Você está na página 1de 45

Os caminhos da mística antiga encontro e tudo o que flui dele para a vida do indivíduo na comunidade

dos fiéis, também é místico, mesmo que em sentido secundário. A meta


Geraldo De Mori, SJ da mística tem sido vista por alguns como a experiência de união com
Deus, em particular a união de absorção ou identidade na qual a
Introdução personalidade humana se perde. Essa perspectiva restringe muito, por
Podemos aproximar-nos da mística a partir de três perspectivas: isso é preciso ampliar a compreensão do que se entende por união com
1) compreendê-la como parte ou elemento da religião; 2) como um Deus e mesmo substituir o termo união pelo de presença. Os modos
processo ou modo de vida; 3) como uma tentativa de expressar uma como essa forma especial de encontro com Deus têm sido captados são
consciência direta da presença de Deus. diversos. Há, porém, um consenso no que diz respeito à conceptualização
e verbalização desta experiência. Além da linguagem da união, muitos
Na primeira perspectiva é importante enfatizar que a mística é místicos recorrem às categorias da contemplação e da visão de Deus, da
apenas uma dimensão ou elemento de uma religião concreta e de deificação, do nascimento do Verbo na alma, do êxtase, da obediência
qualquer personalidade religiosa particular. De fato, nenhum místico radical à vontade divina.
acreditava em ou praticava “mística”. Eles acreditavam em e praticavam
o cristianismo, o judaísmo, o hinduísmo ou o islã, ou seja, religiões que A terceira perspectiva é a que insiste na mística como experiência
continham elementos místicos como parte de um todo histórico mais de Deus. O termo experiência presta-se, porém, a vários equívocos. Por
amplo. Esses elementos, que envolviam crenças e práticas, podem ser isso, alguns recorrem a outros termos, como consciência de presença ou
mais ou menos importantes para um grupo de fiéis. Podem ainda estar de ausência de Deus. Os místicos catafáticos insistem mais na linguagem
presentes em vários graus de intensidade e desenvolvimento. Quando são da presença, embora esta não esgote a experiência. Os apofáticos falam
plenamente explicitados e ganham uma importância grande para os sempre da ausência divina, ausência que na verdade abre a uma crítica de
adeptos da religião, então se pode falar de mística propriamente dita. O toda manipulação de Deus.
conteúdo que será explorado neste minicurso mostrará que há elementos 1. As raízes históricas da mística ocidental
místicos presentes no cristianismo das origens, mas a primeira tradição
mística explícita só veio à luz quando a teoria mística, exposta pela Para uma boa compreensão das origens da mística cristã é
primeira vez por Orígenes, no séc. III, encontrou resposta institucional no necessário, sem dúvida, debruçar-se sobre as influências das Sagradas
monamonaquismoquismo do séc. IV. Essa combinação caracteriza a Escrituras e do pensamento grego. Boa parte do que entendemos como
primeira perspectiva ou extrato na história da mística supracitada. mística cristã antiga é oriunda de comentários de textos bíblicos, nos
quais alguns personagens são tomados como modelos de encontro com
A segunda perspectiva nos mostra que a mística é sempre um Deus. Outra parte é tributária dos influxos do platonismo e do
processo ou modo de vida. Embora a meta da mística seja o encontro neoplatonismo sobre as distintas etapas da consciência do encontro com
entre Deus e o ser humano, tudo o que conduz e prepara para esse Deus. No primeiro milênio, a experiência mística está associada ao

1
monaquismo. Nos primeiros séculos da era cristã foram, sobretudo, os 2. A matriz judaica
apocalipses e a tradição filosófico-religiosa começada por Platão A vitória de Alexandre sobre Dario, em 333 aC, abriu uma nova
tornaram-se os componentes do fundamento da mística cristã. Eles foram época na história da humanidade e catalisou mudanças políticas e
os modos de tornar Deus acessível a um mundo no qual o divino não culturais profundas na antiguidade. O helenismo, a difusão da língua
estava mais presente em suas formas tradicionais, tendo também tornado grega e dos valores culturais gregos para os novos povos dominados,
o cristianismo e a mística cristã possíveis. A própria religião cristã é uma
afetou profundamente as religiões tradicionais dos povos orientais que
das respostas da antiguidade helenística à questão de onde Deus deve ser estavam arraigados em suas dinastias nativas e velhos modos de vida. O
encontrado. Jesus de Nazaré era herdeiro da mentalidade apocalíptica. judaísmo também foi influenciado. Em 515 os judeus já haviam
Após sua morte seus discípulos tiveram grande habilidade na adaptação reconstruído o templo destruído pelos babilônios em 587. As práticas
da fé que tinham em Jesus como Cristo ressuscitado e ascendido. A religiosas do Segundo Templo (515 aC-70 dC), sobretudo suas fases
presença de Deus que os apocalípticos e primeiros místicos realizaram tardias posteriores ao advento de Alexandre, formam a matriz judaica do
em suas ascensões ao reino divino e que os plantonistas buscaram através cristianismo e de judaísmo rabínico que se desenvolveu após sua
da fuga para a contemplação da realidade última, os cristãos insistiram destruição pelos romanos.
que poderia ser atingida apenas através da ascensão do Senhor, a
verdadeira theophania Theou. Como seus contemporâneos pagãos e O que caracteriza o judaísmo palestino nos períodos helenístico
judeus, eles acreditavam que essa participação na vida divina envolvia (332-167 aC), hasmoneu (167-63 aC), romano (depois de 63 aC) é uma
uma ascensão ao reino celestial. Mas, ao contrário deles, insistiam que variedade religiosa, evidenciada nos debates intensos sobre a natureza do
essa ascensão só poderia ser realizada em Cristo e na comunidade que judaísmo. Alguns elementos produzidos nesse mundo religioso lançaram
formava seu corpo. A presença divina vivenciada em Jesus era acessível os alicerces para o crescimento da mística tanto no judaísmo rabínico
através da comunidade em seus rituais sacramentais, especialmente o quanto no cristianismo primitivo. O mais importante desses elementos foi
batismo e eucaristia. Ela devia ser consumada, se necessário, através do a nova relação com Deus e o mundo celeste proposta na literatura
testemunho público de Cristo como Deus no ato do martírio. O itinerário apocalíptica, a mais importante criação literária judaica dos séculos
que seguiremos será portanto o seguinte: 1) breve retomada das matrizes anteriores ao nascimento de Jesus. Tais escritos indicam uma mudança
místicas do judaísmo do segundo templo e da filosofia grega platônica e nas crenças judaicas não apenas sobre o papel de Deus na história, mas
neoplatônica; 2) leitura das origens da fé cristã tal como são apresentadas também sobre as relações entre Deus e o ser humano. A teologia da
no Novo Testamento e em textos primitivos dos anos 50-150 dC; 3) a história, tal como é apresentada no livro de Daniel e no Apocalipse de
tradição grega clássica da teologia mística ou as fontes da mística no João, difere da visão da história presente na tradição profética do
cristianismo oriental; 4) elementos místicos da gnose do séc. II; 5) a judaísmo e das tradições sapienciais. Sua visão determinista do controle
virada monástica e a mística. que Deus tem sobre a história está centrada na convicção de que os
eventos presentes, em geral julgamentos ou dificuldades de vários tipos,

2
devem ser compreendidos como o início de uma trama tripla do fim dos sentido mais profundo oculto nos textos míticos e poéticos de sua
tempos concebida de acordo com um padrão da crise presente, tradição. Filo foi o mais importante e influente dentre os judeus que
julgamento divino iminente e subsequente recompensa para o justo. tentaram unificar as leituras judaicas e gregas dos livros sagrados. No
Acreditava-se que o plano de Deus para a história universal, oculto até séc. II dC os exegetas cristãos denominarão esse sentido mais profundo
então, tinha sido revelado por Deus através de seus intermediários dos textos do AT como “místicos”. Os apocalipses, apesar de repletos de
angélicos aos videntes de outrora e registrado por eles nos livros reminiscências dos textos do AT, nunca os interpretam, mas reivindicam
apocalípticos. Os especialistas distinguem dois tipos de apocalipses: um uma autoridade inspirada igual à dos livros canônicos. Eles reivindicam
no qual o vidente é levado a uma jornada celeste e outro em que falta tal ser tão inspirados quanto os textos anteriores. Para isso recorrem a
jornada. No primeiro, a mensagem tende a se concentrar na revelação de pseudônimos, ou seja, atribuem um texto a um vidente ou homem santo
segredos celestes e cosmológicos, embora às vezes elementos do passado. Pretendem ser escritos e ocultados pelos sábios das eras
escatológicos e comunais estejam incluídos. O segundo tipo tende mais a pretéritas: Adão, Enoque, Abraão, Moisés, Esdras, Baruc, Daniel e
ver com o significado da história e seu fim iminente, incluindo revisões outros. Segundo os especialistas, o mais antigo dos livros apocalípticos
da história mundial e profecias ex evento. Tanto o gênero quanto a não é Daniel mas o Livro dos Vigilantes, que corresponde ao 1Enoque
mensagem apocalíptica revelam importantes atitudes religiosas novas (séc. III aC). Em 1En 14,8.18-21.24-25 temos:
encontradas no judaísmo tardio do Segundo Templo, atitudes que se “E notem, eu vi as nuvens: e elas estavam me chamando numa visão; e o
relacionam com Deus, com o mundo e com os meios através dos quais nevoeiro estava me chamando; e o curso das estrelas e os relâmpagos
Deus se comunica com a humanidade. estavam me apressando e me fazendo desejar; e, numa visão, os ventos
faziam-me voar e me alçavam ao céu... E eu prestei atenção e vi dentro
Para os antigos judeus, Deus se comunicava através de sua dele [a segunda morada celeste] um trono elevado – sua aparência era
palavra, falando através de agentes humanos, juízes, profetas. No séc. II como cristal e suas rodas como o sol resplandecente; e eu ouvi a voz do
aC, embora o cânon ainda não estivesse estabelecido, percebe-se um querubim; e por debaixo do trono saíam raios de fogo flamejante. Era
movimento que se afasta da palavra de Deus como encontrada na difícil olhar para ele. E a Grande Glória estava sentada sobre ele – quanto
proclamação oral para uma ênfase na palavra de Deus fixada por escrito. a suas vestes, que brilhavam mais intensamente que o sol, eram mais
brancas do que a neve. Nenhum dos anjos foi capaz de entrar e ver a face
Pouco a pouco a interpretação desses textos escritos torna-se uma do excelente e Glorioso Um; e ninguém de carne e osso pode vê-lo... E o
atividade religiosa central e fundamental. Dois fatores da cultura Senhor me chamou com sua própria boca e me disse: “chega-te a mim,
exegética judaica do período do Segundo Tempo foram significativos Enoque, e à minha Palavra sagrada”. E ele me ergueu e me levou para
para as leituras cristãs subsequentes: 1) o sentimento do texto sagrado perto do portal, mas eu continuei a olhar para baixo ”.
tanto em termos de autoridade quanto formativo para a devoção e para a Os apocalipses judaicos faziam parte de uma literatura
prática dos devotos; 2) a crença de que o texto continha significados e revelatória que proliferava no mundo helenístico numa época em que os
dimensões mais profundos do que os disponíveis a todos os leitores. Esse meios tradicionais de acesso à vontade de Deus pareciam ter se tornado
sentimento encontrava-se também entre os gregos, que buscavam o

3
problemático para muitos. Alguns especialistas afirmam que as ascensões 23), aos profetas: no monte Horeb (1Rs 19,918), no Templo (Is 6,1-4), na
podem ocorrer de quatro modos: em sonhos, em visões enquanto carruagem de fogo (Ez 1,4-5).
acordado, da alma deixando o corpo, ou ascensões corporais quer nesta O céu é o céu de Javé, e a terra ele a deu as filhos de Adão (Sl
vida ou na ressurreição. Os textos ascensionais foram compreendidos por 115,16). Quando o vidente apocalíptico ascende ao céu ele recebe um
místicos posteriores, judaicos e cristãos, como fornecendo uma garantia e dom negado aos profetas. Essa penetração no reino celestial sublinha o
um exemplo de suas próprias esperanças e práticas. Segundo alguns
fato de que a visão de Deus a ser atingida no Templo já não era mais
especialistas, a origem da jornada celeste da alma encontra-se em fontes suficiente para todos os judeus nos últimos séculos aC. As visões
persas, que postulavam a existência de um mito de redenção iraniano apocalípticas testemunham certa relativização do templo como o único
sobre o descenso de um homem celestial para redimir a humanidade e lugar onde Deus deve ser encontrado e de possibilidades do encontro
para mostrar o caminho de volta ao céu. Esse mito deve ter influenciado humano-divino fora das estruturas religiosas tradicionais.
Platão e, posteriormente, o judaísmo, o cristianismo e o gnosticismo.
Outros afirmam a existência de dois tipos básicos de ascensão da alma Como as narrativas visionárias dos apocalipses judaicos são
aos céus: o grego, em que a alma ascende através das sete esferas pseudônimas, alguns pensam que sejam pura criação literária, sem
planetárias, e a do tipo judaico, em que a alma ascende através de sete ou relação com as técnicas meditacionais ou com as próprias experiências
três céus. Não teria sido o mito persa, mas a ciência grega e a devoção religiosas de seus autores. Outros acreditam que tenham referências às
cósmica e a apocalíptica judaica os responsáveis pela incorporação do práticas e experiências de indivíduos e grupos no judaísmo da época. Daí
motivo da ascensão às tradições religiosas ocidentais. alguns especialistas recentes as denominarem de místicas.
Os apocalipses judaicos incluem sonhos e visões simbólicas A forma de redenção prometida nos apocalipses é diferente
vistas enquanto na terra, como em Dn 7-12, como também as jornadas daquela presente nos textos mais antigos do judaísmo. Ocorre uma
visionárias aos céus, onde mistérios cosmológicos, o tribunal celestial e o expansão em duas direções: espacialmente e temporalmente. As
trono divino e seu ocupante são contemplados, como aparece em 1En perspectivas históricas concretas e nacionais encontradas no primeiro
14,8.18-21.24-25, em Testamento de Levi 5,1, 2En 22, Apocalipse de judaísmo são expandidas de vários modos até que a redenção se torne
Moisés 37-39, Apocalipse de Abraão 15-32, Baruc 6-9, 1En 32-38. cósmica. Temporalmente, a transcendência da morte através da
Tradicionalmente o lugar do encontro de Deus com seu povo era o imortalidade pessoal tem sido vista como a mensagem central da
Templo (Dt 16,16; Sl 11,4-7). Antes era a Tenda de reunião (Ex 25-30; escatologia apocalíptica, como o mostra a noção de ressurreição dos
35-40). Desse modo o israelita podia alinhar-se com seus antepassados, mortos, cuja primeira aparição é do período apocalíptico (Dn 12,2; 1En
como Abraão, que viu Deus na montanha do sacrifício (Gn 22,14), Jacó, 51,1-5).
que o encontrou e lutou com ele no vau de Jaboc (Gn 32,23-32), Moisés, A primeira era da mística judaica, conhecida como mística
que o tinha visto na sarça ardente (Ex 3,2-6), no Sinai (Ex 19; 33,11.18- Merkavah, por causa de seu fascínio com a exegese da visão da
carruagem em Ez 1, e às vezes como Hekhalot, ou mística do Palácio,

4
devido aos textos que descrevem os palácios divinos encontrados durante Platão
a ascensão, é importante para a mística cristã primitiva, porque Platão viveu numa época em que a crise interna da cidade grega,
compartilham uma herança comum, mas há pouca evidência de contato e da religião, tinha se tornado evidente. Decidiu abandonar a política e
direto. No séc. II cristianismo e judaísmo já eram adversários amargos. dedicar-se à sabedoria necessária para construir uma sociedade mais
Mesmo assim, uma analogia interessante entre estágio inicial de ambas as justa. Não faremos um resumo de seu pensamento, mas somente dos
místicas envolve o Cântico dos cânticos, um texto favorecido pelos
aspectos que influenciaram a mística cristã tardia. Para ele o sujeito
místicos das duas tradições. Sua primeira referência é do séc. II, nas Odes humano, ou a alma, é um buscador inquieto incapaz de possuir
de Salomão e em Melitão de Sardes. Um dos principais representantes da permanentemente o Bem Absoluto que beatifica. Tal posse só é
mística Merkavah primitiva, o rabino Akiva, é também uma das fontes de alcançada através da contemplação, que é fruto de uma purificação
uma nova compreensão do Cântico, que é baseada em três elementos: 1) ascendente (katharsis, askêsis) tanto do amor quanto do conhecimento, e
o livro foi dado a Israel no monte Sinai; 2) ele é o mais sagrado de todos que atinge sua meta quando o Nous, o elemento divino na alma, é
os livros bíblicos; 3) seu autor não foi Salomão, mas o “o rei que possui a assimilado a essa fonte divina. A fonte do Nous, o absoluto, era
paz, ou seja, o próprio Deus. Em outras palavras, o livro é uma identificado por ele como o Uno, o Bem e o Belo. Platão distingue ainda
autodescrição divina. Nos comentários rabínicos primitivos sobre o
entre o mundo das aparências e o mundo das Formas ou Ideias, entre a
Cântico é bem claro que a Noiva deve ser identificada com o povo de Doxa (opinião) e a epistêmê (conhecimento real), entre a temporalidade e
Israel. Essa leitura influenciou Orígenes, o primeiro comentador místico a imortalidade imutável. A contemplação é o modo como o Nous, em
cristão sobre esta obra, que sabia que os rabinos o colocaram entre os exílio divino no mundo da aparência, da opinião e do tempo, une os dois
quatro textos esotéricos reservados aos alunos avançados. Ele foi reinos através de seu contato intuitivo com a presença do Absoluto. Para
influenciado em sua leitura do Cântico pela leitura rabínica, sobretudo a Platão a contemplação fornecia um novo acesso ao divino em uma era
leitura corporativa, embora a tivesse alterado para argumentar que a em que as divindades tradicionais da cidade grega tinham começado a
verdadeira mensagem referia-se a Cristo e à Igreja. perder sua numisosidade. Segundo Festugière, Platão jaz à cabeça de
3. O ideal contemplativo grego duas tradições na devoção reflexiva grega: o “desejo de união com o
Deus inefável”, e o “desejo de união com o Deus do mundo, o Deus
Sem sombra de dúvida a filosofia grega, sobretudo a platônica e
cósmico”.
a neoplatônica, influenciou sobremaneira a mística cristã dos primeiros
séculos. Para se medir esta influência é importante conhecer alguns dos A noção de amor de Platão, abordada no Banquete, não é
principais elementos dessas distintas correntes. Iniciaremos com Platão, puramente egoísta. O verdadeiro eros é o amor pelo Bem que busca gerar
mostrando, em seguida, a leitura da tradição bíblica em diálogo com o o bem, tanto o bem da procuração humana quanto o da virtude. A visão
helenismo feita por Filo, para, num terceiro momento apresentar alguns de que trata a contemplação em Platão não é uma definição, mas é
dos principais representantes e conceitos do neoplatonismo. baseada em uma união imediata de ordem mística, em que tanto o

5
conhecimento quanto o amor têm papeis complementares para atingir um Para Platão a senda da felicidade humana começa com o
contato intuitivo com a presença do ser verdadeiro. Enquanto a beatitude despertar da alma através da manifestação do belo (em geral um belo
para ele é um estado cognitivo, porque o Bem que é apreendido em um mancebo). O processo ascético ou catártico através do qual o sábio tanto
ato de contemplação é idêntico ao Belo, que é a meta do eros, a restringe suas paixões quanto cultiva a virtude em sua alma é outro
contemplação também produz uma alegria amorosa na alma. Segundo aspecto da tradição contemplativa grega começada com Platão, que
René Arnou, “a contemplação platônica aparece como uma visão súbita e influenciará profundamente a tradição cristã posterior. O corpo é
imediata do verdadeiro Ser, ou, se alguém ascende tanto quanto possível frequentemente visto como cárcere da alma. A purificação gradual do
na escala de valores, uma união com o Bem supremo, uma união que não amor e do conhecimento alcançada através dos esforços morais e
é apenas a visão de um objeto por um sujeito, mas a tomada de posse do intelectuais fornece a preparação para a manifestação da realidade última
sujeito por uma realidade superior, de tal modo que o amor que responde da Forma das Formas, descrita como o Belo, o Bem e o Uno. Segundo
à atração do Belo e do Bem desfruta de um papel tão necessário quanto a Platão, essa Realidade última não pode ser adequadamente posta em
inteligência que contempla”1. Na obra Fedro, Platão fala de como a alma palavras. A teologia negativa, ou apofática, retomará em grande medida
humana pode, uma vez decaída, voltar à contemplação da divindade, a essa perspectiva. Deus, em geral, é visto como Primeiro Princípio,
saber, através da beleza. Na alegoria da caverna, presente na República, incognoscível e inefável para nosso modo de percepção e expressão. No
ele mostra que enquanto está na caverna, o prisioneiro, acorrentado desde diálogo Parmênides, Platão diz: “Então o Uno não tem nome, nem há
o nascimento e condenado a ver meras sombras de imagens projetadas qualquer descrição ou conhecimento ou percepção ou opinião dele. [...] E
pela luz, só com grande dificuldade é capaz de aprender a progredir, não é nomeável, nem descritível nem pensável, nem cognoscível, nem
através dos níveis de contemplação, a contemplar o próprio sol. A qualquer coisa existente o percebe”. O ápice da contemplação em Platão
explicação da alegoria dada por Platão sublinha a mensagem de que, na não é um meramente ver, mas uma consciência de identidade com o
ascensão da alma até a região inteligível, a Ideia do Bem é a mais elevada Princípio Último presente. Só podemos aceder ao Uno, ao Bom e ao
e a derradeira. O filósofo que já teve essas “contemplações divinas”, Belo, segundo ele, porque a parte mais nobre de nossa alma, o nous, é
também descritas como “a contemplação da essência e a região mais divina em sua origem e capaz de ser divinizada, ou seja, de reviver e
brilhante do ser”, por meio do “olho da alma”, deve sempre ter em mente radicalizar sua divindade inata. A divinização é a meta da filosofia de
quão difícil é a passagem da ascensão ao descenso entre os dois mundos. Platão. O filósofo ganha a imortalidade na medida em que é assimilado a
A alegoria da caverna é essencialmente uma descrição do caminho Deus. Essa compreensão estará também presente na mística cristã, mas
espiritual que começa com o despertar e prossegue através da purificação com a diferença de que em Platão somos divinos por natureza, enquanto
dolorosa e iluminação gradual para terminar na visão. para o cristianismo o seremos por graça.
Vários autores se perguntam se o pensamento de Platão é
místico ou não. Segundo Festugière, ele une tanto uma tendência
1
ARNOU, R. Contemplation. In DS 2, 1723.
racionalista quanto uma tendência mística em seu pensamento.

