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2.3.

3 A burguesia na «Alemanha» do século XVIII

A noção prevalecente em determinadas interpretações da história da


Alemanha, que sublinham o atraso estrutural da sua economia e instituições
políticas, designadamente a ausência de uma classe burguesa autónoma, não
pode ser generalizada.

Se é certo que em determinados Estados, de que o exemplo clássico será o


Grão-Ducado de Weimar, a burguesia alemã se recrutou predominantemente
entre a burocracia letrada ao serviço da corte dos senhores territoriais, já o
mesmo não se aplica a algumas cidades como Hamburgo, centro do tráfego
marítimo atlântico e de Leipzig ou de Frankfurt am Main, importantes feiras
e entrepostos comerciais internos.

Embora a rigidez da estratificação social, o intervencionismo do Estado, a


manutenção das corporações, as barreiras alfandegárias e as diferentes moedas
dificultassem as trocas comerciais, há que recordar que mesmo em monarquias
como a francesa tais dificuldades ainda se faziam sentir. A prová-lo recorde-
-se as medidas de liberalização da economia tomadas pela administração
Turgot ( 1727-1781) e seu subsequente fracasso e respectiva implementação
revolucionária após 1789.

Apesar do atraso em relação aos países economicamente desenvolvidos, como


a Grã-Bretanha e a Holanda, e não obstante a reduzida importância conferida
às trocas internacionais, na ausência de relações coloniais, a política came-
ralista seguida por algumas cortes alemãs desempenhou um papel moderni-
zador, no apoio dado a manufacturas, no recrutamento de quadros não-nobres
para a sua administração, quando comparado com outros territórios europeus.

Saliente-se, ainda, que, apesar da censura e repressão em matéria política, os


territórios alemães - mesmo os católicos - não viviam sob o peso de uma
censura tão violenta como sucedia no Portugal pombalino. O pretenso déspota
esclarecido viria a criar a Mesa Censória que proibia tanto os filósofos
franceses como a Nouvelle Heloise de Rousseau, determinando simul-
taneamente que os estudos fossem confiados ao «santo zelo e ciência» das
corporações religiosas. Isto apesar das magras reformas introduzidas na
Universidade de Coimbra e que tinham como principal alvo a Companhia de
Jesus - de resto acolhida, como atrás já foi referido, por Frederico II na
Prússia, na sequência das perseguições pombalinas - e não tanto a difusão
dos princípios das Luzes.

Em contrapartida, nos Estados alemães, o protestantismo garantira a pos-


sibilidade do desenvolvimento de um espírito crítico sobretudo nas uni-
versidades sob a sua influência, que não deixara incólumes, as suas congé-
neres católicas.

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O surto demográfico, verificado de resto em quase toda a Europa, a que não
foram estranhos os progressos em matéria sanitária e medicinal e encarados,
por isso, como um factor e razão de progresso, também se fez sentir na
Alemanha.

O interesse pela pedagogia, característico do ideal iluminista, não se man-


teve como pura abstracção à boa maneira, diz-se, alemã. Os «poetas e pen-
sadores» esforçaram-se por levar à prática a sua crença em como, só mediante
a educação, os Homens poderiam atingir a felicidade e o progresso. Foi o
caso de Joachim Heinrich Campe (1746-1818) em Wolfenbüttel, de Johann
Bernhard Basedow ( 1723-1790) em Dessau, apoiado por um senhor territorial
anglófilo, ou de Johann Heinrich Pestalozzi (17 46-1827) em Zurique. Se é
certo que tais medidas ficaram aquém do desejado, dada a situação de miséria
mais ou menos extrema em que camponeses e pequenos artesãos continuavam
a viver, o mesmo sucedia noutras regiões europeias, mesmo na França antes
de 1789, como o comprovam a crise de penúria e a fúria das massas nas
vésperas da Revolução , bem como os contínuos esforços do jacobinismo
por assegurar a igualdade que o liberalismo deixava esquecido.

