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ESTÉTICA:

de Platão a Peirce
LUCIA SANTAELLA

Estética:
de Platão a Peirce

EDITORA C0D3S
Estética: de Platão a Peirce.
Copyright © 2017, Lucia Santaella.

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Editor, revisor, diagramador e ilustrador: Thiago Mittermayer | Fonte da capa: Civane Norm criada por
Jeremy Dooley

Catalogação:
SANTAELLA, Lucia. Estética: de Platão a Peirce. São Paulo: Editora C0D3S, 2017.

Número ISBN: 978-85-54863-00-5

1. Estética 2. Semiótica 3. Filosofia


DEDICATÓRIA

Para Brooke Williams e John Deely sob cujo teto, num inverno
inimaginavelmente gélido, mas envolvida no calor, carinho, alegria e
desprendimento de suas amizades límpidas, este livro começou a ser escrito.
SUMÁRIO

ABERTURA

INTRODUÇÃO GERAL

PRIMEIRA PARTE
As estéticas filosóficas: introdução

1. As aparições do belo
2. A gestação do gosto e do sublime
3. A emergência da estética
4. O apogeu da estética
5. A multiplicação das estéticas

SEGUNDA PARTE
A estética de C. S. Peirce: introdução

6. A estética como filosofia e ciência


7. Os dilemas da estética
8. A estética e as artes
9. A semiótica de Peirce
10. A estética à luz da semiótica

NOTAS FINAIS

REFERÊNCIAS
ABERTURA

Fui despertada para a importância da estética peirceana, ao assistir a uma


das mais belas palestras apresentadas no congresso dos 150 anos do
nascimento de Peirce, realizado em Harvard, USA, em setembro de 1989.
Falando sobre “A Sedução do Ideal”, Richard J. Bernstein conseguiu, por
quase uma hora, o que poucos conseguem por alguns minutos: manter uma
ampla plateia sintonizada num mesmo ponto da emoção e deleite intelectual,
suspensa no fio da voz e vida de sua inteligência e sensibilidade. Fui fisgada,
talvez para sempre, na rede dessa sedução.

No primeiro semestre de 1990, criei coragem e preparei um curso sobre a


estética peirceana, no programa de pós-graduação em Comunicação e
Semiótica da PUC/SP. Foi nessa ocasião que, ainda com dificuldade, em
meio a muitas incertezas, decidi acercar-me pela primeira vez do tema. Tal
aproximação foi paradoxal. Ficou numa visão panorâmica, de sobrevoo da
questão.

Em 1992, munida de bibliografia adicional sobre o assunto, no livro A


assinatura das coisas: Peirce e a literatura (Editora Imago), voltei à estética,
tentando olhá-la mais de perto. Mesmo assim, ficaram ainda algumas zonas
de nebulosidade que, naquele momento, não consegui atravessar.

Em um dos capítulos do livro Metodologia semiótica: fundamentos, que


defendi como livre-docência na ECA/USP, em dezembro de 1993, retornei
mais uma vez à estética e avancei talvez um pouco mais. Isso me encorajou a
dar, no segundo semestre desse mesmo ano, novamente um curso de pós-
graduação sobre a estética peirceana, mais monográfico, com uma visão mais
de frente e específica. Saí desse curso com um turbilhão de ideias na cabeça,
talvez sugestivas, mas bastante assistemáticas.

Encontrando, durante o início de 1994, condições objetivas ideais para o


desenvolvimento de um trabalho intelectual absorvente, criei finalmente
coragem para enfrentar o touro à unha.

Embora o tempo, esse implacável admoestador do pensamento, venha


certamente me trazer a autocrítica deste trabalho, devo confessar que esta foi
a primeira vez que deixei o tema da estética peirceana sem me sentir em
dívida. Se a investigação, segundo Peirce, é um processo que é conduzido
para nos livrar da insatisfação da dúvida, rumo ao repouso temporário numa
crença, mesmo sabendo-a provisória, esta foi verdadeiramente uma
investigação. Que ela esteja num livro, para ser compartilhada, livra-me do
peso de consciência, ou talvez do egoísmo que um repouso da dúvida, em
nível puramente individualista, certamente acarretaria. Aliás, nessa
externalização, nessa entrega ao outro, para que este a devolva diferida,
reside o traço fundamental, ainda segundo Peirce, que faz uma investigação
ser científica.

O levantamento do material bibliográfico necessário à execução deste


livro, inclusive a consulta aos manuscritos de C.S. Peirce, foi feito na
Universidade de Indiana, durante os meses de novembro-92 a abril-93, sob os
auspícios do CNPq. A escritura do trabalho se deu nos meses de janeiro a
março de 1994, também em Indiana, com auxílio da CAPES. A ambas as
instituições meus agradecimentos sinceros.
Lucia Santaella,
Bloomington, março de 1994.
INTRODUÇÃO GERAL

A palavra “estética” é derivada do grego aisthesis, significando sentir. A


raiz grega aisth, no verbo aisthanomai, quer dizer sentir, não com o coração
ou com os sentimentos, mas com os sentidos, rede de percepções físicas
(Barilli, 1989, p. 2). O termo é hoje tão largamente utilizado que pode servir
para qualificar tanto as filosofias do belo, quanto a elegância de uma fórmula
matemática, os objetos artísticos, ou até mesmo um crepúsculo, as cercanias
do mar, um rosto trabalhado pelo tempo (como diria Borges). Na história da
Filosofia, contudo, essa palavra encontrou designações relativamente bem
definidas. O primeiro a utilizá-la filosoficamente foi Alexander Gottlieb
Baumgarten (1714-1762), em 1735, no texto denominado Reflexões
filosóficas sobre algumas questões pertencentes à poesia, onde ela foi
definida como a ciência da percepção em geral. Na sua obra posterior,
Aesthetica, essa ciência da percepção foi tomada como sinônimo de
conhecimento através dos sentidos, a “perfeição da cognição sensitiva” que
encontra na beleza o seu objeto próprio (Cohen e Guyer, 1982, p. 1).

A partir de Baumgartem, a primeira grande obra a dar forma e conteúdo à


estética filosófica foi a terceira crítica de Immanuel Kant (1724-1804), a
Crítica do julgamento, de 1790, mais especificamente na sua primeira parte,
“Crítica do Julgamento Estético”. Embora não se possa considerar essa
terceira crítica isoladamente do contexto geral das outras obras monumentais
de Kant, a crítica do julgamento tem um certo grau de autonomia, na medida
em que circunscreve um conjunto de desafios intelectuais com os quais
estamos até hoje fadados a nos defrontar, quando tentamos compreender os
problemas relacionados com as regiões mais sensíveis do nosso pensamento,
sentimento, discurso e ação.

Embora a palavra em si, no contexto filosófico em que ela viria a ser


inserida, só tenha aparecido em 1735, as questões relativas à estética, no
Ocidente, tiveram sua origem no mundo grego, mais especialmente no
pensamento de Platão (428-348), em cuja obra encontramos a primeira teoria
da arte e do belo de que temos notícia. De fato, foi Platão quem levantou os
problemas relativos à criação, para os quais foram dadas as mais diversas
interpretações através do tempo e com os quais nos debatemos até hoje, tais
como a natureza da inspiração, a relação da criação com a emoção, o impacto
e efeitos da arte sobre o receptor, as antinomias entre o conhecimento
verdadeiro e a ilusão das paixões, as consequências do descomedimento e as
virtudes da temperança... Se Platão levantou esses problemas, Aristóteles (por
volta de 384-322 a.C.) foi o primeiro a lhes dar formalização na sua Poética,
obra que, sem margem de erro, pode ser qualificada como a teoria da arte e
critica mais influente em toda a história do Ocidente. Enfim, os problemas
estéticos são tão antigos quanto a filosofia, tendo recebido, nos muitos
séculos que transcorreram desde Platão até os nossos dias, as mais diversas
entonações e interpretações. Embora toda a primeira parte deste livro esteja
planejada para a discussão panorâmica dos autores e obras filosóficas que
marcaram a compreensão da estética que o Ocidente foi gradativamente
tecendo através dos séculos, este não é o objetivo central do presente livro.
Ao contrário, o que se pretende desenvolver aqui é um estudo monográfico
das concepções estéticas, ou melhor, da teoria estética criada por Charles
Sanders Peirce (1839-1914), cientista, matemático, lógico e filósofo norte-
americano, criador da moderna ciência semiótica. Nessa medida, a
compreensão do desenvolvimento histórico da estética filosófica ocidental
figurará na primeira parte como uma espécie de moldura ou contextualização
para que se possa julgar, por comparação, de um lado, o grau de originalidade
e relevância da contribuição que Peirce veio trazer para o tema. De outro
lado, para que se possa avaliar a importância dessa contribuição para o
ambiente intelectual contemporâneo, no qual, sob o rótulo de pós-moderno,
pós-modernismo ou pós-modernidade, as questões relativas ao estético
voltaram a ocupar o centro candente das atenções de intelectuais, filósofos ou
não, em todo o mundo.

Peirce não deixou nenhum tratado sobre estética. Aliás, não obstante
tenha, quando jovem, estudado, com muito cuidado e paixão, as cartas Sobre
a educação estética da humanidade, de Johan Christoph Friedrich von
Schiller (1759-1805), e fosse um grande conhecedor da obra de Kant, não
obstante tivesse um grande interesse pelas artes e fosse bom conhecedor da
literatura, por várias vezes, ele se declarou um ignorante em estética. Se ele
próprio não ocultou sua ignorância, como justificar este estudo monográfico
que aqui pretendo apresentar ao leitor?

Cada vez mais, especialmente a partir de 1900, a estética passou a ocupar


um lugar proeminente na arquitetura filosófica de Peirce a um tal ponto que,
sem a compreensão aprofundada do papel fundamental por ela desempenhado
como alicerce da ética e, por extensão, da própria lógica ou semiótica, não é
possível entender o seu segundo pragmatismo, que ele rebatizou sob o título
de pragmaticismo, para diferenciar dos vários pragmatismos que nasceram
sob sua inspiração, mas dos quais Peirce discordava inteiramente. Numa carta
dirigida a William James (1842-1910), em 25 de novembro de 1902 (CP
8.255), ao recolocar seu pragmatismo em novas bases, Peirce enfaticamente
afirmava sua visão da preponderância da estética sobre as outras disciplinas
filosóficas:
Mas eu pareço ser o único depositário, no presente, do sistema completamente desenvolvido, que
se mantém unido, não podendo receber qualquer apresentação apropriada em fragmentos. Minha
própria visão de 1877 era crua. Mesmo quando dei minhas palestras em Cambridge, não havia
chegado ao cerne da questão, deixando de ver a unidade da coisa toda. Não foi senão depois disso
que obtive a prova de que a lógica deve estar fundada na ética, da qual ela é um desenvolvimento
mais elevado. Mas mesmo então, por algum tempo, fui tão imbecil a ponto de não ver que a ética,
do mesmo modo, está fundada sobre a estética, — pela qual, desnecessário mencionar, eu não
quero significar leite e água e açúcar.

Várias são as dificuldades, até hoje não completamente transpostas, que


levaram a grande maioria dos intérpretes de Peirce a uma desatenção no que
se refere à importância da estética para a compreensão do todo de sua obra, e
mesmo ao conhecimento da originalidade de sua visão da estética como
disciplina filosófica. Ao morrer, ele deixou 12.000 páginas publicadas em
vida, em artigos nas mais diversas revistas e dicionários científicos e
filosóficos. Os manuscritos não publicados que sua segunda mulher, Juliette,
entregou à biblioteca de Harvard após seu falecimento, no entanto, chegavam
perto de 90.000 páginas. Quase ao final de sua vida, com alguma exasperação
Peirce confessou que era tal o estado de desordem dessas páginas que
ninguém, nem ele mesmo, seria capaz de organizá-las. Enganou-se. Graças ao
inestimável trabalho de uma equipe de investigadores, sob a coordenação de
Max H. Fisch, os manuscritos foram ordenados, paginados e, muitos deles,
inclusive datados. Mas, até que isso acontecesse, passaram-se décadas.
Enquanto isso, durante pelo menos quarenta anos, a única parcela acessível
de sua obra reduzia-se às 6.000 páginas publicadas nos Collected Papers. O
valor dessa coletânea não deve evidentemente ser minimizado, mas seus
limites não podem também deixar de ser apontados. A seleção temática dos
escritos não permite sequer entrever o desenvolvimento histórico das ideias
de Peirce. Mas, pior do que isso, a extrema fragmentação a que seu
pensamento foi submetido para poder caber em 6.000 páginas deu origem a
um verdadeiro folclore de leituras equivocadas e mal-entendidos sobre sua
obra. O trabalho mais recente de esclarecimento de muitos desses equívocos,
por parte daqueles que têm buscado o acesso aos manuscritos, tem sido
duplo: corrigir, de um lado, e reinterpretar de outro.

A partir da organização dos manuscritos, foi instalado em Indianápolis,


em 1976, o Peirce Edition Project, projeto ambicioso para a publicação
cronológica, em trinta volumes, de escritos peirceanos criteriosamente
selecionados de acordo com as normas mais modernas de editoração. Depois
de quase vinte anos de existência, no entanto, esse projeto só conseguiu
chegar até agora ao quinto volume, o que muito tem frustrado as esperanças
de avanço nas pesquisas sobre a obra peirceana, levando à suposição de que
infelicidades semelhantes às que assaltaram a vida de Peirce estejam
continuando a assaltar sua obra. De qualquer modo, todas essas precauções
bibliográficas estão sendo tomadas para explicar as principais razões que
levaram à negligência quase sempre involuntária de seus intérpretes em
relação à estética, entre outros tópicos igualmente, e pelos mesmos motivos,
negligenciados de sua obra, os quais não vem ao caso serem aqui analisados.

Assim sendo, a principal razão da falta de interesse na estética peirceana


tem derivado da certeza antecipada e equivocada de seus comentadores de
que não há uma teoria estética em sua obra e, mesmo que houvesse, ela não
passaria de uma série de fragmentos esparsos e descosidos que não chegariam
a se integrar em um todo que pudesse fazer sentido. Embora, de fato, as
referências peirceanas à estética estejam espalhadas nos mais diversos
escritos, afirmação que só tende a se confirmar em função da fragmentação a
que esses escritos foram submetidos nos Collected Papers, um dos objetivos
deste livro, talvez o principal, é o de evidenciar não apenas que há uma teoria
estética em Peirce, mas também que essa teoria tem coerência, além de
relevância para a discussão de questões que estão sendo debatidas
contemporaneamente.

O LUGAR DA ESTÉTICA NA OBRA PEIRCEANA


Assim como Kant, Peirce tinha uma concepção arquitetônica da filosofia,
mas só por volta de 1900 — depois de quase quarenta anos de trabalho
científico dedicados às mais diversas áreas do saber, que iam da matemática,
física, astronomia e química até a história, psicologia e principalmente a
lógica concebida como semiótica, para a qual sua grande vocação intelectual
se dirigia —, foi quando Peirce conseguiu configurar a arquitetura de sua
filosofia. Uma vez que já publiquei um estudo aprofundado sobre o diagrama
peirceano das ciências, contendo fartas discussões sobre o lugar ocupado
pelas disciplinas filosóficas nesse diagrama (Santaella 1992), basta
mencionar aqui que Peirce era, antes de tudo, um cientista. Em função disso,
a filosofia foi por ele concebida como um dos gêneros da ciência. Vale notar
que seu conhecimento das ciências não se deu meramente através de livros,
mas na prática efetiva dos laboratórios. A palavra ciência não tinha para ele,
portanto, um sentido metafórico. E por ter praticado nas mais diversas
espécies de ciências, além de nunca ter negligenciado o que hoje chamamos
de humanidades, sua concepção da filosofia como ciência não significava
simplesmente tomar como modelo alguma ciência constituída e reconhecida,
digamos a física, por exemplo, e passará avaliar quaisquer outras áreas da
ciência a partir desse modelo.

Em oposição a qualquer visão estática, modelar e hierárquica das relações


entre as ciências, durante toda a sua vida, Peirce devotou enorme respeito e
desenvolveu grande admiração pelas diferenças de estratégias e métodos que
existem no interior de cada ciência, considerando inclusive a importância das
transformações históricas pelas quais os métodos vão passando, no decorrer
do tempo, dentro de uma mesma ciência. A partir desse ponto de vista, assim
como qualquer outra área do saber, a filosofia foi por ele entendida como
ciência, na medida em que ela também deve fazer uso, à sua maneira, de
hipóteses e encontrar, também à sua maneira, os meios de validação de suas
hipóteses. Mas, para que isso se realize, a filosofia não precisa estar
submetida a nenhum modelo externo. Conforme será visto mais
detalhadamente na segunda parte deste livro, no diagrama filosófico
peirceano, as relações entre as disciplinas científicas são relações
necessariamente dialógicas, num sistema dinâmico de trocas, em que ciências
mais abstratas fornecem princípios às menos abstratas, enquanto estas
abastecem aquelas com dados concretos.

Muito bem, tudo isso para dizer que a estética peirceana é uma entre
várias disciplinas que se configuram no interior de uma arquitetura filosófica
concebida como ciência. Por tudo que possa soar estranho à primeira vista, a
estética é, para Peirce, uma disciplina filosófica e científica cujo conteúdo só
pode se tornar compreensível quando examinado nas múltiplas relações
existentes entre a estética e as demais disciplinas filosóficas, do mesmo modo
que o diagrama filosófico peirceano como um todo só pode se tornar
compreensível nas relações que a filosofia estabelece com áreas científicas
extrafilosóficas. O estudo dessas relações, tendo em vista o desenho do perfil
específico da estética na filosofia científica de Peirce, será, conforme já foi
sugerido, o assunto da segunda parte.

Durante muitos anos, os estudos da obra peirceana estiveram divididos


em duas tendências quase opostas e incomunicáveis: de um lado, os estudos
levados a cabo por filósofos, de outro, aqueles realizados por semioticistas.
Por várias ocasiões, tive a oportunidade de discutir essas duas tendências,
chamando a atenção para o fato de que o retrato da obra peirceana que cada
um desses grupos nos apresenta é tão diferencial que eles não parecem estar
trabalhando com a obra de um mesmo autor. É certo e notório que há uma
pluralidade tão impressionante de aspectos a serem explorados na obra de
Peirce que, muitas vezes, eles não parecem vir de uma só pessoa. Contudo,
não é a isso que estou tentando me referir, mas ao problema de que os
interesses que levam os filósofos, de um lado, a ler Peirce, e os interesses dos
semioticistas, de outro, são tão discrepantes a ponto de eles terem se
constituído em dois grupos de leitores separados, antagônicos e
aparentemente inconciliáveis. Em síntese: enquanto os filósofos só tendem a
se interessar por temas tradicionalmente tidos como filosóficos,
teimosamente ignorando o papel que a lógica ou semiótica — por ocupar
exatamente a posição do coração no diagrama das disciplinas filosóficas —
tem a desempenhar no pensamento de Peirce, os semioticistas, por sua vez, só
dão relevância para alguns aspectos isolados da semiótica, especialmente as
definições e classificações de signos, negligenciando completamente as raízes
filosóficas e as interações com as outras disciplinas de onde a semiótica extrai
o seu sentido.

Embora de uns poucos anos para cá esteja ocorrendo uma necessária e


salutar aproximação entre os filósofos e semioticistas de extração peirceana, a
interpretação do pensamento de Peirce continua até hoje, infelizmente,
marcada por esse antagonismo de base. Ora, mesmo se tratando de um dos
aspectos mais negligenciados de sua obra, a estética também foi marcada pelo
sinete dessa divisão. De um lado, destacam-se alguns poucos intérpretes que
apresentaram estudos da estética peirceana como disciplina filosófica De
outro lado, aparecem os intérpretes, também poucos, que, provavelmente
desconhecendo os escritos de Peirce voltados especificamente para a
discussão da importância da estética na sua filosofia, especialmente para o
papel por ela desempenhado na definição do seu pragmaticismo
evolucionista, procuraram reconstruir, a partir da teoria dos signos, o que
poderia ter sido ou o que poderia vir a ser uma estética semiótica, ou melhor,
em que medida a semiótica peirceana pode nos ajudar a pensar questões
estéticas.

Havendo no estado da arte, uma tal divisão entre os intérpretes, ela será
tomada também como uma das referências deste livro. Assim sendo, o nono
capítulo estará voltado especificamente para a discussão de uma estética
semiótica de linha peirceana. Em resumo, o livro seguirá a seguinte estrutura:
As Estéticas Filosóficas, primeira parte; A Estética Filosófica de Peirce,
segunda parte. Os cinco capítulos da primeira parte seguirão uma sequência
tanto quanto possível histórica, no sentido mais simples da palavra história,
quer dizer, numa cronologia quase linear, que só será deliberada ou
involuntariamente interrompida sob força das necessidades criadas pela
argumentação de algumas ideias. Os cinco capítulos da segunda parte tratarão
da estética peirceana em profundidade, desde suas relações com o quadro
mais amplo da obra e das outras disciplinas filosóficas até os dilemas que
tiveram que ser enfrentados para que a estética se sustentasse como uma
filosofia científica. Serão também trabalhadas as relações entre estética e
semiótica. Visualmente, a primeira parte pode ser comparada a uma linha
horizontal e a segunda a uma linha vertical. O livro traz a esperança de que o
virtual ponto de encontro dessas duas linhas possa produzir no leitor algumas
faíscas de iluminação.

Não obstante minha consciente predileção pelas simetrias, devo confessar


que o plano deste pequeno livro, evidentemente simétrico, sob qualquer
ângulo de observação, não parece ter sido ditado por essa predileção, mas sim
pelas exigências do próprio assunto e do material que encontrei sobre ele.
Assim creio que tenha sido, a menos que, certamente à minha revelia, o
inconsciente esteja me pregando mais uma de suas peças.
PRIMEIRA PARTE
AS ESTÉTICAS FILOSÓFICAS

INTRODUÇÃO

Conforme foi mencionado na introdução geral, esta parte tem por


finalidade criar uma moldura histórica relativa às mais conhecidas e
influentes teorias estéticas que nasceram no seio da filosofia no Ocidente,
para que se possa projetar, dentro desse contexto, na segunda parte do livro, a
concepção da estética desenvolvida por C. S. Peirce. Não há, nem poderia
haver, nesta modesta moldura, qualquer intenção de aprofundamento. Todos
os filósofos que serão mencionados nesta primeira parte escreveram
copiosamente e foram autores de obras complexas. O conhecimento sério e
sutil de um único filósofo é empresa para uma vida inteira. Não se pode
ocultar, assim, o quanto há de leviandade e consequente simplificação em
qualquer tratamento de mais de vinte séculos de filosofia em algumas
dezenas de páginas. Mas existem momentos em que esquematizações se
fazem necessárias. Acreditando que esta parte é um desses momentos, penso,
com isso, estar até certo ponto justificada para trocar a profundidade de uma
visão microscópica e vertical pela simplicidade de uma visão de conjunto ou
panorâmica.

Numa síntese muito generalizada, pode-se dizer que as estéticas


filosóficas do Ocidente passaram, pelo menos, por três fases diferenciais bem
demarcadas: 1) o nascimento das teorias do belo e do fazer criador nas obras
de Platão e Aristóteles, que se estenderam, não obstante as particularidades
específicas de cada período histórico, pelo mundo latino, a Idade Média e a
Renascença. 2) O deslocamento da ênfase no objeto da beleza para o sujeito
que a percebe, a partir da reação de Anthony Ashley Cooper, Lorde de
Shaftesbury (1671-1713), aos avanços das ciências físicas e aos desafios
apresentados pelas filosofias de René Descartes (1596-1650) e Thomas
Hobbes (1588-1679). Nessa vertente, mas mais propriamente dentro do
espírito empiricista de John Locke (1632-1704), tiveram origem as teorias
inglesas do gosto que, aparecendo pela primeira vez, em 1712, nos escritos de
Joseph Addison (1672-1719), receberam desenvolvimentos sistemáticos nas
obras de Francis Hutcheson (1694-1740) e David Hume (1711-1776).
Exposto às questões emergentes da percepção, do desinteresse, da apreciação,
do sublime, e sensível especialmente aos apelos do “paradoxo do gosto”,
levantados por Hume, Kant veio fazer de sua terceira crítica, a da faculdade
do juízo ou julgamento, a obra inaugural da idade de ouro da estética, que,
estendendo-se pela proeminência do estético dentro do idealismo absoluto de
Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854), encontrou seu apogeu
na Estética de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). 3) A partir do
século XIX, com Arthur Schopenhauer (1780-1860), Friedrich Nietzsche
(1844-1900) e, no século XX, com Martin Heidegger (1889-1976) e as
estéticas fenomenológicas, o descentramento da secular preocupação como
belo viria produzir a explosão e atomização cada vez mais crescente da
estética em versões particularizadas e diferenciais. Destacando-se as figuras
exponenciais e influentes de Benedetto Croce (1866-1952) e John Dewey
(1859-1952), cujas obras deslocaram a questão do belo para os conceitos de
“arte como expressão” e de “arte como experiência”, a estética filosófica,
propriamente dita, foi cedendo terreno para as incontáveis teorias da arte que
foram e continuam sendo desenvolvidas por estudiosos, muitas vezes poetas,
como foi o caso dos românticos ingleses e alemães e, depois, dos simbolistas
franceses, muito especialmente Paul Valéry (18711945), situados mais fora
do que dentro da filosofia. Só recentemente, a partir dos anos 80 deste século,
os debates sobre a pós-modernidade viriam recolocar as questões estéticas de
volta ao centro da cena das artes, cultura e filosofia.

São, de fato, inumeráveis as teorias da arte que os dois últimos séculos


viram nascer. Na medida mesma em que foi se dando o movimento
descendente do ocaso do belo, ia se dando, em movimento contrário, a
emergência, por todos os centros e cantos do globo, de teorias da arte numa
quantidade e profusão tais que qualquer pretensão de descrevê-las
transformou-se numa empresa talvez impossível. Por isso mesmo, a moldura,
que será aqui configurada, não inclui, de um lado, as obras criativas ou
ensaísticas, realizadas por poetas e artistas ao longo dos séculos, as quais
evidentemente influenciaram grandemente os filósofos na construção de suas
estéticas, num processo inevitável de intercomplementaridade criativa e
intelectual. De outro lado, serão também excluídas quaisquer teorias da arte
não explicitamente filosóficas. Por uma questão de coerência em relação ao
recorte necessário para atingir os propósitos que este livro visa atingir, só
serão incluídas, nesta primeira parte, as estéticas nitidamente filosóficas que
se originaram no Ocidente.
Buettner (apud Tilghman, em Dickie et al., 1977, p. 160) nos diz que “em
oposição à estética, que é a investigação filosófica da arte e beleza, a teoria da
arte investiga as ideias dos artistas, num esforço de explicar a variedade de
fenômenos tanto na vida quanto na obra dos artistas”. Sendo mais gerais, as
filosofias da estética, portanto, tratam os problemas específicos e concretos,
com os quais as artes lidam, apenas como ilustração ou exemplificação para
suas abstrações conceituais. Assim se deu em Platão, assim continuou se
dando em todas as outras estéticas nascidas no interior da filosofia, até pelo
menos o final do século XIX, como se verá a seguir.
1. AS APARIÇÕES DO BELO

Embora polêmicas e mesmo contraditórias, as ideias sobre a natureza da


arte que tiveram seu nascimento na obra de Platão marcaram a história da
estética ocidental, mantendo-se vivas até hoje. Note-se, antes de tudo, que a
concepção que Platão tinha das artes em nada se assemelha ao modo como
passamos a conceber a arte especialmente a partir do Renascimento. As
atividades práticas, artesanais, todos os resultados de trabalhos realizados
com as mãos eram vistos, pelos gregos, como inferiores e colocados em
oposição aos produtos do intelecto, aos frutos do pensamento, de natureza
mais nobre e transcendente. Vem daí uma das razões para a sobrevalorização
platônica da filosofia em relação às artes, pois estas eram vistas por ele como
téchne, saber fazer, saber construir, que corresponderia ao termo inglês craf,
num paradigma similar ao da produção de móveis ou da construção de
navios, por exemplo.

De qualquer modo, Platão foi o primeiro a desenvolver uma teoria das


artes inserida no contexto mais amplo de uma filosofia do belo que reinou
soberana por séculos, continuando até hoje a inspirar muitos autores. Há dois
conceitos básicos em sua teoria: o conceito de mímese, de um lado, e o do
entusiasmo criador, de outro. Interessante observar que, enquanto o primeiro
é mais facilmente aplicável às artes visuais, o segundo se aplica mais às artes
verbais e música. As consequências que Platão extraiu de ambos, no entanto,
foram similares.

Existe uma leitura padronizada e simplificadora da teoria platônica que a


reduz a oposições binárias muito nítidas e despidas de ambiguidade. Assim
sendo, de sua concepção da realidade verdadeira como um universo abstrato
e ideal de formas e ideias deriva a concepção da realidade ou aparência
sensível como imitação (mímese) ou cópia imperfeita do ideal. A orientação
eminentemente visual de seu entendimento da arte, que restringia suas formas
de realização basicamente à pintura e escultura, o levou a conceber a arte
como imitação da imitação, quer dizer, aparência de segunda ordem e,
consequentemente, duplamente afastada do ideal e da verdade. Ora, esse
conceito de mímese, por mais que possamos dele discordar, é, sem qualquer
sombra de dúvida, um conceito originário, o primeiro a detectar e discutir o
problema fundamental do qual nenhuma forma de arte pode escapar: o
problema da sua duplicidade, que veio receber, ao longo dos séculos, as mais
variadas denominações, entre elas representação, expressão, ilusão,
semblante, simulação etc., todas elas, no entanto, não passando de
deslocamentos ou variações em torno de um mesmo tema, o da mímese,
levantado por Platão.

O segundo conjunto de questões, mais relativo à arte poética e


secundariamente à música, não chegando propriamente a se constituir num
conceito tão redondo quanto o de mímese, deriva das relações da arte com
quem a produz e quem a recebe: a inspiração na porta de entrada e o
despertar das emoções e paixões na porta de saída da poesia. Alimentado pela
positividade do comedimento, virtude dominante na cultura grega, Platão foi
levado a enxergar como fontes de perigo, de um lado, o toque de loucura, a
irracionalidade do entusiasmo presente no talento especial dos poetas, de
outro lado, as comoções do impacto emocional da arte poética sobre o
receptor. Em função disso, a arte verbal foi vista por ele como antagônica às
formas de conhecimento, aos raciocínios discursivos propiciados pela
filosofia. Em síntese, para Platão, a poesia não produz cognição, estando
muito mais do lado das pressões irracionais pelas quais o ser humano pode
ser subjugado do que das forças do intelecto, só estas capazes de conduzi-lo
para a ascese ao mundo das verdades ideais.

Se ficarmos presos apenas ao diálogo Ion e ao livro X da República


(Platão, 1966), que são os textos mais citados, quando se discute a teoria da
arte de Platão, não podemos escapar de uma visão estritamente dicotômica e
negativista da arte e da poesia conforme a que está acima exposta. Quando
outros textos platônicos são levados em consideração, especialmente Fedro, o
Sofista e o Simpósio, contudo, algumas ambiguidades e muitas gradações
conceituais começam a emergir juntamente com a mais inspiradora dentre
todas as teorias do belo, enfim, quase tudo daquilo que fez de Platão o
fundador da estética filosófica e continua a fazer dele uma fonte de consulta
imprescindível para a compreensão das grandes questões levantadas pela arte.
De acordo com Hofstadter e Kuhns (1976, p. 3-5), quatro temas gerais podem
ser extraídos dos escritos platônicos sobre as artes: 1) a ideia geral de arte,
téchne, cujo princípio está na medida; 2) os objetivos e deficiências do
conceito de mímese; 3) o conceito de inspiração, entusiasmo, loucura ou
obsessão, como condições necessárias à criação; 4) o conceito de loucura
erótica e sua conexão com a visão do Belo.
A medida é um conceito extensivo em Platão, abraçando os princípios do
bem e da beleza. Saber fazer pressupõe o conhecimento dos fins almejados e
dos melhores meios para atingi-los. No cerne desse conhecimento está a
noção de medida unindo tanto o poeta que sabe que tamanho exato uma fala
deve ter e o pintor que sabe em que proporção uma figura deve aparecer,
quanto o cidadão que sabe que distribuições são apropriadas para as funções
na sociedade.

Entre as artes, a superior é aquela de um produtor divino, o Demiurgo,


que compôs o universo imitando as ideias verdadeiras e as formas imutáveis.
Seguindo o Demiurgo, o legislador também concebe a comunidade humana
de acordo com as Ideias do Bem, da Justiça e da Verdade. Em terceiro lugar
na hierarquia, estão os poetas e os artistas que também visam aos ideais, mas,
diferentemente do Demiurgo, eles podem falhar no conhecimento da
realidade última, produzindo meras aparências da natureza sensível. Quando
o artista, por outro lado, é guiado pela visão da educação que o filósofo
possui, sua imitação será verdadeira (eikastika), em oposição à falsa imitação
(fantastika), o julgamento do falso e do verdadeiro dependendo das
finalidades morais da pólis.

Há algo no fazer artístico que transcende as regras e o saber fazer, algo


que vai além da téchne. É a inspiração. O poeta traz em si o sopro do divino.
Nessa medida, a concepção platônica da loucura não é meramente negativa.
Há nela algo de nobre e enaltecedor e é dela que advém a complexa noção do
belo em Platão.

São quatro os tipos de loucura: a profética, a iniciatória, a poética e a


erótica. Esta última leva os homens a entrever a beleza eterna do mundo
habitado pelos deuses. O desejo inatingível do amante conduz sua alma à
contemplação da forma imutável do belo. Enquanto a loucura poética liga o
poeta à sua musa, a loucura erótica liga o indivíduo à forma de divindade que
lhe é própria, com sua forma especial de beleza, esta também uma sombra ou
imitação do belo eterno. Finalizando, portanto, tudo que é humano é
imitativo, submetendo-se a um princípio de julgamento que é geral e coletivo
baseado nas necessidades da comunidade, São essas necessidades que
também controlam as inspirações divinas da arte.

Quando se passa de Platão para Aristóteles, a tendência mais imediata é


pensar que, enquanto a teoria da arte do primeiro está espalhada por sua obra,
a de Aristóteles está concentrada sistematizada numa obra específica, a
Poética (Aristóteles, 1940). Essa conclusão, embora muito comum, é
enganosa. Se pretendemos extrair a teoria da arte aristotélica só da Poética,
ficaremos com uma visão parcial e tendenciosa. Sem negar o valor antológico
dessa obra, o papel por ela desempenhado no todo da filosofia da arte de
Aristóteles é um papel especializado, pois a Poética lida apenas com um tipo
de téchne, um tipo de arte imitativa, a poesia e, dentro desta, o teatro e, dentro
deste, a tragédia. Embora esta seja, de fato, a forma de arte privilegiada por
Aristóteles, a Poética só é capaz de nos fornecer um retrato incompleto das
concepções de arte, da beleza, do bem artístico e da relação entre arte e
natureza desenvolvidas por Aristóteles em passagens que aparecem tanto na
Metafisica e na Ética quanto na Retórica e na Política (Aristóteles, 1964),
passagens estas, aliás, que amplificam e nos ajudam a compreender melhor a
própria Poética (Hofstadter e Kuhns, 1976, p. 78-138).

Para Aristóteles a arte é, antes de tudo, resultado de uma habilidade


especial para o fazer, não o fazer maquinal, repetitivo, mas aquele capaz de
transfigurar os materiais a ponto de alcançar um poder revelatório. A arte será
tanto mais bem realizada quanto mais a perfeição de sua forma, na segurança
do método, for capaz de atingir a unidade satisfatória de um todo eficaz e
auto-sustentado. O belo, portanto, é o fruto ou resultado do domínio que o
artista tem da téchne, de quão habilmente ele é capaz de utilizar os meios da
composição, tendo em vista a simetria, harmonia e completude. São essas
condições da téchne que estão pressupostas na Poética, na qual, seguindo seu
método de definição que procede de acordo com a análise de um assunto
segundo sua divisão em gênero e espécie, Aristóteles buscou chegar a uma
completa definição de seu objeto, a arte poética trágica.

De acordo com Dickie et all (1977, p. 6), a Poética não exibe a justeza de
estrutura, o rigor dos argumentos e a sistemática da exposição que são típicos
de outras obras aristotélicas, porque os manuscritos que deram origem a essa
obra vieram muito provavelmente de uma série de notas de palestras a partir
das quais ele pretendia escrever um tratado completo. De todo modo, é o
primeiro estudo minucioso dos princípios estruturais das obras de arte, o
primeiro tratado sistemático a lidar com a arte poética como um fazer
genuíno do qual se origina um todo orgânico, ideia matriz na concepção da
obra de arte que tem perdurado por mais de vinte séculos.

O conceito básico no entendimento aristotélico da arte é também o de


mímese, mas entendida dentro de pressupostos e finalidades bastante diversas
das platônicas. Segundo Eva Schaper (1968, p. 57-67), a mímese, para
Aristóteles, deriva de uma necessária relação de adequação que deve haver,
entre arte e vida, arte e natureza. O que a arte imita, assim, é a atividade
produtiva da natureza. Aqui, a mímese não é mais imitação como cópia de
algo prévio, não é a produção da semelhança, num ato de fidelidade a um
original qualquer que seja, mas é criação ou poiesis. A imitação poética visa à
criação de algo novo, por isso mesmo, só a arte pode ser mimética, o que
significa deslocar o conceito de mímese do sentido de cópia para o de
representação e transformação. Representação, portanto, não quer dizer
reprodução, mas sim apresentar algo como se fosse real. O estudo das
exigências estruturais e dos princípios formais das obras poéticas advém,
desse modo, da necessidade de diferenciar a construção poética, que é
mimética, de outras espécies de construção históricas e cognitivas, por
exemplo.

A arte não imita coisas, ideias ou conceitos. Ela mostra como a natureza
trabalha e assim o faz através da construção de suas próprias criações, daí seu
poder transfigurador. As obras não são réplicas ou cópias, mas ficções
reveladoras, produtos da imaginação criativa orientada para o fazer,
imaginação produtiva. A arte está voltada para os princípios formativos que
operam na natureza e na vida, imita-os e os encarna em estruturas feitas pelo
homem. Na junção da téchne, sabedoria na operação com os meios, com a
poiesis, capacidade criadora, o poeta é capaz de revelar poeticamente
verdades concernentes à natureza e à vida que não apareceriam sem a sua
intervenção. A arte, sob esse ponto de vista, tem muito pouco ou nada a ver
com a exigência de correspondência a qualquer modelo preestabelecido, mas
sim com o estabelecimento de representações convincentes, internamente
procedentes, quer dizer, verossimilhantes. E eis aí, na verossimilhança, mais
um dos conceitos originados em Aristóteles, indispensável à teoria e crítica
de arte e literatura até os nossos dias.

Analisar o modo, a maneira como os resultados acima podem ser


atingidos, foi o objetivo da Poética que começa com uma classificação das
artes miméticas até chegar à forma trágica, a privilegiada por Aristóteles
porque, nela, o objeto da imitação são as ações humanas arquetípicas.
Quando estas são colocadas sob uma luz relevadora, a arte atinge seu mais
alto objetivo: o efeito catártico através do qual o receptor passa por uma
experiência purificadora e educativa.

Embora aparentemente oposta à filosofia da arte platônica, a aristotélica


emprestou dela muitos de seus conceitos, entre eles especialmente o de
téchne e o de mímese. Também para Aristóteles, toda arte é uma forma de
téchne, cujo exercício depende de uma série de requisitos. Mas ao invés de
colocar esses requisitos nas forças misteriosas que emanam do divino, ele os
trouxe para as habilidades e poderes especiais do artista para configurar,
através da força de sua imaginação, estruturas criadoras, poiesis. Também
para Aristóteles, toda arte é mimética, Diferentemente de Platão, contudo, a
arte não é cópia servil de uma realidade que a transcende, mas mantém com a
natureza, especialmente a humana, uma relação de correspondência e
complementaridade criativa e reveladora. O exemplo mais claro da distinção
radical, na compreensão da mímese, que separa Aristóteles de Platão está na
consideração aristotélica da música como a mais mimética de todas as artes.
Uma vez que a música não tem poderes para copiar a aparência do mundo
exterior, fica aí claro o conceito de mímese como construção representativa
que não está voltada para um objeto ou aparência, mas, para a apresentação
de uma forma reveladora, no caso da música, a forma emocional dos
sentimentos humanos.

A maior diferença entre Platão e Aristóteles reside nas consequências que


cada um deles extraiu de sua filosofia para a apreciação e avaliação da arte.
Se, para Platão, a arte pode ser fonte de ilusão e levar ao engano por
alimentar as paixões, para Aristóteles, a arte é valiosa porque reparadora das
deficiências da natureza, especialmente as humanas, trazendo com isso uma
contribuição moral inestimável. Rejeitando o idealismo metafísico de seu
antecessor, Aristóteles depreciou o papel que a beleza e o amor erótico
desempenham na discussão da arte. Tratando a beleza como uma propriedade
objetiva da obra de arte e mesmo da natureza, em lugar da busca inspirada do
Belo que Platão considerava como um dos fins últimos da arte, deslocou sua
ênfase para os benefícios morais que a arte pode trazer. Finalmente, embora
distinta das formas de cognição próprias da filosofia e do conhecimento
racional, a arte não deve ser, segundo Aristóteles, identificada com a
desrazão. Não há, para ele, uma dicotomia rígida entre o racional e o
irracional, mas um jogo de forças complementares entre os poderes
imaginativos e construtivos da arte e as faculdades intelectivas da filosofia.

As obras de Platão e Aristóteles foram fontes hegemônicas de inspiração


para os filósofos que os seguiram por muitos séculos, só tendo essa
hegemonia entrado em crise com o advento da filosofia moderna, a partir do
racionalismo cartesiano e do empiricismo de Locke. Antes que isso
ocorresse, no entanto, dependendo da filiação ou inclinação ontológica do
filósofo, sua visão da arte penderia para o idealismo platônico ou para o
realismo aristotélico. Passando uma vista rápida sobre alguns desses
filósofos, que trouxeram contribuições para a filosofia da arte, há que ser
mencionado, antes de tudo, um texto de fonte discutível, provavelmente do
século I a.C., que viria influenciar grandemente o apogeu da estética no
ocidente e cuja autoria tem sido conferida a Longino (III d.C.). Trata-se do
ensaio Sobre o sublime (Longino 1965, ver também Coleman, 1974, p. 12-2).
Duas questões, principalmente com referência à literatura são levantadas
nesse tratado: 1) qual é a qualidade que faz uma obra ser grande ou sublime?
2) Como a qualidade pode ser produzida? Há recursos retóricos que fazem
aflorar o sentimento do sublime, mas ele também depende de uma disposição
da alma, uma habilidade para absorver “grandes concepções” e alimentar
paixões fortes e impetuosas. Através de suas habilidades retóricas, o artista
traz à tona sentimentos de êxtase na afinidade da alma com o supra-sensível.
O estranho e o grandioso, em oposição ao prosaico, contribuem para o efeito
estético: “O que é útil e necessário parece caseiro, mas o que é estranho é
maravilhoso”, de onde decorre o sublime como “eco da grande alma... a nоta
que soa da grande mente”.

Em Plotino (por volta de 205-270 d.C.), iremos encontrar uma metafísica


do belo que trouxe influências, de um modo ou de outro, para a filosofia
cristã e o Renascimento italiano, de um lado, o neo platonismo da escola de
Cambridge, no século XVII, e o romantismo alemão do século XIX, de outro.
Ao mesmo tempo que Plotino (1957) levou a filosofia platônica às suas
consequências lógicas, ele também a temperou com um misticismo quase
irracional. Aceitou a distinção platônica básica entre as essências imutáveis
reais, objetos da inteligência, e as coisas particulares e mutáveis, objetos dos
sentidos. Da perfeição do Uno, que transcende toda existência, emana a
divina inteligência da qual podemos participar, dela advindo uma terceira
divindade, a alma do mundo, que se manifesta em nossas almas e cria o
mundo sensível. Essas sucessivas emanações, exceto a matéria, tendem a
retornar para a origem de onde partiram. A beleza física, então, Será fruto da
unificação da multiplicidade informe da matéria sob a força de algum caráter
essencial. “Na natureza isso será produzido pela alma do mundo, na arte pela
alma do mundo manifesta na alma humana”. Mais bela do que qualquer
beleza física, contudo, é a qualidade essencial apreendida e possuída pela
inteligência, pois “o fundamento da possibilidade de toda unidade, de toda
beleza, é o Uno” (Carritt, 1931, p. 43-44).

Foi com Plotino, na sua concepção da natureza simbólica de todos os


produtos humanos, retomada pela filosofia alemã do século XIX, que o
caráter simbólico da arte recebeu sua primeira formulação. Não apenas o belo
é um símbolo da harmonia cósmica, mas esta só pode ser sugerida através de
metáforas de natureza poética. Sua visão lírica das emanações do belo
assemelha-se aos eflúvios de uma cascata etérea: “O Bem irradia a beleza de
si mesmo e é a fonte da beleza, enquanto a beleza, em si mesma, é segunda
na ordem das emanações”. A beleza daquilo que é produzido pelo homem é
uma imitação da Beleza e do Bem puros. Em relação à beleza do que é
criado, o belo natural é incompleto. Daí as artes tentarem aperfeiçoá-lo e
enobrecê-lo, o que as coloca no meio do caminho entre o Belo puro e as
belezas relativamente obscuras da natureza, e do que decorre que a arte é um
símbolo duplo: da realidade inferior, que ela engrandece, e da realidade
última, que ela espelha (Hofstadter e Kuhns, 1976, p. 140-141).

Em Santo Agostinho (354-430), a filosofia de Plotino recebeu sua


tradução cristã. O desafio a ser enfrentado nessa tradução estava em encontrar
as justificativas religiosas para a questão do belo, o grande problema advindo
da gratificação sensória imediata que a arte produz. Mesmo que a harmonia
divina esteja refletida na natureza e na arte, os objetos perceptivos atraem os
sentidos para as coisas terrenas, conturbando a contemplação do eterno e
imutável. Vem daí que, para Agostinho, quanto menos sensória fora arte,
mais ela espelhará a ordem divina. A música é, assim, superior à pintura, mas
são as palavras da escritura que estão mais adaptadas aos poderes da
compreensão humana. Em síntese: na medida em que a arte concorda com as
verdades da fé e reflete as harmonias do poder criador divino, ela está
justificada.

Num livro primeiramente publicado em 1956, traduzido para o inglês em


1988, Umberto Eco defendeu a tese de que o sistema filosófico de Santo
Tomás de Aquino (por volta de 1225-1274) inclui uma teoria estética
coerente. Segundo Eco (ibid., p. 6), os medievais apossaram-se de vários
temas, problemas e soluções do mundo clássico, usando-os no contexto de
uma sensibilidade nova e diferente. Desse modo, eles só estavam dispostos a
receber a beleza na sua aparição como realidade puramente inteligível, como
harmonia moral ou esplendor metafísico, mas, ao mesmo tempo, não
conseguiam descartar totalmente a beleza sensível simplesmente porque um
valor mais alto, especialmente no nível teórico, era conferido à beleza do
espírito. De fato, a tensão entre o teórico e o prático, que se expressou no
pensamento medieval, gerou uma tentativa de conciliação desses dois lados
irreprimíveis da beleza, na concepção que eles desenvolveram da experiência
estética. Santo Tomás não formulou uma teoria estética específica e
homogênea num corpo explícito de escritos, nos diz Eco (ibid., p. 19), mas há
um papel fundamental desempenhado pela beleza no seu pensamento, como
restauradora de uma ordem e equilíbrio que emergem através da síntese de
eventos causais e contradições empíricas.

Ele entendia a beleza como uma propriedade transcendental e constante


do ser. Ser é aquilo que pode ser visto como belo. Todos os seres contêm as
condições constantes da beleza, uma vez que o universo, como obra de seu
criador, é necessariamente belo, uma enorme sinfonia de beleza. O mundo de
Aquinas, Eco explica (ibid., p. 47), era uma hierarquia de existentes que
adquiriam seu valor individual através da participação, estabelecida dentro de
limites estáveis e definidos. Todo belo é bom, e tudo que é bom o é por estar
associado numa perfeição definida com um certo ato de existir. O belo e o
bem estão fundados na forma, que é a razão porque algo está em ato, ou tem
atualidade, sendo bom por si mesmo.

