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A Disciplina

Estética:
U M A B R E V E A B O R D A G E M E M TO R N O D E S E U
S I G N I F I C A D O , F I N A L I D A D E , C O N C E I TO E
EXPRESSÃO
A expressão disciplinar

Pelo menos desde Heráclito a sensibilidade e seu reflexo nas artes em geral foram objeto de
reflexão filosófica, muito embora até meados do século XVIII ainda não houvesse uma
delimitação objetiva capaz de conferir “autonomia” aos estudos estéticos em relação às demais
disciplinas e objetos como a ética, a metafísica, a política etc. Somente em 1750 é que a palavra
grega aisthesis (percepção sensível, sensação e sentimento) foi adotada pelo filósofo alemão
Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) para nomear a sua “ciência do conhecimento
sensitivo”, que é a primeira obra na história da filosofia a conceber as reflexões filosóficas em
torno da sensibilidade, do Belo e da Arte como “disciplina autônoma”.

that reflects your approach… “It’s one


small step for man, one giant leap for
mankind.”
Para compreendermos o significado filosófico desta “autonomia”, consideremos em primeiro lugar o complexo
significado etimológico da palavra aisthesis, que é geralmente traduzida em nossa língua pelos termos
percepção sensível, sensação e sentimento. Se levarmos ao “pé da letra”, o termo grego aisthesis significa
“sensação”, que é um modo de percepção exteriorizada dos objetos e do mundo sensível, ao passo que o verbo
“aisthanomai” correspondente a “sentir” como “ato perceptivo interior subjetivo”. Como sugere o estudioso
das obras de Baumgarten, Alessandro Nannini (2022), “o verbo aisthanomai, usado por Platão e Aristóteles,
corresponderia, portanto, à forma média do verbo homérico aistho, respirar, ou melhor, inalar. A raiz de sentir,
poderíamos dizer, não é outra coisa que o respiro. O respiro coloca em comunicação o externo e o interno, nos
expõe constantemente à alteridade, porque faz entrar literalmente o mundo em nós, no nosso corpo. Fazendo o
mundo entrar em nós, a aisthesis radicada no aistho fornece um primeiro reconhecimento acerca do ambiente
circunstante. Não se trata de um reconhecimento visual ou auditivo, mas olfativo. O odor, enquanto trazido pelo
respiro, parece ser neste sentido a raiz do sentir”.
Contudo, se considerarmos os dicionários de filosofia grega e alemã e os compararmos aos
significados recepcionados pela “escrita latina” e a abordagem “aristotélico-wolffiana” do
fundador da estética, Alexander Baumgarten, veremos que o substantivo aisthesis [Ästhetik/
aesthetica/sensação] e o verbo “aisthanomai” [Fühlen/sentire/sentir] são apenas particularizações
da “sensibilidade”, ali interpretada como um “conjunto amplo de operações sensitivas”, que
abarcam os diferentes aspectos da subjetividade e objetividade, da interioridade e exterioridade, do
ânimo e dos objetos sensíveis em geral. Desse modo, em “sentido passivo”, o adjetivo “sensível”
[Sinnlich], enquanto termo oposto ao “inteligível”, tanto se refere a algo que pode ser percebido
pelos “órgãos dos sentidos exteriores” (visão, audição, tato, olfato e paladar), quanto se refere às
“formas sensíveis interiores” (representação sensível [Sinnlich Vorstellung], imaginação
[Einbildungskraft], fantasia [Phantasie]).
Já em “sentido ativo” o adjetivo “sensível” compreende os “conteúdos” subjacentes às
“formas sensíveis exteriores e interiores” (alegria, tristeza, prazer, asco, repulsa etc.) de
percepção e sentimentos em relação aos objetos recepcionados. Nesses termos, as
sensações e sentimentos envolvem as impressões, imaginações e ideias morais, por
exemplo.