O papel desempenhado a nível intelectual pela burguesia culta manifesta-se


ainda no emergir de um espaço de debate público, em estreita associação
com os ideais de progresso e de esclarecimento, como adiante se analisará
(cf. Cap. III.3) . O surto da imprensa, das sociedades de leitura (Lesegesell-
schaften) demonstra que, nalguns locais, o emergir de uma opinião pública
já se fazia sentir nos territórios alemães, antes do eclodir da Revolução
Francesa.

Pode, portanto, afirmar-se que o atraso relativo do espaço cultural alemão,


quando comparado com a situação nos países económica e politicamente
mais desenvolvidos da Europa, se esbate quando se toma em consideração,
por um lado, outras zonas mais afastadas dessa zona de influência, como o
Leste e o Sul da Europa e, por outro, a situação extremamente diferenciada
dos territórios alemães.

2.4 Aujkldrung(en)

Como já se assinalou, a comparação entre as diversas zonas europeias tanto


mais se justifica, quanto o século XVIII se caracterizou pelo intenso
intercâmbio entre as mesmas, fundando uma herança europeia naquilo que
tem de pior e de melhor. Reduzir as Luzes a um movimento uniforme é tão
inexacto, quanto recusar extrair as convergências que, apesar das diferenças,
se fizeram sentir nos movimentos que aderiram a esta corrente um pouco
por toda a Europa.

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Em comum possuem

• a crença numa racionalidade emancipatória como fonte de poder


sobre a natureza, fiel à máxima de Francis Bacon segundo a qual
«o conhecimento é poder»;

• o zelo pedagógico, baseado na crença que a educação auxiliará os


homens a aproximar-se de um ideal de perfeição e de bem-estar;

• o pendor crítico, na sua apropriação céptica do passado;

• a ênfase colocada no experimentalismo, a recusa de autoridades e


de verdades absolutas como algo de dado;

• a tónica na capacidade de os indivíduos se esclarecerem com base


no princípio da autonomia;

• a secularização do pensamento filosófico e político.

Se é certo que as Luzes naAlemanha conheceram uma evolução diferenciada,


consoante a zona confessional em que se desenvolveram, pode, contudo,
afirmar-se que a Aujklarung se revelou em regra geral mais moderada nas
suas conclusões do que os movimentos seus congéneres ingleses e franceses,
designadamente, no que toca à conciliação entre a religião revelada e a religião
natural, entendidas como visões complementares e não se excluindo
reciprocamente. Este traço é comum a Gottfried Wilhelm von Leibniz,
Christian Wolff (1679-17 54 ), Gotthold Ephraim Lessing ( 1729-1781) ou
mesmo Immanuel Kant, ao propor o impossível acesso à metafísica a nível
do conhecimento, mas a possibilidade de a mesma ser salvaguardada pela
razão prática.

Para tal terá contribuído o multiconfessionalismo que se verificava em terri-


tório alemão e que levou a que, depois de longos anos de guerras religiosas,
se buscasse os elementos comuns naturalmente idênticos a todas as confissões
ou que, como Lessing em Die Erziehung des Menschengeschlechts (1780),
se visse nas religiões fases de um processo de educação do género humano.

Por outro lado, a dependência de vastas camadas da burguesia culta da corte


também ajuda a compreender esta moderação, embora existissem situações
diferenciadas, como, por exemplo, a das cidades hanseáticas, onde uma
tradição política mais liberal, propunha referências políticas semelhantes às
que predominavam - de forma mais generalizada - na Holanda e na Grã-
-Bretanha. Com efeito, o cepticismo radical de um Hume (1711-1776) não
foi alheio ao livre comércio de mercadorias e de bens na Inglaterra em
vésperas da Revolução Industrial, modelo por excelência e fonte de inspi-
ração para as concepções liberais e libertinas dos enciclopedistas franceses.