6
Após Platão seu legado teve o seguinte percurso: Antiga mas também transformar a contemplação platônica em um modo mais
Academia, ou seja, a escola imediata a Platão (350-100 aC), médio personalista.
platonismo (100 aC a 250 dC), neoplatonismo (250 em diante). Além Sua influência sobre os primeiros teólogos cristãos deve-se à
dessas tendências, surgiram no período romano outras escolas, como a importância que ele deu ao logos, ou Verbo Divino ou Razão, como um
aristotélica, a estoica, a neopitagórica, como movimentos religiosos intermediário entre o Deus transcendente e incognoscível e a alma
filosoficamente orientados, como o gnosticismo, o hermetismo, os Hinos
humana. Sua doutrina do logos tem raízes no judaísmo helênico e na
órficos e os Oráculos Caldaicos. Muitas dessas escolas e movimentos figura de Sofia ou Sabedoria, tendo contribuído para levar as Ideias para
tiveram alguma relação com o cristianismo primitivo e sua mística, mas é dentro de Deus, identificando-as com a Mente Divina, que causa o
impossível levar todas em consideração. Para o mundo cristão, porém, universo. Para ele, Deus está além de todos os predicados da linguagem
foram decisivos, sobretudo, Filo (20 aC-50 dC), Plotino (205-270 dC) e humana, ou seja, ele é subjetivamente apofático, Mas o Deus de Filo, o
Proclo (410-485 dC). Deus bíblico que dá seu nome em Ex 3,14, não está além do ser. Ele é o
Filo de Alexandria “existente que verdadeiramente existe”. Embora nenhum nome possa lhe
ser dado, o fato de que ele é pode apreendido. A existência do Deus
Filo, judeu alexandrino e quase contemporâneo de Jesus e de
inconcebível pode ser conhecida através da analogia, porque ele se revela
Paulo, foi o primeiro pensador na história do Ocidente a casar o ideal
de dois modos: primeiro, através do universo inteligível, ou filho mais
contemplativo grego à fé monoteísta da Bíblia. Sua importância reside
velho, ou seja, seu logos; em segundo lugar, e por derivação, através do
em ter usado a melhor filosofia grega, sobretudo a platônica, tanto
universo sensível, como se através de seu filho mais novo. Par Filo, o
apologeticamente, para provar que o judaísmo era uma religião
logos é a ideia das ideias, o primeiro filho gerado pelo Pai, um “segundo
verdadeira, quanto especulativamente, para dela extrair o significado
Deus”. O logos aparece como um princípio mediado, o meio que une
interno das narrativas bíblicas e das práticas rituais do judaísmo. Seu
dois extremos, a face de Deus voltada para a criação. Como manifestação
pensamento místico antecipa a mística cristã clássica, especialmente em
do Deus oculto, o logos revela os dois aspectos essenciais da relação de
seu caráter exegético. O significado da vida para ele já tinha sido
Deus para com o mundo, o poder criativo e o poder regulador ou
revelado na Escritura, mas nem todos tinham olhos para lê-lo. Propõe
conservador. Ele tem ainda um papel central no retorno da alma a Deus.
para isso uma ampla interpretação alegórica da escrituras. A objetivo da
O logos está imanente em todas as coisas, mas de modo especial na
exegese filônica é mostrar à alma seu caminho para Deus. Para isso ele
mente humana. Sua presença na alma, ou seja, na dimensão mais elevada
articula a contemplação da filosofia grega, com sua ênfase crescente na
do Nous, torna possível tanto o conhecimento da existência de Deus
transcendência do Primeiro Princípio divino, e sua fé judaica baseada na
quanto o retorno da alma a Deus a partir de seu estado presente caído.
Bíblia e nas práticas e leis de seu povo. Com isso ele consegue não
apenas dar um significado mais profundo e mais universal às Escrituras, No Fedro, Platão construiu o mito da queda das almas. Filo
recorre ao mito adâmico. Para ele, a descrição do Gênesis não era uma

7
coleção de ficções míticas. Recorrendo à interpretação alegórica ele diz ensandecida por uma paixão celestial, levada pelo verdadeiramente
que a serpente representa o prazer que tenta a mulher (a mulher Existente e atraída para o alto, para ele” (Her. 70).
representando a percepção sensorial) com o intuito de desviar a mente A divinização para Filo não é ter consciência de que se é
soberana do homem das realidades celestiais para baixo, para as coisas naturalmente divino, mas mas ganhar consciência da absoluta nulidade
deste mundo. A história da queda significa então a alma desordenada que do ser criado, o que implica uma auto-anulação. Filo foi também o
já se esqueceu de sua verdadeira natureza como imagem do logos. Para
primeiro a introduzir na literatura mística o oximoro da “embriaguez
ele a história dos Patriarcas e de Moisés é uma tipologia das almas que já sóbria”, para descrever o caminho através do qual a mente é arrancada
reconquistaram sua natureza verdadeira ao seguir a senda da para fora de si mesma no caminho ascensional. Filo faz de Moisés o
contemplação mística. Para Filo a beatitude final reside na visão de Deus, místico ideal, o homem divinizado, marcando assim um importante
ou no conhecimento daquele que verdadeiramente é, “pois o início e o momento na história das tradições místicas, tanto para judeus quanto para
fim da felicidade é ser capaz de ver Deus”. O verdadeiro contemplativo é cristãos, ligando o apofatismo generalizado e abstrato da tradição
descrito por ele a partir da linguagem dos mistérios. Assim, Moisés, helênica a uma história de vida pessoal que poderia ser imitada.
“entrando em uma nuvem escura, a região invisível, habita ali enquanto
sendo iniciado nos mais sagrados dos mistérios. Ele se torna, porém, não Antigas religiões de mistério
apenas um iniciado, mas também um hierofante e instrutor de ritos Filo, mais do que Platão, levanta a questão da relação entre a
divinos, que ele comunicará àqueles cujos ouvidos estão desimpedidos” filosofia mística grega e as religiões de mistério antigas, que cultuavam
(De Gigantibus, 54). Essa ascensão à região invisível para ser iniciado Elêusis, Dionísio, Orfeu, a Grande Mãe, Ísis e Mitra. Alguns estudiosos
nos mistérios começa com uma disciplina do corpo e um estilo de vida dessas religiões sustentam que as imagens de união entre um deus e um
ascético que Filo esboçou em seu tratado Sobre a vida contemplativa, humano encontradas nos mistérios (comer, união sexual, filiação divina,
escrito como elogio aos Terapeutas, grupo judeu-essênico que vivia perto renascimento e jornada celestial), que encontram-se em toda mística,
de Alexandria, que são descritos como buscando a visão do Existente e foram herdadas pelo cristianismo católico, que foi o herdeiro universal da
como tendo assegurado a amizade de Deus através da virtude. O poder mística antiga. Outros pensam que qualquer que tenha sido o papel dos
que motiva a vida contemplativa e leva à visão de Deus é o divino eros, mistérios na mística cristã, ele foi em grande parte do tipo mediado pela
mas para Filo esse amor não é um dom inato da alma, mas uma apropriação filosófica dos mitos dos cultos de mistérios. Segundo Kurt
inspiração através da qual Deus nos chama a si. Filo dá um valor maior Rudolph, a relação entre os mistérios e a filosofia grega é baseada na
ao ekstasis do que Platão. Segundo ele, trata-se de ficar fora de si no convicção de que o conhecimento de deus é atingível apenas através de
caminho ascendente, “como as pessoas possuídas e tomadas pelo frenesi um caminho como aquele seguido nos mistérios da esfera ritual e
báquico por alguma forma de inspiração profética. Pois é a mente que é religiosa. O uso ocasional da linguagem dos mistérios em Platão se
preenchida pela Deidade e não é mais dona de si, mas é agitada e expandiu para incluir leituras totalmente alegóricas dos mitos e dos
rituais dos cultos, um processo que atingiu sua plenitude no

8
neoplatonismo. Para Pierre Hadot, embora os neoplatônicos usem o bem ou de Deus, o Pai, afirmando que isso pode ser breve e
adjetivo mystikos apenas raramente, a noção de visão experimental imperfeitamente desfrutado nesta vida, mas que a visão perfeita que
intuitiva do mistério como o ápice da contemplação filosófica era algo transforma toda a pessoa num ser divino e faz da alma um deus, deve
que os filósofos adotaram a partir do uso tradicional de mystikos esperar até a morte. Também a influência do apofatismo da literatura
encontrado nos mistérios gregos. hermética marcou o Ocidente, com a insistência na transcendência e na
incognoscibilidade do Deus Altíssimo. Médio-platonistas,
A interação mútua entre a filosofia e o mistério na Antiguidade
neopitagóricos, gnósticos de várias vertentes, os autores dos Oráculos
tardia foi influente no gnosticismo. Os Oráculos Caldaicos, escritos no
Caldaicos e da Hermetica, como Clemente e Orígenes, insistiram na
final do séc. II, por magos sírios, tornaram-se escritura sagrada para
incognoscibilidade de Deus.
muitos neoplatônicos, sendo um bom exemplo da “mística sacramental”
da religião misteriosófica grega. Certo número de temas chave nesses Segundo Festugière, nos primeiros séculos da mística cristã,
textos obscuros, especialmente a insistência de que é apenas através de pode-se notar dois tipos de mística: as teóricas, que enfatizavam a
um nível secreto mais elevado da inteligência humana descrito como “A habilidade do sábio de ascender até o Primeiro Princípio, o Pai além de
flor do Nous” que o contato com o “Pai do Alto” é possível, viriam a ser todo o entendimento, ou pelo menos o Deus astral deste mundo, e a
importantes na mística apofática tardia. Mais ainda importantes foram os mística da salvação, baseada numa visão pessimista do mundo e na
escritos herméticos (Hermética), atribuídos a um deus egípcio, Tot, que ênfase na necessidade da intervenção divina para realizar o movimento
foi identificado com o grego Hermes. Compostos sob influência egípcia, ascensional até a meta divina. O que ambas tinham em comum era
judaica e grega entre os séc. I-III dC, a Hermética filosófica era bastante mostrar que a visão de Deus era o objetivo último e a meta suprema. Essa
conhecida na Antiguidade tardia e viria a exercer uma influência direta e herança foi absorvida e transformada em algo novo por Plotino, o mais
indireta sobre a história da mística cristã. puro místico da Antiguidade pagã.
Embora os escritos do Corpus Hermeticum sejam variados Plotino
demais para se falar de uma única doutrina hermética, esses textos
Plotino nasceu no Egito, por volta de 205 e morreu em Roma,
revelatórios expressavam as preocupações básicas do helenismo em 270. Viveu num período de tumulto da história romana. Seus tratados
alexandrino quanto a duas questões centrais: a natureza de Deus, foram organizados e publicados por seu discípulo, Porfírio, no início do
especialmente a oposição entre o Deus Cósmico e o Deus Primeiro séc. IV, em seis volumes de nove tratados denominados Enéadas. São
desconhecido, e a história da queda da alma no reino terreno e sua considerados como as maiores obras-primas da mística e da literatura
ascensão para fora dele. Uma oscilação entre visões otimistas e filosófica antiga. Segundo Porfírio, o fim ao qual almejava o mestre era
pessimistas do universo, mesmo mais marcantes do que as de Platão, é “se unir, se aproximar do Deus que está acima de todas as coisas. Quatro
evidente. Algumas passagens revelam um caráter fortemente místico. No vezes, enquanto estava com ele, ele atingiu essa meta” (Vida de Plotino,
Décimo tratado do Corpus, Hermes instrui seu discípulo sobre a visão do
23). O próprio Plotino fala de sua experiência: “várias vezes despertei

9
fora do corpo para mim mesmo e depois entrei no corpo novamente, A teologia do Uno de Plotino tem raízes na teologia negativa
saindo de todas as outras coisas; eu já vi uma beleza maravilhosamente precedente, mas é muito mais rica do que ela. A interpenetração da
bela e tive a certeza de que, então, como nunca, pertencia à parte melhor; mística e da metafísica em seu pensamento demanda um esboço de seu
na verdade eu já vivi a melhor das vidas e já me identifiquei com o pensamento metafísico antes de analisar sua mística.
divino; e, tendo me estabelecido firmemente nele, eu cheguei àquela Plotino concebeu três níveis transcendentes da realidade, ou
suprema realidade, estabelecendo-me acima de tudo mais no reino do
hipóstases, além do universal visível, o Uno, o Intelecto e a Alma. Ele
Intelecto. Depois, após esse descanso no divino, quando desci do distingue ainda a alma em dois níveis: a Alma Universal superior
Intelecto para a razão discursiva, eu fiquei perplexo como pude descer” (psiché) e a Natureza (physis), ou aquela Alma que está encarnada na
(LC 4, 396-97). Segundo Plotino, a filosofia existe para elevar a alma matéria. As três hipóstases já foram vistas de muitas maneiras, a maioria
inferior ou o ser até a consciência de uma identidade mais elevada, o eu delas como sendo uma estrutura hierárquica, um mapa de níveis
transcendente que desfruta da identidade com o Intelecto puro e, através ontológicos da realidade no qual os estágios mais baixos fluem dos mais
deste, até mesmo com o incognoscível Um. Essa experiência deve elevados através de um processo necessariamente atemporal de processão
sempre ser curta e excepcional enquanto a alma permanece no corpo. Em ou emanação e retorno através da conversão. Muitos também viram seu
alguns de seus textos ele descreve a oscilação entre: 1) uma preparação
pensamento como uma metapsicologia, ou seja, como uma apresentação
discursiva para o encontro místico, em que ainda há uma distinção entre da realidade de todas as coisas através de uma análise da consciência.
alguém que vê e o que é visto; 2) a unidade da consciência mística, que é Essas duas leituras devem assumir também a compreensão dialética, que
necessariamente seguida de 3) um retorno a uma nova, mas refinada, articula imanência e transcendência na perspectiva de levar a alma à sua
discursividade. derradeira libertação. A liberdade vem através da constatação do que
Nenhum autor retratou a psicologia dos estados místicos com significa dizer que o “Uno é todas as coisas e nenhuma delas em
suas passagens complexas entre a dualidade consciente e a unidade com particular” (Enéadas 5.2.1).
maior sutileza que Plotino: “Qualquer um que tenha tido essa experiência Cada um dos aspectos do pensamento de Plotino faz surgir
saberá o que eu estou dizendo. Ele saberá que a alma vive outra vida diferentes possibilidades místicas que juntas geram um complexo de
conforme ela avança na direção do Uno, alcança-o e compartilha com ideias que tiveram grande importância para a mística cristã posterior. O
ele. [...] Ela não precisa de mais nada. Pelo contrário, ela deve renunciar esquema da emanação e retorno é o mais conhecido. Suas possibilidades
a tudo mais e permanecer nele sozinha, tornar-se ele apenas, livre de toda espirituais estão bem ilustradas no tratado sobre o Belo. As metáforas
terrestrialidade, ansiosa por se libertar, impaciente com cada grilhão que utilizadas são as da jornada, ascensão, esforço apaixonado, retorno à
a amarra aqui embaixo, de modo a poder abraçar o objeto real de seu fonte e visão. Essa investigação sobre a natureza do belo e seu papel no
amor com seu ser inteiro, de modo a que nenhuma parte dela não toque o retorno da alma à sua fonte começa, como em Platão, com a beleza dos
Uno”. corpos, e seguida pela contemplação dos modos de vida e tipos de

10
conhecimento e depois pela beleza da alma purificada pela virtude, de tal Plotino se recusa a qualquer predicação ao Uno. Seu apofatismo
modo que pertença totalmente ao divino, “até que, por fim, ultrapassando é objetivo e subjetivo. Ele o descreve como além do ser e além do
na ascensão tudo o que é estranho a Deus, se veja com o seu eu conhecido: “O Uno, como está além do Intelecto, está também além do
solitariamente n’Aquele solitário, simples, singular e puro, do qual tudo conhecimento, e como ele não precisa de modo algum de coisa alguma,
depende e para o qual todos olham e são e vivem e pensam” (1.6.7). O então ele não precisa do conhecimento. [...] Pois o conhecimento é uma
texto conclui com uma invocação sobre a necessidade da purificação e da coisa; mas Aquilo é um sem o algo” (5.3.12). O Uno jamais poderá ser
introversão de modo a alcançar o “reino do Pai do qual proviemos” objetificado, porque ele é um sujeito puro transcendente, e, portanto, será
(1.6.8), assim como o lembrete de que esse processo é de deificação: através de uma série de apelos à atividade imanente da ação, do
“você deve se tornar antes de tudo divino e todo belo, se tem a intenção conhecimento e da vontade que Plotino criará sua nova linguagem.
de ver Deus e a beleza” (1.6.9). Em Plotino, o amor erótico tem um Plotino se mostra perplexo sobre a duração e a natureza da união
âmbito tanto mais cósmico quanto mais transcendental. “Ele é ao mesmo consumada no ápice da contemplação. A visão consumada nesta vida é
tempo amoroso e o amor, e o amor de si mesmo”. O Uno ou Bem é sempre de duração breve, por causa do modo pelo qual o corpo nos
absolutamente autossuficiente, sem qualquer indício de desejo por prende às coisas aqui embaixo, mas a verdadeira união é uma identidade
qualquer coisa fora de si. Mas, ao reconhecer que o eros não é definido
do vidente e do visto, em que o homem que obtém a visão se torna, por
pela necessidade, Plotino realizou uma ruptura no pensamento de Platão assim dizer, outro ser. Ele cessa de ser ele mesmo, não retém nada de si.
que lhe permitiu falar de uma Realidade Suprema em que o buscador e o A união mística é tanto uma autotranscendência quanto uma penetração
buscado se tornam verdadeiramente um. Embora esse eros transcendente na verdadeira identidade da alma; quando não é outra coisa, ela não é
não tenha nenhuma preocupação com o que está abaixo dele (Plotino nada senão ela mesma. Mas, quando ela é apenas ela mesma e não em
nega que Deus ame o mundo), nós devemos nos lembrar que o Uno um ser, ela está n’Aquilo (isto é no Uno). Para Plotino a contemplação e
erótico permanece a fonte de tudo o que é e de que todo o Universo é a visão não têm limites. Isso indica que a contemplação é a própria vida
essencialmente erótico, no sentido em que seu ser é marcado pela luta da alma, tanto a feitura que a produziu quanto sua saudade redutiva para
apaixonada pelo retorno à Fonte.
retornar à sua Fonte. “Todas as coisas vêm da contemplação e são
O papel do eros no retorno da alma à sua fonte está entre os contemplação” (3.8.7). No entanto, a contemplação vida de si mesma que
temas mais constantes no pensamento de Plotino. Atraída para cima pelo caracteriza o Nous ainda implica uma dualidade, e a contemplação do
choque da beleza, a alma se torna o próprio amor. Quando ela já chegou Uno pelo Nous não é uma contemplação da fonte precisamente como um.
à união com o Nous, ela será capaz de exercitar os dois poderes inerentes O Uno em si, está além da contemplação do desejo, mas porque
deste Princípio Intelectual supremo. O Nous eron é o que torna possível o possuímos sua semelhança em nós mesmos, nós podemos consumá-la
estágio final da união com o Uno. por um tipo de intuição simples. A intuição encontrada no ápice da
contemplação é descrita por uma larga variedade de metáforas através do
corpus plotiniano: iluminação, influxo, fecundação, possessão etc. Como