Num lindo ensaio sobre “Beleza e Imitação”, Jacques Maritain (1882-


1973) compôs o belo de Santo Tomás numa orquestração poética que merece
ser ouvida (apud Rader, 1966, p. 26-34):
O belo é o que dá alegria, não qualquer alegria, mas alegria no conhecimento; não a alegria
peculiar ao ato de conhecer, mas uma alegria superabundante, extrapolando tal ato devido ao
objeto conhecido. Se algo exalta e delicia a alma pelo simples fato de ser dado na intuição da
alma, é bom de ser apreendido, é belo. A beleza é essencialmente o objeto da inteligência, pois o
que conhece, no pleno sentido da palavra, é a mente, apenas ela aberta para a infinitude do ser. [...]
“O belo se relaciona à visão e audição entre todos os sentidos porque esses dois são maxime
cognoscitive” [...] O belo conatural ao homem é aquele que vem deliciar a alma através dos
sentidos e suas intuições. Esse também o belo particular de nossa arte, que trabalha sobre uma
matéria sensível para o regozijo do espírito. Ela tem o sabor do paraíso terrestre porque restaura,
por um breve momento, a paz simultânea e a delícia da mente e dos sentidos.

A seguir, Maritain acrescentou que a beleza delícia a mente porque ela


apresenta essencialmente uma certa excelência ou perfeição na proporção das
coisas à mente, de onde advêm as três condições que Santo Tomás
determinou para a beleza: integridade, porque a mente gosta de ser;
proporção, porque à mente agradam a ordem e unidade; e, acima de tudo,
brilho e claridade, porque a mente gosta da luz e da inteligibilidade. Um certo
esplendor foi, de fato, um caráter essencial da beleza para os antigos:
splendor veri (da verdade), em Platão; splendor ordinis (da ordem), “a
unidade é a forma de toda beleza”, em Agostinho; splendor formae (da
forma), com precisão metafísica da linguagem, para Aquinas. A “forma”,
Maritain explicou, “o princípio determinando a perfeição particular das
coisas, ao constituir e completar as coisas na sua essência e qualidade, é o
segredo ontológico de seu ser mais íntimo, sua essência espiritual, seu
mistério operativo, é sobretudo o princípio peculiar da inteligibilidade, a
claridade peculiar de todas as coisas”. Toda beleza sensível envolve um certo
deleite dos olhos ou do ouvido, ou da imaginação, mas não pode haver
qualquer beleza se a mente não estiver, do mesmo modo, deleitada.

Para Aquinas, obviamente muito mais aristotélico do que platônico, não


há uma separação rígida entre sentidos e mente. O brilho da forma, não
importa quão puramente inteligível ele possa ser, em si mesmo, é apreendido
nos sentidos e pelos sentidos, a intuição da beleza artística estando no pólo
oposto complementar da abstração das verdades discursivas. Enfim, o belo é
essencialmente prazeroso, por sua própria natureza incita o desejo e produz
amor, enquanto a verdade como tal apenas ilumina.

Ao final de sua tese, Umberto Eco conclui que o mundo medieval entrou
em crise não apenas devido às dificuldades de conciliação das forças opostas
que lutavam em seu interior, mas porque a realidade foi se tornando cada vez
mais prática e as pessoas não encontravam, nas abstrações medievais,
instrumentos de conhecimento para sua vida cotidiana. O esplendor do belo
inteligível de uma certa forma, se viu sombreado pela irrupção do prosaico.

Com o fim da era medieval, a obra mais influente do renascimento


italiano foi o comentário do Simpósio de Platão, na obra De amore (1475),
sob autoria do humanista, Marsilio Ficino (1433-1499). Mais que um mero
comentário, essa obra (Ficino, 1985) se constitui num verdadeiro tratado do
belo. No universo sonhado por Ficino, a criação é o processo dominante,
conduzido pela necessidade do amor, tal qual uma corrente em movimento de
espiritualidade divina, viajando de Deus para o mundo e deste de volta a
Deus. A beleza visível é o meio para a beleza inteligível. Este meio se realiza
através do amor humano, enquanto a beleza inteligível só pode ter realização
divina. Daí as duas Vênus, a celestial e a terrestre, na pintura renascentista
italiana. Com Platão lido à luz de Plotino, criou-se, então, uma nova tradição
neo platônica, mais propriamente conhecida como o humanismo renascentista
italiano.

Ao mesmo tempo, o Renascimento viria trazer o desenvolvimento da


autonomia do belo frente à esfera moral. A arte, até então genericamente
concebida, iria codificar-se em subdivisões específicas, passando a mímese a
ser entendida como imitação da beleza natural. O advento do capitalismo
mercantilista e o antropocentrismo nascente exigiriam o reconhecimento “das
qualidades especificamente humanas do artista, capaz de produzir objetos
belos”. O valor dos objetos artísticos seria, daí раrа а frente, duplo:
“espiritual e material, quer dizer, mercantil”. Durante os séculos XVI e XVII,
as ideias estéticas de Aristóteles viriam ganhar importância por toda a
Europa. Estando implícita no neoclassicismo uma síntese do racionalismo e a
exaltação da natureza, estava preparado o terreno para a autonomização da
esfera artística do século XVIII (Jiménez, 1992, p. 27-29).

Enquanto isso, ainda na Itália, Giambatista Vico (1668-1744) trabalhava


na majestosa Scienza nuova (1725), que Benedetto Croce (1866-1952), na
sua Aesthetica (1922, p. 225), viria considerar como um dos pontos
inaugurais da estética moderna, inauguração, aliás, tão monumental quanto a
da estética hegeliana, embora menos específica.
2. A GESTAÇÃO DO GOSTO E DO
SUBLIME

A terceira crítica kantiana germinou em terreno fértil, que começou a ser


semeado com uma série de questões cruciais levantadas pelos autores da
escola iluminista inglesa, no século XVIII, situados prioritariamente dentro
do espírito do empiricismo. As ideias, como as famílias, têm história, nos diz
Coleman (1974, p. 120). Embora os tenha retrabalhado, ajustando-os ao
contexto de sua filosofia, Kant incorporou muitos dos lugares-comuns sua
época. As fontes das principais ideias que a Crítica do julgamento levou à
discussão nasceram dentro de um contexto peculiar, que teve um de seus
primeiros ancestrais muito provavelmente na tradução francesa, de 1674, que
Nicolás Boileau (1636-1711) fez do tratado Sobre ο sublime, de Longino. Na
introdução à tradução, o autor fazia uma distinção entre o sublime em si e o
estilo sublime, o primeiro só pode ser atingido pelos pensamentos elevados, o
segundo pela retórica. Boileau foi um neo classicista, que entrelaçou
Descartes e Aristóteles, propondo uma concepção do belo subordinado ao
verdadeiro, cuja fonte última estava na natureza, inclusive a natureza
humana. Verdade e beleza encontraram aí uma fundamentação naturalista,
muito bem equacionada pela razão (Jiménez, 1992, p. 29). Não é por
coincidência que, para Boileau, nem mesmo a grandeza do sublime estaria
autorizada a violar o senso de propriedade, devendo ser colocada dentro da
moldura de uma linguagem simples, despida de figuras.

Não foi na França, contudo, que, naquele momento, o sublime encontraria


notoriedade e começaria a fazer história, mas na Inglaterra, primeiramente
através de Shaftesbury, que derivou de Boileau seu interesse pelo assunto.
Para Shaftesbury, o sublime chegou em boa hora. Com o avanço expressivo
das ciências físicas e o advento do racionalismo e do empiricismo, ele tentava
encontrar meios alternativos para a defesa dos valores estéticos contra os
ataques do relativismo e das concepções mecânicas do universo. Shaftesbury
era um neo platônico, filiado intelectualmente aos platonistas de Cambridge.
Sua atração pelo sublime foi uma atração natural. Embora Platão nunca
tivesse mencionado o sublime como uma categoria distintiva do estético, o
poder da arte, para ele, estava na manipulação psíquica, nas formas de êxtase
e fascinação que a obra exerce sobre a alma. Ora, Platão amava a arte, mas
amava, ainda mais, o estado. A mais alta e verdadeira forma de arte era
aquela capaz de fortalecer as fibras morais da alma, unindo os homens como
seres políticos. Aí está um embrião do sublime, ligado à elevação moral.

Shaftesbury, por seu lado, sob as pressões do materialismo mecanicista,


em 1711, no seu Características dos homens, maneiras, opiniões e tempos
(Shaftesbury, 1900), buscou reafirmar os valores da natureza através da
beleza como um valor independente em si mesmo. A beleza da natureza pode
ser apreciada através de uma sensibilidade especial que se expressa no
julgamento estético. O poder criativo da natureza se espelha no poder criativo
da mente poética, ambos manifestações correspondentes da harmonia divina.
Essa harmonia pode ser fruída em exercícios de gosto, apreciação,
discernimento. Os julgamentos do belo também podem ser criativos. A
natureza não é apenas bela, mas também sublime. Na experiência religiosa do
sublime, repousa a concepção humana do infinito. Para Shaftesbury, a
experiência do sublime é essencialmente estética. Nasceu aí o conceito de
desinteresse estético. O julgamento do belo advém de uma apreensão
imediata, quase inocente, que se distingue de qualquer finalidade moral ou
utilitária (Hofstadter e Kuhns, 1976, p. 239-241).

Shaftesbury não teve nenhuma ligação com o empiricismo, mas enquanto


o racionalismo tinha muito pouco a falar sobre a estética e o sublime, os
empiricistas encontraram em ambos uma espécie de tubo de ensaio para suas
discussões sobre percepção, sensação e cognição. Não demorou muito para o
sublime se popularizar. Isso se deu nos escritos de Addison. Fortaleceu-se, na
tradição, o consenso de que a estética moderna começou com Baumgarten.
Discute-se, no entanto, que suas formulações inaugurais encontram-se, antes
disso, na Inglaterra, nos trabalhos de Addison Sobre os prazeres da
imaginação, publicados no Spectator, em 1721 (Addison, 1965). Tanto
quanto em Shaftesbury, o sublime não foi, aí, separado da beleza, mas passou
a ser visto como um dos tipos de beleza, a incomum, inusitada. Addison
distorceu a distinção entre o que é expresso e o como é expresso, além de
distinguir entre o falso e o verdadeiro sublime, este sendo algo que eleva e
assombra a imaginação, dando grandeza à alma. À teoria do sublime teria,
assim, de esperar por Edmund Burke (1729-1797) para encontrar sua
primeira discussão sistemática e coerente. Antes disso, as observações
esparsas sobre a teoria do gosto, que já apareciam nos textos de Addison,
iriam encontrar seu desenvolvimento mais pleno nas obras de Hutcheson e
Hume.

Addison definirá o gosto como a faculdade da alma que discerne o belo


com prazer e as imperfeições com desprazer. As perguntas formuladas por
ele, para a discussão dessa faculdade, resumem-se nas seguintes: 1) Qual é o
caráter do sentimento do belo? É um prazer interior, ... uma alegria e um
deleite, eis a resposta. 2) O que há nos objetos para causar isso? Como
resposta, foram apresentados três tipos de beleza, a percebida entre os
membros da mesma espécie, a da arte e natureza e, por fim, a beleza da
semelhança. 3) Qual é o estado otimizado que nos torna mais receptivos para
perceber a beleza? Resposta: o desinteresse estético (Kivy, 1977, p. 254).

Se o estilo de Addison apresentava uma certa displicência, até charmosa,


dois de seus sucessores mais sistemáticos, Hutcheson e Hume, iriam tentar
criar uma verdadeira “lógica” do discurso estético. Se Os prazeres da
imaginação marcaram os primórdios do discurso moderno sobre a estética,
seu primeiro tratado está na Investigação a respeito da beleza, Ordem,
Harmonia, Design, o primeiro entre dois ensaios que Hutcheson publicou
juntos, em 1725 (Hutcheson, 1973), sob o título de Investigação sobre a
origem de nossas idéias do belo e da virtude. Encarnado num modelo
perceptivo, esse tratado levou às últimas consequências, imortalizando a
noção de “senso de beleza”. Hutcheson acreditava que a idéia de beleza
nascia de uma qualidade complexa por ele chamada de uniformidade em meio
à variedade. A apreensão da beleza tem um caráter diferente, um “gosto”
diferente de qualquer outro tipo de prazer dirigido para finalidades práticas.
Embora suas idéias fossem muito sugestivas, Hutcheson se perdeu na lógica
de sua argumentação. Mas Hume, atraído pelas afinidades com essas ideias,
iria levá-las à frente, tentando resolver seus paradoxos no seu Sobre o padrão
do gosto, um dentre vários ensaios publicados sob o título de Quatro
dissertações, em 1757, e talvez um dos frutos estéticos mais ricos,
amadurecido no Iluminismo inglês. Uma visão de conjunto das aquisições,
nas semelhanças e diferenças entre os criadores da teoria do gosto, permite
apreciar melhor as dificuldades que Hume teve que enfrentar sem conseguir
solucionar.

Segundo Dickie et al (1977, p. 219-221), o primeiro grande ponto comum


a ligar todos esses teóricos ingleses estava na percepção, modo através do
qual são conhecidos os objetos do mundo com suas características. O
segundo ponto estava na faculdade do gosto. Quanto à natureza dessa
faculdade, surgiram diferenças. Addison falou vagamente em imaginação.
Hutcheson, em sentido interno da beleza, que reage àquilo que os sentidos
externos apreendem. Burke, como se verá mais adiante, rejeitou a noção de
uma faculdade subjetiva do gosto, substituindo-a pela propensão para
experimentar o prazer e a dor. Hume não problematizou a faculdade do gosto
em si, mas suas consequências lógicas. O terceiro ponto estava no produto
mental, o prazer, advindo da reação produzida pela faculdade do gosto. O
quarto ponto estava voltado para o tipo de objeto ao qual a faculdade do
gosto reage, aqui se encontrando o pomo da discórdia entre os teóricos. Para
Hutcheson, era a uniformidade na variedade, para Burke, uma série de
propriedades dos objetos. Hume também mencionou certas qualidades dos
objetos, enquanto o último dos teóricos do gosto, Archibald Alison (1757-
1839), nos seus Ensaios sobre a natureza e princípios do gosto, de 1790,
escreveu sobre a percepção de algo que é um signo de, ou é expressivo de
uma qualidade da mente, nobreza, por exemplo (Alison, 1968). O quinto
ponto concentrava-se no julgamento do gosto, pelo qual se queria significar
que um objeto percebido, em virtude de alguma característica, que lhe é
própria faz com que a faculdade do gosto reaja, produzindo o prazer. Por fim,
o último grande ponto de união entre todos estava na noção de desinteresse,
que, de uma forma ou de outra, estava implicada na própria natureza da
faculdade do gosto.

Assim se desenhava o estado da questão, quando Hume colocou em


discussão o paradoxo do gosto. Embora o senso comum concorde com a
filosofia cética ao considerar estéril a disputa sobre questões de gosto, esse
mesmo senso-comum é capaz de descartar certos julgamentos como sendo
não apenas improcedentes, mas até mesmo ridículos. Desse modo, o
paradoxo para Hume, se expressava como se segue (Mothersill, 1977, p. 27):
dado que a preferência estética depende do sentimento, que é distinto da
evidência factual e observação, e dado que os indivíduos evidentemente
diferem em relação ao que gostam ou não em termos de poesia e arte, como
podem existir algumas opiniões que são imediatamente descartadas como
falsas e outras sobre as quais há certa concordância? Hume achava que o
caminho para a solução desse dilema, estava no gosto. Havendo certas
qualidades que são universalmente agradáveis, devem existir “leis do gosto”.
Os bons críticos são aqueles que sabem detectar essas qualidades nas obras
de arte o veredito conjunto de tais críticos produz o “padrão do gosto”. Ora,
Hume foi totalmente incapaz de indicar caminhos de respostas tanto relativos
à natureza dessas leis quanto ao estatuto de tal padrão. O paradoxo foi
herdado por Kant com o novo título de “antinomia do gosto”.
Dentro desse grupo de destacados teóricos da apreciação estética, aquele
que levou mais a sério a questão do sublime, inserindo-a numa “lógica” do
gosto com pretensão de validade intersubjetiva, e apresentado-a sob uma
entonação mais fisiológica, foi Burke, ao publicar, em 1757, a sua
Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo
(Burke, 1958).

De acordo com Coleman (1974, p. 124-126), para Burke, sensações


agradáveis podem ser positivas ou envolver a remoção ou diminuição da dor.
O sublime pertence a esse último tipo, além de depender de paixões ligadas à
autopreservação, ou paixões ligadas à dor e perigo. Essas paixões são um
deleite quando temos uma ideia da dor e do perigo, sem estarmos realmente
experimentando tal situação… Qualquer coisa que excite esse deleite, Burke
chamou de sublime, começando sua análise com a estupefação, ou aquele
estado em que nossos movimentos ficam suspensos em algum ponto do
horror. “A mente é ultrapassada, assoberbada pela imensidade do objeto
contemplado; ficamos estáticos, incapazes de nos mover”. Mas o sublime tem
graus que vão da estupefação e horror à “admiração, reverência e respeito”.
Tudo que opera de algum modo análogo ao terror é uma fonte do sublime, ou
seja, é produtor da emoção mais forte que a mente é capaz de atingir.

Em síntese: segundo Burke, o sublime não procede da beleza apaziguada,


mas da desunião e conflito das faculdades. Ele é capaz de remover a finitude
do ser ao revelar sua ausência de fronteiras. Confrontada com o sublime da
natureza ou da arte, nossa liberdade fica exposta. A beleza une e civiliza por
meio da forma; o sublime não tem forma, mas desperta os sentimentos morais
mais profundos.
3. A EMERGÊNCIA DA ESTÉTICA

Quando se passa dos ensaios ingleses sobre o gosto para as analíticas do


belo e do sublime de Kant, o nível de complexidade da discussão cresce
numa ordem tal que as teorias do gosto ficam parecendo balbucios de
crianças aprendendo a falar a língua materna. A rigor, não foi apenas dos
ingleses que Kant herdou a constelação de questões nas quais iria concentrar
suas analíticas. Numa das passagens da Crítica do julgamento, ele declarava
que as questões da estética, nas críticas do gosto do seu tempo, estavam
agudamente divididas entre o racionalismo e o empiricismo (Kant, 1929, p.
25-26). Embora Descartes não tenha escrito quase nada sobre estética, por
mais de um século seu método e metafísica influenciaram profundamente as
concepções sobre a natureza da arte. Assumia-se, nessas concepções, que a
natureza e a razão são idênticas, de modo que as regras que governam as
ciências também governam as artes. Aristóteles era muitas vezes considerado
como o grande descobridor das regras da crítica, do mesmo modo que
Newton iria, depois, descobrir as leis da Física. Não se negava, com isso, que
a arte fosse expressiva, uma vez que o modelo cartesiano previa a descrição
minuciosa das mudanças até mesmo fisiológicas da emoção. Sendo, no
entanto, a verdade da representação e a perfeição os fins últimos da arte, o
artista deveria passar por um treinamento das paixões que não diferia muito
do treinamento do cientista (Coleman, 1974, p. 7-8).

Dentro desse contexto racionalista, em 1746, Charles Batteux (1713-


1780) publicou, na França, seu famoso tratado sobre As belas artes reduzidas
a um mesmo princípio (Batteux, 1969), no qual todas as artes se reduziam ao
princípio da mímese, entendida como beleza natural. Gotthold Ephraim
Lessing (1729-1781), contemporâneo alemão de Batteux, autor do não menos
famoso Laocoonte, publicado em 1766, também tomava como pressuposto
um fim comum e definível para as artes, mas baseava seus critérios de pureza
e imitação em regras determinadas de perfeição (Lessing, 1957). Foi enorme
a influência do tratado de Batteux sobre o iluminismo francês e sobre a
concepção das artes que iria dominar no Ocidente até meados do século XIX.
Foi só então que, sob o impacto das tecnologias industriais, a partir do
impressionismo, as vanguardas artísticas iriam colocar a mímese, concebida
como imitação da natureza, numa crise para a qual não haveria mais qualquer
possibilidade de retorno, muito especialmente porque essa crise só veio se
acentuar depois que o advento das recentes tecnologias de simulação
começou a colocar a própria noção de natureza e de realidade em questão.

Foi em Batteux que o ideal renascentista de especialização das artes,


necessária para o culto individual do artista e para a mercantilização dos
objetos de arte, atingiu o seu ápice, pois, ao criar o conceito de “belas artes”,
Batteux as codificava nas cinco artes nobres, ou seja, a pintura, a escultura, a
música, a poesia e a dança, além de mencionar outras duas relacionadas com
elas, a arquitetura e a eloquência. Estava semeado o terreno para o
nascimento da noção do artista como indivíduo de gênio, tematizada por Kant
e dominante na estética romântica. A codificação das cinco belas-artes se
generalizou com tal rapidez que, no século XIX, o adjetivo “belas” foi
dispensado e o sentido da palavra arte foi ainda mais estreitado, deixando de
fora o artesanato e a ciência. No século XX, quando as vanguardas artísticas
já colocavam em questão a própria noção de arte, as ideologias institucionais
da arte estreitavam ainda mais o seu sentido, limitando-o apenas às artes
plásticas e, mais especificamente, àquelas que podem ser expostas em
museus e galerias.

Denis Diderot (1713-1784), outro esteta do iluminismo francês,


contemporâneo de Batteux, foi, segundo Jiménez (1992, p. 35-36), um caso
particularmente interessante, porque, embora imerso no ideal iluminista da
universalidade do belo como uma qualidade transcendental e essencial da
natureza, relativizou o caráter absoluto e substantivo do belo, através do
sensualismo e materialismo que constituíam as diretrizes básicas de seu
pensamento. Em 1752, nas suas Investigações filosóficas sobre a origem e
natureza do belo, Diderot (1968 e 1981) falava do “belo fora de mim, belo
real” e do “belo em relação a mim, belo percebido”. “O que constitui a
dimensão universal da estética, sob o caráter variável e fluido da beleza, é a
existência de um fundo cultural que conduz a percepção das relações” (...).
Situada a beleza na percepção das relações, tem-se a história de seus
progressos no correr dos tempos. “O caráter relativo do belo fica, assim,
enlaçado no desenrolar evolutivo de uma qualidade universal da natureza
humana: a capacidade de perceber relações”, conclui Jiménez.

Não foi a França, mas a Alemanha que viu nascer a primeira exposição
rigorosamente cartesiana da estética. Ela veio com o tratado Aesthetica,
escrito em latim e publicado em 1750, por Baumgarten (1961). Em 1735, nas
suas Reflexões filosóficas acerca da poesia, Baumgartem (1954) via a
estética como a equivalente sensual da lógica, quer dizer, a estética estava
para a sensorialidade, conhecimento inferior, do mesmo modo que a lógica
estava para o pensamento, conhecimento superior. Já no primeiro parágrafo
da Aesthetica, esta era tomada como a scientia cognitionis sensitivae, “teoria
das artes liberais, gnoseologia inferior, arte de pensar belamente, arte da
razão análoga”. O que ele queria investigar não era nem o mero gosto, nem as
meras sensações — o sentimento que se registra num sujeito em resposta a
um estímulo —, mas um modo de conhecimento. Como seus mestres
racionalistas, especialmente Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), ele
havia aprendido a dividir o conhecimento em dois tipos: aquele que nos dá
ideias claras para a vida prática e aquele que nos dá ideias distintas através do
exame das partes elementares das coisas. Também aprendeu a distinguir entre
as funções superiores e inferiores da psiqué. Mas Baumgarten voltou sua
atenção para uma espécie de conhecimento intermediário, um modo de
percepção em que o todo não é reconhecido para propósitos práticos, nem
pode ser submetido aos procedimentos analíticos da ciência ou filosofia.
Utilizando definições formais, axiomas, provas e corolários, o autor visava
demonstrar que a percepção sensitiva tem uma estrutura formal própria, cujas
perfeições a ciência estética tem por função revelar. Tomando a razão teórica
por modelo, buscava dar legitimidade para a estética, invocando para isso a
razão analógica, como forma de saber sobre aquilo que a esfera da arte revela
e de que a razão por si mesma não pode dar conta. Nesse novo contexto, o
belo ressurgiu convertido em finalidade, em objeto teórico de uma nova
disciplina, a estética, que é “a perfeição do conhecimento sensitivo enquanto
tal”, perfeição que não é outra coisa senão a beleza (Jiménez, 1992, p. 30-31).

Foi de Baumgarten que Kant herdou a palavra “estética”. Inseriu-a,


contudo, num contexto quase totalmente diferencial, revestindo-a de sentidos
originais que vieram se constituir nas ideias-chave a partir das quais as
concepções estéticas da era moderna se desenvolveram. Para Baumgarten, a
estética repousava sobre princípios intuitivos últimos. Todos os ramos do
conhecimento começavam com noções fundamentais que requeriam
“percepções intelectuais” semelhantes às “percepções diretas” das relações
matemáticas. Kant não aprovava o intuicionismo da estética racionalista, uma
vez que o apelo à intuição não dava espaço para se resolver racionalmente os
desacordos em matéria de gosto, além de que fundar a estética sobre a
perfeição intuída significava fornecer conceitos determinados para os objetos
estéticos. Do mesmo modo que recusava os pressupostos do racionalismo,
Kant também discordava dos princípios empiricistas, especialmente do seu
caráter psicológico, individualista, de um lado, e do caráter derivativo das
propriedades estéticas, extraídas de propriedades não-estéticas dos objetos, de
outro. Para as teorias subjetivistas, o belo não se referia a uma propriedade
dos objetos, mas estava associado a alguma espécie particular de sentimento
do sujeito. Determinar se “x é belo” não significava testar se algum conceito
de uma propriedade objetiva se aplicava a “x”, mas sim testar se algum
conceito de prazer se aplicava ao sentimento de um sujeito sobre o objeto
(Cohen, 1982, p. 224). Kant não esposou as linhas mestras desse tipo de
subjetivismo. Nem racionalista, nem empiricista, mas filiada a essas duas
vertentes do iluminismo, dando a ele sua maior expressão, a obra kantiana, e
mais especialmente, neste caso, sua estética, criou, desse modo, uma via
intermediária, a idealista, trazendo uma nova interpretação para a secular
relação da estética com o belo e o prazer.

Kant estava tão interessado nos problemas da arte e da estética que, já em


1764, antes mesmo da sua primeira Crítica, a da razão, ele publicou o ensaio
Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (Kant, 1960), no qual a
palavra estética ainda não aparecia, o prazer era visto como uma sensação ou
um sentimento e as diferenças entre o belo e o sublime eram tratadas de
maneira simplificada, longe das complexidades que emergiriam na sua
terceira crítica, a do julgamento, de 1790 (Kant, 1952). O que torna essa
terceira crítica especialmente difícil é a sua íntima conexão com os temas das
duas primeiras, A crítica da razão pura, de 1781, e A crítica da razão
prática, de 1788 (Kant, 1929 e 1914, respectivamente). Do mesmo modo que
a primeira visou à sistemática explicação dos elementos a priori do
entendimento, a segunda buscou explicar os pressupostos da moralidade, ou,
em termos kantinos, da “liberdade”. O problema dessas duas críticas, em
síntese, estava em determinar, de modo não circular e não teleológico, a
verdadeira fundação das atividades do sujeito, este novo princípio da
filosofia. Por que somos capazes de sintetizar as intuições na forma de leis?
Por que, contra as inclinações naturais, temos a capacidade de escolher o
rumo de nossas ações em nome de um dever mais alto? Seria esta capacidade
independente, ou teria ela uma orientação que a liga ao modo como vemos a
própria natureza funcionar? Seria estranho que não houvesse nenhuma
conexão, pois, para Kant, nossa faculdade cognitiva e nossa liberdade são
autodeterminadas.

Numa carta para K. L. Reinhold, em 1787, Kant anunciava ter descoberto


um terceiro princípio a priori, distinto dos anteriores. Esse princípio diz
respeito à natureza do prazer e do julgamento do belo. Segundo Coleman
(1974, p. 5), com a explicação transcendental do julgamento e da faculdade
do prazer e desprazer, Kant conseguiu construir a grande ponte de ligação
entre o suprasensível e o fenomenal. Atuando como um termo intermediário
entre o entendimento e a razão e entre as faculdades da cognição e do desejo,
o julgamento prescreve uma regra a priori para o sentimento de prazer e
desprazer. Esse julgamento é difícil de explicar porque ele fornece uma regra
que se diferencia tanto de um princípio cognitivo para o entendimento quanto
de um princípio prático para a vontade.

No fim da introdução à Crítica do julgamento, há um quadro sintético que


nos oferece uma visão panorâmica da esfera da filosofia tal como Kant a
entendia. Para cada um dos três domínios, natureza, liberdade e arte, existe
um princípio a priori: conformidade à lei, ao propósito final e à finalidade,
respectivamente. Estes correspondem ao emprego das três faculdades
cognitivas fundamentais, a saber: entendimento, razão e julgamento, que, por
sua vez, correspondem às três faculdades da mente humana: faculdade da
cognição, do desejo e faculdade do prazer e desprazer (Kant, 1993, p. 42). O
tema específico da terceira crítica é a análise da espécie de julgamento que se
expressa em proposições do tipo: “Isto é belo”. Como podemos apresentar
julgamentos que têm uma voz universal ou que se proclamam como geral e
universalmente válidos, quando esses julgamentos estão fundados naquilo
que aparentemente é a mais subjetiva dentre todas as nossas respostas aos
objetos, isto é, o prazer? Como podemos fazer julgamentos que têm seu
fundamento na subjetividade e que são, ao mesmo tempo, racionais? Enfim, o
julgamento do gosto que, para Kant, é o julgamento estético não coloca seu
objeto dentro de um conceito determinado, mas, ao contrário, apenas
expressa um certo prazer que qualquer um teria condições de experimentar
diante daquele objeto. Como pode esse tipo de julgamento ter uma validade
geral de alguma espécie? Como podem o prazer e a validade universal se
compatibilizarem?

Para aqueles que estão relativamente familiarizados com as duas críticas


anteriores, não surpreende que Kant apresente uma dialética e uma antinomia
também na sua terceira crítica, não surpreendendo também o extremo
formalismo de sua exposição distribuída, na sua primeira parte, em duas
grandes divisões: 1. “Analítica da Faculdade de Juízo Estética” e 2.
“Dialética da Faculdade de Juízo Estética”. A primeira divisão, por sua vez,
se subdivide em dois livros: 1.1. “Analítica do Belo” 1.2. “Analítica do
Sublime”. O primeiro livro, então, se desenvolve em quatro momentos, cada
um deles contribuindo na formação geral do julgamento do belo (Kant, 1993,
p. 47-89).
Vários sentidos para a palavra “julgamento? podem ser encontrados em
Kant. No caso do julgamento estético, de um modo geral, ele estava
preocupado com a explicação de um poder de discernimento ou capacidade
de julgar no seu funcionamento particularmente estético, que podem ser
expressos numa afirmação ou proposição. Esse julgamento deve ser “puro”,
quer dizer, não deve ter nenhum traço empírico ou material, dizendo respeito
apenas à forma ou estrutura daquilo que se apresenta à mente. Recorde-se
aqui que, já na primeira crítica, se as aparências devem se apresentar de
acordo com leis necessárias, então a mente deve estar de posse de certos
conceitos a priori. Embora supridos por dados empíricos, esses conceitos são
conhecíveis independentemente de qualquer experiência empírica, pois, ao
contrário, devem ser capazes de fornecer as formas de toda experiência
possível. Julgar e usar conceitos a priori são atividades paralelas, se é que não
se trata da mesma atividade apenas descrita de maneira diferente.

Já é bastante conhecido o fato de que, na primeira crítica, Kant tentou


chegar a uma lista exaustiva dos conceitos a priori, através da análise das
propriedades do julgamento que haviam sido descritas na lógica aristotélica.
Se todos os dados empíricos são abstraídos de um dado julgamento, isolando-
se as puras formas do entendimento, os julgamentos sempre funcionarão sob
quatro rubricas, cada uma delas apresentando três momentos, assim
distribuídos: l. Quantidade (universal, particular, singular); 2. qualidade
(afirmativa, negativa, infinita); 3. relação (categorial, hipotética, disjuntiva) e
4 modalidade (problemática, assertiva, apodítica). Ora, na terceira crítica,
Kant apenas modificou a terminologia dessa mesma tabela lógica, chamando
as quatro rubricas de quatro momentos.

Numa visão panorâmica, os quatro momentos assim se expressam:


Primeiro momento: Gosto é a faculdade de apreciar um objeto ou um modo
de representação através de um prazer ou aversão, independentemente de
qualquer interesse. O objeto de tal prazer é chamado belo. Segundo
momento: O belo é aquilo que, sem depender de um conceito, quer dizer,
independentemente de um conceito, agrada universalmente. Terceiro
momento: O belo é a forma da finalidade em um objeto, mas na medida em
que é nele percebido independentemente da representação de um fim. Quarto
momento: O belo é aquilo que, independentemente de um conceito, é
conhecível como um prazer necessário. Embora Kant não tenha descrito esses
quatro momentos na forma de paradoxos, reservando a linguagem da “tese-
antítese-síntese” para a exposição daquilo que ele veio chamar de “antinomia
do gosto”, Coleman (1974, p. 32-33) faz dos quatro momentos uma
apresentação na forma de tese-antítese, que ajuda sobremaneira no
entendimento dos problemas que estão pressupostos na análise de cada um
deles, como se segue:

1. Qualidade: a tese indica o que é admitido em todos os ângulos, que o


estético está intimamente conectado com o prazer em algum sentido ou outro
desse termo vasto. A antítese indica, não obstante, que tais prazeres são
“desinteressados”, “desprendidos” e “impessoais”.

2. Quantidade: a tese indica que o julgamento estético é singular na sua


forma, isto é, ele julga representações particulares relacionadas com
sentimentos de prazer e desprazer. A antítese reclama, no entanto, que tais
julgamentos produzem um assentimento universal com validade
intersubjetiva.

3. Relação: A tese argumenta que o julgamento estético não se baseia


numa noção precisa daquilo que o objeto deveria ser, como é o caso nos
julgamentos cognitivo e moral. A antítese reclama que o julgamento estético
está baseado na finalidade do objeto, ou sobre uma noção instável de
completude ou pré-adaptação às faculdades cognitivas.

4. Modalidade: A tese mantém que o julgamento estético deve ser nosso


próprio julgamento, quer dizer, autônomo e baseado nos nossos próprios
sentimentos, em oposição a julgamentos emprestados do veredito de outras
pessoas. A antítese mantém que semelhantemente a quaisquer julgamentos ou
crenças, os estéticos logicamente exigem a concordância de todas as pessoas.

Há três tipos de prazer: “o agradável”, “prazer no bom” e “prazer no


belo”. Costuma-se confundir “o agradável” com o “prazer no belo”. Segundo
Kant, isso acontece porque também se confunde a sensação do prazer com a
sensação de algo objetivo, daí ele preferir chamar o primeiro de sentimento,
entendido como a capacidade de experimentar prazer ou dor, quando uma
representação mental está presente. Assim sendo, os objetos de cada um
desses prazeres são: sensações, no caso do agradável, conceitos, no caso do
bom, e formas perceptivas, no caso do sentimento de prazer. Enquanto os
dois primeiros tipos de prazer são interessados, o prazer no belo é
desinteressado, o que quer dizer que experimentamos tal prazer sem nos
interessarmos pela existência do objeto que o produz. Só esse tipo de prazer
pode dar origem ao puro julgamento do gosto.

Ligada à exigência acima vem a exigência de que, no julgamento estético,


nossa voz tenha um caráter universal, que seja harmoniosa em relação à voz
dos outros, visto que essa universalidade é reguladora dos sentimentos. O
gosto, portanto, é cognitivo, mas baseado em conceitos “indeterminados”, ou
melhor, conceitos que só são determinados quanto à forma, sendo esta
caracterizada como capaz de promover liberdade subjetiva. Mas, para se
entender o conceito kantiano de forma, é necessário estabelecer em primeiro
lugar, a diferença entre sensação e forma. Na primeira, há o efeito agradável e
esse efeito é subjetivo, mas a sensação é objetiva, é um dado de sensação,
como, por exemplo, a sensação agradável que temos com a visão do verde de
uma campina. Na maior parte das vezes, a sensação diz respeito aos dados
dos sentidos inferiores: cheiro, gosto e toque, pois Kant os diferenciava dos
sentidos superiores, a saber: visão e audição, mais caracterizadores da forma.

Na sensação, temos o prazer do agradável, que é pessoal e contingente,


podendo ocorrer na relação com objetos puramente privados. O prazer do
belo, ao contrário, é universal e necessário, só existindo em relação a objetos
que são públicos. Qualquer apelo ao que pode ser chamado de “matéria” da
sensação não pode ser usado para justificar nossas exigências de que os
outros concordem com nossos julgamentos, pois tal apelo se reporta a algo
privado. Assim sendo, para se requerer a concordância dos outros nos
julgamentos do belo, não se pode apelar para os dados dos sentidos, uma vez
que estes são contingentes. Só a forma pode satisfazer a condição de
universalidade. Mas essa forma não é conceitual, nem corresponde à mera
organização estrutural de algo. No julgamento do gosto, segundo Kant, opera
um tipo muito distintivo de formalismo, que envolve duas noções bem
difíceis: a da finalidade e a do jogo livre das faculdades cognitivas.

Kant tinha um modo muito complexo de classificar os fins.


Diferentemente das causas finais de Aristóteles, a finalidade da forma em
Kant não está necessariamente relacionada com aquilo que algo busca ou a
que algo tende, nem é ainda aquilo em função do qual algumas criaturas
agem. Para Kant, pessoas e coisas têm fins e são fins em si mesmas. A
finalidade é classificada de acordo com quatro eixos: subjetiva-objetiva,
formal-real, interna-externa e condicional-incondicional (quer dizer relativa-
absoluta). Os fins que dependem da vontade de uma pessoa, por exemplo, são
subjetivos, reais, externos e relativos. O fim, que uma pessoa é em si mesma,
é objetivo, real, interno e absoluto. As coisas utilitárias têm fins subjetivos,
reais, externos e relativos. Ainda de acordo com essa classificação, os fins
dos objetos belos são subjetivos, formais, internos e, surpreendentemente,
absolutos. E finalidade da forma quer dizer que a forma é um fim para a
percepção, podendo ser considerada tanto do ponto de vista da natureza
quanto do ponto de vista dos sujeitos que julgam (McCloskey, 1987, p. 6-8).

Não há nada que a natureza possa fazer que não tenha um propósito. Por
outro lado, um dos traços mais inerentes à mente é o de se aproximar de
qualquer coisa que seja sob a rubrica do propósito, ou melhor da finalidade.
Só a forma da finalidade, segundo Kant, pode satisfazer as condições da
concordância universal, implícita em nossos julgamentos do belo, que devem
ser públicos ou interpessoais, reguladores e válidos em si mesmos. Para Kant,
o julgamento do belo é uma das espécies de julgamento reflexivo, quer dizer,
aquele julgamento de um particular em busca de um conceito ou regra
universal. Já o julgamento determinado é aquele em que o universal é dado e
sob o qual um particular é englobado. Os julgamentos práticos são
determinados, quer dizer, temos um conceito determinado concernente ao que
é útil ou prudente, por exemplo, e aplicamos o conceito a uma situação
particular. Mesmo uma escolha particular pressupõe uma regra determinada,
a do imperativo categórico. Os julgamentos cognitivos também pressupõem
propósitos determinados, que são descobertos através da investigação
empírica de certos assuntos ou pela análise racional. O belo, por sua vez,
pressupõe o que Kant chamou de conceito indeterminado. Como resolver no
entanto, o paradoxo entre a finalidade selando toda experiência humana e a
falta de um propósito definido e determinado no julgamento estético?

A resposta kantina é de uma originalidade radical. A finalidade pode


existir independentemente de um fim. Trata-se da finalidade da forma,
finalidade sem fim, na medida em que não somos capazes de colocar suas
causas na vontade (Kant, 1952, p. 61-62). O que distingue o objeto belo de
outros objetos é que nenhum fim extrínseco ou determinado pode ser
estipulado para ele. Um objeto estético tem finalidade apenas na medida de
sua forma inerente e de sua adaptabilidade às demandas do gosto puro. E o
prazer que emerge da finalidade sem fim é totalmente distinto do agradável.
Assim, as formas finais para a percepção são aquelas que estão aptas ou são
apropriadas para colocar os poderes cognitivos, da imaginação e do
entendimento, num jogo harmonioso e livre. Esse jogo, segundo Coleman
(1974, p. 64), “parece envolver uma espontaneidade para a elaboração de
imagens ou ‘imposição de formas’ por parte da imaginação, não de acordo
com determinados conceitos, mas somente em relação aos sentimentos
subjetivos do prazer e desprazer”.

Em síntese: na experiência do belo, nossos poderes cognitivos jogam


livremente, ao mesmo tempo que se relacionam, de algum modo, com a
“forma” do objeto mais do que com seu “conteúdo” sensório. Nesse jogo
livre, estabelece-se uma harmonia entre a imaginação e o entendimento, que
produz uma espécie de entretenimento dos poderes mentais e gera prazer
desinteressado. É em razão disso que Kant confinou o belo puro a padrões
orgânicos ou mesmo padrões não reconhecidos como orgânicos, mas que
estimulam nossas faculdades perceptivas a uma atividade harmoniosa e livre.
As belezas da vida, na natureza e na arte, adulteram-se quando misturadas aos
conceitos de uso, tipo e perfeição. Existem, contudo, certos objetos cuja
contemplação produz efeitos estéticos profundos não meramente devidos à
sua beleza, mas mais propriamente devidos à sua grandeza e poder. Para
esses objetos e efeitos, Kant aceitou o termo sublime, num sentido similar ao
que os pensadores iluministas do seu tempo colocaram em circulação.

Embora tenha derivado muitas de suas observações semi-empíricas de


uma herança intelectual que havia começado em Longino e Lucrécio,
estendendo-se por Boileaux e os empiristas ingleses, especialmente Burke, a
quem Kant parecia apreciar bastante, embora tenha feito uso do mesmo
estoque de imagens, em voga no seu tempo, sobre a sublimidade dos aspectos
selvagens e informes da natureza, fazendo referências ao oceano, aos alpes, à
basílica de São Pedro etc., a grande diferença de Kant em relação aos seus
contemporâneos estava na sua preocupação com as bases epistemológicas
tanto do belo quanto do sublime, preocupação esta expressa na analítica
filosófica ou “transcendental” de ambos.

Tanto quanto o belo, o sublime também não pressupõe um julgamento


dos sentidos, nem um julgamento logicamente determinado, mas sim um
julgamento reflexivo, quer dizer, o julgamento do sublime não equivale à
exposição autobiográfica de uma emoção pessoal por mais elevada,
majestosa e inspiradora que ela possa ter sido, nem esse julgamento depende
de um conceito definido ou de uma concepção cognitiva precisa. Mas há
entre ambos os julgamentos, o estético e o sublime, pelo menos uma grande
diferença. Os julgamentos estéticos, para Kant, são julgamentos relativos ao
belo — seja este belo livre ou dependente. Disto ele derivou a autonomia da
estética e sua postulação de que o valor estético é intrínseco e não derivativo.
Já os julgamentos do sublime envolvem valores que, embora intrínsecos, pois
não têm um valor meramente instrumental, são derivativos. A importância de
se contemplar o sublime deriva da importância das ideias intelectuais e
morais que suplementam a mera percepção das coisas que descrevemos como
sublimes. É o estado da mente no momento da contemplação que é sublime,
mais do que os objetos que estimulam esse estado. Não se pode nem mesmo
julgar que coisas podem ser consideradas sublimes, sem se apelar para ideias
intelectuais ou morais que providenciem uma base para a comunicação do
prazer no sublime. É por isso que, para aqueles que desejam cultivar sua
sensibilidade moral, a contemplação do sublime é muito mais importante do
que a contemplação do belo. É por isso também que as ideias kantianas a
respeito do sublime são sugestivas e provocantes. Sugestivas porque servem
de elo de ligação entre a analítica do belo, que antecede, e a das artes, que se
segue à analítica do sublime. Provocantes porque esta última, segundo a
opinião dos intérpretes de Kant, parece apresentar muito mais inconsistências
do que as outras duas.

A analítica do sublime é aberta através de um exercício de comparação


entre os julgamentos do belo e do sublime. Ambos provocam prazer, embora
cada um o provoque a seu modo; ambos são julgamentos reflexivos e não
julgamentos de sentido ou de entendimento; ambos expressam o acordo entre
uma dada intuição da faculdade da imaginação e a faculdade dos conceitos ou
Razão. Por fim, ambos são julgamentos singulares que professam validade
universal a despeito de sua natureza não cognitiva, quer dizer, são
logicamente singulares na forma, mas universais no propósito.

Há, no entanto, várias diferenças importantes que separam o belo do


sublime. A mais óbvia: o belo é formal, limitado e relativo ao entendimento
discursivo e por vezes até mesmo lúdico. O sublime é informe, selvagem,
invocando as ideias quase intuitivas da razão (Kant, 1993, p. 90-91). A beleza
encoraja o avanço da vida, o sublime o suspende. Brincamos com a beleza,
mas respeitamos o sublime. Enquanto a beleza, por si mesma, parece se
adaptar à nossa sensibilidade, o sublime desconcerta e ultraja a imaginação,
lançando-nos num esforço de compreensão que ultrapassa a faculdade
imaginativa e forçando-nos a abandonar nossa sensibilidade meramente
empírica em direção a um reino mais elevado. O sublime rompe com as
formas, nos lança no caos e na perplexidade ao conturbar os padrões comuns
de grandeza e magnitude, negando qualquer propósito à natureza. É por isso
que, para o belo na natureza, buscamos um fundamento externo a nós,
enquanto o sublime nos arremessa de volta a nós mesmos em busca de nossos
próprios recursos morais. Os objetos julgados sublimes não exibem a
finalidade da natureza, mas apenas produzem um emprego final de uma
representação pela imaginação. Se é correto chamar os objetos de belo, não é
correto chamá-los de sublimes, pois, nestes, a apresentação da sublimidade é
descoberta na mente, e é esta, mais do que os objetos, que expõe o caráter de
sublime. Daí o sublime não se referir a objetos ou coisas externas a nós, mas
a certas disposições da alma despertadas por um objeto que pinça a atenção
do julgamento reflexivo de um certo modo. Em síntese, o sublime em geral é
tudo aquilo para o qual não há padrão de comparação porque todos os
padrões se tornam inadequados, uma vez que a fonte da sublimidade não se
encontra no mundo dos sentidos ou na natureza, mas deve residir em certas
ideias compartilhadas pela humanidade.

O mesmo procedimento, adotado na analítica do belo, foi adotado com o


sublime, também analisado em momentos: o “prazer” do sublime deve ser
universalmente válido na categoria da quantidade, independente do interesse,
na qualidade; subjetivamente final, na relação; e necessário, na modalidade.
Qualquer julgamento do sublime deve ser universalmente válido, mas, por
estar baseado no informe, enquanto o belo repousa na forma, a analítica de tal
julgamento difere da analítica da beleza. Enquanto o belo parece ser a
apresentação de um conceito indeterminado do entendimento, o sublime
parece ser um conceito indeterminado da razão. O belo tem limites e é
contemplativo. Diante dele, a mente se sente em casa no jogo livre de suas
faculdades, a imaginação reconhece formas que advêm de suas próprias leis.
O sublime, por sua vez, é ilimitado. O sentimento do sublime é provocado
porque o objeto que o estimula não exibe a forma e a harmonia que a
imaginação livremente ditaria. Sendo o objeto do sublime informe, imenso e
poderoso, é a natureza humana, ela mesma, que é ultrajada, ao experimentar o
sentimento do sublime cujo traço característico está num movimento mental
que se combina com a apreciação do objeto. Sendo o sublime também
estético, esse movimento deve ser um movimento sentido, ou um sentimento
que a imaginação reporta à faculdade da cognição ou do desejo, de onde
advém a divisão do sublime em matemático, no primeiro caso, e dinâmico, no
segundo caso.