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2.4.1 Fases da Aufkléirung

Falar de Aujklarungen não só se justifica face à multiplicidade de interpre-


tações e às diferenças que caracterizam o movimento consoante as regiões.
O mesmo sucede com as diferentes fases que o movimento conheceu.
Apesar de não se poder distinguir com precisão entre as mesmas, uma vez
que não correspondem rigorosamente à periodização - com carácter mais
esquemático do que cronologicamente rigoroso, podendo mesmo verificar-
-se a sua sobreposição - pode-se distinguir três fases, em função das tendên-
cias predominantes ou de maior impacto.

2.4.1.1 A primeira fase da Aufkléirung (Frühaufkliirung) ( 1680-1750)

A primeira fase da Aufklarung, também designada de Frühaufkliirung


situar-se-ia entre finais do século XVII e meados do século XVIII. Tendo
como principais centros Hamburgo, Zurique, Leipzig e Halle, e principais
representantes Leibniz, Christian Thomasius ( 1655-1728) e Wolff, esta fase
tanto é produto de uma cultura urbana, como irradia da corte.

Se Leibniz ainda utiliza o latim e o francês como línguas universais por


excelência, quer da academia, quer da corte para difundir a sua mensagem
cosmopolita e tolerante, já Thomasius e Wolff, teorizadores da nova ideo-
logia da burocracia prussiana emergente, se teriam distinguido pelo recurso
à língua alemã.

Tal traço não tem de ser interpretado como uma manifestação de naciona-
lismo, prematuro no Sacro Império e numa Prússia que, segundo os crité-
rios das lutas dinásticas, se tentava libertar da vassalagem dos Habsburgo,
mas antes como mais uma tentativa de democratizar o pensamento, fazendo-
-o sair dos círculos nobres, onde a filosofia de um Leibniz ainda se movera
com à vontade. Este filósofo permaneceria de resto como uma fonte
inspiradora, seja de uma prática cosmopolita e tolerante, seja de uma visão
do progresso de inspiração metafísica.

O seu principal discípulo e divulgador foi Christian Wolff, cujas ideias escla-
recidas depressa suscitariam a desconfiança, quer da ortodoxia luterana, quer
dos influentes pietistas na cidade Halle, em cuja universidade possuía uma cáte-
dra. O seu método matemático e dedutivo muito devia a Leibniz, tendo Wolff
exercido um papel fundamental na teorização de uma prática governativa escla-
recida, que separava a pessoa do cargo em termos de poder e que viria a ser con-
sagrada na fórmula de Frederico II «O monarca é o primeiro servidor dos povos
sob o seu domínio», por oposição à clássica máxima de Luís XIV «O Estado sou eu».

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Defendendo igualmente os valores racionalistas e a democratização da cultura
ao optar também pela língua alemã, Thomasius enveredaria por uma senda
menos teórica: invocando a autonomia do pensar contra todos os precon-
ceitos , elaborou reflexões no domínio da teoria política e jurídica,
desenvolvendo uma acção particularmente intensa no combate à persegui-
ção às bruxas.

Pode reencontrar-se o carácter geométrico e dedutivo do pensamento


wolffiano nas linhas clássicas dos palácios de Potsdam, sobretudo no Sans
Souci de Frederico II, bem como na teoria e prática dramática de um Johann
Christoph Gottsched (1700-1766), que, em Leipzig, tentava renovar a tragédia
alemã, recorrendo aos modelos do classicismo francês.

2.4.1.2 A altaAujkldrung (Hochaujkldrung) (1750-1770)

Os seus principais focos foram os centros urbanos protestantes, onde uma


burguesia relativamente autónoma se começava a afirmar: era o caso de
Hamburgo, das cidades hanseáticas como Lübeck, Bremen, Danzig, Kõnigs-
berg, ou comerciais como Basileia, Zurique ou Frankfurt am Main.

Berlim, onde Christoph Friedrich Nicolai ( 1733-1811 ), Christian Garve


( 1742-1798) e Moses Mendelssohn apelavam ao esclarecimento público,
mediante a divulgação dos ideais iluministas em camadas cada vez mais
vastas, passa igualmente a constituir um importante centro iluminista.