11
em Platão, ela surge de repente, na forma de uma presença, ultrapassando pessoas, no sentido em que Jesus Cristo como Salvador é, nem a
todas as formas de conhecimento. No momento supremo, a alma perde a contemplação plotiniana culmina na união com um Deus pessoal, como
consciência de si, tomando o modo de conhecer atribuído ao Uno. Essa na mística cristã. Ele conclui a Enéadas 6.9 com a frase “o voo do
experiência beatifica e diviniza a alma. solitário para o Solitário”, o que mostra a natureza privada e individual
de sua mística. Sua mística não supõe uma Igreja nem tem a ver com um
A visão de Plotino não é panteísta, como alguns sustentam. O
evento histórico: está eternamente presente e não necessita de nenhum
Uno tanto está quanto não está em todas as coisas. Alguns a chamam de
processo histórico para trazê-la à realização.
monista. Alguns afirmam que a alma se dissolve no Uno, mas outros
negam toda forma de aniquilamento da alma ou identidade absoluta com Neoplatonismo tardio
o Supremo. É melhor qualificar sua visão como dialética, ou seja, o Uno O neoplatonismo tardio, sobretudo através de Proclo, é o que
sempre é a alma transcendentalmente, mas uma vez que o Uno é sempre terá mais influência sobre a mística ocidental, notadamente através do
mais do que a Alma, os dois jamais poderão ser absolutamente Pseudo-Dionísio. Antes dele, porém, é necessário retomar brevemente a
identificados, mesmo quando a alma ascende de seu eu consciente para o figura de Porfírio (232-304), discípulo de Plotino, que se tornou
eu transcendente presente na Fonte. conhecido como um dos inimigos dos cristãos, embora os tenha
Plotino foi frequentado por místicos cristãos, mas é clara sua influenciado, sobretudo no Ocidente, através de suas obras traduzidas
diferença com relação aos ideais da mística cristã, embora seu efeito para o latim.
tenha sido poderoso sobre muitos cristãos do Oriente e do Ocidente Com Proclo, a evolução do ideal da devoção contemplativa, que
cristão. A diferença entre o esforço para se chegar ao Uno é muito começou com Platão, atinge seu ápice. Para ele, a teologia é uma ciência
diferente do que os cristãos compreendem como graça. A diferença entre exegética, uma forma de conhecer que também é um exercício espiritual
a compreensão do ser humano de Plotino e a dos místicos cristãos é que consiste num entendimento adequado do pensamento de Platão,
também patente. Para ele o verdadeiro eu era a alma viva que não desceu particularmente no Parmênides. Sua principal obra é Teologia Platônica.
da união com o Nous, o Eu transcendente divino, não o eu inferior
O que ele encontrou nas hipóteses do Parmênides e nos outros diálogos
consciente reflexivo. Onde a alma é naturalmente divina, ao invés de platônicos foi um mundo hierárquico complexo de níveis de realidade
espírito criado, o conceito cristão da graça não tem lugar. A diferença de baseados nas três hipóstases de Plotino e evoluindo de acordo com a lei
concepção de contemplação também é diferente. Para Plotino, “para dinâmica fundamental de permanecer na fonte, procedendo dela e
obter a visão basta o esforço daquele que deseja obtê-la” (6.9.4). Para ele, retornando a ela.
nosso reconhecimento do Uno em nós, é a verdadeira libertação (6.4.14-
15), mas não é obra de um libertador ou salvador. Apesar do modelo Ao contrário de Plotino, Proclo nunca diz que o Uno Supremo é
subjetivo que ele usa para compreender a natureza da realidade, e do tom de algum modo eros, mas ele vai além de Plotino ao dar ao anelante eros
personalista de suas descrições sobre a união, o Uno e o Intelecto não são um papel cósmico consistente. Falando do mais elevado nível das
hênades ele diz que através dessas três hênades ou deuses inteligíveis (a

12
saber, Bondade, Sabedoria e Beleza), a tríade da fé, verdade e amor particulares que a caracterizou. O evento Cristo, no início da nossa era,
“avança doravante para todas as ordens divinas e irradia para toda união introduz a perspectiva de que somente através da mediação do Cristo, do
com o inteligível. Assim o eros universal dá harmonia ao cosmo. Do alto, Ungido ou Messias temos contato com o Deus transcendente até então
o amor abraça dos inteligíveis ao intramundano, fazendo tudo reverter à adorado pelos judeus. A questão principal que se pôs foi como o contato
beleza divina. O amor desce dos próprios deuses, de modo a tornar com Jesus enquanto manifestação do divino seria conseguida e
possível um retorno amoroso: “Assim os deuses amam os deuses, o fomentada para alcançar a salvação. Seus primeiros seguidores insistiam
superior seus inferiores providencialmente, e o inferior seus superiores que isso poderia ser alcançado apenas pela entrada na comunidade que
reflexivamente. O eros agora, mais claramente que antes, não é apenas ele tinha fundado e que ele tinha deixado com sua presença no mundo. A
uma expressão da necessidade humana, mas é uma força universal unido entrada na comunidade dos fieis (a eklesia) através da confissão de fé em
todos os níveis da realidade e elevando-os rumo ao Uno. Segundo ele, o jesus como Senhor e um ritual de ablução ou batismo, que era entendido
eros divino é uma atividade, o eros devasso uma passividade; um é como uma misteriosa participação em sua morte e ressurreição, eram o
coordenado com o intelecto e a beleza divina, o outro, com os corpos. ponto de partida necessário. A vida na comunidade era um modo novo de
vida, baseado no amor mútuo e na partilha dos bens e numa vida
O sistema de Proclo estabeleceu um apofatismo de tal pureza
ritualizada de prece centrada em uma refeição litúrgica a que Jesus tinha
intimidadora que é difícil ver como a alma poderia contemplar ou chegar
dado início antes de sua morte e da qual se acreditava que ele estaria
à união mística com uma fonte tão remota. Para ele, a tentativa de
presente na ingestão do pão e do vinho consagrados. Dada a animosidade
nomear o Uno é a de nomear nosso desejo natural pelo Uno, ou seja,
criada pelo novo grupo no seio do judaísmo, que não acreditava ser Jesus
ativar a imagem do Uno em nós. Essa impressão, caracterizada como
o messias, e entre os gentios, que desconfiavam da nova religião, por não
busca, ou eros, é o que torna possível a ascensão do místico. Proclo
reconhecer os deuses do Estado, alguns fieis podiam ser chamados à
insistiu, como Platão e Plotino, que era porque havia algo divino na alma
identificação última com Jesus, testemunhado sua fé ao morrer por ele. O
que o retorno era possível, embora, ao contrário de Plotino, ele pensasse
ideal do martírio tornou-se então parte significativa da identidade da
que a alma era totalmente caída e não habitava sequer parcialmente no
nova religião. Jesus, que era versado nas Escrituras judaicas, embora não
reino superior. Plotino havia localizado esse elemento divino no Nous,
fosse escriba, era um pregador, cuja mensagem estava centrada no Reino
embora às vezes falasse de algo além do Nous. Proclo identifica-o com o
de Deus. Ao morrer, ele mesmo se tornou objeto da pregação de seus
anthous nou, ou a flor do Nous, um termo que encontrou nos Oráculos
seguidores, que começaram a escrever o que ele havia dito e realizado. A
Caldaicos.
palavra escrita, que constituiu aos poucos os livros do NT, tornou-se
3. Jesus: a presença de Deus na terra depois objeto da exegese. O cultivo da consciência imediata da presença
Embora as conexões não sejam sempre diretas, as ascensões divina ocorreu dentro do exercício de leitura, meditação e ensinamento
apocalípticas ao reino celeste e a busca platônica da teoria ajudam a do texto bíblico, frequentemente dentro de um contexto litúrgico ou
explicar o porquê da mística cristã ter ganhado algumas das formas quase litúrgico.

13
Os textos religiosos ganharam então importância significativa na centrado no ideal contemplativo que entrou no cristianismo no séc. II.
nova religião. As primeiras comunidades, habituadas à leitura e Alguns autores protestantes do século passado negaram qualquer
interpretação da bíblia hebraica, continuaram a ler e a orar pelos textos conexão entre origens cristãs e místicas, vendo a introdução da mística
sagrados dos judeus, embora de modo novo, à luz da chave cristológica, grega no cristianismo como uma infecção infeliz. Outros, porém,
ou seja, como um testemunho, uma profecia ou preparação para a vinda enfatizaram a importância das formas distintas de mística encontradas no
de Jesus. O princípio ao redor do qual a bíblia cristã foi criada foi NT.
fundado cristologicamente. Começaram a chamar os livros anteriores a Se compreendermos a mística como alguma forma de união de
Jesus de Antigo Testamento e, no final do séc. II, já tinham um cânon dos identidade com Deus através de uma prática puramente contemplativa,
livros do Novo Testamento. Esses livros não só apresentavam as normas especialmente do tipo que ultrapassa o papel mediador de Cristo e o lugar
para a crença correta, mas também eram um meio através do qual Jesus da Escritura e da comunidade, é de fato difícil dizer que já alguma
Cristo, identificado como a Palavra de Deus preexistente, tornava-se mística no séc. I ou além do cristianismo. Mas se tomarmos a mística em
presente à comunidade. Portanto, o cristianismo primitivo se sentido mais amplo, o primeiro século dos escritos cristãos oferece
caracterizava pela crença de que Deus tinha se tornado presente em Jesus evidências consideráveis a favor da existência de um elemento místico.
Cristo, que desde seu retorno ao céu se tornara acessível através da
Paulo e João não eram místicos no sentido em que podemos falar de
palavra e do rito em meio à comunidade de crentes. Esses elementos – Orígenes e Agostinho, mas os escritos paulinos e joaninos, como os
comunidade eclesial, escrituras e prática sacramental – constituem o demais escritos do NT, são suscetíveis de leituras místicas, e tais leituras
cerne do cristianismo primitivo e são parte integrante de toda a mística formam o fundamento histórico de toda a mística cristã tardia. A mística
cristã, especialmente de seus estágios formativos. cristã propriamente dita surgirá quando as comunidades começarem a
Não se pode, porém, dizer que o cristianismo tenha sido uma fazer uma leitura espiritual dos textos bíblicos.
religião mística desde sua origem. A formação da mística cristã em seu
Escritos do Novo Testamento
sentido próprio foi o resultado de um processo histórico que levou vários
séculos para se completar. No mundo latino ela se tornou evidente Os evangelhos sinópticos, escritos entra 70-90 dC, reúnem
somente no final do séc. IV. Desde o início, porém, o cristianismo já materiais primitivos importantes, embora sejam posteriores às cartas
continha um elemento místico, ou pelo menos seus temas centrais já paulinas autênticas, escritas entre 50-58 dC. Nesses evangelhos Jesus é
eram capazes de uma interpretação mística. Muitos autores, porém, apresentado não apenas como um mestre, mas também como modelo a
defendem que alguns textos do NT e dos escritos subapostólicos já ser imitado. Essa visão de Jesus terá um papel prático significativo na
contêm um sentido místico: seja um sentido implícito, como a nova vida mística cristã. O seguimento e a imitação serão interpretados de diversas
“oculta com Cristo em Deus” (Cl 3,3), seja explícito, como a experiência maneiras, seja vendo em Jesus um modelo para suportar as dificuldades
consciente da presença de Deus na alma. Outros autores são mais internas e externas à vida cristã, seja como modelo de vida apostólica,
reticentes, preferindo ver a mística como um fenômeno mais grego, seja no sentido paulino de “ter a mente em Cristo” (1Cor 2,16), ou seja,

14
ser capaz de compreender e estar consciente das “profundezas de Deus” prostituta penitente em Lc 7,36-50, intérpretes espirituais criaram uma
(1Cor 2,10), porque a especial consciência de Deus que Jesus das “biografias” místicas básicas que ajudaram a formar a espiritualidade
demonstrou ter nos Sinópticos, especialmente em Mt 11,27 e Lc 10,22, se cristã posterior. Sua história de pecadora que, através de seu amor e
tonou acessível a seus seguidores: “Ninguém conhece o Filho senão o arrependimento profundos, se tornou uma amante especial de Jesus, foi
Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o de grande importância na mística posterior. Sua posição privilegiada será
quiser revelar”. Místicos posteriores recorrerão a esse texto como explorada nos textos gnósticos que lhe dão preferência sobre a figura de
garantia de suas reivindicações de conhecimento imediato e especial de Pedro. Orígenes é a primeira testemunha de um dos elementos chave no
Deus. O episódio da Transfiguração (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), uso místico da lenda de Maria Madalena, ao identifica a “melhor parte”
que fala da glorificação de Jesus, sugeriu também posteriormente a como a preeminência do amor contemplativo (Maria) sobre o ativo
possibilidade de contato extático com Deus através da mediação do Jesus (Marta).
glorificado. As descrições sinópticas das visões da páscoa, especialmente Paulo, convertido no ano 40, participa da expectativa
Maria Madalena (Mt 28,9-10; Mc 18,9) foram entendidas do modo apocalíptica do período intertestamentário. Como os primeiros cristãos,
análogo. Porque o Senhor ressuscitado continua vivendo na Palavra e no ele compreende a ressurreição e espera a parusia em termos
sacramento, experiências especiais dessa presença permaneceram como
apocalípticos, como aparece na 1Tes, Gl, 1 e 2Cor, Fl e Rm, quanto em
possibilidade constante. Os Sinópticos usam ainda conceitos ou temas sua vida. O êxtase que ele descreve em 2Cor 12,1-6 terá sem dúvidas um
que a mística cristã posterior usará para descrever a meta da vida mística. grande influxo na mística posterior. Junto com a história que o Êxodo
Os mais importantes são as noções de perfeição e da visão de Deus, conta do encontro de Moisés com Deus no Sinai, ela serviu como
como se encontram no sermão da montanha, em Mt 5,1-7,29 e no sermão narrativa-modelo para a experiência mística da presença divina. A
da planície, em Lc 6,17-49. Jesus fala aí que os discípulos são chamados descrição paulina salienta as mudanças pelas quais o apocalipticismo
a serem perfeitos como o Pai é perfeito. A quinta bem aventurança, “a passou no cristianismo primitivo. No judaísmo a apocalíptica é sempre
pureza de coração”, que leva a “ver a Deus”, também terá uma pseudônimo com suas descrições de ascensões visionárias sendo
posteridade importante na mística, sendo lida pelos herdeiros do
atribuídas a figuras bíblicas. Paulo fala de suas próprias ascensões
platonismo à luz da contemplação (theoria). A leitura espiritual já apocalípticas, usando-as para fundamentar sua autoridade como
começou em vários públicos dos primeiros séculos, embora só seja pregador, como João, no Apocalipse falará se suas visões. Como Moisés,
teorizada por Orígenes. Dois textos são exemplo dessa leitura: o da que encontrou Deus numa nuvem e na escuridão, o mistério não pode ser
parábola do semeador (Mt 13,4-23; Mc 4,1-20; Lc 8,11-15), que foi vista revelado a qualquer pessoa que não tenha tido a experiência: ele é
como indicando os estágios de perfeição na vida cristã; o da visita de apofático. Nos seus escritos há também temas chave que marcarão
Jesus à casa de Marta e Maria (Lc 10,28-42), onde Jesus diz que Maria profundamente a mística cristã posterior. Em 1Cor 13,12, no hino do
escolheu a melhor parte. A abundância de Marias fez de Maria Madalena amor, Paulo contrasta a imperfeição do presente com a perfeição que está
um poderoso paradigma para a mística cristã. Ao identificá-la com a
por vir: “Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois,

15
veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas, depois, preferido a eros. Já o termo gnôsis tem uma história mais complexa que
conhecerei como sou conhecido”. A conexão da perfeição do ágape com ágape. O termo, que no uso cristão significa “conhecimento por
a visão face a face e uma gnôsis mais elevada foi interpretada em familiaridade pessoal”, era amplamente usado em grego e tinha
conexão com 2Cor 3,12-18, que contrasta a visão nublada e plena em significado filosófico quanto religioso. Paulo o usa livremente. Embora o
termos de entendimento velado da era do AT (representado pelo termo seja usado para descrever o próprio conhecimento de Deus (Rm
velamento de Moisés em Ex 34,34, e da remoção do véu por Cristo no 11,33), é usado mais frequentemente para o conhecimento que temos de
NT: “Pois o Senhor é o Espírito, e, onde se acha o Espírito do Senhor, aí Deus, especialmente nas cartas aos coríntios. Gnôsis aparece aí como um
está a liberdade. E nós todos que, com a face descoberta, contemplamos dos dons do Espírito (1Cor 12,8). Em seu sentido mais profundo significa
como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa o conhecimento pessoal dos mistérios ocultos de Deus que o Senhor
mesma imagem cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que ressuscitado revela progressivamente a seu fiel (2Cor 2,14; 10,5; Fl 3,8).
é Espírito (2Cor 3,17-18). O termo “refletindo” foi entendido como Deus “reluziu em nossos corações para fazer brilhar o conhecimento da
“fitar” ou “contemplar”, significando que é através da contemplação da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo” (2Cor 4,6). Mas a
glória do Cristo ressuscitado que a imagem de Deus em nós (Gn 1,26) é gnôsis tem seus limites. O hino a ágape diz que ela é inferior ao amor
conformada à Palavra, a Imagem perfeita do Pai (Rm 8,29; 1Cor 15,49; (1Cor 13,8), e Paulo alerta os coríntios contra a gnôsis que infla, a menos
2Cor 4,4; Cl 1,15-20). A união da contemplação ao aperfeiçoamento da que seja acompanhada de ágape. Na Ef 3,16-19 temos um resumo da
imagem de Deus tornou essa passagem uma das mais importantes na relação dos dois termos: “segundo a riqueza de sua glória, que vós sejais
história da mística cristã. Combinadas com Mt 5,8 e o tema joanino de fortalecidos em poder pelo seu Espírito no homem interior, que Cristo
ver Deus em Cristo, fornecerão ampla garantia para o papel importante habite pela fé em vossos corações para compreender com todos os santos
que a cristologizada theôria platônica terá na mística cristã. qual é a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o
amor de Cristo que excede todo conhecimento, para que sejais
Ágape e gnôsis, juntamente com a visão e a contemplação
plenificados com toda a plenitude de Deus”.
(thêoria), estão, como veremos ao longo dos módulos desse minicurso,
entre os termos mais importantes na história da mística cristã. Esses A relação íntima entre o fiel e Cristo está expressa em Paulo na
termos têm uma história complexa, nem sempre de criação cristã. Ágape, expressão “em Cristo”. Ela ocorre 164 vezes em todas as cartas
por exemplo, foi uma palavra raramente usada até que os primeiros atribuídas ao Apóstolo. “Em cristo” sempre se refere à situação do crente
cristãos de fala grega a adotassem como uma designação especial para o nesta vida e “com Cristo” é reservada para a vida vindoura (1Ts 4,17;
amor que Deus nos dirige e que nós, através de sua graça, podemos, por 2Cor 5,8; Fl 1,23). Gálatas contém algumas das fórmulas mais notáveis,
nossa vez, dirigir a ele. Ela aparece nos Sinópticos (Lc 11,42; Mt 24,12), como: “Fui crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, é Cristo que
mas foram Paulo e João que deram-lhe a importância que ganhou no vive em mim” (Gl 2,19-20); “Pois todos vós, que fostes batizados em
cristianismo. A passagem de 1Cor 13 é a mais central em Paulo. O termo Cristo. Vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há
encontra-se 116 vezes no NT, como ágape, e 141 como agapan. É escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só

16
em Cristo Jesus” (Gl 3,27). A formação em Cristo (Gl 4,19), que começa Quanto aos textos joaninos, há que afirmar de imediato que são
com a pregação e o batismo, incorpora todos os crentes em um corpo no muito posteriores aos paulinos. Nem todos os textos ditos joaninos são do
Senhor, de tal modo que eles possam continuar a crescer em sua mesmo autor. O Apocalipse foi provavelmente escrito por um profeta
identificação com ele. Essa solidariedade com o Senhor ressuscitado judeu-cristão ativo na Ásia Menor durante os anos 90. O Evangelho e as
permite ao apóstolo falar não apenas dos crentes vivendo em Cristo, mas Cartas possuem muita semelhança de pensamento e expressão, sendo
também de Cristo vivendo neles (Fl 1,21; Gl 2,20). considerados pelos estudiosos contemporâneos como procedentes da
escola joanina. Os escritores dessa escola conheciam o material dos
A relação entre Cristo e o Espírito (2Cor 3,17) facilita um
Sinópticos, mas decidiram escrever um tipo diferente de descrição da
conjunto de fórmulas adicionais concernentes ao Espírito e ao crente.
vida e ensinamento de Jesus. O Evangelho de João parece ter sido escrito
Segundo Rm 8, “a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da
em vários estágios e foi completado na década anterior ao ano 100. As
lei do pecado e da morte” (8,1), a tal ponto que “o Espírito de Deus
epístolas espelham os problemas e debates na comunidade joanina nos
habita em vós” (8,9). Assim “aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre
primeiros anos do séc. II. A diferença do Quarto evangelho com os
os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu
Sinópticos sugere porque a tradição cristã sempre o tenha visto como
Espírito que habita em vós” (8,11). O poder desse tema é evidente em
Evangelho espiritual, um texto fundamental para as apropriações místicas
Rm 5,5: “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo
da mensagem cristã. O texto não só quer mostrar como Jesus convida
Espírito Santo que nos foi dado” e Gl 4,6: “e porque sois filhos, enviou
seus seguidores à conversão e à participação na nova comunidade e na
Deus aos vossos corações o Espírito do seu Filho, que clama Abba, Pai”.
vida sacramental, mas também a uma compreensão mais profunda do
Apesar de não usar a linguagem da divinização, Paulo insiste em nossa
significado dessa vida através de uma iluminação cuja meta é uma
filiação compartilhada com Cristo, e na habitação do Espírito, temas que
experiência de união com Deus, através de Cristo, a ser começada nesta
os místicos posteriores utilizarão para sustentar a crença de que a vida
vida e completada na próxima. O Discípulo amado é visto como modelo
cristã implicava uma forma de divinização. Ela será vista como uma
do tipo de crente que já atingiu esse nível mais profundo de existência
união espiritual com Deus em Cristo. Em 1Cor 6,16-17, ao atacar a
cristã. Apesar de o termo gnostikos não ser encontrado no NT, o Quarto
fornicação, Paulo diz que nossos corpos são agora membros do corpo de
Evangelho retrata Joao como o perfeito gnóstico, sobre quem haveria de
Cristo, formando um só espírito com ele. Essa fórmula será citada como
haver tanto debate nos dois séculos seguintes, quando os gnósticos
garantia escriturística para entender a união mística que enfatiza a
passaram a ver em Paulo e, especialmente em João, as raízes de sua
comunicação de intercomunhão e evita qualquer forma de identidade ou
compreensão do cristianismo.
união indistinta.
Uma leitura do Evangelho de João e das cartas joaninas,
Essas passagens paulinas terão uma posteridade importante na
especialmente 1Jo, revela temas capazes de uma interpretação mística. A
mística cristã, sem contar a referência de Paulo como místico arquetípico,
visão de Deus, evidente em passagens paulinas indicadas acima, é central
pela alusão que ele faz de ter sido elevado ao terceiro céu e ao paraíso.
para a apresentação que João faz do papel de Jesus como salvador. Se em