O sublime matemático diz respeito àquilo que é tão grande em tamanho a


ponto de ser incomensurável. A imaginação se aturde e não consegue atinar
com o que está sendo percebido, não conseguindo dar conta de nenhuma
completude. Esse desamparo em face de uma experiência sensória rebelde só
é redimido com a introdução de uma ideia da razão, com o pensamento, não a
síntese, de uma totalidade. O sublime dinâmico diz respeito àquilo que é tão
poderoso ou exerce tal poder a ponto de parecer nos ultrapassar. Neste caso,
não é a imaginação que se aturde, mas é o medo da destruição que nos
assalta. A única coisa que pode redimir essa situação parece ser o pensamento
de um poder de correção, um poder que nenhuma força natural ou
sobrenatural pode ultrapassar. Novamente aqui, trata-se de uma ideia da
razão, mas agora de uma razão prática, que nos ajuda em face de algo que
afronta a sensibilidade, neste caso, uma sensibilidade prática (McCloskey,
1987, p. 98-99). No sublime matemático, a sensação de limitação produz o
seu oposto, a sensação de que também temos uma capacidade, a da razão, que
não está limitada pela sensorialidade. O sublime dinâmico, por sua vez,
provoca em nós uma resistência que nos leva a querer medir forças com a
natureza. Em qualquer um dos dois sublimes, o suprasensível se torna
disponível de modo negativo, produzindo o alargamento da alma, num
território em que a imaginação não tem fronteiras.

De acordo com Coleman (1974, p. 105-106), diferentemente da finalidade


do belo, na qual a forma do objeto parece pré-adaptada para se acomodar à
nossa sensibilidade e poderes cognitivos, a finalidade do sublime consiste em
nossa compreensão do reino das finalidades morais. Embora o objeto esteja
de algum modo ajustado para evocar o sentimento do sublime, a inadequação
de qualquer representação sensível da ideia põe em relevo nossa finalidade
pessoal como agentes morais num universo em que reinam os fins. Assim
sendo, o sublime não exige qualquer tipo de dedução: sua mera exposição é
suficiente para justificar sua pretensão de validade universal. E, uma vez que
a harmonia última da sensibilidade com a razão é revelada na análise, não
precisa ser feita nenhuma referência ao objeto que ocasiona o sublime. A
própria harmonia da sensibilidade com a razão é um princípio a priori da
finalidade subjetiva. Esse não é, contudo, o caso do objeto do belo. Neste,
uma dedução é necessária porque uma referência à forma do objeto deve ser
feita.

Uma boa parte da “Dialética do belo” trabalha com a “antinomia do


gosto” que, à semelhança da crítica da razão pura e da razão prática,
apresenta um paradoxo aparentemente insolúvel que precisa ser resolvido
para trazer a “razão em harmonia consigo mesma”. Para ser dialético, o poder
de julgamento deve ser, antes de tudo, racionalizante, quer dizer, seus
julgamentos devem estar propensos à universalidade, sendo, portanto, a
priori, pois é da antítese de tais julgamentos que a dialética consiste. Para
Kant, um julgamento de gosto deve, de algum modo, ser conceitual, pois se
fosse não-conceitual não passaria de uma exposição autobiográfica de
sentimentos subjetivos de prazer e dor. Vem daí a distinção que deve existir
no “gosto privado” ou “julgamento de preferência” e “julgamento estético”.

Antes de entrar na discussão da antinomia do gosto propriamente dita,


Coleman (1974, p. 131) elaborou uma tabela da localização do belo e do
sublime no mapa lógico de Kant. Por ser muito instrutiva, valeria a pena
recuperar essa explanação aqui. Na primeira crítica, Kant (1929, p. 320)
havia nos apresentado uma bela síntese do seu mapa lógico, como se segue:
O genus (gênero) é a representação em geral (representatio). Subordinada a ela, vem a
representação com consciência (perceptio). Uma percepção que se refere apenas ao sujeito como
uma modificação de seu estado é sensação (sensatio), uma percepção objetiva é conhecimento
(cognitio). Esta é ou intuição ou conceito (intuitus vel conceptus). O primeiro se refere
imediatamente ao objeto e é singular, o segundo se refere a ele mediatamente por meio de um
traço que várias coisas podem ter em comum. O conceito é ou empírico ou puro. O conceito puro,
na medida em que tem sua origem apenas no entendimento (e não na sensibilidade pura), é
chamado de noção. Um conceito formado de noções e que transcende a possibilidade da
experiência é uma ideia ou conceito da razão.

A partir dessa passagem, Coleman nos diz que os nichos próprios ao belo
e o sublime pareceriam ser: 1. um conceito empírico ou 2. um conceito puro;
3. uma noção ou 4 uma ideia. Mas há razões para Kant não ter colocado o
belo em nenhuma dessas quatro “espécies”. O belo não poderia ser um
conceito empírico, nem poderia ser um conceito puro, pois julgamentos do
belo não são singulares, nem conotam um “traço que várias coisas têm em
comum”. Não sendo nem empírico, nem a priori, nem uma noção, nem uma
ideia da razão, e não sendo nem mesmo um ideal, a que gênero, então,
pertence o belo?

Como já vimos, Kant considerou o julgamento do belo como uma


“função” ou mesmo uma “disposição” que implica em se impor a forma do
belo sobre uma multiplicidade sensível através de conceitos indeterminados,
de acordo com sentimentos de prazer e desprazer.

Tais conceitos indeterminados são empíricos, no caso do belo, enquanto,


no caso do sublime, as ideias da razão são indeterminadamente produzidas.
Do mesmo modo que o entendimento é relativamente livre ao construir
conceitos empíricos, quando se trata do julgamento estético, ele alcança o
limite da sua liberdade. Tendo isso em vista, o paradoxo do belo pode agora
ser apresentado. Se o julgamento do belo repousa sobre conceitos, então se
trata de um julgamento que poderia ser provado racionalmente, quer dedutiva
quer indutivamente. Kant não caiu nessa simplificação. Para ele, a estética
racionalista se reduz ao puro analitismo, enquanto a estética psicológica
escorrega no mero relativismo. Ele queria evitar qualquer um desses dois
extremos. Assim sendo, não poderia aceitar também que os julgamentos
estéticos fossem apenas fragilmente conceituais, porque então eles teriam
uma validade apenas autobiográfica. Formalmente, portanto, a antinomia se
expressaria do seguinte modo:

1. Tese: o julgamento do gosto não se baseia em conceitos, pois, se assim


fosse, então poderia haver controvérsia, e argumentos lógicos teriam de ser
levantados: tal julgamento seria claramente cognitivo.
2. Antítese: o julgamento do gosto é baseado em conceitos; se não fosse,
então não se poderia nem mesmo contestar ou brigar sobre questões de gosto:
tal julgamento seria puramente e meramente pessoal (Coleman, 1974, p.
135).

O modo como Kant resolveu a antinomia foi brevemente apresentado por


Coleman (ibid., p. 144), mais ou menos nos seguintes termos: como seres
fenomênicos, fisiológicos e psicológicos, as pessoas têm gostos variados e,
muitas vezes, caprichosos. Dado que um puro julgamento estético do gosto é
universalizável, na medida em que voltamos a atenção estritamente para a
forma estética, quer dizer, a finalidade da forma perceptiva, então uma
“dimensão suprasensível” deve ser postulada. Como seres racionais, temos
“faculdades” que estão enraizadas num substrato “noumênico”, que deve ser
o mesmo para todos como fundamento para a correção intelectual, moral e
mesmo estética. O mero conceito racional puro do suprasensível na base do
objeto (e do sujeito que julga) como Objeto do sentido, e portanto, como
fenômeno, é exatamente tal conceito.

Juntamente com essa análise lógica mais estrita da antinomia, no contexto


mais amplo da dialética do julgamento, Kant desenvolveu um alargamento de
sua concepção do estético até alcançar uma série de questões que viriam a ser
fundamentais na formação intelectual da estética moderna. Grande parte da
terceira crítica foi dedicada, assim, à discussão do postulado básico de que,
não obstante a diferença que vai entre o julgamento e a criação das obras de
arte, de um lado, e a avaliação e origem da beleza natural, de outro, quer
dizer, não obstante o fato de que os conceitos têm um papel irredutível, no
primeiro caso, enquanto estão ausentes, no segundo, assim mesmo, há
profundas similaridades entre as formas assumidas pela racionalidade
humana nesses dois domínios e seu significado para o do nosso pensamento e
ação. É nesse ponto da discussão que a ideia do gênio foi introduzida, ideia
que viria correr no sangue, alojando-se na alma e coração da estética
romântica.

Se for assumido que alguns objetos belos são produzidos por pessoas que
agem propositadamente para produzi-los assim, então uma explicação para a
criação da beleza se torna necessária. Quando produzimos propositadamente
qualquer coisa que seja, o produto de tal produção se ajusta, de um modo ou
de outro, a um conceito que lhe é antecedente. Qual é o conceito utilizado
para a produção de um objeto belo? Nenhum, é claro, pois, se houvesse um
tal conceito, ele seria o mesmo a ser utilizado para julgar os objetos. E Kant
já havia argumentado sobejamente sobre a inexistência de regras prontas para
a apreciação do belo. Então, como pode alguém produzir propositadamente
algo belo? Somente se houver uma capacidade especial para isso, diferente de
qualquer capacidade comum, quer dizer, uma habilidade para o fazer que está
de acordo com algo semelhante a um conceito, mas que não é um conceito.
Kant chamou de gênio essa capacidade ou talento. E aqui foi encontrado o
delicado ponto de compatibilidade entre o julgamento do gosto e o fazer do
gênio, para os quais se faz necessário, antes de tudo, o equilíbrio entre as
exigências da finalidade sem fim da forma, de um lado, com a liberdade da
imaginação, de outro.

Enfim, a grande preocupação de Kant, segundo Cohen et all (1982, p. 7),


parece ter sido a de mostrar que há uma fonte especial do sentimento na
interação livre entre a base sensória da nossa imaginação e nossas outras
faculdades cognitivas. Com isso, ele fez “a sugestão revolucionária de que
uma compreensão mais global do desenvolvimento racional das capacidades
humanas requer não a subordinação de todo sentimento ao entendimento —
ou o reverso — mas a interação entre essas capacidades”. No reconhecimento
do prazer implicado tanto no belo quanto no sublime, está uma clara rejeição,
de um lado, à ideia platônica de que uma subordinação do sentimento à razão
é desejável, de outro lado, uma rejeição também à concepção de Hume da
submissão necessária da razão à paixão. Isso tudo, sem perder a ligação do
belo com a moralidade, pois ao final do livro, Kant discutiu a ideia da beleza
como símbolo da moralidade. No equilíbrio do sentimento e da regra,
encontramos o caminho para sentir o impacto das ideias morais as quais, sem
o sentimento do belo e do sublime, permaneceriam como meros postulados
da razão prática. Foi este o fio que a estética de Schiller puxou de Kant, na
intermediação que faria entre Kant e Hegel.

Num belo artigo onde busca explicar por que a beleza é um símbolo da
moralidade em Kant, Cohen (1982, p. 221-236) toma como ponto de partida
uma interpretação bastante sugestiva daquilo que o objeto belo é e faz. Há um
sentido em que um objeto belo não tem qualquer característica, assim como
há um sentido em que o julgamento do belo não diz respeito a nenhum
objeto. Há três modos através dos quais as coisas fazem sentido para nós: 1.
quando algo nos dá prazer sensório; 2. quando contemplamos algo a fim de
compreendê-lo; 3. quando utilizamos algo para alguma finalidade. No caso
do objeto belo, não se trata de nenhuma dessas três alternativas e, não
obstante, ele faz sentido para nós, um sentido ou coerência, portanto, que é,
em princípio, inexplicável. Cohen levanta, então, a hipótese de que o
julgamento do gosto, em Kant, é o caso limite, ao mesmo tempo que é o
emblema da habilidade humana para extrair sentido das coisas. Tendo como
referência nossa capacidade para julgar em termos de interesses, conceitos e
propósitos, no julgamento do gosto, Kant destacou apenas um desses
aspectos: o propósito ou finalidade, mas caracterizou esse propósito de modo
perturbador. O belo, ele disse, é a finalidade de um objeto, na medida em que
é percebido no objeto sem qualquer representação de finalidade. Ao ser
julgado, portanto, o objeto exibe a finalidade sem fim. O belo desperta a
harmonia de nossas faculdades cognitivas, harmonia que é atingida sem o uso
de conceitos. Ora, sem conceitos, não podemos considerar o objeto em
termos de qualquer finalidade. Mesmo assim, ele tem finalidade para as
nossas faculdades cognitivas. Mera congruência sem qualquer conteúdo
material. O belo exibe apenas a forma da finalidade Após essa exposição,
Cohen levanta a pergunta crucial qual é a similaridade formal que pode haver
entre o objeto belo e a vontade do bem?

Ao exibir a forma da finalidade, o belo parece adequado para a realização


de um fim, o que corresponde exatamente à noção kantiana de vontade, a
qual, na medida em que age, assim o faz na busca de um fim. Essa é a
característica definidora da ação humana. Mas o objeto belo só exibe a forma
da finalidade, sem estar ligado a nenhuma finalidade atual. Ora, a vontade do
bem também não age na busca de qualquer fim externo, além de que o fim
interno, de que ela dispõe, não tem conceito. A vontade do bem, no
julgamento que dela fazemos como alguma coisa inqualificadamente boa,
parece agir sem qualquer finalidade de qualquer espécie. Do mesmo modo
que o objeto belo só exibe a forma da finalidade, também a vontade do bem
só exibiria da forma da ação. Exposta a analogia entre ambos, vem a segunda
pergunta crucial. O que se passa para que, além de serem análogos, o objeto
belo seja ainda um símbolo da vontade do bem, e não o contrário?

Um dos traços mais sugestivos da teoria moral de Kant está na sua


postulação de que insistir na nossa humanidade individual requer, por uma
questão de lógica, o reconhecimento da humanidade do outro. Nossa
dignidade depende da consideração da dignidade do outro. Tratar o outro
como um fim é tratar a si mesmo como um fim e vice-versa. O objeto belo,
diz Cohen, é o símbolo da ideia desta espécie de outro. Nosso engajamento
no belo simboliza uma vontade do bem, no ato mesmo de ter a vontade do
bem. Nossa humanidade essencial se revela de dois modos: fazer sentido das
coisas e exercer uma influência sobre elas. Como caso limite e como
emblema da nossa habilidade de fazer sentido das coisas, o puro julgamento
do gosto é a espécie de experiência pura em que um aspecto de nossa
humanidade essencial se revela, sendo simultaneamente o mais próximo que
podemos chegar do seu segundo modo de revelação. Se o objeto belo é uma
apresentação indireta do conceito de vontade do bem, então ele indica esse
conceito de modo metafórico ou analógico. A experiência moral é uma
questão de engajamento. Kant mostrou que essa experiência é paralela em
profundidade e complexidade à experiência do belo. Se o belo não for apenas
um símbolo da moralidade, mas o símbolo da moralidade, então apenas a
experiência do belo tem a espécie de riqueza necessária para simbolizar a
experiência moral.
4. O APOGEU DA ESTÉTICA

As ideias da ação, especialmente a do bem, não podem ser demonstradas


empiricamente. Deve ter sido na capacidade dos poetas e artistas para
transformar as ideias abstratas da razão em imagens sensórias que Kant
percebeu a beleza como símbolo da moralidade. Esta foi a ideia mestra que,
nas suas cartas Sobre a educação estética da humanidade, de 1801, Schiller
(1968) tentaria levar a consequências radicais, ao conceber a arte como fonte,
meio e fim para a educação estética do ser humano. Mas, diferentemente de
Kant, procurou tornar a moralidade disponível não apenas através da
compulsão, mas, antes de tudo, através do prazer. Com o equipamento
adicional de ser ele mesmo artista e poeta, Schiller quis levar bem longe a
noção da percepção estética como uma influência mediadora ligando o
sensório tanto à verdade quanto à virtude, aos sentimentos morais e
disposições que são as fontes da ação razoável.

Segundo Wilkinson e Willoughby (1967, p. 23), ninguém apreciou mais o


rigor das distinções kantianas do que Schiller, distinções que, ao
discriminarem o belo em relação a muitas outras coisas com as quais ele era
confundido, tais como a perfeição, o bem, o verdadeiro, além de outras coisas
menos nobres, tais como o prazeroso, o agradável, foram capazes de libertar a
beleza de sua antiga subserviência afins que lhe eram estranhos, religiosos,
didáticos, hedonistas, assegurando-lhe, assim, uma autonomia própria. No
momento histórico em que a arte estava sendo diferenciada de outros tipos de
engenhos e habilidades humanas, ao definir a beleza em termos do tipo de
julgamento que ela produz, Kant criou um critério específico para a arte, ao
mesmo tempo em que ampliou o campo da estética, originalmente visado por
Baumgartem como ciência da percepção sensitiva, para abraçar não só as
obras de arte, mas também as belezas da natureza e, além disso, fenômenos
relativos à conduta humana. Esta última especialmente foi a porta que
Schiller abriu mais largamente para explorar com inteireza sua ideia de
educação estética.

Não obstante sua admiração, existiam pontos com os quais Schiller sentia
que Kant estava em falta. Era fácil dizer que o belo consistia apenas na
forma, ou definir uma resposta estética pura como prazer desinteressado, se
um arabesco, digamos, era o modelo de que se partia. Como ficavam,
contudo, as artes representativas? Como ficava a tragédia com sua imemorial
encenação de urgências vitais expressas no sacrifício, morte, renascimento?
Como ficavam as artes cujos materiais não despertam prazer, mas, ao
contrário, evocam os tabus e medos mais viscerais não menos do que as mais
altas esperanças e árduas lutas morais? E o prazer do jogo livre da
imaginação, só poderia ser atingido na ausência de interesses vitais e, mais do
que isso, perturbadores? Enfim, onde localizar, na experiência estética, os
estados febris da existência humana?

Se a arte pode educar, ela tem de acertar contas também com o caos. Não
importa quão belas as formas possam ser, elas não irão além da periferia de
nossa vida sensível, se não enfrentarem também as paixões e pulsões que
estão nas raízes indômitas da vontade e do desejo. O escrúpulo com as
definições ascéticas não levou Kant ao abandono das conexões mais
profundas da arte com a vida, deixando cuidadosamente fora de alcance as
zonas mais obscuras e incompreensíveis da psiqué humana? Como construir
uma crítica do ato moral puro sobre uma visão tão parcial das forças que
movem a humanidade? Como pode, além disso, a liberdade, a mais
insubordinada dentre todas essas forças, ser expressa no modo imperativo?

Eram as perguntas acima que assaltavam Schiller na sua insubmissão a


Kant. Não era apenas à falta de graça ou de flexibilidade do modelo kantiano
que ele objetava, mas principalmente à sua ideia de liberdade como sinônimo
de autocoreção bem-sucedida. Ao ser moral, afinal, não estava destinada
nenhuma liberdade de escolha além da servidão ao auto-respeito e auto-
rejeição, tanto quanto não existia para o ser sensível qualquer outra forma de
sentimento senão a da oscilação entre o prazer e a dor. Quantas das
pluridimensões, visíveis na existência fenomênica humana, não tiveram de
ser sacrificadas para garantir a pureza dos conceitos? Estava longe de Schiller
o desprezo pelos conceitos. Mas a mais simples ideia de educação pressupõe
que os ideais expressos nas abstrações teóricas sejam capazes de iluminar o
caminho de uma orientação geral voltada para a prática e para as
possibilidades e rebeldias do contingente, enfim, para a dinâmica processual
e transformativa que é a insígnia mesma de todas as formas de vida. Essas
foram as questões cruciais que Schiller, o filósofo poeta, tratou de enfrentar.

Como não poderia deixar de ser, não existe consenso quanto à


interpretação da obra de Schiller. Aliás, existem dúvidas sobre sua
consideração como filósofo. Tal dúvida não é casual. Afinal, sua obra em
nada se assemelha a um tratado sistemático, obediente a todas as regras do
bom comportamento analítico. Para alguns, suas cartas apresentam uma
sequência infindável de contradições insolúveis. Para outros, trata-se de
paradoxos deliberados e não de contradições inadvertidas. De todo modo,
deixando-se as disputas de lado, parece, de fato, verdadeiro que, acolhendo
sínteses assimétricas no seu método perspectivista, o discurso de Schiller não
segue uma lógica linear. A abertura de suas ideias, o caráter febril dos
problemas que ele ensejou enfrentar não poderiam mesmo conduzir a uma
filosofia sistemática, daí o poder de sugestão que exala e o alto grau de
inspiração que pode ser extraído de sua obra.

Em meio às controvérsias, uma das leituras mais ponderadas das


contradições mais importantes em que Schiller se envolveu foi desenvolvida
por Dieter Henrich (1982, p. 237-257), no seu ensaio sobre “Beleza e
liberdade, a luta de Schiller com a estética de Kant”. O ponto de partida de
Schiller, segundo Henrich, foi bastante distinto do kantino. Embora a levasse
em consideração, ele não estava interessado em uma teoria transcendental das
possibilidades do conhecimento. Como poeta, foi conduzido à filosofia
porque se sentia atraído mais pelos problemas do que pelas soluções acerca
da natureza humana, especialmente pela dualidade dessa natureza animal,
sensual, voluptuosa e, ao mesmo tempo, racional, ascética, ideal. O que mais
o atraía, no entanto, e por isso mesmo, além de poeta, se tornou filósofo, era a
questão do padrão moral da ação humana e a possibilidade de seu
aperfeiçoamento, daí o ideal educativo que ele visava. A justificativa de sua
poesia dependia, para ele, daquilo que há na beleza, que vai além da beleza.
Se o belo, na obra de arte, na poesia, atrai o ser humano, então deve haver, na
essência mais íntima da vida, um fundamento para essa atração. Ele buscou,
assim, ligar a integridade do significado do belo diretamente à razão prática, à
essência moral do homem. “É através da Beleza que atingimos a liberdade”
(Schiller, 1980, p. 27). Segundo Henrich, a definição da beleza, para Schiller,
expressava-se do seguinte modo:

A beleza é liberdade na aparência. Enquanto, no entendimento, o


fundamento de nosso ser moral se revela através da reflexão, na forma bela e
na obra de arte, ele nos confronta sob a forma da intuição. Liberdade aqui
significa ser completamente autodeterminado, desenvolver-se de acordo com
necessidades íntimas, independente de forças externas. Do mesmo modo que
um ser moral é aquilo que é inteiramente em si mesmo, assim também uma
forma bela nos confronta como uma forma que toma seu curso livremente,
sem barreiras, uma forma na qual todas as partes compõem um todo
harmonioso repousando num único fundamento.
Schiller concebeu a liberdade e a moral inteiramente dentro do espírito da
ética kantiana, como único meio através do qual o ser humano pode estar uno
consigo mesmo e composto na sua essência mais íntima. Kant havia levado
em consideração o caráter prazeroso e vivificante do belo, mas sem se dar
conta das emoções profundas que podem ser despertadas na apreensão de
uma grande obra de arte e que só podem ser explicadas na sua relação com a
essência mais íntima do homem, sua consciência moral.

Com sua definição do belo como liberdade na aparência, Schiller pensava


ter encontrado um princípio objetivo para a beleza, nos diz Henrich, uma vez
que a objetividade, para ele, não tinha o sentido kantiano de conhecimento
dos objetos. Daí sua descrição da autoconsciência da subjetividade na
experiência da beleza. O prazer estético é absorvido no objeto e a consciência
se consuma totalmente no objeto apreendido. Embora, certamente, isso só
possa se manter subjetivamente, o sujeito não o experiência como subjetivo.
Ao contrário, um ato de objetivação se põe em curso no tão falado jogo da
imaginação. Não se trata do jogo do sujeito consigo mesmo, ocasionado pela
intuição de um objeto. Nesse ato, ao contrário, o sujeito se joga inteiramente
no objeto, o estado intencional do sujeito é um estado objetivo. Para fornecer
uma fundação adequada para essa observação acurada daquilo que acontece
no coração da subjetividade, Schiller teria de abandonar a base segura do
sistema kantiano, necessidade que ele não chegou a reconhecer. Segundo
Henrich, no entanto, há sugestões sobre essa objetivação nos escritos de
Schiller. São essas sugestões que ele coloca em discussão no seu texto.

Schiller entendeu o amor como a unificação da razão com a sensibilidade.


No caso do belo, isso não é problemático, pois a liberdade, um conceito da
razão, visa se espelhar naquilo que é sensivelmente representado. Se, no caso
do estético, o ato de objetivação aparece como um ato de sensualidade,
parecia fazer sentido, para Schiller, definir então o amor como uma
inclinação da razão para se unir ao objeto sensível. Essa explicação ajusta-se
ao belo, mas não ao amor, se este for entendido como uma relação
substancial entre duas pessoas de igual valor. Ao dizer que o amor é uma
inclinação da razão, Schiller aplicou à razão um conceito psicológico que
pertence à sensibilidade. Tentou, portanto, interpretar a objetivação da
subjetividade, que não fazia parte do sistema kantiano, utilizando conceitos
extraídos da teoria kantiana da subjetividade.

A razão, para Kant, é a faculdade que desenvolve representações


espontaneamente. A sensibilidade, em contraste, é a faculdade através da qual
nos colocamos numa relação receptiva em relação ao mundo. Schiller tomou
esse dualismo como base de sua teoria da subjetividade, confiando na sua
correção para a filosofia prática, na qual “a moralidade exige que superemos
os obstáculos sensoriais que atravessam o nosso caminho”. Mas essa
oposição entre o racional e a sensibilidade não é suficiente para explicar a
objetivação da razão. “Nesse esquema, a razão, o coração da subjetividade,
necessita de uma externalização, de uma contraparte externa, passivamente
recebida, que, do ponto de vista do dualismo kantiano, teria de ser descrita
como inclinação e sensibilidade, mas isso não leva a nada além de um fato
bruto de atração opaca para o eu”. Com isso, Schiller abriu um flanco que a
filosofia kantiana não estava equipada para atender (Henrich, 1982, p. 250).

O ponto de maior discordância, nem sempre advertida, de Schiller com


Kant, estava na sua interpretação do sentido da beleza. O belo como liberdade
na aparência produz uma ligação direta da estética com a ética. Mas que
espécie de liberdade é essa? Uma coisa parece certa. Não há aqui uma
simples correspondência com a famosa analogia kantiana da beleza como
símbolo da moralidade. A liberdade moral deveria ter, para Schiller, alguma
outra propriedade além e acima da autossuficiência, que não comparecia na
ética de Kant. No ideal de moralidade de Schiller, o eu concreto não precisa
persistir no conflito insolúvel com a lei da razão kantiana. O caráter
verdadeiramente moral não cumpre seu dever apenas sob compulsão, mas
porque lhe agrada a harmonia consigo mesmo que sela a perfeição da
natureza humana. É a estrutura da autocompreensão moral, do eu consigo
mesmo e, nessa medida, livre em si mesmo, que Schiller viu espelhada na
beleza. É a liberdade moral no sentido de harmonia interior, a harmonia
perfeita de um ser moral, que se objetiva na beleza.

Novamente aí, diz Henrich, ao manter a moldura conceitual kantiana,


Schiller não conseguiu fundamentar a originalidade de sua proposta. O ideal
da vida moral, que, para ele, consistia na união da sensibilidade com o
entendimento, mal pode ser diferenciado do conceito de uma pura
consciência ou vontade sagrada. E a estrutura dos afetos morais tem muito
pouco em comum com aquilo que comumente chamamos de sensibilidade e
que Schiller chamava de pulsão natural. Ele via claramente, contudo, que, se
todo afeto nobre da alma harmoniosa é realmente devido à sensibilidade,
então a razão, em situações particulares que requerem a energia moral,
novamente deve se separar da sensibilidade, energicamente se opondo às suas
seduções. Mas isso ocorre num ato que é experienciado como sublime e não
como belo. Mais tarde, Schiller tentaria equacionar o harmonioso com a alma
sublime, dizendo que a ação moral verdadeira se caracteriza por dois
momentos, harmonia e sublimidade. Mas ele não demonstraria nem a
necessidade, nem a possibilidade de que assim fosse. Enfim, Schiller tomou
todo o reino do prazer estético como ponte para uma reflexão sobre a
essência humana que é fundamentalmente moral. O desenvolvimento
consistente desse ponto de partida, segundo Henrich, poderia ter levado
Schiller a uma concepção unificada do belo e do sublime. Faltaram-lhe os
meios conceituais para isso. O desenvolvimento mais complexo dessa
iniciativa teria, assim, que esperar por uma nova fundação no idealismo
especulativo de Schelling e especialmente de Hegel.

Do mesmo modo que Schiller e outros idealistas, Schelling colocou como


problema ultrapassar as divisões que se tornaram dominantes na filosofia a
partir de Kant, tanto a divisão do sujeito-objeto, quanto, mais
particularmente, a compartimentação das faculdades humanas em
entendimento, razão e sensibilidade. Schelling deu à intuição o papel
unificador da relação sujeito-objeto, mas, para ele, tratava-se de se perguntar
como fazer sentido dessa unificação a partir de nossa perspectiva de seres em
luta com nossas divisões e finitude. Nosso pensamento não pode, por si,
articular um modo de superar essas divisões, porque a divisão está na
natureza mesma da reflexão. Sem aceitar as respostas dadas a essas questões
por seus antecessores, particularmente Johann Gottlieb Fichte (1762-1814),
Schelling buscou um novo caminho que desembocou num idealismo
transcendental com feições próprias.

Com Schelling, portanto, a filosofia romântica alemã se tomou mais


completamente idealista. Com ele também, à estética, pela primeira e única
vez, foi concedido um lugar de honra junto à filosofia como a expressão
última e absoluta daquilo que é verdadeiro e tem valor. De fato, a
preocupação constante e maior de sua obra foi, em primeiro lugar, a de
construir uma síntese da arte e da filosofia, na medida em que, para ele,
ambas são representativas, cada uma a seu modo, das mesmas verdades. Em
segundo lugar, relacioná-las com o corpo disponível de representações
compartilháveis, mantidas por uma comunidade: uma “mitologia”.

De acordo com Hofstadter e Kuhns (1976, p. 344-345), a filosofia de


Schelling pode ser dividida em cinco períodos. O primeiro período, o de
ruptura com Fichte, foi devotado à filosofia da natureza, assunto que
continuou a absorvê-lo por toda a sua vida. O segundo período, marcou o
advento de seu pensamento mais original que apareceu, em 1800, no Sistema
de idealismo transcendental (Schelling, 1978). O terceiro período, conhecido
sob o nome de filosofia da identidade, no qual a filosofia da natureza e o
idealismo transcendental foram colocados em unidade, corresponde à série de
palestras, dadas em 1802-1803, em Jena, e repetidas em Würzburg, em 1804-
1805, sobre a Filosofia da arte (Schelling 1989) o quarto período foi
devotado à filosofia da liberdade e o quinto à filosofia da religião, incluindo
aí sua filosofia positiva da existência em contraste com a filosofia “negativa”
anterior, puramente racional.

A pergunta colocada pela filosofia da natureza era a seguinte: como


chegar à inteligência, partindo da natureza? Schelling “via a natureza como
um sistema evolutivo, não no sentido darwiniano, mas como um sistema em
que a natureza é um espírito ou mente ou inteligência que se desenvolve de
acordo com leis próprias”. No idealismo transcendental o movimento,
exatamente inverso, passou a se expressar do seguinte modo: como é
possível, a partir do ego, atingir um mundo completamente realizado? E aqui,
o ego era visto, de um lado, como um agente produtivo que cria por si
mesmo, estágio por estágio, o resultado final, de outro lado, como um agente
intuitivo, capaz de apreender o que ele produz através de uma intuição
intelectual. A filosofia é uma recriação autoconsciente do processo do ego. A
habilidade para essa recriação depende de um talento especial, a contraparte,
no insight filosófico, da genialidade do artista, e a recriação só pode ser
realizada em estágios que vão do teórico ao prático, na seguinte gradação: da
sensação à inteligência, da intuição produtiva à reflexão, e, por fim, desta ao
ato de vontade. Aqui começa a filosofia prática, relativa à construção da lei
moral que conduz à filosofia da história. Esta é interpretada como uma
revelação do absoluto e o problema central que nela se coloca assim se
expressa: Como se pode chegar à harmonia entre a natureza e a liberdade?
Como pode haver harmonia entre o teórico e o prático? A estas perguntas,
certamente herdadas de Kant, Schelling respondeu através da arte.

O Sistema de idealismo transcendental começa com as formas inferiores


do espírito, que funcionam à maneira dos organismos naturais, e ascende até
as formas mais elevadas, que culminam na arte. Há sempre uma tensão na
consciência, tensão que a consciência, ela mesma, não pode inteiramente
compreender e que só a arte pode entender, porque é, ao mesmo tempo,
consciente e inconsciente e um meio não-conceitual de expressão. A filosofia
confia na “intuição intelectual, no sentido de ser o pensamento sobre o
pensamento, que é um processo produtivo, mas dirigido para o interior,
enquanto a arte está voltada para o exterior, refletindo o inconsciente nos seus
produtos. Há um excesso na subjetividade que só a arte é capaz de apreender.
Schelling insistiu na concepção da arte como uma unidade entre as atividades
conscientes e inconscientes, tomando partido dela na sua tentativa de levar a
filosofia a confrontar-se com aspectos da autoconsciência que Kant havia
colocado num reino a que a filosofia não podia ter acesso (Bowie, 1990, p.
88–97).

Na obra de arte, a harmonia ou identidade entre sujeito e objeto, natureza


e liberdade, consciente e inconsciente apresenta-se objetivamente como um
objeto para a intuição estética, que é a intuição intelectual tomada objetiva e
universalmente válida. A arte é, assim, filosofia objetivada, o grande organon
da filosofia. Isso faz do Sistema de idealismo transcendental, segundo
Simpson (1984, p. 19), uma obra prima do idealismo alemão, de um lado,
porque prefigurou algumas das questões cruciais da filosofia hegeliana, de
outro lado, porque incorporou o reconhecimento do outro, a par do elemento
do tempo biográfico e histórico, numa dimensão ética e política que
sintetizou, em argumentos unificados, tópicos com que a filosofia de Fichte
havia lidado de modo separado.

Embora Hegel aprovasse a insistência de Schelling no significado crucial


da arte para a filosofia, o lugar de honra que este último concedeu à arte seria
logo perdido no sistema hegeliano. Embora ambos tivessem em comum a
busca de superação das divisões do sujeito, Schelling não via a filosofia como
sendo capaz de apreender o absoluto de um modo conceitualmente articulado.
Ele sustentava, por isso, a necessidade de uma noção de verdade que
dependesse da intuição, uma forma de acesso ao mundo não articulável em
conceitos, daí sua insistência na estética. Para Hegel, isso significava uma
falha na capacidade de levar avante as exigências do conceito, o processo
completo de reflexão necessário para a revelação da verdade conceitual da
arte. Em razão disso, Hegel subordinou a arte à filosofia, chegando,
simultaneamente à controversa conclusão sobre a morte ou o fim (Auflösung)
da arte, quer dizer, à conclusão de que a arte, como meio para a verdade,
havia chegado, a um ponto de esgotamento. Ao mesmo tempo em que
produziu a mais sistemática estética ou filosofia da arte de todos os tempos,
Hegel paradoxalmente anunciou a necessidade de algo que fosse além da arte
para dar expressão ao Absoluto.

A influência de Hegel sobre o pensamento ocidental foi e continua sendo


incomensurável. Ele desenvolveu, no seu mais alto grau, os temas da
metafísica no Ocidente, funcionando como uma espécie de grandiosa síntese
final dessa metafísica. Como fruto dessa mesma imensa influência, criaram-
se vários estereótipos de Hegel, dentre os quais fizeram fama as apropriações
políticas dos hegelianos de direita e dos hegelianos de esquerda. Mais
recentemente, veio à tona uma espécie de interpretação congelada de sua
obra, bastante popularizada no movimento estético-crítico que, a partir da
repercussão da obra de Jacques Derrida, nos Estados Unidos, recebeu o nome
de desconstrucionismo Nessa interpretação, Hegel aparece como o filósofo
logocêntrico por excelência. O real é o racional, o racional é o real, era o seu
mote. A mais alta categoria da sua lógica estava na Ideia Absoluta que é o Ser
na sua mais rica determinação. Ora, isso não significa levar a tradição
racionalista-idealista do logos ocidental muito mais longe do que Platão
poderia jamais ter sonhado? Além disso, Hegel insistia na ideia de formatar a
verdade dentro de um sistema que pretendia configurar todas as coisas numa
ordem totalizante. Mas o que é ainda pior: ele teria também tentado ler a
completude da história como estágios essenciais de um progresso dialético.
E, para finalizar esse quadro negro, com ele, no seu sistema, o secular
caminho da filosofia deveria encontrar seu fim.

De acordo com Desmond (1986, p. 90-101), a interpretação acima


corresponde a uma leitura estática e bastante infiel de Hegel, daí ele propor
um caminho de abertura destinado a revelar a dinamicidade que está
embutida na ideia de dialética de que Hegel foi o fundador. O conceito de
dialética é muito amplo, significando coisas diferentes para diferentes
autores. Em meio às diferenças, há um traço comum: a dialética tem algo a
ver com conflito, que já se manifestava no conflito de opiniões da dialética
socrática, nas disputas das escolas medievais em relação a questões
controversas, nas antinomias do Verstand kantiano, na luta de classes
marxista. O conceito hegeliano de dialética é coetâneo a esses sentidos, com
o adendo de que, para ele, a dialética em a ver com o princípio de articulação
ele mesmo, além de que a dialética está tanto na ordem lógica do
pensamento, quanto na ordem do ser, quer dizer, na ordem ontológica. Disso
se conclui, em primeiro lugar, que a realidade, tal como foi configurada por
Hegel, não pode ser congelada numa substância desvitalizada. A natureza do
ser está no devir. Tudo tem alguma identidade determinada, mas essa
identidade é complexa, definindo-se como um processo inerente de
diferenciação. Para ser, algo tem de diferir de si, tornar-se diferente de si. No
devir, a realidade está, ao mesmo tempo, em si mesma e não inteiramente em
si mesma, pois o processo dialético, que é o processo de articulação,
movimenta-se em direção à sua mais completa determinação.

Um dos grandes avanços da filosofia kantiana, segundo Hegel, estava em


mostrar que o entendimento (Verstand) caminha para uma série de
antinomias ou contradições fundamentais. A dialética hegeliana seguiu
exatamente no fluxo da ruptura do entendimento consigo mesmo em
polaridades, contradições, antíteses e oposições. Contudo, para Hegel, o
confronto com o negativo libera um poder positivo. Na sua noção de
Aufhebung, integram-se as três dimensões de negação, transcendência e
preservação, ou unidade dialética que abraça o equívoco, mas vai além do seu
poder de negação e de dissolução. Daí que o Absoluto seja a identidade da
identidade e diferença, o que quer dizer que, através do processo de formação
dialética, o dinamismo original vai ganhando forma e avançando em seus
diferentes estágios até se juntar num todo mais rico. Sob esse ponto de vista,
o Absoluto hegeliano não é visto como uma unidade conceitual de
pensamento totalitário, mas muito mais como uma força de absolvição, em
vez de dissolução ou fechamento. A partir disso, Desmond conclui (ibid, p.
100) que Hegel não é nem um platonista nem um cartesiano (logocentrismo),
num extremo, mas não é também um nietzscheano (niilismo), no outro
extremo. Ele não congelou a forma, de um lado, nem a dissolveu, de outro. A
forma é movimento fluido e dinâmico, nem a forma estática, nem processo
puro, mas a formação do processo ele mesmo.

Para se compreender o lugar que a arte veio ocupar no Espírito Absoluto,


é preciso acompanhar, mesmo que brevemente, alguns dos principais
argumentos hegelianos. Segundo Bowie (1990, p. 116-130), a filosofia
hegeliana, assim como a dos outros idealistas pós-kantianos, tentou revelar
como o processo do pensamento e o processo da realidade são, ao fim e ao
cabo, idênticos. O grande problema estava no modo como isso poderia ser
revelado. Para Schelling, a revelação poderia ser realizada pela arte. Hegel,
contudo, considerou que isso representava um deficit na filosofia de Schelling
porque este estabelecia o ponto de indiferenciação entre o subjetivo e o
objetivo já no início, sem provar que essa é a verdade.

Enfrentando de modo original o problema de como a Mente ou Espírito


(Geist) articula-se a si mesmo, Hegel, antes de tudo, perguntou em que
sentido o subjetivo se constitui, em que sentido eu sou eu mesma. Em
consonância com a negação dialética, a resposta diz que só refletida no outro
eu me torno eu. Mas como posso saber que o reflexo de minha consciência no
outro é, de fato, um reflexo da minha consciência?

Na Fenomenologia do espírito, de 1807, Hegel (1979) apresentou os


estágios do processo de auto-reconhecimento no outro. Ao refletir minha
consciência na consciência do outro, revela-se o fato de que a consciência só
pode se desenvolver pela via da sua relação com o Espírito, a estrutura geral
da consciência que ela compartilha com os outros. É por isso que, para Hegel,
o finito, o mundo empírico, o evanescente, mundo da experiência cotidiana,
está continuamente negando-se a si mesmo, num processo ininterrupto de
mudança. A verdade, assim, está no processo ele mesmo, no fato de que tudo
que é finito está continuamente sendo transcendido. Onde Kant opôs
aparências e “coisas em si mesmas”, Hegel quis provar que as aparências são,
de fato, a essência da realidade. No momento em que compreendemos a
natureza transitória de toda realidade, o transitório cessa de ser transitório e
se torna aquilo que permanece. O movimento do todo só é explicável através
daquilo que ele não é, daí a Ideia do movimento. A finalidade da filosofia
está na explicação da Ideia que é o verdadeiro ser das aparências da realidade,
das quais a Ideia é inseparável, uma vez que, negando a si mesmas como
aparências, as aparências são necessárias à Ideia.

Segundo Hofstadter e Kuhns (1976, p. 378-38l ), a verdade em Hegel não


é meramente uma substância, mas é o sujeito, uma identidade viva que se
autodesenvolve. É o todo cuja a essência se completa através de seu próprio
desenvolvimento. Nessa medida, a verdade só pode ser considerada atual se
ela for um todo espiritual autodeterminante, cujo caráter fundamental está no
autoconhecimento ou autoconsciência. O mais alto nível de evolução do
espírito ou mente foi chamado de Absoluto. Num estágio mais baixo,
chamado de “mente objetiva”, o estágio da lei, moralidade, do estado e da
história do mundo, o Espírito se realizou na atualização. Mas agora, “no
estágio da Mente Absoluta, sua tarefa é aquela de se conhecer em sua própria
essência”, quando ele se torna para si mesmo seu próprio Ser. Essa
culminação da auto-identidade se junta à atualidade histórica de modo
curioso, pois o Espírito Absoluto é essencialmente religião no sentido lato,
compreendendo três formas: arte, religião em si e filosofia. “Embora o
Espírito se erga acima da historicidade atual ao se realizar a si mesmo nesses
estágios de autoconhecimento, o processo de realização é histórico, isto é,
ocorre no tempo. Nos mais altos estágios, o Espírito unifica o eterno e o
histórico”.

Não é de surpreender que a noção do Absoluto tenha vindo carregada de


temporalidade, ao mesmo tempo que a nega. Na medida em que, na história
do pensamento, toda aproximação da verdade revelou-se relativa e transitória,
o Absoluto não poderia ser mais uma versão da tentativa de fixar um
princípio absoluto. Hegel fará, ao contrário, da relatividade, do movimento da
negação, o Absoluto. Este aparecerá no tempo, enquanto não apreender o
conceito puro, quer dizer, não abolir o tempo. Para isso, o pensamento deve
ser o pensamento de si mesmo, caso contrário, o infinito se tornaria
dependente do finito. Conclusão: as tensões e contradições da realidade, que
a filosofia tenta compreender, já parecem conter em si mesmas o gérmen de
sua resolução, porque são contradições que estão no pensamento e, como tal,
seguem as necessidades do infinito movimento do pensamento.

A mente absoluta é o estágio de liberdade autoconsciente no qual a Mente


se reconcilia com seus opostos. Isto é a verdade cujo nome é a Ideia, verdade
em si mesma e por si mesma, Mente ou Espírito na sua forma absoluta, cujo
primeiro estágio de desenvolvimento está na arte. O pilar da estética
hegeliana, portanto, está no conceito de verdade. Mas que espécie de verdade
a arte, especificamente, expressa? Se a Ideia se manifesta concretamente na
arte, religião e filosofia, o conteúdo dessas experiências só pode estar na
Ideia. “O seu mais alto destino, tem-no a arte em comum com a religião e a
filosofia. Como estas, também ela é um modo de expressão do divino, das
necessidades e exigências mais elevadas do espírito” (Hegel, 1972, vol. 1, p.
42). Mas, qual é a diferença no modo como a Ideia se expressa em cada um
desses tipos de experiências humanas?

A arte é a aparição sensória da Ideia. Ela só pode mostrar a aparência da


Ideia para os sentidos, ficando para a filosofia a tarefa de explicar a Ideia,
quer dizer, explicar o ser verdadeiro das aparências da realidade. Disso
decorre a postulação básica da teoria estética hegeliana de que a verdade da
obra de arte só emerge completamente pela via de sua articulação conceitual.
A arte é, assim, uma revelação inferior da mesma verdade que a religião e a
filosofia atingem de modo mais adequado. Ou melhor: enquanto estas são a
revelação de alguns dos aspectos da verdade, daqueles que só podem ser
expressos pela reflexão, a arte, por seu lado, revela a verdade sensorialmente.
A arte ou o belo é, assim, a aparência sensível da Ideia.

Ao dizermos que a beleza é a ideia, queremos dizer que a beleza e


verdade são uma só e mesma coisa. Com efeito, o belo tem de ser verdadeiro
em si. Mas, observando mais atentamente, deparamos com uma diferença
entre o belo e a verdade. A ideia é verídica porque é pensada como tal em
virtude de sua natureza e do ponto de vista da sua universalidade. O que
então se oferece ao pensamento não é a ideia na sua existência sensível e
exterior, mas no que tem de universal. Contudo, a Ideia também se deve
realizar exteriormente e adquirir uma existência definida enquanto
objetividade natural e espiritual. A verdade como tal também existe, quer
dizer, também se exterioriza. Desde que, assim exteriorizada, a verdade se
oferece à consciência e o conceito fica inseparável da manifestação exterior, a
ideia não só é verdade como também é beleza. O belo define-se, pois, como a
manifestação sensível da ideia. O sensível e a objetividade não mantêm, na
beleza, qualquer independência; ambos têm de abandonar a imediatidade do
seu ser, visto que se apresentam como existência e objetividade do conceito,
como uma realidade que representa o conceito formando um todo com a sua
objetividade, quer dizer, uma manifestação do conceito (Hegel, 1972, vol. 1,
p. 210-211).

Desde Schiller, e também em Schelling, o entendimento do belo havia se


deslocado da natureza para a obra de arte. Foi do vocabulário básico de
Schiller que Hegel também tomou emprestado o termo através do qual
passaria a designar a essência da obra de arte, na sua unidade de oposição e
reconciliação, do belo e sublime: a obra de arte, em Hegel, passaria a ser o
“ideal”, que é a Ideia em forma sensória, o devir do pensamento reflexivo em
que pensamento e forma sensível se conformam um ao outro e convergem em
uma unidade imediata. O ideal não é um simples conteúdo predeterminado
que é imposto do exterior sobre o veículo sensório de sua expressão. Ao
contrário, ele aparece num processo de auto-articulação, que nasce e
prossegue a partir da auto-atividade artística. Assim, o conteúdo artístico,
embora provenha da Ideia, é autodeterminado, tendo, portanto, de ser
diferenciado do conteúdo que nasce de uma determinação externa, tal como
ocorre na imitação.

A arte em uma limitação que só pode ser superada pela filosofia, porque,
para atingir a verdadeira identidade do conhecedor e do conhecido, a arte
ainda precisa de um elemento limitador de externalidade, quer dizer precisa
de uma forma sensória para se conhecer a si mesma, ficando, assim, presa
numa separação. Muito embora essa separação não seja tão extrema quanto a
separação ou dualidade irremediável da imitação, a verdadeira forma do
autoconhecimento não está no autoconhecimento sensório da arte, mas no
autoconhecimento racional da filosofia.

Não há, contudo, uma oposição entre filosofia e a arte porque a obra de
arte torna concreto um significado universal. A forma da obra de arte nasce
dela de modo imanente. Sua concretude não é nem uma particularidade
empírica nem uma forma universal desencarnada. Seu processo de
concretização é um processo de formação ativa, onde os dualismos do
particular e universal, do sensível e inteligível não operam de modo
arbitrário. A arte é, mais propriamente, um universal poético que produz a
emergência e concreção (poiesis) do significado universal da Ideia, a
encarnação concreta do seu ser. Sendo a aparência a emergência concreta e,
portanto, a revelação sensória do universal, a obra de arte é, para Hegel, um
universal concreto. O concreto é o individual, mas o individual é a união da
particularidade e da universalidade.