Por outro lado, como adjetivo substantivado “o sensível” [(Das)sinnliche Anschauung/
sinnliche sinnliche Wahrnehmung] é concebido geralmente como uma “qualidade”
subjacente aos órgãos dos sentidos “próprios” ou “comum”. Lembremos aqui das
expressões “sensíveis próprios” e “sensíveis comuns” abordados por Aristóteles no livro
II de seu tratado De Anima. Na próxima aula, vamos explorar um pouco mais esses
conceitos, mas aqui nos é suficiente considerar que enquanto os “sensíveis próprios”
dizem respeito às qualidades percebidas por um único órgão dos sentidos (a cor, o som, o
sabor etc.), os “sensíveis comuns”, por sua vez, se referem às percepções compartilhadas
entre os órgãos, como é o caso do movimento, o repouso, o número, a figura e a
grandeza.
Considerando, pois, as variáveis etimológicas destas expressões, bem como a espessura
semântica que estes termos encontrarão nos diferentes sistemas da filosofia antiga e das estéticas
moderna e contemporânea, temos o substantivo feminino “sensibilidade” geralmente significada
sob dois modos distintos: 1) primeiro, no sentido aristotélico-baumgartiano” (e igualmente
kantiano) do termo, que corresponde a um dado “conjunto de operações sensitivas do espírito”,
enquanto fazem contraponto ao “conjunto de operações intelectuais”; 2) segundo, no sentido
estritamente “psicológico”, enquanto “capacidade de experimentação dos diferentes tipos de
sensações e sentimentos” ou, se vocês preferirem, enquanto “faculdade de prazer e sofrimento”.
Quanto ao primeiro sentido, na CRP de Kant, por exemplo, a sensibilidade [Sinnlichkeit] se
determina como capacidade de receber representações [Vorstellungen] dos objetos na medida em
que eles nos afetam. Em suma, para Kant, é através da sensibilidade que os objetos nos são
dados, e só ela pode nos fornecer intuições.
A história disciplinar

Como foi dito no começo, a estética como “disciplina filosófica autônoma” é uma
atividade relativamente nova na história da filosofia, tendo sido fundada nestes termos
somente em 1750 por Alexander Baumgarten. Contudo, em se tratando de história da
filosofia, essa é uma questão no mínimo controversa para alguns intérpretes, já que há
várias maneiras de narrar e conceituar tal fundação da “ciência do conhecimento
sensitivo”.
Nessa direção, como observou Alessandro Nannini (2022) em seu artigo Baumgarten e o
problema da beleza: Aisthesis, educação estética, inspiração, há pelo menos três maneiras
diferentes de interpretação sobre o assunto. O primeiro deles seria conceber a disciplina estética
em sentido lato, ou seja, considerando toda e qualquer produção intelectual capaz de oferecer uma
reflexão filosófica sobre a sensibilidade e seu reflexo nas artes em geral, de modo a “recontar a
sua história a partir do momento germinal da própria disciplina. Esta é a via seguida, por exemplo,
por Robert Zimmermann em sua famosa História da estética como doutrina filosófica [Geschichte
der Aesthetik als philosophischer Wissenschaft], de 1858” (2022, p. 37). Para o filósofo austríaco,
“o período que vai da Grécia antiga a Baumgarten é rubricado como antecipação ou pré-história,
enquanto Baumgarten seria aquele que coloca as bases para a grande reforma da disciplina
operada por Kant”. Segundo essa abordagem, “o fato significativo não é, pois, apenas que a
história da estética parece se iniciar no século 18, mas que em tal nascimento Baumgarten
desempenha apenas o papel de um Batista precoce demais, a ponto de que a própria paternidade da
disciplina lhe será revogada a favor de Kant” (2022, p. 38).
Não obstante à concepção kantiana de Zimmermann, a segunda perspectiva
historiográfica da estética adotada por Hermann Loetze em sua História da estética na
Alemanha [Geschichte der Aesthetik in Deutschland] (1868) tem o seu ponto de partida
na perspectiva de Baumgarten, embora conceba a teoria estética do assim nomeado
“jovem Aristóteles berlinense” como “humilde” e “incompleta”. Para Loetze, “coube a
Baumgarten somente o mérito de ter subsumido sob o mesmo nome uma série de
problemas que até então haviam sido discutidos individualmente em âmbitos separados
do saber. O título do segundo capítulo não deixa dúvidas sobre o verdadeiro iniciador da
disciplina: “A fundação da estética científica por parte de Kant”” (idem, ibidem).
