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08/04/2024, 15:54 Pentateuco: as agruras que lhe forjaram

Pentateuco: as agruras que lhe forjaram


dezembro 15, 2023

“Às margens dos rios da Babilônia, nós nos assentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião.
Nos salgueiros que lá havia, pendurávamos as nossas harpas, pois aqueles que nos levaram
cativos nos pediam canções, e os nossos opressores, que fôssemos alegres, dizendo: ‘Entoai-nos
algum dos cânticos de Sião’. Como, porém, haveríamos de entoar o canto do Senhor em terra
estranha?” (Salmos 137:1-4).

Os maiores e mais duradouros textos da humanidade não foram simplesmente compostos, eles
foram forjados! Eles são filhos da dor, da perseguição, da desesperança, eles são o nó na
garganta, o urro de dor que nos permite extravasar, eles expressam nossos mais profundos
anseios, ainda que como um fio tênue, por eles nossa esperança permanece!

Nos apontamentos introdutórios que fiz em relação ao texto de Gênesis 1 a 11, não pude deixar de
enfatizar a complexidade do processo redacional desse conjunto, complexidade essa muito
negligenciada na leitura exegética que muitas vezes se faz desses textos. A etapa final desse
processo, longo e acidentado, assistiu ao surgimento de circunstâncias que levaram à costura das
várias tradições (jurídicas, narrativas, hínicas, poéticas etc.), que passaram a ser preservadas
como parte do conjunto tratado, de modo a compor um material unificado.

Algumas dessas muitas tradições certamente já circulavam por escrito à época de sua colagem no
todo, outras talvez foram postas por escrito somente na ocasião de sua juntada em um único e
mesmo documento; as primeiras, reelaboradas ao longo do tempo, conhecendo diferentes e/ou
sucessivas redações, certamente foram atualizadas e harmonizadas para compor o agora livro do
Gênesis ou mesmo o próprio Pentateuco, as segundas igualmente conheceram nuances no seu
processo de transmissão oral, que podem ser constatadas por exemplo na preservação de
episódios duplicados. Enfim, em algum momento todas essas tradições foram postas por escrito. A
pergunta que se fez anteriormente e que ficou em suspenso foi: Quais as circunstâncias e os
interesses que conduziram e determinaram o processo de compilação das tradições e a
estruturação delas em um único documento? Pois é a essa pergunta que se pretende responder
agora.

O processo composicional do Pentateuco foi conduzido pela experiência dolorosa do exílio,


deixando profundas marcas nos seus textos. Não por acaso o tema do exílio ser uma constante
em todos os cinco primeiros livros da Bíblia. Assim, por exemplo, Adão e Eva são exilados do
Éden. Caim se torna peregrino e errante como punição ao homicídio por ele cometido e o
Deuteronômio fala do exílio como consequência da escolha pela desobediência.

O acento dado a essa temática pelo redator final no processo de estruturação dos textos e
tradições mais antigas têm por base, portanto, a própria experiência vivenciada por ele e
compartilhada com o povo de maneira geral.

O Pentateuco, tal como o temos hoje, é, em certo sentido, o resultado da reflexão do porquê do
exílio, ele é a resposta à dolorosa experiência de expatriação vivida pelo povo judeu, que se dá
através da concomitante tentativa de preservação de uma tradição religiosa, da revisitação da
historiografia israelita, retrospectivamente, à luz do presente então vivido, buscando no passado
respostas aos dramas do presente e iluminando a caminhada, reascendendo uma esperança de
futuro em terra estranha.

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Exílio. Sofrimento. Perda. Reflexão. Preservação da tradição religiosa. Modelação da tradição para
dar significado ao sofrimento, construir novas dinâmicas de religiosidade e expressar anseios em
relação ao futuro. Eis os etapas percorridas nessa jornada de formação do Pentateuco e de uma
nova identidade judaíta.

Em sua Introdução ao Pentateuco, a Tradução Ecumênica da Bíblia fala da destruição de


Jerusalém e do exílio de sua população como uma experiência de crise de identidade, em função
de ela ter abalado os três pilares sobre os quais se fundamentava a relação de Israel com seu
Deus à época, assim: “[...] o rei [foi] exilado, o Templo - símbolo da presença divina - destruído e a
terra - vista como dom divino - [estava] sob domínio estrangeiro”.