Esta filosofia utilitarista e de pendor essencialmente pragmático, também


designada de Popularphilosophie, encontrou os seus principais órgãos nos
jornais e almanaques que iam proliferando, de acordo com a crescente
importância que a burguesia letrada ia ganhando, assim contribuindo deci-
sivamente para a formação de uma opinião pública (cf. Cap. IIl.3).

O pensamento dedutivo e sistemático de Wolff cede o lugar à influência das


correntes empiristas e sensualistas inglesas, às ideias de Locke e à física de
Newton que, à semelhança do que sucedera noutros países, como a França,
começam a ser brandidos contra o racionalismo dedutivo. A autonomia
do pensar, a razão crítica, a verdade como processo encontram em Lessing
o seu mais perfeito e enérgico representante, que dará um significado renovado
às noções de tolerância, de educação do género humano, de progresso.

A influência inglesa e escocesa far-se-á sentir, sobretudo, em Gõttingen,


cuja recém-fundada universidade (1737) constituiria um importante centro
científico, nomeadamente no domínio da estatística, cameralística e no da
moderna antropologia e da física. Georg Christoph Lichtenberg ( 17 42-1799)

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e Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) foram alguns dos importantes
nomes de um centro que ousava competir com as congéneres europeias no
domínio das mais inovadoras tendências científicas.

Lichtenberg não só se tornou célebre pelas suas lições de física experimen-


tal, como contribuiria de forma particularmente inovadora no domínio da
escrita aforística, mais uma prova de como é difícil estabelecer critérios
rígidos para a definição de uma época: o estilo fragmentário, unindo o humor
mordaz ao hermetismo da inspiração súbita, representa uma forma de
expressão aparentemente incompatível com a serenidade de uma visão do
mundo e do universo, inspirada no newtonismo.

Blumenbach pode ser considerado o mais importante representante da


recém-fundada disciplina da antropologia física; simultaneamente, a moderna
etnologia era desenvolvida por Christoph Meiners (1747-1810), que no seu
interesse por povos distantes e na sua visão etnocêntrica e claramente
racista, anunciava a evolução dessa ciência durante o século XIX.

2.4.1.3 A Spataufklarung (1770-1789)

A última fase da Aufklarung radicaliza a exigência de autonomia do


pensar, a ponto de colocar em questão a própria mensagem racionalista,
ciente da dialéctica de emancipação e de opressão a que as Luzes iam
conduzindo.

A herança pedagógica não sendo recusada, é vista com olhos cada vez mais
cépticos. O apelo à espontaneidade, à livre subjectividade, à recusa de
quaisquer modelos ecoa tanto no pensamento dos Stürmer und Dranger, como
no de Herder, para encontrar um eco problemático mas decisivo no criticismo
de Kant. Este, estimulado pelo cepticismo radical de Hume, reabilitará a
metafísica, colocando, contudo, limites à razão teórica e imprimindo novos
impulsos à razão prática.

Se bem que a influência de Rousseau fosse predominante nestas tomadas de


posição, também é verdade que elas retomavam tendências que haviam
surgido em paralelo, sobretudo, sob influência do sensualismo e do
sentimentalismo ingleses. A tónica colocada na experiência e nos sentidos
ou no sentimento, por oposição às filosofias escolásticas, baseadas num
racionalismo dedutivo e dogmático, tinha-se vindo a afirmar gradualmente,
expressão de uma burguesia culta que se tentava libertar de modelos de
contenção próprios de uma sociedade de corte e que apelava à espontaneidade
quer de afectos, quer do próprio pensar para criar alternativas à sociedade
vigente.

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O papel do sentimento e daquilo que escapa ao controle racional, a experiência
individual não podem deixar de se manifestar neste contexto: a melancolia
hipocondríaca e a auto-observação psicológica ganham importância crescente,
patentes, por exemplo, no romance autobiográficoAnton Reiser ( 1785-1790)
de Karl Philipp Moritz (1757-1793), que editou igualmente o Magazinfür
Erfahrungsseelenkunde (1787) que tinha como objectivo «o conhecimento
analítico das paixões». Über die Einsamkeit (1785) de Johann Georg
Zimmermann é mais um exemplo das tendências melancólicas de um século
apressadamente rotulado de optimista.

