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A INFLUÊNCIA DO EXÍLIO BABILÔNICO NA ELABORAÇÃO DE MITOLOGIAS

E LENDAS JUDAICAS: UMA PERSPECTIVA MINIMALISTA-REVISIONISTA

Iolanda Almeida Matos (UESB-GPHMA)i

O Gênesis além de ser o primeiro livro da Bíblia, inicia-se com a narrativa da criação
do mundo, isso faz com que os leitores e leitoras acreditem que ele tenha sido o primeiro livro
bíblico escrito, mais do que isso, definido por muitos como um livro sagrado, suas estórias
fabulosas são encaradas como descrições de fatos históricos. Contudo, com o desenvolvimento
dos estudos históricos, já é sabido que o Gênesis não é o livro mais antigo nem suas estórias
retratam acontecimentos reais. Neste trabalho nos propomos investigar o contexto em que as
estórias da Arca de Noé, da Torre de Babel e do Ciclo dos Patriarcas foram produzidas,
identificando a base histórica que serviu de inspiração para a criação desses relatos formulados
pelos judeus na Babilônia por volta do século VI a.e.c.
Antes de nos determos em demostrar os argumentos que substanciam a nossa hipótese,
vamos expor brevemente as três tendências historiográficas que disputam a escrita da história
do Antigo Israel. O primeiro grupo, os maximalistas, é formado por pessoas vinculadas à
instituições religiosas, cujas obras são criticadas pela falta de rigor historiográfico, uma vez que
seu vínculo religioso os impedem de analisar as fontes bíblicas de forma crítica. Eles defendem
que todas as informações contidas no Antigo Testamento, que não podem ser provadas como
falsas, devem ser aceitas como fatos inteiramente históricos. Naturalmente, há posturas mais
ou menos radicais (BRIGHT, 1978; KAEFER, 2015; ROMER et al., 2008).
Do lado oposto estão os minimalistas, que como o termo sugere, minimiza o papel da
bíblia como fonte primária, pois consideram que os textos bíblicos datam de período muito
tardio que vai do século VII ao II a.e.c., de modo que as informações bíblicas que tentam retratar
os períodos anteriores não podem, sob hipótese alguma, serem levadas em consideração para
retratar os períodos a que se propõe. E, por fim, há um outro grupo de historiadores, de posição
intermediária, que chamaremos de minimalistas-revisionistas, embora eles concordem com a
datação tardia da escrita bíblica, acreditam que partes dos textos poderiam ser utilizadas como
fontes para analisar os períodos anteriores ao século VI a.e.c. Daí a importância da arqueologia
e das fontes extrabíblicas para auxiliarem na identificação dos extratos mais antigos dos textos.
Dentre esse último grupo, destaca-se Mário Liverani, professor de História Antiga da
Universidade de Roma La Sapienza, cujos estudos estão na base dessa pesquisa (SILVA, 1999;
LIVERANI, 1999; SETERS, 2008).
Embora a postura maximalista, sobretudo as vozes mais radicais, não façam mais parte
das discussões acadêmicas na Europa, no cenário brasileiro, ela continua dominando os estudos
sobre o Antigo Israel, uma vez que a desatualização ou omissão dessa temática nas
universidades públicas e consequentemente nos livros didáticos, fazem deles e de seus livros
os únicos porta vozes dessa história. Desse modo, temas como o Jardim do Éden, o Dilúvio, o
Êxodo, dentre vários outros, são abordados nos livros didáticos como se os alunos estivessem
numa aula de catequese, sem nenhuma crítica histórica ou menção às vertentes do minimalismo
que caracterizam essas narrativas como mitos e lendas (BARLESI, 2017)ii.
Vejamos agora como Exílio na Babilônia influenciou a escrita de alguns mitos e lendas
contidos no livro do Gênesis. A princípio é importante salientar que por volta do VI século
a.e.c., o reino de Judá era majoritariamente politeísta, apesar de há pouco mais de 4 décadas
passadas, o rei Josias tentar impor o monoteísmo à força, destruindo os altares e os sacerdotes
que adoravam outros deuses além de Yahweh, impondo uma centralização política, econômica
e religiosa. Contudo, logo após a sua morte, boa parte da população retomou suas práticas
politeístas iii (FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003a, 2003b).
