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Revista de História 134 Io semestre de 1996

BLUCHE, François. L'Ancien Régime: Institutions et société. Paris, Éditions de Fallois,


1993.

Historiador da Idade Clàssica, que corresponde da sociedade francesa fundada, principalmente, na


aproximadamente ao período 1630-1760, François idéia de privilégio, que se manifesta na prática pela
Bluche é hoje, para a França Moderna, o que repre- crença na desigualdade natural entre os homens,
sentam um Jacques Le Goff ou um Georges Duby para pela queda ao auto-sacrifício entre as comunidades
os estudos da Idade Média francesa. Coordenador de camponesas, já observada por Tocqueville; algo
amplos projetos de pesquisa, organizador de uma obra como a clássica visão do século XVUI, de que o há-
imensa como o Dictionnaire du Grand Siècle bito de sofrer acabou matando entre as populações
(Arlhème Fayard), François Bluche é ainda o autor rurais a consciência de que sofriam. Fato curioso, a
consagrado de Louis XIV (Arlhème Fayard), biografia idéia de privilégio nào nos é estranha, apesar de re-
monumental do Grande Rei, com a qual arrebatou o pugnante ao olhar contemporâneo. Mas para os ho-
"Grand Prix d'Histoire", cm 1986. mens do Antigo Regime, era muito diferente. O Pro-
L'Ancien Régime é um desses livros de leitura fessor Bluche ensina que essa noção ainda não ad-
agradável, escritos à maneira de um curso geral de quiriu sentido negativo no quadro dos valores da
História, nos quais certos nomes já reconhecidos e época, ainda não tendo relação com supostas van-
badalados dedicam-se a vulgarizar informações a um tagens adquiridas sem mais critério que o suborno
público que ultrapassa as fronteiras universitárias, e outras práticas de corrupção. Foi a filosofia da Lu-
atingindo também uma sociedade apaixonada e ávi- zes que começou a trabalhar na fixação desse enfo-
da pela leitura de sua história. De fato, é bem conhe- que. Contudo, no tempo dos reis Bourbons, o con-
cido o prestígio que gozam os livros de história na ceito de privilégio ainda c uma figura de direito
França, pelo menos nas últimas duas décadas. consuetudinário fixada por uma longa tradição, o
Este pequeno formato da Editora Fallois, que se que significa que tem valor legal. Em um texto do
lê tranqüilamente em duas ou três manhãs, aborda em século XVIII, citado por C.B.A. Behrens, privilégio
cinqüenta e cinco curtos capítulos um conjunto-cha- se definia muito naturalmente por: "distinções tan-
ve de temas da França do Antigo Regime: o rei e seu to úteis quanto honrosas, dadas a certos membros
reino, a administração estatal com seu emergente da sociedade, e recusadas a outros".
complexo burocrático, a vida social e religiosa e seu O autor analisa como o rótulo pejorativo de
conjunto de mitos e crenças, e a divisão hierárquica "Ancien Régime" deve ser considerado como urna
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especie de etiqueta postuma, que se não foi propria- François Bluche analisa a teoria política
mente inventada por Mirabeau em 1790 - já no con- legitimadora do poder real na França bourbônica: o
texto da Revolução Francesa - teve nesse persona- direito divino dos reis. O autor vê no influente
gem o seu maior divulgador. O conceito surge como Bossuet apenas um sintetizador que, na segunda me-
uma expressão negativa, e como um construto ideo- tade do século XVII, teve o mérito, inegável é ver-
lógico, que tencionava alimentar as polêmicas em dade, de amplificar uma idéia política já anterior-
torno de uma ordem social, e de um sistema políti- mente trabalhada no plano teórico pelos grandes ju-
co, que se pretendia destruir. Daí a idéia ainda hoje ristas de fins do século XVI e início do século XVII,
muito arraigada de associar "Ancien Regime" a tudo como Jean Bodin, Loyseau c Cardin Le Bret. A idéia
que pareça arcaico e ultrapassado, segundo o olhar da anterioridade da monarquia francesa, fundada
da posteridade. Fato curioso, os homens dos séculos com o batismo de Clóvis na Idade Média, revela o
XVI e XVIIT não consideravam o seu tempo como prestígio da realeza sagrada diante dos franceses do
uma época abominável. Pela ótica de um Bossuct, Antigo Regime. F. Blunche demonstra como o títu-
ou até de um Voltaire, a sua época era o melhor dos lo de roi très chrétien está relacionado à teologia
mundos possíveis. É conhecido o elogio do filóso- política do direito divino da Época Moderna, mas
fo iluminista ao Siècle de Louis XIV, que segundo
remontando pelo menos aos meados do século XIII.
ele tirara a França das trevas da Idade Média.
Na verdade, esse título havia sido conferido ao rei
Discutindo conceitos como o de "monarquia ab- Luís IX, mais tarde canonizado por influência de seu
soluta", François Bluche demonstra que por esse ter- neto, Filipe o Belo. O livro faz eco à clássica obra de
mo deve-se entender com mais propriedade uma for- Marc Bloch, uma vez que o aspecto mágico da rea-
ma de legitimidade incontestada, antes que uma so- leza sagrada, o toque taumatúrgico, merece um capí-
berania indivisível c um poder de coerção efetivo tulo a parle.
por parte do poder real. François Bluche pondera A riqueza de temas é imensa, cada um dos
que, mesmo sendo a França um país que ao longo do cinquenta e cinco pequenos capítulos abordando
Antigo Regime já se encontrava bem centralizado aspectos específicos com o propósito, aliás mui-
politicamente, e que sequer possuía uma constitui- to bem alcançado, até onde isso é possível, de for-
ção escrita, mesmo assim o poder central estava li- mar uma síntese completa. O texto traz análises
mitado por uma cascata interminável de direitos con- esclarecedoras de um fenônemo político tipica-