Thomas Römer em seu "L'invention de Dieu", publicado em português pela editora Paulus sob o
título "A origem de Javé", ostenta opinião semelhante:

"A destruição de Jerusalém e de seu templo pelos babilônios, em 587 antes da era cristã, tinha
provocado, nos intelectuais [meios exilados saídos da elite judaíta], uma crise ideológica. Os
pilares identificadores de um povo do antigo Oriente Próximo, isto é, o rei, o templo do deus
nacional e a terra, tinham desmoronado. Era preciso encontrar novos fundamentos para expressar
a identidade de um povo privado de suas instituições tradicionais, e é assim que foram dadas
diferentes respostas à crise".

Nessa conjuntura, o Pentateuco é uma resposta a essa crise de identidade, uma maneira de
expressar a religiosidade israelita em terra estranha, sob um novo fundamento: a Torá. A
desagregação de tais pilares veio acompanhada de diversas dúvidas, às quais era necessário
responder teologicamente: Por qual motivo Deus permitira que tão grande tragédia sobreviesse a
seu povo? Aliás, ele permitira isso mesmo? Ou Deus fora derrotado? Os deuses babilônicos
sobressaíram sobre Yahweh? Yahweh os teria abandonado? Eis algumas das muitas perguntas
que certamente foram feitas à época.

Recorrendo, de novo, a Thomas Römer, falando da narrativa do Pentateuco, ele diz que Gênesis,
de um lado, e os demais livros, do outro, apresentam juntos dois modelos diferentes de identidade.
O primeiro, uma identidade fundamentada na descendência dos patriarcas: quem é o judeu? A
resposta segundo essa perspectiva é: O descendente de Abraão, de Isaac e de Jacó. Os outros,
falam de uma identidade fundamentada na adesão à aliança. (A origem de Javé: o Deus de Israel
e seu nome, p. 16), ambas as respostas parecem soluções à problemática do exercício da
religiosidade em terra exílica.

Adicionalmente, Konrad Schmid e Jens Schröter em seu livro "O surgimento da Bíblia", falando
sobre a cultura escrita e a produção literária em Israel na época dos reinados em Israel e Judá nos
séculos X a VI a.C., opinam que a religião em Israel e Judá no período pré-exílico foi,
essencialmente, uma religião "de culto". Nesse contexto, embora os textos que viriam a se tornar
as escrituras sagrados tivessem uma função litúrgica na dinâmica do culto, essa função não era
proeminente. Para se chegar ao status de textos sagrados houve um processo demorado
catalisado pela experiência exílica:

"No primeiro milênio a.C., a religião de Israel e Judá, portanto, só passou gradualmente à
mudança de uma religião de culto para uma religião de livro. Nesse processo, uma primeira função
catalisadora importante foi desempenhada pela destruição do Templo em 587 a.C. Com a perda
do local central de culto, desenvolveram-se os fundamentos de uma religião não dependente do
culto. A época do assim denominado "exílio babilônico" foi de fundamental importância para o
surgimento da Bíblia e, de forma correspondente, muitas vezes também, se costuma associar com
ela o início da época do "judaísmo", ou seja, da forma de religião do antigo Israel e Judá apoiada
na Escritura, forma que a associa ao compromisso com a Torá e a fé em um só Deus". (O
surgimento da Bíblia: dos primeiros textos às Sagradas Escrituras. pág.72)
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É interessante, pois, como as tragédias compartilhadas por uma comunidade tem o poder de
reforçar laços de fraternidade, de solidariedade e de moldá-las uma identidade.

À título de comparação, pode-se observar a formação dos textos neotestamentários no


cristianismo primitivo, em especial dos evangelhos, sob essa mesma ótica: a experiência
vivenciada pelos discípulos na última semana do ministério de Jesus, os acontecimentos da Via
Dolorosa, a angústia dos dias que se seguiram à crucifixão, o drama da paixão, as dores e a
agonia presentes na caminhada do Getsêmani ao Gólgota, o escândalo da Cruz, tudo isso
refletido através da releitura dos textos das Escrituras Sagradas judaicas, retrospectivamente, sob
uma perspectiva pós-pascal, forjaram a composição do Novo Testamento.

Pode-se dizer que, guardadas as devidas proporções, a cruz está para os Evangelhos, como o
exílio está para a Torá. Assim, a experiência exílica, dolorosa, excruciante, é a via crucis que
conduziu à formação da Torá e, consequentemente, delineou os traços marcantes da identidade
judaica em um período em que o seu povo se via impossibilitado de expressar sua religiosidade
como faziam habitualmente antes de passar por tal experiência.

A magnitude e a extensão de tal experiência foi tão aguda e intensa que marcou profundamente a
identidade do povo judeu até os dias de hoje, preparando-o para os muitos desafios, lutas e
desventuras que viriam a enfrentar sucessivamente no transcorrer de sua história.

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