17
Paulo o ágape tem um papel fundamental na iluminação ou no posteriores, de que o verdadeiro amor jamais poderia ser um caso privado
conhecimento de Deus, João dirá explicitamente que Deus é ágape (1Jo entre Cristo e o indivíduo, mas que a medida exata de nosso amor por
4,8). Enquanto Paulo fala da existência “em Cristo”, João fala Cristo é nosso amor pelos outros. Jo 17,21-23 (“como tu, Pai, estás em
explicitamente da unidade com Cristo e com Deus. O tema da mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu
invisibilidade e da visibilidade, da presença oculta e do mistério me enviaste. Eu lhes dei a glória que me deste para que sejam um, como
revelado, aparece extensamente no Prólogo. Aí o autor mostra o papel do nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na
logos na relação com Deus (Jo 1,1), na criação (1,2-5), na redenção (1,9- unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste
14). João apela para a linguagem da visão: “Ninguém jamais viu a Deus: como amaste a mim”), pode ser visto como um compartilhar da união
o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer” (1,18). desfrutada pelo Pai e o Filho. A linguagem unitiva caracteriza os textos
A invisibilidade de Deus é um tema comum nos primeiros escritos joaninos como nenhum outro documento cristão primitivo. Essa união é
cristãos, mas João insiste que, através do Verbo feito carne (1,12), nós resolutivamente cristológica. A fórmula paulina “em Cristo”, é retomada
ganhamos a habilidade de ver de fato a Deus (1,14). Aquele que vê Cristo em João pela frase “em mim”, frequentemente usada em conjunto com o
vê ou conhece o Pai (8,19; 12,45; 14,9). Esse tema de ver a Deus emerge verbo “permanecer, habitar”. A mutualidade de relações entre Pai e Filho
também em 1Jo 3,2: “amados, desde já somos filhos de Deus, mas o que (“eu e o Pai somos um”: 10,20; “estou no Pai e o Pai está em mim”:
nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que, por ocasião dessa 14,10), também é mutualidade que se estende à relação de Jesus com
manifestação, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele seus discípulos (14,20; 17,23), ilustrado pela parábola da vinha e dos
é”. ramos (15,1-8) Através de Jesus o fiel pode desfrutar da habitação mútua
com o Pai (14,23; 17,21; 1Jo 4,15-16). O Paráclito, ou Espírito da
O conhecimento e a visão de Deus, presente em textos da
Verdade, que Jesus promete enviar a seus discípulos para dar
mística pagã, como o da Hermética, é totalmente diferente, pois é
continuidade a seu trabalho, é também anunciado como estando “com
cristocêntrico. Jesus é apresentado pelo evangelista como um iluminador,
vocês... em vocês” (14,17).
aquele que sozinho traz o conhecimento de Deus à humanidade (1,9;
3,11-12; 6,44-45; 7,16-18.26-28; 9,1-41; 10,14-15; 12,46.50; 13,31- A linguagem joanina para falar de Deus: Verbo, Pai, Espírito,
17,26). Apesar de não usar o termo gnôsis, ninguém no NT fala mais de apesar de não significar uma teologia trinitária explícita, dá aos místicos
conhecer (gignoskein) Deus ou Cristo. Conhecer a Deus é saber que cristãos um fundamento bíblico mais claro para tentativas de
Deus não apenas nos ama, mas ele próprio é amor. O amor, através do compreender como Deus se faz presente ao fiel de modo interpessoal, no
qual o Pai ama o filho (5,20) e através dele nos ama, é comunicado aos qual nós nos tornamos coparticipantes da vida interior das três pessoas
crentes como a forma interior de sua nova vida. No discurso da última divinas. Outro elemento importante que foi retomado é o da divinização.
ceia (13,31-14,31; 15,1-17,26), o ponto alto do ensinamento está Apesar de não falar abertamente desse tema, o Quarto Evangelho dá
centrado no amor mútuo como sendo o cimento da vida cristã. Esses suporte à noção paulina de filiação em e com Cristo, concebida como um
textos foram uma fonte poderosa para o ensinamento de místicos cristãos novo nascimento a partir do alto (1,12; 3,3-7; 1Jo 2,29; 3,9-10; 4-7; 5,18-

18
19). A reivindicação de que o Paráclito virá habitar nos discípulos for vista como uma experiência específica da união com Deus, alcançada
(14,17), já usada por Paulo quando falava que os corpos dos crentes são em algum momento durante a vida. Mas se a mística for tomada em seu
templo do Espírito Santo (1Cor 6,19), servirá de base para que místicos sentido mais amplo, como um processo de transformação levado a cabo
posteriores se apoiem nessas referências, mas, sobretudo em 2Pd 1,4, que pelo desejo por e consciência da presença imediata de Deus, então a
fala de compartilhar da natureza divina, para fundamentar uma mística da mística não precisa sempre usar a linguagem da união e a mística
divinização. Outro aspecto importante ainda a ser observado: o texto realizada na morte poderá não ser mais estranha no cristianismo do que é
joanino leva os fieis a um aprofundamento maior dos rituais sacramentais na cabala extática, tal como no Zohar, onde é apenas na hora da morte
do batismo e da eucaristia, levando-os a uma verdadeira apropriação dos que o místico experimenta o casamento da divina shekhinah, que
mesmos. Os demais textos de João, sobretudo o Apocalipse, só acolhido completa sua tarefa de uma vida inteira.
no cânon em 200, também teve papel importante na mística, sobretudo Vários autores se perguntam se a mística é uma importação do
por fornecer base para as vivências extáticas visionárias. Foi uma fonte cristianismo vinda de solo estrangeiro ou se ela lhe é constitutiva.
permanente de formas visionárias de mística ao longo dos séculos. Festugière defendeu que havia dois filamentos na espiritualidade cristã
Além dos textos canônicos do NT, houve outros escritos nesses durante os primeiros séculos: um cristianismo ascético baseado no ágape
dois primeiros séculos que gozaram de grande importância no destituído de egoísmo, que se expressava no martírio e que alcançou sua
cristianismo, apesar de não figurarem no cânon. É o caso de Pastor de máxima expressão no monaquismo primitivo; e uma mística
Hermas, já traduzido ao latim entre 100-140, um quase apocalipse contemplativa, que entrou no cristianismo no final do séc. II e que estava
combinando visões, mandamentos e parábolas, a Didaqué, ou Instrução baseada no eros, com a visão de Deus como chave da felicidade pessoal.
dos doze apóstolos, que já teve algumas partes escritas no primeiro Ele identificou a distinção entre as vidas ativa e contemplativa como a
século, mas sem grande importância para a mística. Outro grupo de chave para esse tipos complementares. McGinn acha esta leitura simples
textos, as Sete cartas de Inácio de Antioquia, mártir em 110. Nessas demais. Segundo ele, a devoção cristã de fato passou por mudanças e
cartas ele recorre frequentemente à expressão estar “em Cristo” Cristo desenvolvimentos cruciais na segunda metade do séc. II, e muitos deles
estar “em nós”. Também usa a fórmula “em Deus”. Inácio não fala, tiveram a ver com a importação de noções místico-religiosas do mundo
porém, da união com Deus, nem de qualquer papel para a visão de Deus, em que os cristãos viviam. Mas as questões que fizeram surgir a mística
aqui ou no outro mundo. A meta da vida cristã para ele é a imortalidade e cristã no sentido pleno foram mais resultado de debates internos sobre o
a vida eterna. Escrevendo na expectativa do martírio, o bispo de significado da vida de Jesus, o Senhor ressuscitado, do que de
Antioquia não conta nenhuma visão, mas suas cartas oferecem material importações de fora. O novo entendimento do cristianismo as validou
para a concepção do martírio como a perfeita imitação de Cristo. Para ele através de apelos àqueles elementos na tradição, especialmente nos textos
toda a vida cristã é uma imitação de Cristo, mas essa vida alcança seu sagrados que então já estavam a ponto de se tornar o que chamamos
cume na perfeita imitação do martírio. O martírio foi o ideal cristão de bíblia cristã, que expressavam a possibilidade de todos os crentes se
perfeição no séc. II. Seria esse ideal místico? Certamente não se a mística esforçarem por uma consciência mais profunda da presença do redentor.

19
Os escritores cristãos não concebiam isso fora da vida na ekklesia, nem Escrituras judaicas foram então vistas como promessa e os escritos
achavam que isso implicava a absorção do indivíduo no todo. cristãos como cumprimento. A escritura, cristologicamente interpretada,
foi o fundamento de todo o pensamento cristão, incluindo a mística,
4. Elementos místicos no cristianismo grego primitivo
especialmente nos primeiros séculos. É importante ainda observar que a
O período de 150-500 viu surgir a mística propriamente cristã, comunidade cristã precedeu e foi a fonte das Escrituras cristãs. O
que é o resultado do encontro da fé cristã com as formas religiosas Ressuscitado fez-se primeiramente presente no corpo daqueles que
criadas pelos judeus da época do Segundo Templo e dos ideais confessaram seu nome em prece, ritual e em sua vida comunitária, antes
contemplativos dos filósofos gregos. Sua apropriação dessa dupla que essa presença estivesse fixada em forma escrita nos textos sagrados
herança foi, contudo, fundamentalmente afetada pela convicção deles de da comunidade. A linguagem e os temas que os Pais gregos usaram para
que era em Jesus Cristo que o último surgimento do Deus salvacionista compreender a ação do verbo salvador e nossa relação para com ele,
tinha se realizado. A diversidade de formas como o período patrístico embora adotados da tradição contemplativa grega, funcionaram dentro de
entendeu a espiritualidade e a mística cristã deve ser levada em conta um contexto muito diferente daquele encontrado na religião e na filosofia
quando se quer estudar essa época. Alguns estudiosos desse período se religiosa gregas. Nesse sentido, a mística cristã primitiva foi sempre
concentraram na ideia da perfeição cristã; outros, na divinização ou nos eclesiástica, ou seja, realizada apenas na e através da comunidade, como
temas relacionados à contemplação, a gnose, ou a visão de Deus. Outras também escritural, ou seja, unida ao significado espiritual, oculto ou
ideias importantes não foram negligenciadas, como o nascimento divino, “místico” dos textos sagrados. Para os historiadores, o final do séc. II foi
a semelhança com Deus, o desfrute de Deus, a oração perfeita, o êxtase e crucial para a história da mística cristã. Os debates sobre o significado da
a união com Deus. A maioria desses temas pode ser encontrada na gnose como uma forma especial de conhecimento superior e os escritos
tradição contemplativa grega, mas o cristianismo os pensou dentro do das grandes figuras da escola de Alexandria de ensinamento cristão,
contexto de uma comunidade de fé centrada na confissão de Jesus Cristo especialmente Clemente e Orígines, dão a esse período uma importância
como Deus e Redentor. Daí eles sempre envolverem uma relação com especial.
ele, como o mostram os temas do seguimento e da imitação de Cristo.
O séc. II e o início da mística cristã
No processo de formação da mística cristã primitiva foi muito
O fim do séc. II foi também decisivo para a formação do
importante a passagem da oralidade à escritura. A pregação de Jesus foi
cristianismo como entidade religiosa organizada. Foi nos últimos dois
transmitida por ele de forma oral, mas logo passou a ser fixada por
quartos deste século que os cristãos se confrontaram com questões
escrito, uma mudança que ilustra a transição da comunicação para a
difíceis em relação ao ethos e à organização e chegaram às respostas que
comunicação escrita sagrada, presente em todo o mundo antigo tardio. As
levaram as comunidades dos crentes a se tornar uma entidade religiosa
comunidades cristãs justificaram sua posse não apenas dos livros sobre
mais organizada, cujas realizações intelectuais e institucionais tinham
Jesus e das atividades de seus primeiros seguidores, mas também dos
muito a ver com seu consequente sucesso. A Igreja do ano 200 já possuía
livros sagrados dos judeus, de um modo essencialmente cristológico. As

20
um episcopado monárquico, ligas de comunhão entre Sés episcopais, A querela mais importante do séc. II, tanto para a Igreja quanto
liturgias e sacramentos, listas oficiais de livros sagrados, fórmulas de para a história da mística cristã, foi sobre a gnose, a natureza do
crença semelhantes e uma ideologia de uma tradição de crença comum conhecimento salvador, ou irmandade com Deus, trazida por Cristo.
transmitida desde os apóstolos, que viria a se tornar a religião do império Segundo um grande historiador do dogma do séc. XIX, Adolph von
no séc. IV. Os que viveram no século II tiveram que confrontar-se com Harnack, os gnósticos foram os primeiros teólogos, e o gnosticismo uma
questões difíceis da autodefinição: o que significa ser cristão? Quem forma de helenização aguda do evangelho do cristianismo, tendo
decide quem é verdadeiramente cristão? Como a decisão é tomada? provocado uma reação helenizadora moderada, dando nascimento ao
dogma, definido por ele como uma obra do espírito grego sobre o solo do
A necessidade de autodefinição foi impelida de dentro e de fora,
evangelho. A descoberta, em 1945, de documentos gnósticos perto de
ou seja, por aqueles a quem os crentes viam como inimigos externos
Nag Hammadi, no Alto Egito, provocou, porém uma revolução nos
(judeus e pagãos) e por disputas internas sobre quem era um verdadeiro
conhecimentos e na avaliação do gnosticismo, fazendo com que na
cristão. Contra os judeus os apologistas cristãos reivindicaram que eles
segunda metade do séc. XX, os gnósticos fossem vistos nos círculos
apenas eram o verus Israel, os verdadeiros herdeiros de Abraão, Moisés e
intelectuais como os verdadeiros heróis do cristianismo primitivo.
os profetas, o que progressivamente levou à ruptura com as comunidades
Segundo McGinn, as novas descobertas aumentaram nossos
judaicas oriundas do Segundo Templo. Com relação ao helenismo, a
conhecimentos, mas nem sempre trouxeram respostas conclusivas aos
relação foi mais complexa. É difícil saber o que a massa dos cristãos
debates sobre o gnosticismo. Ainda nos fazemos as mesmas perguntas
pensavam sobre o Império romano. Alguns, como João, o autor do
sobre esse fenômeno: onde? Quando? O que?, ou seja, onde foi seu meio
Apocalipse, o viam como marcado para a destruição apocalíptica, mas a
ou fonte? Quando se originou? Quais suas principais características?
grande maioria parece ter-se acomodado. Criticavam, porém, a
Como avaliar seu significado para a história da mística cristã?
moralidade lassa e os ritos politeístas, embora buscassem convencer a
elite romana de que o cristianismo fomentava uma vida reta, a boa Parece que muitos gnósticos pensavam-se cristãos. O
cidadania, e a verdade filosófica, ou seja, que o cristianismo era não só o gnosticismo pode ter surgido independentemente do cristianismo,
cumprimento das promessas feitas aos judeus, mas também das verdades possivelmente em círculos judaicos, mas a maioria dos textos gnósticos
sobre Deus que o Verbo tinha semeado em toda a humanidade e que era testemunha uma crença em Jesus como Salvador. O fato de a visão
patente nas vidas e ensinamentos dos melhores gregos amantes da gnóstica do universo expressar uma compreensão dualista da realidade,
sabedoria, como Sócrates e Platão. Segundo muitos escritos dessa época, vendo o mundo material como um erro de algum tipo (“o mundo passou
a nova religião, apesar de suas origens suspeitas e crenças incomuns, a existir através de uma transgressão”, segundo o Evangelho de Filipe),
como a ressurreição dos mortos, era a suma de todas as verdades que os levou alguns estudiosos a postular uma origem iraniana para o
sábios antigos tinham considerado como parcial. Essa atitude positiva, gnosticismo. Outros o viram como um desenvolvimento lógico a partir
especialmente com o platonismo, contribuiu para preparar o terreno para do dualismo escatológico da apocalíptica judaica, especialmente depois
a apropriação da theoria e temas correlatos por parte do cristianismo. do fracasso das esperanças apocalítpicas para a nova era. Não se pode,

21
porém, reduzir o estudo do gnosticismo a suas origens. Sem dúvida os docética de Cristo, a rejeição do casamento, o falso ascetismo. Todos
gnósticos eram ecléticos. Essa prática contribuiu para a dificuldade em esses elementos implicam o dualismo.
achar uma definição adequada para eles. As ideias gerais de várias Quanto do apelo dos gnósticos veio dos elementos místicos em
formas de gnosticismo giram ao redor do dualismo, a divindade inata da seus sistemas de pensamento e devoção e em que media estes
alma (ou sua parte mais elevada) e a salvação através da gnose. contribuíram para a mística cristã primitiva é difícil saber com certeza.
Irineu de Lyon, que mais do que qualquer outra figura formou a Positivamente, os textos gnósticos mostram afinidades importantes com
reação ortodoxa contra o gnosticismo em sua obra Contra as heresias muitos dos temas-chave encontrados na mística helenista, como a descida
(180), resume o ensinamento de um dos primeiros gnósticos, certo e ascensão da alma, a teologia negativa, a contemplação e visão de Deus,
Saturnino, realçando o que a tradição eclesiástica achava objetável na a divinização e unificação com o divino. Nos textos místicos, porém,
gnose: “E ele postula que o Salvador não foi gerado, é incorpóreo e sem esses elementos aparecem num padrão místico em que a salvação é
forma, e apareceu como ser humano apenas na aparência. E, diz ele, o alcançada através da gnose, por meio da qual algumas pessoas (não
Deus dos judeus é um dos anjos. E porque o pai desejava destruir todos todas) passam a reconhecer a natureza oculta divina de suas almas caídas.
os reis, o ungido (Cristo) veio para destruir o Deus dos judeus e para a Esse parece ser a chave do elemento místico do gnosticismo. Podemos
salvação daqueles que talvez sejam persuadidos por ele, e estes são distinguir vários tipos de mística gnóstica. Textos como Zostrianos, o
aqueles que têm a centelha da vida neles. E há, de fato, diz ele, duas raças Allogenes e As três tábuas de Set retratam uma forma de mito dualista
humanas, que foram modeladas pelos anjos, uma má e outra boa... E ele gnóstico, expressam uma mística baseada na queda e ascensão da alma
diz que o casamento e a geração de filhos é coisa de Satã. E a maioria de que tem parte de sua ancestralidade nos estágios de ascensão à Fonte
seus discípulos se abstém de carne de seres vivos” (Contra as heresias, descritos em textos como O Banquete, de Platão (210A-212A). Obras
1.24.1). que representam o gnosticismo de Valentim e de seus seguidores,
especialmente o Evangelho da Verdade, fornecem um retrato diferente da
Todo o gnosticismo rejeitava a descrição do Gênesis da criação
meta gnóstica. Dão pouca ênfase à queda e ascensão da alma, mas
do mundo material por um Deus altíssimo, devido ao seu desejo de
apresentam um tipo de mística da imanência na qual os temas principais
comunicar sua bondade. Para os gnósticos, este mundo era o produto de
estão contidos e são despertados: “Quanto a ele, eles descobriram-no
um poder inferior, fraco e mau, ou o resultado de algum tipo de problema
dentro deles – o inconcebível incontido, o Pai; que é perfeito, que criou a
ou ignorância no reino espiritual o pleroma. Em termos místicos a
totalidade. Porque a totalidade estava dentro dele e a totalidade precisava
produção do mundo material é parte de uma mitologia elaborada e
dele – uma vez que ele mantinha dentro de si sua completude, que ele
deliberadamente confusa sobre a produção e consequente retorno de
não tinha dado à totalidade -, o Pai não estava relutante...(18,31-39). Esse
vários níveis de ser espiritual à Fonte Desconhecida, ou ao Mais Elevado
texto é um pleito para escapar do esquecimento, para despertar para o
Um (Evangelho Apócrifo de João). A crítica ortodoxa à gnose estava
mistério da existência de tudo em Deus através da gnose que vem do Pai
centrada em sua rejeição da descrição da criação da bíblia, a visão
na manifestação do Filho (30,23-36). Esse despertar é obra da fé que traz

22
a plenitude do amor (34,28-33). Ele leva a uma forma de união mística censurou os gnósticos por negligenciarem a importância da fé e do amor
descrita como um estado ou local de repouso, de que o autor garante ter em relação ao mais elevado conhecimento da gnose. Como a gnose era
desfrutado (42,25-43,22). Segundo o historiador da mística Layton, há um termo presente no NT, os adversários mais especulativos dos
duas formas de mística, a da queda e ascensão e a da imanência e gnósticos, como Clemente e Orígenes, não estavam preparados para
despertar. Boa parte dos textos gnósticos, como também o Evangelho de abandoná-la ao inimigo. Eles insistiam em uma compreensão cuidadosa
Tomé, enfatizam o reconhecimento da identidade divina dentro da alma, de como a gnose nasce a partir da fé e do amor, e não os contradiz.
e falam do crente se tornar Jesus (Ev. Tomé, 108). A gnose implica ainda uma compreensão nítida da revelação.
Essas características da mística gnóstica nos permitem perguntar Aqui também a reação ortodoxa estabeleceu certas fronteiras para o
que efeito ela teve sobre a história das tradições místicas cristãs. A funcionamento da mística que viriam a ter uma longa história. Os
rejeição ortodoxa do gnosticismo dos séc. II-III aponta numa direção gnósticos reivindicavam múltiplas fontes de revelação: as Escrituras
negativa. Os elementos da mística posterior que se assemelham aos reconhecidas, se lidas de modo adequado; novos textos reveladores
aspectos da mística gnóstica podem ser explicados ao se apelar para as baseados em mensagens ocultas do Jesus ressuscitado a certas almas
raízes comuns judaicas, gregas e do NT, em vez de postular algum escolhidas; as experiências visionárias e místicas dos professores
contato real com fontes gnósticas em si. O futuro da mística cristã foi gnósticos. Para os gnósticos, portanto, havia um processo contínuo de
formado pela reação ao gnosticismo de modo permanente. A mística que revelação, em geral unido à experiência visionária, em contraste radical
viria a florescer no cristianismo ortodoxo, mesmo aquela de Clemente e com a acentuação ortodoxa na revelação como restrita à mensagem dada
Orígenes, que comungava com certos valores dos gnósticos, insistia na aos primeiros apóstolos e passada à comunidade através de uma
distinção entre o reino divino e o reino criado. A alma talvez seja capaz hierarquia estabelecida. A experiência visionária não estava totalmente
de divinização, mas não é naturalmente ou inatamente divina. Cristãos excluída pela ortodoxia cristã. As visões eram importantes para certo
ortodoxos e gnósticos podiam fazer uso de muitos temas semelhantes número de mártires cristãos. Orígenes estava sempre querendo falar
para descrever a meta do processo que redime – divinização, visão, sobre as épocas em que o logos o tinha visitado. O que distingue essas
perfeição, unificação -, mas esses temas tendiam a ganhar diferentes visões da variedade gnóstica é seu caráter privativo, ou seja, elas eram
significados em termos de como alguém via a origem da alma. dirigidas para fortalecer e/ou iluminar o crente individual para alguma
tarefa. Mesmo quando ensinam ou iluminam, elas não o fazem ao
Um segundo aspecto onde aparece a diferença entre mística
transmitir uma mensagem nova ou mais profunda, mas ao confirmar o
cristã e mística gnóstica concerne à relação da fé e do amor com a gnose,
significado da tradição da igreja. A função das visões no cristianismo
através da qual os gnósticos acreditavam que a salvação era comunicada.
posterior continuarão marcadas por essas normas.
Apesar de não se ter ainda claro como os diferentes grupos de gnósticos
compreenderam os papéis que a fé e o amor desempenhavam, não pode Há, enfim, uma área na qual o gnosticismo exerceu uma
haver dúvida de que a reação ortodoxa, correta ou erroneamente, influência na mística cristã posterior, embora de modo negativo. Trata-se