suetudinários, inibidores de uma série de iniciativas mente francês: a venalidade dos ofícios. Esse ele-
por parte dos governantes: criação de novos impos-
mento peculiar ao Estado monárquico francês fez
tos, desmembramento do reino, desrespeito aos direi-
da monarquia uma "administração de expedien-
tos tradicionais específicos de cada província, etc.
tes", imediatista, pouco competente c racional; a
O livro revela a concepção política muito pecu- venalidade dos ofícios foi um dos elementos que
liar das sociedades do Antigo Regime na França: a prestou um grande contributo ao desenvolvimen-
idéia do corpo místico é a noção mais difundida e to da reação nobiliárquica, um dos fatores mais
aceita, e que representa o reino como uma estrutura importantes para o início da Revolução Francesa.
organicamente articulada, que não se pode separar, à A venalidade dos ofícios não criava receita per-
semelhança do próprio corpo humano, que se torna manente à administração, pressionando-a a au-
uma figura incompleta se qualquer de seus membros mentar a carga tributária sobre os segmentos da
não se encontrar bem preservado. elite social do Antigo Regime, em particular a alta
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nobreza que pagava imposto irrisório, e só a par- cipalmente nos séculos XVII e XVIII, os padres não
tir de Luís XIV. continuaram simplesmente a rezar, os nobres acon-
A escalada demográfica no século XVIII, que fez duzirem caçadas e batalhas, e os demais homens a
da França o reino mais forte da Europa, com aproxi- plantar para sustento de todos. De fato, esse modelo
madamente 26 milhões de habitantes, é estudada em explicativo é quase infantil para a análise da nova e
seus variados aspectos. O autor demonstra que, ape- complexa ordem sócio-econômica e política erigida
sar de seu imenso potencial humano, da sua invejá- ao longo da Idade Clássica.
vel força de trabalho, os franceses ricos do Antigo A obra termina com o estudo dos elementos que
Regime optaram por esterilizar seus capitais em terras ajudaram a formar o magma da Revolução Francesa:
e em ofícios públicos, elementos que poderiam favo- suas origens intelectuais e a contribuição da filoso-
recer o enobrecimento de suas famílias, uma ou duas fia das Luzes, o papel da miséria e da prosperidade
gerações mais tarde. Esse fascínio pelos valores aris- do reino nos anos que precedem o movimento revo-
tocráticos laz lembrar o cómico Burguês Fidalgo, da lucionário, a influência das sociedades de pensamen-
peça homônima de Molière, que dava de boa vonta- to (clubes e salões), o peso da reação nobiliárquica
de dois dedos da própria mão ao cepo, se disso de- às novas reformas de Luís XVI, bem como os furores
pendesse seu enobrecimento. Esta observação camponeses, demonstrando que a análise da dissolu-
ridicularizante de Molière revela de fato o ethos pró- ção do Antigo Regime deve considerar a importân-
prio das elites do Antigo Regime: a etiqueta rígida, o cia relativa de cada um desses fatores.
sistema cerimonial e o jogo de precedências, que fa- O livro traz ainda, como anexos, testemunhos de
zem com que muitas vezes um burguês recentemente autores responsáveis por teorias clássicas acerca dos
enobrecido queira recolher mais imposto ao rei, signi- três últimos reinados da dinastia Bourbon na França
ficando ser ele de um grau mais eminente! Isso c o que do Antigo Regime: Voltaire analisa a superioridade
René Rémond chama de "ânsia de consideração", ou do reinado de Luís XIV; o abade Véri prova que o
seja, a necessidade de ser notado, de gozar de atenção reinado de Luís XV ultrapassou qualquer outro em
na corte, aspecto psicológico que irá opor incon- volume de boas obras; por último, Edmund Burke
ciliavelmente burguesia e nobreza, no processo co- faz crer que a época de Luís XVI não poderia ter en-
nhecido como a "reação nobiliárquica" das últimas gendrado a Revolução, por se tratar do período mais
três décadas do século XVIII. glorioso e próspero da história da França. Esses tes-
A assistência social e a instrução pública propor- temunhos tencionam demonstrar que a História das
cionadas pelo clero e, mais tarde, pelo próprio Esta- origens da Revolução Francesa ainda se encontra
do, é um tema novo, historiograficamente falando. sob o domínio de diversas interpretações, cabendo à
François Bluche esclarece inúmeros detalhes quan- historiografia contemporânea o indispensável papel
to à educação na França Moderna, fator que junta- de contrastar as várias teses, para conservar de cada
mente com a riqueza de alguns segmentos sociais, uma aqueles elementos que se aproximem de uma
ajudou a desestabilizar a antiga ordem, que já data- teoria explicativa mais completa. Isto significa que,
va de três séculos. O Antigo Regime surge como apesar de um Michelet, de um Burke ou mesmo de
uma sociedade muito mais complexa que o velho um Tocqueville terem exagerado o peso de determi-
esquema difundido tanto pelos manuais quanto pela nadas influências desencadeadoras da tempestade
historiografia tradicional, da qual os primeiros são revolucionária, muito de seus juízos ainda estão cor-
reflexos. Com efeito, o livro quer informar que, prin- retos, sendo necessário estar atento a isso.
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Uma cronologia ampia, que remonta à Idade Mé- ráter de síntese que não foge da sua intenção: dar a
dia, junto com um quadro dinástico dos reis da Fran- conhecer três séculos de história sem transmitir ao
ça, um ótimo léxico histórico e uma bibliografia atua- leitor qualquer sensação de salto cronológico ou va-
lizada completam a obra, dando a ela um inegável ca- zio temático.

Marcos Antônio Lopes


Mestrando pelo Depto. de Historia-FFLCH/USP

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