Em uma sociedade camponesa predominantemente analfabeta, sem sistema
educacional nem língua única padronizada, e no seio da qual a circulação da informação
era quase inexistente (a porcentagem de pessoas que sabiam ler e escrever era muito pequena), é possível que uma ou duas cópias da Bíblia tenham sido usadas como fetiche, mas elas não poderiam ter preenchido a função de vínculo ideológico comum. Mesmo a dependência do rei em relação a seu povo é um fenômeno inteiramente novo, que, infelizmente, arqueólogos e pesquisadores mais ou menos desprovidos de consciência histórica atribuem com frequência ao passado antigo. Os reis não tentavam reunir multidões para fazê-las aderir a qualquer política “nacional”, mas contentavam-se geralmente em manter um consenso ideológico-dinástico entre a alta administração e uma aristocracia terrena restrita. Eles não tinham nenhuma necessidade de mobilizar o “povo” e não dispunham de nenhum instrumento para afiliar a consciência deste a seu reino. Consequentemente, a tentativa de explicar as raízes do primeiro monoteísmo como um vasto empreendimento de propaganda destinada à anexação dos territórios do Norte e levada por um pequeno reino de menor importância é um procedimento histórico muito pouco convincente, mesmo que testemunhe em certa medida a existência de um estado de espírito “antianexacionista” no Estado de Israel no início do século XXI. Tal abordagem, que sugere que as necessidades burocráticas centralizadoras do regime da pequena Jerusalém anterior à destruição conduziram ao culto monoteísta do “Deus único” e à formação de uma teologia retrospectiva sob forma dos livros da Bíblia histórica, provoca espanto.116 De fato, os contemporâneos de Josias a quem teriam sido destinados esses relatos sobre o esplendor dos palácios gigantescos do rei Salomão deveriam ter sido diariamente testemunhos desse “fausto do passado” nas ruas de sua cidade. Mas se eles nunca foram construídos, como indica a evolução das descobertas arqueológicas, como se podia fazer referência antes de sua destruição imaginária? É mais provável que os antigos reinos de Israel e de Judá tenham deixado crônicas oficiais detalhadas e inscrições glorificando suas vitórias, redigidas, sabe-se, como nos outros reinos da região, por escritores da corte submissos à imagem de Schaphan, o secretário bíblico.117 Não sabemos qual foi o conteúdo dessas crônicas e nunca o saberemos, mas é provável que uma parte delas tenha sido encontrada intacta nos vestígios dos arquivos oficiais e que os diversos autores dos livros da Bíblia segundo a destruição do reino de Judá os tenham usado como matéria-prima temperada com extraordinária liberdade criadora e tenham inventado a partir delas os relatos mais importantes do nascimento do monoteísmo no Oriente Próximo. Eles então teriam acrescentado como complemento as lendas e os mitos que circulavam entre as elites intelectuais da região, por intermédio dos quais puderam sustentar um impressionante discurso crítico sobre o próprio estatuto do monarca terrestre, apresentado como um soberano divino superior.118 Graças ao choque do exílio e do “retorno”, no século VI a.C., a intelligentsia judaense, composta de antigos escritores da corte, dos sacerdotes e de seus descendentes, se beneficiou provavelmente com uma importante autonomia relativa da qual não poderia se beneficiar sob um regime dinástico exigente. Aquela situação histórica de fratura política e de perda da autoridade real lhes forneceu em troca um novo e excepcional poder de ação. Assim se formou um singular campo de produção literária, no qual o capital de prestígio não era de ordem real, mas religioso. Apenas uma situação desse tipo seria capaz de explicar, por exemplo, como se pode cantar a grandeza do fundador da dinastia de Davi ao mesmo tempo que é apresentado como um pecador e mesmo como um delinquente punido por uma força divina superior a ele. Assim, a liberdade de escrita, artigo raro nas sociedades pré-modernas, encontrava sua expressão em uma obra-prima teológica. Pode-se então propor a seguinte hipótese: o monoteísmo exclusivo, tal como nos é mostrado em quase todas as páginas da Bíblia, não se originou da “política” de um pequeno rei regional desejoso de ampliar as fronteiras de seu reino, mas de uma “cultura”, ou seja, do encontro extraordinário entre as elites intelectuais judaenses, exiladas ou de volta do exílio, e as abstratas religiões persas. A fonte do monoteísmo se encontra provavelmente nessa superestrutura intelectual desenvolvida, mas ele foi levado até as margens em razão das pressões políticas exercidas pelo centro conservador, como foi o caso de outras ideologias revolucionárias na história. Não é por acaso que o nome dat (religião) em hebraico vem do persa. Esse primeiro monoteísmo só chegou à maturidade com sua cristalização tardia diante das elites helênicas. A abordagem dos pesquisadores da Escola de CopenhagueSchefield — Thomas Thompson, Niels Lemche, Philip Davies e outros119 — é ainda mais convincente, mesmo que não se seja obrigado a aceitar todas as suas hipóteses e conclusões: não haveria, de fato, um livro, mas toda uma biblioteca extraordinária que teria sido escrita, reelaborada e revista durante mais de três séculos, do final do século VI a.C. ao início do século II. Deve-se ler a Bíblia como um sistema multiestratificado de debates filosófico-religiosos, ou como um complemento teológico que às vezes fornece descrições mais ou menos históricas com objetivo