Em síntese, ao apresentar uma certa completude compacta, a obra de arte


implica no seguinte: 1. ela envolve a ideia de origem dinâmica; 2. ela torna
concreto um certo processo de emergência; 3. ela traz à luz a totalidade rica
de uma universalidade concreta. O poder criativo da arte revela-se, assim,
numa conjunção complexa de auto-atividade e receptividade dos valores
últimos, ou seja, daquilo que a religião representa como sendo a união do
humano e divino. Por colocar o homem perto da inteligibilidade plena, a arte
tem um lugar no Espírito Absoluto, o que não quer dizer que ela esteja, para
Hegel, separada da história. Ao contrário, a arte representa um esforço
imaginativo de extrair da história um significado essencial, elevando a
existência sensória a um plano espiritual (Desmond, 1986, p. 8-64).

Há, evidentemente, pelo menos três visões sobre a natureza geral e as


finalidades da arte que Hegel rejeitou: 1. a imitação da natureza como fim
último da arte; 2. a experiência humana do mundo como finalidade da arte; 3.
a mitigação das paixões como objetivo final da arte. Resta uma quarta visão
que, à primeira vista, parece ser aquela que Hegel esposou: a revelação da
verdade como fim da arte. Não é este o caso, porém. Embora, de fato, a obra
de arte apresente a verdade de uma forma sensória, ela não pode ser vista
como um meio, ou como um instrumento, para a realização desse fim, pois
ele é independentemente válido, por sua própria conta, fora da esfera da arte.
Para explicar essa questão, Mitias (1980, p. 71-75) apresenta, de forma muito
clara, os traços distintivos da arte para Hegel no que se segue.

Primeiro: o objeto de arte é um artefato criativamente feito pelo homem,


não sendo o resultado nem de uma atividade mecânica, nem da inspiração,
mas sim fruto da habilidade do artista de produzir uma forma que dá corpo ao
“Ideal”, de modo concreto e expressivo. Segundo: o objeto artístico é
sensório, uma entidade física e o lugar de uma experiência perceptiva, sendo
a análise da beleza em geral a questão própria da estética. O objetivo último
do artista é criar um objeto belo. Terceiro: o objeto de arte também se dirige à
mente. O espírito é igualmente afetado, encontrando alguma satisfação no
objeto. Assim sendo, o aspecto sensório só tem direito à existência na medida
em que existe para a mente, e não qua sensório. Finalmente, a obra de arte
imita o Ideal, quer dizer, o Belo. Ideal, assim, não se confunde com Ideia.
Esta, na sua aparição como o belo da arte, não é a Ideia em si, no modo
Absoluto em que a lógica metafísica tem de apreendê-la, mas é apenas a ideia
tal como ela toma forma na realidade e tal como se apresenta em unidade
imediata e correspondência com essa realidade. Na sua forma do belo na arte,
a ideia não é nem abstrata nem conceitual. Ela é concreta e presa dentro de
uma forma determinada. Não é um objeto do pensamento, mas da intuição
imediata. Vem daí a impossibilidade do entendimento para compreender o
Belo. Disso se conclui que: 1. a obra de arte é um fim em si mesma, não se
prestando a nenhuma finalidade pedagógica ou moral; 2. a verdade que a obra
de arte revela apresenta-se à percepção estética como o belo, um objeto que
não se apresenta nem para os sentidos nem para o entendimento, mas para a
imaginação, produzindo uma espécie muito peculiar de satisfação
imaginativa; 3. a experiência estética é imediata, intuitiva, sendo muito pobre
conceitualmente. O belo é a unidade imediata da natureza e do espírito na
intuição. A verdade que a arte revela não é cognitiva nem conceitual, mas
artística, quer dizer, bela ou Ideal.

Hegel não esposou, portanto, nenhuma teoria existencialista do estético.


Sua visão foi, contrariamente, eminentemente intelectualista. Segundo Mitias
(ibid., p. 68), o conteúdo da obra de arte, de um lado, e o traço caracterizador
da arte, de outro, para Hegel, não são qualidades abstratas ou essências
coladas misteriosamente ao objeto artístico. Trata-se, isto sim, de um
conteúdo ideal, e, como tal, da capacidade do objeto de realizar uma
experiência de beleza. Tendo recebido o batismo do espiritual, a arte só
extrojeta aquilo que se formou em harmonia com o espírito. Em si, o objeto
não é belo, é um potencial para uma experiência de beleza.

Embora a estética hegeliana esteja firmemente plantada no contexto


moderno do poder criativo e da expressão subjetiva, na sua contextualização
mais ampla, essa expressão está atada à afirmação metafísica do belo. A
natureza do belo, ideal de toda arte, consiste no conhecimento da realidade e
de seus conceitos, não através de abstrações, mas na fusão imediata de um
objeto que se auto-contém. Daí, em oposição a Kant, a insistência hegeliana
no estatuto superior do belo nas obras de arte, em oposição ao belo natural,
pois a beleza depende de um desenvolvimento da mente e não do prazer
encontrado numa contemplação imediata da natureza (Hegel, 1972, vol. 1, p.
28). O belo é sensível e supra-sensível, universal, sem ser abstrato. Mas essa
universalidade não se assemelha à universalidade formal do belo estético em
Kant. O belo hegeliano é um concreto universal que traz algumas
semelhanças, segundo Desmond (1986, p. 105-153), com o conceito
transcendental do belo na tradição aristotélico-tomista.
Enquanto a estética platônica havia encapsulado o belo no caráter
intrínseco da coisa em si mesma, definindo a sincronia da psiqué em resposta
a esse caráter, Kant capturou o estético na ênfase moderna sobre o sujeito,
definindo a significância do objeto em termos da contribuição constitutiva
que o sujeito lhe dá. Hegel, por sua vez, costurou o antigo no moderno,
através de sua compreensão do aspecto metafísico do belo, de um lado, e da
sua apreensão do poder original do artista e da contribuição que esse poder
traz para a expressão do significado estético, de outro.

Provavelmente, mais do que ninguém, Hegel prezou a perfeição e a


universalidade da beleza na Grécia clássica, mas foi bastante crítico em
relação à generalidade abstrata a que essa universalidade ficou reduzida, em
Platão. Havia, para ele, contudo, algo no eidos platônico que deveria ser
mantido e remediado, numa concepção genuína do belo que combinasse
universalidade metafísica coma determinação da particularidade real. Vinham
daí suas reservas quanto à estética kantiana. Embora Kant tivesse premiado a
filosofia com uma espécie de recomeço, as antíteses fixas ainda se
mantiveram na sua filosofia, estando a unidade proposta por ele meramente
na forma de ideias subjetivas da razão, para as quais nenhuma realidade
poderia, de fato, corresponder. Daí a unidade orgânica e o caráter teleológico
do belo, tanto na natureza quanto na arte, tenderem a ser vistos e julgados,
por Kant, apenas sob o ponto de vista de uma reflexão subjetiva.

É certo que faltou a Santo Tomás de Aquino, por sua vez, um sistema
dialético de integração do universal e do particular, mas é na sua metafísica
do belo que se encontra a concepção de beleza mais próxima da hegeliana.
Evidentemente, a estética hegeliana foi fundada em território pós-kantiano,
no qual o conceito de transcendência está inseparavelmente atado à questão
da subjetividade, referindo-se, então, às condições próprias do sujeito
conhecedor que tornam possíveis o conhecimento e não mais se referindo,
como acontecia na tradição aristotélico-tomista, estritamente ao
conhecimento dos traços universais dos objetos. Mas se examinarmos o belo
como uma imagem concreta da Ideia, levando-se em conta a noção hegeliana
do concreto universal, encontraremos, em seu pensamento, alguns
fundamentos para juntar o sentido de transcendência de Kant com o sentido
do transcendente que vem da tradição aristotélico-tomista. É nesse contexto
que a negação do belo como uma mera abstração, mas, ao mesmo tempo, a
afirmação de seu caráter cognitivo deve ser compreendida.

Assim, a manifestação sensória da Ideia, expressa na arte, não se


confunde com a generalidade abstrata do universal imutável, nem se
confunde com a transitoriedade do particular, mas é a unidade do universal e
particular, da liberdade e da necessidade, do espiritual e natural, do infinito,
mas ainda determinado. Os diferentes graus atingidos pela harmonia da Ideia,
nas suas formas sensórias, não são aleatórios, mas dependem do grau de
concretude e determinação através dos quais a Ideia é apreendida e expressa,
no seu processo evolutivo rumo ao conceito. Cada um desses graus tem um
método próprio de externalização ou corporificação, um meio sensível no
qual se expressa de acordo com o estágio de desenvolvimento em que se
encontra, na direção de uma diminuição progressiva do valor do sensório.
Cada forma é efetiva, até certo ponto, como uma representação do Espírito
Absoluto (Hegel, 1972, vol. 1, p. 162). Em razão disso, Hegel dividiu a arte
em estágios evolutivos, cada um deles com os meios próprios e adequados à
corporificação sensória da Ideia. Esses estágios começaram na arte simbólica,
a forma primeira e mais próxima da natureza, passando pela arte clássica,
para terminar na arte romântica. Do mesmo modo que a arte como um todo é
uma síntese dialética entre o sensório e o racional, a arte romântica é uma
síntese entre a arte simbólica e a clássica.

Na fase simbólica, o conteúdo ideal se manifesta numa forma externa,


apontando apenas para a Ideia como algo distinto dela. O meio mais
adequado, que a arte encontra para se encarnar nesse estágio, é a arquitetura,
na qual as formas da natureza são abandonadas em prol de formas que
derivam dos poderes da mente humana. O elemento sensório e o Espírito
Absoluto aproximam-se aí, mas não chegam a encontrar um ponto de
unificação. Por isso, a esfinge foi, para Hegel, um símbolo do simbólico: o
Espírito humano tenta emergir do reino animal, mas não chega a ser
plenamente bem-sucedido. O corpo animal permanece. A expressão
perfeitamente harmoniosa da mente humana universal teria de esperar pela
arte clássica para atingir sua forma ideal.

A arte clássica une sentido e corporeidade, pois só a externalidade do


homem é capaz de revelar o espiritual numa forma sensória. Daí a Ideia
encontrar sua expressão na escultura da forma humana, na qual a Ideia se
desenvolve exatamente até o grau que é mais adequado à apresentação
sensória. O conteúdo ideal alcança aí o mais alto nível que o material
imaginativo sensório pode concretamente expressar. Por isso, a Ideia só se
sente em casa no reino sensorial, sob a forma da arte clássica. Nesse sentido,
essa arte representa a perfeição da beleza artística. Embora perfeita na
expressão humana da forma, atingida através da escultura, a arte clássica
depende de uma certa imaturidade do intelecto. O Espírito aqui adquire uma
existência autoconsciente, junto com as emoções, ideias e propósitos dessa
existência. As qualidades universais da forma humana são idealmente
receptivas à unidade da forma e conteúdo através da qual o Espírito entra na
forma da escultura. Contudo, a unidade da arte clássica evita os aspectos
genuinamente subjetivos da autoconsciência pessoal, terminando por
encontrar a instabilidade.

A emergência da arte romântica introduz, de acordo com Hegel, a última


forma determinada de arte. Compreendê-la apropriadamente significa
compreender o significado que o fim da missão da arte, na revelação do
Absoluto, adquiriu dentro do sistema hegeliano. Quando a individualidade
espiritual penetra no seu próprio templo, um terceiro estágio da consciência
humana é atingido. A unidade da aspiração religiosa e da fraternidade, na fé,
esperança e caridade, é puramente ideal e não poderia se contentar com
qualquer signo externo, nem se encarnar em qualquer forma natural. O
espírito subjetivo de cada indivíduo se torna muito mais importante através
de sua relação com a divindade, que se reflete na relação com seus iguais.
Hegel supôs que o meio para expressar essa ideia estava na tríade romântica
da pintura, música e poesia (Carrit, 1962, p. 106).

A beleza, na sua forma mais apropriada e no seu conteúdo mais apto, não
é mais a finalidade da arte. Em vez de tentar expressar a verdade
externamente, a arte romântica compreende que a verdade do pensamento é
independente da contingência, fisicalidade e externalidade. Não importa qual
conteúdo externo é usado nessa arte, pois mesmo os mais prosaicos objetos
da vida cotidiana podem ser utilizados uma vez que a verdade não mais
depende deles. Por isso mesmo, a música é a forma-chave da arte romântica.
Sua tarefa não é ecoar a objetividade, mas sim o modo como o eu interior se
move dentro de si mesmo, de acordo com sua subjetividade, no interior de
sua alma. Cada uma das formas românticas da arte, pintura, música e poesia,
fornece um tipo de síntese próprio para as formas prévias da arte. A pintura
absorve as representações dos ambientes arquitetônicos e os utiliza como
cenário para as representações humanas emprestadas da escultura. A poesia,
então, combina qualidades essenciais da pintura e da música para atingir a
perspectiva mais inclusiva de todas as formas de arte.

Na arte romântica, o conteúdo ideal está tão evoluído que já contém


muito mais do que qualquer material sensório imaginativo pode
expressivamente corporificar. É a arte da subjetividade, seu conteúdo é o
Absoluto que se sabe na sua própria espiritualidade infinita e que Hegel
identificou com o Deus cristão. Na passagem da pintura para a música e desta
para a poesia, há um movimento crescente de espiritualização. Na pintura, o
meio já é idealizado porque é capaz de representar o espaço de três
dimensões em apenas duas. A música, cujo meio está constantemente
evanescendo, é altamente expressiva de uma luz interior. A poesia,
finalmente, que tem na linguagem seu meio, é a mais espiritual de todas as
artes, a arte universal que contém em si a totalidade de todas as outras formas
de arte (Hegel, 1972, vol. 1, p. 149-175).

Numa análise que sintetiza de modo muito lúcido a questão, postulada


por Hegel, do fim da arte, a partir do romantismo, Jiménez (1992, p. 73-74)
diz que, para se entender a posição de Hegel, é preciso levar em conta que,
para realizar sua essência, a arte deve ir além de si mesma, superando-se. A
dissolução, quando dialeticamente compreendida, significa que, na medida
mesma em que a arte foi incrementando o pensamento que levava em seu
interior, ela foi se aproximando do ponto em que o pensamento desbordou
dos seus limites. A arte, religião e filosofia coincidem no conteúdo e na
finalidade de levar o espírito absoluto ao seu auto-reconhecimento, mas
diferem na forma como realizam essa finalidade. A arte, como primeiro
estágio, externaliza um saber imediato e sensível, a religião corresponde à
consciência representativa e, na filosofia, o espírito atinge o nível de livre
pensamento. Assim sendo, a morte da arte não é senão a própria arte
transcendida numa forma mais elevada.
5. A MULTIPLICAÇÃO DAS ESTÉTICAS

As conferências hegelianas sobre a arte só foram publicadas em 1835.


Antes disso, entre a publicação das palestras de Schelling e as de Hegel,
Schopenhauer, em 1819, publicou a primeira edição de sua obra O mundo
como vontade e representação (Schopenhauer. 1969). Levou algum tempo
para que as ideias aí expressas chamassem qualquer atenção Esse ostracismo,
contudo, seria devidamente compensado, uma vez que o voluntarismo e o
pessimismo da razão, marcas registradas de Schopenhauer, viriam exercer
enorme influência não apenas sobre Nietzsche, mas também sobre Sigmund
Freud (1856-1939) e, num outro extremo, Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
isso se não mencionarmos os artistas e poetas que claramente absorveram
suas ideias. Em razão disso, não há teoria contemporânea da arte que não
tenha, de uma forma ou de outra, absorvido a força que a vontade e a
descrença nos poderes da razão passaram a desempenhar no pensamento
ocidental a partir de Schopenhauer.

Embora se dissesse sucessor da tradição que ia de Platão a Kant, em


detrimento da filosofia pós-kantiana, especialmente a hegeliana pela qual ele
nutria imensa antipatia, Schopenhauer parece ter articulado uma espécie de
pensamento inteiramente diferente de tudo que pudesse ser encontrado na
tradição. Mas, assim que superada uma primeira impressão surpreendente que
sua obra produz, começam a aparecer alguns traços de ligação com Kant, não
o Kant das três críticas, mas aquele menos conhecido, particularmente o da
Antropologia (Kant, 1974). Um certo pessimismo kantiano — aparente nas
considerações sobre a inevitabilidade do egoísmo, na força fundamental da
pulsão sexual e urgência da autopreservação, na ubiquidade da dor e na
função da agressividade e competição como forças naturais — veio, de fato,
fazer eco em Schopenhauer. Mas, por outro lado, embora não
conscientemente consentida, há também na sua noção de vontade uma nítida
absorção do tratamento que Fichte deu à pulsão (trieben) e que Schelling deu
à força (kraft).

Para Schopenhauer, a causa e essência do mundo está numa força cega ou


tendência anterior à matéria e à consciência, que ele personificou na Vontade,
ou Vontade de Viver. Dessa força derivam a matéria, os vegetais, animais, até
o homem, em sucessivos graus de auto-objetivação. Para qualquer coisa que
existe deve ter pré-existido uma tendência, a partir da qual toda existência
consiste em discórdia, e, na vida orgânica especialmente, ela se manifesta
como desejo insaciável e voraz, cuja dor é obliterada e cuja crueldade é
apaziguada apenas pelo intolerável pânico do medo. A criatura que não está
fugindo está perseguindo, alimentando sua própria dor ou luxúria no outro,
fornecendo, através do peso do trabalho, novas vítimas para a praga cósmica.
O ser humano é aquele que bebe dessa taça mais amargamente, pois ele é o
olho através do qual o universo observa a si mesmo e se sabe infernal.
Mesmo a ciência não passa de um serviço sacrificado da Vontade.

Só restam duas alternativas que podem se abrir para o indivíduo: o


ascetismo ou a arte. O primeiro é mais elevado porque tende a durar através
do tempo como uma condição subjetiva, através da qual podemos nos livrar
da ética convencional. A criação estética é uma fonte mais provisória de
alívio, embora seus produtos sobrevivam para os outros experimentarem. A
arte nasce de um excesso de Vontade, que vai além do que é necessário para
atender à demanda do desejo saciável e das necessidades práticas (Simpson,
1984, p. 162). Só a contemplação estética pode nos livrar da escravidão, pois,
nela, o quando, o porquê e o para quê das coisas deixam de existir para nos
concentrarmos apenas no “o quê”. Totalmente absorvidos na percepção de
um objeto, podemos escapar de nossa individualidade e vontade, continuando
a existir como puro espelho do objeto: com sua beleza nos identificamos, nela
nos regozijamos. O que é então conhecido não é algo individual, mas a ideia,
quando o conhecedor cessa de ser um indivíduo para se tornar um puro
sujeito conhecedor. Nesse caso, contemplamos o belo. Quando, a despeito da
atração, instala-se uma relação hostil com nossa vontade, da qual devemos
nos desprender a fim de nos entregamos ao puro conhecimento, então o
objeto é chamado de sublime. A sublimidade é, assim, proporcional à nossa
dificuldade de considerar um objeto sem relacioná-lo com nosso vontade. Há
graus de beleza e sublimidade dependendo do grau de objetivação da
Vontade ao qual o objeto pertence: numa tragédia, o homem atinge seu maior
grau de sublimidade, do mesmo modo que uma bela mulher é mais bela do
que uma bela gata por exemplo.

A arte é mais universal representação da realidade ao mesmo tempo em


que a mais especificamente sensorial. Dentre todas as linguagens e todas as
artes, a música é a superior porque afeta diretamente a Vontade, quer dizer,
os sentimentos, paixões e emoções do ouvinte. É a música que melhor
representa as forças inconscientes que motivam nossas representações do
mundo. É a forma de conhecimento que, no seu poder revelatório, nos libera
mais completamente do mundo ao qual estamos ligados através da força
intolerável da Vontade (Carritt, 1962, p. 82-94).

Embora tenha ficado longe de produzir uma obra tão monumental quanto
a de Hegel, não há como ignorar Schopenhauer, quando se deseja
compreender o estado de espírito que passaria a dominar a filosofia a partir
do século XIX. São ecos da Vontade, por exemplo, que irão aparecer no
vitalismo de Henry Bergson (1859-1941). No outro lado do Atlântico, o
norte-americano George Santayana (1863-1952) nitidamente também beberia
nas fontes de Schopenhauer, que, lido à luz de Platão, iria lhe dar inspiração
para produzir, em 1896, o seu Senso do belo (Santayana, 1955). Contudo,
mais dominante do que esses dois filósofos, na insinuação de uma filosofia
que se tornaria inseparável da crítica da própria filosofia, foi, sem dúvida,
Nietzsche. Ora, sem a referência a Schopenhauer, torna-se quase impossível
compreender por onde Nietzsche iniciou sua análise da arte. Em 1871, mais
de vinte anos antes que Santayana produzisse o reaparecimento do belo no
seu canto de cisne tardio, com O nascimento da tragédia, Nietzsche (1927) já
havia dado início à sua devastadora crítica da metafísica, colocando em crise
definitiva as antigas confianças na razão filosófica.

Através de um olhar penetrante no lado irracional da cultura grega, que o


Ocidente reprimiu, ele concluiu que as origens da arte e de toda criatividade
devem ser encontradas nos aspectos duais da natureza humana, por ele
chamados de apolíneo, derivado do deus Apolo, e dionisíaco, obviamente
derivado de Dionísio. Foi da distinção kantiana entre o belo e sublime que
Schopenhauer parece ter extraído sua distinção entre a música, como
expressão direta da Vontade, e as artes, como representações expressivas das
ideias. Essa, por sua vez, deve ter sido a base da divisão nietzscheana, mais
geral, entre o lado dionisíaco, mais presente na música e na tragédia, e o lado
apolíneo, mais presente nas artes plásticas.

A arte apolínea é a arte do sonhador enfeitiçado pelo charme do seu


sonho e incapaz de vê-lo na sua natureza ilusória de sonho. Apolíneo se
refere, assim, àquele estado de repouso absorto diante de um mundo
visionário, onde as belas e ilusórias aparências descansam no esquecimento
do devir. Esse mundo de completude e beleza harmônica nos reconcilia com
a intolerável irracionalidade da vida e ação humanas. Dionísio, por outro
lado, refere-se à energia promíscua da vida, à intoxicação da orgia que destrói
os limites da forma, da unidade fixa e da perfeição estabilizada. Refere-se ao
devir extenuante, à crescente autoconsciência sob a forma da voluptuosidade
incontrolável do criador também consciente da cólera violenta do destruidor.
Combinando criação e destruição, Dionísio é o outro de si mesmo. Os
recursos retóricos do gênio se exaurem nas contradições que intentam
descrever essa condição. Temos, assim, dois componentes: 1. pura expressão,
forma, domínio espiritual; 2. pura matéria, paixão cega tão horrível quanto
divina na sua indeterminação. O belo nasce na junção de ambos, na tragédia
grega ou na música, consideradas como o ideal de toda arte.

Para Nietzsche, a existência só pode ser entendida e justificada em termos


estéticos, do que decorre que a investigação levada a cabo pela ciência ou é
um equívoco, ou uma rival da arte. Neste último caso, a ciência é uma
espécie de ilusão, similar à ilusão da arte. Dentre as táticas da ilusão, a mais
provocativa é a tragédia, que se distingue pela visão que ela apresenta, uma
visão do horror da natureza e do ato inatural que subjaz a tudo que o homem
pensa ser nobre na conduta. Como essa visão se expressa? Foi para responder
a essa questão que Nietzsche recorreu à sua distinção entre o apolíneo e o
dionisíaco. A integração que a tragédia processa desses dois lados permanece
como uma das maiores conquistas da humanidade. Conquista que só
desapareceu porque a vitalidade pessimista da tragédia pode ser insuportável,
o que provocou a sua substituição pela filosofia, na sua pretensão de
domesticar a natureza dentro de abstrações compreensíveis e inteligíveis.
Com isso, os elementos dionisíacos, os mais preciosos e vitais da vida
humana, foram perdidos. Daí Nietzsche ter proposto o retorno da filosofia à
sua subordinação pré-socrática à tragédia. Desmantelando a forma,
restaurando a inocência do devir, só assim a poiesis e o mythos podem ser
resgatados do predomínio asfixiante do logos.

Como podemos superar a metafísica sem perder aquilo que, a partir da


terceira crítica de Kant, se tornou inseparável da própria metafísica, ou seja, a
estética e a arte como vitais à experiência humana? Para responder a isso,
Nietzsche radicalizou, muito mais do que Schelling o fizera antes dele, o
significado da arte e da beleza. Enquanto para Schelling a arte comparecia
para manter o edifício da metafísica de pé, para Nietzsche o edifício foi
dinamitado para que as forças da indeterminação, soterradas sob suas
fundações, pudessem voltar a emergir. A força dionisíaca que produz a
tragédia e que a música nos permite contemplar é anterior a qualquer
imposição ética e a qualquer dominação sob o nome da verdade. A única
resposta possível para nossa facticidade e fragilidade está na capacidade
humana para criar ilusões que dão sustento à vida. Essa capacidade para a
criação de aparências, que Nietzsche chama de arte, incluindo a ciência e a
religião também nessa categoria, advém da força ruptora de Dionísio.

Certamente, tal proposta parece impossível, mas muito próxima dela, na


sua remarcável originalidade e ousadia, estaria, algum tempo depois, o
pensamento heideggeriano. A história da filosofia ocidental é a história do
esquecimento da fonte da verdade. Esta não se confunde com a
correspondência simples e referencial entre proposições definidas e uma
realidade externa e fixa, mas é um evento de desvelamento e revelação. Os
pré-socráticos estavam próximos da verdade primordial, mas a metafísica
ocidental, desde Sócrates, foi cada vez mais estreitando a noção de verdade
sob a égide de um ideal lógico. Disso resultou o esquecimento do Ser.
Recuperar o Ser significa, assim, tirar o véu do que foi encoberto, acirrar as
tensões que foram ocultas pela metafísica. Essa é, simplificadamente, a tese
heideggeriana, que, na medida em que avançou, foi dando à arte um
desempenho de relevo.

No seu famoso ensaio sobre A origem da obra de arte, publicado


originalmente em 1950 e baseado em conferências dadas em 1935 e36, em
Freiburg im Breisgau, Zurich e Frankfurt, Heidegger (1971) evidenciou que a
arte é um meio privilegiado para o acontecimento da verdade. Marcando o
período de reversão no seu pensamento, que passou de uma ênfase anterior na
ansiedade e niilismo para a primazia afirmativa do Ser, esse ensaio aponta
para a obra de arte como o lugar em que a verdade se estabelece, produzindo
uma luz e sombra, através das quais aquilo que é mostra-se. A origem da obra
não diz respeito apenas às obras de arte como entidades individuais, mas
também à origem da existência histórica humana em si mesma, pois a arte
tem a função de revelar a responsabilidade que cabe ao ser humano no
preenchimento do seu destino (Hofstadter e Kuhns, 1976, p. 648-649).

A filosofia heideggeriana passou por diferentes fases. Em todas elas,


manteve-se constante sua crítica a Hegel. Ao se considerar como a
autoconsciência do filosofar, o sistema hegeliano se tomou imune às
experiências originais e imprevisíveis. Ora, são exatamente esses tipos de
experiência que a arte segundo Heidegger, está mais apta a proporcionar.
Transpor sua substância para uma tradução conceitual significa destruir seu
poder revelatório.

Os abalos que Nietzsche e Heidegger produziram na crença nos poderes


da razão iriam ser complementados e ainda mais acentuados pela radicalidade
da descoberta freudiana do inconsciente. A influência dessa tríade de
subvertores sobre a filosofia continental, em particular sobre o pensamento
francês pós-estruturalista, especialmente na figura de Jacques Derrida, foi
muito profunda. Mas mais impressionante seria a repercussão que, sob o
nome de desconstrucionismo, as ideias de Derrida exerceriam sobre as áreas
das humanidades, nos Estados Unidos, nos anos 80 do nosso século anterior.
Não resta dúvida que Nietzsche foi um divisor de águas a partir do qual a
confiança na razão parece ter se tornado irrecuperável. Mas, se Hegel esteve
sempre, de uma forma ou de outra, na mira da crítica à razão, não se pode
deixar de notar que tiveram algo de profético os seus prognósticos sobre a
morte da arte e sobre o descanso final da filosofia em seu sistema.

O próprio advento dos pensamentos de Nietzsche, Freud, Heidegger e a


crítica implacável, que Karl Marx (1818-1883) desferiu sobre a futilidade e a
“miséria da filosofia”, parecem funcionar como indicadores seguros de que a
filosofia como sistema totalizante e unificador atingira, em Hegel, um ponto
de esgotamento. De um modo geral, a demolição das fundações metafísicas
da história correu em duas direções. De um lado, Marx, o primeiro a falar na
morte da filosofia, previu sua realização na história, o que tornava a filosofia
supérflua, do mesmo modo que a mitologia vai se tornando supérflua na
medida mesma em que a tecnologia vai sendo capaz de controlar as forças da
natureza. De outro lado, Nietzsche submeteu o otimismo do Idealismo ao seu
teste mais radical, ao questionar a legitimação dos elevados objetivos
históricos, coletivamente imputados, na postulação de uma nova conexão
entre a subjetividade e sua força motriz, por ele chamada de “vontade de
poder” (Bowie, 1990, p. 219).

Enquanto isso, as revoluções pelas quais os sistemas artísticos viriam


passar, a partir de meados do século XIX, confirmando, sob um certo ponto
de vista, os prognósticos hegelianos, também funcionariam como
comprovações vivas de que a ideia de arte, que o Ocidente fixou desde o
Renascimento, havia chegado a um fim. A multiplicação dos pensamentos e
escolas filosóficas, de um lado, e o estilhaçamento dos sistemas artísticos, de
outro, levaram a uma pulverização de tendências teóricas e atividades de
criação que não tem cessado de se expandir. As correntes estéticas, tanto no
nível teórico quanto no nível da criação, têm se multiplicado a tal ponto que
qualquer tentativa de mapeá-las num panorama global e representativo
destina-se irremediavelmente ao fracasso. Tendo isso em vista, as pinceladas
que serão dadas a seguir sobre as tendências estéticas do final do século
passado para cá não têm qualquer pretensão de esgotamento documental, mas
apenas a intenção de sugerir a própria dificuldade da tarefa.
Dentro de uma proposta de re-leitura de Hegel à luz de Marx, Georg
Lukács (1885-1971) tentou erguer, com sua Estética (1966-67), um enorme e
sistemático edifício teórico sobre a arte, no qual a verdade estética deixou de
pertencer ao domínio essencial da filosofia para se transformar na revelação
crítica da estrutura concreta da sociedade capitalista. Se a complexidade da
dialética hegeliana parece ter aí se gastado em clichés simplificadores, ela
voltaria a recuperar sua força especulativa no neomarxismo do frankfurtiano
Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969).

De acordo com Bubner (1980, p. 25), se há uma obra em nosso tempo que
merece uma comparação moderada com a monumental estética de Hegel, na
profundidade de sua reflexão e na riqueza dos detalhes concretos de suas
análises, esta obra é a Teoria estética, de Adorno (1980). Seu pessimismo em
relação a qualquer progresso da racionalidade humana, aliado à desconfiança
tipicamente marxista em qualquer teoria pura, o levou a considerar a estética
como única saída possível para o ceticismo radical. Mantendo o antigo valor
hegeliano da verdade, mas deslocando a prioridade desse valor da filosofia
para experiência estética, Adorno evidenciou que a filosofia deve aprender
com a estética que o pensamento conceitual não é tudo. Aо revelar uma
verdade que lhe é própria, a arte evidencia quão dilatado é o reino da verdade
e quão pouco território desse reino é ocupado pelas reflexões conceituais. Há
muito para ser compreendido que escapa às formas de controle do
pensamento filosófico tradicional.

Numa linda e lúcida apresentação da estética adorniana, Bowie (1990, p.


53-67) diz que a conhecida concentração de Adorno na autonomia estética
deriva da sua compreensão de que o ordenamento da natureza pela ciência e a
penetração das formas da mercadoria, em todas as esferas de troca capitalista,
dominam a relação do sujeito com o objeto. De acordo com a teoria marxista,
como se sabe, na medida em que a sociedade capitalista se desenvolve, tudo
se reduz ao princípio da equivalência através do princípio da troca. A forma
da mercadoria é a forma do “reflexo”: aquilo que o objeto é qua mercadoria
torna-se totalmente definível por sua relação negativa com os outros objetos
dentro de um sistema diferencial, que Marx muito corretamente equacionou
com uma espécie de metafísica. A verdade sensória do objeto não está
empiricamente disponível, pois seu valor deriva do mercado. No capitalismo,
os objetos são definidos por seu valor de troca, que se constitui na relação
com outros valores de troca, que não têm nada a ver com o ser intrínseco do
objeto, quer no seu valor de uso, quer como um objeto estético. Foi desse
aspecto-chave do pensamento marxista que Adorno extraiu os princípios de
sua original teoria do significado político da autonomia estética e da
pertinência filosófica da música.

Ainda de acordo com Bowie (ibid., p. 258), Adorno insistia no acerto


kantiano ao manter que nenhuma teoria estética é possível sem o pressuposto
de que a estética deve envolver um momento de desejo imediato livre, mas
ele insistia também no fato de que a autonomia estética deveria ser vista
historicamente, o que produz a instabilidade do puramente estético. A
despeito disso, a intraduzibilidade da música para um outro meio fez com que
ela se tornasse, a partir do fim do século XVIII, um índice da autonomia
estética, seu paradigma podendo ser aplicado às demais artes. A autonomia
resulta da falta de uma racionalidade finalista na arte, o que lhe dá o mesmo
caráter que Kant havia detectado no prazer estético.

O desenvolvimento da arte na modernidade está ligado à liberação do


sujeito das compulsões teológicas, fator que é melhor exemplificado na
música. “A partir do romantismo, e especialmente em Wagner, a música foi
se tomando mais e mais capaz de encontrar uma linguagem que expressa o
que Schopenhauer via como ‘a história secreta da Vontade’: todos aqueles
aspectos da vida interior dos seres humanos que não podem ser
adequadamente representados na linguagem verbal”. Mas, ao mesmo tempo,
a música foi mais e mais se amarrando às convenções. Essa mesma
convenção penetrou, de acordo com Adorno, nos sujeitos cujas experiências a
arte expressa. A modernidade traz consigo um potencial para o
empobrecimento da subjetividade, o que faz desta um terreno fértil para a
semeadura das políticas totalitárias. Nem a música, aparentemente tão livre
de imposições ideológicas, pode estar à margem desse estigma. Afogada em
repetições características do pensamento conceitual, ela corre o risco de
perder seu estatuto estético (Bowie, ibid., p. 261).

Adorno conectou sua visão da arte à “dialética do iluminismo”. Os


produtos da subjetividade autônoma, ciência e tecnologia, que deveriam nos
auxiliar na superação das ameaças da natureza externa, acabam por aprisionar
o sujeito numa objetividade da mesma ordem daquela que supostamente
deveria ter sido superada. A crise ecológica, segundo Bowie (ibid., p. 263), é
o melhor exemplo dessa dialética. A radicalidade com que Adorno enfrentou
essas questões foi prefigurada na avaliação pessimista que Schopenhauer fez
da natureza fundamental da subjetividade e da sua concepção da arte como
desvio da pulsão à autopreservação da Vontade. Adorno tendeu, porém, a um
hegelianismo invertido, onde o progresso do Espírito é, na realidade, o
progresso da razão instrumental, uma lógica da desintegração que também
encontra eco na noção heideggeriana de que a história da modernidade é uma
história da “subjetificação” do Ser.

Bowie termina nos dizendo que, diferentemente de Schopenhauer,


Adorno não chegou a postular um completo isolamento da arte em relação à
razão, isolamento que nasce da descrença de qualquer interferência positiva
da arte contra a instrumentalização da razão. O pessimismo adorniano não
estava fundado num veredito a respeito da natureza essencial da razão, mas
numa reflexão histórica quanto à falha das esperanças idealistas de uma
reconciliação da subjetividade autônoma com a ordem geral da sociedade.
Mas, diferentemente de Heidegger e dos pós-estruturalistas, ele sustentou a
esperança numa subjetividade que não estaria plantada apenas na
autopreservação e que poderia sustentar a individualidade contra as forças
objetivas que militam contra ela. A arte foi o lugar onde essas esperanças
surgiram. Longe de ser um mero escape de uma subjetividade negativa, como
foi concebida por Nietzsche e especialmente por Schopenhauer, a arte, e mais
particularmente a música, apontam para uma subjetividade que não precisa
necessariamente experimentar a individualidade como um tormento.

Adorno fez parte de um grupo de intelectuais frankfurtiano que deixou


marcas profundas nas concepções da arte, cultura e sociedade na segunda
metade do século XX, nos quatro cantos do globo. Nesse grupo, além de
Adorno, destacam-se Marcuse e Walter Benjamin (1892-1949). Curioso notar
que, de enquanto as concepções estéticas de Marcuse serviram de bandeira de
liberação para os movimentos contraculturais dos anos 60, a teoria da
indústria cultural desenvolvida por Adorno deu-lhe fama nos anos 70, quando
se dava a expansão da lógica do consumo na explosão das mídias. Já as teses
sobre a política da história, desenvolvidas por Benjamin, junto com suas
ideias originais em relação ao caráter estético e emancipatório das novas
mídias, o colocariam no centro das atenções nos anos 80, quando os debates
sobre a pós-modernidade começaram a trazer à baila a crise das concepções
lineares da história e das visões elitista arte que imperaram desde o
Renascimento.

A teoria estética na Alemanha, no século XX, baseou-se largamente na


tensão entre as tradições hegeliana-marxista e a existencialista-hermenêutica.
Esse é o caso de Hans Georg Gadamer, que, tido muito embora como
sucessor de Heidegger, desenvolveu uma tese quase-hegeliana similar à de
Adorno de que a verdade é a essência da arte, como um deslocamento
também similar de que seu domínio foge da alçada da filosofia. Em Verdade
e método (1977), a influência hegeliana na concepção de sua filosofia da arte,
mesclada à ontologia heideggeriana, o levou a considerar a arte como
paradigma da compreensão hermenêutica.

Para se ter uma ideia da constelação diferencial de tendências e correntes


estéticas, cuja proliferação, principalmente nos países centrais, foi se dando a
partir de fins do século XIX, na primeira edição de sua antologia sob o título
de Um livro moderno de estética, de Melvin M. Rader (1935) divide o campo
em doze principais tendências estéticas com seus respectivos representantes,
na seguinte ordem: 1. A Teoria do Jogo, representada por Konrad Lange e
Karl Groos; 2. Teorias Voluntaristas, desenvolvidas por Nietzsche, Freud d
DeWitt H. Parker; 3. Teorias Emocionalistas, de Eugene Véron, Leo Tolstoy,
Yrjö Hirn; 4 Teorias Hedonistas, de Henry Rutgers Marshall e George
Santayana; 5 Teorias da Intuição e Técnica, de Croce, Bergson e Bernard
Bosanquet; 6. Teorias Intelectualistas, de Maritain e Ramon Fernandez; 7.
Teorias da Forma, de DeWitt H. Parker, Clive Bell, Roger Fry e Rhys
Carpenter, 8. Teorias da Empatia, de Theodor Lipps e Vernon Lee; 9. Teorias
do Desprendimento Psicológico, de Edward Bullough e José Ortega y Gasset;
10. Teorias do Isolamento e Equilíbrio, de Hugo Münsterberg, Ethel D.
Puffer e o trio C. K. Ogden, I. A. Richards e James Wood; 11. Teorias da
Influência Cultural, de Oswald Splenger e Lewis Mumford; 12. Teorias
Instrumentalistas, de William Morris e Alfred North Whitehead.

Na terceira edição revisada e expandida do mesmo livro, publicada em


1966, Rader amplia ainda mais a lista, de doze para quinze, renomeando as
categorias das tendências e mudando muitos autores de seus lugares prévios.
Num flagrante inegável do deslocamento, bem característico na época, da
preocupação com as teorias estéticas para as teorias da arte, os itens passam a
ser nomeados tendo em vista a definição da arte. Vale a pena transcrever a
lista para se tomar conhecimento dos novos autores incluídos e das novas
categorias em que os antigos nomes passaram a se integrar. O livro está
dividido em três partes, tendo cada uma seu próprio título. Assim, a primeira
parte, recebendo o título de “Arte e o Processo Criativo”, inclui: 1. Arte como
Semelhança, com Konrad Lange, Samuel Alexander e Oscar Wilde; 2. Arte
como Beleza, com Maritain e Santayana; 3. Arte como Expressão Emocional,
com Verón, Tolstoy e Hirn; 4. Arte como Intuição, com Bergson, Croce e
Joyce Gary; 5. Arte como Satisfação do Desejo, com Nietzsche, Freud, Carl
Gustav Jung e Christopher Caudwell; 6. Arte como Experiência Viva, com
Dewey e Whitehead; 7. Pode a arte ser definida? com Wittgenstein e Morris
Weitz. A segunda parte, com o título de “A Obra de Arte”, inclui 8. O
“Corpo” da Obra, com Margaret MacDonald, Bosanquet e David Wight
Prall; 9, Expressividade, com Charles W. Morris, Susanne K. Langer, Rudolf
Arnheim, A. Richards e W. N. Sullivan; 10. Forma, com R. Fry, C. Bradley,
D. H. Parker, D. W. Gotshalk e Meyer Shapiro; 11. Forma e Função, com
Horacio Greenhough e Mumford. A terceira parte, recebendo o título de
“Apreciação e Crítica", inclui 12. Empatia e Abstração, com Venon Lee,
Theodor Lipps e Wilhelm Worringer, 13. Distância e Desumanização, com
Bullough, Ortega y Gasset e Kenneth Clark; 14. Isolamentos e Sinestesia,
com Hugo Musterberg e o trio Odgen, Richards e Wood; 15. Crítica, com
David Hume, Theodore Meyer Greene, Stephen Pepper e Louis Arnaud Reid.

Não obstante a tentativa de abraçar todas as tendências, não comparece,


em nenhum dos dois livros, uma corrente teórica para a qual, numa outra
antologia, os autores (Dickie et all, 1977) dão destacada relevância: as teorias
da atitude estética que o tornaram bastante conhecidas no mundo de língua
inglesa e tiveram seus principais representantes em Herbert S. Langfield com
seu livro Atitude estética (1920) e E. M. Bertlett com seu livro sob o título de
Tipos de julgamento estético (1937). Tendo suas fontes de origem nas ideias
de Schopenhauer, essas teorias o encontraram continuidade até os anos 60,
em obras como a de Jerome Stolnitz sobre a Estética e a filosofia da crítica
da arte (1960).

Na década de 70, ao tentar mapear o território da estética contemporânea


àquela data, destacando a importância, na primeira metade do século, de
obras como as de Santayana (1955), Croce (1922, 1953), Dewey (1925,
1953) e Robin George Collingwood (1925, 1958). Harold Osborn (1972) diz
que sistematizações unificadas da estética podem ser encontradas
especialmente nas obras de Susanne Langer, nos Estados Unidos (953, 1957)
e Luigi Pareyson, na Itália (1965). Osborn chama a atenção, muito bem
lembrada, para as distinções bastante remarcáveis entre os métodos anglo-
americanos da estética e os métodos continentais, nascidos, de um lado, do
método fenomenológico da investigação filosófica de Edmund Husserl
(1859-1938), de outro lado, nascidos, na França, da combinação da
fenomenologia com o existencialismo de Jean Paul Sartre e, vale acrescentar,
de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), cuja obra filosófica, sem dúvida
uma das mais importantes do século, tem profundas implicações para a
estética (1945, 1969). Na Polônia, fez escola o método estético também
fenomenológico de Roman Ingarden (1893-1970) que repercutiu na influente
obra de Mikel Dufrenne (1953-1967).
A seguir, Osborn (1972, p. 2-3) acrescenta que a influência de Ludwig
Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) sobre o pensamento estético,
embora indireta, é real, não podendo, por isso, ser negligenciada. Ela é
exercida principalmente através da aplicação ao discurso estético de modos
de pensar sobre o sentimento, emoção, intenção e mesmo certos aspectos da
percepção, trabalhados na filosofia geral da mente a partir de sugestões
contidas nos últimos escritos de Wittgenstein, junto com novas ideias sobre
critérios, norma, explicação etc.

O que se pode concluir de tudo isso é que o número das teorias estéticas,
substituídas em grande medida, neste século, por teorias da arte, foi
crescendo numa tal ordem que se pode afirmar, como o fez Margolis (apud
Osborn, ibid., p. 5). que aquilo que chamamos de estética não é de modo
algum um ramo da filosofia, mas muito mais um sistema bastante solto de
questões concernentes ao nosso interesse nas artes. Ele teria razão se não
tivesse sido desdito pelo ressurgimento da preocupação com o estético ou
antiestético que começou a invadir a paisagem cultural contemporânea, mais
fortemente a partir dos anos 80, nos acirrados e controversos debates sob o
nome de pós-moderno, pós-modernismo ou pós-modernidade.

Tendo o belo caldo decididamente no esquecimento, dada a sua evidente


inadequação para pensar questões estéticas frente à demolição dos valores
que as vanguardas artísticas implacavelmente realizaram contra as noções de
arte herdadas do Renascimento, o sublime começou a ser revalorizado como
meio para a compreensão dos enigmas da criação. Não é de estranhar a
frequência com que esse tema começou a aparecer nos escritos de vários
críticos da atualidade, assim como não é de estranhar que esteja na crista dos
debates ditos pós-modernos. Não sem razão, é Kant, e não Hegel, que está
sendo posto na ordem do dia, tendo sua terceira crítica merecido a atenção
recente de Jean François Lyotard (1991), um dos mais famosos arautos da
pós-modernidade.

Em síntese, há evidências notórias de um renascimento das preocupações


com a criação de uma estética original, que leve em conta as novas
complexidades, até mesmo brutais, com que o mundo contemporâneo está
nos desafiando. Era para esse rumo que a obra de Felix Guatarri (1930-1992)
estava apontando (Guatarri, 1992), quando esse pensador foi infelizmente
colhido por uma morte inesperada.

Por mais instigante que possa soar a sugestão da apresentação de um


panorama histórico e conceitual sobre as relações da estética com a pós-
modernidade, essa sugestão não será aqui seguida, porque a rede de seus
intrincados fios conduziria nossas ideias para longe das preocupações mais
urgentes que este livro se colocou como finalidade atender. Deixando vivo na
memória o quadro das estéticas filosóficas, a segunda parte visará, conforme
já foi anunciado na introdução geral, à apresentação monográfica da estética
peirceana perfilada dentro da moldura desse quadro.
SEGUNDA PARTE
A ESTÉTICA DE C. S. PEIRCE

INTRODUÇÃO

Os primeiros contatos de Peirce com a filosofia deram-se na adolescência,


aos 12 anos, com a Lógica de Whateley, experiência que foi, mais tarde,
muitas vezes rememorada para explicar a origem de sua paixão pela lógica e
as razões pelas quais não conseguia ver absolutamente nada no mundo senão
sob o prisma da semiótica, o outro nome que, mais para o fim de sua vida, ele
daria para a lógica concebida em sentido muito lato. O segundo contato, um
pouco mais tarde, se deu através das cartas de Schiller, que ele leu com todo
o fervor de uma adolescência intelectualmente inquieta. Foi Schiller, aliás,
que o levou para Kant, cuja Crítica da razão pura, pouco tempo depois, ele
saberia de cor.

A partir de Kant, seu cometimento com a lógica seria levado até o fim de
seus dias. Muito diferentemente de Kant, contudo, Peirce concebeu a lógica
como lógica da ciência, a arte de entender os métodos de investigação
utilizados pelas mais diversas ciências. A semiótica ou doutrina dos signos,
da qual ele foi o moderno fundador, aconteceu, na sua vida, como uma
consequência da sua investigação dos mecanismos de pensamento e
raciocínio que estão nas bases, dando suporte aos métodos através dos quais
as ciências conduzem suas investigações para atingir os resultados por elas
almejados. Muito cedo, Peirce se deu conta de que não há nenhuma forma de
pensamento e, consequentemente, nenhuma forma de raciocínio que possa se
realizar apenas através de símbolos. Daí sua preocupação com o estudo
preliminar de todos os tipos possíveis de signos, como meio para
compreender os tipos de raciocínio que estão na base dos métodos. Assim
sendo, conforme será melhor visto nos próximos capítulos, ele passou a
dividir a ciência semiótica em três ramos: 1. gramática pura ou especulativa,
2. lógica crítica ou lógica propriamente dita e 3. retórica especulativa ou
metodêutica. Entre esses três, o primeiro, que diz respeito ao estudo dos
signos propriamente dito, e que é, de resto, a parte mais conhecida de sua
semiótica (infelizmente muitas vezes tomada como o todo da semiótica
peirceana), funciona apenas como um estudo preliminar, uma propedêutica
para a investigação dos métodos de raciocínio, da força de seus argumentos e
da validade de suas conclusões, investigação esta que ocupa o coração da sua
semiótica, sendo chamada de lógica crítica, a qual, por sua vez, dá sustento à
finalidade última da semiótica, a saber, a metodêutica ou ciência do método
utilizado pelas inteligências científicas.