23
do conteúdo da gnose e sua relação ao texto da Escritura. A questão glória de Deus é o homem vivo; e a vida do homem é a visão de Deus”,
debatida no séc. II não foi tanto sobre o valor da gnose, mas sobre seu Contra Heresias 4.20.7). Embora alguns estudiosos chamem Irineu de
conteúdo. O que ela transmite, e como isso é comunicado? Como é que o teólogo místico, McGinn sustenta que é mais exato ver sua teologia como
crente chega à verdadeira gnose? Os gnósticos do séc. II fizeram uso da mística apenas no sentido mais amplo em que a tradição ortodoxa
exegese espiritual do AT e do NT para descobrir uma mensagem oriental compreende toda a teologia da crença reta como mística, e não
esotérica reservada a poucos. Essa mensagem revelou que o verdadeiro mística num sentido estrito. A síntese teológica que ele propôs, que
significado dos livros cristãos era na verdade aquele dos mitos gnósticos, esclarece como o Deus invisível passou a ser visto através da
geralmente dualistas e sempre pessimistas sobre o mundo material. Os manifestação de seu Filho encarnado, recapitulando toda a história, é
Pais cristãos que se opuseram ao gnosticismo, mesmo os que estavam uma parte crucial da base dogmática para as teologias místicas futuras
muito próximos de alguns aspectos dele, insistiram que a interpretação tanto do Oriente quanto do Ocidente. Ele foi também o primeiro teólogo
espiritual ou alegórica das Escrituras poderia ser válida apenas se ela não da grande tradição a fazer uso do tema da deificação, embora tendesse a
conflitasse com a mensagem esotérica da salvação venerada na pregação fazê-lo em contextos atacando visões docéticas da encarnação, e não em
e ensinamento costumeiros da comunidade. Os mistérios cristãos termos de análise do progresso dos cristãos rumo à perfeição.
transmitiam, por definição, uma mensagem aberta a todos. Embora os
Clemente é o primeiro escritor cristão a dar um tratamento pleno
“verdadeiros gnósticos” pudessem entendê-los em um nível mais de muitas ideias, como visão, divinização e união, que foram mais tarde
profundo do que os crentes comuns, a exegese espiritual não revelou uma centrais para a mística ortodoxa. Ele foi por isso identificado como o
mensagem diferente. No fundo o efeito mais importante do gnosticismo fundador da mística cristã. É não só o proponente da “verdadeira gnose”
sobre a história subsequente da mística cristã foi tornar o esoterismo de como fundamental para a vida da Igreja, mas o primeiro a fazer a gnose
qualquer tipo suspeito, especialmente um esoterismo baseado em modos caber dentro do quadro geral da apropriação cristã da teologia apofática
secretos de interpretação das Escrituras. A mística gnóstica, como boa do médio platonismo. O tema da visão de Deus fornece uma chave para
parte da mística judaica da época, era de natureza fundamentalmente compreender como ele lançou as fundações para a teologia mística
esotérica. A mística cristã ortodoxa não é.
posterior. Para os que pensam que a mística é uma invasão pagã do
Os principais porta-vozes ortodoxos da segunda metade do séc. cristianismo, e acreditam que a deificação não é uma noção bíblica, e que
II foram Justino, Irineu, Clemente. Justino conhecia muito bem Platão e têm a certeza de que a visão de deus prometida em Mt 5,8 não é
os plantonistas, mas sua conversão marcou uma ruptura fundamental com compatível com a theoria platônica, Clemente será sempre a figura
o platonismo devido à questão da preexistência da natureza divina da emblemática. Nascido em Atenas (150), convertido ao cristianismo,
alma. Apesar de utilizar Platão em suas duas Apologias, não faz nenhuma professor em Alexandria, inovou ao tentar unir sua fé cristã com uma
referência à visão como meta da vida humana, embora de fato use outras forma avançada de educação filosófica e literária grega tradicional. Foi o
expressões platônicas contemporâneas, como quando fala da irmandade primeiro a introduzir o adjetivo “místico” e o advérbio “misticamente” na
da alma com Deus. Já para Irineu a visão de Deus é fundamental (“A literatura cristã. Encontrou os fundamentos para todas as suas principais

24
concepções em textos da Escritura. Convencido de que os platonistas pode ignorar a ação/prática do amor ao próximo. Ele foi também o
estavam errados sobre a natureza divina da alma, apropriou-se de vários primeiro autor cristão a fazer uso extenso da noção de divinização, ou se
temas místicos do platonismo: incapacidade de se conhecer o divino, a tornar como Deus, como uma descrição da perfeição divina. No
visão, a deificação. Fez isso na base de duas percepções claras: que a Protrepticus ele pronuncia a famosa fórmula: “O logos de Deus se fez
alma não é naturalmente divina; que a gnose não é uma precondição para homem para que você possa aprender do homem como o homem pode se
a salvação. Embora a diferença entre o simples crente e o gnóstico seja tornar Deus” (1,8; 1,9; 9-11). Ele introduz também o verbo grego para
central em Clemente, sua visão do gnóstico não é aquela dos próprios divinização (theopoien) na literatura cristã, quando fala de Deus divinizar
gnósticos, mesmo dos moderados, como Valentim. A crença, não a o humano através de seu ensinamento. Ele não usa 1Pd 1,4 para
gnose, é a chave da salvação. Embora o gnóstico venha a receber a fundamentar seu ensinamento, mas os Sal 81,6 e Lc 20,36. Compartilhar
grande recompensa, o que ele adquire não é algo novo ou oculto. A vida a natureza divina, tornar-se isangelos, ou igual aos anjos (Lc 20,36), não
do gnóstico é nada além das obras e das palavras que correspondem à é se tornar idêntico a Cristo ou ao Pai oculto. Trata-se de se tornar “como
tradição do Senhor. A gnose, então, não é algo inato em um cerne divino deus”, ou seja, ser divinizado. A distinção de Clemente entre a divindade
da alma, mas é o dom de Cristo, o Redentor, do tipo que pode ser do logos e a divinização que conquistamos através dele faz sentido
adquirido mais plenamente através do treinamento. especial contra o fundamento de sua visão fortemente apofática da
natureza divina. Seu apofatismo, porém, tinha o propósito de enfatizar
Clemente busca relacionar gnose, fé e amor, mas sua reflexão
Cristo como a única fonte que temos para adentrar o Abismo Divino.
não é muito sistemática. O verdadeiro gnóstico para ele é aquele que já
atingiu a visão de Deus. Para ele, a meta da vida é a visão. A theoria é Orígenes, o mestre do pensamento cristão primitivo
para ele o fruto ou meta da gnose. Ela alcança aquela perfeição que é a Nascido numa família cristã de Alexandria, em 185, foi educado
meta da vida humana, uma perfeição a que ele às vezes se refere como na paideia clássica helênica e nas Escrituras. Quando seu pai, Leônidas,
uma união com Deus. Seu ensinamento sobre a união divina tampouco é morreu mártir, em 202, o jovem Orígenes foi contido de se oferecer para
sistemático, mas nele não há união indistinta no seio da divindade. A o martírio apenas porque sua mãe escondeu suas roupas. Pouco depois
realização da theoria nesta vida é um processo gradual. Clemente fala de foi nomeado catequista da comunidade cristã, posição que ocupou até sua
estágios místicos que levam á visão de Deus. Esse processo de perfeição partida para Cesareia, em 233. Iniciou sua extensa produção literária
é caracterizado também em outros dois modos intimamente relacionados, entre 215-220. Sua fama crescente de filósofo cristão levou-o a viagens a
como a passagem da alma a um estado de “apatia” (apatheia) e como o Roma, Atenas, Arábia e Palestina, onde foi ordenado presbítero, o que o
dom da divinização (theopoiesis). Sua doutrina da apatheia, sem dúvida levou à ruptura com o bispo de Alexandria, Demétrio, e à mudança para
herdada dos estoicos, não é, porém, ausência de sentimentos ou desejos, Cesareia, onde passou os últimos vinte anos de sua vida numa intensa
mas busca de “ordená-los”. O gnóstico “apático”, como os ideais atividade de pregação, ensino e escrita. Foi preso e torturado no período
posteriores da mística cristã, é tanto ativo quanto contemplativo. Para de Décio, e morreu entre os anos 253-254. Um terço de sua obra (seis mil
Clemente, a theoria é primeiramente uma visão de Deus, mas não se

25
volumes), ou seja, dois mil, sobreviveu após a destruição de muitos de ensinando cada crente em e através da Igreja. O logos, eternamente
seus escritos, depois de sua condenação por heresia no séc. VI. Sua obra gerado a partir do esvaziamento do Pai, que, por sua vez, se esvaziou ao
foi, sobretudo, a de um exegeta: estabelecimento de textos, pregação e se fazer carne, agora torna-se presente e ativo em nós através da
comentários. Seus comentários sobre João e sobre o Cântico dos cânticos mediação de sua presença nas palavras inspiradas da Escritura.
são cruciais para compreender seu pensamento místico. Orígenes Orígenes também se interessou, como Paulo, em ir além da
combina em si as figuras de exegeta, teólogo e místico.
“palavra que mata”, até o nível do significado espiritual (1Cor 10,1-11;
Dada a íntima relação entre exegese, teologia especulativa e 2Cor 3,4-18; Gl 4,21-31), ao fazer uso dos eventos e pessoas do AT
mística, não se pode apresentar um desses elementos ignorando os como “tipos” e “alegorias” de realidades presentes. Para descobrir o que
demais. A filosofia antiga, especialmente a de Platão, tinha discernido o o logos está ensinando em qualquer passagem, é preciso fazer uso de uma
verdadeiro objeto da sabedoria no estudo do significado do cosmos e sua vasta variedade de ferramentas alegóricas e tipológicas. Ele herda a
imagem-espelho, o ser humano visto como microcosmo. Orígenes não exegese alegórica e tipológica do passado judaico e helenista. Sua
negou a importância dessas fontes para a verdadeira sabedoria, mas, originalidade é que foi o primeiro cristão a descrever a apropriação
como cristão, estava convencido de que a humanidade caída não poderia pessoal do ensinamento do logos como uma leitura “anagógica”, do tipo
mais encontrar a verdade através da contemplação dos céus ou pelo designado para elevar a alma. A ascensão da alma de volta à sua fonte em
estudo dos humanos na sociedade. Nossa condição presente não nos Deus implica um descenso anterior, introduzindo-nos no pensamento
permite conhecer a verdade a partir do primeiro mundo inteligível, mas especulativo de Orígenes, marcado por um platonismo alterado e
só através de um novo objeto noético, o mundo inteligível das Escrituras transformado. Trata-se de um platonismo cristão, pois distingue Deus
reveladas. como um ser verdadeiro de tudo o mais, ou seja, tudo o que constitui o
mundo do porvir; e é essencialmente platônico ao descobrir na suprema
Orígenes não está interessado em determinar diferentes sentidos
bondade de Deus o fundamento para sua conexão com o reino criado.
do texto, mas em usar o encontro com o texto como o paradigma para a
Preocupado em contrapor-se aos ataques dos gnósticos à bondade do
educação espiritual por meio do qual a meta da vida é atingida. Ele é o
Deus criador, mas contra a visão religiosa do paganismo, que via Deus e
primeiro grande teórico da exegese na antiguidade, ao estabelecer os
os deuses como participantes em um cosmos essencialmente bom, ele
diferentes sentidos da Escritura. Ele começa com o sentido literal, que
estava ansioso em manter a transcendência do mundo.
tem uma dupla face: primeira, compreender o sentido gramatical das
palavras; segunda, descobrir a realidade histórica da passagem. Negar A manifestação transcendental da bondade de Deus, o Pai, deve
que a passagem devia ser tomada literalmente era dizer que isso não ser encontrada na geração do Filho, que é o logos, a única verdadeira
poderia ou não ocorreu historicamente, não para reivindicar que o imagem de Deus. Duas coisas são evidentes em sua doutrina do logos:
significado gramatical das palavras não continua uma mensagem mais sua insistência de que o Filho é verdadeiramente divino e coeterno ao
profunda para os crentes. A Escritura nada mais é do que o logos Pai; seu uso da linguagem subordinacionista ao tentar expressar a

26
diferença entre o Pai e o Filho. Segundo Orígenes, o logos é tanto modelo psyché, ou alma, que é o estado arrefecido do intelecto em sua condição
da criação quanto o agente inteligente através do qual o Pai a produz. caída, capaz ora de ser redirecionada para cima, para a contemplação de
Mas, se Deus é bom e todo poderoso, como explicar a divisão, a Deus através da instrução do espírito, ou então arrastada para baixo pelo
hierarquia e, especialmente, o mal no mundo? O teólogo alexandrino sensus carnalis; 3) soma, corpo, o componente material da humanidade.
propõe uma teoria questionável para responder a essas questões: a de Mas o corpo não é um mal, ao contrário, é uma bênção concedida pelo
uma criação anterior e perfeita, cuja queda tornou necessário o mundo criador para desafiar o potencialmente poderoso espírito de cada um a ir
em que habitamos. A criação espiritual original era composta de além de si mesmo. Porque cada intelecto foi criado “segundo a imagem”,
intelectos (noi), todos criados iguais, segundo um padrão da única como uma participação no Logos, ele permanece capaz de retomar seu
imagem verdadeira, o logos. Essa é a criação descrita no primeiro estado original de semelhança contemplativa com Deus, através da
capítulo do Gênesis. Esses intelectos, cada qual guiado por um pneuma, atividade pedagógica do Logos. Orígenes adverte: “Que nós sempre
ou participação no Espírito Santo, foram reunidos a corpos físicos e possamos, portanto, contemplar aquela Imagem de Deus de tal modo que
viviam uma vida feliz de contemplação de Deus, uma pura e perfeita possamos ser transformados à sua semelhança” (Hom. Sobre Gen. 1.13).
recepção de Deus em si mesmos. Juntos eles constituem a suprema Se o processo de restauração ou retorno pode ser levado a efeito
unidade da Igreja preexistente sob a liderança de um intelecto que estava
apenas através da atividade do logos, podemos então nos perguntar como
perfeitamente unido em amor ao logos, ou seja, o intelecto do Cristo o logos na verdade restaura o dano feito pela queda e restaura todas as
preexistente. A característica fundamental desses intelectos, porém, era a coisas para o Pai. Segundo Orígenes, como logos puro, ele serve como
liberdade dada a eles por Deus. Foi essa liberdade que tornou possível a modelo e artífice, e, como logos-sarx, ele se faz um meio necessário para
queda original da perfeita contemplação. Os anjos são intelectos que o retorno. Através do amor infalível de Jesus e da inquebrantável
permanecem dentro da “distância impressionante” da harmonia original. contemplação de Deus, sua alma se torna modelo e mestre para todas as
Os humanos são intelectos que caíram mais e foi-lhes concedida uma almas, conforme acordam o Pneuma dentro de si e começam seu retorno
segunda criação, material, como escola para elaborar seus destinos. Os a Deus. “Nós cremos que a bondade de Deus através do Cristo restaurará
demônios são fixados em oposição inalterável a Deus. A criação material
toda a sua criação rumo a um fim; mesmo seus inimigos serão
não foi tanto uma punição, mas uma oportunidade educacional. Isso conquistados e subjugados” (De prin. 1.6.1). Essa tese será fundamental à
explica o papel ambíguo da matéria no pensamento de Orígenes. Ela não mística do teólogo alexandrino, embora envolva problema sérios do
é má, é um belo dom de um bom Criador, mas é um bem limitado, cujo ponto de vista dogmático, pois leva à teoria da apokatastasis. A metáfora
propósito real é ensinar os intelectos a ascender acima dela em suas principal que ele utiliza para esse processo de retorno é a de uma jornada
sendas de volta à visão desimpedida de Deus. Os intelectos caídos para cima, uma ascensão. A jornada difícil através da qual a alma retorna
constituem o cerne da pessoa humana, a quem Orígenes acha como a Deus começa a partir do claro “pão” da linguagem escritural direta, mas
constituídos de três níveis: 1) pneuma, ou espírito, a participação criada só pode ir além através da ingestão do “vinho” da Escritura, sua fala
no Espírito Santo, que já se tornou inerte na humanidade caída; 2)

27
obscura e poética, que inebria e eleva. A alegoria é a busca contínua de 27.12). Esse êxtase não é um arrebatamento dos sentidos, mas um novo
Deus através de sucessivos reconhecimentos da verdade. insight súbito sobre os mistérios divinos revelados na Escritura. Ao
desenvolver o tema do retorno da alma a Deus, Orígenes faz uso de uma
Orígenes apresenta a ascensão exegético-mística da alma de
variedade de símbolos e imagens tirados da bíblia. É na interpretação da
acordo com um padrão pedagógico triplo básico, que ele assumiu a partir
linguagem erótica do Cântico que se dá a mais profunda inscrição de sua
da filosofia grega. Ele achou o padrão nos três livros atribuídos a
mensagem mística. O uso do simbolismo erótico, tal como a ferida do
Salomão: os Provérbios, que ensinam o que os gregos a sabedoria moral,
amor (Ct 2,5), o beijo dos amantes (Ct 1,1) o abraço (Ct 2,6), nos
o modo apropriado de vida virtuosa que corresponde à vida do patriarca
introduz num dos mais complexos e controvertidos aspectos da história
Abraão e àquilo que os cristãos chamariam de via purgativa; o
da mística cristã. Ele reconhecia que o amor erótico e o sexual não eram
Eclesiastes, que apresenta a ciência natural, ou seja, o conhecimento
os mesmos, como um herdeiro da tradição grega do eros ele deu à busca
iluminado da natureza das coisas e de como elas devem ser usadas como
e ao desfrute da pessoa amada o status de paradigma para todos os modos
Deus tencionou, que corresponde a Isaac e à via iluminativa; o Cântico
de eros. Ele também concordou com Platão que, embora o eros seja
dos cânticos, disciplina inspectiva, que instila amor e desejo pelas coisas
vivenciado na relação com um amante humano, ele é na verdade uma
celestiais e divinas, sob a imagem da Noiva e do Noivo, ensinando como
força celestial, “o poder do amor nada mais é do que aquilo que leva a
chegamos à irmandade com Deus através das sendas do amor e da
alma da terra às alturas sublimes do céu, e [...] a mais elevada beatitude
caridade. Quando a alma alcançou os dois primeiros estágios está pronta
só pode ser alcançada sob o estímulo do desejo do amor (Com. Cântico,
para estudar as questões dogmáticas e místicas e para ascender à
63.9-11). Platão ensinou isso porque concebia eros como um semideus,
contemplação da divindade com amor espiritual puro. Essa é a ciência de
mas Orígenes, ao adaptar o eros platônico à fé cristã, realiza uma ruptura:
Jacó, que se tornou Israel, que significa “aquele que vê Deus”,
o próprio Deus deve ser Eros se o eros implantado em nós é o que nos
correspondendo à via unitiva ou mística. Esses estágios não são simples e
leva de volta a ele. A crença cristã em um Deus transcendente que
Orígenes propõe outras formas de entender o caminho da ascensão, como
“escolhe” “sair de si” na criação implica algo como o desejo ardente de
o dos 42 estágios ou campos da errância de Israel pelo deserto depois da
eros, daí Orígines dizer “Eu não acho que alguém deveria ser censurado
saída do Egito. A conversão nesta vida e a partida da alma do corpo na
se chamasse Deus de Amor Apaixonado (eros/amor), assim como João o
morte iniciam um itinerário complexo, marcado por guerras constantes
chama de Caridade” (ágape/caritas) (Com. Ao Cântico, 71,22-25).
contra a tentação domoníaca. A meta não é a escuridão encontrada nas
Portanto, “vocês devem tomar tudo aquilo que a Escritura diz sobre a
alturas do Sinai, mas a luz e a abundância da terra prometida.
caridade (caritas) como se isso tivesse sido dito em referência ao amor
Orígenes fala também do “discernimento dos espíritos” (Hom. apaixonado (amor), não prestando nenhuma atenção à diferença nos
Números 27.11) e menciona o êxtase místico, visto por ele como termos; pois o mesmo significado é transmitido por ambos (Id. 70.32-
“contemplação de espanto [...] quando a mente é tomada de espanto pelo 71.1).
conhecimento das coisas grandes e maravilhosas” (Hom. Números,