Dito isso, voltemos ao século VI, quando Judá, então vassalo do Império Neobabilônico,
se revolta mais uma vez, tendo pronta resposta, uma reação babilônica que mata os
descendentes reais, incendeiam o templo, o palácio, as casas e deporta para a Babilônia, de
forma escalonada, a elite política, profissional, intelectual e religiosa de Judá, incluindo parte
considerável dos sacerdotes monoteístas, deixando em Judá a imensa maioria politeísta
composta pela população pobre iv (LIVERANI, 2008).
Os exilados ao chegarem na Babilônia foram divididos em dois grupos, o primeiro,
composto pela realeza, se hospedou na corte e os demais se concentraram em torno da capital
e na zona de Nippur. Diferente do que se podia imaginar, parte considerável dos exilados
mantiveram um certo confortov. A realeza recebia boas porções de alimento e conservou seus
títulos reais. Alguns judeus enriqueceram com o comércio e houve um intercambio muito forte
entre a elite intelectual babilônica e os sacerdotes monoteístas judeus, pois sem poderem
realizar suas atividades no templo, passaram a ocupar bibliotecas e se dedicarem à leitura e a
escrita de textos sagrados (LIVERANI, 2008; MYHRMAN, 1910; PRITCHARD 1969;
ROMER et al., 2008).
Os sacerdotes serão os responsáveis pela reutilização da ideia de punição de Yahweh
sobre os israelitas no novo contexto, afirmando que o castigo dos babilônios por Yahweh, no
caso o exílio, foi-lhes imposto em razão de seus pecados e sua idolatriavi a outros deuses.
Entretanto, essa punição não seria eterna, assim que eles se arrependessem, Yahweh permitiria
que eles retornassem à sua terra para reconstruí-la (LIVERANI, 2008).
Desse modo, o culto cerimonial relacionado ao templo é substituído por uma religião
ética, voltada ao nível pessoal, menos ligada às cerimonias e mais conectada com os valores
morais. É válido ressaltar que essa mudança estava em andamento desde o século VIII a.e.c.vii,
intensificando-se com o exílio. Esse esforço dos sacerdotes em fazer com que os judeus não
abandonassem Yahweh em detrimento de Marduk, funcionou, pois, muitos exilados
conservaram seus costumes religiosos de guarda do sábado, da circuncisão, dos cultos e festas,
além de manterem seus nomes judeus (LIVERANI, 2008).
Além dessa ação profética no sentido de manter a religiosidade dos exilados, os
sacerdotes monoteístas também foram responsáveis em financiar e impulsionar a escrita de uma
história teleológica de Israel. A escrita da história de seu povo, referindo-se a um passado mítico
que explicava suas origens e as causas daquele infortúnio, era a melhor maneira encontrada
para manter e reafirmar sua identidade nacional e religiosa. Assim, o reino de Judá era visto
como de sua propriedade, pois havia sido entregue por Yahweh aos seus antepassados, apesar
de terem perdido seus bens, suas cidades, as tumbas de seus antepassados, seus templos e
palácio (LIVERANI, 2008).
É importante destacar, mesmo que de modo sucinto, que esse interesse pelo passado não
se restringia aos exilados judeus que estavam tentando manter sua identidade, o próprio rei
babilônio, Nabonido, que reinava durante o exílio, ficou conhecido na historiografia pela sua
obsessão pelo passado, ao ponto de ser conhecido como o primeiro arqueólogo, uma vez que
ele liderou diversas escavações à templos destruídos, financiando suas reconstruções e criando
uma espécie de “museu” com os artefatos arqueológicos encontrados, inclusive, tentando datá-
los. Além disso, ele é o único rei neobabilônico a fazer menção ao passado histórico em suas
inscrições em monumentos públicos. Acreditamos que esse ambiente babilônico, pode ter
influenciado, mesmo que indiretamente os sacerdotes judeus a se interessarem pelo passado,
vindo a utilizá-lo como uma ferramenta na manutenção de sua identidade (SETERS, 2015).
É nesse contexto que diversos historiadores, entre eles Liverani (2008), detectaram que
a escrita de partes dos livros de Samuel à Reis foi elaborada durante esse período, visto que sua
