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especie de etiqueta postuma, que se não foi propria- François Bluche analisa a teoria política
mente inventada por Mirabeau em 1790 - já no con- legitimadora do poder real na França bourbônica: o
texto da Revolução Francesa - teve nesse persona- direito divino dos reis. O autor vê no influente
gem o seu maior divulgador. O conceito surge como Bossuet apenas um sintetizador que, na segunda me-
uma expressão negativa, e como um construto ideo- tade do século XVII, teve o mérito, inegável é ver-
lógico, que tencionava alimentar as polêmicas em dade, de amplificar uma idéia política já anterior-
torno de uma ordem social, e de um sistema políti- mente trabalhada no plano teórico pelos grandes ju-
co, que se pretendia destruir. Daí a idéia ainda hoje ristas de fins do século XVI e início do século XVII,
muito arraigada de associar "Ancien Regime" a tudo como Jean Bodin, Loyseau c Cardin Le Bret. A idéia
que pareça arcaico e ultrapassado, segundo o olhar da anterioridade da monarquia francesa, fundada
da posteridade. Fato curioso, os homens dos séculos com o batismo de Clóvis na Idade Média, revela o
XVI e XVIIT não consideravam o seu tempo como prestígio da realeza sagrada diante dos franceses do
uma época abominável. Pela ótica de um Bossuct, Antigo Regime. F. Blunche demonstra como o títu-
ou até de um Voltaire, a sua época era o melhor dos lo de roi très chrétien está relacionado à teologia
mundos possíveis. É conhecido o elogio do filóso- política do direito divino da Época Moderna, mas
fo iluminista ao Siècle de Louis XIV, que segundo
remontando pelo menos aos meados do século XIII.
ele tirara a França das trevas da Idade Média.
Na verdade, esse título havia sido conferido ao rei
Discutindo conceitos como o de "monarquia ab- Luís IX, mais tarde canonizado por influência de seu
soluta", François Bluche demonstra que por esse ter- neto, Filipe o Belo. O livro faz eco à clássica obra de
mo deve-se entender com mais propriedade uma for- Marc Bloch, uma vez que o aspecto mágico da rea-
ma de legitimidade incontestada, antes que uma so- leza sagrada, o toque taumatúrgico, merece um capí-
berania indivisível c um poder de coerção efetivo tulo a parle.
por parte do poder real. François Bluche pondera A riqueza de temas é imensa, cada um dos
que, mesmo sendo a França um país que ao longo do cinquenta e cinco pequenos capítulos abordando
Antigo Regime já se encontrava bem centralizado aspectos específicos com o propósito, aliás mui-
politicamente, e que sequer possuía uma constitui- to bem alcançado, até onde isso é possível, de for-
ção escrita, mesmo assim o poder central estava li- mar uma síntese completa. O texto traz análises
mitado por uma cascata interminável de direitos con- esclarecedoras de um fenônemo político tipica-
suetudinários, inibidores de uma série de iniciativas mente francês: a venalidade dos ofícios. Esse ele-
por parte dos governantes: criação de novos impos-
mento peculiar ao Estado monárquico francês fez
tos, desmembramento do reino, desrespeito aos direi-
da monarquia uma "administração de expedien-
tos tradicionais específicos de cada província, etc.
tes", imediatista, pouco competente c racional; a
O livro revela a concepção política muito pecu- venalidade dos ofícios foi um dos elementos que
liar das sociedades do Antigo Regime na França: a prestou um grande contributo ao desenvolvimen-
idéia do corpo místico é a noção mais difundida e to da reação nobiliárquica, um dos fatores mais
aceita, e que representa o reino como uma estrutura importantes para o início da Revolução Francesa.
organicamente articulada, que não se pode separar, à A venalidade dos ofícios não criava receita per-
semelhança do próprio corpo humano, que se torna manente à administração, pressionando-a a au-
uma figura incompleta se qualquer de seus membros mentar a carga tributária sobre os segmentos da
não se encontrar bem preservado. elite social do Antigo Regime, em particular a alta
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nobreza que pagava imposto irrisório, e só a par- cipalmente nos séculos XVII e XVIII, os padres não
tir de Luís XIV. continuaram simplesmente a rezar, os nobres acon-
A escalada demográfica no século XVIII, que fez duzirem caçadas e batalhas, e os demais homens a
da França o reino mais forte da Europa, com aproxi- plantar para sustento de todos. De fato, esse modelo
madamente 26 milhões de habitantes, é estudada em explicativo é quase infantil para a análise da nova e
seus variados aspectos. O autor demonstra que, ape- complexa ordem sócio-econômica e política erigida
sar de seu imenso potencial humano, da sua invejá- ao longo da Idade Clássica.