28
Orígenes tomou a noção de Deus como Eros com grande do Verbo. Através desses “órgãos do conhecimento místico”, que o
seriedade. Poucos pensadores antigos expressaram com maior clareza a alexandrino chama de “uma sensualidade que não tem nada de sensual”,
tensão entre a realização do anseio de deus pelo mundo e o poder na a “agudeza de experiência sensual é levada de volta à sua intensidade
noção parmenidiana da imutabilidade absoluta do Derradeiro. Se, como primordial”. Baseado nisso, a linguagem do Cântico se torna o melhor
Orígenes acreditava, eros tem sua fonte acima e foi implantado em nós modo de ler o texto interno da alma. Três imagens eróticas dos sentidos
pelo Deus-Eros, a força-motivo movendo a ascensão da alma dever ser a se destacam no comentário: o beijo na boca, o gosto dos seios e a ferida
transformação do eros tornado impróprio em nós de volta ao lugar de do amor. O primeiro versículo do Cântico, “Que ele me beije com os
origem transcendental. Essa transformação é governada pela beijos de sua boca”, é interpretado por Orígenes na perspectiva eclesial e
especificação teleológica dos objetos de desejo. Orígenes insiste que o pessoal, mostrando que a sensação de receber beijos deve ser lida como a
eros humano só pode ser transformado ao ser desviado do material recepção do ensinamento do Verbo pela mente, transmitido tanto à igreja
inferior e de objetos humanos para o que já se tornou dirigido em seu quanto à alma individual: “quando sua mente está preenchida pela
estado caído. Por isso, qualquer forma de prática erótica, mesmo o amor percepção e entendimento divinos sem a agência do ministério humano e
sexual, é irrelevante para o processo transformador. A ênfase de Orígenes angélico, então ela pode crer que recebeu os beijos do próprio Verbo de
no papel privilegiado da virgindade como a manifestação da pureza Deus” (Comentário ao Cântico, livro 1, ed. 91.12-17). Leitura similar é
preexistente da alma e da liberdade dirigida a Deus marca a mais antiga dada das imagens de degustar os seios que se intrometem em todo o
defesa teórica da divisão estrita entre a prática sexual e a empreitada Cântico: “Teus seios são melhores do que o vinho” (Ct 1,2b), é
mística. A única meta verdadeira do eros é o bem espiritual da primeira interpretado como se referindo ao principale cordis, o fundamento
criação, a manifestação de Eros, Deus e a alma. Assim, para aquele que interno do coração de Cristo sobre o qual João, o discípulo amado,
pensa apenas no nível do amor carnalis, o Cântico dos cânticos nem repousou. Os tesouros de sabedoria e conhecimento (Cl 2,3) que a alma
deveria ser lido, mas aquele que possui o amor caelestis, ou seja, a alma perfeita bebe do seio de Cristo são ainda melhores do que o vinho que ela
que foi atingida pelo dardo ou a ferida do amor pelo próprio Verbo, recebeu da Lei e dos Profetas (Comentário ao Cântico, livro 1, ed. 91-
encontra no Cântico a mensagem central da bíblia. 101). A imagem da ferida de amor, a que o alexandrino se referiu no
prólogo do comentário é mais complexa. Orígenes junta Is 49,2 (“Ele fez
Orígenes desenvolve uma reflexão importante sobre os sentidos
de mim seta afiada”) e Ct 2,5 (“Eu estou doente de ágape”) para criar um
internos ou espirituais, tomando como referência os sentidos do gosto,
ensinamento rico e original sobre o Verbo como sendo a flecha ou dardo
tato, audição, olfato e visão, através dos quais, segundo ele, a pessoa
do Pai, cujo amor atinge ou fere a alma: “Se há alguém em algum lugar
externa se relaciona com o mundo material. Buscar a compreensão da
que tenha ao mesmo tempo ardido de amor fiel pelo verbo de Deus; se há
linguagem erótica do Cântico é o exercício exemplar através do qual
alguém que já tenha recebido algum dia a doce ferida daquele que é o
esses “sentidos” mais elevados e refinados do intelecto caído e
dardo escolhido, como diz o profeta; se há alguém que já foi penetrado
adormecido são despertos e ressensibilizados pelo espírito para poderem
pela lança amada de seu conhecimento, de tal modo que anseie por ele
ser tornados capazes de receber a experiência transcendental da presença

29
noite e dia, não pode falar de nada senão dele, não consegue ouvir mais A linguagem da contemplação (theoria) domina as descrições
nada senão a respeito dele, não consegue pensar em mais nada, e não está que Orígenes dá da meta do itinerário místico. Ele enfatiza que o Pai,
disposto a nenhum desejo ou anseio nem sequer espera, exceto por ele como o Primeiro Princípio completamente imaterial de todos, não pode
mesmo – se houver, aquela alma, então, diz a verdade: “eu fui ferido pela ser visto. Mas o Verbo, como a perfeita Imagem do Pai, tanto o conhece
caridade” (Comentário ao Cântico, livro 3, ed. 194.6-13). como é conhecido por ele. Daí o Verbo feito carne tornar-se a “fenda da
rocha” da visão de Moisés, em que nós podemos vir a conhecer, ou seja,
Nessas passagens o sentido do toque traz para o primeiro plano a
“ver” Deus com o coração, ou com o sentido da visão interior, como
dimensão da urgência pessoal, nem sempre encontrada na relação com os
promete a beatitude ‘felizes os puros de coração, porque verão a Deus”
outros sentidos espirituais. Embora use toda a gama de imagens eróticas
(Mt 5,8). Cristo é o único caminho através do qual nós podemos ter
do Cântico para descrever como os sentidos espirituais contatam o
acesso a essa visão, ele é o nosso guia para os deleites da “contemplação
Amante Divino, o “toque” espiritual e a “visão” espiritual têm certa
mística e inefável” (Com. A João 13.24). A visão começa nesta vida, mas
prioridade e parecem comunicar uma conexão mais íntima. Orígenes
só será completada na restauração universal, quando o intelecto “pensará
sempre concebeu como meta da jornada da alma, em termos de
Deus e verá Deus, e terá Deus e Deus será a medida de seu próprio
conhecimento, o mais elevado conhecimento (gnosis) e a visão mística
movimento” (De princ.. 3.6.3) O prenúncio da visão derradeira, que
(mystike theoria) do mistério de Cristo. O cristão espiritual
começa nesta vida através do despertar dos sentidos interiores,
(pneumatikos) ou perfeito possuía um conhecimento de Cristo que era
espirituais, são insights a respeito dos mistérios divinos, modos mais
tanto “táctil” (indicava um verdadeiro encontro) quanto “visual”
profundos de compreender Deus. Apesar de falar deles como envolvendo
(denotava posse mútua). Embora admitisse duas classes de crentes na
ekstasis, enthysiasmos ou sóbria ebritas, não devemos pensar nesses
Igreja, como Clemente, o alexandrino estava também consciente do
termos como implicando êxtases ou estados de transe como aqueles
perigo de criar alguma forma de divisão no corpo dos crentes. Não faz
encontrados nos visionários apocalípticos ou montanistas.
apelo a nenhum conhecimento secreto. O conteúdo desse conhecimento
mais elevado é descrito através de uma série de imagens, algumas mais Orígenes também recorria à linguagem da deificação, como
afetivas, outras mais intelectuais. É o caso da imagem dominante do resultado da contemplação de Deus. Tornar-se como Deus era central na
Noivo e da Noiva, ou do símbolo procriativo do dar à luz.: “E cada alma, mística grega, desde Platão, mas ao argumentar com Celso, Orígenes
virgem e não corrompida, que concebe elo Espírito Santo, de modo a dar sublinha o caráter distinto da divinização: “Pois os cristãos veem que,
à luz a Vontade do Pai, é a Mãe de Jesus” (Comentário a Mateus, frg. com Jesus, a natureza humana e a divina começam a ficar costuradas, de
281). A gnose mística de Orígenes é, portanto, espiritual, mas também tal modo que, por irmandade com a divindade, a natureza humana possa
afetiva, uma posse da verdade que satisfaz tanto a dinâmica noética se tornar divina, não apenas em Jesus, mas também em todos aqueles que
quanto a dinâmica erótica da alma. creem e passam a viver a vida que Jesus pregou, a vida que leva todo
mundo que vive de acordo com os mandamentos de Jesus sobre a
amizade com Deus e irmandade com Jesus” (Contra Celso 3.28). A

30
participação na vida divina não se deve ao fato de a alma ser de origem nova vaga de devoção, evidente nos movimentos mendicantes e nas
divina, como sustentavam platonistas e gnósticos. A participação em beguinarias, alimentou-se desse primeiro componente monástico, mas o
Deus pode avançar no nível da semelhança até aquele se tornar uma desafiou, não apenas através da variedade de suas instituições, mas
coisa, a consumação em que Deus será “tudo em todos” (De princ.. especialmente através de seu acento na possibilidade de atingir a
3.6.1). perfeição mística em todas as esferas da vida, como o mostrou Mestre
Eckhart, um de seus grandes expoentes. Esse segundo estágio conheceu
A linguagem da união é relativamente frequente nos escritos de
um desenvolvimento considerável até o fim do séc. XVI. Uma terceira
Orígenes. Ocasionalmente ele usa o mesmo termo para expressar a união
tradição começou no séc. XVII e pode ser tida como aquela que deu
com Deus que foi mais tarde usada pelos neoplatonistas pagãos e por
continuidade a vários modos até o presente.
Dionísio (henosis). Orígenes, no entanto, não tinha o mesmo em mente.
Seu entendimento da visão, baseada em sua visão da distinção entre O papel decisivo do monaquismo na camada mais primitiva da
Criador e criatura, é sempre modelado naquele dos amantes no Cântico mística ocidental deve-se em grande parte ao modo como ele serviu
dos cânticos. Daí ele invocar a passagem de 1Cor 6,17, que ser tornaria o como fator precipitante para a transição das tendências ascéticas e
texto-prova clássico para a união amorosa dos corações e mentes para a místicas do cristianismo primitivo para os estilos de vida e tradições de
exclusão de qualquer união de identidade. A natureza da união é uma ensino adequados à transmissão da mística em sentido mais estreito e
ascensão sem fim até Deus, um prenúncio da doutrina da epektasis que mais técnico. Num período de dissolução do mundo antigo o
Gregório de Nissa viria a desenvolver plenamente. monaquismo forneceu o contexto dentro do qual alguns cristãos deveriam
cultivar o conhecimento da escritura e a vida de penitência e prece que
5. A virada monástica e a mística
preparavam o crente para formas mais especiais de contato imediato com
O mais decisivo dos fatores na formação greco-cristã da mística Deus nesta vida. Monges e monjas passaram a ser vistos como os cristãos
ocidental não foram as contendas do séc. II, nem a teologia mística de ideais, os virtuosi religiosos que combinavam o autodomínio ascético e o
Orígenes no séc. III, mas a criação e o triunfo do monaquismo no séc. IV. conhecimento necessário para chegar a Deus. Os monges foram, porém,
A virada monástica foi a grande inovação religiosa da antiguidade tardia, vítimas de seu próprio sucesso, considerando-se ou sendo considerados
e as instituições e valores monásticos continuam a afetar a história do como os únicos cristãos verdadeiros. Diante desse perigo, os primeiros
cristianismo até hoje. Segundo MacGinn, são três as camadas ou monges tomaram precauções, como a oposição ao esoterismo e a
tradições que se sobrepõem na história da mística cristã ocidental. A insistência no acesso universal e público à mensagem da salvação
primeira foi o monarquismo. Sem ele, as ideias místicas oriundas do pregada nas igrejas.
judaísmo, do helenismo e do cristianismo primitivo não teriam resultado.
Foi através dele que as teorias místicas encontradas em Orígenes e, Origens monásticas
posteriormente em Agostinho e outros místicos latinos, alcançaram os As raízes do monaquismo estão fincadas na história do
séculos vindouros. A segunda camada, começando em 1200, com uma cristianismo. O novo modo de vida evoluiu dos estilos de vida ascéticos

31
encontrados no cristianismo primitivo através da adaptação a (caps. 15-94), apresenta lendas da sabedoria de Antão e seus poderes
circunstâncias históricas que estavam mudando. No último quarto do séc. miraculosos. Antão, jovem órfão camponês com certos recursos,
III, alguns ascetas deram início à pratica da anachoresis, ou afastamento vivenciou uma conversão ao ouvir uma mensagem do evangelho sobre a
da sociedade rumo ao deserto, uma separação que envolvia tanto uma pobreza voluntária (Mt 19,21). Colocou-se então sob a tutela de um
mudança geográfica de natureza significativa quanto um novo tipo de anacoreta mais velho perto de sua cidade. Não havia ainda muitos
exploração da geografia interna da alma. Embora o ascetismo severo e monastérios no Egito e nenhum monge tinha se aventurado no grande
uma vida de abstenção sexual estivessem difundidos na antiguidade deserto, mas cada qual que desejava dar atenção à sua vida se
tardia, sendo encontrados entre filósofos pagãos e entre cristãos, os disciplinava no isolamento. Sua vida de disciplina foi uma batalha contra
monges foram muito além dos filósofos. Não apenas no grau de os demônios dentro e fora. Uma série de três tentações crescentemente
ascetismo, como também no modo em que eles voltaram as costas à penosas são apresentadas (cap. 5-10), nas quais Antão vence as forças do
sociedade para alcançar a perfeição através do embate solitário contra o mal através de sua fé em Cristo, que lhe aparece e o fortalece no fim da
demônio e o encontro com Deus. O mártir, ideal cristão dos três agon. Antão dá então o passo decisivo de deixar a sociedade para trás e
primeiros séculos, testemunhou a natureza demoníaca da sociedade pela se retira para o deserto, onde continuou sua guerra contra o inimigo
dramática confissão de Cristo no contexto público do tribunal e da arena. durante vinte anos.
O monge, que se tornou o sucessor do mártir no novo império cristão do Em 305 seus amigos vieram arrombar a porta do forte e revelar
séc. IV, se sobrepôs ao mártir, rompendo com a sociedade humana para um Antão transformado: Antão apareceu como de um santuário, tendo
chegar à perfeição autárquica e ao controle completo sobre os demônios sido levado a conhecer os mistérios divinos e inspirado por Deus. Essa
através de um rito de dissociação bastante elaborado e solene, de se foi a primeira vez que ele apareceu no forte para aqueles que vieram vê-
tornar um estranho total. O protótipo desta nova criação foi Antão, o pai lo. E quando o viram, eles ficaram espantados ao ver que seu corpo tinha
dos monges (250-356). mantido sua condição anterior, nem gordo por falta de exercício, nem
O Antão histórico possui um sem número de problemas, mas a magro pelo jejum e combate com os demônios. [...] O estado de sua alma
história de sua vida, escrita por Atanásio, em 357, foi o canal através do era de pureza, pois não estava compungido pelo pesar, nem relaxado pelo
qual sua fama ganhou força na espiritualidade cristã. Essa descrição prazer, nem afetado quer pela alegria quer pela tristeza. [...] Ele mantinha
apresenta um itinerário espiritual de conversão, reconhecimento, embate um equilíbrio extremo, como se guiado pela razão e firme naquilo que se
purgativo e transformação. A personalização da via mística iniciada na conforma à natureza” (Vida, 14). A linguagem da iniciação mística
em Filo, alcança aqui um novo estágio, o do monachos como místico recebe aqui relevos cristãos, através da invocação da apatheia e da
ideal. apresentação de Antão como um novo Adão, o ser humano renovado que,
através do poder de Cristo, recuperou tudo o que Adão perdeu. Antão
A Vida está dividida em duas partes desiguais: os primeiros 14
alcançou domínio sobre si mesmo, sobre o mundo e, especialmente,
capítulos detalham o itinerário místico; a segunda parte, mais longa
sobre os demônios, cujos poderes eram tão atemorizadores para as

32
mentes da antiguidade tardia: “Através dele o Senhor curou muitos dos deserto inóspito permaneceu a fundação: “Quando Abba Arsênio ainda
presentes que sofriam de males físicos, outros ele purgou de demônios, e estava no palácio, ele rezava ao Senhor dizendo: “Senhor, mostra-me o
a Antão ele deu o dom da fala. Assim, ele consolou muitos que caminho da salvação”. E a voz veio até ele: “Arsênio, foge dos homens e
pranteavam, e outros, hostis uns aos outros, ele reconciliou na amizade, serás salvo”. Ele tornou-se monge e, novamente, rezou com as mesmas
estimulando todos a não preferir nada no mundo ao amor de Cristo. [...] palavras. E ele ouviu uma voz dizendo: “Arsênio, torna-te solitário,
Ele persuadiu muitos a se entregar à vida solitária. E assim, a partir de silencia, aquieta-te. Essas são as raízes de uma vida sem pecado”
então, havia monastérios nas montanhas, e o deserto tornou-se cidade (Apotegmas, 2.1).
graças aos monges, que deixaram sua própria gente e se registraram para O deserto, identificado como lar dos demônios e não dos
cidadania nos céus (Vida, 14). Embora o maior dom de Antão seja o humanos, era o lugar onde o encontro com os espíritos do mal –
valor típico do deserto, o do discernimento dos espíritos, ele é retratado demônios da luxúria, da gula, da posse e similares – poderia ser mais
como um visionário em contato fácil e familiar com o mundo celestial e prontamente encontrado e dominado através da paciente penitência na
com a habilidade de prever o futuro. cela. Esses poderes demoníacos, sempre presentes dentro da alma,
O modo de vida eremítico do qual Antão foi pioneiro encontrou tornavam-se numinosamente reais no calor intenso e na atmosfera
muitos sucessores, tanto históricos quanto lendários. Logo certas áreas do introspectiva do deserto. O ascetismo, de grande valor, não é retratado,
deserto egípcio, ao sul de Alexandria, se tornaram famosas como locais porém, como um valor em si mesmo, mas como um meio para a meta da
frequentados pelos anacoretas do deserto. A principal fonte histórica para transformação. Obediência ao Abba – ou pai espiritual -, discrição,
esse modo de mística primitivo foram os Apophthegmata Patrum, discernimento, humildade, paciência e caridade recebem grande atenção
coleções de materiais originalmente orais venerando frases e histórias no processo purgativo. A meta final, como no caso de Antão, é mais bem
exemplares cujas origens remontam ao séc. IV, mas cuja formação descrita como uma transformação através da qual o asceta torna-se um
literária foi um processo longo. Duas grandes coleções foram formadas epigeios theos, um “deus sobre a terra”, como Abba Macário, o Grande,
na primeira metade do séc. VI: 1) a Coleção Anônima, ou sistemática, foi descrito. Nos apotegmas e literatura correlata, essa divinização é
traduzida para o latim a partir de um original grego, composta de vinte e simbolizada através da língua ou da chama de fogo. Embora o processo
dois livros organizados por subtópicos chave espirituais (arrependimento, de divinização seja longo e lento, alguns textos acentuam que a intenção
paciência, discrição, prece, caridade etc.); 2) a Coleção Alfabética, que adequada é tudo.
organiza seus ditos e histórias de acordo com uma lista de homens e A essas duas formas de monaquismo, a livre, conectada às
mulheres famosos do deserto. Esse material testemunha um estilo de vida cidades cristãs, e a dos eremitas solitários ou anacoretas do deserto, se
que, quando fundido com a teologia origeneana, criou a tradição mística acrescentou uma terceira, as sociedades organizadas, ou seja koinonia ou
monástica. O padrão básico do recolhimento – purgação – transformação coenobia, o cenobitismo. Pacômio, nascido em 290, no Alto Egito, era
foi a estrutura que deu forma e propósito aos outros valores e práticas dos um camponês egípcio pagão que se alistou no exército imperial. Depois
primeiros monges. Fuga do mundo para a vida solitária e silenciosa do

33
de ser desmobilizado em 313, foi batizado e começou a viver a vida de 395. Segundo Daniélou, Gregório foi um dos teóricos místicos mais
anacoreta sob Abba Palamon. Numa de suas viagens teve uma visão de importantes da igreja antiga. Recebeu boa educação, tanto nos clássicos
que deveria construir um monastério, o que ele realizou em 320, impondo da cultura grega, como Platão e Plotino, e nos Pais gregos, especialmente
uma regra de vida à comunidade. Tornou-se assim o primeiro legislador Orígenes. Foi um escritor prolífico, responsável por grandes obras
monástico. Quando morreu, em 346, nove casas de homens e duas de dogmáticas, como a Grade oração catequética e os doze volumes do
mulheres seguiam sua regra. Essas comunidades cresceram e se tornaram Contra Eunômio, importantes obras exegéticas, como o tratado Sobre a
grandes e poderosas, sobretudo no Alto Egito, onde construíram um elo feitura do homem, e uma variedade de comentários ascéticos e místicos,
de vilas monásticas contendo milhares de monges e freiras. O fenômeno entre os quais se sobressaem: Sobre a vida de Moisés, as 15 homilias
do monaquismo vivia em tensão criativa com a instituição, entre a crítica sobre o Cântico dos cânticos, as oito homilias Sobre as beatitudes. Seus
e o apoio tanto da sociedade quanto da igreja. Ele difundiu-se não só no escritos influenciaram o Pseudo-Dionísio, mas, como não foram
Egito. As tendências ascéticas estiveram presentes em toda a cristandade, traduzidos para o latim, influenciaram o Ocidente somente na idade
especialmente na Palestina e Síria, mas também na Ásia Menor, no Norte média.
da África, na Itália, Espanha e Gália. Havia tensões entre as várias A controvérsia ariana havia obrigado os teólogos a examinarem
formas de ascetismo monástico. No final do séc. IV, as duas formas
a doutrina de Deus com mais cuidado e em maior profundidade do que
principais, a eremítica e a cenobítica, que viviam de acordo com uma havia feito até então. Gregório, o mais sutil dos Pais capadócios, não teve
regra, se voltaram contra os pequenos grupos mal organizados dos apenas um papel importante no desenvolvimento da teologia trinitária,
monásticos “apotáticos”, que já estavam sendo condenados como falsos mas também na visão cristã da natureza divina como ilimitada e,
ascetas e hipócritas. portanto, incompreensível. Como vimos, Orígenes não deu muito espaço
O modo de vida monástico provou-se um poderoso estímulo para o apofatismo. Gregório rompeu com Orígenes nessa questão,
para a criação de novos tipos de literatura religiosa. Para os textos e insistindo que Deus era indeterminado, ilimitado e, portanto,
histórias hagiográficos sobre homens e mulheres do deserto, foram incompreensível: “Ele (Moisés) aprendendo do que foi dito (Ex 33,20)
adicionados explícitos escritos teológicos que representam alguns que o Divino é por sua própria natureza infinito, não é determinado por
clássicos da mística cristã. Nas últimas décadas do séc. IV, três grandes qualquer fronteira. [...] Uma vez que o que é compreendido é certamente
escritores místicos com ligações com o monaquismo apareceram: menos do que aquilo que compreende, seguir-se-ia que o mais forte
Gregório de Nissa, um autor misterioso cujos escritos foram difundidos prevalece. Portanto, aquele que compreende o Divino por qualquer
sob o nome de Macarius, e Evagrius Ponticus. fronteira faz com que o bem seja governado por seu oposto. [...] Não está
na natureza do que é incompreendido ser compreendido. Mas cada desejo
Gregório de Nissa
pelo Bem que é atraído àquela ascensão se expande constantemente
Irmão mais novo de Basílio, o grande legislador monástico e conforme se progride na busca do Bem. Nunca se saciar de desejar é
bispo antiariano da Capadócia, Gregório nasceu em 335 e morreu em verdadeiramente ver Deus” (Vida de Moisés, 2.236-39). Gregório foi o