estrutura narrativa, suas formas esquemáticas, seu sistema de datação e suas frases de efeito são
semelhantes aos modelos assírios e babilônios do século VI a.e.c. Similarmente, pretendemos
comprovar que três estórias do Gênesis, também se ambientam Babilônia do século VI a.e.c.
A primeira é a Arca de Noé que mantém pelo menos 11 elementos em comum com a
história do dilúvio da Epopeia de Gilgamesh em sua versão ninivita, que era a mais conhecida
entre os babilônios durante o século VI a.e.c. Os 11 elementos em comum são: o planejamento
divino dos dilúvios; a revelação das catástrofes aos heróis; a conexão dos dilúvios com a
dispersão da raça humana pelo mundo; a chance de sobrevivência dos heróis e suas famílias; a
instrução divina aos heróis à construírem um barco; as causas físicas dos dilúvios; a
especificação da duração dos dilúvios; a especificação do nome do lugar onde o barco se fixou;
envio de pássaros; atos de adoração no final do dilúvio e por fim as bençãos especiais enviadas
aos heróis (OSANAI, 2020).
Além dessas evidentes concordâncias de narrativa, que por si só já demostram possíveis
influências mesopotâmicas, vale destacar, ainda que de modo suscinto, alguns outros pontos:
1. Na narrativa bíblica o barco encalha nas montanhas de Ararate/Urartu, então território da
Antiga Mesopotâmia. Antes do ano mil essa região era chamada de Uruatri, de modo que essa
parte específica do Gênesis só pode ter sido escrita depois do ano mil, além disso, as outras
partes da bíblia que fazem menção a essa região, estão nos livros dos Reis, Isaías e Jeremias
ambos escritos no contexto do exílio, o que nos leva a concluir que pelo menos essa parte da
história foi escrita durante ou logo após o exílio, período no qual os judeus tiveram contato
indireto com essa região. 2. Vale ainda ressaltar que na narrativa bíblica o dilúvio se dá de dois
modos, por meio do rompimento das fontes e do excesso de chuvas. Essa dupla motivação é
inviável no cenário geográfico da palestina, pois é na Babilônia e não em Judá que os rios são
acometidos por enchentes. Junto a isso, a narrativa bíblica de que o mundo teria submergido
em águas é mais adequada à geografia babilônica, formada por um vale circundado por
montanhas, diferente da Palestina, formada por colinas (LIVERANI, 2008).
Desse modo, é possível sustentar a hipótese de que a narrativa do dilúvio no livro do
Gênesis se deu por influência mesopotâmica, e só pode ter sido escrita após a experiência no
exílio, quando eles tiveram contato direto com a versão do dilúvio ninivita. Assim, as diferenças
entre o mito bíblico e o mesopotâmico são produtos de uma reinterpretação do mito por meio
de uma nova ideologia. Ao invés de um panteão, temos um único deus; no lugar de motivos
banais para destruir o mundo, temos Yahweh punindo os homens pela sua corrupção moral; em
vez do caráter antiético dos deuses, temos Yahweh sendo descrito como um deus ético e moral.
Do mesmo modo, a narrativa da Torre de Babel parece ter sido influenciada pelo exílio
babilônico, pois, como sabemos, o percurso que os exilados tiveram que fazer da Palestina para
a Mesopotâmia foi marcado por uma paisagem desolada, com sistemas de canalização em
dificuldades de financiamento e zigurates em ruínas ou em processo de restauração. Liverani
(2008) nos informa que no folclore popular, as ruínas dessas antigas construções levavam as
pessoas a imaginarem histórias fabulosas para explicar os motivos que interromperam tais
construções, sendo associadas normalmente à maldição dos deuses. A narrativa da Torre de
Babel parece se encaixar nessa tipologia de estórias etiológicas (LIVERANI, 2008).
Além disso, muitos judeus estavam vendo os grandes zigurates pela primeira vez, posto
que na Palestina não havia esse tipo de construção, associando-os à vaidade e arrogância
imperial, de modo que a explicação para tais ruínas não podia ser outra que não o castigo de
Yahweh à soberba dos babilônios. Essa percepção da presunção imperial babilônica, expressa
na narrativa da Torre de Babel, está presente em vários versículos dos livros bíblicosviii datados