pedagógico, destinadas essencialmente às gerações futuras (o sistema de castigo divino também funciona em relação ao futuro).120 Segundo essa hipótese, autores e redatores diversos do mundo antigo procuraram criar uma comunidade religiosa cristalizada e se inspiraram na política do passado “glorificado” para contribuir para a construção de um futuro estável e duradouro para um importante centro de culto em Jerusalém. Sua principal preocupação era se diferenciar dos habitantes pagãos, e eles inventaram então a categoria de “Israel” como povo sagrado e eleito de origem estrangeira, diante de Canaã, vista como o antipovo local de poceiros e lenhadores. É igualmente possível que a apropriação do nome “Israel” decorra da severa rivalidade entre esse grupo de fiéis ao “texto” e aqueles que se consideravam descendentes da realeza de Israel, seus adversários samaritanos. Essa política literária separatista, que começou a se desenvolver no eixo que ia da pequena província persa do Yehud aos centros da “alta” cultura da Babilônia, corresponde bem à estratégia identitária global da realeza persa, na qual os governantes tinham o cuidado de separar as comunidades, as classes sociais e os grupos linguísticos para melhor reinar em seu imenso império. Os chefes, os juízes, os heróis, os reis, os sacerdotes e os profetas que estão à frente da cena bíblica eram talvez em parte, sobretudo os mais recentes deles, personagens históricos, mas a data de sua existência, suas relações, os motivos de seus atos, sua verdadeira força, as fronteiras de seu poder, sua influência e os modos de expressão de sua fé — enfim, tudo o que é verdadeiramente importante para a história — são fruto da imaginação de outra época. O próprio público intelectual-religioso, ou seja, as primeiras comunidades de crentes judeus, “consumidoras” desses relatos bíblicos, começou a se cristalizar em uma etapa muito mais recente. Tomar consciência de que a peça Júlio César de Shakespeare não ensina quase nada sobre a Roma antiga, mas muito sobre a Inglaterra do final do século XVI, não diminui em nada o poder da obra, colocando-se assim apenas seu valor de testemunho histórico sob uma luz totalmente diferente. Da mesma forma O encouraçado Potemkin de Serguei Eisenstein, embora relate acontecimentos da revolução de 1905, nos informa pouco sobre a revolta do início do século, mas muito mais sobre a ideologia do regime bolchevique em 1925, ano de produção do filme. Assim deve ser para a Bíblia. Não se trata de uma narrativa capaz de nos inculcar conhecimentos sobre a época que relata, mas de um impressionante documento teológico didático, que pode eventualmente constituir um documento sobre a época de sua redação. Este teria, certamente, possuído um valor histórico mais confiável se pudéssemos ter conhecido com segurança as datas exatas da escrita de cada uma de suas partes.
A Bíblia, considerada durante séculos pelas três culturas da religião monoteísta —
judaísmo, cristianismo e islã — um livro sagrado ditado por Deus, prova de sua revelação e de sua supremacia, pôs-se cada vez mais, com a eclosão dos primeiros brotos da ideia nacional, a servir como obra redigida por homens da Antiguidade para reconstituir seu passado. Desde a época protonacional inglesa, e mais ainda entre os colonos puritanos da América do Norte e os da África do Sul, o Livro dos Livros se tornou, por anacronismo nutrido por ardente imaginação, uma espécie de modelo ideal para a formação de um coletivo político-religioso moderno.121 Mas com o crescente esclarecimento judaico, muitos indivíduos cultos começaram a ler a Bíblia sob uma luz secular. No entanto, como este capítulo tentou mostrar, foi apenas com o advento da historiografia protossionista, na segunda metade do século XIX, que a Bíblia claramente desempenhou um papel importante no drama da formação da nação judaica moderna. Da estante dos livros teológicos, ela passou à estante dos livros de história, e os adeptos da nação judaica começaram a ler a Bíblia como um documento confiável sobre os processos e os acontecimentos históricos. Mais ainda, foi elevada ao grau de “mito- história”, que não seria posta em dúvida porque constitui uma verdade evidente. Ela se tornou então o lugar da sacralidade laica intocável, ponto de partida obrigatório de toda reflexão sobre as noções de povo e de nação. A Bíblia serviu principalmente como marca “étnica” que indicava a origem comum de mulheres e homens cujos dados e componentes culturais laicos eram completamente diferentes, mas que eram detestados em razão de uma fé religiosa à qual praticamente já não aderiam. Ela foi o fundamento da interiorização da representação de uma “nação” antiga cuja existência remontava quase à criação do mundo na consciência de homens que foram deslocados e se perderam no labirinto de uma modernidade rápida e corrosiva. O confortável meio identitário da Bíblia, apesar de seu caráter de lenda milagrosa, e talvez graças a ele, conseguiu lhes dar um sentimento de pertencimento prolongado e quase eterno que o presente coercitivo e difícil era incapaz de prover. Assim, o Antigo Testamento se transformou em um livro laico, ensinando às crianças quais foram seus “antigos ancestrais” e com o qual os adultos logo partiram gloriosamente em direção às guerras de colonização e de conquista da soberania.
RESUMO - Roland de Vaux - Instituições de Israel No Antigo Testamento - Roland de Vaux - Terceira Parte - Instituições Civis - Cap. I e II - Pág. 89-104