34
primeiro a criar uma teologia negativa sistemática na história do messalianos eram chamados de euquitas, ou seja, aqueles que rezam.
cristianismo, do tipo que viria a ter um efeito profundo um século mais Eram também chamados de entusiastas, porque consideram as influências
tarde sobre o Pseudo-Dionísio. A característica mais profunda desse perturbadoras de um demônio sobre os que são possuídos como sendo a
apofatismo para seu pensamento místico foi a doutrina da epektasis, seu presença do Espírito Santo. Segundo McGinn, toda a bibliografia sobre
ensinamento de que a meta da vida cristã, tanto aqui quando no céu, é a os messalianos é proveniente dos que os combateram, só apontando os
busca sem fim da inexaurível natureza divina. Esse tema aparece na Vida erros. Os ataques a eles indicam que eram monges que acentuavam o
de Moisés, e é o modo como ele interpreta o caráter inquieto e não papel da prece constante para superar o pecado, a tal ponto que
realizado dos encontros com o Amante Divino contados no Cântico dos desvalorizavam o papel do batismo e dos outros sacramentos e toda a
cânticos: “Quando ele esperava, como Moisés, que a face do rei instituição eclesiástica. Outro elemento perturbador no messalianismo
aparecesse a ela (Ex 33,1322), aquele a quem ela desejava escapou de parece ter sido uma ênfase na fisicalidade do bem e do mal na vida
sua compreensão. Ela diz “meu amado se foi” (Ct 5,6), mas ele não fez ascética. Os verdadeiros espirituais eram conhecidos por sua habilidade
isso para abandonar o desejo de sua alma, mas para aproximá-la dele. [...] de ver a Trindade com seus olhos físicos. As acusações sobre ócio fazem
A noiva nunca cessa de sair nem de entrar, mas ela repousa apenas ao eco ao que as novas formas de ascetismo monástico diziam sobre as
avançar na direção daquilo que jaz ante ela e ao sempre abandonar aquilo formas apofáticas sobreviventes do monaquismo primitivo. O
que ela já compreendeu” (12ª Homilia sobre o Cântico dos cânticos). messalianismo tornou-se um para-raios para as suspeitas dos líderes da
igreja do fim do séc. IV e início do séc. V sobre os perigos envolvidos no
A epektasis dá à leitura que Gregório faz do Cântico um sabor
movimento monástico.
não encontrado em Orígenes – tanto uma tensão erótica maior no nível da
linguagem quanto um tratamento mais sistemático do caráter paradoxal Alguns estudiosos pensam que Macário seria messaliano ou
de cada percepção da presença divina como uma experiência de uma ligado a tais grupos. Alguns temas de suas homilias o aproximam de
presença que também é uma ausência. “Ela se dá conta de que o amor aspectos do messalismo, como a necessidade da prece pura contínua e a
que ela persegue é conhecido apenas em sua impossibilidade de contínua coabitação do pecado e da graça no coração do crente. Mas ele
compreender sua essência, e cada sinal se torna um impedimento para também se opõe a um número de ensinamentos do messalianismo
aqueles que o buscam” (Hom. 6). Seu pensamento teve um papel condenado, tais como a difamação do batismo e das boas obras. Suas
importante na história da mística posterior. Homilias, com ênfase sobre Deus como fogo e luz, suas hábeis
investigações no embate contínuo entre o bem e o mal no coração
Macário, o Grande
humano, e seus ensinamentos sobre o papel de Cristo e do Espírito santo
As 50 Homilias espirituais atribuídas a Macário (390) no progresso da vida de pura prece que leva a Deus, formam um dos
exerceram considerável influência no Ocidente, especialmente depois de componentes mais característicos da mística oriental. Sua insistência na
sua tradução no séc. XVI. Esses textos tinham uma influência do necessidade de se chegar a Deus “em experiência e plenitude,
messalianismo, uma heresia mística do cristianismo oriental. Os especialmente na percepção da luz divina, antecipa o que viria na

35
tradição oriental, especialmente em místicos como Simeão, o Novo fragmentos em grego). A parte mais longa da trilogia é a grande
Teólogo, e Gregório Palamas. Certo tipo de “visão ou contato físico com Kaphalaia Gnostica, com seus seiscentos capítulos de noventa axiomas,
Deus” está insinuado em certo número de seus textos. Ele parece ter sido cada qual sobrevivendo em duas versões siríacas, que fornecem o cerne
o primeiro a adotar o termo mystikos para descrever o tipo de união de da mística especulativa de Evágrio. Além disso há a importante obra
uma pessoa pode desfrutar com Deus nesta vida, falando tanto de sobre a prece, que sobreviveu em grego, a De Oratione, constituída de
syNousia mystike e koinonia mystike. 153 capítulos, e um bom número de obras ascéticas dirigidas aos
monásticos, tais como a Antirrhetikos (tratado sobre as oito principais
Evágrio Pôntico
tendências pecaminosas) e o Espelho de monges e monjas. Seus
Trata-se de um místico com uma linhagem direta entre a comentários sobre a bíblia só agora estão sendo recuperados e estudados.
experiência do deserto e a sistemática origenista, e de um escritor que Há ainda cerca de 60 cartas, a maioria em siríaco. Duas são importantes
teve uma influência considerável sobre a mística cristã ocidental, para entender seu pensamento místico, a Carta a Melânia e a Carta de fé.
sobretudo a partir de seu discípulo João Cassiano. Seu pensamento forma Rufino e Genádio de Marselha traduziram boa parte de Evágrio para o
o primeiro sistema completo de espiritualidade cristã. Nascido no Ponto, latim, embora nem todas as versões tenham sobrevivido.
em 345, Evágrio foi treinado pelos Pais capadócios, sendo ordenado lente
A maior parte das obras de Evágrio aparece na forma de
por Basílio e diácono por Gregório Nazianzeno. Sua carreira como
capítulo, ou centúria, ou seja, coleções de aforismos enigmáticos,
oponente dos arianos encerrou-se com sua conversão à vida ascética,
organizados em grupos de centenas. Ele foi o primeiro a usar esse
após uma crise pessoal por seu envolvimento com uma mulher casada.
gênero, influenciado pela forma do ensinamento monástico primitivo, em
Fugiu para Jerusalém, onde encontrou-se com Rufino e Melânia, e depois
que o Abba dá uma “palavra” de conselho ao monge neófito. Esse gênero
para o deserto egípcio, onde viveu de 383 até sua morte, em 399.
contribui para nossa dificuldade em compreender o ensinamento de
Influenciado por Macário de Alexandria e Macário, o Grande, Evágrio se
Evágrio. Seu pensamento místico é visto por muitos como não sendo
tornou uma figura de proa entre os heróis ascetas do deserto. Sua
totalmente cristão. Balthasar, por exemplo, pensa que o ensinamento
proximidade com o origenismo e a condenação deste no séc. VI, no
místico de Evágrio está mais próximo do budismo do que do
segundo Concílio de Constantinopla, tornou seu pensamento suspeito, e
cristianismo. Ele o julga como um místico puro, do tipo em que a
muitos de seus escritos foram destruídos, só sobrevivendo em siríaco e
experiência transcendental do sujeito do conhecimento foi plenamente
armênio. Sua obra mais importante é a grande trilogia chamada de
realizada, mas ele nega que Evágrio possa ser considerado um místico
Monachikos, que espelha a estrutura básica de seus pontos de vista sobre
cristão por causa do modo como ele esvaziou a maioria das crenças
a vida mística. Esta consiste do Praktikos, cem capítulos sobre a vida
cristãs de seu significado específico. Rahner, John Eudes Bamberger,
ascética, que sobrevivem no original grego, juntamente com o Gnostikos,
Antoine Guillaumont e Gabriel Bunge já pensam diferentemente. Evágrio
cinquenta capítulos sobre como o Gnóstico ou verdadeiro contemplativo
seria uma das maiores figuras da história da mística cristã.
transmite o conhecimento espiritual (em siríaco e armênio e alguns

36
A teologia de Evágrio é fundamentalmente origenista, embora processo de retorno. A completa antropologia de Evágrio pode ser
difira do teólogo alexandrino em vários pontos. O ponto de vista básico compreendida como tripartite: Nous, psyché e soma, ou bipartite: psyché
da realidade de Evágrio, como o de Orígenes, é alcançado em três e soma, dependendo da perspectiva adotada.
estágios: criação, queda e segunda criação, e o eventual retorno. A O retorno da criação racional decaída à sua fonte é realizado em
presença de movimento, desigualdade e do mal no mundo torna três estágios. “O cristianismo é o dogma de Cristo nosso Salvador. Ele é
necessário postular uma criação prévia harmoniosa de seres espirituais
composto de praktiké (isto é, vida ascética), da contemplação do mundo
iguais, assim como um futuro retorno de todos os seres espirituais a Deus físico (isto é, physiké), e da contemplação de Deus (isto é, theologiké)”
e a eventual destruição do mal. Entre as criaturas, “algumas foram (Praktikos 1). Os dois estágios contemplativos são subdivisões do que
produzidas antes do juízo e algumas após o juízo”. Com relação às Evágrio chama gnostiké, ou seja, a vida gnóstica, de modo que aqui
primeiras, ninguém forneceu informação alguma; mas com respeito às também emerge um padrão binário alternado, que está na origem da
segundas, aquele que esteve no Horeb (Moisés) deu uma descrição. A distinção entre ascética e mística, ou entre vida prática e vida
primeira criação, que desfrutou da absoluta unidade com a Trindade, caiu contemplativa. Os três estágios (praktiké, physiké, theologiké) marcam os
de sua perfeição contemplativa devido à negligência. A negligência da níveis através dos quais o Nous é restaurado a seu lugar anterior.
primeira criação acarretou no julgamento imediato por parte de Deus dos
Segundo Evágrio, “a meta da praktiké é purificar o intelecto e torná-lo
logikoi e na produção da segunda criação, que é caracterizada por impassível; a da physiké é revelar a verdade oculta em todas as coisas; a
movimento, multiplicidade e matéria. Essa criação é renovada em e da theologiké e voltá-la para a Primeira Causa” (Gnostikos 49). No
através de Cristo, o único logikos não caído. Como o ser espiritual criado Ocidente a influência mais evidente de Evágrio é encontrada na área da
que está perfeitamente unido ao logos, a segunda pessoa da Trindade, ele teoria ascética, o conhecimento da praktiké. Confiando nas tradições da
apenas conhece o princípio essencial de cada coisa que pertence à introspecção dos Pais do deserto, o mestre pôntico criou ferramentas de
segunda criação. Aos logikoi são designados lugares ou condições na valor permanente para a espiritualidade cristã posterior, especialmente
segunda criação em proporção ao grau de sua negligência, acabando em seu ensinamento sobre os oito principais logismoi, os ancestrais
como anjos, humanos ou demônios. O logikos ou Nous, a identidade
diretos dos “sete pecados capitais” Os logismoi são concebidos como
racional de cada ser espiritual, desce ou adensa-se para dentro da psyché sendo pensamentos ou tendências maus ou apaixonados presentes na
ou alma, que é composta de três elementos: Nous, tomado em um alma através da atração da epithymia e do thymos e das decepções do
segundo sentido como o elemento racional da alma; epithymia, desejo ou Nous 2. Eles tornam a verdadeira contemplação impossível e são os
sensualidade; thymos, rejeição ou irascibilidade. Os anjos são os seres em meios que os demônios usam para evitar que a psyché possa se tornar o
quem o Nous predomina; epithymia é mais forte nos humanos, e o Nous1, seu verdadeiro eu. O ascetismo exterior da privação do sono, do
thymos controla os demônios. Os três tipos de seres têm corpos alimento e sexo é necessário, mas não condição suficiente para realizar o
adaptados às suas constituições espirituais. Esses corpos dados por Deus verdadeiro embate, a ascese para controlar a decaída gravidade da gula
são tanto indicadores do estado do Nous dentro de nós quanto meios no
(gastrimargia), lascívia (porneia), avareza (philargyria), desânimo (lypé),

37
raiva (orgé), impaciência ou insatisfação (akédia), vaidade (xonodoxia) e Evágrio distingue as várias mudanças ou transformações que
soberba (hyperphania). A exposição sutil da natureza dos logismoi fez de marcam os estágios do movimento da praktiké, passando pela gnostiké,
Evágrio um dos mestres do que viria a ser o “discernimento dos até chegar à meta da união. Segundo ele, não podemos dar nenhum passo
espíritos”. na vida da theoria até que a alma tenha sido purificada através do
ascetismo do bios praktikos: “O temor a Deus fortalece a fé, e a
Como em Orígenes, o processo do retorno só pode ocorrer
continência, por sua vez, fortalece esse temor. Paciência e esperança
através do ato do preexistente Cristo ter se feito carne. “Cristo é o único
tornam essa última virtude sólida além de todo abalo e também dão
que possui Unidade em si e que recebeu o juízo dos logikoi” (KG 3,2).
nascimento à apatheia. Pois bem, essa apatheia tem um filho chamado
Ele traça sua sabedoria na natureza corpórea dos logikoi do mesmo modo
ágape, que cuida do portal para o conhecimento profundo do universo
que um pedagogo traça as letras para uma criança (KG 3,57). Seu
criado. Por fim, a esse conhecimento sucede a teologia e a suprema
descenso torna possível nossa ascensão e consequente divinização. O
beatitude” (Prak., pref.). O ensinamento de Evágrio sobre a apatheia é
ensinamento de Evágrio sobre a ascensão do Nous através do poder do
descrito minuciosamente. Ele distingue entre a apatheia imperfeita,
Cristo encarnado está centrado em três termos intimamente relacionados:
conquistada enquanto o embate com os demônios continua, e uma
theoria, gnosis e proseuché, ou seja, a prece. Theoria é usado para
apatheia perfeita, conquistada quando eles são superados. A apatheia
caracterizar como o Nous passa a entender a realidade criada. Gnosis é
verdadeira, a saúde da alma, “é ganha quando o espírito começa a ver sua
tomado como o conhecimento de algo, é usado do mesmo modo. Mas
própria luz, quando ele permanece em um estado de tranquilidade na
gnosis compreendido como gnose essencial descreve a meta de todo o
presença das imagens que ele contempla durante o sono e quando
processo, não o conhecimento de algo, mas o conhecimento que é a
mantém a calma ante ao assuntos da vida” (Prk. 64). Ela gera o ágape
Santíssima Trindade. A prece é usada para todas as atividades através das
como seu filho e é a precondição para a prece pura (Prece 52-55). A
quais o Nous ascende e para o conhecimento unitivo, que é a meta. Os
aquisição da apatheia torna possível a transição do nível da praktiké para
três termos são intercambiáveis. Enquanto alguns níveis de prece podem
aquele da gnostiké, especialmente para o estágio mais baixo no qual a
ser considerados prelúdios à mais elevada gnosis, a prece em seu sentido
mente ganha conhecimento da natureza interor das coisas criadas, através
mais verdadeiro é coextensiva à gnosis da Trindade, como reza a
da theoria physiké, estágio que é identificado com o reino dos céus. A
máxima: “Se você é um teólogo, você reza verdadeiramente. Se você
theoria theologiké, o reino de Deus, onde o Nous alcança o
reza verdadeiramente, você é um teólogo” (Prece 60). A prece verdadeira
“conhecimento” essencial da Santíssima Trindade”. Quando alcançou
ou pura é a gradual eliminação de todas as imagens e formas, de modo a
esse nível, o Nous pode até ser considerado divino, pelo menos por
alcançar um contato direto sem forma e sem conceito com a Trindade
participação.
sem número e sem forma. A prece é a relação contínua do espírito com
Deus. Evágrio foi o primeiro a fazer da prece contemplativa a essência da Segundo McGinn, a mística de Evágrio tende à união indistinta
vida monástica e, assim, uniu as forças do monaquismo e da mística de entre Deus e o Nous restaurado. Isso lança três importantes
modo poderoso. características de sua mística: o apofatismo, o intelectualismo e o

38
esoterismo modificado. Como todos os teóricos da mística cristãos, ascensão à contemplação, sua rejeição da visão do Nous como
Evágrio insistia que Deus ultrapassa todo o pensamento humano, naturalmente divino.
lembrando a seus leitores: “não teologizem inconsideravelmente e nunca
Anagogia e apofatismo: a mística de Dionísio
definam o divino. Definições são próprias para as coisas criadas e seres
compostos” (Gnot. 27). Sua insistência de que o inefável deve ser Por volta de 500, provavelmente na Síria, viveu um escritor
adorado em silêncio (Gnost. 41) ecoa um tema encontrado nos monástico cuja influência sobre o Ocidente viria a ser mais poderosa do
neoplatonistas e em Gregório Nazianzeno. Mas Evágrio também que a de qualquer outro místico oriental. Essa figura, ainda não
desenvolve uma forma distinta de apofatismo, através de seu identificada, criou a expressão “teologia mística”, mas também deu
ensinamento sobre a ignorância infinita. Sua theoria theologiké é ao sistematicidade a uma visão dialética da relação de Deus com o mundo
mesmo tempo gnosis infinita e ignorância infinita, uma “gnosis que foi a fonte dos sistemas especulativos místicos durante pelo menos
agnóstica” que tem uma afinidade com a epektasis de Gregório de Nissa, mil anos. Esse autor adotou o nome de Dionísio, o Areopagita, o
o movimento inexaurível da alma para dentro de Deus. Na Kephalaia convertido ateniense de At 17,34. Não se sabe quem ele é, e seus escritos
Gnostica 1.65 ele descreve a unidade última assim: “há uma paz possuem um estilo idiossincrático, encantatório, cheio de neologismos,
indescritível e não há nada a não ser o Nous desnudo, que está sempre difíceis de se compreender e controvertidos. Durante séculos esse corpus
satisfeito em sua insaciabilidade”. Evagrio é acusado de aderir a uma dionisiano foi tratado como uma autoridade apostólica, mas os
mística intelectualista. De fato, sua mística exalta o intelecto sobre o humanistas e Erasmo começaram a duvidar de sua autoridade antes de
amor e a vontade. Apesar de admitir que há a necessidade de se 1520, quando Lutero o atacou, acusando Dionísio de platonizar mais que
educarem todas as forças físicas e emocionais no caminho para se chegar cristianizar. Muitos estudiosos o consideram mais como um filósofo
à apatheia, assim como a ênfase que ele coloca no ágape como neoplatônico do que como um teólogo cristão, mas outros o veem como
precondição para se chegar aos estágios mais elevados da contemplação, um teólogo cristão disfarçado de neoplatônico. O esoterismo de Dionísio
sua meta sempre foi a libertação do Nous de seu estado caído e sua também levanta problemas, pois ele parece pressupor que nem todos os
absorção no mar inteligível da divindade. Por isso nele não há lugar para crentes são ou se tornarão os “amantes da santidade”, pelo menos nesta
nenhuma forma de êxtase. Ele acreditava que, no nível da theoria vida, embora todos compartilhem da vida da Igreja, dentro da qual esse
theologiké, através da prece pura, poderíamos vir a conhecer de um modo amor pode ser verdadeiramente alcançado.
novo. Isso não significa, porém, perder o Nous, mas permitir que ele Os escritos sobreviventes que constituem o corpus dionisiano
pudesse vir a conhecer seu verdadeiro eu, o logikos como imagem são quatro tratados e dez cartas, mas pelo menos sete outras obras são
perfeita e semelhança da Santíssima Trindade. Evagrio também se opôs mencionadas por ele. Os Nomes divinos, a obra central e mais longa entre
aos falsos gnósticos, como mostram sua afirmação aos que sustentam que as que sobreviveram, cormpeende treze capítulos que lidam com a
o corpo é um mal em si, sua insistência na necessidade da graça na teologia positiva ou catafática que atribui nomes ou termos conceituais a
Deus como Criador, embora a obra também introduza elementos

