta l
dividiram-se nas duas possíveis direcções da filosofia; e se toda a filosofia
deve, ou fazer surgir da natureza uma inteligência, ou fazer surgir da inte­
ligência uma natureza, então, a filosofia transcendental, que tem esta últi­
ma tarefa, é a outra ci€ncia fundamental necessária da filosofia.»
67 Hegel cita o § 63 da Dedução Geral do Processo Dinâmico ou das Cate­

gorias da Física, publicado em 1800 (no mesmo anos, portanto, do Sistema


do Idealismo Transcendental) no referido número da Revis ta de Física
Especulativa, que Schelling fundara e dirigia em Jena. A passagem citada
pode ler-se em SW, Bd. IV, p. 76.
68 Reinhold, Beitriige, 1 . Heft, pp. 96 e 98.

6 9 Hegel refere-se ao artigo de Schelling, publicado na Zeitschrift für

spekulative Physik (Zweyten Bandes, ertes Heft, pp. 1 1 0-146), intitulado


«Anhang zu dem Aufsatz des Herrn Eschenmayer bettrefend den wahren
Begriff der Naturphilosophie und die richtige Art ihre Probleme auf­
zulõsen». Este artigo era uma resposta de Schelling ao artigo de Es­
chenmayer intitulado «Spontaneitãt = Weltseele oder das hõchste Prinzip
der Naturphilosophie», publicado no mesmo número da revista, pp. 3-68.
O artigo de Schelling pode ser lido em SW, Bd. IV, pp. 81-103.
10 Idem, ibidem, pp. 1 e segs., p. 90.
11 Idem, ibidem, p. 77.

72 Hegel refere-se à obra do filósofo materialista francês Paul-Henri

Dietrich d'Holbach, Systeme de la Nature ou des Lois du Monde Physique et du


Monde Moral, publicada em Londres em 1770. O objectivo de d'Holbach
era mostrar que o estudo da natureza comprovava que o argumento das
causas finais, utilizado na demonstração da existência de Deus, era
injustificado. A ordem da natureza consistia, segundo o autor francês, numa
disposição rigorosamente necessária das suas partes constituintes elemen­
tares, em resultado da essência da matéria, tal como se exprimia, por exem­
plo, nos princípios da gravitação universal de Newton.
73 Idem, ibidem, p. 153.

74 Pelo tom e pelo conteúdo, esta passagem da Differenzschrift pode

comparar-se com a longa nota de Schelling à p. 1 12 da Exposição do Meu


Sistema de Filosofia. O mencionado artigo do Teutscher Merkur, publicado
em Março de 1801, intitulava-se «Ü espírito da época enquanto espírito da

filosofia».
75 Idem, ibidem, pp. I V e VI.
76 Idem, ibidem, pp. v e segs.

71 Idem, ibidem, p. 108.

78 Idem, ibidem, pp. 90 e segs.

79 Idem, ibidem, p. 67.


Ho
Idem, ibidem, p. 69.
H I Idem, ibidem, p. 141.
H2 Idem ibidem, p. 140.
,

Ui
83 Idem, ibidem, pp. 70-75, passim.
84 Idem, ibidem, pp. 100 e 106 e segs.
ss Idem, ibidem, pp. 107 e 1 10.

86 Materiatur no original. O termo é empregue por Bardilli nos Grundriss


der ersten Logik, p. 35.
87 Cf. Bardilli, Grundriss der ersten Logik, p. 1 14: «Seria todavia uma

contradição querer procurar ainda um plus no «uma vez um eternamente


um», enquanto é um e eternamente um. Para ser possível a aplicação da­
quele um, tem, portanto, de ser acrescentado um plus, ou seja, um qual­
quer coisa. Este qualquer coisa não pode ser de novo aquele um; pois, a ser
assim, não teríamos nenhum plus, mas sim, novamente, o próprio um. Este
qualquer coisa, porém, tem de ser constituído de tal modo que aquele um
o possa aceitar; de outra forma, como é que se reuniriam aquele um e este
qualquer coisa?» Cf., igualmente, Reinhold, Beitrãge, 1 . Heft, pp. 1 1 1 e segs.
88 Bardilli, op. cit., pp. 66, 67, 88, 1 14, etc.

89 Filosofia elementar (Elementarphilosophie) é o nome pelo qual


Reinhold designa a sua própria filosofia, a partir de 1789, data em que
publica uma das suas obras principais, o Versuch einer neuen Theorie des
menschlichen Vorstellungsvermogens. Aquela designação, que recorda, certa­
mente, a «Doutrina Transcendental dos Elementos» da Crítica da Razão Pura,
mas, igualmente, os Elementos de Geometria, de Euclides, indica a tarefa que
Reinhold se propunha levar a cabo, prosseguindo os intentos sistemáticos
pressupostos, mas nunca cabalmente explicitados, na obra de Kant: estudar
a faculdade representativa humana, para nela descobrir os elementos fun­
damentais de todo o conhecimento.
90 Reinhold, Beitrãge, 1. Heft, pp. 128 e segs.

9 1 Hegel refere-se à obra de Reinhold intitulada Versuch einer neuen


Theorie des menschlichen Vorstellungsvermogens, que mencionámos na nota 89.
9 2 Reinhold, ibidem, pp. 230 e 255-285. Na p. 230 (início do § xv),

Reinhold escrevera: «Pertence a cada representação, como condição interna


(como elemento essencial da mera representação), algo que corresponde ao
representado (o objecto, distinguido, pela consciência, da representação); e a
isto chamo a matéria da representação.» Na p. 255 (início do § xvm): «Em
cada representação, a mera matéria deve ser dada, e a mera forma deve ser
produzida para ela.»
93 Idem, ibidem, p. 244.
94 Idem, ibidem, p. 433.
95 Idem, ibidem, p. 304.