2.5 A contra-cultura burguesa

Contudo, esta tendência não se reduz à fase tardia daAujklarung. A luta contra
o universo escolástico levada a cabo pelos Popularphilosophen, o zelo
reformador de um Campe ou de um Pestalozzi, a revolta de um Lessing con-
tra o teatro de inspiração francesa e o seu recurso à comédie larmoyante de
um Denis Diderot ( 1713-1784) como modelo alternativo de inspiração reve-
lam, se entendidos nesta perspectiva, claras afinidades com as reivindica-
ções dos jovens Stürmer und Driinger, que radicalizarão estas tendências.

O próprio pietismo foi também um elemento catalisador destas aspirações,


com o seu apelo à praxis pietatis (de resto determinante para a ética de um
Kant) , a sua ênfase na relação sentimental e individual com Deus, a sua
prática reformadora e pedagógica.

Pode, pois, afirmar-se que, não obstante as divergências, entre os adeptos da


razão ou do sentimento, sentidas então de forma particularmente aguda,
como o provam as querelas entre pietistas e wolffianos em Halle, as invectivas
contra o Werther (1774) de Goethe por parte de um Lessing ou as polémicas
entre Herder e Kant, as várias tendências reflectem um sentimento
generalizado de oposição a modelos teóricos distantes da prática, elitistas e
escolásticos, avessos à manifestação da liberdade e da autonomia indivi-
duais e que podem ser lidos como reacção à etiqueta e convenção em que a
sociedade de corte fundamentava as suas relações de poder.

2.6 O emergir de uma consciência nacional?

Algumas destas tendências viriam a ser interpretadas por uma historiografia


de pendor essencialmente nacionalista como manifestações de uma cons-
ciência nacional alemã de que a burguesia teria sido a principal porta-voz.

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Se é certo que tal leitura faz algum sentido, na medida em que esse surto
intelectual desempenharia um papel determinante para os futuros movimen-
tos nacionalistas, criando mesmo uma certa identidade cultural, através de
uma cultura e língua comuns, também é verdade que as diferenças regionais
se continuaram a fazer sentir. A rejeição dos modelos de corte constitui
antes uma reacção essencialmente social, distante de uma ideia de Estado-
-nação totalmente anacrónica para o espaço cultural alemão do século XVIII.

Apesar de uma crescente noção de identidade alemã, patente por exemplo


nas críticas mais ou menos veementes de um Herder à superficialidade dos
enciclopedistas, ao verniz francês, há que salientar que o ilustrado Frede-
rico II só concordava com este na partilha do cepticismo face ao projecto
enciclopédico de D' Alembert e de Diderot, vendo, de resto, com descon-
fiança as prestações alemãs no domínio da literatura e da cultura. O seu
desprezo pelo Goetz von Berlichingen de uin Goethe e pela língua e litera-
tura alemãs em geral, não serão tanto de estranhar num homem culto e musical
como o foi o rei da Prússia, se se tiver em consideração que o seu modelo
cultural era essencialmente o da corte francesa, com os seus códigos de
etiqueta e regras que se adequavam bastante melhor à estrutura de poder que
representava, pesem embora todas as reformas que empreendeu no sentido
de tomar mais flexíveis e eficazes esses modos de conduta e de funciona-
mento (Elias 1973). Saliente-se que Frederico II desempenharia um papel
determinante no sentido de reforçar e afirmar o poder político de um Estado
alemão, a Prússia, papel esse de forma alguma incompatível com a sua
francofilia.