Uma terceira estratégia narrativa em torno da fundação da estética “consiste em levar em
conta todos ou quase todos os autores que contribuíram para desenvolver os temas
fundantes da disciplina”, incluindo temas como “estética animal” (idem, ibidem). De
acordo com essa narrativa, “Baumgarten se encontra no interior de uma sucessão de
autores que de costume vai da teoria da mimesis na Grécia antiga às concepções do belo
metafísico na Idade Média, da poética do Renascimento até o classicismo francês, e que
prossegue, depois de Baumgarten, em direção à Crítica da faculdade do juízo de Kant e
à filosofia da arte de Hegel” (idem, ibidem).
Ainda de acordo com a pesquisa de Nannini, tal cenário desfavorável ao título de “pai da
estética” atribuído a Baumgarten – sobretudo pelo filósofo amigo de Goethe, Johann
Gottfried von Herder (1744-1803), com a publicação de seu Monumento a Baumgarten
– perdurou até meados do século XX, por parte de intérpretes como Paul Oskar
Kristeller, “que escreveu um importante ensaio sobre o sistema das belas artes em 1951-
52, em que considera Baumgarten como “fundador da estética, por ter sido o primeiro a
conceber uma teoria geral das artes como disciplina filosófica distinta, mas que não
desenvolveu a doutrina com os referimentos necessários às outras artes [além da poesia]
e não propôs nem mesmo uma sistematização dessas artes” (idem, p. 39).
Contudo, eu tendo a concordar pelo menos em parte com as críticas de Nannini no que
concerne a tais “projeções” mais ou menos desfavoráveis ao “mérito de Baumgarten”, na
medida em que me parece mais convincente uma leitura sobre a “fundação da estética
como disciplina filosófica” com base nos resultados de sua “conquista de autonomia” em
relação à história da filosofia, mas não necessariamente por intermédio da interrogação
dessa “conquista” com base na “história da estética como momento de uma narrativa
mais ampla”. Ou seja, tendo a concordar que “a fundação da estética como disciplina
pode ser entendida também em sentido estrito, como um projeto filosófico específico
levado adiante por Baumgarten” (idem, ibidem).
Na próxima aula, em que eu gostaria de apresentar a vocês uma reconstrução mais
detalhada sobre a relevância da teoria baumgartiana para as estéticas dos séculos XVIII e
XIX, creio que terei tempo para retomar esse debate em favor dos méritos de
Baumgarten no que concerne à “fundação” à “autonomia” da estética como “disciplina
filosófica”. Mas para concluir estas rápidas considerações e passar a palavra a professora
Ana Coli, eu gostaria de mencionar brevemente uma certa “identidade a partir da
diferença de ênfases” entre os significados filosóficos que compõem a estrutura do nosso
plano de curso em três unidades: i) “A estética formal”; ii) “A estética do conteúdo ou
filosofia da arte”; iii) e “A crítica de arte”. Essa divisão será igualmente importante para
localizarmos os aspectos centrais em torno da “fundação” e da “autonomia” da estética
como “disciplina filosófica”, na próxima aula.
Forma e conteúdo disciplinares: estética formal, filosofia da arte ou crítica de arte?
Como já foi dito e repetido aqui, o ano de 1750 é assimilado por alguns historiadores da
filosofia (sobretudo estetas e críticos de arte) como sendo o marco histórico de fundação
da “nova disciplina” pela publicação da obra Estética: a lógica da arte e do poema de
Baumgarten. Como lembra Verlaine Freitas (2021), “embora diversas ciências se
relacionem com a realidade empírica, em que é necessário levar em conta os dados da
sensibilidade”, no caso da “estética autônoma” (ou, se vocês preferirem, da “estética
formalista”), coloca-se em questão “uma forma de assimilação em que o prazer, o
desprazer, a emotividade e as cargas diferentes de afetos vinculam-se ao concretamente
percebido em um objeto, discurso, obra de arte, eventos naturais, sons, movimentos
corporais etc.”.