Embora suas filosofias apresentem diferenças radicais, à semelhança de


Kant, Peirce concebeu a filosofia como uma arquitetura, caracterizada,
porém, não apenas como uma arquitetura filosófica, mas científica, quer
dizer, como uma filosofia científica. Conforme já discuti em vários outros
trabalhos, especialmente Santaella (1987, 1992), a concepção peirceana da
ciência em nada se assemelha aos princípios metafísicos e positivistas
vigentes no período em que ele viveu e, bastante popularizados, depois de sua
morte, pela tradução especifica que o Círculo de Viena deu a esses princípios.
Não obstante estivesse contextualizada numa arquitetura sistematicamente
concebida, sua concepção de ciência tem uma abertura e dá respaldo às
liberdades da criação e descoberta a tal ponto que, paradoxalmente, algumas
de suas ideias podem até ser cotejadas com as ideias rebeldes e
insubordinadas sobre os métodos da ciência, apresentadas por Paul
Feyerabend, o enfant terrible da atual história e filosofia da ciência.

Peirce foi, antes de tudo, um homem da ciência, ou melhor, das ciências,


tendo praticado uma quantidade assombrosa de ciências no decorrer de uma
vida atribulada e cada vez mais crescentemente malsucedida. Foi químico,
físico, astrônomo, matemático, conhecedor de biologia, zoologia, geologia,
assim como de filologia e literatura. Mas foi lógico por paixão e vocação,
adepto de uma concepção de lógica que não foi reconhecida no seu tempo, e
que, aliás, não foi reconhecida até hoje entre os lógicos, se é que algum dia o
será. Ora, foi exatamente essa concepção de lógica, como a lógica dos
métodos de investigação utilizados pelas ciências, que o levou a se
transformar também num historiador, preocupado com a história das ciências
e com os ensinamentos que essa história pode trazer para a compreensão das
transformações pelas quais os métodos passam no decorrer do tempo. Não é
de estranhar, em função disso, que acerca da ciência estejam muito mais
próximas daquelas defendidas por uma filosofia da ciência que leva em conta
as contribuições da história do que por aquela que se aprisiona na crença dos
métodos fixos. Mas, uma vez que a lógica esteve, no passado, dentro do
reduto da filosofia, lendo os filósofos para seu rastreamento da lógica, Peirce
acabou por se transformar também num filósofo, muito embora tenha sido
um filósofo de calibre inusitado. Uma das razões da sua peculiaridade
localiza-se, sem dúvida, no fato de que sua filosofia buscou integrar, num
todo coeso, a filosofia, a lógica e a ciência, de um modo nunca havia sido
tentado antes. Toda leitura dos escritos de Peirce que não levem em conta
essa integração ficarão à margem da compreensão dos ideais e objetivos que
guiaram sua obra.

Em síntese, a filosofia peirceana é uma filosofia científica. Segundo ele, a


filosofia deveria superar o estado insatisfatório em que se encontrava na sua
época. Se a ciência, de seu tempo, sob seu ponto de vista, não parecia lidar
senão com fantasmas, a filosofia, pior ainda, lidava com fantasmas de
fantasmas. Para sair do mero jogo de palavras, ela deveria utilizar, evidente
com as devidas adaptações e adequações, os mesmos de descoberta,
formulação, validação, teste e comprovação de hipóteses que qualquer
ciência que se preze é obrigada a utilizar. É dentro desse ideário que sua
arquitetura filosófica foi construída. Uma arquitetura, vale completar, que não
se sustenta isoladamente, mas inserida como uma parte apenas de um imenso
diagrama das ciências com as quais a filosofia deve entreter relações das mais
diversas espécies.

Mas, enfim, o que tudo isso tem a ver com a estética? É o que o leitor
deve estar, com toda a razão, se perguntando. Para apressar uma parcela da
resposta, a estética é uma das disciplinas filosóficas e científicas, dentro da
arquitetura filosófica de Peirce, que, por sua vez, é apenas uma parte,
cumprindo determinados tipos de finalidades no interior de um imenso
diagrama das ciências. Se a primeira leitura filosófica que Peirce fez na vida
foi a de uma obra sobre estética, paradoxalmente, a estética só chegou muito
tardiamente a ocupar um lugar na construção de sua filosofia científica. Pode-
se dizer que a estética chegou por último, para ocupar, incrivelmente, o
primeiro e mais relevante lugar entre todas a disciplinas filosóficas por ele
concebidas. Sob esse aspecto, o da primazia, prioridade do papel que a
estética tem a desempenhar na filosofia, Peirce se aproximaria de
Schopenhauer, Nietzsche e Adorno, muito embora não tenha partido, como
os dois primeiros, de uma aversão em relação a uma pretensa natureza
negativa da razão da qual a estética nos permitiria escapar, nem compartilhou
do pessimismo adorniano quanto à vocação instrumentalista da razão.

A filosofia peirceana apresenta uma tendência para o otimismo, uma das


razões para a sua impopularidade, frente à moda niilista que tem
predominado no pensamento filosófico ou não, desde Schopenhauer. Foi esse
mesmo niilismo, aliás, que acelerou a crise da metafísica, mas ao mesmo
tempo contribuiu para o equívoco, que se tornou corrente, de que a metafísica
idealista da razão só pode ser superada sob a forma do niilismo. O otimismo
implícito no pensamento peirceano, e que justamente a sua estética permitirá
melhor entrever, não o impediu de prever o império da perversão nas
sociedades contemporâneas, quando, segundo ele, o “Evangelho da
Ganância” traria como consequência a explosão em tempestade diluviana da
ordem social, abrindo o tempo de um mundo tão profundamente em ruínas
quanto a filosofia da ganância o mergulhou em culpa (CP 6.292-3). A
alternativa de uma esperança não-teológica, inédita em relação a todo o
passado filosófico do Ocidente, que a estética peirceana abre para esse estado
de coisas é uma das finalidades das exposições que estarão presentes nos
próximos capítulos.

A estética de Peirce satisfaz quase à perfeição as metas sonhadas por


Schiller de amalgamar razão e sentimento, conciliar os rigores do pensamento
às liberdades do espírito, de integração do intelecto à ética e à estética, enfim,
do estético para o crescimento humano. Por incrível que pareça, no entanto,
os caminhos que Peirce percorreu para chegar a isso não têm diretamente a
ver com Schiller. É fato que ele leu com interesse profundo e, como tal, deve
ter absorvido os ideais de Schiller. Mas a estética não compareceu no
pensamento peirceano para atender tardiamente a esses ideais, mas sim às
necessidades impostas pela releitura crítica que Peirce impôs, na primeira
década do século e na maturidade de sua vida, ao seu primeiro pragmatismo,
1878. Peirce havia lido Schiller na adolescência. Cinquenta anos
transcorreram, e toda uma obra prioritariamente voltada para a lógica foi
desenvolvida, antes que ele voltasse a pensar na estética. Se houve qualquer
influência de Schiller sobre ele, trata-se, portanto, daquela misteriosa espécie
de influência que se dá através do esquecimento, o qual, segundo Borges, é a
forma mais profunda da memória.
6. A ESTÉTICA COMO FILOSOFIA E
CIÊNCIA

A obra de Peirce é oceânica, de uma imensidão tamanha que seus limites


se perdem de vista. A maior dificuldade que se tem de enfrentar, quanto se
trata de discutir um dos aspectos de sua obra, é o da decisão quanto ao ponto
de partida, dificuldade que só aumenta quando se está consciente de que os
conceitos de suas muitas teorias estão tão intimamente conectados a ponto de
não permitirem sua atomização sob pena de desfigurá-los. Mas há pontos de
vista e caminhos de entrada privilegiados que permitem a aproximação de
uma parte da obra sem que se percam os nervos de ligação com a topografia
do território restante. Peirce, ele mesmo, por duas ocasiões, fez indicações
mais ou menos seguras desses caminhos.

Nas notas por ele deixadas para uma autobiografia intelectual e que
Kenneth Laine Ketner organizou e trouxe à publicação, em 1983, fica
relativamente claro que o ponto de partida privilegiado, espécie de chave de
abertura para a compreensão de qualquer aspecto de sua obra, está na
classificação das ciências de que, como já foi mencionado, sua arquitetura
filosófica é uma parte. Essa mesma indicação voltou a ser insinuada no longo
manuscrito (L 75) que Peirce escreveu para requerer uma bolsa de estudos ao
Instituto Carnegie. A bolsa foi sumariamente recusada, por razões de
perseguição pessoal e não por falta de mérito, conforme foi
documentadamente demonstrado na biografia de Peirce que J. Brent (1993)
publicou recentemente. De todo modo, o manuscrito ficou e funciona como
um belíssimo roteiro para a leitura das intrincadas interconexões que as partes
da obra entretêm com o todo. Vem daí a insistência enfática que tenho dado à
arquitetura filosófica dentro do diagrama das ciências, em todos os meus
trabalhos sobre Peirce.

Ele passou longos anos tentando chegar a uma classificação das ciências
que o satisfizesse. Conforme já discuti longamente em um outro livro
(Santaella, 1992, p. 59-99), especificamente no capítulo sob o título de
“Tempo da Colheita”, essa satisfação foi difícil de ser atingida porque a
classificação não existia como uma parte solta de sua obra, mas dependia,
para ter qualquer coerência, do encontro de soluções para problemas cruciais
que ele passou anos tentando resolver. A classificação das ciências e sua
arquitetura filosófica estavam completamente baseadas na lógica das três
categorias fenomenológicas. Ora, embora estivesse trabalhando nas
categorias desde seu ensaio inaugural “Sobre uma nova lista de categorias”,
de 1867, foi só na passagem do século que ele veio lhes dar crédito, o que
serviu como guia para a formulação de um diagrama das ciências e, dentro
dele, de sua filosofia, que fosse mais confiável. Numa apresentação muito
sintética, as ciências foram divididas em ciências da descoberta, da revisão e
aplicadas. Priorizando as primeiras, ele as dividiu, em ordem decrescente de
abstração, em: 1. Matemática, 2. Filosofia e 3. Ciências especiais. Quanto
mais abstrata a ciência, mais ela é capaz de fornecer princípios para as menos
abstratas. Do mesmo modo que a filosofia extrai da matemática muitos dos
seus princípios, é da filosofia que as ciências especiais recebem seus
princípios. Estas se dividem em dois grandes tipos: 1. físicas e 2. psíquicas,
apresentando, cada um desses tipos, um grande número de subtipos,
ramificações e gradações. Uma vez que a estética não foi concebida por
Peirce como uma ciência especial, não será dada aqui qualquer atenção para a
discussão do quadro das ciências especiais. É necessário, porém, chamar a
atenção para o fato de que, embora não sendo prioritariamente uma ciência
especial, devem existir, segundo Peirce, estéticas aplicadas, questão que será
detalhada mais à frente.

Dentro do diagrama das ciências, o papel que a filosofia desempenha é


dos mais fundamentais, pois só a matemática é mais abstrata e, portanto, mais
genérica do que a filosofia, de modo que é na filosofia que todas as grandes
questões a respeito da experiência humana são discutidas. Entre essas
questões, certamente se destaca a estética. Daí Peirce ter se recriminado por
só ter enxergado muito tardiamente o papel desempenhado pela estética na
constituição da filosofia. Para se entender esse papel, contudo, é preciso
visualizar a estética no quadro das ciências filosóficas que foi desenhado por
ele, visto que, de acordo com sua concepção pragmatista das ciências, o
significado de cada ciência só aparece na rede de inter-relações que ela
entretém com as demais. Num diagrama, o quadro aparece do seguinte modo:

Filosofia
1. Fenomenologia
2. Ciências Normativas
2.1. Estética
2.2. Ética
2.3. Lógica ou Semiótica
2.3.1. Gramática Pura
2.3.2. Lógica Crítica
2.3.3. Metodêutica
3. Metafísica

Para Peirce, a filosofia em geral tem por tarefa descobrir o que é


verdadeiro, limitando-se, porém, à verdade que pode ser inferida da
experiência comum que está aberta a todo ser humano a qualquer tempo e
hora. A primeira e talvez a mais difícil tarefa que a filosofia tem de enfrentar
é a de dar à luz as categorias mais universais da experiência. Essa tarefa é da
alçada da fenomenologia, uma quase ciência que tem por função fornecer o
fundamento observacional para o restante das disciplinas filosóficas. As
ciências normativas são assim chamadas porque estão voltadas para a
compreensão dos fins, das normas e ideais que regem o sentimento, a conduta
e o pensamento humano. Elas não estudam os fenômenos tal como aparecem,
que dizer, na sua aparência, pois essa é a função da fenomenologia, mas os
estudam na medida em que podemos agir sobre eles o eles sobre nós. Elas
estão voltadas, assim, para o modo geral pelo qual o ser humano, se for agir
deliberadamente e sob autocontrole, deve responder aos apelos da
experiência. Usando os princípios da lógica, a metafísica investiga o que é
real, na medida em que esse real pode ser averiguado na experiência comum.
É dela a tarefa de fazer a mediação entre a fenomenologia e as ciências
normativas, desenvolvendo uma teoria da realidade.

A descrição acima das ciências filosóficas, bastante abstrata na sua


brevidade, deverá ir se esclarecendo e concretizando pouco a pouco na
medida em que as apresentações e discussões forem avançando. No que diz
respeito à fenomenologia, para começar, seu conteúdo deve ficar bem claro
se quisermos compreender as ciências normativas, visto que estas estão
alicerçadas naquela, o que significa que é da fenomenologia que ciências
normativas emprestam seus princípios. Tendo por função observar os
fenômenos encontrados na experiência comum, para extrair deles as mais
simples generalizações, a fenomenologia é o alicerce de toda filosofia, pois
seus conceitos simples e elementares dão sustento a todo o edifício. Não é
por acaso que Peirce passou quase quarenta anos indo e voltando às
categorias, pois sabia que qualquer equívoco, no nível desses conceitos
elementares, colocaria em risco a validade de todas as outras disciplinas de
sua filosofia.

Um dos Primeiros ensaios que Peirce publicou, quando ainda bastante


jovem, foi “Sobre uma nova lista de categorias”. A palavra “nova” tinha
como referência as antigas listas de categorias de Aristóteles, Kant e Hegel,
às quais a sua se contrapunha. O resultado do seu estudo o levou a postular
três e não mais do que três elementos formais de toda experiência,
inicialmente denominados: 1. Qualidade, 2. Relação e 3. Representação. Ele
ficou tão assustado e ao mesmo tempo frustrado com o resultado, na redução
que este impunha à intrincada complexidade da experiência a uma gradação
de apenas três elementos, que, pelo menos ao nível do consciente, o estudo
foi abandonado por muitos anos, suas atenções se voltando para outros
problemas aparentemente não relacionados com as categorias. A despeito do
deliberado abandono, dezoito anos depois, as categorias retornaram com
força redobrada, passando então a se estender do pensamento para toda a
natureza.

O retorno das categorias se explica porque as pesquisas indutivas, que


Peirce realizou nas várias áreas das ciências, foram lhe trazendo, ao longo dos
anos, confirmações empíricas para as categorias. Daí para a frente, ele
passaria a tratá-las com mais respeito. Em 1902, quando sua arquitetura
filosófica estava atingindo um ponto relativamente satisfatório, a doutrina das
categorias passou a pertencer à ciência da fenomenologia, concebida como a
primeira e mais elementar disciplina da filosofia. As categorias foram, a
partir daí, ainda mais generalizadas: a primeira delas, sob o nome de
primeiridade, era ainda qualidade monádica, mas agora entendida no sentido
de talidade indiferenciada, não-analisável. Onde quer que haja indefinição,
acaso, espontaneidade, frescor, originalidade, indeterminação, sentimento
flutuante e desencarnado, aí haverá primeiridade. A segunda categoria,
chamada de secundidade, é díada, dualidade, matéria, oposição, ação-reação,
comoção, afecção, vividez, surpresa, dúvida, conflito, dependência, negação.
A terceira categoria ou terceiridade é continuidade, generalidade,
crescimento, mediação, inteligência, tempo. Em síntese, na primeiridade,
temos o ser da possibilidade qualitativa positiva; na secundidade, o ser do
fato atual; e na terceiridade, o ser da lei que governará fatos no futuro.

Trata-se de categorias formais, não-conteudistas. Não são noções fixas,


mas ideias muito genéricas e frágeis, assemelhando-se a finos esqueletos do
pensamento. Seu grande poder de generalização lhes garante a
universalidade, quer dizer, sua aplicabilidade a qualquer fenômeno de
qualquer espécie que seja, mas sob o preço, aparentemente, de uma
capacidade analítica baixíssima. Se elas são elementos formais de todo e
qualquer fenômeno, quer dizer, de tudo aquilo que de algum modo aparece,
então elas só seriam capazes de nos dizer muito pouco sobre a singularidade
de cada fenômeno, isto é, sobre o que cada fenômeno tem de particular, de
sui generis. Isso seria, de fato, verdadeiro, caso a primeira categoria não fosse
justamente a da qualidade, talidade, daquilo que faz de um fenômeno o que
ele é, e se a segunda categoria não fosse a do aqui e agora, que nos obriga a
perceber o fenômeno na sua irredutível singularidade.

Explicando melhor: as categorias peirceanas estão, sem sombra de


dúvida, no limite da generalidade, a primeiridade correspondendo ao que há
de mais indefinível na vida e no mundo, a secundidade ao que há de mais
existencial, e a terceiridade ao de mais infinito. Concluir, a partir disso,
contudo, que, por serem abstratas e gerais, elas nos levam ao esquecimento,
ou inelutavelmente nos distanciam do qualitativo, singular e existencial, seria
incorrer num equívoco, uma vez que a primeiridade e secundidade lidam
exatamente com esses aspectos dos fenômenos: tanto sua talidade irredutível,
quer dizer, aquilo que faz com que algo seja o que é, irrepetível, quanto sua
existência concreta e material, ocupando um lugar no tempo e no espaço.
Com isso, a fenomenologia peirceana realiza a proeza de integrar o geral no
particular, o concreto no abstrato, dentro de uma lógica ternária que não
busca se livrar do fato bruto, de um lado, além de incluir o acaso e a
indefinição, de outro.

O mais importante neste ponto, no entanto, é se levar em consideração o


papel fundamental desempenhado por essa lógica ternária no conteúdo e
ordenação da arquitetura filosófica de Peirce. Os números, no diagrama dessa
arquitetura, não são meramente ordenadores, mas indicadores do conteúdo
lógico-relacional que está em operação em cada um dos itens do diagrama.
Onde o número 1 estiver, ele indica que a primeira categoria, a da qualidade,
sentimento, acaso, indeterminação, está sendo pressuposta, onde houver o
número 2, o existente, ação, aqui e agora, o universo dual da secundidade está
operando, e onde houver o número 3, o governo da lei, a continuidade e o
crescimento, que são próprios da terceiridade, estão implicados. As
subdivisões indicam que se trata de um tipo de hierarquia analógica,
estruturada de acordo como princípio de recursividade das categorias. Assim
sendo, para ficarmos apenas num exemplo, enquanto a fenomenologia é
apenas primeiro, a estética é o primeiro do segundo, quer dizer, como ciência
normativa ela está marcada pela secundidade, mas, diferentemente da ética,
que é secundidade mais pura, a estética está no nível da primeiridade dessa
mesma secundidade.

Assim sendo, só o esquema por si mesmo já pode servir como fonte para
nossa compreensão de alguns dos caracteres fundamentais que podemos
esperar que a estética tenha. Como ciência normativa, ela é uma ciência
puramente teórica. Sendo aquela que imediatamente sucede à fenomenologia,
são as descobertas desta ciência, no caso, a descoberta das categorias, com
alguma ajuda da matemática, que fornecerão os princípios fundamentais da
estética. O que o esquema por si mesmo não pode explicar é que princípios
são esses, ficando a pressuposto que, para conhecê-los, tem-se que estudar a
fenomenologia, antes de se entrar na estética. Vem daí a rápida descrição que
apresentei acima das categorias, pois, sem isso, ficaria impossível entender o
próprio diagrama. Por pertencer à segunda divisão da filosofia, a estética
possuirá um dualismo fundamental em comum com as outras ciências
normativas, mas diferentemente das outras, ela tem a primeiridade como
traço distintivo. De que consiste o dualismo das ciências normativas é uma
questão que o diagrama por si mesmo não responde, do mesmo modo que
não responde de que consiste o traço específico e distintivo da primeiridade
da estética. Este último, aliás, foi uma das grandes dificuldade que Peirce
teve de enfrentar para chegar à sua concepção da estética.

Para responder às questões que o diagrama deixa em aberto, a revisão que


Peirce impôs ao seu pragmatismo, na primeira década do século passado,
parece ser o caminho mais promissor, especialmente porque essa revisão
esteve indissoluvelmente atada à estruturação das ciências normativas e do
papel que elas passaram a desempenhar na definição do próprio pragmatismo.
Por volta de 1902 ele se deu conta de quão crua tinha sido sua primeira
apresentação da máxima pragmática, em 1878, no seu texto sobre Como
tornar claras as nossas ideias (CP 5.388-410). Tendo identificado o
significado dos conceitos intelectuais com os efeitos acessíveis aos sentidos e
com a ação e reação, ele havia deixado de ver que a ação só pode ser
entendida em termos de propósito e que propósito é essencialmente
pensamento. Essa autocrítica foi precipitada pelas várias versões do
pragmatismo, que foram feitas e popularizadas por outros filósofos da época
e com as quais Peirce radicalmente discordava. Segundo ele, os “raptores do
seu filhote”, nominalistas inveterados, nunca conseguiram entender que
qualquer pragmatismo autêntico deve ser necessariamente realista e que “a
verdadeira natureza do pragmatismo não pode ser entendida sem as
categorias” fenomenológicas (CP 8.256).

Enquanto as versões populares e melosamente humanistas do


pragmatismo tomavam a ação como a finalidade última da vida, a
onipresença, quer dizer, a interação indissolúvel das três categorias lhe dizia
que o fim é algo que dá sua sanção à ação, pertencendo, portanto, à terceira
categoria, a do pensamento. Este envolve ação, mas não pode ser identificado
com ela e vice-versa. A terceiridade é um ingrediente fundamental da
realidade, mas não constitui o todo da realidade. O ser concreto do
pensamento (terceiridade) é dado pela ação (secundidade), do mesmo modo
que a ação é governada pelo pensamento, o qual, além do mais, não pode ser
entendido nominalisticamente, quer dizer, como um conteúdo de que a
consciência é continente. Consciência, para Peirce, pode significar qualquer
uma das três categorias: 1. sentimento, indefinição, o caos do acaso; 2. ação,
surpresa, luta; 3. pensamento, inteligência, aprendizagem. Mas, se ela for
significar pensamento, este está muito mais fora de nós do que dentro. Somos
nós que estamos no pensamento, e não ele em nós. Acrescentando-se que,
desde 1868, Peirce já concebia o pensamento como signo, os pressupostos do
seu segundo pragmatismo começam a se tornar mais claros.

Toda ação supõe fins, mas os fins, sendo gerais, estão no modo de ser do
pensamento-signo que não está simplesmente na consciência, mas permeia
todos os fenômenos. Qualquer outra coisa que qualquer coisa possa ser, ela
também é um signo: esse era o mote peirceano. O universo inteiro está
impregnado de signos. O seu novo entendimento do pragmatismo o levou a
considerar que seu aspecto mais relevante está no fato de que o pragmatismo
busca os fins. Esse fim, ou aquilo que é o bem humano supremo, consiste
num processo de evolução no qual os existentes crescentemente vão dando
corpo aos ideais que são reconhecidos como razoáveis. Esta seria a chave
para a estética, mas Peirce só chegaria com clareza a ela aos 71 anos, quatro
antes de sua morte. Antes disso, muitas incertezas tiveram que ser
trabalhadas.

Desde 1868, numa ascendência evidente da ética sobre a lógica, ele já


postulava que esta última está enraizada num princípio social. Seu interesse
pela ética atravessou toda a sua vida. No entanto, até finais dos anos 80, não
chegou a considerá-la como uma ciência teórica, mas apenas como uma arte
ou talvez uma ciência prática. Essa consideração veio sofrer modificações, de
um lado, porque sua investigação na lógica dos relativos, nessa década,
conduziu-o ao reconhecimento de que a lógica não é autossuficiente. De
outro lado, por volta de 1882, ao tentar diferenciar a moralidade da ética pura,
enxergou a importância de uma ética teórica e começou a desconfiar de uma
conexão muito mais profunda entre a ética e a lógica do que ele supusera até
então.

Curley (1969, p. 91-92) diz que, ao reconhecer que a lógica não é


autossuficiente, Peirce foi provavelmente estimulado a se perguntar se havia
alguma pista para as fundações da lógica na ética. A renovação do seu
interesse na ética foi provocada pela ebulição intelectual que se seguiu à
redescoberta e popularização da noção de pragmatismo realizadas por
William James. Peirce foi forçado a reavaliar sua descrição do pragmatismo
nos seus escritos de 1877-78 à luz da ênfase que James colocava sobre a
significância da máxima pragmática como uma regra para guiar as ações
humanas individuais.

Em 1901, ele se deu conta, tanto quanto James se dera, da importância


dos fins ou ideais na filosofia. Mas, diferentemente deste último, ao recusar
que a finalidade do pragmatismo fosse apenas a de servir a finalidades
individuais, que acabam sempre por se deteriorar em fins individualistas,
enfatizando o papel do autocontrole no pensamento lógico. Peirce postulou
que a ética é o alicerce da lógica. Um ano mais tarde, viria postular que a
ética, por sua vez, está alicerçada na estética e que a esta cabe a descoberta do
ideal supremo, summum bonum da vida humana. Muitas dúvidas e incertezas,
contudo, o assaltavam por essa época, quanto à natureza desse ideal que
caberia à estética trazer à luz. “A estética e a lógica parecem pertencer a
universos diferentes”, ele dizia. “Foi só recentemente que fui persuadido de
que essa aparência é ilusória e de que, ao contrário, a lógica precisa da ajuda
da estética. Mas o assunto não está muito claro para mim” (CP 2.197).

O desenvolvimento da sua teoria do método indutivo como um método


que, se levado suficientemente longe, tende a se autocorrigir conduziu Peirce
ao reconhecimento da importância que o longo curso do tempo tem para as
nossas considerações sobre a verdade e os ideais. Acreditando que o fim ideal
do pensamento nasceria através da experiência futura, ele compreendeu que
as ciências normativas teriam por tarefa examinar as leis de conformidade das
coisas aos fins, estando aí a razão pela qual foram chamadas de normativas.
Em uma passagem esclarecedora, ele afirmava:
Uma ciência normativa é aquela que estuda o que deve ser. Como, então, ela pode diferir da
engenharia, medicina, ou qualquer outra ciência prática? Se, entretanto, a lógica, ética e estética,
que são as famílias das ciências normativas, forem simplesmente as artes do raciocínio, da conduta
da vida, e das belas-artes, então elas não pertencerão ao ramo das ciências teóricas, que são
aquelas que estamos aqui considerando. Não há dúvida de que elas estão proximamente
relacionadas às três artes correspondentes, ou ciências práticas. Mas aquilo que faz a palavra
“normativa” necessária (e não puramente ornamental) é precisamente o fato bem singular de que,
embora essas ciências estudem o que deve ser, isto é, os ideais, elas são, na verdade, as mais
puramente teóricas entre as ciências puramente teóricas (CP 1.281).

Normativo é, assim, o estudo do que deve ser, o que exclui de seu campo
tanto a compulsão incontrolada, quanto o determinismo rígido. Com as
ciências normativas, Peirce estava repensando os fins, propósitos, valores,
metas e ideais que atraem e guiam a conduta deliberada (Santaella, 1993, p.
217). A tarefa das ciências normativas, em síntese, estava em descobrir
“como Sentimento, Conduta e Pensamento devem ser controlados supondo-se
que eles estejam sujeitos, numa certa medida, e apenas numa certa medida, ao
autocontrole exercido por meio da autocrítica e da formação propositada de
hábitos, tal como o senso comum nos diz que eles, até certo ponto, são
controláveis” (MS 655, p. 24).

Embora não tenha chegado nem perto da concepção freudiana da natureza


sexual do inconsciente, Peirce reconheceu o território do inconsciente nas
zonas mentais às quais estamos submetidos e sobre as quais não podemos
exercer nenhum autocontrole. Ora, uma das indicações mais seguras da
insuficiência da lógica está no fato de que ela só lida e só pode lidar com o
raciocínio sob a tutela do autocontrole e da autocrítica, “afastando de seu
campo toda a neblina e errâncias dos pensamentos fora de nosso controle”.
Peirce afirmou (CP 2.119-218) que o raciocínio é o controle consciente do
processo inferencial que se desenvolve através da interpretação do
conhecimento perceptivo. Mas, uma vez que as interpretações são muitas,
várias direções ficam abertas ao raciocínio. Quando se opta por uma direção
entre muitas, essa escolha deve ser posta sob a avaliação crítica da lógica. É
nesse sentido que a lógica é normativa, visto que algum critério de como se
deve pensar precisa ser utilizado para se julgar se um raciocínio é bom ou
mau. Mas esse critério depende da descoberta anterior do propósito último do
pensamento ele mesmo, propósito este que cabe à ética determinar (Santaella,
1993, p. 216).

Se há algo que não podemos desempenhar inconscientemente, é o


raciocínio, pois este é deliberado, crítico e autocontrolado. É por isso que o
raciocínio é uma espécie de conduta submetida à crítica, no sentido de
aprovação ou rejeição. Operações mentais similares ao raciocínio, mas
realizadas inconscientemente, não podem ser chamadas de raciocínio. Uma
vez que este é uma espécie de conduta voluntária e deliberada, somos
responsáveis por suas consequências. Tal conduta, portanto, está sob o
domínio da ética, que é a teoria da conduta deliberada e autocontrolada
(Fann, 1970, p. 39-40 apud Santaella, 1992, p. 124-125).

Na necessidade, que a lógica tem de recorrer à ética para determinar a


natureza do seu propósito, está o principal motivo de sua insuficiência, quer
dizer, de sua falta de autossuficiência. A lógica ocupa-se do raciocínio como
atividade deliberada ou conduta, tendo por objetivo discriminar formas boas
ou más de raciocínio. Ela estabelece criticamente as regras que devem ser
seguidas ao raciocinar, mas precisa recorrer ao propósito ou meta que
justifique essas regras. “A lógica é o estudo dos meios para atingir a meta do
pensamento, mas é a ética que define a meta” (CP 2.198).

Costuma-se definir a ética como a ciência do bem e do mal. Peirce


discordou disso. O que constitui a tarefa da ética é justamente desenvolver e
justificar as razões pelas quais certo e errado são concepções éticas. Para ele,
o problema fundamental da ética não é o que é certo, mas o que estou
deliberadamente preparado para aceitar como afirmação daquilo que quero
fazer, o que tenho em mira, o que busco? Para onde a força da minha vontade
deve ser dirigida?” (CP 2.198). Sendo uma ciência da descoberta e
normativa, a ética não diz respeito aos princípios da justiça, e, menos ainda, à
justiça de qualquer lei específica; nem diz respeito aos valores de vários tipos
de conduta, nem ainda a questões especificamente morais, visto que tudo isso
caberia mais propriamente numa investigação paralela, dentro de uma ciência
ética prática ou aplicada.

Enquanto a moral está diretamente preocupada com o pronunciamente de


um curso de ação como certo e de um outro curso de ação como errado, a
ética, como ciência teórica e normativa, tema ver, isto sim, com as normas e
ideais que guiam nossas ações. É, por isso mesmo, a verdadeira ciência dos
fins. Daí ela ocupar o lugar da secundidade entre as ciências normativas, a
lógica estando para a terceiridade assim como a estética está para a
primeiridade. A ética e a lógica são normativas porque “nada pode ser tanto
logicamente verdadeiro ou eticamente bom sem um propósito para sê-lo” (CP
1.575). Depois de mostrar a relação íntima entre a lógica e a ética, Peirce
avançou na especulação de que a ética, por sua vez, tem seu fim último na
estética.

Embora estivesse usando nomes tradicionais — estética, ética e lógica —,


ele estava claramente dando a esses nomes novos significados cujo núcleo
irradiador de sentido estava na noção de autocontrole. Ora, não há
autocontrole sem autocrítica, do mesmo modo que não há autocrítica sem um
ideal regulador que venha de fora, de uma comunidade capaz de um
crescimento indefinido de conhecimento no longo curso do tempo. A
dependência da lógica na ética fica imediatamente compreensível. O que
surpreende é o fim último da ética e, extensivamente, da lógica ter sido
localizado na estética.

Peirce começou a ver, cada vez com mais clareza, que “não podemos
evitar perguntas sobre o que deve ser a aplicação última, na verdade, a meta
suprema, o ideal maior que nos seduz e no qual devemos nos empenhar”
(Bernstein, 1990, p. l97). Descobrir qual seria a natureza dessa sedução ou
força de atração última na sua pureza é o que ele passou a considerar como
sendo o objetivo da estética, passando a acreditar que seria não apenas
possível responder a essas questões, como seria possível dar a elas respostas
científicas.

As características mais profundas das ciências normativas só poderiam


ser encontradas na estética. Por lidar com o ideal em si mesmo, cuja mera
materialização adensa a atenção da ética e da lógica, a estética deveria conter
o coração, a alma, o espírito das ciências normativas. Essa era a tarefa que
sua estética filosófica e científica deveria se prestar a enfrentar. Mas, para
chegar a soluções satisfatórias, que, aliás, só foram atingidas em 1910, muitos
dilemas tiveram que ser trabalhados, conforme o próximo capítulo tratará de
discutir.
7. OS DILEMAS DA ESTÉTICA

Num dos mais preciosos ensaios sobre as ciências normativas na


interação em que Peirce as colocou, Thomas Curley (1969, p. 99) diz que
todo pensamento lógico implica a adoção de um padrão de ação. A verdade
dessa afirmação não deve estar baseada em nenhum impulso vago para a
consistência, mas em uma determinação ética sobre qual deve ser a aspiração
de toda atividade humana deliberada Sem um raciocínio consciente e crítico
não há deliberação. É nesse sentido que toda atividade humana deliberada
entra dentro do contexto da lógica como exemplo do esforço para atingir um
fim ético. Do mesmo modo que a lógica repousa no alicerce da ética, esta
também está fundada no contexto da ciência da estética. Peirce afirmou que a
ética deve estar alicerçada sobre uma doutrina que, sem de modo algum fazer
considerações sobre como nossa conduta deve ser, divide idealmente os
possíveis estados de coisas em duas classes, aqueles que são admiráveis e
aqueles que não são admiráveis, e assume definir precisamente o que é que
constitui a admirabilidade de um ideal. Seu problema é determinar por análise
o que é que se deve deliberadamente admirar per se, em si mesmo,
independentemente daquilo a que se é conduzido e independentemente das
suas aplicações sobre a conduta humana. Chamo essa investigação de
Estética (CP 5.36).

Num artigo sobre as ciências normativas, tão precioso quanto o de


Curley, Vincent Potter (1966, p. 14, apud Santaella, 1993, p. 219) sintetiza de
maneira esclarecedora a relação das três ciências que lidam com os fins. A
ação humana é ação raciocinada que, por sua vez, é deliberada e controlada.
Mas toda ação deliberada e controlada é guiada por fins, objetivos, os quais,
por seu lado, devem ser escolhidos. Essa escolha também, se for fruto da
razão, deve ser deliberada e controlada, o que, ao fim e ao cabo, requer o
reconhecimento de algo que é admirável em si mesmo para ser almejado. A
lógica como o estudo do raciocínio correto é a ciência dos meios para se agir
razoavelmente. A ética ajuda e guia a lógica através da análise dos fins aos
quais esses meios devem ser dirigidos. Finalmente, a estética guia a ética ao
definir qual é a natureza de um fim em si mesmo que seja admirável e
desejável em quaisquer circunstâncias independentemente de qualquer outra
consideração de qualquer espécie que seja. A ética e a lógica são, assim,
especificações da estética. A ética propõe quais propósitos devemos
razoavelmente escolher em várias circunstâncias, enquanto a lógica propõe
quais meios estão disponíveis para perseguir esses fins.

O ideal que Peirce tinha em mente é o fim último em direção ao qual o


esforço humano deve se dirigir. Trata-se do ideal mais supremo para o qual
nosso desejo, vontade e sentimento deveriam estar voltados. O ideal dos
ideais, o summum bonum, que não precisa de nenhuma justificativa e
explicação. A questão da estética, portanto, é determinar o que pode
preencher esse requisito de ser admirável, desejável, em e por si mesmo, sem
qualquer razão ulterior (CP 2.199). É da estética que vem, assim, a
determinação da direção para onde o empenho ético deve se dirigir, daquilo
que deve ser buscado como ideal mais elevado. Os meios para atingir esse
ideal, contudo, são uma função da lógica, pois dela depende o processo de
raciocínio autocontrolado através do qual o ideal pode ser atingido. Mas que
ideal é esse? Eis a questão.

Cada ser humano, por mais simples e desintelectualizado, por assim dizer,
que ele possa ser, é sempre movido, consciente ou inconscientemente,
explícita ou confusamente, por um ou vários ideais maiores ou menores. São
as metas que buscamos alcançar, os planos feitos a longo prazo, os sonhos
que acalentamos e que conduzem nossos passos. Se as condições de
adversidade e a luta pela sobrevivência nua e crua não se tornaram tão brutas
e assoberbantes a ponto de transformarem o ser humano num mero escravo
do existir cotidiano, se a vida foi benévola o suficiente para não machucar o
corpo ou o espírito com dores irremediáveis, bem do fundo do nosso ser, vem
uma questão. Não importa quão vago, incerto ou inadvertido possa ser o
modo como ela se apresenta, trata-se sempre daquela interrogação crucial que
não cessa de interpelar cada um de nós: “o que justifica a minha vida?”.

As respostas que buscamos, mesmo sem saber, os caminhos que


trilhamos, quase sempre errantes, apontam para algo: um ponto mais ou
menos indefinido, muito ou pouco além de nós. A religião, as grandes ou
pequenas causas, a ânsia do poder ou do dinheiro são as adesões pessoais
mais comuns. Em termos sociais, coletivos, a universalidade do ideal, que
sempre foi meta e alvo da filosofia, encontrou uma forma mais definida de
expressão na paradoxal liberdade kantiana, vindo a se traduzir no ideário da
“liberdade, igualdade, fraternidade”. De modo geral, a ética tem sido o
território de alocação do ideal coletivo supremo. Para simplificar a
complexidade dessa questão que, aliás, ficou bastante mais complicada
depois que a psicanálise colocou nela o seu dedo (Lacan, 1988), para
chegarmos mais direta e rapidamente ao ponto, de acordo com Peirce — e aí
está um aspecto radical de originalidade no seu pensamento, e de sua
consequente diferença em relação ao passado — sem abandonar as
exigências da lógica, nem o chamamento da ética, o ideal que move o
empenho ético está além da ética. O bem supremo, universal, válido para a
humanidade como força de atração última, o admirável sem qualquer razão
ulterior não é determinado pela ética, mas pela estética, da qual a ética é uma
especificação. Que ideal é esse? De que consiste esse admirável? É com isso
que Peirce se debatia, quando o reconhecimento da insuficiência da lógica o
levou para a ética. Mas a descoberta da generalidade desta, como ciência
puramente teórica, que não se confunde com a moralidade, o levou para a
estética. Daí ele ter mencionado com ironia, por essa época, que, por estética,
ele não queria significar “leite e água e açúcar” (CP 8.255).

Diferentemente de Curley (1969), e mesmo de V. Potter (1966) e B. Kent


(1987), que também escreveram sobre a estética peirceana, na discussão que
será apresentada a seguir não será seguida a ordem cronológica dos escritos
que Peirce dedicou ao assunto. Para facilitar a vida e o entendimento do
leitor, preferi organizar as ideias em função da coerência dos argumentos e
não necessariamente na sequência temporal dos dilemas que Peirce foi
enfrentando e tentando resolver.

Por ser uma ciência em nível de primeiridade, algumas pistas do que a


estética deve ser já podem ser encontradas aí. Em primeiro lugar, para ser fiel
ao seu nível próprio de primeiridade, ela deve ter um aspecto monádico,
ligada às ideias de indeterminação, acaso, o imediato na sua imediaticidade,
qualidade, sentimento, originalidade, fresco, desmaterialização. Mas,
enquanto a fenomenologia é uma ciência, ou melhor, uma quase ciência
puramente em nível de primeiridade, daí ser apenas quase uma ciência, a
estética, por sua vez, é uma ciência normativa, que visa aos fins, estando,
consequentemente, sob a égide da secundidade, daquilo que age sobre nós, e
ao qual, de uma forma ou de outra, mais ativa ou mais passivamente, nós
respondemos. Estando ligada aos fins, ela deve, consequentemente, falar aos
propósitos humanos, a palavra “humanos” significando pertencente à
comunidade da espécie humana, do que decorre que esses fins não podem ser
egoístas, capazes de satisfazer apenas os desejos de qualquer indivíduo
particular, mas devem ser universalmente desejáveis.

Além de estar marcada pela secundidade, a estética também está numa


relação inseparável com as outras duas ciências normativas. Isso está de
acordo com uma das descobertas da fenomenologia que diz que as categorias
são onipresentes, quer dizer, em qualquer fenômeno, qualquer que seja, há
um dosagem simultânea de primeiridade, secundidade e terceiridade. A
exclusividade e exacerbação de apenas uma das categorias são, segundo
Peirce, não só ilusórias, mas a fonte do todas as distorções e fanatismos.
Assim sendo, embora um desses níveis possa dominar, ele nunca aparece em
estado puro. O fato das ciências normativas estarem distribuídas em três
níveis indissolúveis — estética ou primeiridade ética ou secundidade e lógica
ou terceiridade — é um indicador da presença das três categorias operando
no seu interior. Mas essa lógica da inseparabilidade nos leva também a
esperar que, dentro de cada uma dessas ciências, haja uma interação das três
categorias. Assim sendo, embora a estética em si mesma, como ciência
normativa, esteja sob a dominância da secundidade, e, dentro dessa
secundidade, esteja em nível de primeiridade, deve haver nela algo de
terceiridade. O quê? Cumpre examinar.

Além disso tudo, há ainda uma questão que Peirce não podia
negligenciar: o ideal que a estética teria por tarefa determinar não poderia ser
incompatível com as descobertas que ele, no período da elaboração das
relações entre as ciências normativas, estava fazendo a respeito de seu novo
pragmatismo, que, de resto, só se definiria mais acabadamente na medida
mesma em que o ideal estético encontrasse alguma definição. De acordo com
o pragmatismo, esse ideal não deveria ser um resultado estático, mas algo que
tivesse um caráter processual, um fim que pudesse sempre antecipar uma
melhoria constante e interminável nos seu resultados. Conforme já foi
mencionado no capítulo anterior, o pragmatismo já lhe ensinara que o ideal
deve se constituir num processo de evolução através do qual os existentes
mais e mais dão corpo a uma classe de gerais, que no curso do seu
desenvolvimento, mostram-se razoáveis (CP 5.433). Não é difícil ver que os
ventos do passado não sopravam a favor das exigências a que a estética
peirceana devia atender, nem os ventos idealismo metafísico, de um lado,
nem os de seus subvertores, de outro.

Peirce estava convicto de que a função da estética havia sido obstruída e


inibida por sua definição como uma teoria do belo. A concepção do belo não
é senão o produto dessa ciência, e uma alternativa bem inadequada é aquela
de tentar dominar o que é que a estética busca tornar claro. Daí ele ter
localizado o ideal estético no admirável. Veja-se como essa ideia foi
discutida:
A ética pergunta para que fim todo esforço deve ser dirigido. Essa questão obviamente depende da
questão sobre o que deveria ser aquilo que, independente do esforço, nós gostaríamos de
experimentar. Mas, para apresentar a questão da estética, na sua pureza, devemos eliminar dela
não apenas qualquer consideração acerca do esforço, mas todas as considerações sobre ação e
reação, incluindo toda consideração acerca de nossa recepção do prazer, tudo, em síntese, que
pertença à oposição entre ego e não-ego. Não temos em nossa língua uma palavra com a
generalidade requisitada. O grego kalós (“admirável”), o francês beau apenas se aproximam, sem
atingi-la diretamente na testa. Fine seria uma substituta patética. Beautiful é mau, porque um modo
de ser kalós depende essencialmente de a qualidade ser não-bela. Talvez, contudo, a frase “the
beauty of the unbeautiful” (o belo do não belo) não fosse chocante. Mas “beauty” (beleza) é ainda
muito superficial. Usando-se kalós, a questão da estética é — Qual é aquela qualidade que, na sua
presença imediata, é Kalós? Desta questão a ética deve depender, do mesmo modo que a lógica
depende da ética. A estética, portanto, embora eu a tenha negligenciado terrivelmente, aparece
possivelmente como a primeira propedêutica para a lógica, e a lógica da estética aparece como
uma parte distinta da ciência lógica que não deve ser omitida (CP 2.199).

Essa passagem é importantíssima porque ela nos leva a assistir à luta que
Peirce travava para encontrar, ensaiando em várias línguas, a palavra exata
que correspondesse ao nível de generalidade máxima de uma qualidade
imediata, positiva e simples na sua imediaticidade, independente de qualquer
pressão, dualidade ou materialização, de qualquer efeito, qualquer reação,
vividez ou afecção. Enfim, algo perfeitamente livre e indeterminado na sua
liberdade, puramente admirável, em si e por si mesmo, sem qualquer razão
ulterior que lhe tolhesse a liberdade de ser, sem nenhum imperativo, de
qualquer espécie que seja, nem o imperativo frágil, e à primeira vista
imperceptível, da própria beleza.

Do mesmo modo que a ética não está diretamente preocupada com o que
é certo e errado, mas sim com aquilo que deveria ser o alvo do esforço
humano, a estética não está voltada para o que é belo ou não-belo, mas sim
para aquilo que deveria ser experimentado por si mesmo, em seu próprio
valor. Peirce sabia, nos diz Curley (1969, p. 95), que é difícil, quase
impossível, descrever verbalmente a qualidade de uma experiência como
essa, experiência que, quase impossivelmente, não deveria ter nenhum traço
de dualidade. Que a beleza não podia ser essa qualidade, nem mesmo a
beleza etérea, eterna e imutável de Platão, fica suficientemente claro, quando
compreendemos que o belo pressupõe necessariamente o seu contrário,
sendo, portanto, dual. Ora, essa qualidade e essa experiência, a do admirável,
que Peirce lutava com as palavras para apresentar, corresponde justamente,
como já foi visto, ao ideal em direção ao qual todo empenho ético deve se
dirigir.

Outro conceito que a tradição havia tornado tão pesado quanto o do belo,
na sua aparência de leveza, era o conceito que, casado com a beleza,
compunha o par mais poderoso da estética: o prazer. Em uma dentre as
inúmeras passagens em que Peirce refutou a natureza de sentimentos
elementares para a dor e o prazer, imortalizados por Kant, a discussão tem
início do seguinte modo:
Se a distinção entre Boa ou Má Lógica é um caso especial [da distinção entre] Boa e Má Moral, no
mesmo ato, a distinção entre Boa e Má Moral é um caso especial da distinção entre o Bem e o Mal
estético. Ora, admitir isso não é apenas admitir o hedonismo, o que nenhum homem na integridade
dos seus sentidos, e que não tiver sido cegado por alguma teoria ou algo pior, pode admitir, mas,
também, tendo a ver com a distinção essencialmente Dualista do Bem e do Mal — que é
manifestamente um caso da Categoria do Segundo —, busca-se a origem de tal distinção no
Sentimento Estético, que pertence à Categoria do Primeiro (CP 5.110).

A objeção aí exposta tem várias implicações. Em primeiro lugar, a


dependência da ética sobre a estética parece pressupor que o bem e o mal são,
ao fim e ao cabo, redutíveis às categorias hedonistas daquilo que é
imediatamente prazeroso ou doloroso. Há muitos problemas aí envolvidos,
mas o mais importante deles reside numa interpretação equivocada dos
termos prazer e dor. Em primeiro lugar, prazer e dor são signos de satisfações
e desejos; eles funcionam bem quando usados inteligentemente, mas seria um
erro confundi-los com os desejos dos quais eles são signos. Eles são muito
suscetíveis à mudança e, em si mesmos, não carregam qualquer razão
saudável para se agir de um certo modo, dada a influência que eles exercem
no modo puramente Brutal de agir, só podendo ser considerados motivos
racionais, na medida em que são signos verídicos de necessidades reais
(Kent, 1987, p. 159).