vel força de trabalho, os franceses ricos do Antigo A obra termina com o estudo dos elementos que
Regime optaram por esterilizar seus capitais em terras ajudaram a formar o magma da Revolução Francesa:
e em ofícios públicos, elementos que poderiam favo- suas origens intelectuais e a contribuição da filoso-
recer o enobrecimento de suas famílias, uma ou duas fia das Luzes, o papel da miséria e da prosperidade
gerações mais tarde. Esse fascínio pelos valores aris- do reino nos anos que precedem o movimento revo-
tocráticos laz lembrar o cómico Burguês Fidalgo, da lucionário, a influência das sociedades de pensamen-
peça homônima de Molière, que dava de boa vonta- to (clubes e salões), o peso da reação nobiliárquica
de dois dedos da própria mão ao cepo, se disso de- às novas reformas de Luís XVI, bem como os furores
pendesse seu enobrecimento. Esta observação camponeses, demonstrando que a análise da dissolu-
ridicularizante de Molière revela de fato o ethos pró- ção do Antigo Regime deve considerar a importân-
prio das elites do Antigo Regime: a etiqueta rígida, o cia relativa de cada um desses fatores.
sistema cerimonial e o jogo de precedências, que fa- O livro traz ainda, como anexos, testemunhos de
zem com que muitas vezes um burguês recentemente autores responsáveis por teorias clássicas acerca dos
enobrecido queira recolher mais imposto ao rei, signi- três últimos reinados da dinastia Bourbon na França
ficando ser ele de um grau mais eminente! Isso c o que do Antigo Regime: Voltaire analisa a superioridade
René Rémond chama de "ânsia de consideração", ou do reinado de Luís XIV; o abade Véri prova que o
seja, a necessidade de ser notado, de gozar de atenção reinado de Luís XV ultrapassou qualquer outro em
na corte, aspecto psicológico que irá opor incon- volume de boas obras; por último, Edmund Burke
ciliavelmente burguesia e nobreza, no processo co- faz crer que a época de Luís XVI não poderia ter en-
nhecido como a "reação nobiliárquica" das últimas gendrado a Revolução, por se tratar do período mais
três décadas do século XVIII. glorioso e próspero da história da França. Esses tes-
A assistência social e a instrução pública propor- temunhos tencionam demonstrar que a História das
cionadas pelo clero e, mais tarde, pelo próprio Esta- origens da Revolução Francesa ainda se encontra
do, é um tema novo, historiograficamente falando. sob o domínio de diversas interpretações, cabendo à
François Bluche esclarece inúmeros detalhes quan- historiografia contemporânea o indispensável papel
to à educação na França Moderna, fator que junta- de contrastar as várias teses, para conservar de cada
mente com a riqueza de alguns segmentos sociais, uma aqueles elementos que se aproximem de uma
ajudou a desestabilizar a antiga ordem, que já data- teoria explicativa mais completa. Isto significa que,
va de três séculos. O Antigo Regime surge como apesar de um Michelet, de um Burke ou mesmo de
uma sociedade muito mais complexa que o velho um Tocqueville terem exagerado o peso de determi-
esquema difundido tanto pelos manuais quanto pela nadas influências desencadeadoras da tempestade
historiografia tradicional, da qual os primeiros são revolucionária, muito de seus juízos ainda estão cor-
reflexos. Com efeito, o livro quer informar que, prin- retos, sendo necessário estar atento a isso.
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Uma cronologia ampia, que remonta à Idade Mé- ráter de síntese que não foge da sua intenção: dar a
dia, junto com um quadro dinástico dos reis da Fran- conhecer três séculos de história sem transmitir ao
ça, um ótimo léxico histórico e uma bibliografia atua- leitor qualquer sensação de salto cronológico ou va-
lizada completam a obra, dando a ela um inegável ca- zio temático.