Atribuir ao programa de um teatro nacional de Lessing um cunho quase


xenófobo equivale a conferir tendências anacronicamente nacionalistas que
só encontraram expressão teórica nos Reden an die deutsche Nation de Fichte,
após a ocupação napoleónica. Ao recusar o modelo gottschediano, reivin-
dicando como alternativa um teatro nacional e burguês, Lessing fá-lo com
recurso a modelos que não os alénães, invocando a originalidade da tra-
gédia grega ou a genialidade do drama shakespeariano. O culto da espon-
taneidade, a recusa da rigidez das regras atesta muito mais a busca de novos
modelos sociais, do que a exaltação de um nacionalismo fechado sobre si
mesmo.

O mesmo se pode verificar noutro campo, o da música. Quando Wolfgang


Amadeus Mozart (1756-1591) opta pela língua alemã, nos Singspiele, Die
Entführung aus dem Serail (1782) e Die Zauberflote (1791), fá-lo para
divulgar mensagens de tolerância e de igualdade universal.

Mas não se esqueça que o mesmo sucederá com Le Nozze di Figaro ( 1786),
onde, em língua italiana, o subordinado, Figaro, canta «Se vuol ballare signor

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contino», desafiando a autoridade feudal, embora num tom bastante mais
brando do que na peça de Beaumarchais que lhe servira de inspiração.
Contudo, dois anos depois da Revolução Francesa, Mozart compunha por
ocasião da coroação de Leopoldo II, La clemenza di Tito (1791), agora
preferencialmente para a corte.

O mesmo já não sucedia com Die Zauberflote destinada ao moderno


público que, reunido num espaço próprio para o efeito, podia, mediante
aquisição de um bilhete ou de uma subvenção através de assinatura,
gozar dos prazeres da música, o que constitui mais uma manifestação de
uma importante evolução verificada ao longo do século XVIII (cf. Cap. III.3).

2. 7 Identidade europeia e colonialismo

Já houve ocasião de assinalar o modo como o cosmopolitismo das Luzes


coabitou com a multiplicidade regional. Mas se este cosmopolitismo surge
essencialmente associado a uma noção de identidade europeia crescente,
esta careceu de realidades a ela alheias para se afirmar. Essa diferença,
necessária para a construção de uma identidade, irá ser encontrada na alteri-
dade por «civilizar» ou em vias de se colonizar.

A reorganização do espaço (cf. Cap. III.3) não se limitou à criação de uma


esfera de contra-poder ao Estado absolutista, quando este deixou de cor-
responder aos interesses da burguesia em expansão; a sua reorganização irá
igualmente reflectir a estreita interdependência entre a afirmação dos valo-
res da civilização europeia e os do colonialismo.

O domínio do espaço encontra o seu mais perfeito equivalente na moderna


cartografia, que substitui as perspectivas múltiplas e a representação táctil
3 Recorde-se que será somente das paragens, para que remete, por um ângulo único e pela abstracção e
no século XVIII que a inven-
ção do cronómetro por John
precisão que o cronómetro lhe permitiu para calcular a longitude 3 . A pers-
Harrisson permitirá o cálculo pectiva única erige-se em absoluta e confere a segurança de um olhar monolí-
da longitude, mediante a
fixação da diferença entre a
tico e avassalador: é esse olhar, subjectivo e eurocêntrico, que permite a
hora local e a hora do local de localização precisa da alteridade.
partida. James Cook transpor-
tará consigo, na sua segunda
...
circumnavegação ( 1772- Para além do olhar subjectivo, dependente de uma perspectiva única, da
-1775) o referido instrumento, abstracção e da precisão dos mapas, estes reflectem um dado essencial:
pelo que poderá não só loca-
lizar com precisão ilhas e os limites dos continentes encontram-se traçados, o mundo é conhecido,
arquipélagos já anteriormente torna-se mais pequeno. As grandes potências coloniais rivalizam pela
descobertos , entre outros, por
navegadores portugueses, hegemonia do globo, mas cientes agora dos seus limites, a expansão é subs-
mas também empreender tituída por uma política de ocupação de territórios em que a Grã-Bretanha e
uma cartografia exacta dos
mesmos. a França constituirão, passada a época de ouro da conquista espanhola, os

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