Em segundo lugar, “é um grande erro supor-se que os fenômenos de


prazer e dor são prioritariamente fenômenos de sentimento” (CP 5.112). Não
vindo diretamente nem da razão nem do sentimento, qual é, enfim, o estatuto
do prazer e da dor? Antes de tudo, vale considerar que a dor em si mesma,
per se, no nível de primeiridade, no qual, do mesmo modo que qualquer outro
fenômeno, a dor também se define, ela não é nada além de um puro
sentimento, não envolvendo, como tal, nenhuma relatividade, dualidade ou
pluralidade de qualquer espécie que seja. Ela não é nada mais do que parece
ser, isto é, uma qualidade de sentimento sui generis. Mas esse aspecto
primeiro não esgota, de modo algum, sua natureza. O mesmo ocorre com o
prazer, com a diferença de que, por ser mais complexo do que a dor,
dificilmente pode ser entrevisto no seu aspecto puramente monádico. Assim
sendo, na complexidade de suas naturezas, prazer e dor foram descritos por
Peirce do seguinte modo:
Esses fenômenos não consistem dominantemente de qualquer Sentimento-qualidade comum de
Prazer e de qualquer Sentimento-qualidade comum de Dor, mesmo que se considere que há tais
Qualidades de Sentimento; mas eles principalmente consistem [de uma] dor [que está] na Luta
para dar a um certo estado da mente o seu quietus, e [de um] prazer [que se encontra] num modo
de consciência peculiar aliado à consciência de se fazer uma generalização, na qual não o
Sentimento, mas, ao contrário, uma Cognição é o principal constituinte (CP 5.113).

Enquanto o sentimento da dor, também aliado ao estado mental da


dúvida, está dominantemente sob o tutela da secundidade, devido à reação
que ele provoca no sujeito, que sempre luta por se livrar dele, o sentimento de
prazer, por seu lado, que foi aliado ao estado mental da crença, entra dentro
do predomínio da terceiridade, uma vez que há, no prazer, uma generalização
cognitiva. No entanto, por serem sentimentos que têm uma natureza
opositiva, evidentemente dual, eles não poderiam se colocar sob a
dominância da primeiridade, na qual deveria estar segundo Peirce, a
característica primordial do sentimento estético, muito mais do que na
secundidade.

Além do equívoco quanto à natureza interna do prazer, localizar nele a


meta última do estético parecia inaceitável a Peirce. É certo que o prazer é o
único sentimento perfeitamente auto-satisfatório, o que explica sua longa
carreira, por tantos séculos, como personagem principal da estética, sem
deixar de lembrar a importância do papel que ele passou a desempenhar na
teoria psicanalítica de Freud. Contudo, a irrefreável gratificação egoísta de
um desejo, que está implícita no prazer, como summum bonum da estética,
soava abominável aos ouvidos de Peirce, pois isso levaria à doutrina de que
todos os modos mais elevados de consciência, com os quais estamos
familiarizados dentro de nós, tais como o amor e a razão, só podem ser bons
na medida em que estiverem a serviço do prazer individual. Na sua defesa de
uma primeiridade na estética, que, nem de longe, se confundia com o prazer,
ele dizia:
Todo pronunciamento sobre o Bem e o Mal certamente entra dentro da categoria do segundo; e,
por essa razão, tal pronunciamento chega à voz da consciência numa absolutização da secundidade
que não encontramos nem mesmo na lógica, e, embora eu ainda seja um ignorante em estética,
aventuro-me a dizer que o estado mental estético é tão mais puro quanto mais perfeitamente
ingênuo, despido de qualquer pronunciamento crítico, e o crítico de estética funda seus
julgamentos sobre o resultado de ter recuado a tal estado ingênuo puro — e o melhor crítico é o
homem que o treinou para fazer isso do modo mais perfeito (CP 5.111).

Entretanto, para defender a estética na sua dimensão mais pura, Peirce


acabou por se deparar com problemas que não deviam ser simplesmente
contornados, mas atravessados. Se o summum bonum da estética é uma
qualidade de sentimento, então, ao fim e ao cabo, a ética e, extensivamente, a
lógica estariam fundadas sobre o sentimento. Ora, a qualidade imediatamente
presente do sentimento não pode ser submetida a nenhuma crítica, visto que
simples qualidades não são boas nem más, elas simplesmente são o que são
em si mesmas, independente de qualquer outra coisa. Em si mesma, por
exemplo, no seu puro ser de qualidade, a cor vermelha pode ser considerada
má ou boa? E as notas lá, ou si ou dó sustenido, o que têm a ver com o bem
ou o mal? Peirce se aproximou desse problema por vários ângulos. Em
primeiro lugar, ele concluiu que, na medida em que um objetivo e
consistentemente perseguido, esse objetivo não pode ser criticado (CP 5.132-
3). Mas, se essa conclusão for levada para a ética, ela colocará o egoísta
numa posição eticamente coerente.

Numa outra alternativa de análise para o mesmo problema, Peirce


argumentou que o ser humano só é levado a fazer discriminações porque
nossas simpatias são limitadas ou porque introduzimos considerações morais
nas coisas, de modo a guiar nossas ações de acordo com ideias moralmente
apropriadas e contra as ideias que são consideradas inadequadas para certos
propósitos (CP 5.127). Ora, o ideal estético, elo pensou, deveria ser admirado
deliberadamente em si mesmo, não importando para onde ele nos conduz.
Entretanto, um tal sentimento de admiração, que anula todas as distinções,
destruiria o caráter essencialmente normativo tanto da ética quanto da lógica,
uma vez que ambas estariam fundadas sobre uma ciência que não pode fazer
qualquer distinção entre o bom e o mal, além de que a estética, ela mesma,
perderia também o atributo de secundidade que, como ciência igualmente
normativa, ela não poderia perder.

Numa tentativa de recuperação do aspecto de secundidade da estética,


Peirce foi levado a considerar o admirável à luz do prazer e desprazer como
qualidades de sentimento. A questão do sentimento ser prazeroso ou não
reside na atração ou repulsão que ele exerce sobre nós, de modo que prazer e
desprazer são, imediatamente, caracteres da ação que o sentimento excita
(MS 283, p. 35 apud Kent, 1987, p. 54). Então seria possível distinguir entre
o que nos atrai e aquilo que repelimos, o atraente e o repulsivo. Esforço e
resistência, os dos pólos caracterizadores da secundidade, estariam aí
envolvidos, o que daria à estética exatamente aquilo que ele estava buscando.
Contudo, para garantir a harmonia do conjunto, o mesmo tipo de
secundidade, que é caracterizador da estética, deveria ter seu paralelo nas
outras duas ciências normativas. Ora, esse tipo de dualismo, entre o atraente e
o repulsivo, não poderia ser estendido para a ética e a lógica.
Buscando incansavelmente a saída para o impasse, Peirce chegou a uma
conclusão bastante instigante, mas, infelizmente, ainda não inteiramente
satisfatória. Ele passou a conceber o sentimento estético como um tipo misto
de sentimento, localizado num ponto privilegiado entre a mera qualidade do
sentir e a atração intelectiva, um peculiar tipo de prazer produzido por uma
“simpatia intelectual”. Negando, assim, que o admirável da estética seja
completamente uma questão de sentimento imediato, afirmava:
É o prazer estético que nos interessa aqui, e ignorante como sou em Arte, tenho, não obstante, uma
boa capacidade para o prazer estético; e a mim parece que, se no sentimento estético nós
atentamos para a totalidade do Sentimento — e especialmente para a Qualidade do Sentimento
total presente na obra de arte que estamos contemplando —, trata-se, no entanto, de uma espécie
de simpatia intelectual, um senso de que há um sentimento que se pode compreender, um
sentimento razoável. Não consigo dizer exatamente o que ele é exatamente, mas é uma
consciência pertencente à categoria da Representação, embora apresentando algo na categoria da
Qualidade de Sentimento (CP 5.113).

De acordo com essa afirmação, a estética não é mais uma questão de pura
primeiridade, embora esteja relacionada a essa categoria. A simpatia
intelectual seria fruto, assim, dessa bela mistura entre primeiro e terceiro de
que a obra de arte seria um dos exemplares mais privilegiados, mixagem mais
que perfeita da gratificação, prazer, felicidade, e até mesmo júbilo, alegria,
que se esgotam em si mesmos, com a razão que sempre olha para a frente,
para um futuro sem fim, esperando infinitamente melhoria e o
aperfeiçoamento dos seus resultados (CP 1.611-14).

O aparecimento do intelecto introduz, assim, o elemento necessário para


as distinções duais que as ciências normativas devem fazer à luz de processos
de raciocínio. Peirce estava aqui já bastante próximo da solução a que ele
finalmente chegaria. No entanto, há distinções duais que também a estética
deve fazer à luz do intelecto. Não foi por acidente que ele foi levado à
conclusão de que o exame do admirável deve resultar de uma avaliação
crítica e consciente da estética. Essa questão o conduziria, felizmente, para
uma direção que livraria sua estética do exclusivismo subjetivo, pois
deslocaria sua atenção até então restrita à qualidade de sentimento para a
qualidade ou peculiaridade do objeto que suscita o sentimento do admirável.
Para isso, a pergunta a ser respondida era a seguinte: “O que significa o bom
estético?”.

Curley (1969, p. 102) diz que Peirce estava bem consciente de seu
conhecimento limitado de estética, para ser capaz de responder ao bom
estético satisfatoriamente, por isso ele teve o bom senso de colocar nos seus
pensamentos o rótulo de “sugestões”. A primeira delas é a de que o objeto
esteticamente bom deve ser definido na categoria da primeiridade, o que,
aliás, já retira, de saída e felizmente, qualquer possibilidade de se
encontrarem respostas precisas e definidas sobre o bom estético: “À luz das
categorias, devo dizer que um objeto, para ser esteticamente bom, deve ter
uma multiplicidade de partes relacionadas umas às outras de um modo tal que
confere uma qualidade imediata, simples e positiva à sua totalidade” (CP
5.132).

A afirmação acima sugere que qualquer objeto unificado seria


esteticamente bom, além de que novamente, também sob o ângulo do objeto,
o dualismo, necessário à estética, mais uma vez, desapareceria. Pensando
nessa dualidade, Peirce concluiu que não há o esteticamente mal; e, “desde
que por bom, nesta discussão, nós estamos nos referindo meramente à
ausência do mal ou de falhas, não haverá algo como o bom estético. Só
podem existir qualidades estéticas variadas” (CP 5.132). Os problemas mais
evidentes que surgem daí relacionam-se, em primeiro lugar, à ausência de
razão para se preferir um objeto estético a outro e, por extensão, um ideal
estético a outro, o que deixaria a estética novamente órfã da secundidade. Há
dois modos de solucionar esse problema. De um lado, passando para a ética a
tarefa de testar se o ideal estético pode ser estabelecido como o fim último
para o qual toda atividade humana deveria ser dirigida. Mas, assim, a estética
perderia sua característica fundamental de determinar qual seria o ideal
supremo.

O segundo modo reside na consideração de que, sendo o propósito da


estética definir o que é bom em geral, isso resgataria, sob um certo ângulo, a
dimensão de secundidade que lhe é própria, pois seu fundamental dualismo
estaria na tarefa de descobrir leis relacionam os sentimentos ao que é bom de
um modo geral. Além de atar as duas pontas até então analisadas de modo
separado, a saber, a qualidade de sentimento e o objeto que a suscita, a
conclusão acima começou a dirigir Peirce para a reta final da solução a que
ele chegaria. Se o ideal estético estivesse ligado a um conjunto particular de
circunstâncias, ele não seria um ideal último que deve se colocar como força
condutora da atividade humana, independentemente do fluxo dos
acontecimentos e da evanescência das circunstâncias. A sugestão peirceana
correu então na seguinte direção:
A fim de garantir a imutabilidade sob quaisquer circunstâncias, sem o que não seria um fim
último, este deve ter como requisito estar de acordo e o desenvolvimento livre da qualidade
estética do próprio agente. Ao mesmo tempo deve estar também de acordo como requisito de não
tender, com o tempo, a ser perturbado pelas reações do mundo lá fora sobre o agente, mundo esse
que está pressuposto na própria ideia de ação. Parece claro que essas duas condições só podem ser
atendidas simultaneamente se a qualidade estética em direção à qual o desenvolvimento livre do
agente tende e a ação última da experiência sobre ele forem partes de uma mesma totalidade
estética (CP 5.136).

Para ser verdadeiramente final, a meta deve preencher esses requisitos.


Qual pode ser essa meta, que, sem ignorar que o mundo lá fora produz
interferências inevitáveis no agente, incorpora o desenvolvimento livre do
agente, ao mesmo tempo em que garante que essa liberdade não será, a longo
prazo, perturbada pelas imprevisíveis e inevitáveis vicissitudes do mundo?
Além disso, e mais importante ainda, a qualidade que atrai o
desenvolvimento livre do agente é a contraparte no sujeito de uma qualidade
estética total cujo outro lado está na ação última que a experiência exerce
sobre ele. Encontrar aquilo que pode atender a todos esses atributos parece
estar perto do impossível.

O reexame crítico do pragmatismo havia levado Peirce a considerar, em


primeiro lugar, que o ideal pragmático não deveria satisfazer os desejos de
qualquer indivíduo particular, mas estar voltado para os propósitos humanos
coletivos. Para responder a essa exigência, preenchendo o requisito de ser
uma meta completamente satisfatória, o ideal deve ser evolutivo, estando seu
significado pleno apenas num futuro distante sempre concretamente adiado.
Um futuro idealmente pensável, mas materialmente inatingível, porque só
aproximável assintoticamente. O pragmatismo havia descoberto que, no
processo de evolução, aquilo que existe vai, mais e mais, dando corpo a
certas classes de ideais que, no curso do desenvolvimento, se mostram
razoáveis. Esse ideal foi caracterizado como “o crescimento contínuo da
corporificação da potencialidade da ideia” (MS 283, p. 103 apud Kent, 1987,
p. 158).

Ora, as ideias são transmitidas na mente, de um ponto a outro no tempo,


por meio do pensamento, quer dizer, por meio de signos imateriais ou
imaginários, conforme Kent prefere chamá-los. Mas as ideias não são
pensamentos materializados; elas são “uma certa potencialidade, uma certa
forma que pode ou não ser encarnada num signo externo ou interno”. Pois
bem, continuou Peirce (MS 283, p. 4), para que a função do signo seja
preenchida, e para haver o crescimento da potencialidade da ideia, sua
corporificação deve se dar não apenas através de símbolos, mas também
através de ações, hábitos e mudanças de hábitos. Ora, na potencialidade, há
primeiridade, na corporificação, há secundidade, e na ideia, há terceiridade.
Os três juntos compõem aquilo que Peirce passou a considerar como o
summum bonum estético, coincidente com o ideal pragmatista último: o
crescimento da razoabilidade concreta. Ao mesmo tempo em que engloba as
três categorias, esse ideal tem de levar em conta o autocontrole na aquisição
de novos hábitos como método através do qual o ideal pragmático pode ser
atingido. O modo como essa solução preenche todos os requisitos, que Peirce
havia estipulado para a meta estética do admirável, será a seguir examinado.

Uma vez que a razão é a única qualidade livremente desenvolvida através


da atividade humana do autocontrole, em outras palavras, estando na
autocrítica a essência da racionalidade, Peirce identificou o ideal estético, fim
último do pragmatismo, com o crescimento da razoabilidade concreta, não a
razoabilidade abstrata, perdida na neblina do ideal, nem a razoabilidade
estática que, como tudo que é estático, termina em opressão, mas a
razoabilidade concreta em crescimento, em processo, em devir. Segundo
Bernstein (1990, p. 200-203), “Peirce nunca recuou em sua sólida crença de
que há uma verdade a ser conhecida e que nós mesmos somos participantes
do desenvolvimento da Razão que está sempre em estado de incipiência e
crescimento. Somos participantes da criação do universo (...). A única coisa
que é desejável sem razão para o ser é apresentar ideias e coisas razoáveis”.
Isso quer dizer que somos responsáveis pelo alargamento e realização da
razoabilidade concreta; é através de nossos atos, feitos e pensamentos
encarnados que ela vai se concretizando, rumo a um final em aberto cujo
destino não podemos saber de antemão. Vem daí um dos motivos pelos quais
Peirce afirmou estar ressuscitando Hegel, se bem que numa roupagem
estranha. Razoabilidade, para ele, não se confunde, assim, com razão
exclusivista, mas com uma racionalidade que incorpora elementos de ação,
sentimentos, assim como de todas as promíscuas misturas entre razão, ação e
sentimento, que aparecem na comoção, afecção, prazer, querer, vontade,
desejo, emoção…

Peirce estava ciente de que não há nenhuma garantia de que o ideal


estético-pragmático possa ser atingido. A única regra da ética, nessa medida,
é aderir a esse ideal e ter esperança de que ele poderá ir sendo aproximado,
pouco a pouco e no longo curso do tempo. Uma vez que a conduta deliberada
é conduta guiada pelo ideal estético, os pensamentos devem ser avaliados em
termos de sua contribuição para o crescimento da razoabilidade no mundo
(Curley, 1969, p. 103-104). A palavra “concreta” indica que a razoabilidade
pode ir se atualizando através de nosso empenho resoluto para favorecer seu
crescimento. Esse empenho é ético, meio através do qual a meta do ideal
estético admirável se materializa, do mesmo modo que a Lógica é o meio
através do qual a meta ética se corporifica (Santaella, l992, p. 129).

Há dois aspectos importantes que ainda restariam para discussão a partir


deste ponto. O primeiro deles diz respeito ao alargamento de sentido pelo
qual Peirce fez passar as ciências normativas e sua noção de mente. Conceber
a mente como algo restrito apenas à mente humana seria alimentar a
tendência para a perpetuação das separações cartesianas entre mente como
imaterial e matéria como puramente quantitativa. Evitando dar reforço à
posição nominalista de que todo pensamento é uma construção arbitrária da
mente humana, Peirce expandiu significativamente a noção de mente para
concebê-la como um atributo, uma “tendencialidade” para o crescimento,
aprendizagem, que já está presente num protoplasma e que se espraia por
toda a natureza em nível micro e macro. O assunto é demais complexo,
pressupondo a entrada mais profunda na semiótica e metafísica, não podendo
ser perseguido neste livro. O tópico só foi mencionado porque esse
alargamento, no modo de conceber a mente, como co-extensiva à terceiridade
ou generalidade, trouxe consequências para o ideal estético do crescimento da
razoabilidade concreta. Para sermos breves, basta dizer que o fato de a
terceiridade não ser um privilégio humano, levou Peirce a postular — sem
resvalar por nenhum idealismo racionalista ou panteísta ou religioso — uma
harmonia essencial entre a natureza e o homem, um concerto estético entre a
alma do universo e a alma humana. Dada a complexidade desse assunto, ele
será guardado para uma outra ocasião.

O segundo aspecto diz respeito à indagação mais do que natural que deve
estar na cabeça do leitor, sobre os modos como o crescimento da
razoabilidade concreta pode se dar. Já tive oportunidade de formular, em
outras ocasiões, a hipótese de que a arte e a ciência devem ser os meios
privilegiados para esse crescimento. A questão da ciência, tive a ocasião de
aprofundar num outro trabalho (Santaella, 1993). Quanto à relação da estética
peirceana com as artes, esse é justamente o assunto que será apresentado no
próximo capítulo.
8. A ESTÉTICA E AS ARTES

Nadando contra a corrente da tradição, Peirce não concebeu a estética


como uma ciência do belo. Buscou uma qualidade mais elementar e menos
dual do que o belo, encontrando-a em algo que pode ser aproximadamente
traduzido na palavra “admirável”. Buscando incessantemente o atributo do
admirável, ele acabou por localizá-lo no crescimento da razoabilidade
concreta, conforme foi discutido no capítulo anterior. Esse atributo temo
poder de integrar, de um só golpe, a continuidade da terceiridade, expressa no
crescimento, a atualização da secundidade, que se expressa na concreção, e a
potencialidade da primeiridade, expressa na razoabilidade. De fato, para
Peirce, não há nada mais plástico e passível de crescimento do que a razão,
visto que ela está sempre em estado de incipiência e incompletude.
Razoabilidade é, assim, sinônimo de potencialidade da ideia, algo dinâmico,
sempre em processo de materialização em signos internos ou externos.

Localizado o ideal estético no crescimento da razоabilidade, algumas


questões ficam em aberto. Para analisar uma dessas questões. B. Kent (1987,
p. 160-163) apresenta a seguinte argumentação. Se o pragmatista aceita que o
summum bonum está na adoção de um ideal por si mesmo, sem qualquer
razão ulterior, em que sentido esse ideal é apropriado a uma ciência que
permite às pessoas discriminar criações da imaginação e sentimentos em
geral? Se Peirce estava certo em manter que as ciências normativas
descobrem leis que relacionam os fins aos sentimentos, no caso da estética, à
ação, no caso da ética, e ao pensamento, na lógica, então a tarefa da estética
não pode estar confinada apenas à descoberta do summum bonum estipulado
pelo pragmatismo.

A resposta para o problema acima está, segundo Kent, escondida numa


sequência alternativa do manuscrito 283 (p. 35), onde Peirce afirmava que
devia haver uma ciência do idealmente admirável. Aquilo que é admirável na
sua apresentação sensória terá sua dignidade degradada, se não for
reconhecido como um caso especial do idealmente admirável de um modo
geral. Esse insight permitiu que Peirce incorporasse dentro da estética tanto o
ideal pragmático quanto uma determinação especial desse ideal, apropriada à
discriminação do sentimento. A seguir, Kent apresenta uma descrição
sintética do conteúdo dessa disciplina, de uma maneira que nunca foi
apresentada por Peirce, mas que ela julga estar de acordo com as pistas que
ele deixou nos vários manuscritos por ela pesquisados. Vale a pena sintetizar
aqui as sugestões de Kent, pois elas ajudarão a recordar, de maneira didática,
as conclusões do capítulo anterior, acrescentando, agora, esse segundo lado
da estética que Kent chama de determinação especial do ideal.

A estética é uma ciência teórica na qual o fenômeno é examinado à luz de


nossa habilidade de interagir com ele. Aí reside o dualismo fundamental que
a estética compartilha com as outras duas ciências normativas. Como a
primeira dentre as ciências normativas, ela examina o fenômeno na sua
primeiridade, dividindo-se em: 1. fisiológica, 2. classificatória e 3.
metodológica.

1. Fisiológica. A primeira tarefa da estética está na investigação do ideal


geral. Levando em conta as descobertas da fenomenologia, que a estética
deve, de fato, levar em conta, as três categorias do fenômeno, primeiridade,
secundidade e terceiridade, devem comparecer nesse ideal geral. No seu nível
de primeiridade, o ideal deve ser algo que satisfaça em si mesmo, sem se
reportar a qualquer outra coisa. Já vimos que um estado de puro prazer,
embora preencha esse requisito, deixa de preencher o outro requisito de estar
em relação com as outras duas categorias. Só um ideal que esteja
continuamente em evolução pode preencher ambas as exigências, além de
que deverá ser um ideal com o qual os seres humanos possam interagir.
Peirce acabou por encontrar o que buscava no ideal pragmático do
crescimento contínuo da corporificação da potencialidade da ideia, e chegou
até a sugerir que, havendo uma afinidade entre a alma do universo e a alma
humana, o ideal perseguido pelos humanos deve apresentar alguma
coincidência com os desígnios da natureza.

Entretanto, o primeiro nível da estética também diz respeito ao estudo da


sua determinação especial ou sua aplicação aos fenômenos na sua
primeiridade. “Se isto requer um exame da fisiologia daquilo que é
imediatamente contemplado, das criações da imaginação, das formas ou de
todos os três juntos dependerá do modo como o ideal for compreendido”,
Kent completa.

2. Classificatória. É a divisão que investiga as condições de


conformidade dos produtos e ações humanas ao ideal. Este é o nível em que o
dualismo é mais pronunciado.
3. Metodológica. Aqui são estudados os princípios que governam a
produção de objetos estéticos; quer dizer, o sentimento imediato, as criações
da imaginação, e/ou as possíveis formas. O ideal estético é promovido,
alimentado pelo cultivo de hábitos de sentimento. A seguir, Kent discute mais
detalhadamente essa questão do hábito, para terminar lembrando a
importância desse estudo como uma propedêutica para a ética e a lógica.

Sem deixar de apontar que, no nível da metodologia, fica evidente a


relação da estética com as obras de arte, antes de se discutir especificamente
essa relação, seria necessário recuar um pouco na argumentação sobre as
ligações entre o ideal pragmático, o ideal estético e uma ciência das criações
da imaginação. Retorno, assim, à indagação que me parece mais crucial. Se o
ideal estético se localiza no crescimento da razoabilidade concreta, como se
dá a concretização da razoabilidade e, mais ainda, como se dá seu
crescimento? Peirce não chegou a responder sistematicamente a essa
interrogação, deixando apenas sugestões e pistas. Seguindo essas pistas,
encontrei caminhos de resposta que me parecem instigantes e
remarcavelmente férteis para a reflexão sobre as relações entre a estética
filosófica e as obras de arte.

A pista mais óbvia está na conclusão imediata de que, em primeiro lugar,


não há nenhuma garantia externa para que a razoabilidade se concretize. O
estado de coisas admirável não pode ser determinado aprioristicamente, pois,
se assim fosse, haveria nele algo de impositivo e opressivo que lhe esvaziaria,
imediatamente, o caráter de admirável. Nem poderia ser, muito menos, fruto
de uma imposição externa, de qualquer tipo que seja, por mais disfarçada que
seja. Trata-se, pois, de uma meta ou ideal que descobrimos porque nos
sentimos atraídos por ele como tal, e nele ficamos imantados. Sendo uma
adoção deliberada, ela dá expressão à nossa liberdade no seu mais alto grau.
Muito próxima dessa ideia está a expressão “força estranha” que Caetano
Veloso utilizou para caracterizar a força de atração e concentração lúdica,
mas, ao mesmo tempo de absorção quase insana na sua arte, que caracteriza o
artista e que, de resto, caracteriza também o cientista. Mas qualquer pessoa
pode conhecer o poder dessa “força estranha”, quando é movida pela atração
a um ideal admirável, ainda vago e impreciso, que só vai se definindo na
medida mesma em que houver empenho na sua realização concreta.

Não sendo definido a priori, nem sendo buscado sob efeito de qualquer
tipo de força externa, quer esta força seja operada pela violência, quer pelas
formas mais sutis (e, por isso mesmo, psiquicamente mais opressivas) de
submissão consentida, o ideal tem o “perfil indeterminado, necessariamente
ambíguo e potencial, característico de tudo aquilo que continuamente recua
porque só pode ser alcançado numa aproximação assintótica” (Santaella,
1992, p. 127-128). Ora, para Peirce, só na razoabilidade, ou razão criativa —
aquela que incorpora a complexidade dos elementos da ação, surpresa,
conflito, dúvida, insight, emoção e, até mesmo o principalmente, os
sentimentos mais vagos e incertos — pode ser encontrado o atributo próprio
desse ideal. Mas como é que esse ideal pode crescer?

A interação indissolúvel das três ciências normativas nos conduz para a


resposta. A razoabilidade concretiza-se e cresce na medida mesma em que
nós adotamos o ideal da razoabilidade, somos guiados por ele, empenhamo-
nos eticamente nele, enquanto a lógica nos fornece os meios do autocontrole
crítico do pensamento para atingi-lo. Esse autocontrole é possível pelo
cultivo de hábitos de pensamento, de ação e de sentimento, e pela mudança
desses hábitos tão logo isso se prove necessário. Esse é simplificadamente o
cerne do pragmatismo peirceano. O crescimento da razoabilidade concreta,
como ideal determinado pela ciência da estética, está, assim, muito de acordo
com as descobertas levadas a efeito dentro do pragmatismo evolucionista,
atendendo perfeitamente às suas exigências. Para entender essas exigências,
no entanto, é preciso compreender a noção muito original de hábito que
Peirce desenvolveu.

De acordo com o pragmatismo, o significado dos conceitos intelectuais


localiza-se num futuro condicional que se atualiza pela mediação do hábito.
Para deslindar essa afirmação cifrada, é necessário observar que, desde 1868,
Peirce já havia chegado à conclusão de que um pensamento só pode ser
interpretado em outro pensamento, e que esse processo é teoricamente
infinito. Mas, por volta de 1907, na sua teoria dos interpretantes, relacionada
com o pragmatismo, ele estava buscando um interpretante lógico último que,
livrando-se do nominalismo, garantisse a ligação não apenas do pensamento,
mas do ideal do pensamento com o mundo concreto e real. Analisando vários
tipos de processos mentais que poderiam se candidatar para preencher essa
exigência, entre eles a expectativa, o desejo e mesmo o conceito, Peirce
concluiu que só o hábito responderia ao requisito da ligação da mente com o
mundo. Obviamente, sua concepção de hábito estava bem longe daquilo que
corriqueiramente entendemos por hábito. Mas, antes de se penetrar nesses
detalhes, cumpre analisar quais são as características do interpretante lógico
que lhe permitem ser equacionado com o hábito.

A teoria peirceana do interpretante é extremamente complexa para ser


detalhada aqui. Para as finalidades do argumento que está sendo exposto,
basta dizer que o interpretante, como foi tecnicamente definido, é o terceiro
termo da relação triádica que caracteriza o signo. O signo, conforme será
visto mais detalhadamente no próximo capítulo, é algo de natureza aberta,
quer dizer, é qualquer coisa de qualquer espécie que seja — um pensamento,
ação, sentimento, imagem, palavra, biblioteca, museu, delírio, a projeção de
um filão da nossa imaginação, os objetos que nos cercam no mundo
cotidiano, enfim, qualquer coisa pode funcionar como signo na medida em
que está para outra coisa, seu objeto, que também pode ser qualquer coisa,
definindo-se como objeto porque se torna presente pela mediação do signo.
Ora, essa mediação, ao encontrar um intérprete, produz na mente desse
intérprete um efeito, efeito este que também pode ter uma natureza muito
aberta, desde um sentimento, uma ação, até um pensamento ou uma ideia
abstrata e mesmo uma ideia meramente potencial. É esse efeito, assim
amplamente concebido, que Peirce chamou de interpretante.

Em síntese, signo é algo que, ao representar uma outra coisa, seu objeto,
produz um efeito, o interpretante, na mente daquele que recebe esse objeto
indiretamente, quer dizer, pela mediação do signo. Como os efeitos têm
naturezas várias, Peirce foi levado a classificar esses interpretantes.
Conforme já desenvolvi em outros trabalhos (Santaella, 1995), as
classificações são várias, mas aquela que nos interessa aqui é a divisão dos
interpretantes ou efeitos produzidos pelo signo em emocional, energético,
lógico. O emocional está ligado ao sentimento, primeiro efeito que o signo
perceptível ou imperceptivelmente sempre produz. O energético, como o
próprio nome diz, está ligado a um esforço, a uma ação física ou mental. O
interpretante lógico corresponde ao nível geral, coletivo do interpretante.

Ao estudar a natureza do interpretante lógico, então visto como conceito


intelectual, Peirce percebeu que sua função é a de regular e governar
ocorrências particulares, pois eles estão implicados no comportamento de
algum ser consciente, transmitindo algo que vai além do mero sentimento ou
de um fato existencial, quer dizer, transmitindo o “seria” ou “faria” que é
habitual em todo ato interpretativo. Ora, nenhum conjunto de eventos, por
maior que seja, pode jamais preencher o significado daquilo que “seria” (CP
5.467). Só o hábito é capaz dessa real continuidade, não apenas porque ele
pode ser exercido em várias ocasiões, mas porque ele regula os eventos que
ocorrem sob seu governo. Enquanto os eventos existentes são descontínuos, o
hábito é continuidade, garantia de que os particulares irão se repetir de acordo
com uma certa regularidade. É por isso que Peirce caracterizou o conceito ou
interpretante lógico como um hábito operativo.
Quando interpretamos uma frase, numa conversa qualquer com alguém,
para ficarmos neste exemplo bem simples, sempre sentimos algo, nem que
seja o mero assentimento de que estamos entendendo o que está sendo dito a
nós. Também há sempre um certo esforço maior, menor ou imperceptível
envolvido. Mas nós só somos capazes de entender o que está sendo dito
porque uma regra ou princípio condutor da interpretação está sendo
atualizado. Enquanto o evento da interpretação, quer dizer, sua ocorrência
aqui e agora é descontínua, o princípio-guia garante a continuidade das
interpretações em outras ocasiões, assim como garante que haja algum ponto
de contato entre o sentido que o emissor da conversa quer transmitir e aquilo
que o receptor é capaz de receber. Embora existam mal-entendidos,
distorções, perdas e ganhos, extravios, nessa remessa de sentido, não se pode
negar que algum ponto de contato ocorra, caso contrário estaríamos
submersos para sempre numa Babel incontornável. É justamente esse
princípio-guia que Peirce chamou de hábito.

Parece claro que o hábito tem a natureza de uma lei. Trata-se, porém, de
uma lei muito flexível, em cuja concepção se encontra um outro traço da
extrema originalidade de Peirce. A lei do hábito é a lei da mente.
Diferentemente das leis físicas, no entanto, para Peirce (1992, p. 292), “a lei
da mente se assemelha às forças não conservadoras da física, tal como a
viscosidade e coisas do tipo, que são devidas à uniformidade estatística no
encontro de trilhões de moléculas”. Isto quer dizer que a lei da mente é
móvel, aberta, volátil, do que decorre que a lei do hábito é a lei de adquirir
novos hábitos. Consumou-se aí, na plasticidade da mente, na sua tendência
para adquirir novos hábitos, o encontro daquilo que Peirce tanto buscou, o
interpretante lógico último cuja natureza, para estar de acordo com o
pragmatismo evolucionista, não poderia ser estática. Entendendo por
mudança de hábito as modificações de uma pessoa em relação à ação do
pensamento, da conduta e do sentimento, nada estaria mais apto do que tal
mudança para preencher a função de um futuro condicional com uma
referência geral de natureza hipotética; nada, enfim, poderia estar mais apto
para entrar em sintonia com a tendencialidade, a natureza evolutiva do
interpretante final pragmatista, cuja direção é guiada pelo ideal estético.

Como se pode ver, a noção de hábito a que Peirce chegou é liberalmente


ampla. Embora tenha partido da noção aristotélica de qualquer estado
durável, no qual, sob circunstâncias de um certo tipo, o sujeito seria levado a
agir de um modo definido (Kent, 1987, p. 162-163), essa noção foi alargada
para ocupar a espinha dorsal do seu pragmatismo. Pensamentos são hábitos
mentais e os hábitos são padrões de ação que preparam o organismo, no caso,
o organismo humano, para ocorrências futuras possíveis. A generalidade do
hábito é tanta que ele não pode nunca ser exaurido em nenhuma série dada de
ocasiões atuais. “Tudo que é geral”, Peirce dizia, “pertence ao futuro.
Enquanto o passado é feito de fatos atualizados”, o passado é fait accomplit,
nenhum fato geral, por outro lado, pode ser completamente atualizado. Ele é
uma potencialidade tendo seu modo de ser localizado no futuro (CP 2.148).
Essa é a natureza do hábito.

Entretanto a essência da racionalidade está na autocrítica. Os hábitos de


pensamento, que conduzem nossas ações, não devem ser seguidos
cegamente, mas devem ser abalizados por um autocontrole operado através
da autocrítica. De acordo com Curley (1969, p. 94), a aceitação consciente de
um hábito de pensamento, que, para Peirce, tem a natureza da inferência
lógica, envolve uma expectativa de que o curso futuro da experiência tornará
aquele hábito eficaz. A distinção normativa entre bem e mal envolve não
apenas a referência ao fim supremo do pensamento, mas também a questão se
essa expectativa será preenchida ou não. Uma vez que Peirce nunca cessou de
esperar que o ideal último do pensamento surgirá através da atualização das
experiências futuras, tanto o fim último do pensamento, o admirável, quanto
sua atualização se juntam numa única perspectiva.

Cada ciência normativa considera um aspecto particular do ideal geral.


Desse modo, cada uma retificará e adicionará conteúdo às outras,
aumentando, assim, a compreensão desse geral. Mas à estética cabe um papel
muito importante e original na sua relação com o autocontrole, pois vem dela
o controle do controle, quer dizer, é em função de uma referência ao ideal
estético último, sempre imediatamente inatingível, que qualquer princípio
ético é controlado, o que evita, assim, a deterioração da ética em moralismos
estratificados, ao mesmo tempo em que o dinamismo evolutivo do ideal evita
que o pensamento fique paralisado no conforto de crenças desvitalizadas. É
exatamente neste ponto que a indagação sobre a ligação da estética com as
obras de arte se torna imprescindível. Para respondê-la, Peirce nos fornece
algumas pistas que não podem ser perdidas.

Numa passagem muito clara, cujas indicações foram seguidas para


finalizar o Capítulo 6 deste livro, Peirce dizia que a estética “lida com o ideal
em si mesmo, cuja mera materialização cativa e absorve a atenção da prática
[ou ética] e da lógica” (CP 5.551). Não há sombra de dúvida, a partir dessas
palavras, que o ideal estético não é meramente uma projeção indefinidamente
adiada da imaginação, mas deve materializar-se em algo e que esse algo fisga
as outras duas ciências normativas. Em uma outra passagem, ainda, Peirce
dizia que a estética “considera aquelas coisas cujos fins são os de encarnar
qualidades de sentimento” (CP 5.129). Avançando nessa mesma ideia, o que
ele deixou aí claro é que há coisas que têm por finalidade corporificar
qualidades de sentimento, dar ocasião para que qualidades de sentimento se
atualizem no mundo. Ora, muitas coisas podem dar corpo a qualidades de
sentimento, mas as coisas que, de modo mais cabal, o fazem são, sem dúvida,
as obras de arte. As funções históricas e concepções históricas da arte mudam
consideravelmente, mas há algo que parece permanecer em meio à mudança:
o fato de que elas sempre encarnam, dão corpo físico a qualidades de
sentimento.

É claro, a partir do que foi discutido até aqui, que Peirce não via com
bons olhos o isolamento e exclusividade da qualidade de sentimento na obra
de arte. Onde houver exclusivismo, isolamento, atomização ou exagero de
qualquer categoria, como já foi mencionado, lá haverá uma espécie de sopa
biótica propícia ao aparecimento dos fanatismos cegos e das distorções da
irracionalidade ou da hiper-racionalidade, que é apenas o outro lado do
irracionalismo. De um modo geral, o que as obras de arte fazem é justamente
escapar de qualquer um desses exageros, a ponto de podermos lançar a
hipótese de que elas são exatamente aqueles tipos de signos que misturam as
três categorias de maneira mais idealmente harmônica. Que Peirce estava de
acordo com essa hipótese pode ser entrevisto na passagem em que,
mencionando a qualidade estética, ele dizia que se trata aí “da impressão total
inanalisável de uma razoabilidade que se expressou numa criação. É um puro
Sentimento, mas é um sentimento que é a impressão de uma Razoabilidade
que Cria. É uma Primeiridade que realmente pertence à Terceiridade na sua
realização da Secundidade” (MS 310, p. 9).

Não fica difícil, em função das indicações acima, postular que as obras de
arte, por serem objetos privilegiados de revelação do ideal, devem ser — não
obstante sua aparente fragilidade discursiva e ideológica, ou talvez como
fruto dessa mesma fragilidade — o modo mais poderoso de crescimento da
razoabilidade concreta. A forma como isso se dá está indicada em um outro
escrito de Peirce, onde ele afirmou que, “se a conduta deve ser
cuidadosamente deliberada, o ideal deve ser um hábito de sentimento que
cresceu sob a influência de um curso de autocrítica e heterocrítica, a estética
sendo a teoria da formação deliberada desses hábitos de sentimento” (CP
1.573-1.575). Se assim for, então a arte é um dos ou o mais privilegiado
dentre os objetos de estudo da estética.

O ideal estético é nutrido pelo cultivo de hábitos de sentimento. Sendo as


obras de arte aquelas coisas que encarnam qualidades de sentimento, os
hábitos de sentimento só podem ser cultivados através da exposição de nossa
sensibilidade às obras de arte. Em vista disso, por mais que se possam criticar
os museus e suas extensões, no tempo histórico que estamos atravessando,
eles cumprem essa imprescindível tarefa de nos colocar na presença de obras
de arte que fisgam nossa sensibilidade com vistas à mudança de hábitos
estereotipados e deteriorados de sentir.

Os hábitos de pensamento são sempre muito arraigados e difíceis de


serem modificados, do que decorre que os hábitos de ação também o são,
visto que nossos pensamentos e nossas crenças funcionam como guias para a
conduta. No entanto, as dificuldades que se apresentam para a mudança de
hábitos de pensamento são incomparavelmente menores do que aquelas que
se apresentam para a mudança de hábitos de sentimento. Não há nada mais
profundamente enraizado no espírito humano do que os hábitos de sentir.
Enquanto o pensamento e a ação podem se modificar através de argumentos
lógicos ou da força do bom senso, os hábitos de sentimento só se modificam
através do sofrimento ou da exposição constante do sentimento a objetos ou
situações capazes de produzir sua regeneração.

Sem que Peirce, ele mesmo, estivesse consciente do fato, sua estética, se
levada às consequências que ela permite entrever, realizaria quase à perfeição
o sonho de Schiller da educação estética da humanidade, sonho, aliás, que,
sob uma outra aparência, a da educação dos sentidos humanos, foi também
sonhado por Marx. O mais importante é que a estética peirceana está
indissoluvelmente atada à ética e à lógica. Os objetos estéticos, no dizer de
Peirce, porque materializam, dão corpo ao ideal da razão criativa, atraem e
fisgam as outras duas ciências normativas, ao mesmo tempo em que há
nesses objetos algo da ordem da ação e do pensamento. As obras de arte não
são apenas ambíguas encarnações de qualidades de sentimento, mas formas
de sabedoria, de um tipo que fala à sensibilidade, ao mesmo tempo em que
convida a razão a se integrar ludicamente ao sentir.

Se a estética está ligada como carne e osso à ética e à lógica, deve haver
algo de lógico na estética e algo de estético na ciência, ao mesmo tempo em
que a ética diz respeito, em ambas, ao modo como seus produtos se
direcionam para o ideal. Que existe uma ligação da estética com a lógica, do
artista com o cientista e vice-versa, ficará mais claro a partir do próximo
capítulo, quando for apresentada a questão da abdução, ou dom para a
descoberta, que é parte essencial do ser humano, tanto quanto é do pássaro o
dom de voar. Além disso, contudo, há uma hipótese imediata que surge, a
partir do que foi exposto neste capítulo, que propõe que a estética e os objetos
de arte, em que ela se materializa, lidam com sentimentos-guias, enquanto a
lógica e seus produtos precípuos, que a ciência cria, funcionam como meios
propícios para a efetivação desses sentimentos no mundo. A arte guia,
enquanto a ciência fornece os meios para que a razoabilidade cresça em
direção ao ideal, sempre futuro, sempre em aberto. Não é senão como fruto
dessa abertura e dessa futuridade que a arte é sábia sem saber.

É verdade que, tanto quanto Marx, a estética peirceana não previu, com a
profundidade que a história do século XX está exigindo, a dimensão da
miséria e a força da perversidade humana, vindo daí uma das razões para a
assoberbante atualidade de Freud. Em que medida a dominância da
perversidade é apenas uma condição histórica, de modo que o sonho de Marx
e os ideais postulados por Peirce terão ainda condições de ser sonhados, é
uma indagação que não se pode, pelo menos por enquanto, responder, mas
que, nem por isso, pode deixar de ser feita.
9. A SEMIÓTICA DE PEIRCE

São poucos os autores, mesmo entre os especialistas, que se dedicaram ao


tema da estética peirceana. Além de poucos, esses autores estão nitidamente
divididos em dois grupos. No primeiro grupo, apresentando uma maior
fidelidade às fontes, fidelidade muito provavelmente devida ao conhecimento
mais profundo que esses estudiosos têm da obra peirceana, a estética foi
discutida dentro do espírito em que ela foi concebida nos escritos de Peirce,
isto é, como uma disciplina filosófica, a primeira dentre as ciências
normativas. Foi dentro desse espírito também que os Capítulos 6, 7 e 8 deste
livro foram escritos, num diálogo aberto com esses estudiosos, que foram
aqui fartamente citados em função do muito que aprendi com eles.

O segundo grupo de autores tratou o tema da estética sob um ângulo


possível e até necessário, mas jamais previsto por Peirce. Desconhecendo
voluntária ou involuntariamente a vocação nitidamente filosófica e
eminentemente teórica da estética, esses autores procuraram extrair da
fenomenologia e semiótica peirceanas uma possível teoria estética. A maioria
desses comentadores tomou como base, para isso, algumas passagens em que
Peirce fazia menção a problemas estéticos e a obras de arte, aliás, as mesmas
passagens que foram trabalhadas no Capítulo 7, sob o título de “Dilemas da
Estética”.

Entretanto, em vez de buscar a coerência dos fragmentos através de sua


contextualização no todo da obra, ou dos problemas que Peirce estava
enfrentando naquela circunstância específica, esses comentadores tomaram os
fragmentos como sugestivos para se buscar a construção de uma estética
semiótica que, segundo eles, seria aquilo que mais propriamente poderia ser
extraído da obra peirceana. A opção por essa alternativa não é surpreendente.
Os primeiros artigos, que serviram como base para os subsequentes, datam de
uma época em que se pensava que Peirce não havia feito outra coisa de valor
a não ser criar uma semiótica altamente classificatória, paralela e até mesmo
isolada de um sistema filosófico no qual poucos estavam interessados. Não
havia ainda qualquer desconfiança quanto à necessidade de se considerar sua
semiótica como a espinha dorsal de uma arquitetura filosófica da qual ela é
inseparável.
No próximo capítulo, os textos desse grupo de intérpretes serão
comentados, para que se possa ajustar o roteiro da viagem que eles
empreenderam e que é, sem dúvida, válida, contanto que certas confusões
sejam evitadas e algumas exigências, que a obra peirceana impõe, sejam
atendidas. Antes disso ser realizado, contudo, a função do presente capítulo é
fazer uma apresentação muito breve do panorama da semiótica, entre outras
coisas, para que os leitores não familiarizados com a obra de Peirce, e
especialmente com sua semiótica, não se sintam perdidos nas discussões que
serão levadas a efeito no próximo capítulo.

É certo que, desde os trabalhos pioneiros de Haroldo de Campos (1971) e


Décio Pignatari (1970 e 1974), existem hoje no Brasil algumas obras de
apresentação da semiótica peirceana, o que dispensaria a tarefa que este
capítulo pretende levar a efeito. No entanto, sua inserção se justifica não só
para atenuar possíveis dificuldades de leitores imaginários, mas em função da
necessária defesa do nível de incomparável generalidade com que Peirce
concebeu sua semiótica, sem o que ficaria difícil perceber os vários tipos de
relações que a semiótica e a estética podem estabelecer entre si.

O grande interesse de Peirce, desde os 12 anos de idade, sempre foi


dirigido para a lógica. Ele sabia que era nessa direção que o seu talento
corria, com a mesma naturalidade com que um rio busca o mar para desaguar.
Seu dom maior, provavelmente alimentado pela simpatia e reforço de seu pai,
o matemático Benjamin Peirce, estava na arte de raciocinar. Tudo que Peirce
fez, todas as atividades científicas que praticou tinham a lógica em mira. Sua
estética e mesmo sua ética, aliás, não foram senão consequências de sua
descoberta de que a lógica não é autossuficiente. Ele se aprofundou tanto no
estudo da lógica que acabou se deparando — como sempre acontece, quando
se penetra muito profundamente numa área do conhecimento — com a
insuficiência ou incompletude daquele campo de estudo em si mesmo. Essa
incompletude inelutável está no cerne de sua concepção do signo. Todo
signo, por fatalidade congénita, está destinado a ser incompleto. Dessa falha
inalienável nem mesmo o signo artístico pode se livrar, não obstante este seja
o signo que mais obstinadamente sonha com a completude, conforme essa
questão será mencionada no próximo capítulo.