Contudo, “é infinitamente variável o quanto uma determinada concepção estética
valoriza a dimensão sensível em sentido estrito” (ou seja, de modo autônomo e
autodeterminante, como propõe sistema estético baumgartiana) em relação a outras
ênfases, que vão “desde a abstração total dos conteúdos” morais e dos valores éticos e
religiosos (ou mesmo, dos conteúdos históricos e políticos) até a “absorção radical”
destes. Ora, esta espécie de “identidade a partir da diferença de ênfases” dadas ora à
“forma” [Form e Gestalt] ora aos “conteúdos” [Inhalt e Gehalt] da sensibilidade e do
belo no que se refere à sua expressão, realidade, fenômeno, significado, finalidade e
conceito é o que justamente nos permite diferenciar a “estética formal” da “filosofia da
arte” (estética do conteúdo) e da “crítica de arte”. Trata-se, portanto, de uma questão de
“ênfase”, já que seria no mínimo estranho falarmos de “conteúdo sem forma”.
Nesse sentido, quando tratamos da estética como disciplina filosófica autônoma e autodeterminante,
damos ênfase a pelo menos quatro aspectos formais importantes: 1) aos estudos do modus operandi
ou da “lógica da sensibilidade” como um conjunto de operações sensitivas em contraste com o
modus operandi das assim nomeadas “faculdades intelectivas” do “entendimento” e da “razão”; 2) ao
conhecimento da “sensibilidade como juízo” e não apenas como mera “afecção”; 3) ao conhecimento
da sensibilidade como faculdade capaz de emitir juízos sobre o belo, o gosto, o sublime, o prazer, o
desprazer, a emotividade e as diferentes cargas de afetos, todos suscitados pela percepção sensível de
objeto, discurso, obra de arte, eventos naturais, sons, movimentos corporais etc.”; 4) aos exercícios
teóricos e práticos para a educação [Erziehung] e formação [Bildung] da sensibilidade sobretudo no
que tange aos objetos mais elevados da experiência estética: o belo natural, o belo artístico, o
sublime e o feio.
De outra parte, quando falamos da estética enquanto disciplina filosófica cuja ênfase das formas de expressão,
realidade e fenômeno inclinam-se para as finalidades, significados e conceitos que extrapolam o próprio
âmbito de investigação da sensibilidade, em sentido estrito e em direção aos conteúdos morais, sociais, éticos,
políticos ou religiosos, referimo-nos, portanto, à “filosofia da arte”, ou se vocês preferirem, à “estética do
conteúdo”, no que ela se refere a pelo menos quatro aspectos fundamentais: 1) aos estudos da “lógica da
sensibilidade” enquanto forma [Form] e figura [Gestalt] (simbólica ou significa) de manifestação sensível do
“bem”, de “Deus” ou da “verdade eterna”; 2) aos estudos da “lógica da sensibilidade” enquanto forma [Form]
e figura [Gestalt] (simbólica ou significa) de manifestação sensível da “realidade social” de uma dada cultura;
3) aos estudos da “lógica da sensibilidade” enquanto forma [Form] e figura [Gestalt] (simbólica ou significa)
de manifestação sensível da situação “ética e política” de um dado país; 4) aos estudos da “lógica da
sensibilidade” enquanto forma [Form] e figura [Gestalt] (simbólica ou significa) de manifestação sensível das
crenças e valores religiosos de uma dada cultura. Por outro lado, a esse quadro da “filosofia da arte”
distingue-se fundamentalmente os estudos da “sensibilidade” assimilada estritamente em função das
“condições de possibilidade” do conhecimento e do pensamento conceituais pelas faculdades do
“entendimento” e da “razão”, no sentido kantiano (Estética transcendental) do termo, ou simplesmente, pelas
“faculdades intelectivas” no sentido aristotélico (De Anima) do termo. É justamente com vistas a esse ponto
que Baumgarten localiza o caráter autônomo e autodeterminante da estética filosófica.
Já em relação à estética como “crítica de arte”, eu gostaria de passar a palavra para a
professora Anna Luiza, que é especialista nas obras de Walter Benjamim, o filósofo
contemporâneo “decifrador da crítica de arte”, desde o primeiro romantismo
[Frühromantik] alemão.

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