como exílicos ou pós-exílicos (LIVERANI, 2008).
Além disso, os judeus não eram os únicos exilados, havia também arameus, anatólios,
iranianos e vários outros povos com línguas distintas, trabalhando de forma compulsória na
reconstrução de templos e zigurates, o que evidentemente trazia diversos empecilhos
linguísticos para a administração imperial. A constatação desse problema pelos judeus na
Babilônia pode ter servido como pano de fundo para explicar de que modo Yahweh interrompeu
a construção da torre. É notório o jogo de palavras utilizadas pelo autor da narrativa da Torre
de Babel, pois os babilônios chamavam sua cidade de Bab-ili (Babilônia) que significava
“portão de Deus”, o som dessa palavra é semelhante ao som do termo hebraico Balal (Babel)
que significava “confusão” (LIVERANI, 2008; STRAWN, 2009).
E por fim, temos o Ciclo dos Patriarcas, para entendê-lo é necessário avançar algumas
décadas, especificamente quando Ciro, o rei da Pérsia, rondava o Império Babilônico visando
subjugá-lo. A notícia que se espalhava pelas ruas da Babilônia é que Ciro, com sua política de
tolerância, libertaria todos os exilados, fazendo com que os judeus o aguardassem como uma
espécie de Messiasix. De fato, ele libertou os exilados, os ajudou a voltar para Judá e ainda
contribuiu na construção do templo de Judá, com objetivos de uma aliança geopolítica com os
exilados (LIVERANI, 2008).
Entretanto, havia um problema, o reino de Judá que havia ficado sem dirigentes, foi
ocupado ao longo dos anos do exílio por povos das regiões vizinhas e pelos próprios judeus que
não haviam sido levados a Babilônia, que passaram a ocupar as terras mais férteis, outrora
pertencentes aos exilados. É nesse contexto que os judeus exilados se dividem em dois grupos:
os que queriam a eliminação dos povos que ocuparam a sua terra e os mais tolerantes, que
estavam dispostos a permitir um certo envolvimento e fusão, desde que os ocupantes adotassem
o Yahwismo excludente. É nessa circunstância que o Ciclo dos Patriarcas e a narrativa do Êxodo
se encaixam, pois embora fossem estórias antigas acabaram sendo revisitadas, unificadas e
reinterpretadas para legitimar as pretensões divergentes destes grupos. Assim, o Êxodo
justificava as pretensões dos judeus que queriam eliminar os “invasores” e os Patriarcas
validavam os interesses dos judeus que estavam dispostos a conviver com os Yahwistas que
haviam ficado em Judá. Vamos analisar mais detidamente o Ciclo dos Patriarcas (LIVERANI,
2008).
Já é unanime dentro e fora da perspectiva minimalista que os textos bíblicos datados
como pré-exílicos não conheciam a linha de parentesco que ligava Abraão a Isaque e a Jacó, de
modo que o ciclo dos Patriarcas, tal como conhecemos hoje, devem ser datados durante ou após
o exílio. O ciclo dos Patriarcas reuniu estórias separadas e personagens que não tinham nenhum
elo de parentesco entre si, com o propósito de forjar uma escrita da história geral de Israel,
reunindo antigas lendas de epônimos num único ciclo, visando criar uma espécie de história
nacional que servisse de identidade para todos os adoradores de Yahweh. Os elementos
utilizados para costurar essas diferentes estórias reflete o contexto na qual foi escrita, pois o
Ciclo dos Patriarcas parece legitimar as pretensões dos exilados mais tolerantes, que não viam
grandes problemas em conviver pacificamente com os povos que estavam em Judá, desde que
eles se comprometessem com o Yahwismo (KAEFER, 2016; LIVERANI, 2008; ROMER et
al., 2008).
Se o autor do Ciclo dos Patriarcas realmente viveu durante ou após o exílio na Babilônia,
- no Período do Ferro - ao narrar uma estória passada no Bronze Médio, ele deve ter preenchido
as lacunas com informações de seu próprio tempo, abrindo brechas para o anacronismo. Por
exemplo, a origem de Abraão já é um forte indício por si só, seja porque ele era mesopotâmio
seja porque ele era um migrante, estando nas mesmas condições dos exilados. Em segundo
lugar, o ciclo dos patriarcas narra que Abraão e Isaque só adquiriram terras em Canaã