Depois de poucos anos de estudo de lógica, Peirce percebeu uma grave


questão que, infelizmente até hoje, não é levada em consideração pelos
lógicos. Em primeiro lugar, numa batalha travada contra os fortes
remanescentes cartesianos presentes no ocidente, ele afirmou que todo
pensamento, todo raciocínio, se dá em signos. Em seguida, se deu conta,
muito simplesmente, de que não há raciocínio possível, não há pensamento
possível, nenhuma linguagem — nem mesmo e muito menos a linguagem da
própria lógica e da matemática — seria possível sem o uso de uma
diversidade de signos. Quer dizer, nenhum pensamento é conduzido apenas
através de símbolos. Além disso, ele ainda percebeu que cada tipo de signo
está apto a representar o que representa em função de sua natureza específica.
Para determinadas necessidades ou para determinadas realidades, há signos
que são mais apropriados do que outros. Mas além disso ainda, na medida em
que sua investigação sobre essa questão avançava, ele foi também levado a
concluir, com base nas conclusões de sua fenomenologia, aliadas às
conclusões extraídas da experiência, que não há exclusividade no mundo dos
signos. Toda manifestação sígnica, no pensamento, na linguagem, seja lá de
que tipo for, atualiza uma mistura mais ou menos equilibrada de tipos de
signos. Em síntese, o pensamento e as linguagens só podem existir e
sobreviver na promiscuidade. No mundo das linguagens, tudo é mistura, a
mistura é a vida, ou o espírito, como queria Valéry.

A semiótica, como estudo de todos os tipos possíveis de signos, nasceu,


para Peirce, como uma consequência natural, naturalíssima, das descobertas
que ele foi fazendo dentro da própria lógica. É por isso que, na sua obra,
semiótica não é senão um outro nome que foi dado para a lógica ela mesma.
Na medida em que seus estudos iam avançando, trazendo-lhe a constatação
da incompletude da lógica, a ética e a estética foram aparecendo para realizar
as tarefas teóricas que a lógica ou semiótica não podia realizar por si mesma.
Ao mesmo tempo, ele foi percebendo que as tarefas teóricas internas à
semiótica também se distribuíam em três subciências: 1. a gramática
especulativa ou gramática pura; 2. a lógica crítica ou lógica propriamente dita
e 3. a retórica especulativa ou metodêutica.

Assim sendo, conforme já foi visto no Capítulo 6, quando o diagrama de


sua arquitetura filosófica foi brevemente colocado em discussão, as três
ciências normativas — estética, ética e lógica ou semiótica —, que
correspondem ao nível de secundidade dessa arquitetura como um todo,
ocupam o coração da filosofia peirceana. Dentro delas, a ética, muito em
sintonia com seu pragmatismo, ocupa o lugar da secundidade e o
correspondente coração das ciências normativas. Dentro da semiótica, a
lógica propriamente dita, que é o estudo dos tipos de raciocínio e da força e
validade de seus argumentos, está em nível de secundidade, exatamente no
coração da semiótica propriamente dita. A ênfase que estou dando a esses
corações não é casual. A secundidade é a categoria da efetividade, daquilo
que se atualiza. Entre aquilo que é possível (primeiridade) e a mediação
(terceiridade), interpõe-se aquilo que é responsável pela realização concreta.
As ciências normativas são, então, ladeadas pela fenomenologia, base de toda
a filosofia, e pela metafísica, onde a tarefa da filosofia termina. Do mesmo
modo que as ciências normativas são uma consequência da fenomenologia, a
metafísica também não pode dispensar os princípios que ela recebe das
ciências normativas, muito particularmente da semiótica.

Há muitos fatores que prejudicaram, por muitos anos, um melhor


entendimento e divulgação da semiótica de Peirce. Para os propósitos deste
capítulo, foram selecionados quatro desses fatores. São eles: 1. o
conhecimento indireto de sua obra pela via de Charles William Morris (1901-
1979); 2. a ênfase que foi colocada apenas no primeiro ramo da semiótica e
nas classificações de signos; 3. a tendência, difícil de ser ultrapassada, de se
considerar apenas o signo linguístico como signo; 4. a tendência, também
bastante arraigada, na tradição filosófica, de se entender o significado de
“representação” apenas dentro dos limites do racionalismo.

Se Morris teve o mérito de acordar o interesse de muitos estudiosos para a


obra peirceana, a simplificação a que ele submeteu a divisão dos três ramos
da semiótica em sintático, semântico e pragmático tem provocado confusões
difíceis de serem corrigidas. Conforme os próprios termos indicam, esses
níveis ficam estritamente presos dentro de uma moldura linguística. Como se
isso não bastasse, filiado a correntes positivistas de pensamento, Morris lhes
deu uma interpretação fundada em ideias psicológicas comportamentalistas.
É certo que Morris nunca falou em nome de Peirce. Pretendeu estar criando
uma teoria própria. As analogias na nomenclatura e nos esquemas triádicos o
traem, contudo. Fica difícil não ouvir Peirce quando se lê Morris. Mas é justo
aí que todos os problemas começam. Tomam-se gatos por lebres.

Nada estava mais longe do pensamento de Peirce do que uma semiótica


psicológica, compreensível dentro de um paradigma positivista. Tenho
colocado, em todas as ocasiões, muita ênfase no nível de generalidade ímpar
da semiótica de Peirce, visto que ela está fundada numa noção de signo tão
ampla ao ponto de se poder dar verdadeiramente razão à sua consideração de
que “qualquer outra coisa que qualquer coisa possa ser, ela também é um
signo”. Para se ter uma ideia dessa generalidade, a citação a seguir é bastante
sugestiva:
(...) incluindo sob o termo “signo”, qualquer pintura, diagrama, grito natural, dedo apontando,
piscadela, mancha em nosso lenço, memória, sonho, imaginação, conceito, indicação, ocorrência,
sintoma, letra, numeral, palavra, sentença, capítulo, livro, biblioteca, e, em resumo, qualquer coisa
que seja, esteja ela no universo físico, esteja ela no mundo do pensamento, que — quer
corporifique uma ideia de qualquer espécie (e nos permita usar amplamente esse termo para incluir
propósitos e sentimentos), que esteja conectada com algum objeto existente, quer se refira a
eventos futuros através de uma regra geral — leva alguma outra coisa, seu signo interpretante, a
ser determinado por uma relação correspondente com a mesma ideia, coisa existente ou lei (MS
774, p. 4).

De fato, como a passagem acima deixa evidente, Peirce levou a noção de


signo tão longe ao ponto de seu interpretante, quer dizer, o efeito que o signo
produz, não ter de ser necessariamente uma palavra, uma frase ou um
pensamento, mas poder ser uma ação, reação, um mero gesto, um olhar, um
calafrio de regozijo percorrendo o corpo, um desfalecimento, devaneios
incertos e vagos, uma esperança, estados de desespero, enfim, qualquer
reação que seja, ou até mesmo algum estado de indefinição do sentimento
que sequer possa receber o nome de reação. Tudo isso é signo, na semiótica
peirceana. Não podem ser minimizadas, consequentemente, as implicações
dessa concepção liberal e generosa para se pensar a estética, para se
compreender o fato estético, cujo encontro, de acordo com Borges, pode nos
felicitar em qualquer situação — num crepúsculo outonal, na leitura de um
poema, na troca de um olhar.

Além das consequências para se pensarem questões estéticas e as


produções criativas humanas ou não-humanas, estas visíveis no evidente
poder criador da natureza, a ampliação do conceito de signo, para cobrir não
só o reino do pensamento, mas também as zonas da ação e do sentimento,
além de suas misturas, produz uma ruptura radical com a tradição racionalista
do ocidente, com o mérito de não ter de pagar, para isso, o preço do niilismo,
ou das apologias explícitas ou disfarçadas do irracionalismo. Longe, muito
longe, está de Peirce, portanto, a restrição da noção de signo apenas ao signo
linguístico.

Há, no entanto, um outro ponto de prejuízo no modo como a sua


semiótica costuma ser divulgada, que precisa ser corrigido. Existe uma
tendência a se confundir a semiótica apenas com seu primeiro ramo, o da
gramática especulativa, isto é, aquele que classifica, descreve e analisa todos
os tipos possíveis de signo. Novamente não há nada mais infiel aos
propósitos, que Peirce visava dar à semiótica, do que essa restrição. A base
lógica para se entender a divisão em três ramos científicos está, de um lado,
nas categorias, de outro, na própria definição do signo. Tendo chegado a essa
definição, a própria lógica interna do signo acabou por determinar a divisão
da semiótica em três ramos.
Sendo o signo algo que, de um certo modo e numa certa medida, intenta
representar, quer dizer, estar para, tornar presente alguma outra coisa,
diferente dele, seu objeto, produzindo, como fruto dessa relação de
referência, um efeito numa mente potencial ou real, devem, portanto, existir:
1. estudos voltados para o signo em si mesmo, suas potencialidades, limites,
enfim, sua natureza interna; 2. as relações de referência do signo aos objetos
que ele intenta representar, incluindo-se aqui necessariamente as verdades e
mentiras dessas relações; 3. a eficácia comunicativa do signo. Mas, uma vez
que a semiótica era, para Peirce, sinônimo de lógica num sentido amplo, e
estando sua preocupação fundamental voltada para os métodos de raciocínio
empregados por uma inteligência científica, os três ramos acima sugeridos
foram ampliados consideravelmente, para dar conta da sua compreensão do
método científico (ver sobre isso em Santaella, 1993). De qualquer modo,
para os propósitos deste capítulo, os níveis mais simples são suficientes para
serem tomados como base de explicação dos três ramos da semiótica.

O primeiro ramo, também chamado de lógica originaliana ou gramática


especulativa, ou gramática pura, está para a primeira categoria, que determina
o caráter das coisas a partir de sua aparência, assim como o segundo ramo, o
da lógica obsistencial ou lógica crítica, que determina as relações de
referencialidade dos signos, está para a segunda categoria e o terceiro ramo, o
da lógica “transuacional” ou retórica especulativa, também chamado de
metodêutica, que determina o tipo de interpretação que damos para as coisas,
a partir da mediação dos signos, está para a terceira categoria. Conforme já
foi mencionado mais acima, não são as categorias apenas que estão
conduzindo essa divisão, mas também a lógica triádica interna ao signo, na
qual, de resto, as categorias também operam. Se o signo é algo que se refere a
uma outra coisa diferente dele, seu objeto, determinando um efeito numa
mente potencial ou real, seu interpretante, então, a primeira divisão ou
gramática especulativa corresponde ao exame do signo em si mesmo,
enquanto a segunda divisão ou lógica crítica corresponde ao estudo de tudo
que é relativo à relação do signo com aquilo que ele representa ou substitui,
seu objeto, e a terceira divisão corresponde ao estudo da relação do signo
com todos os tipos de efeitos interpretativos por ele produzidos.

Numa breve consideração de cada um desses três ramos da semiótica, o


primeiro deles, o da classificação dos signos, foi certamente o que ficou mais
conhecido, pagando, para isso, o preço que toda popularização de conceitos
acaba por pagar, quer dizer, o preço da simplificação, Assim sendo, a mera
menção do nome de Peirce já traz à mente a divisão dos signos em ícones,
índices e símbolos. Embora essa seja, de fato, a classificação de signos
central e não coincidentemente mais célebre, ela faz parte de um amplo
conjunto de tipos, subtipos e gradações, sempre triádicas, com o que Peirce
pretendia dar conta de todas as modalidades e processos de representação
através de signos.

Numa visão panorâmica, a primeira classificação é aquela que leva em


consideração o signo em si mesmo, a qualidade de sua aparência, o seu
caráter, sua natureza em si, independente de qualquer outra coisa. Trata-se,
portanto, de um ponto de observação que toma como referência apenas o
signo no nível de primeiridade, naquilo que o define por si mesmo. Sob esse
aspecto, ele pode ser:

1.1. Qual-signo, algo que se apresenta como mera qualidade, simples


aparência, primeiro do primeiro, portanto. Uma nota musical prolongada, por
exemplo, considerada simplesmente na sua qualidade de som, ou uma cor
rosa, puramente rosa, independemente do corpo material no qual a cor rosa
está encarnada, só a cor em si mesma, apenas a qualidade na sua pureza,
simples e singela.

1.2. Sin-signo, algo singular ou conjunto de singulares, numa relação


existencial com qualquer outra coisa diferente dele, seu objeto, segundo do
primeiro, portanto. Por exemplo, qualquer coisa que tenha existência, não
apenas no mundo matérico, mas em qualquer mundo, inclusive o da nossa
imaginação.

1.3. Legi-signo, algo de natureza geral, tendo o caráter de uma lei ou


regra que governará ocorrências particulares, fazendo com que o efeito a ser
produzido numa mente interpretativa apresente alguma conformidade com
essa lei ou regra, um terceiro do primeiro, evidentemente. Qualquer palavra,
ou qualquer elemento pertencente a qualquer sistema codificado são
exemplos de legi-signos.

Quando o signo é considerado na sua relação com o objeto, sendo


portanto considerado na sua secundidade, ou seja, quando o tipo de
referencialidade que ele expressa, ou melhor ainda, quando o modo como ele
torna seu objeto presente é posto em foco, uma nova tríade aparece. Note-se
que é a mesma tríade anterior, mas vista agora sob um outro ângulo, o da
relação que o signo, anteriormente considerado em si mesmo, pode ter com
seu objeto. A segunda tríade depende, assim, da primeira, porque o tipo de
relação do signo com seu objeto varia na medida mesma em que varia a
natureza do signo ou vice-versa. Assim sendo:

2.1. Se o signo for um quali-signo, mera qualidade, na sua relação com o


objeto, ele será um ícone, quer dizer, um signo que funciona como tal, que
pode representar algo, seu objeto, meramente em função de suas qualidades
internas, qualidades que ele possuiria do mesmo modo, existisse o objeto ou
não. Tratando-se de simples qualidades, o único tipo de relação que o quali-
signo pode ter com aquilo que ele torna presente é uma relação de
semelhança. Isso quer dizer que o quali-signo, na realidade, não pode
representar coisa alguma, pois qualidades não têm, em si mesmas, poder para
representar nada. Mas, ao mesmo tempo, as qualidades têm uma grande força
de sugestão, elas atraem poderosamente o demônio das analogias, podendo se
assemelhar a muitas outras qualidades. Quando a comparação de uma
qualidade com outra qualidade, qualquer que seja, é acionada, estamos diante
de um quali-signo ou quase-signo icônico. A semelhança dos olhos de uma
linda jovem com a cor oliva e o tipo característico de brilho de uma azeitona,
por exemplo. Numa versão mais simplificada, e algo distorcida, o ícone é
tomado como um tipo de signo que representa seu objeto por semelhança.
Assim, o desenho de um gato seria o ícone de um gato. A distorção fica por
conta do fato de que não se trata aí de um ícone na sua simplicidade, mas de
um signo mais complexo, que mistura caracteres de iconicidade e
indexicalidade. O ícone em si não poderia incluir relações de referência,
como ocorre no caso de qualquer desenho figurativo, onde a figura se refere a
algo fora dela. Mas, uma vez que há uma semelhança qualitativa na forma da
aparência de um gato e na forma desenhada do gato, esse aspecto de
semelhança corresponderia ao ingrediente icônico desse signo complexo.

2.2. Se o signo for um sin-signo, algo singular ou conjunto de singulares,


então ele estará existencialmente conectado a algo também singular ou
conjunto de singulares ou contínuo de individuais, seu objeto, que está fora
do signo e é diferente dele. Neste caso, o signo funciona como um índice
desse objeto do qual, aliás, o sin-signo indicial é uma parte. A Praça dos Três
Poderes como índice de Brasília, por exemplo, ou uma foto em close dos
olhos de azeitona da linda jovem, como índice de sua beleza ou de sua
juventude, ou de sua natureza de fêmea, ou de sua mera existência, ou de uma
série infindável de outras coisas que uma foto tem o poder de indiciar.

2.3. Se o signo for uma lei, legi-signo, tendo portanto a capacidade de


governar as ocorrências particulares ou réplicas dessa lei, em relação ao
objeto que ele representa, ele será um símbolo, ou seja, algo que se constitui
como signo porque é usado e entendido como tal, através de uma convenção
ou lei de que ele é portador. A pomba branca, mensageira da paz, ou o
crucifixo como símbolo do cristianismo, qualquer conjunto ordenado de
palavras em qualquer língua são todos exemplos de símbolo.

O terceiro ângulo, obviamente em nível de terceiridade, a partir do qual o


signo pode ser examinado, é aquele que diz respeito ao tipo de efeito que ele
está apto a produzir, e, de fato, de uma forma ou de outra, produzirá numa
mente ou em qualquer equipamento interpretador, quando seu encontro com
essa mente ou equipamento se efetivar. Os tipos, também três, são os
seguintes:

3.1. Quando se trata de um quali-signo icônico, esse signo se apresentará


para ser interpretado em nível de possibilidade. Qualidades de aparência, só
funcionam como signo porque a uma mente interpretadora alguma qualidade
lembra ou sugere outra. Ora, essa relação de comparação, que estabelece uma
relação de semelhança entre duas qualidades, só pode funcionar como uma
hipótese interpretativa. Esse tipo de interpretante, quase sempre produzido
sob efeito da apreensão de meras qualidades, é chamado de rema, ou signo
remático. Por exemplo, olhando para as configurações de um grupo de
nuvens, supomos ver vagamente, nessas formas, um rosto familiar. O rosto só
pode ser tomado como objeto da forma das nuvens através de uma relação de
comparação cujo resultado, o da semelhança, é puramente hipotético.

3.2. No caso do sin-signo indicial, por se tratar de um existente


relacionado a um outro existente, ele se apresentará para ser interpretado
como um signo de fato, chamado de dicente. O exemplo mais otimizado
desse tipo de interpretante está na transmissão de um jogo de futebol por um
radialista. O ângulo de visão específico, que sua localização no espaço lhe dá
do jogo, em síntese, o seu olhar, é o signo indicial daquele jogo que está
ocorrendo diante dele, sendo o jogo, no caso, o objeto do signo “olhar”,
enquanto as sentenças que ele vai armando, no acompanhamento passo a
passo do jogo, funcionam como interpretante dicente. É óbvio que, sob outros
pontos de vista, o olhar pode funcionar como ícone, assim como o jogo, sob
um outro ângulo de abordagem e análise, pode muito bem funcionar como
signo e não objeto, pois essa mobilidade analítica é parte integrante do
funcionamento dos signos.

3.3. Quando se trata de legi-signos simbólicos, o interpretante que esse


tipo de signo está apto a produzir é chamado de argumento, quando as regras
interpretativas para a produção do interpretante já estão inclusas no próprio
signo, não dependendo, como no caso do dicente, de uma aferição exterior. A
ordem lógica das relações das premissas para a conclusão é o que dá sustento
ao interpretante.

As três tríades apresentadas acima são apenas as mais fundamentais.


Peirce chegou a trabalhar, com alguma profundidade, as combinatórias ou
misturas possíveis entre essas três tríades, que dão origem a dez classes de
signos (CP 2.227-2.273). Entretanto, a relação triádica do signo, em 1. signo,
2. objeto e 3. interpretante é apenas a mais grosseira. Essa relação foi
examinada microscopicamente, por Peirce, numa surpreendente sutileza de
detalhes, do que resultou que o signo tem dois objetos (na realidade,
subdivididos cada um em três, resultando em seis modalidades de objetos),
tendo também pelo menos três graus do interpretante (numa visão mais
aprofundada, o interpretante aparecerá realmente em doze níveis). Essa
microscopia deu origem a dez tricotomias, sete novas, além das três
anteriores discutidas acima. As combinatórias dessas dez tricotomias dão
então origem a sessenta e seis classes de signos. Embora esse nível de
detalhamento possa parecer insano à primeira vista, seu poder analítico não
deve ser descartado. Apesar da importância dessas subdivisões prismáticas
para a análise de processos concretos de signos, e muito especialmente dos
signos estéticos, que devem muito provavelmente produzir os tipos de
misturas sígnicas mais complexas, não entrarei nesse nível de informação
especializada aqui, visto que já dediquei um outro trabalho a isso (Santaella,
1995).

O tipo de signo mais complexo é, sem dúvida, o legi-signo-simbólico-


argumental. Quando chegamos nesse ponto de sua maior complexidade, a
gramática especulativa cede seu espaço para o segundo ramo da semiótica, a
lógica crítica, que tem por finalidade estudar as diferentes espécies de
argumento, incluindo-se nesse estudo a determinação da validade ou grau de
força de cada uma das espécies de argumento. Tendo seu ponto de partida ou
propedêutica nas distinções dos diferentes tipos e misturas entre signos, o
segundo ramo da semiótica passa a lidar com a estrutura do raciocínio. Do
mesmo modo que, na gramática especulativa, a noção de signo foi ampliada
consideravelmente, deixando de se restringir apenas ao símbolo, na lógica
propriamente dita, foi descoberto um tipo de raciocínio ou quase raciocínio
que se constitui em um dos pontos de maior originalidade dessa segunda
divisão da semiótica. Trata-se do conceito de abdução ou lógica da
descoberta.
O estudo observacional do raciocínio, que sempre se dá em signos, levou
Peirce à conclusão de que só há três e não mais do que três tipos de estrutura
de raciocínio ou argumento: a dedução, a indução e a abdução,
correspondendo à terceiridade, secundidade e primeiridade, respectivamente.
Além de modificar substancialmente a compreensão dos dois primeiros tipos,
especialmente a da indução, a introdução da abdução foi uma novidade
impar.

Depois de quase cinquenta anos dedicados direta ou indiretamente ao


tema, o entendimento a que Peirce chegou dos três tipos de raciocínio pode
ser sintetizado nos seguintes termos: a dedução é o processo de inferir as
consequências prováveis e necessárias de uma hipótese. A indução, que
apresenta pelo menos nove modalidades, das formas mais fortes às mais
frágeis, é, simplificadamente, o processo de se testar uma hipótese. A
abdução refere-se ao processo de quase-raciocínio a partir do qual é gerada
uma hipótese plausível a respeito de um fato surpreendente. É um tipo de
argumento originário que se refere ao ato criativo de invenção de uma
hipótese explicativa para um fenômeno ainda sem explicação. O mais
importante a se levar em conta é que esses três tipos lógicos de raciocínio não
são privilégio exclusivo nem da lógica como disciplina, nem das outras
diversas ciências, mas trata-se, isto sim, de formas de pensamento que
empregamos de modo rudimentar cotidianamente. São as formas pelas quais
o pensamento se organiza em qualquer situação e das quais a lógica e os
métodos de raciocínio empregados nas ciências são uma sofisticação, pois
representam os casos em que as formas de raciocínio são submetidas à
disciplina do autocontrole.

Assim sendo, muito mais do que se pode imaginar à primeira vista, os três
tipos de raciocínio são de fundamental importância não apenas para entender
os procedimentos dos métodos científicos, mas também os processos de
pensamento empregados tanto pelo artista ao criar seus objetos estéticos,
quanto pelos receptores no ato de apreensão e talvez compreensão desses
objetos. Dentre os três tipos de raciocínio, a abdução é a responsável por
todas as descobertas e iluminações, onde quer que elas ocorram, num
laboratório científico, no atelier de um artista, ou no dia-a-dia de qualquer
pessoa comum. Os argumentos abdutivos formulam sinteticamente
explicações tentativas para todas as situações nas ciências, nas artes, ou fora
delas, em que algo surpreendente se apresenta, reclamando uma resposta.
Quando algo produz surpresa, a abdução é o processo de pensamento que
surge, engendrando uma conjectura. Esse processo tem a forma de uma
inferência que, embora seja frágil, é lógica, ao mesmo tempo em que brota no
flash de um insight. Por mais que sua definição pareça incorrer na
contradição dos termos, trata-se, de fato, de um instinto racional de uma
inferência lógica que é simultaneamente, um insight, trata-se, enfim, de uma
adivinhação que é a representante mais legítima da capacidade criadora da
razão e que a razão, paradoxalmente, não pode explicar.

O terceiro ramo da semiótica, a retórica especulativa ou metodêutica, é a


teoria dos métodos de investigação. A lógica crítica, ou o segundo ramo, no
exame que faz do valor e força de cada tipo de argumento ou raciocínio
funciona como uma espécie de alicerce sobre o qual se erige a metodêutica,
que tem por função analisar os métodos a que cada um dos tipos de raciocínio
acima dá origem. A metodêutica nasceu, assim, como consequência
necessária, em primeiro lugar, da descoberta peirceana de que os tipos de
raciocínio se constituem também em tipos de métodos empregados pelas
ciências, em segundo lugar, da descoberta subsequente de que esses mesmos
métodos se constituem em estágios de toda e qualquer investigação científica,
na seguinte sequência: abdução, ou descoberta de uma hipótese; dedução, ou
extração das consequências da hipótese; indução ou teste da hipótese.

Se o terceiro ramo da semiótica não parece estar diretamente conectado


com questões concernentes à estética, esse já não é o caso dos dois primeiros
ramos, muito especialmente daquilo que diz respeito à abdução, sem a qual
nenhuma criação seria possível. Assim sendo, quais luzes a semiótica pode
trazer para a estética é o que será visto no próximo capítulo.
10. A ESTÉTICA À LUZ DA SEMIÓTICA

Foram diversas as teorias semióticas que surgiram a partir do século XIX.


Diferenciando-se da linguística, que tem por objeto a linguagem verbal, as
semióticas se abriram para a investigação de processos de signos dos mais
variados tipos, desde a literatura e todas as linguagens visuais, tais como
pintura, fotografia, cinema, até a arquitetura, a música etc, entre outros
campos de abrangência. Dada essa vocação para o não-verbal, não é
surpreendente que teorias estéticas tenham surgido em todas as correntes da
semiótica, principalmente porque os processos de signos artísticos são
desafiadores, exercendo sempre uma grande atração sobre os estudos da
linguagem, na medida em que funcionam como tubos de ensaio para testar a
eficácia ou o fracasso dos conceitos.

Winfried Nöth (1998) escreveu para uma Enciclopédia de Semiótica,


editada por P. Bouissac, um artigo panorâmico de apresentação e descrição
das teorias estéticas que nasceram no interior das diferenciadas correntes da
semiótica. Dado o caráter quase exaustivo com que as diversas tendências
foram arroladas e discutidas nos seus traços mais gerais, esse panorama será
aqui tomado como referência, para que se possam posteriormente
compreender e mesmo avaliar os traços distintivos de uma estética semiótica
de extração peirceana.

Segundo Nöth, a primeira grande distinção entre as teorias estéticas


semióticas e as não-semióticas está no fato de que as primeiras não falam
mais em “objeto” estético, mas sim em “signo” estético. A obra de arte, seja
ela de que tipo for, mesmo uma escultura, não importa quão imponente possa
ser na sua realidade matérica, não é mais tratada como um objeto, mas como
um tipo especial de signo, cujos processos de produção e recepção
constituem processos peculiares de semiose. Para se traduzir isso em termos
peirceanos, se a “semiose” significa “ação do signo”, sendo esta a ação que
leva o signo a ser interpretado em um outro signo, então, as semioses
específicas da arte produziriam processos interpretativos especiais e
característicos.

Assim sendo, continua Nöth, as teorias semióticas procuraram criar, cada


uma a seu modo, suas próprias teorias da arte, visando, ao mesmo tempo, a
uma reinterpretação, sob um ponto de vista semiótico, das teorias estéticas
tradicionais. Não obstante as diferenças, as estéticas semióticas têm em
comum suas fundações ou pontos de partida ou pontos de referência em
teorias dos signos. Do ponto de vista sistêmico, as linhas das estéticas
semióticas podem ser agrupadas nos domínios da semântica, pragmática e a
teoria dos códigos. Sob o ponto de vista da história da semiótica, Nöth
apresenta as escolas que se seguem abaixo:

1. A estética semiótica clássica cuja fundação remonta a Baumgarten e


Lessing, visto que o primeiro explicitamente postulou uma semiótica como
um ramo da estética, enquanto o Laocoonte de Lessing (1957) propôs uma
teoria da mimese nas artes poéticas e pictóricas.

2. A estética semiótica peirceana, que Nöth apresenta como não sendo um


tópico central na filosofia do autor, trata dos problemas estéticos a partir de
vários pontos de vista, tendo se transformado na fundação da semiótica
estética da Escola Bensiana de Stuttgart (ver, por exemplo, Bense, 1971).
Seria importante adicionar que a afirmação de Nöth sobre a não-centralidade
da estética na filosofia peirceana é só parcialmente verdadeira, visto que,
depois de 1900, a estética passou a desempenhar um papel central na
definição do seu novo pragmatismo, conforme este livro já discutiu
amplamente.

3. A estética semiótica de Charles Morris desenvolveu uma teoria


fundada no behaviorismo, tendo, na caracterização da arte como um signo
icônico de valor, seu ponto central de apoio.

4. A estética da escola de Praga ou teoria estruturalista da arte é “uma


teoria funcional que define a essência da arte dentro da dimensão pragmática
da semiose” (ver, por exemplo, Mukarovsky, 1977).

5. A estética glossemática é uma teoria da arte desenvolvida na moldura


da glossemática de Louis Hjelmslev (1899-1965). Tendo sido aplicada
primeiramente ao campo da literatura, encontrou sua chave para a natureza do
signo estético na teoria da conotação. Valeria acrescentar aqui que Roland
Barthes (1915-1980), na sua fase semiológica (1971), utilizou largamente o
conceito de conotação extraído de Hjelmslev.

6. A semiótica estruturalista da arte, desenvolvida primeiramente na


França, está especialmente voltada para a pintura, caracterizando-se pela
análise imanente das propriedades dos signos.

7. A semiótica soviética da arte, “enraizada no formalismo russo, na


glossemática e na cibernética”, desenvolveu uma teoria da arte como um
sistema semiótico secundário, construído a partir do modelo da língua (ver
Lotman, 1970, por exemplo).

8. A teoria estética informacional aproxima-se do fenômeno estético sob


um ponto de vista matemático. Essa aproximação, adotada tanto pela escola
de Bense na Alemanha quanto pelos semioticistas soviéticos, busca “definir o
fenômeno estético através da originalidade, inovação e harmonia em termos
dos conceitos matemáticos de ordem, simetria, complexidade, probabilidade,
informação e entropia”. Uma obra que foi desenvolvida também nessa
direção e que ficou muito conhecida é a de A. Moles Teoria da informação e
da percepção estética (1958).

9. A semiótica da arte de Umberto Eco, a partir de sua famosa Obra


aberta (1969), entre suas outras obras muito mais famosas, está baseada na
teoria dos códigos e da mensagem aberta.

10. A teoria simbólica da arte de Nelson Goodman (1968) é considerada


por muitos como um dos avanços mais instigantes na estética semiótica,
enquanto outros a criticam por ser inadequada aos propósitos de uma teoria
da arte. Nöth chama atenção para o fato de que Goodman evidentemente não
usa o termo semiótica para qualificar sua filosofia da arte, mas isso não passa
de uma questão meramente terminológica.

11. A teoria semiogenética da arte, com uma perspectiva evolucionista,


tem suas raízes na etologia e na zoosemiótica Assim, no seu “Prefigurações
da arte”, Sebeok (1981) estudou o aparecimento de formas estéticas visuais e
musicais entre os animais, e Koch (1984) “desenvolveu uma teoria
semiogenética da evolução artística da natureza à cultura”. Sebeok vê
rudimentos da arte já nos paralelismos morfológicos da natureza, que “ele
associa com um valor de sobrevivência biológica porque o prazer, associado
à percepção de tais objetos estéticos, promove a instrumentalização essencial
de sobrevivência na classificação dos objetos do ambiente”. Koch, por seu
lado, encontra prefigurações da arte nos rituais de corte e outras formas de
comportamento ritualizado, cuja função biológica é a de amplificar a
gratificação primária.
Embora não tenha sido incluída na lista de Nöth, merecem menção as
teorias estéticas que têm se inspirado nos escritos de Derrida, ou naquilo que
ficou conhecido sob o nome de desconstrucionismo e que deve ser
classificado no elenco das estéticas semióticas. Um exemplo importante dessa
tendência encontra-se, na América Latina, no trabalho de Rosa Maria Ravera
(1988).

O restante do artigo de Nöth foi dedicado à discussão das estéticas


semióticas a partir de um ponto de vista sistêmico, dentro das três categorias
de agrupamento já mencionadas acima: 1. a semântica da arte, 2. a
pragmática da arte e 3. os códigos estéticos. Definindo a semântica da arte
como um tipo de aproximação da obra de arte como um signo que deriva sua
qualidade estética de um tipo particular de significado ou modo de referência,
foram incluídos, nesse grupo, Peirce, Morris e Goodman. Na estética
peirceana, foi especificada, dentro da ordem semântica, a tricotomia sígnica
do ícone-índice-símbolo, com a ressalva de não existir consenso sobre o tipo
de signo que melhor caracteriza a essência da arte. Uma outra especificação
semântica da semiótica peirceana está na relação do signo com o
interpretante. Sob esse ponto de vista, Bense caracterizou a obra de arte como
um rema, isto é, como um signo de possibilidade qualitativa que não afirma
nada, enquanto, sob o ângulo da natureza do signo em si mesmo, ainda de
acordo com Bense, a obra se apresenta como polifuncional: é um sin-signo
devido ao seu caráter inovador e criativo, mas, na sua materialidade, é um
quali-signo, assim como é também um legi-signo se os aspectos de
convencionalidade são levados em consideração.

Na intersecção entre o semântico e o pragmático, a teoria estética de


Morris está toda ela alicerçada nos critérios de iconicidade e valor. Por ter
propriedades em comum com seu referente ou designatum, o ícone apresenta
esse referente diretamente. O ícone estético é um signo cujo referente é um
valor. Sendo o valor uma propriedade do objeto relativa a um ato de interesse
do intérprete, o signo estético só existe no processo de interpretação, do que
decorre a contraparte pragmática da estética morrisiana.

A filosofia da arte de Goodman é estritamente cognitiva, estando,


segundo Nöth, em oposição diametral às teorias expressivas da arte, de que as
obras de Croce e S. Langer são exemplos exemplares. Para Goodman,
existem linguagens da arte, sendo as obras algo semelhante a enunciados num
sistema de símbolos. A partir de algumas distinções semióticas, “Goodman
distingue cinco sintomas da arte: 1. densidade sintática (os símbolos não têm
articulação finita ou diferenciação), 2 densidade semântica (os símbolos
distinguem-se por diferenças mínimas), 3. abundância sintática (muitos traços
dos símbolos são significantes), 4. exemplificação e 5. referência múltipla e
complexa”.

As teorias pragmáticas da arte propõem que, ao invés de se buscar o


sentido da arte na sua estrutura sintática ou na função referencial, este nasce a
partir de um ato de atenção estética, “uma atitude semiótica específica no
processo de recepção estética”. Os primeiros a desenvolver explicitamente tal
proposta foram os semioticistas da escola de Praga, especialmente na obra de
Mukarovski, tendo encontrado sua forma de expressão principalmente no
conceito de estranhamento.

Nöth encerra seu texto com as teorias dos códigos estéticos que podem
ser encontradas mais particularmente nas obras de Iuri Lótman (1922-1993) e
Eco. Para o primeiro, a pluralidade dos códigos artísticos está baseada nos
modelos das teorias da informação e da comunicação. As mensagens estéticas
são inovadoras porque se baseiam numa estética da oposição segundo a qual
o receptor tenta decifrar a mensagem inovadora da obra, tomando por base
um código diferente daquele utilizado pelo criador. Com isso, o texto artístico
pode adquirir significados diferenciais para o criador e o receptor. Segundo
Eco, as mensagens inovadoras são geradas em processos de codificação e
sobrecodificação, sendo o código estético resultante de uma dialética entre
mensagens inovadoras e convencionais, as primeiras abertas e as segundas
fechadas.

Tendo em vista o panorama acima das variadas estéticas semióticas,


torna-se mais fácil indagar sobre a real natureza ou vocação de uma estética
semiótica de linha peirceana. Bastante influenciado pela proposta da escola
bensiana ou escola de Stuttgart, Nöth apresenta a estética de Peirce como
uma teoria semiótica das obras de arte. Essa alternativa é, sem dúvida
nenhuma, perfeitamente possível de ser pensada, tanto é que foi assim
proposta também por todos aqueles que refletiram sobre uma estética
peirceana à luz da semiótica, cujos artigos serão discutidos mais à frente.

No entanto, não foi, de modo algum, para um tal tipo de propósito que a
semiótica foi originada, nem foi dessa ordem a relação prioritária
originalmente determinada para a estética e a semiótica. Tanto uma quanto a
outra, conforme já foi sobejamente discutido neste livro, foram concebidas
como ciências normativas, as mais teóricas dentre todas as ciências possíveis,
só perdendo em abstração para a matemática e a fenomenologia. A
generalidade de ambas, aliás das três, com a inclusão da ética,
consequentemente, é de tal ordem que elas jamais poderiam desempenhar o
papel de ciências aplicadas. São, ao contrário, ciências heurísticas, quer dizer,
ciências da descoberta elaboradas num nível exclusivamente teórico, de
abstração máxima. Ciências dessa ordem, sem nenhum vínculo com as
aplicações práticas, podem parecer impossíveis ou inócuas, se não se levar
em consideração que, para Peirce, cada ciência é em si mesma incompleta, só
se viabilizando nas relações que ela estabelece com as demais. Assim sendo,
o papel que as ciências heurísticas e teoréticas, num extremo, têm a
desempenhar é distinto das funções das ciências aplicadas, no outro extremo,
o que não quer dizer que elas não sejam interdependentes.

O fato da estética e da semiótica ou lógica aparecerem, na arquitetura


peirceana, como ciências normativas não significa que não devam existir
teorias estéticas e mesmo semióticas menos abstratas e mais específicas, além
de que devem também existir tanto estéticas quanto semióticas estritamente
aplicadas e mesmo práticas. A relação entre todos esses níveis é de
complementaridade e não de exclusão. O diagrama das ciências foi
vislumbrado por Peirce segundo uma natureza dialógica e pragmática, quer
dizer, de acordo com os efeitos concebíveis de cada ciência. Pois bem, os
efeitos de uma ciência só podem ser concebidos à luz de uma outra ciência.
Tendo isso bem compreendido, podemos então interrogar que tipo de ciência
os comentadores de Peirce pretendem elaborar quando tomam os conceitos
da semiótica para pensar uma estética.

Trata-se, evidentemente, de uma apropriação perfeitamente válida, de


conceitos teóricos da semiótica que versam sobre a natureza, comportamento,
potenciais e limites dos signos, com a finalidade de se pensar uma teoria
estética aplicável à leitura e interpretação dos signos artísticos. Peirce não
previu explicitamente isso, o que não tira, em absoluto, o valor da iniciativa.
Não é aí, portanto, que surgem os problemas que os textos dos comentadores
da estética peirceana apresentam, mas em outros tipos de equívocos, como se
verá a seguir.

Não são muitos aqueles que se aventuraram em reflexões sobre o caráter


de uma estética semiótica de extração peirceana. Seguindo a ordem
meramente cronológica em que os artigos desses comentadores foram
aparecendo, passarei a apresentá-los tendo em vista uma avaliação dos fatores
positivos e negativos da empresa que foi por eles levada a efeito.

Salvo alguma falha de informação, o primeiro a pensar uma estética


semiótica, a partir dos escritos deixados por Peirce, foi M. Oliver Hocut, no
seu artigo “As fundações lógicas da estética de Peirce”, de 1962. Tomando
por base algumas passagens em que Peirce fez referência à estética, o texto
está recheado de pequenos e grandes equívocos. Partindo de três premissas
básicas — 1. a arte como ícone, 2. a beleza como kalós e 3. o senso da beleza
como um interpretante emocional —, Hocutt discute a tese básica de que se o
signo estético é um ícone, seu objeto só pode ser a beleza e o efeito que esta
produz, um interpretante emocional. Para a defesa dessa tese, o artigo é
desenvolvido sobre uma série de conceitos tradicionais, ou talvez
preconceitos, a respeito da arte, beleza, sentimento etc. O conceito peirceano
de ícone puro, por exemplo, é distorcido para se amoldar à noção de essência
ou ideal platônico. A palavra kalós é interpretada como beleza e harmonia,
em franca e ingênua oposição ao sentido vago do admirável que Peirce lutou
para encontrar. Para completar, se é que fui capaz de bem compreender as
tortuosidades do texto, o signo estético ou ícone, mais uma vez em diametral
e ingênua oposição a Peirce, tem seu interpretante emocional em algo como
um sentido da beleza, que é compreendido como um sentimento que tem seu
objeto na qualidade kalós, compreendida como uma totalidade resultante de
um ordenamento das partes de uma maneira essencialmente racional.

Não obstante os equívocos evidentes, o artigo aponta para algumas


questões substanciais, tais como a importância do papel desempenhado pelo
ícone na constituição do signo estético, a abertura e ambiguidade do objeto
do ícone e a ênfase colocada na fenomenologia como base para a estética.

Em 1972, C.M. Smith publicou o artigo “A Estética de Charles S.


Peirce”. Demonstrando uma familiaridade relativamente mais intensa com os
textos de Peirce, o texto tem um grande poder analítico, que se revela no
exame das variações de graus e tipos de iconicidade, todos eles importantes
tanto para a reflexão quanto para a descrição de signos estéticos. Outra
questão fundamental focalizada no texto é a da impressão de imediaticidade
como propriedade da experiência estética. É também o único artigo que
aponta para o papel desempenhado pelo insight na contemplação estética.

Cinco anos mais tarde, foi a vez de J. Jay Zeman publicar o artigo “O
Signo Estético na Semiótica de Peirce”. Um dos traços positivos do texto está
em apontar, com propriedade, para a fundação da semiótica na estética, o que
corrige a errônea interpretação anterior de Hocutt de que a estética peirceana
está fundada na lógica. Outro traço positivo encontra-se na ênfase que o autor
coloca na fenomenologia, discutindo a importância das categorias de
primeiridade, secundidade e terceiridade para se pensar em questões estéticas.
Infelizmente, abandonando no meio do caminho suas discussões sobre qual
poderia ser o caráter do signo estético à luz da semiótica peirceana, Zeman
passou a presumir esse caráter a partir da noção de experiência estética de
Dewey. Se tal opção contribui para a compreensão da estética deste último,
nada nos adianta sobre o entendimento da estética de Peirce, prestando a esta,
de fato, um mau serviço, visto que gera o equívoco de que poderia não haver
diferença entre ambas.

E. F. Kaelin, em 1980, publicou suas “Reflexões sobre a Estética da


Peirce”, nas quais o autor se limita a sintetizar os artigos anteriores de Hocutt
e de C. M. Smith para, a seguir, realizar com o auxílio de Morris algo
semelhante ao que Zeman realizara com o auxílio de Dewey. Em vez de
efetivamente refletir sobre a estética peirceana em seus próprios termos, o
autor pede o socorro da estética semiótica de Morris, criando no leitor a
impressão de que os gatos são lebres.

Mais três anos, e um outro artigo voltado para “Peirce e a Escola de Praga
sobre o Papel Fundamental do Signo Estético” era publicado por Kim Smith.
Embora não tenha nada de novo, trata-se de um texto mais bem cuidado e
mais moderno, no sentido de que começa a levar em consideração algo que
passou a se tornar uma constante desde os anos 80: a consciência de que não
se pode discutir, sob pena de distorções, nenhum fragmento da obra peirceana
isolando-o do todo. A partir de uma leitura relativamente fiel à complexidade
do ícone, Smith passa a colocar toda a ênfase da questão estética no efeito de
unidade que o ícone produz no intérprete.

Levando em consideração quase todos os textos acima mencionados, que


lhe antecederam no tratamento da questão, Herman Parret publicou, em 1990,
um artigo sob o título de “Fragmentos Peirceanos sobre a Experiência
Estética”. O título do artigo já funciona como índice de um certo tipo de
compreensão da estética de Peirce. Acreditando na fala de seus antecessores,
Parret não colocou em questão a presunção de que a estética peirceana não
passa, efetivamente, de um conjunto de fragmentos. Mas a contribuição
importante e original do artigo está na compreensão do interpretante
emocional. Enquanto os outros comentadores levaram esse tipo de
interpretante ao pé da letra, compreendendo-o como um efeito emotivo,
Parret discute esse equívoco, evidenciando que o feeling (sentimento), em
Peirce, não pode ser confundido com avaliação emocional nem com
julgamento perceptivo. Para dar conta do amálgama entre sentimento e
intelecto que Peirce tomou como característico do efeito estético, Parret
nomeia a metáfora como signo estético por excelência.
Há, além desses seis textos, alguns artigos relacionados mais
indiretamente com o tema da estética, como, por exemplo, o artigo de V.
Tejera (1993) sobre “A Semiótica Peirceana e a Estética da Literatura”.
Entretanto, por não estarem focalizando nem direta nem explicitamente a
reconstituição da estética de Peirce, artigos desse tipo, mesmo que relevantes
para o assunto que abordam, não serão aqui comentados.

A característica comum de todos os textos acima mencionados está na


ausência de qualquer menção à semiótica filosófica e ao papel por ela exerce
tanto na constituição das ciências normativas, quanto na redefinição do
pragmatismo peirceano. Consequentemente, fica também mal compreendido,
por todos eles, a maneira muito peculiar com que a estética foi concebida
como ciência. Revelando um desconhecimento quase completo da
classificação peirceana das ciências e do sentido que a palavra “normativa”
adquiriu nesse contexto, alguns comentadores, C. M. Smith e Kaelin, por
exemplo, chegam a afirmar que Peirce concebia a estética como ciência
exata.

Por desconhecerem a estética filosófica, os textos igualam-se na ênfase


que é posta quase exclusivamente na classificação dos signos, o que não é
uma coincidência, visto que, por muito tempo, a semiótica peirceana foi
reduzida pelos comentadores apenas à classificação de signos. Como
consequência dessa redução, conceitos importantíssimos para a estética, tais
como acaso, abdução ou lógica da descoberta são desconsiderados ou
simplesmente ignorados pelo simples fato de não fazerem parte diretamente
da teoria dos signos. Embora Zeman seja o único a chamar atenção para a
importância das fundações da estética na fenomenologia, o aprofundamento
na análise das categorias, que é condição sine qua non para a construção de
uma estética semiótica de linha peirceana, não foi levado às consequências
necessárias.

Não sem razão todos os comentadores parecem siderados pela


importância do ícone para se pensar nas questões estéticas mais
fundamentais. Realmente, a originalidade peirceana foi radical ao introduzir
um tipo de signo ou quase-signo cuja natureza oscila entre ser signo e ser
coisa, quer dizer, um signo que não deixa de ser uma coisa, ou uma coisa que
fica na iminência nunca consumada de ser signo. Enfatizando que a estética
considera os objetos simplesmente na sua apresentação (CP 5.36) ou aquelas
coisas cujos fins estão na corporificação de qualidades de sentimento (CP
5.129), não fica difícil concluir que o ícone é o signo estético por excelência,
visto que “nenhum Ícone puro representa nada além de Forma, nenhuma
Forma pura é representada por nada a não ser um Ícone (...) pois, em precisão
de discurso, os Ícone nada podem representar além de Formas e Sentimentos”
(CP 4.544).

De fato, sendo algo que se apresenta na proeminência da primeiridade,


que é aquilo que tem frescor, originalidade, sendo espontâneo e livre, enfim,
algo de natureza monádica, o ícone parece preencher muitas das condições do
signo estético. No entanto, esse preenchimento se torna muito mais sutil e
eficaz quando a noção do ícone não é isolada nem da lógica triádica na qual
ele se define, de um lado, nem do restante das classificações sígnicas, de
outro. Infelizmente, esses aspectos foram negligenciados pela maioria dos
comentadores acima mencionados.

Em primeiro lugar, trata-se de se levar em consideração que o ícone se


refere a um dos ângulos apenas entre muitos outros através dos quais
qualquer signo deve ser observado. Quando uma boa parte desses ângulos é
posta em evidência, tornam-se muito mais compreensíveis as razões pelas
quais uma estética extraída da semiótica peirceana não apenas faz bastante
sentido como também parece ser imprescindível. Antes de tudo, cumpre
recordar e enfatizar que todo signo tem uma natureza triádica, tendo um certo
tipo de propriedade em si mesmo que, irá determinar o tipo de relação que ele
pode manter com o objeto que o determina e ao qual ele se refere, assim
como determinará o tipo de interpretante ou efeito interpretativo que ele está
apto a produzir numa mente. Ora, quando falamos em ícone, estamos levando
em consideração apenas a relação do signo com seu objeto. É certo que, para
estar numa relação icônica com seu objeto, fica pressuposta a natureza que
esse signo tem em si mesmo, ou seja, fica pressuposta a sua natureza de um
quali-signo. Cumpre, contudo, iluminar as consequências que esse fator traz
para a estética.