39
importantes de teologia negativa ou apofática. Subsequente a esta obra É indubitável sua relação com o platonismo e o neoplatonismo,
Dionísio escreveu um tratado sobre Teologia simbólica, hoje perdido, sobretudo Proclo. Entre os princípios que ele invoca como centrais em
mas a que ele faz referência em obras tardias. Depois escreveu a obra que seu pensamento se sobressaem os da tríade procleana: moné
o tornou mais conhecido: A teologia mística. Os últimos tratados são: A (permanência), proodos (processão) e epistrophé (retorno). O Deus
hierarquia eclesiástica, que trata de como a liturgia e os ofícios da Igreja incognoscível sempre permanece supereminentemente idêntico a si
funcionam no processo anagógico. A hierarquia celeste investiga como mesmo (moné), enquanto transborda em diferenciação em seus efeitos
as descrições escriturais dos nove coros angélicos devem ser (proods), de modo eventualmente a retomar a identidade através do
compreendidas de tal modo que eles possam representar sua parte na retorno (epistrophé). A “Luz além de toda divindade”, que é idêntica à
nossa ascensão a Deus. “Coisa em si inominável, “está em uma total remoção de cada condição,
movimento, vida, imaginação, conjectura, nome, discurso, pensamento,
O centro teológico do pensamento de Dionísio é a exploração de
concepção, ser, descanso, habitação, unidade, limite, infinitude, a
como Deus, que é totalmente incognoscível, se manifesta na criação, de
totalidade da existência”, ou seja, sempre permanece em si mesma
modo que todas as coisas possam alcançar a união na qual o Eros divino
(moné). “E, no entanto, uma vez que é a escora da bondade, e por
se refrata em uma multiplicidade de teofanias do universo, que, por sua
simplesmente estar lá é a causa de tudo; para elogiar essa Providência
vez, eroticamente lutam para ir além de sua multiplicidade e possam
divinamente beneficente, você deve voltar-se para toda a criação”, isto é,
voltar à unidade simples. Embora considere o papel do sujeito humano
através de proodos, o modo da teologia catafática. Portanto, “todas as
inteligente crucial no retorno, Dionísio é muito mais cosmológico e
coisas anseiam por isso. A saudade inteligente e racional, através do
objetivo do que Orígenes e Evágrio. Predomina mais em sua reflexão o
conhecimento (gnostikos); a camada mais baixa, através da percepção; o
ser, a bondade e a beleza do universo. Segundo Balthasar, “Dionísio pode
que sobra, por meio de estremecimentos do estar vivo, ou seja, epistrophé
ser considerado o mais estético de todos os teólogos cristãos, porque a
apofaticamente retorna todas as coisas à fonte.
transcendência estética que conhecemos neste mundo (do sensível como
manifestação até o espiritual como o que é manifesto) fornece o esquema Para Dionísio, as diversas teologias não são disciplinas
formal para se compreender a transcendência teológica e mística (do separadas, mas diferentes modos de falar sobre Deus. A teologia
mundo de Deus)” (A glória e a cruz, 2,168). Além de ausência de simbólica depende do conhecimento sensorial; a teologia catafática opera
referência à antropologia, também se pode perceber a ausência de teoria no nível da razão, ao passo que os modos de apreensão que ultrapassam a
moral, uma vez que o lado prático do processo de retorno está razão são usados na teologia apofática e mística. A tearquia é o novo
preocupado com o uso teúrgico da liturgia e ofício da Igreja, não com a termo de Dionísio para o Deus trino, que se comunica na criação. A
realização da apatheia através do exercício das virtudes, como em tearquia é um dos muitos nomes catafáticos para Deus, mas, ao cunhá-lo,
Evagrio. Sua referência às Escrituras também difere da dos Pais que o Dionísio parece ter expressado sua necessidade de um termo que
precederam. significasse a transformação que sua compreensão cristã da criação
efetuou no neoplatonismo tradicional. Tearquia e sua correlata hierarquia

40
são distintamente dionisianas e eminentemente criacionistas: Deus como operam de acordo com a mesma lei (HC 9). Dionísio é herdeiro de Proclo
a Tearquia triuna é o princípio do universo concebido principalmente na forma como entende a hierarquia e sua conexão com a Tearquia, mas
como hierarquia, ou seja, uma manifestação multiplamente ordenada do um estudo dos Nomes divinos revela as mudanças internas que ele
divino. Os poderes de purificação, iluminação e perfeição que tornam realizou ao adaptar o neoplatonismo à compreensão cristã da criação.
possível o retorno a Deus estão presentes nas hierarquias do universo Suas mudanças aparecem em duas áreas: o modo como ele apresenta a
criado apenas porque eles são partícipes da Tearquia. Uma vez que a Bondade divina com o Eros universal, e como ele usa a tríade Ser-Vida-
divina Tearquia é uma triunidade, a Trindade cristã, cada hierarquia de Intelecto como um nome verdadeiramente para o Criador.
ser é tanto uma quanto trina, de modo a preencher suas funções como Orígenes, como vimos, ao adotar a linguagem erótica do Cântico
dando o poder à manifestação trinitária. Cada hierarquia compreende um dos cânticos para descrever o encontro da alma com Cristo, passou a
nível que aperfeiçoa, ilumina e purifica. E cada hierarquia também afirmar que Deus em si é Eros. Dionísio, construindo sobre Orígenes e
conterá aqueles que agem, aqueles que mediam e aqueles sobre quem se sobre Plotino e Proclo, para elevar o eros além de seu papel em Platão
age. A hierarquia eclesiástica é o reino humano no qual a interpretação como uma força puramente intermediária, criou uma teoria do eros tanto
em si dos rituais sacramentais realizada pelos liturgistas permite às várias cósmica quanto divina, que viria a ser uma de suas mais profundas
classes de crentes serem divinizadas. Três ordens de agentes sagrados
contribuições para a teologia cristã. Platão sustentava que eros era anseio
usam três rituais para divinizar três grupos de cristãos, pois “a meta de aquisitivo, quer sexual, quer espiritual, por algo que não possuímos. Não
uma hierarquia é capacitar os seres a ser o mais semelhantes possíveis a pode ser atribuído aos deuses, mas nos faz desejar ser como eles. Os
Deus e a estar unos com ele” (HC 3.2). Os sacramentos do batismo, da neoplatônicos passaram a ver o eros não apenas como uma força
eucaristia e das unções são realizados por diáconos, que purificam, permeando todo o cosmos, mas também como aplicável aos deuses e até
sacerdotes, que iluminam, e bispos, que aperfeiçoam. Isso é feito para mesmo ao Primeiro Princípio. Plotino dizia que o bem em si é ao mesmo
benefício dos catecúmenos, que estão sendo purificados, dos batizados, tempo objeto amado, amor e amor de si (En. 6.8.15), mas não
que estão sendo iluminados, e dos monásticos, que estão sendo desenvolveu as implicações dessa visão do Uno, nem apresentou uma
aperfeiçoados (EC 6). A hierarquia celeste funciona de modo similar.
análise completa do eros como força cósmica. Proclo apresentou tal
Três grupos de anjos, cada qual subdividido em três, foram revelados na análise cósmica ao distinguir entre eros pronoetikos, o amor providencial
linguagem simbólica das escrituras. O primeiro grupo ou hierarquia está através do qual os superiores amam os inferiores em todos os níveis, e
perfeitamente unido a Deus e consiste de Serafins como fonte de luz, de eros epitreptikos, o amor retornante através do qual os inferiores tentam
Querubins, que a transmitem, e dos Tronos, que a recebem (HC 7). Na se unir aos seus superiores. Ele não identificou, porém, o Primeiro
hierarquia mediana, a hierarquia que transmite para baixo o que recebe Princípio com eros. Dionísio, nos quatro primeiros capítulos dos Nomes
do alto são os Domínios, Virtudes e Poderes realizando funções Divinos, ao analisar o Bem que manifesta todas as processões de Deus
semelhantes dentro de suas posições respectivas (HC 8). A hierarquia afirma que a autodifusiva natureza da bondade para a qual a luz é o
mais baixa é constituída pelos Principados, Arcanjos e Anjos, que
melhor símbolo, e o poder da Bondade para mover todas as coisas como

41
causa final identifica o Bem e o Belo, afirmando em seguida que o Eros é Dionísio não é apenas transcendente, mas também plenamente cósmico.
idêntico ao Bem-Belo e como o poder dinâmico através do qual a Porque a Tearquia é total e perfeitamente erótica, a hierarquia deve ser o
Tearquia se expressa na hierarquia. Todo movimento na hierarquia, que é mesmo. Deus é tanto o objeto do anelo de todas as coisas para retornar a
o universo, vem de cima, e é fundamentalmente erótico. “Todas as coisas ele quanto esse mesmo anelo em si de que participam todos os níveis das
devem desejar, devem anelar por, devem amar o Belo e o Bem. Por isso e hierarquias individuais. No círculo do amor que forma o universo
pelo amor disso, o subordinado é retornado ao superior, o semelhante faz dionisiano, temos um Deus que se torna extático na processão, um
companhia ao semelhante, o superior volta-se providencialmente para o universo cujo êxtase é realizado no retorno.
subordinado” (ND 4.10). Isso encontra-se em Proclo, diz McGinn, mas A essa transformação do eros platônico como um modo de
prossegue Dionísio, “podemos ser corajosos, a ponto de reivindicar que a compreender a relação entre Deus e o universo pode ser acrescentada
causa de todas as coisas ama todas as coisas na superabundância de sua uma segunda mudança, a da transformação da tríade neoplatônica Ser-
bondade, isso por causa de sua bondade, ela faz todas as coisas, leva Vida-Intelecto em Ser-Vida-Sabedoria. Diferente dos neoplatônicos que
todas as coisas à perfeição, sustenta todas as coisas, devolve todas as viam essa tríade como uma série de deuses que exerciam uma atividade
coisas” (ND 4.10). E Dionísio conclui: “O Eros Divino é o Bem do Bem providencial sobre os níveis mais baixos da realidade, Dionísio sustenta
pelo amor do Bem” (ND 4.10). Para Dionísio, como para Orígenes, há
que “há um só Deus para todas essas boas processões e que ele é
equivalência entre o termo eros e ágape, embora ele prefira o termo eros. possuidor dos nomes divinos dos quais ele, Dionísio, fala” (ND 5.2). O
No universo hierárquico, eros é qualquer capacidade de efetuar uma significado dessa mudança deve ser visto em termos da doutrina da
unidade, uma aliança e uma amálgama específica do Belo e do Bem. criação. Dionísio vê Deus como causa direta e imediata de todas as coisas
Essa capacidade preexiste na Tearquia e dela é comunicada à criação no como individuais e em todas as suas qualidades particulares. Deus não
batimento cósmico do processo e retorno. Indo além em suas afirmações, age através de intermediários. Todas as coisas são boas manifestações do
Dionísio insistirá que o Eros divino deve ser extático, produzindo uma divino Eros extático, cuja precessão rumo a seus efeitos constitui o
situação na qual “o amante não pertence ao eu, mas ao amado” (ND esquema ordenado das hierarquias. Cada coisa individual é um reflexo
4.13). Mas como pode Deus se tornar extático? Como pode sair de si e
criado da mente divina. Ao se conhecer a si mesmo, Deus sabe tudo:
pertencer ao que ele ama? Deus é “seduzido para fora de sua habitação e “coisas materiais imaterialmente, coisas divisíveis indivisivelmente,
vem residir dentro de todas as coisas, e ele o faz por virtude de sua pluralidade em um único ato” (ND 7.2).
capacidade supernatural e extática de permanecer, não obstante, dentro
de si” (ND 4.13). Deus, portanto, pode sair de si em completo êxtase de A mística de Dionísio não pode ser vista fora de sua reflexão
autodoação porque ele apenas tem a habilidade de permanecer teológica. É preciso enfatizar a natureza eclesial e litúrgica de sua teoria
absolutamente dentre de si, totalmente transcendente a todas as coisas. mística. A anagogé ou processo que nos leva de volta à união com Deus
Ele se ama em todas as coisas a partir do mesmo fundo e pela mesma não é uma jornada solitária do “solitário para o Solitário”, como em
razão que ele ama a si mesmo à parte de todas as coisas. Eros em Plotino, mas um processo que é alcançado através da interação de três

42
principais aspectos da vida da Igreja: 1) o entendimento adequado dos distinto de todas elas. Ele é conhecido através do conhecimento (gnosis)
oráculos sagrados; 2) nos rituais sagrados; 3) realizados de acordo com o e através do desconhecimento (agnosia)” (ND 7.3). Esse conhecer através
lugar que se ocupa na hierarquia eclesiástica. Dionísio reforça o caráter do desconhecer é o cerne da teologia negativa de Dionício. Para Evágrio,
metafórico do motivo do retorno. Dada sua concepção de toda a como vimos, a “gnose essência da Trindade” era a meta. Dionísio, mais
hierarquia criada como uma manifestação ordenada da Tearquia, uma resolutamente apofático, deseja negar todo o saber. O que é esse não
pessoa não ascende de fato a Deus ao passar através de vários tipos de saber que ele elogia tanto? Não é um “quê” de modo algum, não algum
realidade, mas se apropria do significado dos níveis como um meio de conceito ou conteúdo que possa ser descrito ou definido. É mai um
atingir a união interior em sua fonte, o Deus oculto. A ascensão é para ele estado mental, o correlativo subjetivo da incognoscibilidade objetiva de
“se tencionar internamente”. Dionísio é conhecido por ter criado o Deus. Só se pode falar dele através de asserções paradoxais de contrários:
conceito “teologia mística”, que significa não um tipo específico de agnosia é a única verdadeira gnosis de Deus. “Esse não saber quase que
experiência, mas o conhecimento que lida com o mistério de Deus em si, completamente positivo é conhecimento daquele que está acima de tudo
o moné. que é conhecido” (Ep. 1). Dionísio tem duas maneiras de falar sobre o
não saber. A teologia mística, em sentido próprio, jaz além de todas as
No primeiro capítulo de sua Teologia mística, Moisés aparece
imagens e nomes e, portanto, dela nada se pode dizer ou escrever. A
como um místico ideal, aquele que se submete à primeira purificação
teologia mística como escrita é construída com a ajuda da teologia
(katharsis), depois alcança a contemplação do lugar de Deus (theoria) e,
simbólica e da teologia racional, que emprestam ao teólogo místico
por fim, alcança a união (kenosis). Esse padrão triplo, presente em
termos do mundo simbólico e do discurso conceitual que são usados em
Orígenes e em Evágrio, é recorrente em Dionísio. No decorrer dos
sentidos transferidos de modo a sugerir o que jaz além de toda fala. Do
séculos ele veio a permanecer um dos modos mais comuns de
mundo do discurso simbólico, Dionísio toma a linguagem da escuridão,
compreender o itinerário místico. O uso que Dionísio faz desse padrão
nuvem e silêncio, tomada da descrição da ascensão de Moisés para
comum triplo de purificação, iluminação e perfeição ou união deve ser
encontrar Deus no Sinai (Ex 19-20) para fornecer descrições metafóricas
visto com seu entendimento da operação dos diversos modos de teologia
da realização do Deus oculto. Moisés é modelo daquele que, livrando-se
na vida do crente.
de todo ver, “mergulha na verdadeira escuridão mística do não saber”. O
A originalidade da contribuição de Dionísio para a mística segundo modo de usar a linguagem para sugerir o que está além dela é
encontra-se no seu método da afirmação e da negação. Ao insistir na mais complexo. Dionísio não só afirma que Deus é incognoscível, mas
superioridade da negação sobre a afirmação em toda predicação em que ele é “mais do que incognoscível” (TM 1.1). Segundo ele, enquanto a
relação a Deus, ele toma cuidado para distinguir entre negação por meio negação é superior à afirmação no processo anagógico, ambas, negação e
da insuficiência e negação por meio da transcendência, que apenas é afirmação, precisam ser ultrapassadas para se alcançar a união com Deus.
cabível para o divino. Os dois modos de conhecer permanecem As questões relacionadas com o significado de agnosia não devem
indispensáveis: “Deus e´, portanto, conhecido em todas as coisas e como impedir-nos de ver que não se trata de não-saber como tal, mas de união

43
(henosis) que é a meta da anagogia dionisiana. Apesar de utilizar henosis transmutados quanto transcendentalizados ao se ir além tanto da
e outros termos relacionados à união, Dionísio não se estende sobre a afirmação quanto da negação. O êxtase realiza essa ruptura radical
natureza da união, nem a relaciona, como muitos autores posteriores, a através do poder do amor, o eros divino implantado no mundo através do
textos-prova do NT, que ajudariam a colocá-la dentro de certas tradições êxtase de Deus. Através do êxtase vamos além da condição humana e
mais amplas. Uma coisa está clara, no entanto. A união com Deus deve somos divinizados. A concepção de união de Dionísio é baseada em um
ser pensada em termos de divinização, que “consiste em estar, tanto transcender do conhecimento rumo a um não-saber e um eros anelante
quanto possível, em união com Deus” (HE 1.3). A divinização é o dom rumo a uma posse extática. Tanto o amor quanto o conhecimento têm
que Deus concede aos seres dotados de inteligência e razão (HE 1.4) papeis essenciais, embora o do amor seja mais elevado.
através de sua participação nas hierarquias. Apesar de o tema da Qual o papel de Cristo na mística de Dionísio? Alguns
divinização já ter sido tratado em outros autores cristãos anteriores a ele, estudiosos pensam que há pouco espaço para Cristo no pensamento de
em Dionísio a alma é divina e capaz de alcançar uma forma de união Dionísio, enquanto outros insistem que há um papel central. Segundo
indistinta com Deus, mas ela é divina apenas como uma manifestação e é McGinn, nem a processão do logos do Pai nem a sua Encarnação na
unificada e divinizada apenas pelo eros elevante de Deus. A divinização natureza humana têm o mesmo papel estrutural em Dionísio como têm
é um dom, não um direito de nascença.
em seus sucessores dialéticos posteriores, como Máximo, João Escoto e
A união divinizante tem importantes relações com outros dois Mestre Eckhart. Em geral, predomina a linguagem mais objetiva de como
termos-chave: theoria, uma questão central em toda a mística patrística Jesus funciona no retorno a Deus. A importância do Areopagita reside no
grega; e ekstasis, um conceito menos tradicional, mas ainda assim fato de que com ele a teologia, primeiro, se tornou explicitamente
importante. Para Dionísio, theoria, ou contemplação, estava enraizada no mística, ou seja, ele criou as categorias que capacitaram os místicos
próprio Deus, à medida que o nome positivo theos era tido como cristãos posteriores a relatar sua consciência da presença de Deus e o
derivando de theasthai (contemplar). Theoria é a habilidade de mistério de sua ausência para a tradição do ensinamento apostólico
contemplar a Tearquia em e através da hierarquia da criação. No nível representado por Dionísio.
simbólico, ela é insight dos símbolos das Escrituras e ações litúrgicas por
Conclusão
meio dos quais passamos das meras representações materiais para os
significantes internos. Num plano mais elevado, dentro das hierarquias O cristianismo começou entre os judeus, mas em um meio já
eclesiásticas e celestial, cada ponto de vista tem uma theoria que lhe é fortemente colorido pelo helenismo. Quase desde suas origens expressou-
pertinente, e cada um deles está direcionado a um nível ainda mais se em grego, falando também cada vez mais no grego da intelligentsia.
elevado da theoria, onde os esclarecimentos concernentes aos nomes Esse processo fica evidente na história dos elementos místicos do
divinos descem do alto. O termo ekstasis e seus correspondentes pensamento patrístico grego. Termos como theoria, apatheia e henosis
aparecem raramente no corpus, mas são importantes. São marcos que ganharam cada vez mais importância, embora não estivessem presentes
significam a transição para o lugar onde todos os valores são no NT (com exceção de uma única vez, em sentido não místico para

44
theoria), assim como os debates sobre a interpretação de termos como existência de vários níveis de compromisso cristão sempre apresentou.
gnosis e ágape. Mas reduzir a história da mística cristã primitiva à Como os videntes gnósticos e muitos filósofos platônicos, os místicos
história do impacto grego sobre um cristianismo original seria cristãos deram atenção a como a alma podia reconquistar o reino celeste
compreender mal a história da mística cristã. Os Pais gregos do qual ela tinha caído, mas, em contraste com eles, os cristãos insistiram
permaneceram conscientes de terem que medir e frequentemente que a divindade da alma não pertencia a ela por natureza, mas era um
modificar o que receberam na base da crença da comunidade cristã como dom do Bom Criador, que é o Pai Redentor. Ao descrever o retorno da
cultuado em suas Escrituras autênticas, professores estabelecidos e rituais alma, os místicos deram maior ênfase à necessidade da intervenção, dom
salvadores. Os cristãos encontram Deus não na especulação filosófica ou e graça divina, do que era costume com os autores pagãos. Os mais
na prática teúrgica, mas em sua vida e através dela na estrutura da importantes místicos cristãos, como Orígenes e Dionísio, colocaram o
ekklesia. amor (concebido como ágape-eros) no centro de seu pensamento de um
jeito diferente do abordado pelos plantonistas.
O que emerge da história apresentada acima é que a mística,
quando aparece de um modo identificável e explícito, como em Orígenes,
não é uma inovação do cristianismo, mas que os grandes místicos Bibliografia consultada
cristãos dos séc. III-V podiam apelar para um número de elementos
presentes em uma nova religião desde seu início para justificarem seus McGinn, B. As fundações da mística. Das origens ao séc. V.
pontos de vista. O primeiro desses elementos era a crença em uma nova e Tomo I. A presença de Deus: uma história da mística ocidental. São
derradeira presença de Deus realizada em Jesus, o logos encarnado. A Paulo: Paulus, 2012.
resposta a essa presença era descrita de vários modos: imitação e Clémen, O. Fontes. Os místicos cristãos dos primeiros séculos.
seguimento, busca amorosa e casamento, iluminação e contemplação, Textos e comentários. Juiz de Fora: Subiaco, 2003.
divinização e união. Embora vista de modo diferente nos vários autores, a
ênfase cristológica da mística cristã é o ponto comum. A nova presença
de Deus em Cristo encontrou o fiel na e através da Igreja. O místico era
sempre eclesiástico. Os primeiros autores místicos cristãos raramente
falavam de suas próprias experiências da presença de Deus. O que lhes
importava era a realidade mística de Cristo na Igreja. Apesar da
referência exegética, a mística cristã distinguiu-se da judaica ao rejeitar
uma leitura exotérica dos textos básicos. O debate do séc. II sobre a
gnose salvadora levou a tradição principal a reafirmar o chamado
universal à salvação, a rejeitar o esoterismo estrito e a deixar às futuras
gerações a luta com o esoterismo modificado e o elitismo que a

45

Você também pode gostar