comprando-as através de contratos verbais, contratos esses que estavam em alta no período
neobabilônico. Além disso, ao invés de descrever a Palestina do Bronze no ápice de sua
urbanização, ele acaba descrevendo uma Palestina vazia, desolada e cheia de nômades que na
verdade refletiam o cenário Palestino na época do exílio do século 6 a.e.c. Um outro aspecto
anacrônico é a relação dos patriarcas com os povos edomitas, arameus, árabes, ismaelitas e
filisteus, embora ambientado no Bronze Médio, a narrativa reflete na verdade o ambiente
político dos séculos VI a.e.c. em diante, visto que alguns desses povos não existiam na Idade
do Bronze (DONNER, 1997; LIVERANI, 2008; VOGELS, 2000).
Além desses indícios que indicam que a reunião das diferentes lendas num único ciclo
se deu no período neobabilônico, existem outros vestígios que sugerem que a narrativa
pretendia legitimar a convivência dos exilados com os povos que ocuparam Judá. Isso fica
evidente quando Yahweh promete a Abraão que abençoará todas as nações da terra, o que é
bem diferente da narrativa do Êxodo, na qual Yahweh só abençoa os judeus e incentiva a
destruição dos demais povos, tal como queria o grupo intolerante. Outro indicador são os
casamentos mistos no Ciclo dos Patriarcas, próximo da perspectiva do grupo de exilados que
era favorável à assimilação, adeptos do casamento com pessoas estrangeiras, desde que
adorassem Yahweh, a exemplo de Abraão se relacionando com uma mulher egípcia, além de
Isaque e Jacó que casam-se com mesopotâmicas, contrariando a mentalidade por de trás do
Ciclo do Êxodo e do grupo menos tolerante, que rechaçava a ideia de casamentos mistos
(LIVERANI, 2008).
Além disso, a narrativa é clara ao afirmar que os patriarcas adoravam Yahweh em
diferentes centros de cultos, espalhados pela região, contrário a perspectiva do Êxodo e do
grupo mais radical, que acreditavam que Yahweh só poderia ser adorado em um único templo.
Finalmente, a forma como os patriarcas adquirem terrenos em Canaã, feita por meio da compra
e venda e não de forma violenta, como são as invasões e as tomadas da terra de Canaã no Ciclo
do Êxodo. Curiosamente, esses detalhes da narrativa parecem mandar uma mensagem para os
judeus exilados que quisessem voltar a Judá, de que, tal como os patriarcas, eles seriam capazes
de conviver pacificamente com outros povos (LIVERANI, 2008).
Em resumo, temos vários indícios de que a unificação das diferentes lendas se deu
durante o Exílio Babilônico e refletia o ponto de vista dos que apoiavam a convivência dos
exilados com outros grupos adoradores de Yahweh, os casamentos mistos e a pluralidade de
lugares de culto. Evidentemente, como a bíblia revela, esse grupo não venceu esse debatex,
pouco após o exílio, todos os judeus que se casaram com pessoas estrangeiras foram obrigados
a se divorciarem, os povos que ocuparam Judá foram expulsos e os cultos só deixaram de ser
centralizados com o surgimento das sinagogas. Além disso, os livros bíblicos datados como pós
exílicos esquivam-se de fazer menção ao Ciclo dos Patriarcas, optando em evidenciar Moisés,
que por sua vez é o grande protagonista do Ciclo do Êxodo.
Em virtude dos argumentos mencionados, entendemos que as estórias da Arca de Noé,
da Torre de Babel e do Ciclo dos Patriarcas, dentre várias outras, serviram ao propósito dos
sacerdotes exilados de construir uma história de Israel desde suas origens até o século VI a.e.c.
que possibilitasse reafirmar e manter a identidade judaica. Além desse objetivo central, cada
estória também teve seus objetivos secundários: o relato do dilúvio que circulava na
Mesopotâmia do século VI a.e.c. é reinterpretado e reinscrito sob a ótica judaica, visando
preencher as lacunas sobre a sua pré-história, trazendo sua versão do dilúvio; a Torre de Babel
foi escrita como uma etiologia pretendia explicar as ruínas dos zigurates, enfatizando a
arrogância babilônica e o Ciclo dos Patriarcas que servia para legitimar as pretensões dos
exilados mais tolerantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Fontes, 1992.