Um quali-signo é uma qualidade que é um signo, quer dizer, trata-se de


algo que se apresenta monadicamente, que exibe pura e simplesmente suas
qualidades, e nada mais, sejam elas quais forem - cor, forma, volume, textura,
luz, brilho, dimensão, volume, proporção, peso, densidade, som, movimento,
ritmo, cheiro... É claro que, para exibir suas qualidades, algo tem de existir no
mundo (quer dizer, ser um sin-signo), além de que, para existir e continuar
existindo, sem desaparecer no instante mesmo em que aparece, esse existente
precisa se conformar ou estar de acordo com certas leis (quer dizer, ser
também um legi-signo).

No entanto, há coisas ou fenômenos que se apresentam


proeminentemente como simples qualidades e muito pouco ou quase nada
além delas. Essas coisas são predominantemente quali-signos. Justamente por
serem proeminentemente quali-signos são apenas quase-signos, visto que
simples qualidades não têm nenhum poder de referência. Mas exatamente por
terem pouco ou nenhum poder de referência, as qualidades têm um alto poder
de sugestão. Quaisquer qualidades podem se assemelhar a quaisquer outras.
Para isso, basta que elas pareçam semelhantes para uma mente interpretadora.
Ora, o reino das qualidades é o reino das correspondências, um reino sem
limites, nem regras, nem cerceamentos. Quando muito, o que pode haver é
uma tendência das qualidades a se organizarem em sistemas de leis. Assim
são, por exemplo, as cores, ou o som. É em razão disso, por exemplo, que,
quando o ser humano faz música, ele apenas puxa a corda da natureza.

Sendo um quali ou quase-signo, algo só pode ser um ícone. Uma vez que
uma propriedade monádica, como é aquela das qualidades, é não-relacional,
não fazendo referência direta a algo externo, mas apenas se apresentando na
sua talidade, tal qual é, o quali-signo que, na relação com seu objeto é um
ícone, só pode se referir a algo externo em virtude de caracteres que lhe são
próprios e que ele possuiria de qualquer modo, independentemente da
existência de qualquer outra qualidade que possa ser semelhante a ele. É
verdade que o quali-signo icônico só funciona como signo quando essa
semelhança é estabelecida. Contudo, não é a semelhança que faz do ícone o
que ele é, mas apenas a qualidade da aparência que lhe é própria.

Ora, quando encontram uma mente interpretadora, o efeito que qualidades


estão aptas a produzir são efeitos também qualitativos, quer dizer, são
qualidades de sentimento, tão-só e apenas sentimentos, não necessariamente
no sentido de comoção corpórea, sensação física ou emoção codificada.
Embora o sentimento possa ser acompanhado por essas variações e
complicações, quanto mais a qualidade for proeminente, mais ela tenderá a
produzir meros sentimentos desprendidos, suspensos no tempo e no espaço
em grandes ou pequenas cápsulas fugidias de eternidade. Cápsulas que
aparecem com a mesma rapidez com que desvanecem, pois o ser humano está
equipado para a prontidão interpretativa, não podendo separar o sentir do
pensar. Mesmo assim, no entanto, o máximo que qualidades podem produzir
como efeito intelectivo são comparações, hipóteses de semelhanças.

Parecem falar por si as relações íntimas da tríade acima com as condições


de tudo aquilo que é chamado de objeto estético, fato estético ou experiência
estética. Aliás, uma das coisas que a lógica ternária da semiótica peirceana
apresenta de melhor é que essa lógica permite e exige que sejam tratadas de
modo integrado as três mais importantes questões com as quais a estética
sempre se debateu, ou seja, 1. a questão do objeto estético em si (que,
semioticamente, de resto, passa a ser visto como “signo” estético, para evitar
sua confusão com o termo “objeto”, tecnicamente definido como aquilo a que
o signo se refere ou a que o signo pode ser aplicado); 2. a questão da
referência, quer dizer, da relação que o signo estético mantém com tudo
aquilo a que ele pode porventura se aplicar; 3. a especificidade do efeito ou
interpretante característico que o signo estético está apto a produzir no
intérprete. Enquanto o exame do signo em si mesmo, dos seus caracteres, de
suas qualidades proeminentes, envolve o que costumeiramente é chamado de
imanência, a relação signo-objeto permite entrever com base na imanência, a
objetivação ou contextualização do signo, isto é, as situações a que ele se
reporta, os objetos a que ele se refere, ao mesmo tempo em que ambos, signo
em si e signo-objeto, permitem compreender os processos interpretativos
pelos quais o signo pode passar, quer dizer, por que o signo é capaz de
produzir o efeito que ele está apto a produzir.

Organizam-se, desse modo, num caleidoscópio de relações triádicas, os


conceitos - tais como unidade, imediaticidade, suspensão dos sentidos - com
os quais as teorias estéticas sempre trabalharam, sem conseguir integrá-los
coerentemente. Resumindo, portanto, são os caracteres próprios do estatuto
eminentemente qualitativo do signo estético que vão determinar as relações
sempre ambíguas e indecidíveis que esse signo está fadado a manter com
seus objetos sempre apenas possíveis. E é essa ambiguidade, nas aplicações
do signo a algo que está fora dele, que é responsável pelo efeito de abertura
interpretativa, impressão de unidade indiscernível na imediaticidade do
sentimento, que o signo estético preponderantemente produz. É por isso que,
mesmo que um signo estético se refira, à primeira vista, a algo externo, como
pode acontecer numa pintura e, muito mais, numa fotografia, ou no cinema,
ou no vídeo, o que faz do estético aquilo que ele é, não é a referência, mas a
ambiguidade dela. São as qualidades intrínsecas do signo que se colocam em
primeiro plano, pois, se assim não fosse, ele não estaria apto a produzir o
efeito de suspensão do sentido, ou desautomatização dos processos
interpretativos entorpecidos pelo hábito, suspensão esta responsável pela
regeneração perceptiva, mudança de hábito de sentimento na qual se
consubstancia o efeito característico que faz desse signo o que ele é: estético.
Não importa quão diferentes possam ser as teorias do estético, em todas elas
há sempre uma ênfase comum que é colocada justamente nessa questão do
efeito caracterizador do estético como tal. Sobre isso, Jorge Luis Borges
(1899-1986) apresentou passagens admiráveis (1976, p. 12 e 1983, p. 126,
respectivamente):
A música, os estados de felicidade, a mitologia, as caras trabalhadas pelo tempo, certos
crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou disseram algo que não deveríamos ter
perdido, ou estão para dizer algo, esta iminência de revelação, que não se produz, é, talvez, o fato
estético.

Foi isso o que sempre ensinei, limitando-me ao fato estético, que não precisa de definição. O fato
estético é algo tão evidente, imediato e indefinível quanto o amor, o gosto da fruta, a água.
Sentimos a poesia como sentimos a presença de uma mulher, uma montanha ou uma baía. Se ela é
sentida de imediato, por que diluí-la em outras palavras, que certamente serão mais frágeis do que
nossos sentimentos?

Numa passagem bastante similar às de Borges e que, de resto, faz eco a


um ponto de vista a respeito da constituição do estético que não parece ter
sido, em qualquer ocasião, refutado por nenhum daqueles que se dedicaram à
discussão do tema, Peirce afirmava (CP 5.132):
Então, não obstante minha incompetência nisso, a tarefa se me impõe de definir o esteticamente
bom - um trabalho que muitos artistas filosóficos já fizeram tantas tentativas de realizar. À luz da
doutrina das categorias, pode ser dito que um objeto, para ser esteticamente bom, deverá ter uma
multiplicidade de partes, relacionadas umas com as outras de tal modo a conferir uma qualidade
positiva, imediata e simples à sua totalidade, e não importa, qualquer que seja o esteticamente
bom, qual qualidade particular essa totalidade tenha. [Não importa] se a qualidade é capaz de nos
enojar ou assustar ou nos perturbar a ponto de nos colocar fora do humor próprio ao prazer
estético, fora do humor de simplesmente contemplar a corporificação da qualidade — do mesmo
modo como, por exemplo, os Alpes afetavam os povos dos velhos tempos, quando o estágio da
civilização era tal que uma impressão de grande poder estava inseparavelmente associada com a
apreensão vívida e o terror — mesmo assim, o objeto permanece esteticamente bom, muito
embora as pessoas nessas condições fiquem incapacitadas para ter dele uma contemplação estética
calma.

Entretanto, diferentemente de muitas teorias do estético, que se


restringem à ênfase apenas no efeito indiscernível que o objeto ou o fato
estético são capazes de produzir no receptor, perfazendo o que vem a se
constituir naquilo que é chamado de experiência estética, a semiótica
peirceana nos fornece elementos teóricos para refletir sobre muitas outras
características do estético, uma dessas características estando na mistura
inextricável do sentimento e da razão, da afecção não apenas sensível, mas
também intelectiva que marca o estético com o perfil que lhe é próprio. De
resto, na contemplação estética, que se faz acompanhar do sentimento,
misturado à afecção, sensação e promessa de intelecção, estão
indissoluvelmente atadas as três categorias. Era para essa inseparabilidade
das categorias que Peirce (CP 5.113) queria chamar atenção, quando fazia
menção à simpatia intelectual ou razoabilidade do sentimento que o efeito
estético produz:
Mas é o prazer estético que nos interessa; não obstante seja um ignorante em Arte, tenho uma boa
capacidade para o prazer estético; e parece-me que, embora no prazer estético nós consideremos a
totalidade do sentimento — e especialmente a Qualidade de Sentimento total resultante que se
apresenta na obra de arte que estamos contemplando — mesmo assim é uma espécie de simpatia
intelectual, o senso de que aí está um Sentimento que se pode compreender, um Sentimento
razoável. Não sou capaz de dizer exatamente o que ele é, mas se trata de uma consciência que
pertence à categoria da Representação, embora representando algo da categoria da Qualidade de
Sentimento.

Tal afirmação nos leva quase inevitavelmente a compreender a obra de


arte como um tipo muito particular de signo que é capaz de dar forma,
encarnar qualidades de sentimento. Nada pode haver de mais vago, incerto,
indeterminado e impreciso do que qualidades de sentimento. A obra de arte
seria aquela instância semiótica muito rara, capaz de realizar a proeza de dar
corpo e forma ao incerto e indeterminado. E ela assim o faz através do
exercício daquilo que Peirce intraduzivelmente chamou de Musement
(“uberdade”), fonte da abdução que é exercitada pela força meiga de uma
razão aventureira, razão que se entrega à aventura, que brinca, razão lúdica.

É certo que está muito longe de existir em Peirce qualquer coisa


semelhante a uma discussão específica ou uma análise das complexidades do
estético, tal como aquela que pode ser encontrada na terceira crítica de Kant e
da qual, como já foi mencionado, de passagem, Lyotard (1991) nos fornece
uma versão analítica preciosa. São multidimensionais, no entanto, os
instrumentos que sua teoria de signos nos fornece para a formulação de uma
estética semiótica. Uma vez que a discussão aprofundada dessa questão seria
capaz de atingir a extensão de um outro livro, limito-me aqui a fornecer
algumas pistas para serem seguidas e levadas adiante, quem sabe, por alguém
que se interesse por elas.

Parece, de fato, que a contemplação estética se produz na mistura


inextricável das três categorias, envolvendo elementos próprios ao sentir, à
porosidade sensória do deleite (primeiridade), assim como ao esforço
interpretativo implícito na percepção, na observação entre distraída e atenta
de um objeto (secundidade), além da promessa de compreensão e
assentimento intelectivo com que esse objeto nos acena (terceiridade).
Mesmo que assim seja, a teoria dos interpretantes de Peirce nos fornece
elementos para perceber que, muito embora o signo possa apresentar
potencial para o advento de processos interpretativos multifacetados, densos
e complexos, isso não significa que esses processos tenham de realmente se
efetivar quando o signo atinge o receptor. Ao contrário, dependendo do
receptor, o interpretante pode muito bem estacionar no nível puro e simples
de uma qualidade de sentimento, sem que o receptor seja levado à atividade
mais combativa de realização de um esforço interpretativo, tendo em vista
responder ao aceno intelectivo do signo. É o que acontece, por exemplo,
quando receptores não especializados ouvem música. O interpretante pode
perfeitamente permanecer no nível de um sentimento indeterminado,
enquanto, de outro lado, os especialistas são capazes de ir mais além e, sem
perder a qualidade de sentir, chegar a atá-la à compreensão intelectual da
composição.

Entretanto, o mais importante da semiótica, como meio de compreensão


do estético, não está apenas no elenco variado de interpretantes que ela arrola,
mas no exame das classes e misturas sígnicas que ela permite. O ícone, por
exemplo, que parece, de fato, poder ser eleito como o signo estético por
excelência, não deve ser tratado à maneira de um monólito como é comum
acontecer. Se até mesmo o signo mais corriqueiro e habitual está longe de
aparecer em estado puro, o que dizer do signo estético, que é aquele que
provavelmente leva o potencial de misturas sígnicas à potência mais elevada?
Pois bem, são essas misturas que a semiótica peirceana nos permite
discriminar em detalhes e variação de ângulos, tanto nas relações internas do
signo, quanto na sua relação com o objeto e com o interpretante.

Em síntese, a semiótica peirceana não é outra coisa senão uma teoria


sígnica do conhecimento, original o suficiente para incorporar
promiscuamente ao conhecimento todos os elementos do sentir, da
percepção, afecção, emoção, ação, surpresa, dúvida e transformação. É essa
promiscuidade que permite dar conta dos desafios que o signo estético
apresenta, oferecendo-nos meios para compreender, sob uma nova luz,
conceitos que têm atravessado séculos, entre os quais, a imediaticidade do
efeito estético, a peculiaridade do sentimento por ele provocado, a
ambiguidade do signo, as imprecisões criativas das suas relações com o
objeto e o contexto, e as inesgotáveis potencialidades interpretativas que ele
apresenta.

Se, de fato, há uma imediaticidade peculiar ao sentimento estético, à luz


da semiótica como uma teoria da mediação sígnica, essa imediaticidade
nunca pode ser confundida com a mística de um efeito não mediado, pois a
qualidade de sentimento, que é a resposta mais imediata e primeira, pura e
porosa que podemos ter das coisas já funciona como uma fina película
mediadora, como uma forma rudimentar de predicação. Se o efeito estético
nos envolve num sentimento à primeira vista não-cognitivo, a
inseparabilidade das categorias nos faz ver que, longe de se tratar aí de uma
exclusividade do sentimento, trata-se, isto sim, de uma espécie muito peculiar
de mistura inextricável entre o sentir e o pensar que dá ao estético seu matiz
característico. Entretanto, por mais que o efeito estético seja preponderante, a
ênfase que a semiótica coloca no signo em si mesmo não permite que se
perca de vista a objetividade do signo. É essa objetividade que possibilita a
reflexão. Por mais que o sentimento prepondere, o signo está lá,
objetivamente lá, ao qual podemos sempre retornar tanto pela via de uma
convivência calma e continuada, quanto pela via da razão lúdica ou do
esforço reflexivo.

Se o signo estético não tem um compromisso direto com o contexto, quer


dizer, se ele não está explícita e diretamente atado a uma causa externa, ele é,
no entanto, o signo que mais intimamente se aproxima do real. Na sua
modalidade de quase-signo, entre ser signo, sendo coisa, o signo estético é
raro porque é o único tipo de signo que arranha o impossível do real. Por ser
o mais fictício de todos os signos, muito mais atrelado às suas próprias
determinações internas do que às externas, ele é, no entanto, o mais
revelador, porque na sua ambiguidade é capaz de flagrar o cerne da realidade,
lá onde o ambíguo e o indeterminado fazem sua morada. Essas são, enfim,
algumas das questões que uma estética semiótica de linha peirceana deixa
entreabertas, reclamando por explorações mais cuidadosas.
NOTAS FINAIS

O título “Notas Finais”, em lugar de conclusão, é fiel ao espírito do que


será aqui brevemente desenvolvido. Não se trata de concluir. Isso seria
ilusório, dadas as inúmeras possibilidades de rotas de aprofundamento que se
abriram no decorrer deste trabalho, desde, por exemplo, o estudo comparativo
da estética peirceana com as estéticas filosóficas legadas pela tradição ou
com a de qualquer outro filósofo, ou ainda, de outro lado, a comparação das
estéticas semióticas com a peirceana, até a relação mais detalhada da estética
e da semiótica de Peirce ele mesmo.

Uma vez que os capítulos foram pontilhados, aqui e ali, de algumas


considerações mais generalizantes, a finalidade destas notas é a de
complementar esses pontilhamentos, sintetizando as principais ideias e
marcando, com um pouco mais de ênfase, o teor da contribuição que Peirce
trouxe para o tema e a relevância atual dessa contribuição.

Antes de mais nada, devo confessar que, cada vez mais, tenho perdido a
noção da medida em que meus trabalhos apresentam uma fidelidade estrita às
palavras e ao pensamento de Peirce. É evidente que fidelidade completa não
existe. É a própria semiótica, de resto, a primeira a nos evidenciar que toda
leitura e toda interpretação é inalienavelmente um processo de tradução. Há,
consequentemente, sempre uma distorção, para piorou para melhor, avanços
ou recuos, um pouco de verdade e um pouco de mentira em qualquer
interpretação da palavra do outro. Entretanto, o que estou tentando colocar
aqui em discussão não é uma concepção ingênua de fidelidade, mas o fato de
que, quando convivemos, por muitos anos e muito intimamente, com a obra
de um autor, chega-se a um determinado ponto nessa convivência em que se
instala um grau de familiaridade e cumplicidade tal com o pensamento do
outro que já não somos mais capazes de marcar os limites — se é que isso,
em qualquer momento, seja possível — entre onde começam as ideias que
são nossas e não do outro, até onde o outro, de fato, chegou a formular
aquelas ideias e em que medida somos nós que estamos afirmando a partir de
um lugar onde não havia originalmente senão sugestões e indícios.

Enfim, quando paramos de meramente ler um autor para começar a


adivinhar os desígnios do seu pensamento? No caso de Peirce, isso se dá de
forma muito acentuada, tendo em vista as condições quase calamitosas de
desagregação física da obra que ele deixou para a posteridade, o que tornou o
acesso a ela uma experiência inevitavelmente fragmentária. Bernstein (1990,
p. 196) pondera com muita justeza que “envolver-se em diálogo crítico com
Peirce exige não somente pensar através do que ele diz, mas pensar além do
que ele fala”. Isso é, verdadeiramente, o que aconteceu neste livro, onde
grande parte das ideias expostas não veio diretamente de Peirce, mas foi
inferida, deduzida — e por quê não? — quase adivinhada a partir de Peirce.

Numa breve síntese, sua estética pode ser vista, conforme já foi mais ou
menos claramente discutido, sob pelo menos três aspectos, ou melhor, dois
aspectos, sendo que o primeiro deles se subdivide em dois níveis. Tal como
ele a concebeu explicitamente, ela é uma disciplina filosófica que tem por
função determinar qual é a meta suprema da vida humana, uma meta para ser
adotada deliberadamente, sem nenhuma imposição de nenhuma espécie. Ora,
para ser uma adesão livre, deve ter por finalidade um estado de coisas que se
auto-recomenda independentemente de qualquer consideração ulterior. A
pista para encontrar algo tão raro, Peirce foi buscar no kalós grego, algo que
toda alma vagamente deseja e muito mais vagamente percebe — um ideal
admirável, tendo a única forma de excelência que uma ideia desse tipo pode
ter: a excelência estética.

Mas qual é afinal esse ideal? Não levou muito tempo para ele ser definido
como sendo a essência da razão em si mesma. Faz parte dessa essência a sua
incompletude inelutável. É como a personalidade de uma pessoa, dizia
Peirce, que consiste nas ideias em que ela vai acreditar e, com base nessas
crenças, não importa quão imprecisas elas sejam, essa pessoa vai agir e
produzir, fazendo suas ideias se desenvolverem nos momentos em que as
ocasiões efetivamente surgirem (CP 1.615). Quando essas ideias estarão
plenamente, completamente realizadas? Nunca. É mais ou menos em função
disso que a morte de todo ser humano, por mais tardia, sempre parece
precoce. Assim é a razão. Sua essência é nunca estar completa. E suas
realizações parciais, cabem a nós desenvolvê-las, fazê-las crescerem.

Entretanto, uma coisa é se aspirar, com maior ou menor intensidade, a


uma meta, outra coisa é se adotar e se empenhar deliberadamente na
concretização dessa meta. Peirce estabeleceu essa diferença quando concebeu
a ética como um ato voluntário para a realização do ideal. Mas uma coisa é
ter um ideal individual, autocentrado, outra coisa é cultivar e se empenhar em
ideais cujas finalidades não se esgotam em qualquer indivíduo, não importa o
montante de importância que esse indivíduo possa se dar, ou que os outros,
por um motivo ou outro, podem lhe dar. A razão, como processo dinâmico,
cujos fins nos são ocultos, mas que, não obstante, dependem de nós, de cada
um de nós, para serem configurados e atingidos, é, para Peirce, o ideal
Supremo da vida humana. Na sua metafísica, ele viria a ligar a lei da razão
com o agapismo, a lei do amor evolutivo. O amor como o sentimento que dá
ocasião para a razão se corporificar. É assim que um cientista se apaixona por
uma ideia, uma tenra ideia, ainda sem força, que ele passa a cultivar, a cuidar
dela como cuidamos de flores, sem nenhuma outra expectativa a não ser a de
que elas nos respondam com vida. Embora soe instigante, continuar no
caminho dessa ideia levaria estas notas finais para direções imprevistas.

Segundo Bernstein (1990, p. 199), a concepção peirceana do admirável é


um amálgama do Bem platônico com aquilo que Kant entendia por ideias
reguladoras da razão. Contudo, além do fato de que, para Peirce, o ideal está
sempre em processo de transformação, um outro ponto de sua originalidade
está em que o ideal não tem a referência do seu desenvolvimento numa meta
traçada pelo Absoluto, mas é adotado por um agente pela mediação de um
hábito de sentimento o qual, através de seu caráter de determinação eficaz,
modificará a ação do agente em função desse ideal. Com maior originalidade
ainda, Peirce acrescentou que esses hábitos de sentimento, através dos quais
aderimos ao ideal, estão sujeitos ao autocontrole e à autocrítica, esta, por sua
vez, sujeita à heterocrítica. Os ideais se desenvolvem, são corrigidos (Potter,
1966, p. 28-29). Modificam-se no tempo, pois, se assim não fosse, a
razoabilidade não poderia crescer.

Numa integração harmônica e dinâmica das faculdades humanas —


pensamento (autocrítica), ação (autocontrole) e sentimento (atração pelo
ideal) — atadas num único nó, ao mesmo tempo em que a irredutibilidade de
cada uma é garantida, as ciências normativas têm por finalidade estudar essa
integração. A lógica é o estudo dos meios de atingir a meta do pensamento. A
princípio, Peirce considerou a ética como responsável pela definição dessa
meta. Depois viu com mais clareza que é à estética que cabe essa
determinação, sendo a aquisição de hábitos e a mudança de hábitos de
pensamento, ação e sentimentos, através do autocontrole e da autocrítica,
aquilo que efetiva essa determinação.

Toda ação tem um motivo: mas um ideal só pertence a uma linha de


conduta que é deliberada. Dizer que a conduta é deliberada implica que cada
ação, ou cada ação importante, é revista pelo agente à luz do julgamento se é
desejável que sua conduta futura seja modificada ou não. Seu ideal é a
espécie de conduta que o atrai para essa revisão. Sua autocrítica, seguida por
uma resolução mais ou menos consciente que, por sua vez, excita uma
determinação do seu hábito, modificará, com a ajuda da sequela, uma ação
futura, mas não será, de um modo geral, uma causa impulsionadora da ação.
É quase uma disposição puramente passiva para um modo de fazer o que quer
que ele seja levado a fazer. Embora isso afete a sua própria conduta e a de
mais ninguém, a qualidade de sentimento (pois não passa de uma mera
qualidade de sentimento) é a mesma, quer sua conduta ou aquela de uma
outra pessoa, real ou imaginária, seja o objeto do sentimento, quer ela esteja
conectada com o pensamento de qualquer ação ou não. Para a conduta ser
cuidadosamente deliberada, o ideal deve ser um hábito de sentimento que
cresceu sob a influência de um curso de autocrítica e heterocrítica; e a teoria
da formação deliberada de tais hábitos de sentimento é o que deve ser
significado por estética (CP 1.574).

Esse é, assim, o primeiro nível do primeiro aspecto da estética, a teoria da


formação deliberada de hábitos de sentimento em função de um ideal de
razoabilidade concreta cuja criação e crescimento depende da pequena função
de cada um de nós, no sentido de tornar o mundo mais razoável, sempre que
nos cabe fazê-lo (CP 1.615).

O segundo nível, ainda do primeiro aspecto da estética filosófica, nível


este que Peirce apenas sugeriu, sem chegar a desenvolver, caracteriza-se
como uma determinação especial do primeiro nível, sendo, por isso mesmo,
menos abstrato do que este. Tem por objetivo estudar os fenômenos na sua
primeiridade, quer dizer, estuda tudo aquilo que permite promover o ideal
estético, transformando, desenvolvendo, transformando outra vez, e
interminavelmente hábitos de sentimento. É nesse nível que são estudados os
princípios que governam a produção e recepção de objetos estéticos. Embora
não seja privilégio exclusivo da arte, uma vez que há inumeráveis fenômenos
estéticos, não necessariamente artísticos, que são capazes de incitar o
autocontrole para a criação de novos hábitos de sentimento, os produtos
artísticos são privilegiados porque, de um modo geral, têm como finalidade
prioritária exatamente a regeneração da sensibilidade perceptiva, no
intercâmbio e integração que promovem entre a razão, o esforço e o
sentimento.

O segundo aspecto da estética peirceana não foi diretamente sugerido por


Peirce, mas pode muito bem ser inferido a partir do que ele nos legou. Tanto
pode que, conforme foi desenvolvido no Capítulo 10, um grupo de
comentadores dedicou-se exatamente à tarefa de refletir sobre qual poderia
ser a natureza de uma estética baseada na teoria geral dos signos. Sendo a
semiótica a teoria de todos os tipos possíveis de signos, entre esses tipos
estão certamente aqueles que poderiam ser considerados como signos
estéticos por excelência. Uma tal exclusividade é altamente discutível, visto
que aquilo que deve mais presumivelmente existir são certas misturas
privilegiadas de signos, e não um único tipo especial de signo estético. De
qualquer modo, a ideia de uma teoria especificamente estética poder ser
inferida da semiótica faz muito sentido.

De fato, poucas teorias estão tão bem equipadas para pensar os desafios e
sutilezas da experiência estética e das produções artísticas em geral quanto a
semiótica peirceana, em primeiro lugar, porque ela está fundada sobre uma
fenomenologia não-racionalista, não-logocêntrica, que leva em consideração
toda e qualquer experiência, desde o sentimento mais tenro e o pensamento
mais incerto até uma ideia abstrata, tanto quanto possível precisa e altamente
elaborada da ciência, sem excluir a faticidade dos nossos encontros concretos
com o mundo, faticidade esta considerada e integrada dentro de uma teoria da
percepção rica e complexa. Em segundo lugar, e consequentemente, porque
se trata de uma semiótica que faz um mergulho em profundidade no universo
dos signos, o que lhe dá um grande poder discriminatório para a análise de
processos sígnicos das mais diversas espécies, e nos mais variados graus de
misturas. Além disso ainda, porque foi dentro da semiótica que se deu o
nascimento do conceito originalíssimo de abdução, o quase raciocínio
responsável por todas as descobertas e iluminações humanas, cujos processos
são imprescindíveis para a estética, tanto do ponto de vista da produção
quanto da recepção de fatos e objetos estéticos, ou melhor, de signos
estéticos, para sermos mais fiéis à letra e ao espírito da semiótica de Peirce.

Uma estética semiótica de linhagem peirceana é, aliás, perfeitamente


pensável não só pelas razões acima, mas porque, de uma certa forma, ela
estava prevista na concepção pragmática que Peirce tinha das ciências. Quer
dizer, nenhuma ciência é suficiente em si mesma, nem tem sentido em si
mesma, sua natureza só podendo se expressar através dos tipos de relações
que ela mantém com as demais. Uma constante dessas relações está no fato
de que as ciências mais abstratas fornecem princípios para as menos abstratas
e as menos abstratas fornecem dados para aquelas.

Assim sendo, a fenomenologia e a estética, por exemplo, fornecem seus


princípios para a semiótica, e esta lhes abastece com os seus dados, no caso
as definições e tipologias de signos. Enfim, abastece com a compreensão dos
modos de significar, denotar e conotar dos signos, além dos diversos graus de
interpretação que eles podem gerar, sem esquecer os desígnios da ação
humana, tendo sua mediação nos signos. Um indicador flagrante da interação
indissolúvel entre a estética o a semiótica está, só para ficarmos em um único
exemplo, no papel desempenhado pelo interpretante lógico último ou
mudança de hábito, estudado dentro da semiótica, para a definição do ideal
supremo da estética, o crescimento da razoabilidade.

Nesta época em que vivemos, de colapso dos ideais, de apologia da


multiplicação etnológica e ideológica dos discursos e dos vocabulários, época
que alimenta um certo tédio e até mesmo desprezo e ironia contra qualquer
pretensão de universalidade dos conceitos, a estética filosófica peirceana
pode, e sem dúvida deve, para alguns ouvidos, soar como uma luta obsoleta
pela defesa de pressupostos fundamentais universalizantes. Há pelo menos
duas questões que devem ser levadas em consideração aí.

Se a estética filosófica de Peirce parece soar como pré-nietzscheana e pré-


heideggeriana, no abandono que estes promoveram de qualquer
epistemologia e metafísica, é preciso levar em conta que Peirce foi o primeiro
a descartar essas duas palavras e os significados que elas carregaram através
dos séculos. Não há dúvida de que, nele, ainda se mantém a busca de ideais
universais, mas dentro de uma moldura diferencial daquela do passado. Para
ele, a universalidade dos valores e da verdade não se legitima ao nível do
Absoluto, nem a história é um meio de ascese a esse Absoluto. Ao contrário,
nada pode estar além das relações que os homens entretêm pela mediação dos
signos. A palavra “princípios”, no contexto peirceano, não quer dizer base
confiável para um conhecimento claro, indubitável e seguro. Ele não
desconstruiu o cartesianismo a partir de fora, como outros filósofos modernos
fizeram, mas o desconstruiu a partir de dentro. “Princípios” significa, assim,
tão só e apenas conceitos mais abstratos, e sempre falíveis, que podem servir
de base para conceitos menos abstratos, e que só são utilizados, tanto uns
quanto outros, na medida mesma em que não foram ainda refutados ou
transformados.

A outra questão diz respeito ao segundo aspecto da estética, o de uma


estética semiótica, inferida dos escritos de Peirce, a qual, por ter um caráter
apenas analítico, estaria à margem da crítica aos ideais. Não estaria, no
entanto, livre da crítica à universalidade, visto que se trata de um aspecto que
se baseia em conceitos tomados como universais, tanto quanto, dentro dos
pressupostos do falibilismo peirceano, os conceitos podem ser universais.
Embora seja necessário, no contexto de um outro tipo de discussão, levar
adiante as considerações acima, fazê-lo agora só nos conduziria para bem
longe destas notas finais. Cumpre, portanto, para reatar o fio que conduz à
rota de chegada, retomar algumas ideias que ficaram vagando pelo caminho.

A estética de Peirce, sob qualquer ponto de observação, tem um caráter


bastante diferencial em relação às do passado. Tendo demolido os dois
alicerces fundamentais — a beleza e o prazer — o casal perfeito que, durante
séculos, serviu de apoio às estéticas filosóficas, diferentemente de outros
filósofos subvertores que só ficaram na demolição, Peirce reconstruiu
cuidadosamente um edifício filosófico para, segundo ele, poder ser habitado
por um tempo mais longo do que o edifício hegeliano foi habitado. Isso não
significa que não sejam encontrados em Peirce ecos ou traços de muitos
outros filósofos, com a exceção, talvez, de Descartes, o qual ele estava perto
de abominar. Mas isso não deve passar, no fundo, de uma forma de também
demonstrar respeito. Tanto é assim que o diálogo com Descartes ocupou anos
do seu pensamento e muitas páginas daquilo que sua obra apresenta de mais
relevante. Nessa medida, Descartes também fez eco em Peirce, nem que seja
um eco pelo avesso.

Numa amostragem muito ligeira e a passos largos de uma constelação


entre outras possíveis, pode-se dizer que, de Platão, Peirce extraiu a atração
pelos ideais e pelo amor como aquilo que dá ocasião para a aparição e adesão
a esses ideais. Diferentemente de Platão, os ideais não são estáticos, eternos e
imutáveis, mas sujeitos ao acaso, à variedade e ao crescimento, estando
expostos, para isso, às vicissitudes e, até mesmo, às brutalidades do real. De
Aristóteles e dos escolásticos, absorveu a paixão pela destilação analítica da
lógica e dos conceitos, tendo herdado de Aristóteles, transformando-o, um
dos conceitos mais originais do seu pensamento, o de abdução. Do
iluminismo, ele trouxe o interesse na compreensão dos processos mentais,
utilizando com desenvoltura, num quadro conceitual totalmente renovado, as
três faculdades da mente humana — pensamento ou entendimento, vontade
ou desejo e sentimento. De Kant, ele herdou a obstinação pela organização
arquitetônica dos conceitos, assim como a defesa dos valores da razão. Mas,
enquanto Kant via as condições de possibilidade do conhecimento como
sendo operações categoriais da nossa consciência, para Peirce, o
conhecimento só pode se dar pela mediação de signos, internos e,
especialmente, externos. Somos nós que estamos nos signos e não eles em
nós, de modo que a noção de consciência e subjetividade, dominante desde os
iluministas, é subvertida pela primazia da linguagem como fator paradoxal de
alienação, mas, simultaneamente, de presentificação do mundo.
Quanto a Hegel, segundo suas próprias palavras, Peirce ressuscitou numa
roupagem estranha. O que Hegel chamou de dialética, ele chamou de
continuidade, ou seja, processos de mudança e crescimento proporcionados
por mediação. Mas, enquanto Hegel teve de recorrer ao Absoluto para
encontrar uma escora e um telos para as mudanças, Peirce viu na mudança a
essência inalienável da própria razão, que, sem perder nunca a interação com
os fatos brutos do mundo, está sempre em estado de incompletude, num
processo cujo fim está permanentemente em aberto. Em qualquer ponto em
que estejamos desse processo, só podemos saber que estamos em um ponto
qualquer do meio do caminho. Nem por isso pode-se estar livre da
responsabilidade ética para com a verdade, visto que os signos são falíveis, e
o ser humano, como signo que é, também é altamente falível, mas passível de
autocorreção. A esperança de que as investigações, quando levadas
suficientemente longe, chegarão, eventualmente, a se autocorrigir é a única
garantia que temos de que algo da verdade, que está sempre em processo,
pode ser atingido.

As possíveis correspondências de Peirce com a contemporaneidade são


evidentes devido ao privilégio que as questões da linguagem ganharam no
seu pensamento e que vieram se tornar a nota dominante na filosofia do
século XX. Questões cujas origens são em geral imputadas a Wittgenstein ou
tomadas como reserva privilegiada do pós-estruturalismo foram fartamente
discutidas por Peirce em incansáveis variações de ângulos. O aspecto mais
relevante da sintonia de Peirce com a contemporaneidade, conforme já sugeri
em outro trabalho (Santaella, 1993), está no fato de que ele inaugurou uma
nova teoria do conhecimento, ou, melhor dizendo, uma teoria sígnica do
conhecimento, como quer K. O. Oehler (1979), tão radicalmente distinta
daquela que a tradição filosófica nos legou que é a única teoria do
conhecimento de que se tem notícia, que não é incompatível com a
descoberta freudiana do inconsciente. Sem abdicar da confiança na razão,
Peirce relativizou essa confiança frente às determinações de forças
enigmáticas que a razão está longe de poder controlar, dominar e muito
menos compreender.

Em meio a esse quadro, sem dúvida delineado com bastante grosseria de


traços, há apenas dois filósofos, aliás, quase filósofos, com cujas concepções
a estética peirceana poderia ser aproximada. São eles: Schiller e Friedrich
Ernst Daniel Schleiermacher (1768-1834). De acordo com Bowie (1990, p.
146-175), a obra sobre estética e hermenêutica, deixada por Schleiermacher,
foi ignorada ou muito prejudicada por leituras e avaliações equivocadas, o
que significa dizer, segundo ele, que a apreciação dessa obra, que foi feita,
por exemplo, por Gadamer em Verdade e método (1977), necessita de revisão
radical. Schleiermacher foi o primeiro filósofo a impulsionar o “giro
linguístico”. Embora enraizado na tradição idealista alemã, sua atenção à
linguagem o conduziu para insights que transcendem a moldura idealista. Ele
não acreditava na habilidade da filosofia para articular o Absoluto. Absoluto,
Unidade mais elevada, Identidade do Ideal e do Real eram, para ele,
esquematas. Sua inclinação para a práxis e a afirmação de que, em todas as
áreas do conhecimento, não se parte senão de princípios arbitrários antecipam
muitas das formulações wittgensteinianas.

Embora tenha dado a elas uma interpretação renovada, foi da escola de


Schleiermacher que Peirce extraiu a noção de que estética, ética e lógica são
ciências normativas, tendo o termo normativo, em verdade, sido inventado
por essa escola. Há, contudo, várias noções, também originadas em
Schleiermacher, que foram encontrar eco em Peirce. Analogias podem ser
encontradas, antes de tudo, na importância dada à linguagem como mediação
intransponível e na concepção do pensamento como atividade.
Schleiermacher foi o primeiro a sugerir que uma dialética adequada não
poderia dispensar uma teoria da descoberta. Peirce seria, mais tarde, o grande
inventor dessa teoria.

No que diz respeito à estética, as semelhanças entre ambos aparecem


quando se focaliza o segundo nível do primeiro aspecto da estética peirceana,
quer dizer, o nível em que a estética leva em conta os objetos considerados
simplesmente na sua presentificação, considerando aquelas coisas cujos fins
são os de corporificar qualidades de sentimento. Para Schleiermacher, a arte
como produto da liberdade humana é o objeto próprio da estética. Em Peirce,
a relação da arte com a liberdade é um bocado mais complexa. Entre as
coisas que têm por finalidade corporificar qualidades de sentimento,
destacam-se certamente as obras de arte. A exposição a elas proporciona a
transformação de hábitos estereotipados de sentimento e a criação de novos
hábitos de sentir capazes de levar ao cultivo do admirável. A adesão
deliberada ao ideal daquilo que é admirável sem nenhuma razão ulterior dá
expressão máxima à liberdade humana.

Mais próximas do que as de Schleiermacher são as analogias de Peirce


com Schiller, assunto que Jeffrey Barnouw (1988) estudou em profundidade.
Para este, a concepção peirceana da estética, como uma disciplina voltada
para a formação deliberada de hábitos de sentimento que deveriam governar
nossas respostas, nossa prontidão para agir de certos modos em certas
circunstâncias, foi moldada pela noção schilleriana da educação estética
como cultivo da capacidade de sentir. Embora Peirce, desde a adolescência,
muito provavelmente não tenha nunca mais relido Schiller, em 1906, ao
indicar os nomes dos autores de quem seu novo pragmatismo recebera
influências, deu relevo ao nome de Schiller, como se segue:
O Pragmatismo faz o pensamento consistir no metabolismo inferencial vivo dos símbolos cujo
propósito repousa nas resoluções condicionais gerais para agir. Quanto ao propósito último do
pensamento, que deve ser o propósito de tudo, isto está acima da compreensão humana; mas de
acordo com o estágio de aproximação que meu pensamento fez disso — com a ajuda de muitas
pessoas, entre as quais devo mencionar Royce (no seu O mundo e o indivíduo), Schiller (nas suas
Adivinhações da esfinge), assim como, aliás, o famoso poeta (nas suas Cartas estéticas) Henry
James, o velho (no seu Substância e sombra e nas suas conversações), junto com Swedenborg ele
mesmo —, é através da replicação indefinida do autocontrole sobre o autocontrole que o devir é
engendrado, e pela ação, por meio do pensamento, um ideal estético cresce (...) Esse ideal, ao
modificar as regras do autocontrole, modifica a ação, modificando a experiência também — tanto
a do próprio indivíduo quanto a de outros, e este movimento centrífugo se liga a um novo
movimento centrípeto, e assim por diante (CP 5.402).

Mencionando especificamente a tragédia, Schiller afirmava que só


quando a arte atinge seu efeito estético mais elevado é que ela pode ter
qualquer influência benéfica sobre a moral; mas ela só pode atingir esse
efeito estético mais elevado através do exercício de uma liberdade completa.
A palavra “estética” era usada por ele num sentido capaz de recuperar a
sensorialidade, a sensação, ambos os termos se referindo ao reino do
sentimento. Não se tratava, contudo, de um sentimento reduzido a si mesmo,
mas de um sentimento mediador ou integrador da sensação e da razão, um
sentimento que é produzido por meio de um conceito. Quando o prazer
advém de uma representação mental ou reconhecimento de uma concordância
ou propósito, ele é livre e ajustado para ser estético. Só aquele estado, na
constituição humana, em que razão e sensorialidade, dever e inclinação, o
ativo e o passivo se harmonizam pode originar a beleza do jogo e assim
satisfazer o sentido estético (Barnouw, 1988, p. 615-619).

São evidentes as analogias com Peirce nos argumentos acima sobre a


necessidade de um concerto das faculdades humanas, mais especialmente, no
apontamento do sentir como meio de integração entre a razão e a sensação,
que caracteriza o estético. Mas, antes de tudo, foi na noção de disposição
estética que Schiller quase antecipou o original conceito peirceano de hábito,
sem o qual não há como compreender a estética deste último. Para completar
as analogias, cumpre mencionar a importância que foi dada por ambos à
liberdade no contexto da estética.

A partir disso, pode-se afirmar com alguma segurança que, embora


Schiller, de fato, tenha antecipado vagamente muitas das ideias que seriam
mais plenamente desenvolvidas por Peirce, foi este quem criou para Schiller
exatamente a moldura conceitual, liberada das amarras kantianas, que ele
tanto buscara, sem ter tido condições de realizar por si mesmo, Certamente,
se Peirce tivesse levado a efeito só essa empresa, já não seria pouco. Mas está
apenas nisso a relevância de sua estética?

No seu belo e instigante artigo “A Sedução do Ideal” (aquele mesmo que


funcionou como fisgamento tão intenso, no seu início, e tão pouco
abrandado, no decorrer dos anos, ao ponto de conduzir minhas ações até a
feitura deste livro), R. Bernstein (1990) faz uma crítica bastante ponderada da
estética peirceana. Não obstante sua admiração pela coragem especulativa de
Peirce, ele questiona se, enfim, há razões para acreditarmos na pertinência, ou
mais ainda, na mera existência de ciências normativas, especialmente porque
Peirce, ele mesmo, disse muito pouco, não indo nada além de obscuras
sugestões sobre os procedimentos e métodos de investigação a serem
empregados por um tal tipo de ciência. Anterior a esse questionamento,
contudo, aparece um outro, ainda mais crucial: é possível se pensar em um
summum bonum, um ideal supremo válido para toda a humanidade,
independente das infinitas variações de tempo, espaço, história, raça, cor,
credo, gênero, independente enfim de todas as contradições antagônicas
(contradições de classe) e as contradições não-antagônicas (vida-morte,
amor-ódio, velho-novo, macho-fêmea...)?

Para responder a essas questões, os ventos, evidentemente, não têm


soprado a favor de Peirce, desde sua morte até os nossos dias. Tanto é assim
que a resposta negativa às perguntas acima vem tão imediatamente que
parece dispensar o tempo a ser gasto em qualquer reflexão mais demorada
sobre o assunto. De fato, a moda epistemológica, desta segunda metade do
século, é a da não-epistemologia, moda que só tem se acentuado nestes
últimos anos: a dos pontos de vista iconoclastas, da negação sumária de
quaisquer fundações, vindo com esta a negação, muitas vezes irônica e até
mesmo cínica, de toda e qualquer espécie de universalismo, fundamento,
princípio, categorização, ideal, em suma, a negação de todos os gerais, em
prol da apologia do singular, relativo, das multiplicidades, enfim.

Apesar das dificuldades que as posições defendidas por Peirce, com toda
certeza, apresentam para nós atualmente, após os questionamentos
necessários, Bernstein defende, no seu texto, que Peirce estava “lutando com
uma questão crítica — questão essa que continua nos perseguindo até hoje”.
Bernstein enfatiza o verbo “lutando” porque, quando entendemos essa luta,
podemos compreender mais profundamente o que Peirce estava tentando
articular.

Antecipando e, na realidade, inspirando aquilo que estaria no cerne do


pensamento de Jürgen Habermas e mesmo de Karl Otto Apel, Peirce queria
se colocar na defesa apaixonada do poder “teimosamente transcendente” (no
dizer de Habermas) de um ideal de razoabilidade concreta que, “embora já
seja sempre antecipado, não pode nunca ser completamente e definitivamente
realizado”(...). “Peirce sabia”, continua Bernstein, “que podemos fracassar e
podemos trair esse ideal de diferentes maneiras. Mas podemos nos abrir para
ele e nos empenhar resolutamente para favorecer seu crescimento”.

De fato, o significado da palavra “normativo”, no novo contexto que


Peirce abriu para ela, é bastante paradoxal, visto que desemboca no ideal
mais aberto e libertário. Não há nenhuma regra, nenhuma norma, nem rígida
nem mesmo flexível, que possa servir como critério suficiente para
determinar, em qualquer momento que seja, qual é o conteúdo efetivo do
ideal da razoabilidade. Mesmo assim, não se trata de um ideal vazio ou vão.
É algo por cuja qualidade qualquer ser humano, em condições relativamente
normais de saúde psíquica e física, se sentirá naturalmente atraído. Não
correspondendo a um estado definido de coisas, a razoabilidade funciona
como uma promessa. Quando Peirce nos diz que “a única coisa que é
realmente desejável, sem razão para o ser, é apresentar ideias e coisas
razoáveis” (apud Bernstein, 1990, p. 203), ele estava deixando a questão em
aberto para mostrar que nosso questionamento acerca do razoável nunca pode
cessar, o que funciona como um convite para aderirmos a esse
questionamento, fazendo da razoabilidade uma promessa operativa.

Peirce conhecia, mais do que ninguém, a intensidade com que a razão, a


partir de forças que estão dentro dela mesma, pode ser fragilizada, tanto pelas
poderosas tendências irracionais que a viram pelo avesso, quanto pelos
perigos sempre iminentes de sua falsa concretização nas mais variadas formas
da razão instrumental. É em função disso que ele pensou ser tão vital nos
empenharmos resolutamente na realização da razoabilidade concreta,
tornando o mundo mais razoável sempre que nos cabe fazê-lo. Como
participantes ativos, na criação do universo, podemos nos tornar receptivos à
sedução desse ideal, cultivando hábitos críticos coletivos de autocontrole
reflexivo. Não há, no ser humano, riqueza maior do que a do autocontrole,
que é conseguido através da autocrítica, esta, por sua vez, atingida através da
heterocrítica. Ora, o autocontrole, em última instância, depende de uma
comparação das nossas ações com um ideal admirável por si mesmo,
independente de qualquer outra coisa que não seja ele mesmo. Nisso se
constitui a razoabilidade concreta.

Bernstein termina seu texto dizendo que, mesmo se hoje ouvimos as


ideias de Peirce com um ceticismo saudável, ainda podemos sentir a atração e
escutar o chamamento que ressoa no apelo apaixonado para nos dedicarmos à
materialização do ideal de razoabilidade concreta em nossos hábitos críticos
de pensamento, ação e sentimento, o que significa continuar no
questionamento do significado desse ideal. Peirce dizia que “aquilo que deve
ser encorajado é meditação, reflexão, devaneios (sob controle) em relação a
ideais”. Mas, neste ponto, ele repentinamente se interrompeu para exclamar:
“Oh, não, não, não! Ideais é uma palavra fria demais. Quero dizer aspirações
apaixonadas e admiradas...” (MS 675, p. 15-16).

Se é certo que exclamações apaixonadas podem soar com uma veemência


imprópria, neste tempo blasé que estamos atravessando, é certo também que
já se faz ouvir a necessidade da busca de um ponto de equilibração entre os
extremos generalizantes do passado e os extremismos relativistas do presente.
Então, quem sabe, a luta apaixonada e impetuosa de Peirce possa encontrar
ouvidos mais abertos e atentos para a sua escuta.
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