96 Bardilli, Grundriss der ersten Logik, p. 82. Hegel não cita correctamen­
te. Bardilli não emprega a expressão «forma do objecto», mas sim «forma
na matéria» (Form am Stoffe) do objecto, referindo-se ao espaço tridimen­
sional, que permite que o pensar, aplicando-se a ela, possa criar as propo­
sições apodícticas da ·geometria.
97 Idem, ibidem, p. 69.
98 Reinhold, Beitriige, 1. Heft, pp. III-IV.
99 A compreensão do sentido desta passagem, difícil de traduzir, é fa­

cilitada pela atenção a um subtil jogo de palavras, intraduzível para portu­


guês, entre os dois sentidos do verbo alemão regen: estremecer e chover.
Hegel compara o provocar um estremecimento com o fim de simular a
vida, mas que não produz vida autêntica, com uma tentativa de esvaziar o
mar que fosse constantemente contrariada pelo acréscimo da quantidade
da água, provocado pela chuva. Nos dois casos, estamos diante de uma
tarefa impossível.
100 Cf. Albrecht von Haller, «Die Falschheit der menschlichen Tugen­
den», in Versuch schweizericher Gedichte, Bem, 1732.

141
GLOSSÁRIO ALEMÃO-PORTUGUÊS
Anfang - início Einsicht - intelecção
Ansich - em-si Endlos - sem-fim; interminável
Aufheben - suprimir Endlosigkeit - sem-fim
Aussersichgestztsein - ser-posto- Endzweck - fim final; finalidade
-fora-de-si Entgegensetzung - oposição
Bedingtheit - carácter-condicionado Entzweiung - cisão
Bedingung - condição Ergãnzung - complemento
Bedürfnis - necessidade Erklãrungsgrund - fundamento de
Bedürftiges - necessitado explicação
Begrenztheit - carácter-limitado Erscheinung - aparecimento; fenó-
Beschrãnkung - limitação meno
Bestand - estabilidade Gegensatz - antagonismo; oposto
Bestehen - (v.) subsistir; (sub.) sub- Gemüt - espírito
sistência Gestalt - figura
Bestehendes - (sub.) subsistente Gestaltung - figuração
Bestimmen - determinar; definir Glaube - crença; fé
Bestimmtheit - determinidade Gleichheit - igualdade
Bestimmung - determinação; definição Grund - fundamento
Bewusstlos - sem consciência Grundlegung - fundamentação
Beziehung - relação; referência Grundsatz - proposição-de-fundo
Bürger - cidadão Handeln - agir
Darstellen - expor; apresentar Handlung - acção
Darstellung - exposição; apresentação Ichheit - egoidade
Dasein - existência Ideell - ideal
Di ese lbigkeit - mesmidade Mangel - carência
Eige n tü m l ich - próprio Mangelhaftigkeit - insuficiência
E i gcn tü mlichkeit - peculiaridade; Materiatur - materialidade
propried ade Neigung - inclinação

1 4/J
Nicht-Ich - não-Eu Ungleichheit - desigualdade
Not - indigência Unterschied - distinção
Prinzip - princípio Vereinigung - unificação
Rãsonieren - raciocinar Verendlichen - finitizar
Realgrund - fundamento-real Verhãltniss - relação
Reelle - real Vermittlung - mediação
Reflektierende - reflexionante Vermõgen - faculdade; poder
Sache - coisa Vernichten - aniquilar
Satz - proposição; princípio Vernunftwesen - ser racional; ser-
Schein - aparência -de-razão.
Schranke - limite Verschiedenheit - distinção
Schwãrmerei - fanatismo Vervollstãndigung - completação
Selbstanschauung - auto-intuição Verweisen - remeter
Sittlichkeit - eticidade Verwirrung - perturbação
Selbstsetzen - autoposição Vollstãndigkeit - completude
Sich-selbst-setzen - pôr-se-a-si- Voraussetzung - pressuposição
-mesmo Wechselverhãltniss - reciprocidade
Sich-Setzen - pôr-se Willkür - arbítrio
Standpunkt - tomada de posição Wirken - actuar
Streben - esforço Zerreissen - despedaçar
Tat - acto Zerstõrung - destruição
Tãtigkeit - actividade Zerstreuen - dispersar
Trennung - separação Zufall - acaso
Trieb - impulso Zufãlligkeit - contingência
Tun - agir Zusammenhang - conexão
Unbegreifflich - ininteligível Zweckmãssigkeit - conformidade a
Unbestimmtheit - indeterminação um fim

1 4b
ÍNDICE

Introdução de CARLOS MORUJÃO ....... . ........... ............ . ........ . ... . ..... . . . .... . . . . ..
. . 7

Bibliografia . . . ..... . ..... . . . .......... . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. .. . . . . . ........... . . . . . ........ ...... . . .. ..... . ...


. . . . . . . . 25

DIFERENÇA ENTRE OS SISTEMAS FILOSÓFICOS


DE FICHTE E DE SCHELLING

Advertência prévia ......................................................................................... 29


As diversas formas que aparecem no filosofar dos nossos dias .. .. . . 33
Exposição do sistema de Fichte . ........ . ...... ......... .. ................ .... . .. .. ... . ......
. . . 61
Comparação entre o principio da filosofia de Schelling e o de Fichte ..... 93
Acerca do ponto de vista de Reinhold e a filosofia . .. . ......... ............... 111

Notas . . . . . . . . . ........................ .................................................... ............................. 129


Glossário alemão-português .............................................................................. 145

147
Acabou de imprimir-se
em Setembro de dois mil e três.

Edição n.º 1008741

www.incm. pt
E-mail: dco@incm. p t
E-mail Brasil: livraria.camoes@incm.com.br

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