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DONNER, H. História de Israel e dos Povos Vizinhos. São Leopoldo, Sinodal –


IEPG/Petrópolis, Vozes, vol. I, 1997.

FINKELSTEIN, I; SILBERMAN, N.A. A Bíblia não Tinha Razão. São Paulo: Girafa, 2003a.

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2015.

LIVERANI, M. Para além da bíblia: História Antiga de Israel. São Paulo: Paulus, 2008.

LIVERANI, M. Nuovi Sviluppi Nello Studio dela Storia dell´Israele Biblico. Biblica, 80,
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MYHRMAN, D. W. The Babylonian Expedition of the University of Pennsylvania.


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OSANAI, N. A Comparative Study of the Flood Accounts in the Gilgamesh Epic and Genesis.
Disponível em: https://creation.com/comparative-study-of-gilgamesh-and-genesis-
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SETERS, J. V. Dating the Yahwist History: Principles and Perspectives. Biblical Studies on
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SETERS, J. V. Em busca da história: Historiografia no Mundo Antigo e as Origens da


História Bíblica. São Paulo: Edusp, 2008.
STRAWN, B. A. Holes in the Tower of Babel. Oxford, 2009. Disponível em:
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PRITCHARD, J. B. Legal Texts. In. PRITCHARD, J. B. Ancient Near Eastern Texts:


Relating to the Old Testament. Princeton: Princeton University Press, 1969. Cap. 7, p. 308.

VOGELS, W. Questões Debatidas. In. VOGELS, W. Abrãao e sua Lenda: Gênesis 12, 1-25,
11: 30. São Paulo: Edições Loyola, 2000. Cap. 1, p. 13-33.
i
Graduanda em história pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e integrante do Grupo de
Pesquisa Historiografia no Mundo Antigo
ii
Berlesi, Josué. O Israel Antigo em Debate: uma análise da história de Israel da educação básica ao ensino
superior. São Leopoldo: EST/PPG, 2017.
iii
Para mais detalhes sobre essa Reforma Religiosa durante o reino de Josias ler os livros escritos em
parceria pelo arqueólogo Israel Finkelstein e o historiador Neil Asher Silberman.
iv
As fontes bíblicas que retratam esses acontecimentos estão em Hab 1: 6-10 e Jr 52: 28-30 e as fontes
extrabíblicas para esse mesmo episódio é a Crônica Babilônia referente aos anos 605-594 AEC, na qual é dito que
o rei da Babilônia capturou Judá e o seu rei, enviando-o para a Babilônia e os Ostraka de Lakish, o qual nos
informar que a guarnição de uma das cidades judaicas presume que a cidade vizinha foi capitulada pelos
babilônios.
v
A fonte bíblica que retrata a vida dos exilados está em Jr 29: 5-7, e as fontes extrabíblicas sobre o mesmo
assunto são os textos administrativos babilônios, datados entre o 10° e o 35° ano de Nabucodonosor e os arquivos
do banco familiar dos Murashu em Nippur.
vi
Um dos profetas relacionados com a propagação dessa nova mentalidade entre os exilados foi Ezequiel,
ler Ez 5: 7-17.
vii
Am 5: 21-24
viii
Jr 50: 29-32, Is 14: 13-23, Dn 5: 18-20.
ix
Is 45: 1-7.
x
Es 4, Dt 7: 2-4, Nm 13: 1-3, 23-29.

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